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Número 17

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Conceitos / Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba - v. 1, n 1., João Pessoa, 1996.

v. : il.; 22 cm

Semestral

ISSN 1519-7204

1. Ensino Superior - Periódicos. 2. Política da educação Periódicos. 3. Ensino Público - Períodicos. l. Associação dos Docentes da Universidade Federal da Paraíba

378C 742

A revista Conceitos é uma publicação para divulgação de artigos científico-pedagógicos

produzidos por docentes da Universidade Federal da Paraíba e colaboradores, promovida pela ADUFPB

(Sindicato dos Docentes da UFPB), com distribuição gratuita e dirigida aos filiados da Entidade.

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SINDICATO DOS DOCENTES DA UFPBCampus da UFPB - João Pessoa - Paraíba

ISSN 1519-7204Volume 9, Número 17

168 páginas

João Pessoa - Paraíba - Brasil

Dezembro de 2012

Ricardo de Figueiredo Lucena e Ricardo da Silva Araújo

(Orgs.)

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DIRETORIA EXECUTIVA DA ADUFPB - GESTÃO 2011/2013

PRESIDENTERICARDO DE FIGUEIRÊDO LUCENA

VICE-PRESIDENTETEREZINHA DINIZ

SECRETÁRIO GERALCLODOALDO DA SILVEIRA COSTA

TESOUREIRAHÉLIDA CRISTINA CAVALCANTE VALÉRIO

DIRETOR DE POLÍTICA SINDICALWLADIMIR NUNES PINHEIRO

DIRETORA DE POLÍTICA EDUCACIONAL E CIENTÍFICAMARIA DAS GRAÇAS A. TOSCANO

DIRETOR PARA ASSUNTOS DE APOSENTADORIAJOSÉ RICARDO DA SILVA

DIRETOR DE POLÍTICA SOCIALJOÃO FRANCISCO DA SILVA

DIRETORA CULTURALMARISETE FERNANDES DE LIMA

DIRETOR DE DIVULGAÇÃO E COMUNICAÇÃOANTONIO LUIZ DE ALBUQUERQUE GOMES

DIRETORA DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS DE AREIALUDMILA DA PAZ GOMES DA SILVA

SUPLENTE DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS DE AREIAAMARO CALHEIROS PEDROSA

DIRETOR DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS DE BANANEIRASJOSÉ PESSOA CRUZ

SUPLENTE DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS DE BANANEIRASMARCELO LUÍS GOMES RIBEIRO

DIRETOR DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS LITORAL NORTEPABLO DANIEL ANDRADA

SUPLENTE DA SECRETARIA-ADJUNTA DO CAMPUS LITORAL NORTECRISTIANO BONNEAU

SUPLENTE DE SECRETARIANILSAMIRA DA SILVA OLIVEIRA

SUPLENTE DA TESOURARIAJALDES REIS DE MENESES

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É UMA PUBLICAÇÃO DA ADUFPB/SSIND. DO ANDES-SN

Centro de Vivência da UFPB - Campus I - Cx. Postal 5001

CEP 58051- 970 - João Pessoa/Paraíba - Fones: (83).3214-7450 / (83) 3216-7388 - Fone/Fax: (83) 3224-8375

Homepage: www.adufpb.org.br - E-mail: [email protected]

João Pessoa - Paraíba - Dezembro de 2012 - Edição número 17 - Publicada e lançada em Dezembro de 2012

APOIO CULTURAL

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CONSELHO EDITORIAL:

Albergio Claudino Diniz Soares (UFPB)

Albino Canelas Rubin (UFBA)

Beatriz Couto (UFMG)

Galdino Toscano de Brito Filho (UFPB)

Ivone Pessoa Nogueira (UFPB)

Ivone Tavares de Lucena (UFPB)

Jaldes Reis de Meneses (UFPB)

Lourdes Maria Bandeira (UnB)

Luiz Pereira de Lima Júnior (UFPB)

Maria Otília Telles Storni (UFPB)

Maria Regina Baracuhy Leite (UFPB)

Mário Toscano (UFPB)

Martin Christorffersen (UFPB)

Mirian Alves da Silva (UFPB)

Vanessa Barros (UFMG)

Virgínia Maria Magliano de Morais

Waldemir Lopes de Andrade (UFPB)

FOTOS/ILUSTRAÇÕES/GRÁFICOS: Originais fornecidos pelos autores.

FOTOGRAFIA DA CAPA: Leão em P&B - Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho 3º Lugar no Concurso Cultural de Fotografia da ADUFPB/ CREDUNI, realizado em Outubro /2012 ARTE DA CAPA: Ricardo Araújo

ORGANIZAÇÃO EDITORIAL, EDIÇÃO, PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA (DIAGRAMAÇÃO): Ricardo Araújo (DRT/PB 631)

REVISÃO DOS TEXTOS: Rejane Maria de Araujo Ferreira ([email protected])

DIVULGAÇÃO E IMPRENSA: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DA ADUFPB (ASCOM/ADUFPB Renata Ferreira e Ricardo Araújo.

RESPONSÁVEL PELO CONVÊNIO CULTURAL: Marcelo Barbosa E-mail: [email protected]

COLABORAÇÃO E LOGÍSTICA: Célia, Da Guia, José Balbino, Lu, Nana e Valdete

DISTRIBUIÇÃO E CIRCULAÇÃO: Gratuita e dirigida aos afiliados do sindicato.

VERSÃO DIGITAL/ON LINE www.adufpb.org.br

Os textos assinados são de responsabilidade integral do autor e não refl etem, necessariamente, a opinião da revista. É permitida a reprodução total ou parcial de textos, fotos e ilustrações, desde que seja citada a fonte e o autor da obra.

CONTATOS: E-mail: [email protected] Contatos: Célia Lopes, Ricardo Lucena ou Ricardo Araújo.

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Sumário dos artigosPÁG. 10 O que tanto deseja o desejo na poesia de Linaldo Guedes?Amador Ribeiro Neto

PÁG. 18 O imaginário da luz e da sombra no expressionismo alemãoBertrand de Souza Lira

PÁG. 26A imagem cinematográfica como recurso icônicoDjavan Antério/Pierre Normando Gomes da Silva

PÁG. 31 O mito cosmogônico Judaico-cristão:corporeidade e imaginário dos sobreviventes das inundaçõesEunice Simões Lins GomesPierre Normando Gomes-da-Silva Neide Miele

PÁG. 42 Em busca da Formação de Professores: velhas estradas, novos caminhosJanine Marta Coelho RodriguesGaldino Toscano de Brito FilhoSilvestre Coelho Rodrigues

PÁG. 49Greve nas Universidades e trabalho docenteJaldes Reis de Meneses

PÁG. 51 Dois livros na revelação de uma realidadeJosé Octávio de Arruda Mello

PÁG. 60 Sincronia e pancronia: linguísticas modernasMaria Lúcia de Oliveira

PÁG. 65 Questão Urbana e a moradia popularMaria Auxiliadora Leite Botelho

PÁG. 70Direitos humanos e educação política: o trabalho do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPBMaria de Fátima Marreiro

