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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO Regina Aparecida Correa CONCEPÇÕES DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: a voz de professoras participantes do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa PNAIC no município de Ouro Preto - MG Mariana MG 2017

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E SOCIAIS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    MESTRADO EM EDUCAO

    Regina Aparecida Correa

    CONCEPES DE ALFABETIZAO E LETRAMENTO:

    a voz de professoras participantes do Pacto Nacional pela Alfabetizao na

    Idade Certa PNAIC no municpio de Ouro Preto - MG

    Mariana MG

    2017

  • Regina Aparecida Correa

    CONCEPES DE ALFABETIZAO E LETRAMENTO:

    a voz de professoras participantes do Pacto Nacional pela Alfabetizao na

    Idade Certa PNAIC no municpio de Ouro Preto - MG

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Educao Mestrado em

    Educao da Universidade Federal de Ouro Preto,

    como requisito parcial para obteno do ttulo de

    mestre.

    Linha de pesquisa: Prticas Educativas, Metodologias

    de Ensino e Tecnologias da Educao (PEMETE).

    Orientador: Dr. Hrcules Toldo Corra

    Mariana - MG

    2017

  • Catalogao: www.sisbin.ufop.br

    C824c Correa, Regina Aparecida.

    Concepes de alfabetizao e letramento [manuscrito]: a voz de professoras participantes do Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa ( PNAIC ) no municpio de Ouro Preto - MG / Regina Aparecida Correa. - 2017.

    150f.: il.: tabs.

    Orientador: Prof. Dr. Hrcules Toldo Corra.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de Cincias Humanas e Sociais. Departamento de Educao. Programa de Ps- Graduao em Educao.

    CDU: 37.01/.09

    http://www.sisbin.ufop.br/
  • Aos meus pais, com todo amor.

  • AGRADECIMENTOS

    O Mestrado, desde o meu ingresso na graduao, em 2006, representou para

    mim um sonho: de contribuir com uma educao melhor e de v-la como promotora de

    mudanas na vida de outras pessoas como foi na minha.

    Desse modo, ao finalizar esta etapa, com a concluso da dissertao, faz-se

    necessrio agradecer a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contriburam para

    a realizao desse sonho.

    Assim, agradeo primeiramente aos professores da graduao, em especial,

    Celso Antnio Spaggiari Souza, Cristina Lcia Calicchio Gonalves Cruvinel, Lusa

    Emlia Lima de Moraes Minus e Maria Amlia de Castro Cotta; e aos amigos da

    graduao, Rogrio e Juliana, que plantaram e cultivaram esse sonho.

    Profa. Helena Riboli, pela competncia e amor com que desempenha a

    docncia.

    Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por ampliar meus

    conhecimentos e horizontes.

    Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), pelo apoio que possibilitou

    a continuidade do mestrado.

    Aos colegas da Pr-Reitoria de Graduao da UNIFAL-MG, que to

    carinhosamente me acolheram e se tornaram parte desse sonho.

    Na pessoa da Mnica Tavares, agradeo a Secretaria Municipal de Educao de

    Ouro Preto, por viabilizar a realizao da pesquisa no municpio.

    s orientadoras de estudos do municpio de Ouro Preto, que to prontamente

    aceitaram participar desta pesquisa.

    s professoras, protagonistas deste trabalho, que se disponibilizaram a participar

    da pesquisa e me receberam com to boa vontade em sua casa e /ou em seu ambiente de

    trabalho, compartilhando suas experincias e olhares sobre a formao no mbito do

    Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa.

    Agradeo a todos os alunos para os quais lecionei e a todos os professores com

    os quais trabalhei, tendo em vista que contriburam com minha formao e estimularam

    o meu interesse em investigar questes relacionadas alfabetizao e formao de

    professores.

    s professoras Glucia Jorge e Francisca Izabel Pereira Maciel, por terem

    aceitado o convite para fazer parte da banca de qualificao e de defesa e pelas

  • contribuies dadas no ato da qualificao, que tanto nos auxiliaram nas reflexes

    acerca da pesquisa.

    Ao Hrcules Toldo Corra, pelas orientaes dadas ao longo deste trabalho, que

    contriburam para o meu amadurecimento enquanto pesquisadora.

    Ao Grupo de pesquisa Multiletramentos e usos das tecnologias digitais de

    informao e comunicao na Educao (MULTDICS), por ter propiciado um espao

    de discusso das nossas pesquisas.

    s amizades construdas na UFOP ao longo destes dois anos e, de modo muito

    especial, Iara e Masa, sem as quais esta etapa teria sido mais difcil e menos feliz.

    Ao Marcelo de Castro, colega de orientao, que se fez presente durante toda

    esta etapa, por ter me presenteado com seu bom humor, sua amizade e este jeito

    canceriano de ser.

    Na pessoa da Renata Aparecida, agradeo a todos os amigos que

    compreenderam as minhas ausncias nestes ltimos anos.

    s minhas irms, pela amizade.

    Aos meus pais, pela vida, pela educao e pelo amor.

    E a Deus, presena constante em minha vida e na de minha famlia, por ter

    ouvido os desejos do meu corao e ter providenciado todas as coisas para que esse

    sonho se concretizasse!

  • Porque se chamavam homens

    Tambm se chamavam sonhos

    E sonhos no envelhecem...

    (Clube da esquina n 2, Milton Nascimento, L Borges e Mrcio Borges)

  • RESUMO

    O presente trabalho teve como objetivo geral analisar concepes acerca dos processos

    de alfabetizao e letramento de cinco professoras alfabetizadoras do municpio de

    Ouro Preto MG, que participaram da formao continuada no mbito do Pacto

    Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa PNAIC, em 2013. Esta pesquisa, de

    abordagem qualitativa, utilizou como instrumentos de coleta de dados documentos

    pblicos, questionrios e entrevistas. Participaram da pesquisa quatro das cinco

    orientadoras de estudos do municpio de Ouro Preto e cinco professoras participantes do

    PNAIC. Os dados coletados foram analisados com base, especialmente, nos seguintes

    autores: Albuquerque e Morais (2006), Ferreira e Leal (2006), Ferreiro e Teberosky

    (1986), Morais (2012), e Soares (2004, 2011, 2012, 2014, 2015, 2016). A anlise dos

    dados aponta que a terceira unidade dos cadernos de formao, relacionada ao sistema

    de escrita alfabtica e conscincia fonolgica, foi a que marcou com mais intensidade

    as professoras alfabetizadoras, de modo especial, porque possibilitou a compreenso

    terica de alguns conceitos que as professoras j desenvolviam na prtica, como a

    conscincia fonolgica. Com relao ao letramento, embora seis das oito unidades do

    curso apresentassem um ou mais objetivos relacionados alfabetizao na perspectiva

    do letramento, verificamos, por meio do depoimento das professoras, algumas

    dificuldades em conceituar letramento ou mesmo de citar atividades relacionadas a ele.

    Assim, conclumos que, embora haja tentativas de alfabetizar no contexto de letramento,

    possvel perceber certa dificuldade relativa a isso e a priorizao de uma das facetas

    do processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita: a alfabetizao.

    Palavras-chave: Concepes de alfabetizao e letramento. Formao continuada de

    professoras alfabetizadoras. Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa

    PNAIC.

  • ABSTRACT

    This works general objective was to analyze the conceptions of five literacy teachers

    about literacy - its relevant to say that in Brazilian Portuguese there is the concept of

    letramento related not only to the learning process of reading and writing, but also the

    development of skills for the social use of them, and both processes can happen at the

    same time. The teachers analyzed work at public schools in Ouro Preto, MG and, in

    2013, they took part in a continuing education project named Pacto Nacional pela

    Alfabetizao na Idade Certa (PNAIC) - which in English is National Pact for literacy

    at proper age. This research used as qualitative data collection instruments: public

    documents, questionnaires and interviews. Besides the five teachers mentioned, four of

    the five mentors of the project in Ouro Preto also participated in the study. The

    collected data was analyzed based, especially, on the following authors: Albuquerque e

    Morais (2006), Ferreira e Leal (2006), Ferreiro e Teberosky (1986), Morais (2012), and

    Soares (2004, 2011, 2012, 2014, 2015, 2016). The data analysis pointed that the third

    unit of the teacher training books, which is related to the alphabetic writing system and

    to the phonological awareness, it was considered the most remarkable one for the

    teachers, especially because it made possible for them to understand some theoretical

    concepts they had already developed during their practice, such as the phonological

    awareness. Regarding literacy, although six out of eight units of the course presented

    one or more objectives for its development, based on the teachers interviews we

    noticed that they had some problems to conceptualize or even to mention activities

    related to it. Therefore, we concluded that even though attempts have been made with

    the objective of literacy it is possible to notice certain difficulty concerned to it while

    the learning process of writing and reading is prioritized.

    Keywords: Conceptions of literacy. Continuing education of literacy teachers. Pacto

    Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa PNAIC.

  • LISTA DE QUADROS

    QUADRO 1 Durao das entrevistas ........................................................................ 49

    QUADRO 2 - Documentos e legislao sobre o PNAIC ............................................. 50

    QUADRO 3 - Relao de escolas do municpio de Ouro Preto MG ......................... 52

    QUADRO 4 Ementa das oito unidades do PNAIC/Lngua Portuguesa .................... 60

    QUADRO 5 - Unidades referentes ao primeiro ano do Ciclo de Alfabetizao .......... 61

    QUADRO 6 Perfil das professoras participantes da pesquisa ................................... 73

    QUADRO 7 Temas mais e menos relevantes apontados no 1 questionrio ............. 75

    QUADRO 8 - Temas mais e menos relevantes apontados no 2 questionrio ............. 91

    QUADRO 9 Temas apontados como mais relevantes nos dois questionrios .......... 92

    QUADRO 10 Temas apontados como menos relevantes nos dois questionrios ..... 94

  • LISTA DE SIGLAS

    ANA Avaliao Nacional da Alfabetizao

    CEAD Centro de Educao Aberta Distncia

    CEALE Centro de alfabetizao, leitura e escrita

    CEEL Centro de Estudos em Educao e Linguagem

    FMI Fundo Monetrio Internacional

    FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educao

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IDEB ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica

