confabulário penal

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Confabulário Penal, breves narrativas sobre crimes escritas por Sérgio Tavares.

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Page 1: Confabulário Penal
Page 2: Confabulário Penal

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Texto originalmente publicado no blog

infinitoconveniente.blogspot.com

abril/2013

Page 3: Confabulário Penal

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"Por anos depois da morte de nossa mãe, o correio continuou entregando as cartas

endereçadas a ela. O correio não tomava conhecimento de sua morte”.

Thomas Bernhard, O Imitador de Vozes

Page 4: Confabulário Penal

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venn

um conhecido carpinteiro de casas de boneca foi a júri no condado de Buskerud, acusado

pelo assassinato de uma menina de seis anos, cujo corpo foi encontrado às margens

congeladas do rio Drammen, embrulhada numa mortalha de plástico. ainda que jurasse

inocência durante todo o processo, o advogado de defesa não conseguiu que o homem

frágil, com uma curvatura corporal acentuada, escapasse da sentença de 21 anos, pena

máxima naquele país para crimes hediondos e ataques contra a ordem nacional. a

evidência capital estava nos traços de serragem e de uma cola usada somente por quem

executa trabalhos manuais com madeira, no repositório da vítima, e, é claro, por conta

da cruel analogia circunstancial.

na prisão, o carpinteiro foi recolhido numa cela particular, onde tinha contato

apenas com os guardas e um livreiro que circulava, uma vez por semana, pelos

corredores com um carrinho de rodas de bilha. nos primeiros meses, alguns familiares

vieram vê-lo, depois somente a esposa. com o passar do tempo, as visitas se tornaram

escassas até deixarem de existir. sua companhia limitou-se aos personagens dos livros,

aos palitos de fósforo com que montava pequenas réplicas de suas famosas casas de

boneca e a sombra de um albatroz projetada pela pequena janela sempre no início de

maio, quando esses animais voam em círculos graciosos convencendo as fêmeas para o

acasalamento.

18 anos depois, fazia frio quando um agente de justiça foi até a sua cela. mais

curvo e emagrecido, o carpinteiro esticou os dedos entre as barras e pegou uma carta

oficial do tribunal de Buskerud, que informava que, na semana anterior, fora preso um

infanticida contumaz, apelidado de O Monstro do Sol da Meia-Noite, que confessara o

crime pelo qual ele havia sido condenado. desse modo, por clemência da Justiça

Nacional, era declarada a sua inocência e soltura imediata. lendo as últimas palavras, o

homem deixou a folha cair e, num movimento incomum, enlaçou seu corpo frágil com os

próprios braços, apertando-se calorosamente como a um amigo que não via há anos.

Page 5: Confabulário Penal

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ludwig

um jovem mascate encontrava-se diante de um juiz sentenciador em Petah Tikva,

aguardando a irrevogável condenação de ter suas mãos amputadas, ao ter sido pego, em

flagrante, furtando uma naca de pão ázimo. conforme é de juízo milenar naquele país,

não havia muito o que esperar da decisão, senão o dia do fatídico decepamento.

eis que, num rompante sibilino, o advogado de defesa pediu clemência, alegando

que, ao cometer um ato imperdoável, ainda que desesperado pela fraqueza de cinco

irmãos enfermos de doenças pulmonares, o réu, disparatadamente, pôs em risco os

instrumentos que conservavam um dom etéreo. que a lei, que sim deveria ser respeitada,

ceifaria o maior talento que aquela cidade poderia conceber. e, para espanto coletivo,

pediu que o meirinho adentrasse o tribunal com um Essenfelder1/4 cauda, preto.

os que observavam o julgamento, claro, acharam uma heresia. mas, curioso com o

hiperbolismo do zopeiro advogado e porque nutria um gosto íntimo por música clássica,

permitiu que a circunstância se prolongasse. consentido, o jovem ajeitou-se num banco

improvisado e com gestos suspensos começou a tocar a Sonata ao Luar, de Ludwig van

Beethoven, embora nunca alguém lhe dissera o nome do autor.

a cada nota, a cacofonia era sorvida pelos movimentos suaves, porém seguros,

sobre as teclas, envolvendo a plateia num silêncio hipnótico, uma atmosfera de encanto

que se manteve acolhedora até o tanger da eufônica sinfonia. ao fim, com os olhos

aguados e o coração enternecido, o juiz assinou a sentença que ordenava amputar as

mãos do maior talento que aquela cidade poderia conceber.

Page 6: Confabulário Penal

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fehler

o tribunal do Distrito de Scheibbs viu-se diante de uma situação perturbadora. um

estudante no último ano de direito da universidade de Graz, pesquisando a incidência de

crimes nas cidades afluentes do Rio Arluf, descobriu uma discrepância num processo

penal de estupro seguido de tentativa de morte, no qual foi condenado a 12 anos um

padeiro de Viselburgo.

na transcrição do interrogatório da vítima, a dona de uma relojoaria, havia a

menção de uma mancha escura na altura do ombro do agressor, descartada tanto pela

defesa quanto pela acusação, por conta do crime ter sido praticado às 20h20, numa área

umbrosa.

todavia, ao revisar o histórico do réu, o estudante percebeu que, na noite fatídica, o

acusado passara mais cedo na casa do irmão gêmeo, convalescente de uma queimadura

no ombro direito, causada num dos fornos de pão de centeio, três dias antes.

diante da perturbadora dúvida, o juiz distrital de Scheibbs não teve outra escolha,

senão convocar um novo julgamento, onde, após um mês de deliberações, revisões de

provas, repostos testemunhos, apelos e mudança de advogados, os de defesa, o irmão

gêmeo, na ocasião com o ombro queimado, foi condenado no lugar do outro, embora

jurasse piamente inocência.

livre, o irmão inocentado, após cumprir sete anos de cárcere por um crime que,

legalmente, não cometeu, levou apenas sete horas para estuprar novamente e desta vez

matar a dona da relojoaria.