PÁG. 79A nova gestão pública (NPM) e a importância da liderança: (re)configuraçõesMaria das Graças Nóbrega de AlmeidaLiliane Stelzenberger Margarida Maria Dias Monteiro Gonçalves Mercídio Gonçalves Filho

PÁG. 87Educação e cultura: um exercício de aprendizagem sobre a diversidade cultural em Sousa-PBMaria Patrícia Lopes GoldfarbAquiles Cordeiro do NascimentoHermana Cecília de Oliveira Ferreira

PÁG. 94Do Estado Social ao Estado Penal: enclausuramento da pobrezaMarlene Helena de Oliveira França

PÁG. 101Jean Amós Comenius e os princípios da Educação UniversalMariza de Oliveira PinheiroCarlos Alberto de Jesus

PÁG. 108O trabalho do serviço social na saíude e questão da interdisciplinaridadeAna Paula Rocha de Sales MirandaPatrícia Barreto CavalcantiRenata Silva Azevedo Amaral

PÁG. 115Bordas intraurbanas: uso da ocupação do solo nos espaços periféricos do Centro principal de João Pessoa-PBPatrícia Costa e Silva CruzJosé Augusto Ribeiro da SilveiraCybelle Frazão Costa BragaMilena Dutra da Silva

PÁG. 128A Revolução das Formigas: leituraMaria do Socorro Gomes Barbosa

PÁG. 131Voltaire e a razão como princípio e método historiográficoPaulo César Geglio

PÁG. 136Cidade, esporte e lazer: desafios locais para o desenvolvimento regionalRicardo de F. Lucena

PÁG. 141Formação e atuação de tradutores/intérpretes de língua de sinais: algumas considerações para a prática no ensino superiorSandra Alves da Silva Santiago

PÁG. 146As Vinhas da Ira e a ira das vítimas: entre o destino manifesto e o manifesto dos miseráveisSueli Meira Liebig

PÁG. 155Consequência da credibilidade na tecnologia de informação no sistema de controle interno: caso de uma indústriaValdério Freire de Moraes JúniorClaude Alexandre de Medeiros Marques

PÁG. 161 O universo das tirinha na web: um levantamento das tirinhas no ciberespaçoVitor NicolauHenrique Magalhães

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 20128

FOTO DA CAPA:

Leão em P&B

Autor:

Carlos Alberto Farias de Azevedo Filho

Professor do Departamento de Comunicação, e Turismo (Decomtur), do Centro de Comunicação, Turismo e Artes da Universidade Federal da Paraíba

(UFPB)

Premiada em 3º Lugar no 1º Concurso Cultural de Fotografia da ADUFPB/CREDUNI,

realizado em outubro de 2012.

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 9

Compartilhando saberes

A tarefa de divulgar a produção acadêmica de uma instituição como a UFPB é um importante elo da cadeia que se inicia com a curiosidade científica e/ou literária que anima o fazer docente.

A Revista Conceitos tem sido, ao longo desses últimos anos, um canal de veiculação importante para o compartilhamento do saber aqui produzido. Essa não é uma revista qualquer. O seu caráter interdisciplinar lhe confere um ar de universalidade que não deve ser confundido com uma publicação sem importância acadêmica. Pelo contrário, esse seu perfil é que nos permite apostar numa revista com a cara de uma universidade dinâmica e diversa. A Conceitos é um espaço de divulgação do saber, de um saber relevante e resultado da reflexão dos nossos professores.

Temas como “O imaginário da luz e da sombra no expressionismo alemão” de Bertrand de Souza Lira e “Do Estado Social ao Estado Penal: enclausuramento da pobreza” de Marlene Helena de Oliveira França, são exemplos de como esse canal de divulgação acadêmica tem seu espaço garantido pela qualidade e diversidade do material que oferece.

A ADUFPB, gestão 2011-2013, não tem poupado esforços para qualificar a nossa revista. Estamos reestruturando o Conselho Editorial e convidando novos professores para compor o corpo de pareceristas. Além disso, nosso empenho é para assegurarmos a periodicidade semestral da Conceitos. Em 2012, no primeiro semestre, lançamos um número que estava em atraso e agora neste final de ano fazemos o lançamento do segundo número. Aliado a isso, a decisão de manter um fluxo contínuo para recebimento e avaliação de artigos é outra iniciativa com o objetivo de viabilizar as futuras publicações.

Portanto, buscar formas de garantir a qualidade e a periodicidade foi o caminho que adotamos até aqui e do qual estamos colhendo os primeiros resultados. Apostando cada vez mais numa política editorial de qualidade, é a melhor forma de tornar a revista uma referência para os nossos leitores e um caminho a mais para publicação dos trabalhos de boa lavra aqui produzidos.

Desejamos que a leitura dos textos apresentados seja motivo suficiente para satis-fação dos que nele publicaram e que desperte o desejo de muitos colegas professores em fazê-lo porque reconhecem na Conceitos um espaço de veiculação do saber produzido com dedicação e qualidade acadêmica.

Os Organizadores.

Apre

sent

ação

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 201210

10Amador Ribeiro Neto

Professor Doutor do Curso de Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB, Campus de João Pessoa

O que tanto deseja o desejo na

poesia de Linaldo Guedes?

1. Flanando: o poeta, um fazedor de lingua-gens

Barthes, diante de uma fotografia de Je-rônimo, último irmão de Napoleão, disse: “Vejo os olhos que viram o Imperador”. Esse espanto ele dividiu com os amigos. Mas ninguém parecia compartilhá-lo. Então, Barthes constata: “A vida é, assim, feita a golpes de pequenas solidões”.

A frase mais parece um verso de T. S. Eliot. Um verso, uma linha, uma frase que agarra na gente. Quem é que está ausente dessas golfadas

de solidão? Ninguém. Mas somente os poetas sabem transpor para a ciranda de signos um sentimento raro e trivial ao mesmo tempo. A ambiguidade é marca registrada da poesia. O poeta, senhor oceânico dos signos, sabe dizer o inaudito, o inaudível, o desdito, o prescrito, o proscrito. O poeta é aquele que se vale da palavra, da cerâmica, da tela, da areia, da luz, do ferro, da madeira, da pedra, da água, do fogo, do silêncio e dos sons para fazer poesia.

O poeta é um fazedor de linguagens. O que ele faz é ouro. Midas das mídias, é sem-

Resumo:

Este artigo busca analisar o mais recente livro de poemas de Linaldo Guedes desta-cando sua linguagem e seus temas – e a correlação existente entre ambos. Esta correlação resulta de um universo semiótico que envolve sua poesia, indo das relações familiares à exposição de uma libido incontrolável, passando pela religiosidade sertaneja e o cotidiano de quem vive o sertão. Melhor dizendo: de quem vive o mundo, já que a grande metáfora deste livro está na apropriação geográfica de uma região e no seu metamorfismo em fatos – pessoais e sociais – de todos, e de cada um de nós.