    IES Instituies de Ensino Superior

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira

    LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional

    MEC Ministrio da Educao

    PEMETE Prticas Educativas, Metodologias de Ensino e Tecnologias da Educao

    PNAIC Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa

    PDE Plano de Desenvolvimento da Educao

    PNBE Programa Nacional Biblioteca da Escola

    PNE Plano Nacional da Educao

    PNLD Programa Nacional do Livro Didtico

    PROCAP Programa de Capacitao de Professores

    SEA Sistema de Escrita Alfabtica

    SISPACTO Sistema Integrado de Monitoramento, Execuo e Controle

    TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    UFOP Universidade Federal de Ouro Preto

  • SUMRIO

    INTRODUO .............................................................................................................. 13

    CAPTULO 1 CONCEPES DE ALFABETIZAO E LETRAMENTO,

    FORMAO DE PROFESSORES E PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAO

    NA IDADE CERTA: INICIANDO A CONVERSA ..................................................... 16

    1.1 Alfabetizao e letramento: conceitos e historicizao ........................................ 17

    1.2 A formao continuada no Brasil e o compromisso com a qualidade da educao

    .................................................................................................................................... 29

    1.3 O Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa no contexto da poltica

    educacional brasileira ................................................................................................. 36

    CAPTULO 2 EXPLICITANDO O CAMINHO TERICO-METODOLGICO DA

    PESQUISA: APROFUNDANDO O TEMA .................................................................. 44

    2.1 O interesse pela pesquisa ...................................................................................... 44

    2.2 Objetivos e instrumentos de coleta de dados ........................................................ 45

    2.3 Conhecendo o campo ............................................................................................ 52

    2. 4 Critrios para seleo dos sujeitos participantes da pesquisa .............................. 55

    CAPTULO 3 A FORMAO CONTINUADA NO PACTO NACIONAL PELA

    ALFABETIZAO NA IDADE CERTA: A VOZ DAS PROFESSORAS

    ALFABETIZADORAS .................................................................................................. 57

    3.1 A formao continuada no Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa ... 57

    3.2 Participantes da pesquisa ...................................................................................... 63

    3.2.1 Orientadoras de estudos do municpio de Ouro Preto-MG ............................ 63

    3.2.2 Professoras alfabetizadoras ............................................................................ 71

    3.3 A voz das professoras alfabetizadoras ................................................................ 101

    3.3.1 A abordagem da categoria Sistema de Escrita Alfabtica - SEA e Conscincia

    Fonolgica ............................................................................................................. 101

    3.3.2. A abordagem da categoria Processos de Avaliao .................................... 112

    3.3.3 A abordagem da categoria Concepes de Alfabetizao e letramento ....... 121

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 128

    REFERNCIAS ........................................................................................................... 133

    APNDICES ................................................................................................................ 140

  • 13

    INTRODUO

    A presente pesquisa insere-se em uma abordagem qualitativa, utilizando como

    instrumentos para a coleta de dados a anlise documental, o questionrio e a entrevista.

    Teve como objetivo geral analisar concepes acerca dos processos de alfabetizao e

    letramento de cinco professoras alfabetizadoras do municpio de Ouro Preto MG, que

    participaram da formao continuada no mbito do Pacto Nacional pela Alfabetizao

    na Idade Certa PNAIC , em 2013. Os objetivos especficos da pesquisa foram:

    identificar quais temas mais emergiram nas entrevistas, os que menos apareceram e

    aqueles que foram silenciados. A partir da, procuramos levantar possveis causas da

    maior ou menor emergncia desses temas ou do seu silenciamento.

    Os dados coletados foram analisados com base, especialmente, nos seguintes

    autores: Albuquerque e Morais (2006), Ferreira e Leal (2006), Ferreiro e Teberosky

    (1986), Morais (2012), e Soares (2004, 2011, 2012, 2014, 2015, 2016).

    Considerando o objetivo geral desta pesquisa, o trabalho foi estruturado em trs

    captulos: Concepes de alfabetizao e letramento, formao de professores e Pacto

    Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa: iniciando a conversa; Explicitando o

    caminho terico-metodolgico da pesquisa: aprofundando o tema; e A formao

    continuada no Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa: a voz das professoras

    alfabetizadoras.

    O primeiro captulo, Concepes de alfabetizao e letramento, formao de

    professores e Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa: iniciando a conversa,

    foi subdividido em trs sees, a saber: Alfabetizao e letramento: conceitos e

    historicizao; A formao continuada no Brasil e o compromisso com a qualidade da

    educao; e O Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa no contexto da poltica

    educacional brasileira. Por meio desse captulo, procuramos apresentar um breve

    histrico dos conceitos de alfabetizao e letramento no contexto educacional brasileiro;

    as contribuies dos estudos relacionados psicognese da lngua escrita e ao

    letramento, assim como as implicaes de alguns equvocos na interpretao destes; e a

    importncia do alfabetizar letrando. Em seguida, buscamos refletir sobre o surgimento

    da formao continuada de professores no contexto da educao brasileira, a associao

    que tem sido feita entre a formao de professores e a qualidade da educao, e o

    desenvolvimento profissional docente. Por ltimo, tentamos contextualizar o PNAIC na

  • 14

    poltica educacional brasileira, caracterizando-o a partir dos documentos orientadores do

    programa, o embasamento legal, os eixos de atuao e algumas pesquisas que o tiveram

    como objeto de investigao.

    O segundo captulo, Explicitando o caminho terico-metodolgico da pesquisa:

    aprofundando o tema, est subdividido da seguinte forma: O interesse pela pesquisa;

    Objetivos e instrumentos de coleta de dados; Conhecendo o campo; e Critrios para

    escolha dos sujeitos participantes da pesquisa. Nesse captulo, explicitamos: o interesse

    pela pesquisa, o objetivo geral e os especficos, os instrumentos de coleta de dados;

    caracterizamos e justificamos a escolha pelo municpio de Ouro Preto como campo para

    a realizao desta pesquisa e apresentamos os critrios para a escolha das professoras

    participantes.

    O terceiro captulo, A formao continuada no Pacto Nacional pela

    Alfabetizao na Idade Certa: a voz das professoras alfabetizadoras, est subdividido do

    seguinte modo: A formao continuada no Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade

    Certa; Participantes da pesquisa; Orientadoras de estudo do municpio de Ouro Preto-

    MG; Professoras Alfabetizadoras; A voz das professoras alfabetizadoras; A abordagem

    da categoria Sistema de Escrita Alfabtica - SEA e Conscincia Fonolgica; A

    abordagem da categoria Processos de Avaliao; e A abordagem da categoria

    Concepes de Alfabetizao e letramento. Nesse captulo, apresentamos um panorama

    da organizao da formao continuada no mbito do PNAIC, com a descrio da

    ementa, carga horria e estrutura da formao. Em seguida, apresentamos os sujeitos

    participantes da pesquisa e, posteriormente, elencamos trs categorias de anlise de

    dados: I) Sistema de Escrita Alfabtica e Conscincia Fonolgica, II) Processos de

    Avaliao e III) Concepes de Alfabetizao e Letramento, as duas primeiras

    elaboradas considerando o tema apontado como mais e menos relevante pelas docentes,

    e a ltima a partir do objetivo geral desta pesquisa.

    Por meio dos dados coletados foi possvel perceber que embora o PNAIC seja

    mais um programa voltado para a melhoria da qualidade da educao, trouxe

    contribuies significativas para as professoras participantes desta pesquisa. Entre elas:

    a compreenso terica de alguns conceitos que j desenvolviam na prtica, como a

    conscincia fonolgica; a incluso da leitura deleite na rotina da sala de aula; a

    utilizao dos materiais disponibilizados pelo programa, como as caixas de jogos e

    livros literrios; e a ludicidade.

  • 15

    A maior parte das professoras destacou a terceira unidade dos cadernos de

    formao, referente ao sistema de escrita alfabtica e conscincia fonolgica, como a

    mais relevante, e a referente a Processos de Avaliao como a menos relevante.

    Com relao ao letramento, embora seis das oito unidades do curso

    apresentassem um ou mais objetivos relacionados alfabetizao na perspectiva do

    letramento, verificamos por meio do depoimento das professoras algumas dificuldades

    em conceitu-lo ou mesmo de citar atividades relacionadas a ele.

    Assim, conclumos que, embora haja tentativas de alfabetizar no contexto de

    letramento, possvel perceber uma certa dificuldade, e a priorizao de uma das

    facetas do processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita: a alfabetizao.

  • 16

    CAPTULO 1

    CONCEPES DE ALFABETIZAO E LETRAMENTO, FORMAO DE

    PROFESSORES E PACTO NACIONAL PELA ALFABETIZAO NA IDADE

    CERTA: INICIANDO A CONVERSA

    O presente captulo est subdividido em trs sees: Alfabetizao e letramento:

    conceitos e historicizao; A formao continuada no Brasil e o compromisso com a

    qualidade da educao; e O Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa no

    contexto da poltica educacional brasileira. Essas sees originaram-se do objetivo geral

    deste trabalho analisar concepes acerca dos processos de alfabetizao e letramento

    de cinco professoras alfabetizadoras do municpio de Ouro Preto Minas Gerais, que

    participaram da formao continuada no mbito do Pacto Nacional pela Alfabetizao

    na Idade Certa PNAIC , em 2013.

    Assim, a primeira seo Alfabetizao e letramento: conceitos e historicizao

    pretende apresentar um breve histrico dos conceitos de alfabetizao e letramento no

    contexto educacional brasileiro; as contribuies dos estudos relacionados

    psicognese da lngua escrita e ao letramento, assim como as implicaes de alguns

    equvocos na interpretao destes; e a importncia do alfabetizar letrando.

    A segunda seo A formao continuada no Brasil e o compromisso com a

    qualidade da educao aborda o surgimento da formao continuada de professores no

    contexto da educao brasileira, a associao que tem sido feita entre a formao de

    professores e a qualidade da educao, e o desenvolvimento profissional docente.

    J a terceira e ltima seo O Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade

    Certa no contexto da poltica educacional brasileira contextualiza o PNAIC na poltica

    educacional brasileira, caracterizando-o a partir dos documentos orientadores do

    programa, o embasamento legal, os eixos de atuao e algumas pesquisas que o tiveram

    como objeto de pesquisa.

    Dessa forma, cada uma dessas sees contribui de modo especial para a reflexo

    do objetivo geral desta pesquisa, na medida em que possibilita a apreenso dos

    conceitos de alfabetizao e letramento, de formao continuada e a caracterizao do

    PNAIC.