Page 7: Confabulário Penal

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schadenfreude

um juiz suplente, urgentemente convocado da cidade de Bochum, condenou a dona de

uma pequena mercearia em Dortmund a 12 anos e seis meses de prisão pelo assassinato

da irmã caçula, que trabalhava no balcão do dito estabelecimento familiar.

o advogado de defesa, durante todo o julgamento, havia alegado que o crime tinha

sido cometido em retaliação às contínuas ameaças sofridas pela ré, devido a uma antiga

divergência em relação ao espólio do pai, um ourives morto em Stalingrado.

no entanto, todos do tribunal, inclusive e principalmente o distinto advogado,

ficaram surpresos, quando a acusada levantou-se e declarou-se culpada, confessando que

havia matado a irmã caçula tomada pelo pecado capital da inveja. embora também

atônito, o juiz suplente não teve mais o que deliberar, além da decisão final.

anos se passaram e, como é natural da prática de advocacia, o advogado penal

ganhou alguns julgamentos e perdeu outros, porém nem o tempo conseguia apagar a

lembrança da dona da mercearia que havia assassinado a irmã caçula por inveja. não

conseguia compreender como uma mulher que herdou todos os bens do pai, era

extremamente bonita e residia numa bela casa própria poderia cobiçar uma outra que

sobrevivia do pouco que era pago, era fragosamente feia e morava numa pensão para

moças e jovens repatriadas ao leste de Essen.

um dia, então, resolveu dar fim ao tormento e foi à prisão reencontrar a mulher a

qual o tempo e a privação não conseguiram embrutecer os traços finos. sem esconder o

motivo de sua visita, logo após às cortesias convencionais, perguntou o que alguém que

tinha tudo poderia invejar de quem não tinha nada. felicidade, ouviu, finalmente.

justamente por, apesar disso, ser muito feliz.

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kitaran

como previsto no código penal, um tribunal de Selangor condenou um faz-tudo à forca

por ter apunhalado o filho caçula de uma família de nômades que, supostamente,

apedrejou até a morte uma de suas cabras leiteiras. o juiz e o carrasco já estavam

preparando a data de execução, quando o meirinho alertou para a condição física do réu.

com 132 quilos, era mais do que provável que, no momento do enforcamento, a corda

rompesse ou o travessão de madeira partisse, e o culpado desmoronasse no chão.

o juiz, então, reuniu-se com o executor para deliberar sobre o impasse e, depois de

alguns minutos, saiu-se com a solução de amputar as duas pernas e os dois braços do réu

antes do ato capital. o que causou imediato protesto do advogado de defesa, pois a pena

passaria a ser por esquartejamento e não por forca.

sem resolução, portanto, o faz-tudo foi absolvido.

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zaatar

um homem que mantinha, fazia nove anos, a função de cozinheiro assistente numa

fábrica de bonecas foi levado a júri no tribunal de Bruges, acusado de sequestrar,

assassinar e guisar partes de três jovens de origem siamesa.

a acusação, confiante pela robustez das provas, havia preparado um discurso

modelar, com palavras-chave apenas para comover a tribuna.

foi quando a defesa apresentou uma evidência que, em menos de meia hora, definiu

a decisão do juiz em inocentar o acusado. de nacionalidade libanesa, era impossível que

fosse culpado de canibalismo, pois em sua prateleira de temperos não havia zaatar.

e, como é de senso-comum, nenhum libanês prepara um guisado sem zaatar.

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cluricaun

o tribunal do condado de Fermanagh julgava um especialista em cerveja, também

conhecido como mestre cervejeiro, por interceptação de onze caixas de Guiness, quando

os advogados de defesa apresentaram um reviravolta inusitada. ao contrário do que

discorria o processo, redigido com exímio conhecimento jurídico por um funcionário de

carreira, o objeto do furto não fora vendido no mercado negro, e sim consumido, todo ele,

numa noite de solidão.

o juiz bateu o martelo, coercivo, para conter o burburinho e algumas transversas

risadas, e, depois de se reunir com a defesa e a acusação, não teve outra alternativa

senão comprovar se era possível um único homem beber onze caixas de Guiness numa

única noite.

a reconstituição, portanto, foi preparada, porém, antes do primeiro gole, o mestre

cervejeiro lembrou que, como é de tradição secular, um distinto irlandês nunca deve

beber sozinho, ao estar cercado de qualquer outro compatriota. assim, foram

distribuídas garrafas de cerveja para todos do tribunal, que acompanharam o acusado

no intento de se revelar culpado ou inocente. o final dessa história ninguém sabe

realmente ao certo, mas várias versões sempre são narradas no dia de São Patrício.

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