Palavras-chave: A linguagem da poesia; poesia paraibana contemporânea; Linaldo Guedes; Semiótica da Cultura.

E-mail: [email protected]

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 11

pre um meio entre as extremidades do gozo e do martírio.

Homem do povo, o poeta sabe que nada pode fazer se ignora a língua dos bares, das feiras, dos camelódromos, dos campos, das fábricas, das cozinhas, das vias públicas, das portarias, das fazendas, dos sítios, dos cariris, dos sertões, do agreste, das praias. A língua viva do povo é a melhor matéria e o melhor material do poeta.

Um povo sem literatura é um povo fadado à bancarrota. Uma nação sem poetas está à beira da derrocada, a um triz de ser engolfada por outras nações e culturas mais fortes. A língua do poeta não pode ser a norma culta. Essa norma asfixia a flexibilidade, o molejo, o dengo de “tudo aquilo que o malandro pronuncia”, como pontua Noel.

Por ser tão ímpar, tão inesperadamente singular, por mandar às favas as leis do mercado, o poeta então se atreve, cada vez mais, na busca de uma linguagem nova. A busca pelo novo, pelo ainda não dito nem escrito, move o poeta. Na simplicidade do fazer (ou do dizer, já que ambos são a mesma coisa para o poeta), o poeta inau-gura outros modos de ser e de estar. Outro jeito de corpo. Outra moda, contra a moda.

Por ser inapreensível em todos e em nenhum modelo, o poeta cria sua própria gramática, seu próprio dicionário, sua exclusiva linguagem. As-sim, seu produto não obedece às leis do mercado. O poeta vive a golpes de pequenas solidões. Com o poeta paraibano contemporâneo Linaldo Guedes não seria diferente. Vejamos.

2. O desejo na poesia de Linaldo Guedes

As facilidades de publicação, principalmen-te via Internet, têm feito proliferar o número de “poetas” mundo afora. Mesmo em livro impresso, há um considerável número deles, quase sempre com o rei na barriga e letra de caixa-alta. Viajando pelos congressos, acadêmicos ou não, ou mesmo recebendo pelos correios, os livros desses “poe-tas” me chegam de forma quase avassaladora, sempre me cobrando uma opinião, “com certeza”. Isso tem me causado um desânimo muito grande, em relação à produção poética contemporânea brasileira. Claro, há nomes fortes e consolidados, dos anos 90 para cá, mas é difícil, principalmente na última década, destacar um nome novo que mereça realce pela qualidade de sua poesia.

Há vários deles, que surgem num livro

e geram alguma expectativa, mas que logo se dissipam, como sal na água, no livro seguinte. Fazer poesia não é nada fácil, ao contrário do que propagaram os “poetas marginais” dos anos 70 e 80 – e que, infelizmente, devido ao desprezo pelo rigor da escrita, fizeram cabeças afoitas que hoje proliferam nas redes sociais e em grupelhos provincianos.

Faço esta breve introdução para falar de um livro (e de um poeta) que, desde a primeira publi-cação, já se apresentava como uma “promessa”, mas que, no geral, ainda se mantinha preso aos maneirismos poeticistas dos que se aventuram na “the waste land” da poesia. Refiro-me a Linaldo Guedes.

Como eu apreciara quase nada Os zumbis também escutam blues (1998) e muito pouco o Intervalo lírico (2005), foi mais por dever de insis-tir na “promessa” desse jovem, que li Metáforas para um duelo no sertão (2012) – convenhamos, pouco sugestivo desde o título.

Um parênteses: não costumo investir em leituras de autores que não despertam meu inte-resse como leitor e crítico. Mas, no caso de Linaldo Guedes, repito, havia algo (a Coisa lacaniana?) que me cutucava por dentro: embora sua poesia não me agradasse, havia um fazer poético – em raros momentos, diga-se – que me instigava, me inquietava, me fazia crer que valeria a pena con-tinuar investindo em lê-lo.

Guardadas as devidas proporções, havia uma semelhança entre o fazer poético de Linaldo e o de Mário de Andrade – este último morreu sem saber qual era, de fato, a da poesia. Na po-esia marioandradina, há poemas bons e ruins, o tempo todo, em todos os livros. Isso é comum. É mesmo inevitável, posso ser objetado. No entanto, esclareço: no caso de M. de Andrade, a poesia sempre foi manca de uma perna, nunca alcan-çou a grandeza sólida e marcante de sua prosa. Todavia, não há como ignorar a poesia de Mário. Não há como desconhecê-lo, como poeta, na rica cena da poesia brasileira de todos os tempos – e não, apenas modernista.

Linaldo Guedes produziu em Metáforas para um duelo no sertão uma obra que nos surpre-ende, ao mesmo tempo em que confirma nossa “intuição”: eis um livro de muitos poemas bons, alguns excelentes, e meia dúzia que não precisa-riam constar nele. Esses são aqueles que jogam com os trocadilhos mais previsíveis, muito fáceis,

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 201212

quase sem elaboração poética. É o caso de “Para-bolicaleitura” (feliz no título gilbertiano) (p. 112):

as casas sustentam antenaseu vifossem antenas poundianaseu não via

EU LIA:

(as antenas globalizam novas raças).

Em “Lombra...”, ele encerra o poema com este baita clichê: “(perdidos em nossos achados),” (p. 81). Com o mesmo recurso, encerra “Primeira confissão”: “(como é bom ser livre para pecar!),” (p. 53).

No entanto, o trocadilho é uma das chaves mestra desse poeta. Em vários casos, ela é tão inovadora que o poema nos aparece como algo inusitado. Como, aliás, deve ser todo bom poema: um poema dever ser lido como se o tivéssemos vendo pela primeira vez, embora trate do cos-tumeiro, observou certo semioticista russo. É isso que Dante faz com o Amor, por exemplo. Ou Shakespeare, com o Poder. Ambos os temas, velhos conhecidos. No entanto, na poética desses dois grandes nomes, é como se cada um desses temas nos fosse revelado pela primeira vez. Isso é fazer poético. E Linaldo o faz com propriedade em alguns poemas.

Só isso vale o livro. Nos últimos anos, não lia algo tão arrebatadoramente sensível e simples. Ocorrem-me os nomes de Frederico Barbosa, André Dick, Paulo de Toledo, Saulo Mendonça, Lau Siqueira, Delmo Montenegro, Cláudio Daniel, Ricardo Aleixo, Carlito Azevedo, Arnaldo Antunes, Josely Vianna Baptista, Antônio Risério, Rodrigo Garcia Lopes, Ricardo Corona, Carlos Ávila, Ronald Polito e Ademir Assunção – também a quatro mãos, com Vicente Pietroforte. (Glauco Mattoso é hour concours).