  • 17

    1.1 Alfabetizao e letramento: conceitos e historicizao

    A histria da alfabetizao escolar no Brasil marcada por sucessivas mudanas

    conceituais e consequentemente metodolgicas, sendo o fracasso da escola em conduzir

    os educandos ao domnio da lngua escrita o grande propulsor de modificaes na

    alfabetizao (SOARES, 2004, 2016). At por volta dos anos 80, enfatizava-se a

    aprendizagem do sistema convencional da escrita, assim, as discusses giravam em

    torno dos mtodos de alfabetizao (SOARES, 2004).

    Criados desde a antiguidade, especialmente a partir do sculo XVIII, os mtodos

    tradicionais de alfabetizao dividem-se em dois grupos: sintticos e analticos. O grupo

    dos sintticos, que tem exercido maior influncia na alfabetizao brasileira, contempla

    trs tipos principais: os mtodos alfabticos, fnicos e silbicos. Esses mtodos partem

    de unidades lingusticas menores (letra, fonema e slaba) para se chegar um dia, de

    forma acumulativa, leitura de textos. J o grupo dos analticos contempla trs tipos: a

    palavrao, a sentenciao e o mtodo global. Contrariamente aos mtodos sintticos,

    estes, por sua vez, partem de unidades lingusticas maiores (palavra, sentena e texto)

    para se chegar s menores slabas e letras (MORAIS, 2012).

    Segundo Mortatti (2006), por quase um sculo (final do sculo XIX at as

    ltimas dcadas do sculo XX), as tentativas de encontrar respostas para a questo do

    fracasso escolar em alfabetizao, no Brasil, estiveram relacionadas s disputas entre os

    mtodos, que, em cada momento histrico, apresentavam-se como novos e

    revolucionrios em relao aos que eram utilizados at ento, que passavam a ser

    considerados antigos e tradicionais. Com relao ao Estado de So Paulo, por exemplo,

    Mortatti (2008) divide a histria do ensino inicial da leitura e escrita em quatro

    momentos: o primeiro, de 1876 a 1890, compreende as disputas entre o novo mtodo da

    palavrao e os antigos mtodos sintticos; o segundo, de 1890 a meados da dcada de

    1920, abarca as disputas entre o novo mtodo analtico e os antigos mtodos sintticos;

    o terceiro, de meados de 1920 a 1970, abrange as disputas entre os mtodos tradicionais,

    sintticos e analticos e os novos testes ABC, que verificavam a maturidade da criana

    para aprender a ler e escrever, e a introduo dos mtodos mistos; e, o quarto momento,

  • 18

    de 1980 a 19941, apresenta as disputas entre a nova perspectiva construtivista e os

    antigos testes do ABC e os mtodos tradicionais de alfabetizao.

    A multiplicao de mtodos de alfabetizao e a discrepncia entre eles podem

    ser explicadas pela necessidade de ensinar a ler e a escrever em funo da

    democratizao da educao e da ampliao do acesso ao impresso. Como essa

    necessidade antecedeu os conhecimentos sobre como se aprende a ler e escrever, no foi

    possvel estabelecer fundamentos e pressupostos claros de como esses processos

    ocorriam, o que fez com que os mtodos tivessem origem muito mais em materiais para

    se ensinar a ler e a escrever, como os abecedrios e silabrios, do que em fundamentos

    psicolgicos e lingusticos (SOARES, 2016).

    Para Morais (2012), quer sejam sintticos ou analticos, os mtodos tradicionais

    de alfabetizao decorrem da viso empirista/associacionista de aprendizagem. Nessa

    perspectiva, o processo de ensino e aprendizagem d-se de forma acumulativa, mediante

    informaes recebidas do exterior e memorizao. Alm disso, esses mtodos

    consideram a escrita um cdigo de transcrio da lngua oral e no aceitam o erro por

    parte do aprendiz.

    Dessa forma, no contexto das prticas tradicionais de alfabetizao, os mtodos

    controlavam a aprendizagem. Esse controle era feito por meio da apresentao das

    unidades a serem memorizadas, baseado em uma sequncia pr-determinada. Nesse

    contexto, o discente s podia ser apresentado a novas unidades quando tivesse

    memorizado as que haviam sido trabalhadas anteriormente. Avaliavam-se,

    primeiramente, as habilidades psicomotoras e depois se os alunos estavam aprendendo

    as unidades trabalhadas. O objetivo da avaliao era mensurar e classificar a fim de

    selecionar os alunos que ingressariam na srie seguinte. A avaliao ocorria por meio de

    atividades dadas para verificar se os alunos tinham aprendido (memorizado) o que havia

    sido ensinado, e o erro devia ser banido, pois era um indcio de que o aluno no havia

    aprendido (ALBUQUERQUE; MORAIS, 2006).

    Outro aspecto relacionado aos mtodos de alfabetizao importante de ser

    mencionado que, tanto para os mtodos analticos quanto para os sintticos, o domnio

    do sistema de escrita condio ou pr-requisito para que o educando desenvolva as

    habilidades de uso da leitura e da escrita (SOARES, 2016).

    1 Em artigo mais recente, Mortatti (2010) afirma que o quarto momento ainda est em curso,

    influenciado especialmente pelo conceito de letramento e pelas discusses mais recentes sobre o

    mtodo fnico. Assim, 1994 indica, portanto, apenas o fim de uma pesquisa, mas no do quarto

    momento histrico do ensino da leitura e de escrita no Estado de So Paulo.

  • 19

    Tendo ocupado o centro das discusses acerca da alfabetizao por quase um

    sculo, os mtodos tradicionais sofreram um desinvestimento por volta de 1980, uma

    vez que outros temas, como os processos de aprendizagem e as prticas escolares e

    extraescolares, ganharam destaque mediante a divulgao dos estudos sobre o

    letramento e a teoria da psicognese da lngua escrita no Brasil (MORAIS, 2006).

    A psicognese da lngua escrita consiste em uma pesquisa realizada por Emlia

    Ferreiro, Ana Teberosky e diversos colaboradores durante os anos de 1974, 1975 e

    1976. O trabalho, que inicialmente fez parte de uma tarefa universitria, uma vez que as

    pesquisadoras eram docentes da Universidade de Buenos Aires, comea pela descrio

    da situao educacional na Amrica Latina, passando pelos mtodos tradicionais de

    ensino de leitura, a pertinncia da teoria de Piaget para compreender os processos de

    aquisio da leitura e da escrita, os aspectos formais do grafismo e sua interpretao,

    leitura com e sem imagem, atos de leitura, evoluo da escrita e da leitura, dialeto e

    ideologia.

    Por meio do livro Psicognese da Lngua Escrita, Ferreiro e Teberosky (1986)

    buscaram demonstrar que, por trs dos mtodos e manuais de alfabetizao, existe um

    sujeito que adquire conhecimentos de maneira ativa, criando hipteses para tal, que,

    muitas vezes, so ignoradas pela escola ou consideradas como deficincias e/ou

    dificuldade de aprendizagem. Para as autoras, no entanto, essas deficincias seriam,

    na verdade, erros construtivos que permitiriam saber em que momento do

    desenvolvimento os educandos se encontram para possibilitar sua evoluo, bem como

    os acertos posteriores. Nessa perspectiva, o que se busca avaliar o progressivo

    domnio do discente no que se refere leitura e produo de textos. O objetivo da

    avaliao articular o desenvolvimento do aluno com o planejamento do ensino.

    Avalia-se, desse modo, por meio da observao e do registro, assim como da escrita

    espontnea.

    De acordo com Albuquerque e Morais (2006), as prticas de avaliao sofreram

    diversas modificaes ao longo do sculo XX, indo de formas que priorizavam a

    mensurao e a classificao a formas que priorizavam a construo de conhecimentos

    dos aluno. Conforme Ferreira e Albuquerque (2006), os processos avaliativos esto

    intimamente articulados com o papel da escola e as concepes acerca do ensino.

    Merece destaque que, como veremos no terceiro captulo desta dissertao, o

    tema Processos de Avaliao, oitava unidade dos cadernos de estudos, foi indicado por

    quatro das cinco professoras como o tema menos relevante da formao. Sem excluir a

  • 20

    sua importncia, as docentes o indicam com algumas justificativas que nos do indcios

    de uma concepo de avaliao mais tradicional, acumulativa, dada ao final do

    processo, muitas vezes como obrigao.

    Os estudos de Ferreiro e Teberosky (1986), ao demonstrarem as etapas

    sucessivas pelas quais o educando constri a escrita, colaboraram para a compreenso

    de que esta no constitui um cdigo, mas sim um sistema notacional, haja vista que as

    propriedades do sistema de escrita no esto prontas na mente do aprendiz. Assim, a

    pronncia de slabas ou fonemas isolados no faz sentido na aprendizagem inicial da

    leitura e da escrita, uma vez que a internalizao das regras e convenes do sistema de

    escrita alfabtica no se do da noite para o dia (MORAIS, 2012).

    Para Soares (2004), os estudos acerca da psicognese da lngua escrita alteraram

    essencialmente a concepo do processo de ensino e aprendizagem ao trazer uma

    mudana de pressupostos e objetivos na rea da alfabetizao e ressignificar a distino

    entre a aprendizagem da escrita e as prticas de leitura e de escrita. Nesse contexto, a

    concepo bsica dos mtodos tradicionais (sujeito passivo, dependente de estmulos

    externos, pr-requisitos para a aprendizagem prontido , e o erro) alterada para uma

    viso interacionista do processo de ensino e aprendizagem que percebe o educando

    como sujeito ativo, capaz de interagir com a lngua e construir seu conhecimento

    progressivamente, na qual as dificuldades ou erros passam a ser vistos como erros

    construtivos (SOARES, 2011).

    Com relao aos estudos referentes ao letramento, Soares (2004) aponta que este

    surgiu ao mesmo tempo em sociedades distanciadas geogrfica, social, econmica e

    culturalmente como Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Frana, a partir da

    necessidade de reconhecer e nomear prticas de leitura e de escrita mais complexas que

    aquelas decorrentes da aprendizagem do sistema de escrita. Contudo, os contextos e as

    causas em que o letramento emergiu em cada um destes pases se diferem. Se em alguns

    ele surge ao perceberem que mesmo estando alfabetizada, a populao no dominava as

    habilidades de leitura e escrita necessrias para a sua insero nas prticas sociais e

    profissionais de leitura e de escrita, no Brasil, ele aparece associado aprendizagem

    inicial de leitura e escrita, o que faz com que este conceito se mescle, sobreponha e,

    muitas vezes, confunda-se com o conceito de alfabetizao.

