conjuração baiana

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E m 1798, na Bahia, surgiu outro movi mento de contestação à dominação co lonial. A Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, despontou na época dos “temíveis acon- tecimentos franceses” que incendiavam o continente europeu. Realmente, em dez anos os franceses abala- ram o mundo com a Queda da Bastilha, a Declaração dos Direitos do Homem e a execução do monarca Luís XVI. Desde então a Revolução Francesa se tornou símbolo de contestação para os revolucionários do mundo inteiro. Seu exemplo, encorajava as colônias incitando-as a romper os laços de dominação do Pacto Colonial. No que se refere ao Brasil, desabrochou a insurreição baiana em meio a uma série de problemas locais. Desde o século XVIII, Salvador tinha perdido o status de sede da colônia, apesar de continuar sendo a segunda cidade mais populosa do império português com seus 60 mil habitantes. Apoiada na lavoura da cana- de-açúcar, a elite local comemorava a alta do preço do açúcar que novamente levantava os engenhos. Para- doxalmente, a partir daí os problemas se tornaram mais acentuados porque a ampliação da lavoura açucareira praticamente eliminou as áreas de plantio de culturas de subsistência. Salvador já era por natureza uma cida- de de muitos contrastes e de miséria acentuada. Na épo- ca em que se relatam os fatos, o problema aumentou como se evidencia nos saques a pontos de abastecimento. A carne, em especial, era a mercado- ria de maior valor chegando a custar 600 réis a arroba, que era um preço exorbitante na época. “Nenhuma autoridade merecia respeito, tanto que no sábado de aleluia de 1797 um grupo de populares arreba- tou um carregamento de carne destinado ao general-comandante e dividiu a mer- cadoria com as negras que vendiam quitutes nas ruas”. 1 A camada mais humil- de – maioria da população – formava a le- gião de miseráveis e escravos, vivendo em péssimas condições. No começo do século, a população pobre e marginalizada, já havia se expres- sado em motins reprimidos com violência pelas tropas metropolitanas, como foi o caso da “Rebelião do Maneta”, em 1711. “Animai-vos povo bahiense! Está por chegar o tempo feliz de nossa liberdade.. O tempo que sere- mos todos irmãos. O tempo que seremos todos iguais.” Manifesto dos rebeldes 1798. Pelo porto de Salvador saíam os produtos coloniais para a Europa e chegavam os escravos, as manufaturas do Reino e os artigos de luxo.

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Em 1798, na Bahia, surgiu outro movimento de contestação à dominação colonial. A Conjuração Baiana ou Revolta

dos Alfaiates, despontou na época dos “temíveis acon-tecimentos franceses” que incendiavam o continenteeuropeu. Realmente, em dez anos os franceses abala-ram o mundo com a Queda da Bastilha, a Declaraçãodos Direitos do Homem e a execução do monarca LuísXVI. Desde então a Revolução Francesa se tornousímbolo de contestação para os revolucionários domundo inteiro. Seu exemplo, encorajava as colôniasincitando-as a romper os laços de dominação do PactoColonial.

No que se refere ao Brasil, desabrochou ainsurreição baiana em meio a uma série de problemaslocais. Desde o século XVIII, Salvador tinha perdido ostatus de sede da colônia, apesar de continuar sendo asegunda cidade mais populosa do império portuguêscom seus 60 mil habitantes. Apoiada na lavoura da cana-de-açúcar, a elite local comemorava a alta do preço doaçúcar que novamente levantava os engenhos. Para-doxalmente, a partir daí os problemas se tornaram maisacentuados porque a ampliação da lavoura açucareirapraticamente eliminou as áreas de plantio de culturasde subsistência. Salvador já era por natureza uma cida-de de muitos contrastes e de miséria acentuada. Na épo-ca em que se relatam os fatos, o problema aumentoucomo se evidencia nos saques a pontos deabastecimento.

A carne, em especial, era a mercado-ria de maior valor chegando a custar 600réis a arroba, que era um preço exorbitantena época. “Nenhuma autoridade mereciarespeito, tanto que no sábado de aleluiade 1797 um grupo de populares arreba-tou um carregamento de carne destinadoao general-comandante e dividiu a mer-cadoria com as negras que vendiamquitutes nas ruas”.1 A camada mais humil-de – maioria da população – formava a le-gião de miseráveis e escravos, vivendo empéssimas condições.

No começo do século, a populaçãopobre e marginalizada, já havia se expres-sado em motins reprimidos com violênciapelas tropas metropolitanas, como foi o casoda “Rebelião do Maneta”, em 1711.

“Animai-vos povo bahiense! Está por chegar otempo feliz de nossa liberdade.. O tempo que sere-

mos todos irmãos. O tempo que seremos todos iguais.”Manifesto dos rebeldes 1798.