A simplicidade da poesia de LG despe-a, por exemplo, do ritmo forjado ao qual os “poetas” contemporâneos subjugam a “poesia”, comendo mal a rédea curta da dicção drummondiana. Em Linaldo, a coloquialidade vem atrelada a uma musicalidade da fala do homem simples – se sertanejo ou não, veremos adiante. Sua poesia deriva dessa naturalidade. Mas não se pense que a naturalidade é a dominante da poesia linaldina. Nem que essa naturalidade seja o mesmo que rela-

xo ou desarrazoado. Pelo contrário: seu simples é cavado por um rigor admirável, já que não mostra os pilares que erguem a casa da linguagem. Um rigor que serpenteia pelos modos mais diversos da linguagem “carregada de sentido” a mais não poder, como pondera o célebre poeta-crítico norte--americano. Lê-se a poesia de LG com a voracidade que os versos pedem – e o livro é devorado em pouco tempo, ou com o compasso zen do silêncio do sertão, e então, o livro não acaba quase nunca, porque não o deixamos acabar. Queremos beber de sua rara água. E os aborrecimentos com um ou outro poema, como já dissemos, dada a dimensão estética do livro, o leitor tira de letra.

As metáforas utilizadas são bem menos abundantes do que sugere o título. O duelo no sertão é mais ontológico que qualquer outra coisa. O que se diz do sertanejo é inerente a cada ser, e a todos, quem sabe. Antônio Mariano inicia o prefácio falando de Tolstoi e da célebre citação da aldeia e do mundo. Busco ir além: o sertão é o Dasein heideggeriano: investiga-se o ser, seus modos de ser e sentir, independentemente da geografia que o cerca.

Por isso mesmo o poeta eleva o silêncio do sertão como uma das figuras recorrentes de sua escrita: toma-o como mote que tanto mata quanto dá vida a um eu-lírico em desespero ou em paz. A vastidão do silêncio ecoa num movimento zen de sua poesia assim como coabita o chocalho melan-cólico de um gado “perdido” no espaço da seca, como no poema “Curral” (p. 52), citado adiante.

Correlato do silêncio, é o sorriso “para o nada” das meninas do sertão (p. 57), por exem-plo – imagem repetida em “Primeira infância” (p. 37), que se abre assim: “os meninos do sertão / já nascem sorrindo para a rua”. O sorriso/silên-cio conforma o binômino recorrente ao longo do livro – e que, convenhamos, descreve o / disserta sobre o sertão às avessas. Principalmente se to-marmos como referente a literatura regional dos anos 30, ou a posterior, presa a estereótipos de um olhar viciado.

A seca oscila da acidez cabralina ao espe-rançado natalino. Mas não é da festa dezembrina que o poeta fala, e sim, do natalino relativo à geografia do nascimento. Nada de místico ou religioso: apenas o cotidiano, que eu nomearia reles, não fosse ele impregnado pela poeticidade da linguagem das palavras mais comuns, aqui referidas com a beleza do imprevisto. “Natal é

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meu pai”, “natal é minha mãe”, “natal são meus irmãos”, “natal é você”, diz ele, dez páginas depois de iniciado o livro e retomando o tema “do natal”.

Agora a família e a (possível) amada for-mam a guirlanda diária das relações interpessoais. A família é um núcleo duro (no sentido semiótico da expressão: predominância e concentração de sentido) desse livro. Na p. 110, ele diz: “não es-tou sempre presente ao meu filho / e nunca, mas nunca mesmo, / consigo agradar a sombra de meu pai”. Antes, na p. 62, ele fala, uma vez mais, do pai, dos dois irmãos, da paternidade distribuída entre os irmãos e, por fim, da paternidade tardia-mente compreendida pelo eu-lírico.

A presença ausente do pai, a falta de uma orientação, o apartamento de um poder e de um amor paternos cravam marcas de perplexidade num menino-homem (ou, na feliz tradução de Augusto de Campos para certa expressão de Lewis Carroll: homenino), e vazam o livro sob dissimula-ções variadas. Como no poema “Quimera”, em que a felicidade é sem história (diria: é a-histórica), não fosse a condolência de “o menino que chora no último banco de lorca”. Lorca e tantas outras referências literárias povoam o universo desse filho sem pai, desse pai sem paternidade, como se a literatura pudesse suprir a falta que a vida nos traz.

Falando em vida, a religião – o traço determi-nante do sertanejo (e, quem sabe, de todo o ser-tão) – aparece com sua liturgia invertida: ora por um olhar descritivo, embora não esconda laivos de fina e distante ironia (“não era a serra da rola / moça / era a serra de santa luzia / abençoando o seridó”, p. 56), ora pela erotização, à la Adélia Prado, quando a quaresma se torna o tempo da “negação do jejum de prazer”. Quer seja: a lingua-gem na forma negativa firma-se como a expressão mais contundente da asserção gozosa.

Com “Matraga” (p. 21), o “carrego” do personagem roseano une-se ao do eu-lírico numa oração de entrega, despedida e aceitação. E aqui, o que era inversão converte-se em afirmação: ressonâncias polifônicas de um homem que é mais que um, mais que cem, mais que 350: são as polifonias bakhtinianas que cada um carrega dentro de si:

matraca silenciosaliturgia de augustoremoendo

moendodoendomoenda- bagaço de homem no altar dos sertões

de repente, a hora chegapai, filho e espírito santoagora só quero rezare carregar os meus carregos.

A religião é, todavia, questionada com uma ponta de ateísmo no soneto “Mater” (p. 41), cuja figura materna nada tem de divina: “aquela nossa senhora minha” é uma síntese admirável do que poderia ser mítico, mas, de fato, é fonte concreta de “minha tosca alegria”. A fé que maravilha, a constatação crua que faz doer “nos olhos de minha querida mãe”.

O prazer leva o poeta sertanejo a ser satânico, além de erótico, marcado às flores do mal. Por isso mesmo sua erva daninha, seu capim caprino (ou bo-vino) é (Você quis empregar esta palavra no sentido de anterioridade mesmo? Porque, se for de oposição, coloque ANTIPOESIA.)baudelaireano. Sua alma se alimenta da antepoesia. Mesmo sertão adentro, o campo que se abre é o urbano: bordéis, cinemas, a capital, etc. E nesse universo plurissignificante, algumas vezes, a chuva de intertextualidades é tão avassaladora, como em “Belle de jour” (p. 31), que o poema resvala para o nonsense.

não, não é catherinede novo em busca de bordéispara saciar a sede secreta de buñuel

é juliana, sim,bela na tarde cajazeiras;bela na tarde capital

remake do que ainda está por vir:surrealismo cinematográfico- quadro de dali em rascunho eterno

juliana, que caminha nas tardesinconscientesde sua beleza,

em primeiro plano, seu sorrisono the end, o silêncio e o sertão dialogam

Para que o litoral reverencie suas maçãs

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 201214

secretas: ela, protagonista de um filme de Almo-

dóvar.