    Na obra Letramento: um tema em trs gneros, Soares (2012) afirma que s

    nos demos conta da necessidade de letramento quando o acesso escolaridade se

  • 21

    ampliou e tivemos mais pessoas sabendo ler e escrever, passando a aspirar um pouco

    mais do que simplesmente aprender a ler e escrever (SOARES, 2012, p. 58).

    Segundo Kleiman (1995), pelo que se sabe, o termo letramento2 foi cunhado por

    Mary Kato em 1986 e comeou a ser usado nos meios acadmicos no intuito de separar

    os estudos sobre a alfabetizao dos estudos sobre o impacto social da escrita. Soares

    (2012) afirma que criamos a palavra letramento ao traduzirmos o ingls literacy, uma

    vez que, embora j houvesse uma palavra dicionarizada, alfabetismo, esta no era

    palavra corrente no Brasil.

    Assim, o letramento teria se associado alfabetizao para designar uma

    aprendizagem da lngua escrita que considera no apenas a aprendizagem da tecnologia

    da escrita, mas tambm a insero do educando em prticas sociais da lngua escrita.

    Surge ento o termo letramento, que se associa ao termo alfabetizao

    para designar uma aprendizagem inicial da lngua escrita entendida

    no apenas como a aprendizagem da tecnologia da escrita do

    sistema alfabtico e suas convenes mas tambm como, de forma

    abrangente, a introduo da criana s prticas sociais da lngua

    escrita (SOARES, 2016, p. 27).

    Soares (2012), contudo, assinala algumas dificuldades em estabelecer uma

    definio consensual para o conceito de letramento. Para ela, como este envolve uma

    multiplicidade de habilidades de leitura e de escrita, que devem ser aplicadas a uma

    diversidade de materiais de leitura e escrita e, como compreende diferentes prticas

    dependentes de determinada sociedade, no possvel uma definio consensual,

    havendo diferentes tipos e nveis de letramento, dependendo das necessidades, das

    demandas do indivduo e de seu meio, do contexto social e cultural (SOARES, 2012,

    p. 49).

    Nessa mesma perspectiva, Street (2014) reconhece que h uma multiplicidade de

    prticas letradas, o que tem levado alguns profissionais a falar em letramentos em vez

    de um nico letramento. Na obra Letramentos sociais, j na introduo, ao descrever os

    Novos estudos do Letramento, Street (2014) contrape-se nfase na viso do

    letramento como uma habilidade neutra, conceituando-o como uma prtica ideolgica,

    envolvida em relaes de poder, com foco na natureza social do letramento:

    2 Soares (2016) esclarece que talvez no houvesse necessidade da palavra letramento se fosse

    possvel ampliar o conceito de alfabetizao, como prope o construtivismo. No entanto, uma

    vez que, nos dicionrios, no senso comum e na tradio da lngua, esta palavra compreendida

    como aprendizagem do sistema alfabtico-ortogrfico e das convenes para seu uso

    (SOARES, 2016, p. 27), seria difcil ampliar o significado da palavra alfabetizao, de modo

    que se significasse mais do que o que comumente vinha denominando.

  • 22

    Este livro se intitula Letramentos sociais, a fim de enfatizar o foco

    dessas novas abordagens, primeiro, na natureza social do letramento e,

    em seguida, no carter mltiplo das prticas letradas. Com isso, ele se

    contrape nfase dominante num Letramento nico e neutro, com L

    maisculo e no singular (STREET, 2014, p. 18).

    O modelo a que Street (2014) se contrape o autnomo. Essa abordagem de

    letramento correlaciona a aquisio da escrita com o desenvolvimento cognitivo,

    dicotomiza a oralidade e a escrita e atribui poderes aos povos que a possuem

    (KLEIMAN, 1995), como se o letramento estivesse relacionado a algumas

    consequncias tais como: vidas mais plenas, maiores oportunidades de emprego e

    mobilidade social. J o modelo proposto pelo autor, o modelo ideolgico, concentra-se

    em prticas sociais especficas de leitura e de escrita, ressaltando a importncia do

    processo de socializao na construo do significado de letramento, bem como das

    instituies em que este se d, na interao da oralidade e da escrita (ao invs de propor

    uma diviso) e preocupa-se com a importncia do letramento para o grupo social em vez

    de focar nas consequncias (STREET, 2014).

    De acordo com Rojo (2010), o conceito de letramento passa para o plural

    letramentos devido variedade de culturas, contextos, comunidades e

    consequentemente de prticas e eventos de letramento que neles circundam.

    Em setembro de 1994, reuniu-se em Nova Londres um grupo formado por

    professores oriundos de diversos pases, como Estados Unidos e Austrlia, que atuavam

    em diversas reas, como a dos letramentos multimodais e o multiculturalismo, para

    pensar o que do letramento, assim como como, deveria ser ensinado em um mundo

    que cada vez mais uma aldeia global e onde a diversidade local cada vez mais

    importante.

    De acordo com o Grupo de Nova Londres (2010), como o grupo ficou

    conhecido, houve mudanas no objeto a ser ensinado em funo das mudanas culturais

    e dos meios de comunicao. Essas mudanas estariam relacionadas s alteraes no

    mundo do trabalho, que, no ps-fordismo e no capitalismo rpido, modificaram as

    relaes de comando e controle substituindo-as por relaes de orientao e formao,

    exigindo trabalhadores polivalentes, flexveis e integrados; mudanas na vida pblica,

    com a ressignificao das polticas de cultura e identidade em virtude da diminuio das

    responsabilidades e papis do Estado diante do liberalismo, do racionalismo econmico

    e da privatizao; e, mudanas nos modos de vida, tendo em vista que, com a mdia, a

    vida privada tem se tornado cada vez mais pblica invaso da privacidade.

  • 23

    Para Rojo (2010), pensar nessas questes, significava admitir o quanto o mundo

    havia mudado nos ltimos anos, especialmente com as novas tecnologias da informao

    e comunicao, que nos mantm conectados global e permanentemente por meio dos

    computadores, dos celulares, da televiso, entre outros. Pensando, portanto, nessas

    mudanas, o Grupo de Nova Londres (2000) apresentou o conceito de Multiletramentos,

    que designa tanto a multiplicidade de linguagens como a de culturas, chamando a

    ateno tambm para a multimodalidade3 dos textos contemporneos.

    As novas tecnologias misturaram rapidamente a linguagem escrita com outras

    formas de linguagem, como as imagens estticas (fotografias, grficos, etc.) ou em

    movimento (vdeos), sons (msica, fala etc), entre outras, demandando do leitor novas

    competncias para ler e produzir textos (ROJO, 2010).

    Pelo que foi exposto at aqui, foi possvel perceber as diversas contribuies que

    tanto os estudos da psicognese da lngua escrita quanto os referentes ao letramento

    trouxeram, a partir da dcada de 1980, para a reflexo e compreenso do processo de

    ensino e aprendizagem da leitura e da escrita no Brasil. Contudo, tanto os primeiros

    quanto os segundos foram, em determinados contextos, mal interpretados, o que acabou

    fazendo com que a alfabetizao perdesse a sua especificidade.

    Soares (2004) afirma que, sob a denominao de construtivismo, a teoria

    psicogentica, ao explicar como a criana constri o conhecimento acerca da lngua

    escrita e ao demonstrar a importncia da interao com materiais e prticas de leitura e

    de escrita para o processo de conceitualizao da lngua escrita, fez com que boa parte

    das pessoas focasse neste ltimo, deixando de lado o ensino sistemtico das relaes

    entre a fala e a escrita. Alm disso, a autora atenta para o fato de que a teoria da

    psicognese da lngua escrita essencialmente psicolgica e no pedaggica e que, por

    isso, no props nenhuma metodologia de ensino.

    Morais (2012) aponta que houve problemas graves e variados com relao

    apropriao da psicognese da lngua escrita pelos que fazem a alfabetizao em nosso

    pas. Assim como Soares (2004), esse autor aponta que uma das questes se deve ao

    fato de termos confundido uma teoria psicolgica/psicolingustica sobre o processo

    individual do aluno na aprendizagem da escrita com uma metodologia de ensino,

    deixando de lado o como alfabetizar. Dessa forma, em decorrncia da m

    3 Multimodalidade o nome que se d aos textos compostos por mltiplas linguagens modos

    ou semioses ou seja, textos que apresentam outras linguagens alm da escrita, como imagens,

    estticas ou em movimento, cores, udio, diagramao, entre outros (ROJO, 2012).

  • 24

    interpretao da teoria, houve: o no ensino da ortografia, o descaso com a caligrafia e o

    abandono do ensino sistemtico das correspondncias grafema/fonema.

    Por volta da dcada de 1980 e 1990, em virtude da confuso entre a teoria

    psicolingustica e a didtica da lngua, alegando que os educandos aprenderiam a norma

    ortogrfica por si s, por meio da leitura e da produo de texto, houve, em muitos

    lugares do Brasil, uma certa negligncia com o ensino da norma ortogrfica, que passou

    a ser considerado como tradicional e repressor (MORAIS, 2012). Com a psicognese da

    lngua escrita, muitos passaram a ver a caligrafia com um pouco de descaso. Contudo,

    importante destacar que, aps alcanar a hiptese alfabtica, aprender a escrever com

    letra cursiva e legvel permite maior velocidade na escrita, assim como garante que o

    leitor leia a mensagem sem dificuldade (MORAIS, 2012).

    Boa parte dos livros de alfabetizao que substituram as cartilhas contava com

    um repertrio textual muito rico, mas trazia pouqussimas atividades de correspondncia

    grafema-fonema. No entanto, para ler e produzir textos com autonomia, necessrio

    que o educando possua um certo domnio das correspondncias letra-som, adquirido por

    meio de um ensino sistemtico, pelo menos nos dois primeiros anos de escolarizao

    (MORAIS, 2012).

    Os nveis de conceitualizao da escrita descritos por Ferreiro e Teberosky

    (1986) serviram, em alguns casos, para que os professores dividissem as salas,

    utilizassem-nos como nico critrio de avaliao dos alunos e no corrigissem as

    produes textuais destes, o que produziu, ao longo dos anos, um grande nmero de

    pessoas com srias dificuldades na escrita (LEITE; COLELLO, 2010). Desse modo,

    como a psicognese da lngua escrita apresentou uma teoria que demonstrava como o

    educando constri o conhecimento, mas no uma metodologia de ensino, houve uma

    srie de dificuldades em decorrncia da tentativa de transpor a teoria para a sala de aula

    sem uma reflexo mais didtica, o que permitiu diversas interpretaes equivocadas,

    haja vista a importncia das intervenes do professor para a aquisio de

    conhecimentos por parte do aluno.