Pelo porto deSalvador saíamos produtoscoloniais para aEuropa echegavam osescravos, asmanufaturas doReino e osartigos de luxo.

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Durante vários dias os centros de abastecimen-to de Salvador foram invadidos pela população famin-ta. Ao mesmo tempo, parte da tropa se rebelava nosquartéis em protesto aos miseráveis soldos. Com umambiente tão propício, as “perigosas idéias francesas “fomentaram o combustível ideoló-gico para .os rebeldes, que aospoucos preparavam a explosão dainsurreição. As autoridades portu-guesas estavam de certa formaatentas ao clima de sedição, fican-do de olho em tudo que pudesselembrar a França revolucionária.Prova disso, foi a vinda do gover-nador D. Fernando José, quedesembarcou em Salvador comordens de agir com rigor, punindosupostos insubordinados.

“Denúncias partidas daprópria Bahia indicavam aogoverno de Lisboa que, a provín-cia estava sendo envolvida poruma inquietante ação visando “adestruição dos laços de solidariedade com o Reino ea adoção dos abomináveis princípios franceses”. Ajulgar por aquelas versões, a situação era de tal ordemque se chegasse a Salvador uma tropa francesa a Sal-vador não encontraria resistência na guarnição e aosconquistadores se uniriam as pessoas de posição so-cial”. 1

Nessa Bahia potencialmente rebelde, propaga-ram-se as idéias iluministas, entre a parcela maisesclarecida da população. Em 1796 chegou em Salva-dor um navio espanhol, trazendo a bordo o comandan-te francês René Larcher. Antes de chegar na Bahia, ocomandante tinha sido encarregado de extinguir a es-cravidão em colônias francesas nas Antilhas. Com medoda influência revolucionária do comandante, o gover-nador D. Fernando designou o tenente Hermógenes deAguiar, para acompanhar e vigiar o comandante fran-cês enquanto estivesse em Salvador.

Com essa atitude o governadorentregou “as galinhas à raposa” pois

o tenente Hermógenes encantadocom as idéias do comandante fran-cês, colocou-o em contato comoutros militares, espalhando o

vírus das idéias francesas.

Com o retorno de Larcher, os rebeldes trataramde organizar o movimento, ampliando-o como não haviaacontecido em Minas Gerais. Na articulação do movi-mento teve peso decisivo a sociedade maçônicaCavalheiros da Luz – local de reunião de importantesfiguras da elite baiana, a exemplo do padre FranciscoGomes, o professor Muniz Barreto, Cipriano Barata eoutros. Sob influencia das idéias liberais os rebeldes

se encorajaram a subverter a situação colonial do Brasil.A diferença em relação à Conjuração Mineira, é quedessa vez, o movimento se ampliou com a inclusão dapopulação mais humilde, expressa na participação dosalfaiates João de Deus e Manuel Faustino, soldadoscomo Lucas Dantas e Luís Gonzaga, além deHermógenes que havia sido o ponto de partida dessahistória.

O projeto político da Inconfidência Baiana foiincomparavelmente mais ousado e radical, que o ideáriopolítico dos rebeldes das Minas Gerais. Lutavam pelaproclamação da República e o fim da escravidão, alémde liberdade religiosa e liberdade de comercio. O motimestava previsto para acontecer em agosto de 1798,porém ao mesmo tempo em que os rebeldes searticulavam, o governador era informado do que esta-va acontecendo. Na verdade, isso aconteceria, maiscedo ou mais tarde, pois havia dezenas de envolvidoso que propiciava o vazamento das informações.

Além disso, em agosto de 1798, surgiram vári-os cartazes na cidade anunciando a iminente revolta.Confiando na força do movimento os rebeldes perde-ram a cautela se expondo à vigilância do governador.Peneirando as informações, D. Fernando chegou a LuísGonzaga que era um dos principais líderes. Após aprisão de Gonzaga, os outros rebeldes resolveram an-tecipar o inicio da rebelião, antes que ocorressem no-vas prisões. Sabendo de todos os passos dos rebel-des, ficou fácil para D. Fernando desarmar a insurrei-ção. Depois de um mal-sucedido agrupamento dos in-surgentes no Dique do Tororó, o governo foi efetuan-do as prisões até desarticular completamente o movi-mento.

Desde a mudançada capital para oRio de Janeiro,Salvador nãoconheceunenhum tipo deprogresso.

No final do séculoXVIII Salvador erauma cidadepobre, onde osnegros semtrabalho nalavoura vendiamalimentos nomeio da rua.

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O quilo da carnepassou a custar

uma fortuna, e afome provocou aprimeira tentativade revoluçãosocial

É necessário notar que, em um primeiromomento, o movimento se afigurava

semelhante ao estilo das manifestaçõesrevolucionárias de alguns pontos das Antilhas e

da América Central, nos quais a elite brancabuscou apoio entre escravos e elementos das

raças submetidas, para seus projetos delibertação diante da metrópole poderosa.