Por outro lado, isso também seja dito, há poemas que detêm uma concisão admirável, reu-nindo em poucas imagens uma somatória rara e rica de significados. É o caso de “Os ferreiros”, um poema oswaldiano, no largo simples da caatinga (p. 35). Ou “Salieri” (p. 113):

no brilho da lâmina

só o corte do olharOu “Livro aberto” (p. 43):ser tão

abstratoquantoaságuasdomeu

sertão.

Ou “Curral” (p. 52):

- nunca consegui entendera melancolia que ecoavanos chocalhos das vacas!

Sem escapar dos laços de família, o sertão é outro núcleo duro do livro – este, desde o título do volume. Tal como no sertão graciliano ou rose-ano, a dimensão geográfica, a histórica e a social transcendem a etimologia do vocábulo e imergem o leitor na esfera daquilo que o eu-lírico chama de “metáfora”, mas que é, na verdade, mais que uma relação de semelhança e figurativização en-tre dois signos. O sertão, aqui, é fenomenologia. É essência. E ao se revelar assim, desprovido de dissonâncias e de dissimulações, traça um arco órfico que vai, por exemplo, da dor melódica da zabumba, do triângulo e da sanfona à dor da gui-tarra elétrica e das melodias estrangeiras.

O sertão é o mar ressignificado pelo homem e no homem. No longo “Mário de Andrade visita o Sertão” (p. 47), o eu-lírico revisita Mário, numa teia de intertextualidades, e cose o universo poé-tico e a biografia marioandradinas, tendo sempre

como horizonte a linha imaginária do sertão. Ou o imaginário do sertão, melhor dizendo. Seguido do refrão: “ninguém lê mário de andrade”. Essa constatação-protesto, marcadamente musical, sus-tenta e complementa-se em outra: “(carro subindo descendo / deixando mário na poeira / buscando oswald no horizonte / (avante!!!))” (p. 56).

Ilude-se muito quem crê que o poeta oponha ou prefira um modernista a outro. Linaldo Guedes sabe que, antes de tudo, a morada da poesia não tem proprietário exclusivo. Não é de Mário. Nem de Oswald. Nem de ninguém.

A poesia de LG é cheia de vida, de biografias, de autobiografia. Mas é plena também de metalin-guagem, a grande questão que a Pós-modernidade soube resgatar da Antiguidade Clássica. A poesia (sempre), como questão em aberto, gera desas-sossego na alma do poeta. Ele quer ousar mais. Quer que a palavra seja mais concreta – melhor dizendo: ele busca a solidez da palavra ante a li-quidez do amor. Essa materialidade da palavra não esconde, em LG, o medo que habitou a criança e que hoje habita o adulto de Metáforas... E assim, o medo converte-se na moeda de troca que, de sopetão, abre espaço para o erotismo.

Um erotismo cru. Um erotismo dissimulado. Quando cru, estabiliza-se na descrição do

objeto sexual ou do objeto investido de sexualida-de. É o caso do palato tomado como extensão do pênis. O que não deixa de ser curioso, já que o palato tem mais proximidade física com o útero e com a vulva do que com o pênis. Algo do universo masculino “se perdeu, está se perdendo”, para parodiar a canção popular. Ou, quem sabe, algo do universo masculino esteja se transformando e indo para além do estabelecido.

O erotismo cru continua na conversa do eu--lírico com um duende que está pousado sobre seu pênis. Uma situação, no mínimo, inusitada, num primeiro momento, mas que resgata a criança e o adulto vivenciando a fantasia da “maçã do paraíso”. Maçã podre, segundo o poema. Quer seja: agora não é o místico, mas o mítico que é devorado às golfadas pela ironia.

O erotismo cru se alista em versos como “sementes plantadas nas tuas pernas turvas / sê-mens a escorrer por entre pelos e curvas”, onde a rima fechada na vogal tônica /u/ intermete a libido no lado mais recôndito do corpo feminino (“Uvas”, p. 76). E converte-se em indagação sarcástica em “Singular” (p. 79), quando a luva toma o lugar da

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vulva. Aqui se mete a mão através do anagrama, o que materializa ainda mais a acidez do poema em forma interrogativa, provocando o leitor pelo vocativo direto: por que ficar com a genitália feminina se se tem o objeto industrializado com a mesma cavidade e à disposição dos mesmos dedos? Vejamos a íntegra do poema:

Apenas uma:Se tu, luva,Se encaixa em minhas mãos

Por que procurar outra vulva?

O erotismo delicado, lascivo e sensual está, por exemplo, no terceto “Posse” (p. 78), em que a vassalagem feudal dos dedos se apossa da pelve, zona erógena onde dançam desejos masculinos e femininos em volteios de sexo sem fim. Os dedos, vale frisar, são o depositário do erotismo desse eu--lírico: ora para fazê-los percorrer vulvas e luvas, ora para serem chupados com o sabor da amada, de cujas entranhas sai o “prazer da glicose”. Os açúcares da moenda do amor adoçam a carne do homem e o imaginário do menino. O “homenino” também se projeta na arquitetura do sexo: “Me-nino do engenho”, p. 86:

passar a tarde chupando meus dedos com teu sabor,

feito rolete de cana,

com uma diferença:

o bagaço, aqui, tem cheiro de orgasmo

moenda que mói e mói nossos ardis

- engenhos de desejos para senhores dos tempos de antanho

(como se tudo fosse estranho,alheio ao próprio prazer da glicose que sai

de tuas entranhas).

Ou no drummondianamente resolvido “Amém” (p. 91):

amor quando cheganão faz toc, toc, toc

simplesmente derruba a portainvade nossa aorta

transforma o amadorna coisa sagrada

depois, ora pelo santo espírito insanopara que todo dia, todo ano

a oração se repitacom suor, sexo e libido.

“Cunilíngua” (p. 95) desenvolve-se como um caso de erotismo cru, mas, no último verso, é encharcado por uma sensualidade arrebatado-ra. O que vinha se configurando como descrição “cerebral” de um coito desdobra-se em “flores e rosas para minha língua”.

O universo feudal volta com força em “Usucapião” (p. 101), cujos versos, de ritmo marcadamente acentuados, trançam a trama da língua no corpo da amada. Uma curiosidade: esse poema encerra-se com o adjetivo “gris” – que não sabemos se se refere à maturidade do amante, da amada ou de ambos. Na verdade, isso pouco importa, já que conduz o leitor para uma reflexão densa, quem sabe, a mais cerrada do livro: a que fala da morte.

Embora presente em apenas dois poemas (não por acaso, os que encerram o volume), a re-flexão sobre o autoenvelhecimento e a morte anun-ciada (“Partida”, p. 135) e a hora final é louvada pelos anjos – um de seus anjos, sabemos por outros poemas, é Augusto. O eu-lírico se despede com o consentimento da poesia (“Dostoievskiana”, p. 136):

Os ganchosJá estãoMe levando

Os anjos louvam: é hora de dormir.