    Com relao ao exposto no pargrafo anterior, Mortatti (2006) afirma ter-se

    instaurado um processo de desmetodizao da alfabetizao, uma vez que da nfase

    no sujeito que aprende e como aprende decorreu um silenciamento das questes

    didticas, criando-se a iluso de que no necessrio um mtodo para que a

    aprendizagem ocorra.

  • 25

    Alm desse processo de desmetodizao, h um outro processo denominado por

    Soares (2004) de desinveno da alfabetizao, um pouco em decorrncia deste

    primeiro. A autora afirma que, a despeito da excessiva nfase na especificidade da

    alfabetizao relaes entre o sistema fonolgico e o sistema grfico , que gerou

    ndices elevados de reprovao e repetncia durante anos, percebe-se uma perda desta

    especificidade a partir de 1980, com a nova concepo acerca do processo de ensino e

    aprendizagem da leitura e da escrita. Para a autora, isso ocorreu devido a dois fatores: o

    obscurecimento da faceta lingustica fontica e fonolgica, em funo da faceta

    psicolgica, esquecendo-se de que h relaes convencionais e arbitrrias entre fonemas

    e grafemas; e o conceito de mtodo, que passou a ser identificado com os mtodos

    tradicionais de alfabetizao, que, uma vez sendo incompatveis com a nova teoria,

    induziu a crena de que para alfabetizar no seria necessrio um mtodo.

    Esse aspecto interessante, pois as professoras participantes desta pesquisa

    atribuem uma importncia significativa terceira unidade dos cadernos de formao do

    PNAIC, que abordou o Sistema de Escrita Alfabtica e a Conscincia Fonolgica, esta

    ltima considerada por boa parte delas como um conceito at ento desconhecido,

    embora tenham afirmado que j trabalhavam com atividades relacionadas conscincia

    fonolgica no dia a dia, antes da participao no PNAIC. Uma das nossas hipteses para

    a importncia atribuda pelas docentes a este caderno est relacionada ao fato de ele ter

    abordado uma faceta obscurecida do processo de ensino da leitura e da escrita, de modo

    que teria auxiliado as professoras a refletirem sobre o trabalho que desempenham.

    Tal como a psicognese da lngua escrita, o letramento tambm contribuiu para o

    processo de desinveno da alfabetizao, uma vez que inferncias equivocadas

    levaram a crer que o contato intenso do educando com material escrito, que circula nas

    prticas sociais, seria capaz de alfabetiz-lo por si s. Alm disso, o processo de

    aquisio da escrita alfabtica e ortogrfica foi obscurecido pelo letramento que, muitas

    vezes, sobressaiu em relao ao primeiro (SOARES, 2004). Para Mortatti (2006), as

    discusses em torno do letramento o compreendem, algumas vezes, como

    complementar alfabetizao, outras como diferente desta e mais desejvel, e outras

    como excludentes entre si.

    De acordo com Morais (2006), as discusses referentes ao letramento

    conduziram a um nmero maior de pesquisas voltadas para as prticas de leitura e de

    produo de textos, tanto escolares como extraescolares, o que acarretou uma

    diminuio naquelas referentes escrita alfabtica.

  • 26

    Leite e Colello (2010) afirmam que os estudos referentes ao letramento

    impactaram os professores, que, entusiasmados com a possibilidade de colocar os

    educandos em contato com mltiplas leituras e estimular a prtica social da leitura e da

    escrita, relegaram o ensino sistemtico das especificidades da escrita, como a

    conscincia fonolgica e a assimilao de regras e arbitrariedades do sistema, a segundo

    plano. Segundo os autores, como um pndulo que vai de um extremo ao outro, corre-se

    o risco de privilegiar o uso social da escrita em detrimento da aquisio do sistema de

    escrita alfabtica, como se o primeiro, por si s, garantisse a aquisio do segundo.

    A despeito desta desinveno da alfabetizao, Soares (2004) tem proposto a

    reinveno da alfabetizao, que seria uma recuperao de uma faceta essencial do

    processo de ensino e aprendizagem da lngua escrita faceta lingustica (habilidades de

    codificao e decodificao da lngua, conscincia fonolgica e fonmica, identificao

    e reconhecimento das relaes fonema-grafema). Contudo, embora reconhea a

    importncia de especificar o que prprio da alfabetizao e o que prprio do

    letramento, a autora atenta para a necessidade de conciliao entre estes dois processos,

    discorrendo sobre a importncia de se alfabetizar num contexto de letramento, envolver

    os alunos em eventos e prticas variadas de leitura e de escrita, bem como desenvolver

    habilidades de uso da leitura e da escrita nas prticas sociais, reconhecendo que, mesmo

    se tratando de processos distintos, ainda que indissociveis, demandam o uso de

    metodologias diferenciadas.

    Um dos caminhos propostos para a superao da dicotomia dos termos

    alfabetizao e letramento seria o que alguns autores, como Soares (2004, p. 5), tm

    chamado de alfabetizar letrando ou letrar alfabetizando:

    O emprego dos verbos integrar e articular retoma a afirmao anterior

    de que os dois processos alfabetizao e letramento so, no estado

    atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da lngua escrita,

    indissociveis, simultneos e interdependentes: a criana alfabetiza-se,

    constri seu conhecimento do sistema alfabtico e ortogrfico da

    lngua escrita, em situaes de letramento, isto , no contexto de e por

    meio de interao com material escrito real, e no artificialmente

    construdo, e de sua participao em prticas sociais de leitura e de

    escrita; por outro lado, a criana desenvolve habilidades e

    comportamentos de uso competente da lngua escrita nas prticas

    sociais que a envolvem no contexto do, por meio do e em dependncia

    do processo de aquisio do sistema alfabtico e ortogrfico da

    escrita. Esse alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela

    integrao e pela articulao das vrias facetas do processo de

    aprendizagem inicial da lngua escrita, , sem dvida, o caminho para

    a superao dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da

    escolarizao.

  • 27

    Assim, letrar alfabetizando ou alfabetizar letrando seria uma possibilidade de

    garantir aos alunos a aprendizagem do sistema alfabtico e ortogrfico da lngua escrita

    ao mesmo tempo em que ocorreria a insero destes nas prticas sociais da cultura

    escrita.

    Rojo (2010) afirma que, nos primeiros anos de alfabetizao, os alunos esto se

    inserindo em prticas e eventos de multiletramentos tanto na escola como em sua

    comunidade. Dessa forma, h uma multiplicidade de linguagens e textos que os

    educandos desconhecem e que o professor pode selecionar para promover eventos

    escolares de (multi) letramentos prticas de leitura, anlise e produo de texto.

    Contudo, a autora chama a ateno para o fato de que, para alfabetizar letrando ou letrar

    alfabetizando, necessrio, primeiramente, fazer uma reflexo crtica sobre as nossas

    prticas, assim como sobre as necessidades e os interesses dos alunos, uma vez que h

    certa dificuldade em letrar enquanto se alfabetiza e em se alfabetizar em eventos de

    letramento devido a apreciaes que temos em relao aos alunos, a sua cultura, a sua

    capacidade, ao objeto de ensino e ao mtodo mais adequado.

    Considerando o exposto, importante destacar ainda que, conforme explicitado

    no incio desta seo, o grande propulsor de mudanas na alfabetizao foi o persistente

    fracasso da escola em ensinar os educandos a ler e a escrever. Assim, no incio do

    sculo XXI, diante da permanncia do fracasso em alfabetizao, ressurgiu a discusso

    em torno dos mtodos de alfabetizao, desta vez no s sobre as divergncias destes,

    mas, especialmente, sobre a necessidade ou no de alfabetizar com mtodo (SOARES,

    2016).

    A esse respeito, Soares (2016), em seu livro mais recente, afirma que h

    basicamente trs facetas principais de insero na escrita que disputam a primazia nos

    mtodos de alfabetizao. Essas facetas seriam a faceta lingustica, a faceta interativa e

    a faceta sociocultural, que consistem, respectivamente, na representao visual da

    cadeia sonora na fala, na lngua escrita como instrumento de interao entre as pessoas e

    nos usos conferidos escrita em contextos socioculturais. primeira faceta, a faceta

    lingustica, Soares designa de alfabetizao e s outras duas facetas, a interativa e

    sociocultural, de letramento.

    De acordo com esta autora, de cada uma destas facetas decorrem objetos de

    conhecimentos, competncias e domnios lingusticos e cognitivos diferentes, o que

    pode justificar as divergncias em torno dos mtodos de alfabetizao, tendo em vista

  • 28

    que, cada um deles elege uma determinada faceta, com determinadas funes e

    pressupostos tericos em detrimento das demais.

    ... se se pe o foco na faceta lingustica, o objeto de conhecimento a

    apropriao do sistema alfabtico-ortogrfico e das convenes da

    escrita, objeto que demanda processos cognitivos e lingusticos

    especficos e, portanto, desenvolvimento de estratgias especficas de

    aprendizagem e, consequentemente, de ensino neste livro, a

    alfabetizao. Se se pe o foco na faceta interativa, o objeto so as

    habilidades de compreenso e produo de textos, objeto que requer

    outros e diferentes processos cognitivos e lingusticos e outras e

    diferentes estratgias de aprendizagem e de ensino. Finalmente, se se

    pe o foco na faceta sociocultural, o objeto so os eventos sociais e

    culturais que envolvem a escrita, objeto que implica conhecimentos,

    habilidades e atitudes especficos que promovam insero adequada

    nesses eventos, isto , em diferentes situaes e contextos de uso da

    escrita (SOARES, 2016, p. 29).