Entretanto, a difusãode idéias libertárias eigualitárias, no casobaiano, não poderiadeixar de despertaras contradições da

sociedadeescravocrata: o

projeto igualitário,benéfico aos

escravos e mulatos,não aos senhores,

faria com que onúcleo inicial dos

"Cavalheiros da Luz"fosse ultrapassado,

em matéria de articulações revolucionárias,pelos humildes da capitania. As camadas

inferiores radicalizaram logo suas posições eassumiram o comando efetivo do movimento:

mesmo Cipriano Barata, que até 1839 seria umdos mais notáveis revolucionários democratasque a história brasileira conheceu, seria em

1789 superado pelos acontecimentos: defensorda persistência da ação propagandística, para

dar mais força ao movimento futuro, ele eradesfavorável ao seu desencadeamento

imediato.

Cavalheiros e MulatosCavalheiros e MulatosCavalheiros e MulatosCavalheiros e MulatosCavalheiros e Mulatos

Como a maiorcidade daAméricaportuguesa,mesmo após1799 Salvadorcontinuariasendo palco deimportantesacontecimentos.

“As penalidades sobre os conjurados, a re-pressão sobre os mulatos, essasdeveriam ser implacáveis, para cum-prir as exigências de Lisboa. D. Maria1, em cartas, exigia que todos os im-plicados, mesmo aqueles que não par-ticipassem diretamente da conjura,mas tivessem ciência dela e não a de-latassem fossem punidos. A coroa che-gava a instruir os tribunais da Bahiapara que, no caso dos condenados que recebessempena de degredo, eles não fossem mandados paracolônias portuguesas na África, e sim para territóri-os fora da jurisdição lusa, para que “o veneno dosseus falsos princípios não possa jamais contaminaraqueles dos seus vassalos”. A violência da repressãoestava na razão direta do caráter popular do movi-mento.

No cumprimento de uma política social cada

vez mais repressiva, a coroa ordenou o pagamentode prêmios e a concessão de privilégios e cargos aquaisquer denunciantes de crimes de “lesa-majestade”: os delatores da contestação políticaforam agraciados com pensões, como José JoaquimSantana, que havia entregado João de Deus e osprincipais implicados. A pratica estimulou asdenúncias: ao iniciar-se o século XIX, avolumavam-se sobre as mesas dos governadores e secretários degoverno as cartas dos ambiciosos, denunciando tudoe todos em busca de alguns tostões e um emprego na

milícia. Mas a Conjuração Baiana foi algomais que um sintoma da desagregação docolonialismo, que tentava manter-se atravésda repressão: ela evidencia uma outra facetado processo de independência, que se mani-festaria em ocasiões como 2 de julho baiano(já em 1823): o radicalismo democrático,igualitário e popular, que o caráter posteri-or do processo de independência conseguiua custo esconder. “ 2

1 In. Brasil 500 Anos. 1784 – 1815.Editora Abril. Pág 280.

2 In. Maranhão, Ricardo, Luís Ronacari e ou-tros. Brasil História. Texto e Consulta. Digital Multimídia.

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Por isso mesmo, a liderança escapou-lhedas mãos, passando para a de mulatos ligadosàs profissões urbanas, artífices (principalmentealfaiates) e soldados. O radicalismo das raças

dominadas, inquieto e impaciente para se libertardo jugo secular do colonialismo, não interessavaaos senhores brancos, que se retraíram. CiprianoBarata continuou no movimento, pois em toda a

sua vida, por coerência revolucionária, sediferenciaria do restante da elite branca, que

temia o povo e a liberdade plena. Mesmo assim,seu papel nos últimos momentos da conjuraçãobaiana foi pequeno em comparação com o dos

mulatos. É importante notar, porém, que taldiferenciação de classe no seio do movimento,

se inevitável a longo prazo, foi facilitada eapressada pelo próprio clima de

descontentamento e agitaçãosocial vigente na Bahia em fins

do século XVlll. As "idéiasfrancesas" apenas vieram

permitir a expressão de umarevolta latente e surda,curtida nos porões e

senzalas, que em váriosmomentos explodia em

manifestações caóticas. Eraa própria estrutura da

sociedade colonial queestava em jogo, para os

doninados pelo jugo branco.(In. Ricardo Maranhão e

outros. Brasil História - Texto eConsulta. Volume 2)

No dia 10 de agosto de1792 o povo francês invadiu asTulheries e massacrou a Guar-da Real, Na Bahia em 1799, asidéias revolucionárias alcança-ram homens do povo que ansi-

avam por igualdade.

Cipriano Baratanegou seuenvolvimento naconspiração, foiabsolvido mascontinuou comoagitador político atéas primeirasdécadas do séculoXIX.