Esse eu, que discorre sobre a inevitabilidade da própria morte e que a assume com desprendi-mento e leveza de ser, também vive a vida muito à vontade. Em “Auto-ajuda” (p. 129), reúne, no mesmo poema, Cortázar e Paulo Coelho – como a dizer que a arte e a vida de autoajuda não se dis-tinguem. Essa confortável mobilidade de ser o que quer reaparece na reabilitação do surrado lema

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guevariano em “Sem perder a ternura” (p. 131).Metalinguístico, não perde oportunidade

de pôr em cheque tanto o ato de criação poética quanto a eficácia de sua linguagem no rol da práxis cotidiana. “Poética” (p. 92) é uma sonora e visual declaração de amor a dois cantadores tão distantes no tempo e tão próximos na irreverência lírica: Rita Lee e Rimbaud:

poeta é bicho esquisitotodo mês sangra

(versos)e aduba loucurasvermelhascom frases azuis.

A metalinguagem se introduz também em “E-book” (p. 67), poema feito nos moldes borge-anos: fusão da realidade com o imaginário. Se retomarmos o título do poema, aí sim, caímos de vez na cibercultura virtual – e a dimensão do poe-ma ganha maior verticalidade, o que se contrapõe à busca das “sólidas palavras” de “Das vontades de um homem” (p. 65). Aliás, esse movimento de afirmação e seu oposto (negação ou agnosticis-mo) percorrem a poética de Linaldo Guedes em Metáforas..., do início ao fim.

Ele é um poeta que não introduz um sertão (pré) configurado, nem um amor monogâmico, nem uma poética estruturada na cartilha de pro-cedimentos didáticos ou em manuais da moda. A diversidade é que dá o tom de unidade ao livro.

Talvez agora entendamos bem mais o senti-do da palavra “duelo”, contida no título do volume. O eu-lírico se debate entre a vida e a (meta)lingua-gem, em cada página, em cada verso, em cada palavra. Há um esmero em construir-se um livro leve e denso, generoso no número de páginas e, ao mesmo tempo, sintetizado na elaboração das imagens, dos ritmos, das ideias.

Um livro em que a metáfora está presente mais no título do volume do que na feitura dos poemas. Felizmente, o poeta soube evitar essa e outras facilidades tão comuns nesses tempos de “poesia” à mancheia. “Poesia” de “poetas” que encontraram na facilidade do teclado do compu-tador, na divulgação da Internet, ou em editoras pré-pagas um modo de expor suas sandices, suas ignorâncias acerca da produção poética – tanto canônica como contemporânea.

Linaldo Guedes, com Metáforas para um duelo no sertão, revela-se, na maioria dos poemas, um poeta maduro, desbravador da linguagem da poesia, íntimo da produção de grandes poetas e prosadores. Considere-se, para encerrarmos, “Entre o rio e o mar” (p. 17):

tem semanas que acordo janeiroversos feitos cabralseco ácido sertãolâmina e pedra na poesiagalo escondendo a manhãdias em que custam suoresrecordar outros valoreslembrar dos asfaltos de jambeirosandar pelas ruas, jaguaribe: há que sempre mirar adiantenadar nada no capibaribecolhendo feijão e poemashá na cozinha da casa grande tão pequena

tem semanas que me fixo em junhosversos vêm de viníciussolto louco sezãosonetos infiéis em minha castidadeelegias e sempre um grande amordias que valem suoresvale o hoje, o agora, vale o jácajazeiras´s só uma página e saudadesoutras ruas outros olhos outras coresmadalenas e seus códigos secretosmergulha poesia tambaú- plantar sonhos e fantasiasno quarto, onde deve ficar minha pequena

tem semanas e dias dezembroonde espero, só nos livros:é natal, temos de recomeçar.

3. À guisa de conclusão

A obra Metáforas para um duelo no sertão instiga o leitor a esperar pelo próximo livro de Linaldo Guedes. Um livro que, certamente, não se desapropriará dos golpes de solidão, os mais diversos, que aqui ficaram marcados pelas mais variadas faces do desejo: a família, a religiosidade, o erotismo, o sol, o sorriso, a dor de viver...

(Dedico este artigo às queridas amigas, Ana Adelaide Tavares, Vilani de Sousa e Vitória Lima).

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Navas e Salvato Teles de Menezes. Lisboa: Livros Horizonte,

1981.

REFE

RÊN

CIAS

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 201218

18Bertrand de Souza Lira

Professor Doutor do Departamento de Comunicação em Mídias Digitais (Demid-CCHLA, Campus I, UFPB)

O imaginário da luz e da sombra

no expressionismo alemão

Introdução

Nas décadas de convulsão social e política (I Guerra Mundial, Revolução Russa) e de grande efervescência cultural, o cinema encontrou terre-no fértil, com a emersão das vanguardas artís-ticas, que refletiam e questionavam o momento histórico, rompendo padrões vigentes e propon-do alternativas para o fazer artístico. Essas pro-postas vão repercutir no fazer cinematográfico, com a transposição de ideias homólogas para a nova arte e o surgimento, no próprio cinema, de vanguardas congêneres. O expressionismo ale-

mão foi uma delas. Nosso interesse nesse movimento para

a presente abordagem diz respeito ao empre-go expressivo da luz e da sombra, nas ima-gens cinematográficas produzidas nos filmes do período compreendido entre 1919 e 1925-7, analisado pela historiadora e crítica de ci-nema Lotte Eisner (1985). Dos filmes do cha-mado expressionismo alemão, selecionamos duas de suas obras emblemáticas: “Nosfera-tu” e “Fausto” (W. F. Murnau, 1922 e 1926), por entender que elas encerram, em suas imagens, uma construção de sombra e de luz,

Resumo

A representação da luz (e da sombra, sua antítese), nas artes plásticas, na fotografia e no cinema, tem contribuído para produzir e repercutir sentido no incons-ciente coletivo, através das imagens imaginadas e materializadas por esses artistas. Este estudo discute a representação da luz e da sombra em “Nosferatu” e “Fausto” (W. F. Murnau, 1922 e 1926), porque são filmes que apresentam um sofisticado tratamento com a luz (e a sombra), na composição de uma atmosfera visual, com forte carga simbólica e impregnada de sentidos.

Palavras-chave: Luz e sombra; fotografia de cinema; produção de sentido.

E-mail: [email protected]

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com as significações trabalhadas pela antropolo-gia do imaginário.

A invenção do cinema contribuiu para que a humanidade, de forma original - como nenhum outro meio de representação, desde que o ho-mem passou a alienar suas imagens nos mais di-versos suportes – exteriorizasse os seus proces-sos imaginários (MORIN, 1997). A reprodução mecânica das imagens do real com a invenção da fotografia, em 1839, e do cinema, em 1895, ampliou a experiência do olhar a partir do Século XIX. O cinema, em particular, veio moldar as for-mas de percepção do mundo e a nossa vivência em relação ao tempo e ao espaço.