    Destacando que a aprendizagem da faceta lingustica necessria, mas no

    suficiente, Soares (2016) defende o ensino sistemtico, explcito e direto desta, assim

    como o das especificidades das demais facetas, e refora a importncia, j apontada

    anteriormente, do desenvolvimento simultneo das facetas do desenvolvimento da

    lngua escrita, o alfabetizar letrando:

    A integrao das facetas permite que, ao mesmo tempo que vai

    aprendendo a codificar e decodificar, a criana v tambm aprendendo

    a compreender e interpretar textos, de incio em escrita inventada, aos

    poucos em frases, em pequenos textos de diferentes gneros, ditados

    para o/a alfabetizador(a), que atua como escriba, ou escritos por ela

    mesma. Em outras palavras, a criana se insere no mundo da escrita

    tal como ele : aprende a ler palavras com base em textos reais que

    lhe foram lidos, que compreenderam e interpretaram palavras

    destacadas desses textos, portanto, contextualizadas, no palavras

    artificialmente agrupadas em pseudotextos, no mais que pretextos

    para servir aprendizagem de relaes grafema-fonema; e aprende a

    escrever palavras produzindo palavras e textos reais no palavras

    isoladas, descontextualizadas, ou frases artificiais apenas para prtica

    das relaes fonema-grafema; e ao mesmo tempo vai ainda

    aprendendo a identificar os usos sociais e culturais da leitura e da

    escrita, vivenciando diferentes eventos de letramento e conhecendo

    vrios tipos e gneros textuais, vrios suportes de escrita: alfabetizar

    letrando (SOARES, 2016, p. 350).

    Por fim, Soares (2016, p. 352) aponta a necessidade de alfabetizar com mtodo,

    que seria alfabetizar conhecendo e orientando com segurana o processo de

    alfabetizao, o que se diferencia fundamentalmente de alfabetizar trilhando caminhos

    predeterminados por convencionais mtodos de alfabetizao. Nessa mesma

  • 29

    perspectiva, Morais (2012) defende que necessrio auxiliar as crianas a descobrirem,

    desde cedo, as propriedades ou regras do sistema de escrita alfabtico e que a

    conscincia fonolgica desempenha um papel importante nessa empreitada.

    Conforme veremos no terceiro captulo, o tema Sistema de Escrita Alfabtica e

    Conscincia Fonolgica foi indicado pelas professoras como um dos temas mais

    importantes trabalhados na formao no mbito do PNAIC. Assim, aprofundaremos

    algumas questes relacionadas a esse tema no terceiro captulo desta dissertao.

    Contudo, necessrio ressaltar a importncia da formao de professores para a

    aprendizagem da lngua escrita, o alfabetizar letrando, considerando que as professoras

    sabero como orientar o processo de alfabetizao do educando se tiverem

    conhecimento, por um lado, do objeto a ser aprendido, o sistema de representao

    alfabtico e a norma ortogrfica, por outro, dos processos cognitivos e lingusticos

    envolvidos na aprendizagem desse objeto (SOARES, 2016, p.351)

    Nesse sentido, a prxima seo se prope a discutir a questo da formao

    continuada no contexto brasileiro e sua relao com o compromisso com a qualidade da

    educao.

    1.2 A formao continuada no Brasil e o compromisso com a qualidade da

    educao

    Por meio do exposto na seo anterior, possvel perceber as diversas mudanas

    ocorridas acerca do processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita nos

    ltimos anos. Ao encontro dessas mudanas, tem havido uma proliferao de cursos

    voltados para a formao continuada de professores, em especial, os alfabetizadores.

    Com produo terica crescente e um investimento cada vez maior em

    alternativas de formao, a formao continuada tem atrado a ateno de acadmicos,

    pesquisadores, polticos da rea da educao, educadores, entre outros (GATTI, 2009).

    S na rea da alfabetizao, podemos citar como exemplo trs grandes programas

    desenvolvidos em mbito nacional nos ltimos anos: Profa4, Pr-Letramento

    5 e Pacto

    4De acordo com Cardoso e Cardoso (2016), o Profa foi um programa implementado em 2001,

    baseado na perspectiva construtivista de Emlia Ferreiro e Telma Weiz, com o objetivo de

    ampliar o conhecimento terico sobre alfabetizao por meio da reflexo sobre a prtica. 5O Pr-Letramento foi um programa de formao continuada de professores dos Anos Iniciais

    do Ensino Fundamental, que teve como objetivo a melhoria da qualidade da aprendizagem em

    leitura e escrita e matemtica. Os cursos oferecidos pelo programa de 2006 a 2013 aconteceram

    na modalidade semipresencial, com durao de 120 horas, com encontros presenciais

  • 30

    Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa - PNAIC6. Mas afinal, o que vem sendo

    denominado de formao continuada? Quando isso comea a ganhar ateno no Brasil?

    Qual a terminologia que tem sido difundida como a mais adequada pelos pesquisadores

    do campo da formao de professores?

    De acordo com Gatti (2008), a questo da formao continuada difundiu-se nos

    ltimos anos do sculo XX, como requisito fundamental para o trabalho, em funo das

    mudanas ocorridas neste, nos conhecimentos e nas tecnologias, nos mais diversos

    setores profissionais e universitrios, e, em especial, nos pases mais desenvolvidos.

    Desse modo, a formao continuada teria surgido como uma maneira de atualizar e/ou

    aprofundar os conhecimentos.

    No Brasil, de acordo com Pereira (2010), a partir da segunda metade dos anos

    80, que comea a ganhar fora a ideia de que a formao de professores no termina

    com a concluso do curso mdio ou superior. Com isso, a formao de professores teria

    sido dividida, acriticamente, em formao inicial ou pr-servio, e formao

    continuada ou em servio. O referido autor esclarece que essas terminologias teriam

    sido adotadas a partir da traduo das expresses em ingls preservice teacher

    education e in-service teacher education.

    Dentre as atividades que vm sendo denominadas como formao continuada

    possvel encontrar desde alternativas mais institucionalizadas, com certificao e carga

    horria prevista, at atividades menos formais, ocorridas no ambiente da escola, como

    os estudos em grupo, conversas, trocas entre pares, grupo de reflexo, entre outras

    (GATTI, 2009). Abaixo, podemos observar algumas atividades que vm sendo

    denominadas de formao continuada:

    (...) ora se restringe o significado da expresso aos limites de cursos

    estruturados e formalizados oferecidos aps a graduao, ou aps

    ingresso no exerccio do magistrio, ora ele tomado de modo amplo e

    genrico, como compreendendo qualquer tipo de atividade que venha a

    contribuir para o desempenho profissional horas de trabalho coletivo

    na escola, reunies pedaggicas, trocas cotidianas com os pares,

    participao na gesto escolar, congressos, seminrios, cursos de

    diversas naturezas e formatos, oferecidos pelas Secretarias de Educao

    ou outras instituies para pessoal em exerccio nos sistemas de ensino,

    relaes profissionais virtuais, processos diversos a distncia (vdeo ou

    teleconferncias, cursos via internet etc.), grupos de sensibilizao

    profissional, enfim, tudo que possa oferecer ocasio de informao,

    conduzidos por tutores e atividades individuais. Mais informaes sobre o programa podem ser

    encontradas na pgina: http://portal.mec.gov.br/pro-letramento. 6Na prxima seo, feito um detalhamento deste programa. No entanto, maiores informaes

    acerca dele podem ser acessadas na pgina: http://pacto.mec.gov.br/index.php.

    http://portal.mec.gov.br/pro-letramentohttp://pacto.mec.gov.br/index.php
  • 31

    reflexo, discusso e trocas que favoream o aprimoramento

    profissional, em qualquer de seus ngulos, em qualquer situao

    (GATTI, 2008, p. 1).

    Contudo, se em alguns pases a formao continuada surgiu como possibilidade

    de aprofundamento ou avano na formao profissional, no Brasil, em virtude da

    precariedade dos cursos de formao de professores em nvel de graduao, a formao

    continuada foi associada ao suprimento de uma m formao inicial (GATTI, 2008, p.

    58). No terceiro captulo desta dissertao, especialmente por meio das falas da

    Orientadora de estudos A e da Profa. Ana, possvel perceber uma concepo de

    formao continuada associada ao suprimento de uma m formao inicial.

    De acordo com Souza (2006), para sustentar a importncia da formao

    continuada de professores, tem sido utilizado o argumento da incompetncia, segundo o

    qual a causa para a baixa qualidade da educao seria a incompetncia dos professores,

    em funo de sua m formao inicial, que dificultaria o trabalho com a diversidade de

    alunos presentes nas escolas, de modo especial, os das camadas populares.

    Ao encontro do argumento da incompetncia, recorrente a tendncia de

    culpabilizar os professores pelas mazelas da educao, como se estes fossem os nicos

    responsveis pelos problemas educacionais. Nessa perspectiva, melhorar a qualidade da

    educao melhorar, exclusivamente, a formao do professor, desconsiderando outros

    aspectos como as condies de trabalho, a jornada de trabalho, os salrios e a

    quantidade de alunos por turma (DINIZ-PEREIRA, p. 2007).

    Segundo Moreira e Silva (2016), as atuais polticas de formao de professores

    esto em consonncia com as recomendaes do Banco Mundial7, de modo que

    atribuda ao professor a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso escolar dos alunos

    cujo desempenho aferido por meio de avaliaes externas.

    Salomo (2014) aponta que em virtude das reestruturaes sociais e das

    demandas do mundo do trabalho na sociedade capitalista, na perspectiva neoliberal, as

    polticas educacionais passaram a enfatizar o atendimento a todos os cidados. Dessa

    7 De acordo com Moreira e Silva (2016), o Banco Mundial foi criado em 1944, vinculado ao

    Fundo Monetrio Internacional FMI , com o objetivo de solucionar os problemas oriundos

    do ps-guerra Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Com o passar dos anos, o Banco

    Mundial passou a financiar projetos em pases em desenvolvimento. Contudo, com a crise

    mundial dos anos 80 e o endividamento dos pases que recebiam emprstimos dele, o Banco

    reestruturou seu papel, impondo medidas de estabilizao da economia, e interferindo

    diretamente em vrios setores, como a educao, ditando as metas que devem ser atingidas.

  • 32

    forma, com as influncias do processo de globalizao, o sistema educacional passou a

    ter a responsabilidade com a formao profissional.

    Nesse contexto, segundo o autor supracitado, lideranas mundiais, como o

    Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional, passaram a fazer parte de uma

    ordem mundial de desenvolvimento social e educacional, cujo olhar est voltado para a

    melhoria da qualidade da Educao Bsica pblica e a expanso de cursos de formao

    continuada de professores. Um exemplo da influncia dos organismos internacionais,

    nos rumos da poltica educacional brasileira, o compromisso assumido no Frum

    Mundial de Educao que aconteceu em Dakar, Senegal, no ano 2000.

    O Frum Mundial de Dakar reuniu 164 pases que se comprometeram em tentar

    atingir seis metas de Educao para Todos at o ano 2015. As metas consistiam em:

    melhorar e expandir o cuidado e a educao da criana pequena; assegurar que todas as

    crianas tivessem acesso a uma educao primria, obrigatria, gratuita e de qualidade

    at o ano de 2015; assegurar o atendimento das necessidades de aprendizagem de todos

    os jovens e adultos; alcanar melhoria de 50% nos nveis de alfabetizao dos adultos,

    garantindo-lhes acesso Educao Bsica; eliminar disparidades de gnero, alcanando

    a igualdade de gnero at 2015, garantindo o acesso educao de boa qualidade s

    meninas; melhorar todos os aspectos da educao, assegurando excelncia a todos e

    garantindo resultados reconhecidos e mensurveis, de forma especial na alfabetizao,

    na aquisio de conhecimentos matemticos e habilidades essenciais vida.

    O sexto objetivo do compromisso assumido em Dakar, referente melhoria de

    todos os aspectos da qualidade da educao, apontado pelo Relatrio Educao para

    Todos no Brasil 20002015, que faz um balano das polticas implementadas durante

    os quinze anos, como o mais desafiador dos objetivos assumidos. O referido documento

    destaca ainda a importncia do professor para atingir esse objetivo, ressaltando que

    estudos sobre sistemas educacionais bem-sucedidos so unnimes em apontar a

    importncia destes para a melhoria da qualidade da educao.

    As metas acordadas, no Frum Mundial de Dakar, orientaram a formulao de

    diversas aes implementadas na poltica educacional brasileira em busca da melhoria

    da qualidade da educao. Entre as aes, podemos citar a criao da Rede Nacional de

    Formao Continuada dos Profissionais do Magistrio da Educao Bsica Pblica e a

    Poltica Nacional de Formao de Profissionais do Magistrio da Educao Bsica.

    A Rede Nacional de Formao Continuada de Professores de Educao Bsica,

    uma das iniciativas voltadas para a formao continuada de docentes, foi instituda em

  • 33

    2004 com o objetivo principal de melhorar a qualidade do ensino e a aprendizagem dos

    discentes, e de articular pesquisa e produo acadmica formao de professores. A

    rede composta pelo Ministrio da Educao, os sistemas de ensino e os Centros de

    Pesquisa e Desenvolvimento da Educao (BRASIL, 2008).

    Os Centros de Pesquisa so vinculados a uma universidade e a eles compete o

    desenvolvimento de cursos e de programas de formao continuada a distncia e

    semipresenciais, a formao dos tutores, a elaborao dos materiais didtico-

    pedaggicos impressos e multimdia, as pesquisas, a articulao com os sistemas de

    ensino e outras Instituies de Ensino Superior. Os Centros contam com um

    coordenador, uma equipe de professores e colaboradores e so geridos por um Comit

    Gestor.

    Alm dos professores da Educao Bsica em exerccio, as aes da Rede

    Nacional de Formao Continuada de Professores de Educao Bsica tm como

    pblico alvo diretores, equipe gestora e dirigentes dos sistemas pblicos de ensino. As

    reas prioritrias de formao do referido programa so: Alfabetizao e Linguagem,

    Educao Matemtica e Cientfica, Ensino de Cincias Humanas e Sociais, Artes e

    Educao Fsica, e Gesto e Avaliao da Educao. O Pr-Letramento um dos

    programas que integram a Rede Nacional de Formao Continuada de Professores de

    Educao Bsica. Por meio das aes desta Rede, foram elaborados vrios cursos e

    materiais voltados aos professores da educao bsica que foram disponibilizados em

    um catlogo em 2005, 2006 e 2008.

    A Poltica Nacional de Formao de Profissionais do Magistrio da Educao

    Bsica foi instituda em 2009, por meio do Decreto n 6.755/2009, que tem como

    finalidade organizar a formao inicial e continuada dos profissionais do magistrio das

    redes pblicas da Educao Bsica em regime de colaborao com os Estados, o

    Distrito Federal e os municpios. O Decreto n 6.755/2009 apresenta, como primeiro

    objetivo, promover a melhoria na qualidade da Educao Bsica pblica e, como

    segundo objetivo, apoiar a oferta e a expanso dos cursos de formao inicial e

    continuada aos profissionais do magistrio pelas instituies pblicas de Ensino

    Superior.

    Desse modo, possvel notar que a poltica de formao continuada de

    professores, no contexto brasileiro, est intimamente relacionada questo da qualidade

    da educao, responsabilizando os professores pelo desempenho dos alunos, que

    aferido por intermdio de avaliaes externas, e investindo em alternativas de formao

  • 34

    dos docentes, como se a participao nos cursos e programas incidisse diretamente no

    desenvolvimento da aprendizagem dos discentes.

    Sobre os resultados relacionados aos programas de formao contnua, Gatti

    (2009) afirma que os trabalhos que se dedicam ao estudo de iniciativas de formao

    continuada apresentam algumas concluses recorrentes, apesar da diversidade de

    situaes estudadas. Assim, em geral, possvel verificar uma valorizao da

    oportunidade de participar da formao continuada, tanto pela possibilidade de

    aprimoramento profissional, quanto pelo anseio de melhoria de desempenho na sala de

    aula. Contudo, muitas vezes, o que h diante das situaes vivenciadas na formao

    um sentimento de rejeio ou mesmo fastio.

    Gatti (2009) afirma, no entanto, que embora alguns professores apontem como

    ponto positivo a oportunidade de aprofundamento ou aquisio de novos conhecimentos

    por meio da participao nos cursos de formao continuada, so recorrentes queixas

    como: pouca sintonia entre as necessidades dos professores da escola e a organizao da

    formao continuada; pouca participao dos professores nos processos de deciso nas

    formaes s quais so submetidos; conhecimento precrio por parte dos formadores

    acerca dos professores e dos contextos nos quais estes atuam; ausncia de apoio e

    acompanhamento sistemtico da prtica pedaggica dos professores, o que dificulta a

    compreenso da relao entre o curso oferecido e o cotidiano da sala de aula;

    dificuldade em prosseguir com a proposta de formao aps o trmino do curso;

    descontinuidade das polticas de formao, que impede a consolidao dos resultados

    alcanados; e a carncia de um melhor cumprimento da legislao que assegura o direto

    formao ao docente.

    A valorizao da oportunidade de participar da formao continuada pela

    possibilidade de aprimoramento profissional e pela melhoria do desempenho na sala de

    aula tambm apareceu na fala das professoras protagonistas desta pesquisa, manifestada,

    de modo especial, no desejo de que o PNAIC continue, se estendendo s demais reas

    de conhecimento, e na satisfao em participar da formao, ainda que esta ocorra aos

    sbados.

    A formao continuada est contemplada na Lei de Diretrizes e Bases da

    Educao Nacional n 9.394/96 LDBEN, que prev no artigo 62, pargrafo primeiro,

    que a Unio, o Distrito Federal, os Estados e os Municpios promovero a formao

    inicial, continuada e a capacitao dos profissionais do magistrio em regime de

    colaborao. O referido artigo, pargrafo segundo, prev ainda que, para a formao

  • 35

    continuada e a capacitao dos profissionais, podero ser utilizados tecnologias e

    recursos de educao a distncia.

    Com relao s terminologias formao inicial e formao continuada,

    alguns autores tm apresentado alguns questionamentos e sugerido outra terminologia,

    segundo eles, mais adequada. De acordo com Pereira (2010), estes termos, formao

    inicial e formao continuada, seriam inapropriados para diversas regies brasileiras,

    haja vista que, em alguns lugares, ao ingressar no curso de formao docente, o

    professor j atua na sala de aula h algum tempo. Alm disso, o termo formao inicial

    bastante criticado, tendo em vista que, antes de escolher ou exercer esta profisso, o

    profissional j conviveu cerca de 12.000 horas com o professor ao longo de sua

    trajetria acadmica e isso teria impacto nas suas concepes de professor, de aula,

    entre outros (DINIZ-PEREIRA, 2007, p. 86).

    Pereira (2010) aponta ainda que a formao continuada que conhecemos

    consiste, na maior parte das vezes, em aes isoladas, pontuais, associada viso de

    cursos de curta durao, voltados para o aperfeioamento, atualizao e reciclagem

    dos docentes, revelando uma formao mais descontnua que contnua. Em oposio a

    essa descontinuidade, o autor supracitado afirma que tem sido utilizado, na literatura

    especializada, o termo desenvolvimento profissional8, que estaria diretamente

    relacionado s condies de trabalho do docente.

    Sendo assim, ao discutir a formao continuada de professores, no poderamos

    nos esquecer do princpio da indissociabilidade entre a formao e as condies

    adequadas para a realizao do trabalho docente (salrios dignos, maior

    autonomia profissional, dedicao exclusiva a uma nica escola, pelo menos um

    tero da jornada de trabalho para planejamento, reflexo e sistematizao da

    prtica, estudos individuais e coletivos, salas de aula com um nmero reduzido

    de alunos). Do contrrio, poderamos assumir, de um lado, uma posio de que

    tudo de ruim que existe na educao escolar acontece devido aos professores e

    sua m formao (tese da culpabilizao) ou, de outro, a postura de que os

    docentes no tm nada a ver com os problemas atuais da escola, sendo,

    portanto, apenas vtimas de um sistema social e educacional perverso e

    excludente (tese da vitimizao) (PEREIRA, 2010).

    8 Embora concordemos com a utilizao de desenvolvimento profissional docente em vez de

    formao continuada, utilizaremos, ao longo do trabalho, esta ltima, tendo em vista que, de

    acordo com Pereira (2010), no possvel falar em formao continuada sem considerar as

    condies do trabalho docente. Considerando que o PNAIC foi realizado nos finais de semana,

    fora da carga horria de trabalho do professor, e que ele trouxe pouca contribuio no que se

    refere s condies do trabalho docente autonomia, salrios dignos e dedicao a uma nica

    escola, entre outros achamos mais coerente utilizarmos a expresso formao continuada.

    Alm disso, foi assim que o Pacto ficou conhecido entre as professoras alfabetizadoras e

    orientadoras de estudos.

  • 36

    Nesta perspectiva, Gatti (2009) aponta que tem havido uma reconceitualizao

    da formao continuada em virtude de pesquisas voltadas para a identidade profissional

    do professor. Dessa maneira, as propostas voltadas para a capacitao do docente

    dariam lugar a um paradigma mais centrado no potencial de autocrescimento deste

    profissional.