A arquitetura imagética construída pela articulação entre luz e sombra é o tema deste texto, em que discutiremos sua elaboração na produção de sentido. Esse sentido carrega a par-ticipação das significações imaginárias, que a luz e a sombra vêm engendrando no imaginário coletivo, ao longo da existência humana, através de sua experiência cotidiana.

Cinema e imaginário

A relação indissociável entre cinema e ima-ginário está fundada, sobretudo, na semelhança entre um filme e o nosso psiquismo. Empírica e inconscientemente, assinala Morin (1997), os inventores do cinema emprestaram ao veícu-lo estruturas homólogas às do imaginário. Está presente no cinema, como no espírito humano, a capacidade de apreender, de conservar e de criar imagens animadas. Pelas participações afetivas do espectador, o cinematógrafo vira cinema. “As técnicas do cinema são provocações, acelerações e intensificações da projeção-identificação” (MO-RIN, 1997, p. 121). Portanto, os processos de projeção-identificação (ou de participações afe-tivas no seio das imagens objetivas) acontecem de forma análoga na vida cotidiana e no cinema.

A realidade afetiva das imagens cinema-tográficas, impregnadas de subjetividade e de magia, compensa a ausência de uma realidade prática nessas imagens, mas o espectador, ao se identificar com os jogos de sombra e de luz e com as formas que se configuram na tela, põe em movimento suas projeções-identificações que são próprias da vida cotidiana. Esse acréscimo de subjetividade que o espectador confere às imagens em movimento é feito porque

o cinematógrafo dispõe do encanto da imagem, ou seja, renova ou exalta a visão das coisas ba-nais e quotidianas. A qualidade implícita do

duplo, os poderes da sombra e uma certa sen-sibilidade à fantasmagoria das coisas, reúnem os seus prestígios milenários no seio da amplia-ção fotogênica, e atraem as projeções-identifi-cações imaginárias melhor, muitas vezes, que a própria vida prática (MORIN, 1997, p.116, grifo do autor). A realidade do imaginário não deve, no en-

tender de Morin, ser encarada na esfera do erro ou da ingenuidade. No comércio ativo do homem com o mundo que o cerca, seu espírito se en-contra aberto às solicitações que daí emanam e, nessa troca, perpassa toda a sorte de parti-cipações reais e imaginárias, que são assegura-das e perturbadas pelo imaginário que, “como encruzilhada das mais diversas ciências” (PITTA, 2005), lida com a imaginação, essa faculdade do homem de atribuir significado ao mundo mate-rial e subjetivo, assinalando seu trajeto no plano do simbólico.

Nortearão esta discussão, sobretudo, os postulados de Durand (2002), que trabalha uma série de símbolos com os quais a humanidade tem lidado, desde os primórdios de sua exis-tência, agrupando-os em conjuntos, segundo seu isomorfismo semântico, em que os gestos dominantes ou reflexos primordiais (dominante postural, digestiva e copulatória) têm papel fun-damental no princípio organizador desses sím-bolos. Trabalharemos os símbolos reunidos por Durand, numa estrutura mais geral, que ele de-nomina de Regime Diurno e Regime Noturno da imagem, em que se agrupam os símbolos diairé-ticos, ascensionais e espetaculares - porque têm perfeita homologia com as significações imagi-nárias da luz e do Bem - e os símbolos nicto-mórficos (da noite), catamórficos (da queda) e teriomórficos (do animal), que caminham a par com a sombra e com o Mal. Ocupar-nos-emos dos símbolos do Regime Noturno, que se cons-tituem uma negação ao Regime Diurno, que, no entender de Durand, trabalha, essencialmente, com a antítese. A simbologia nictomórfica e as significações a ela correspondentes (a noite, as trevas, as sombras, o Mal, o nefasto, a queda) farão o contraponto à luz (o Bem, o Divino) e aos símbolos do Regime Diurno materializados nas imagens cinematográficas.

Tomamos emprestado de Durand (1988) o conceito de símbolo e de imaginação simbólica, em sua abordagem sobre as formas de represen-tação do mundo. Segundo o autor, a consciência dispõe de diferentes graus da imagem no ato de representar o mundo. Uma gradação conforme a

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imagem seja uma cópia fidedigna da sensação (representação direta) ou apenas dê indícios do objeto (representação indireta).

Em “Tratado de história das religiões” (1998), Eliade revela o quanto os símbolos e os temas míticos ainda persistem na psique do ho-mem de hoje, presença disseminada pelas tradi-ções religiosas de toda a humanidade. O autor postula a existência de uma lógica interna dos símbolos, que se apresentariam encadeados en-tre si de forma coerente. Na perspectiva da antro-pologia substancialista, representada por Mircea Eliade, Gilbert Durand e Paul Ricoeur, observam Laplatine e Trindade que

as imagens e o imaginário são sinônimos do simbólico, pois as imagens são formas que contêm sentidos afetivos universais ou arque-típicos, cujas explicações remetem a estruturas do inconsciente (Jung, Campbell), ou mesmo às estruturas biopsíquicas e sociais da espécie hu-mana (Durand). (...) Consequentemente, toda e qualquer imagem, ao mesmo tempo produto e produtora do imaginário, passa a ter o caráter de sagrado, devido à sua universalidade e à sua emergência do inconsciente (1996, p. 16).

Selecionamos duas obras (“Nosferatu” e “Fausto”) que, em nosso entender, fornecem material imagético apropriado para se discutir sobre as significações imaginárias da luz e da sombra e sua experiência estética no cinema ex-pressionista alemão. A leitura empreendida aqui adota uma metodologia que contextualiza a obra na época de sua produção e prioriza uma análise do estilo e da técnica vigentes no período e dos anseios expressivos dos seus autores, sem per-der de vista o conteúdo e a época retratados na narrativa fílmica e, principalmente, a arquitetura de luz e de sombra, engendrando significados outros além daqueles imediatamente visíveis.

“Nosferatu” e “Fausto” serão analisados tendo como leitmotiv a luz e a sombra e suas significações imaginárias, baseadas nas teorias antropológicas do imaginário postuladas por Gilbert Durand e Mircea Eliade. Para proceder a uma leitura crítica dos filmes, aproximamo--nos de pesquisadores do cinema alemão da primeira metade do Século XX, cujas obras são referências obrigatórias para quem envereda no tema. Além de Eisner (1985) e de Sigfried Kra-caeur (1988), na Alemanha, Luiz Nazário (1983, 1999), no Brasil, traz contribuições imprescindí-veis para se refletir sobre a importância estética dessas obras, sua sofisticação no trato com a luz

e na composição de uma atmosfera visual com forte carga simbólica. São imagens produzidas por uma iluminação expressiva, ela mesma por-tadora de sentidos, que contribuem para a narra-tiva de uma obra, com significações outras além das visíveis ou literais.