    Esse paradigma centrado no professor, garantindo-lhe as condies adequadas

    do trabalho docente, cede lugar a uma formao em que a escola o locus privilegiado

    para o desenvolvimento profissional dos professores, embora ele possa se distanciar, de

    tempos em tempos, da realidade em que vive para conhecer outras instituies,

    aprofundar seus conhecimentos tericos e trocar experincias com outros profissionais

    (PEREIRA, 2010).

    Nessa mesma perspectiva, Nvoa (2009) afirma que as propostas tericas s

    fazem sentido quando construdas dentro da profisso e apropriadas por meio da

    reflexo, por parte dos professores acerca de seu prprio trabalho, uma vez que

    enquanto forem apenas injunes do exterior, sero bem pobres as mudanas que tero

    lugar no interior do campo profissional docente (NVOA, 2009, p. 19).

    1.3 O Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa no contexto da poltica

    educacional brasileira

    Esta seo pretende caracterizar o Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade

    Certa PNAIC, ao versar sobre sua criao e ao explicar o embasamento legal, os

    documentos orientadores, seus eixos de atuao, assim como ao apresentar alguns

    aspectos positivos e complicadores apontados em pesquisas que tiveram o PNAIC como

    objeto de investigao.

    O PNAIC um compromisso assumido entre o governo federal, os estados e

    municpios, institudo pela Portaria n 867, em 4 de julho de 2012, a fim de alfabetizar

    as crianas at no mximo oito anos de idade, ao final do 3 ano do Ensino

    Fundamental, avaliando-se os resultados por meio de exame peridico especfico.

    De acordo com o Manual do Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa:

    o Brasil do futuro com o comeo que ele merece (s/d), o Pacto est organizado em

    quatro eixos: Formao Continuada de Professores Alfabetizadores; Materiais

  • 37

    Didticos, Literatura e Tecnologias Educacionais; Avaliao; e Gesto, Controle e

    Mobilizao Social.

    O eixo de Formao Continuada dos Professores Alfabetizadores foi estruturado

    em um curso presencial de dois anos9, com carga horria de 120 horas

    10 por ano,

    baseado no Programa Pr-Letramento, com encontros conduzidos por orientadores de

    estudo, professores das redes de ensino que participam de um curso especfico de 200

    horas ministrado por universidades pblicas, perfazendo momentos de estudo e

    atividades prticas.

    O eixo de Materiais Didticos, Literatura e Tecnologias Educacionais

    composto por livros didticos (PNLD - Programa Nacional do Livro Didtico) e por

    manuais do professor, obras pedaggicas complementares aos livros didticos e

    dicionrios de Lngua Portuguesa (PNLD), jogos pedaggicos voltados para a

    alfabetizao, obras de literatura, obras de apoio aos professores, jogos e softwares de

    apoio alfabetizao.

    O eixo de Avaliao congrega trs componentes: avaliaes processuais,

    realizadas pelas professoras alfabetizadoras e discutidas no curso de formao; Provinha

    Brasil, realizada no incio e no final do 2 ano, com um sistema informatizado no qual

    os professores podem inserir os dados e acompanhar o desenvolvimento dos alunos;

    Avaliao Nacional da Alfabetizao ANA coordenada pelo INEP e aplicada a

    alunos do 3 ano do Ensino Fundamental.

    A gesto do Pacto, quarto eixo do programa, d-se por meio de um Comit

    Gestor Nacional, uma Coordenao Institucional em cada estado e no Distrito Federal,

    uma Coordenao Estadual e uma Coordenao Municipal. Alm desses mecanismos, a

    gesto do Pacto conta com um sistema de monitoramento disponibilizado pelo MEC

    SISPACTO , e com a nfase no fortalecimento dos conselhos de educao.

    As aes do Pacto Nacional pela Alfabetizao na Idade Certa, em

    conformidade com a Portaria n 867, de 4 de julho de 2012, tm como objetivo: garantir

    que todos os alunos estejam alfabetizados em Lngua Portuguesa e Matemtica at o 9 Merece destaque que, inicialmente, o curso previa a formao em dois anos: em 2013, voltada

    para a Lngua Portuguesa, e em 2014, voltada para a Matemtica. Contudo, de acordo com o

    Documento Orientador das Aes de Formao Continuada de Professores Alfabetizadores em

    2015, o PNAIC foi ampliado, estendendo-se para as demais reas do currculo, com carga

    horria de 80 horas a ser cumprida pelos professores pertencentes s redes de ensino. 10

    De acordo com as informaes constantes no Documento Orientador das Aes de Formao

    em 2014, a durao do curso foi ampliada para 160 horas, com o intuito de aprofundar e ampliar

    os temas tratados em 2013, focando a articulao entre diferentes componentes curriculares e

    com nfase em matemtica.

  • 38

    final do 3 ano do Ensino Fundamental; reduzir a distoro idade-srie; melhorar o

    ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica (IDEB); contribuir para o

    aperfeioamento da formao dos alfabetizadores e construir propostas para a definio

    dos direitos de aprendizagem nos trs primeiros anos do Ensino Fundamental.

    O PNAIC est amparado nos seguintes documentos: Portaria n 1.458, de 14 de

    dezembro de 2012; Portaria n 90, de 6 de fevereiro de 2013; Resoluo n 4, de 27 de

    fevereiro de 2013 e Resoluo n 12, de 8 de maio de 2013, que versam,

    respectivamente, sobre os critrios para seleo/participao dos formadores,

    orientadores de estudo, professores alfabetizadores, coordenador local, coordenador-

    geral e adjunto junto s Instituies de Ensino Superior; definio do valor mximo das

    bolsas para os participantes da formao no mbito do PNAIC; orientaes e diretrizes

    para o pagamento das bolsas de estudo, responsabilidades e atribuies dos agentes da

    formao, bem como a sua seleo, constituio das turmas de professores

    alfabetizadores, pagamento das bolsas e fiscalizao; alterao de dispositivos da

    Resoluo n 4, supracitada, estabelecendo orientaes para o pagamento das bolsas de

    estudo.

    Alm desses documentos, o Pacto est em consonncia com a Medida Provisria

    n 586, de 8 de novembro de 2012, que dispe sobre o apoio tcnico e financeiro da

    Unio aos entes federados no mbito do PNAIC, que foi convertida depois na Lei n

    12.801, de 24 de abril de 2013; e na Lei n 11.273, de 6 de fevereiro de 2006, que

    autoriza o pagamento de bolsas de estudo e de pesquisa a participantes de programas de

    formao inicial e continuada de professores para a Educao Bsica.

    No contexto da poltica educacional brasileira, o Pacto est em consonncia com

    a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, n 9.394/1996, o Decreto 6.094, de

    24 de abril de 2007, que dispe sobre o Plano de Metas Compromisso Todos pela

    Educao, o Plano de Desenvolvimento da Educao e com a Lei n 13.005, de 25 de

    junho de 2014, que aprova o Plano Nacional de Educao PNE 2014/2024.

    O Plano de Desenvolvimento da Educao PDE foi lanado oficialmente em

    24 de abril de 2007, simultaneamente ao Decreto n 6.094/2007, que disserta sobre o

    Plano de Metas Compromisso Todos pela Educao, com o objetivo de reunir, de

    acordo com o Relatrio Educao para Todos no Brasil: 20002015, em um nico

    documento, diversas aes do governo federal.

    Para Saviani (2007), o grande responsvel pela aceitao positiva do PDE

    refere-se questo da qualidade da educao, uma vez que foi visto como uma

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    possibilidade de enfrentamento do problema da qualidade do ensino das escolas da

    Educao Bsica no Brasil. Nesse sentido, importante ressaltar que, para este plano, a

    melhoria da qualidade da Educao Bsica est diretamente relacionada formao de

    professores (BRASIL, 2007, 10).

    O Decreto 6.094/2007, que trata do Plano de Metas Compromisso Todos pela

    Educao, um esforo entre a Unio, o Distrito Federal, os estados e os municpios

    visando melhoria da qualidade da Educao Bsica. Esse Plano, composto por 28

    metas que versam sobre variados temas, como a Educao Infantil, a Educao de

    Jovens e Adultos, a evaso e repetncia, e o plano de carreira e a valorizao dos

    profissionais da educao, prev no inciso II do artigo 2, a alfabetizao das crianas

    at, no mximo, os oito anos de idade, verificando os resultados por meio de exame

    peridico especfico.

    O Plano Nacional da Educao, aprovado pela Lei n 13.005/2014, quase dois

    anos aps a publicao da Portaria n 867/2012, que instituiu o PNAIC, previa, em seu

    projeto de lei, a alfabetizao das crianas at os oito anos de idade. Na lei aprovada em

    2014, a redao da meta foi modificada para alfabetizar todas as crianas, no mximo,

    at o final do 3o (terceiro) ano do Ensino Fundamental.

    Essa meta, a 5 do PNE, conta com sete estratgias que versam sobre estruturao

    dos processos pedaggicos de alfabetizao nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental

    em articulao com estratgias utilizadas na pr-escola, qualificao e valorizao dos

    professores alfabetizadores, com apoio pedaggico especfico; instituio de

    instrumentos de avaliao nacional peridicos e especficos para aferir a alfabetizao

    das crianas, e estmulo s escolas para criarem instrumentos de avaliao e

    monitoramento, implementando medidas pedaggicas para alfabetizar todos os alunos

    at o final do 3 ano do Ensino Fundamental; disponibilizao de tecnologias

    educacionais para a alfabetizao; incentivo ao desenvolvimento de tecnologias

    educacionais e de prticas pedaggicas inovadoras que garantam a alfabetizao e

    melhorem o fluxo escolar; apoio alfabetizao de crianas do campo, quilombolas e

    populaes itinerantes, com produo de materiais didticos especficos; promoo e

    estmulo formao inicial e continuada dos professores para a alfabetizao das

    crianas; e apoio alfabetizao das pessoas com deficincia.

    possvel perceber que h uma estreita ligao entre os objetivos pretendidos

    com as aes do PNAIC e a meta 5 do PNE, bem como as estratgias utilizadas para

    atingi-la, especialmente no que diz respeito a garantir que todos os alunos estejam

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    alfabetizados at o final do 3 ano do Ensino Fundamental, melhoria no fluxo escolar e

    contribuio para a formao dos professores alfabetizadores.

    Analisando o exposto at aqui, especialmente no que se refere aos aspectos que

    tm influenciado as polticas educacionais, como o compromisso assumido em Dakar,

    possvel notar que o PNAIC integra o conjunto de aes e programas que tm sido

    formulados no intuito de garantir uma educao de qualidade a todos, investindo para

    tanto na