“A leitura da imagem não é imediata”, sa-lienta Xavier (1988), pois estão em jogo fatores outros determinantes desse processo, que en-volvem um espectador ativo e participante. São mediações na esfera do olhar de quem produz a imagem e de quem a contempla, incluindo os có-digos envolvidos e as circunstâncias de sua recep-ção. Segundo o autor, “a força de encantamento” das imagens do cinema reside seguramente na “simulação de certo tipo de sujeito-do-olhar”, en-gendrado pelo dispositivo cinematográfico.

A partir dessas valorosas contribuições metodológicas, empreendemos nossa aprecia-ção sobre as obras selecionadas para esta inves-tigação, guiados pelas seguintes questões: Que significações imaginárias encerram a arquitetura imagética da sombra e da luz? O que nos reve-lam os instigantes jogos de luz e de sombra nas imagens nascidas do imaginário do artista fotó-grafo ou cineasta? Essas são indagações a serem trabalhadas nesta abordagem, com base nas teo-rias antropológicas do imaginário, sem esquecer, no entanto, que a leitura das obras em questão encerra uma visão pessoal do pesquisador movi-da por afetos, paixões, interesses e sentimentos que, enfim, são, ao mesmo tempo, fruto e ali-mento do seu próprio imaginário.

Os filmes “Nosferatu” e “Fausto”

A ação dramática de “Fausto” se desen-rola no final da Idade Média, dividida em duas partes; a primeira narra o pacto do alquimista Fausto com o diabo Mefistófeles, e a segunda, o drama de Goethe sobre a paixão de Fausto por Gretchen. É considerado o que o cinema alemão nos legou de mais notável, em termos de jogo de luz e de sombra, e um dos mais emblemáticos dos filmes expressionistas. “Fausto” foi realizado em 1926, às vésperas de o cinema passar de sua fase “muda” para a sonora, quando se conse-guiu, pela primeira vez, sincronizar um fonógrafo a um projetor de imagens. A atmosfera mística do filme está presente já nos créditos iniciais, com fonte no estilo gótico. Na sequência seguin-te, as legendas anunciam o terror que virá. A pri-meira cena de “Fausto” apresenta figuras esque-léticas cavalgando entre densas nuvens. São os quatro cavaleiros do Apocalipse que compõem

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uma visão aterradora e que, nas artes plásticas, têm o equivalente na gravura homônima de Dürer (1471-1528), pioneiro no uso dessa técnica grá-fica como uma arte maior, em que Murnau deve ter buscado inspiração.

Ao abordar os símbolos teriomórficos, Du-rand (2002, p. 69-70) demonstra o quanto as re-presentações animais, desde cedo, fazem parte do nosso imaginário e o quanto “essa orientação teriomórfica da imaginação forma uma camada profunda, que a experiência nunca poderá con-tradizer, de tal modo que o imaginário é refra-tário ao desmentido experimental.” O esquema da animação, derivado dos reflexos dominantes, tem sua valorização negativa no fervilhamento, no movimento brusco e na agitação, associados ao caos e à experiência primeira da queda no nascimento. O autor identifica uma afinidade do tema do Mal na obra de Hugo, Byron e Goethe, com um sentido negativo dos movimentos brus-cos próprios da fuga, da perseguição fatal e da errância, aos quais está associado o simbolismo do cavalo, “isomorfo das trevas e do inferno”, ligado ao Mal e à Morte em diversas culturas. A cena em questão é apocalíptica e anuncia a tragédia que se abaterá sobre a humanidade: a guerra, a peste, a fome e a morte cavalgam em corcéis negros, num cortejo fúnebre aterrador.

A isomorfia do esquema do animado e do teriomórfico é evidenciada por Durand, quando faz analogias entre essas imagens fugidias do movimento animal e os sentimentos de mal-estar dele derivados, lembrando que pragas de peque-nos animais (gafanhotos, rãs, etc.), que se agi-tam em desordem, são imagens associadas ao Apocalipse. Que imagem mais medonha do que a agitação larvar?

Voltando à análise do filme “Fausto”, após o primeiro embate entre o Anjo e Mefistófeles, uma luz ofuscante – de um sol incandescente – invade a tela. Na sequência seguinte, vemos Mefistófeles de costas, com asas negras gigan-tescas, que ocupavam dois terços da tela. Seu perfil está parcialmente iluminado por uma luz cuja origem, até então, desconhecemos. Feixes de luz riscam, de forma intermitente, suas asas negras. Veremos, então, que a luz reveladora de sua fisionomia provém da espada incandescente do Anjo, que se nos apresenta em seu comple-to resplendor. Temos um embate verbal entre o Bem e o Mal, cuja tradução imagética é feita pelo contraste entre luz e sombra, branco e negro, com as significações imaginárias vigorosas que dele advêm.

O enquadramento que segue é de uma

grande beleza plástica: a silhueta negra de Me-fistófeles, com suas asas descomunais ocupando todo o primeiro plano, contrasta fortemente com a brancura ofuscante do Anjo guerreiro em con-traplano. Vemos Fausto, o alquimista que segura um livro de frente a um globo rodeado de anéis luminosos. Em sua volta, aprendizes magnetiza-dos com os ensinamentos do Mestre: “São mara-vilhosas todas as coisas do céu e da terra! Mas maravilha suprema é a liberdade do homem de poder escolher entre o Bem e o Mal.”

É o Anjo, dessa vez, que ocupa os dois terços da tela, numa composição em diagonal. No canto inferior direito, o perfil de Mefistófeles, quase todo sombreado, iluminado apenas em sua porção superior pela luz que emana do Anjo, o que o torna mais assustador. O Anjo é todo luz. De sua espada, emanam raios luminosos. Há uma contraluz que o contorna como uma aura. A luz que o ilumina vem de cima e de frente. Sua vestimenta de guerreiro medieval é de uma bran-cura intensa, o que o torna uma figura irradiante (Ilustração 01). Luz e espada (gládio), como assi-nala Durand (2002), são símbolos ascensionais e verticalizantes no esquema da elevação (em tor-no do qual gravitam os símbolos diairéticos ou da divisão, da distinção e da purificação), que se opõem aos esquemas da queda, da descida, da interioridade e das trevas. Com sua vestimenta e espada (estilizadas) de cavaleiro medieval, o Anjo, em “Fausto”, é nitidamente um guerreiro. Asa e espada são representações da verticali-dade e da ascensão, valorizadas positivamente porque são promessas da elevação, do voo, da limpidez, da correção, da aurora e da luz, numa constelação de símbolos benfazejos que possi-bilitam o acesso à esfera do celestial, do divino.

Ilustração 01

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A fotografia de “Fausto” - intencionalmente arquitetada para reforçar a atmosfera de terror, caos, niilismo e dor - recorre a imagens arquetí-picas disseminadas nos textos bíblicos e no lega-do das artes plásticas, exacerbando o contraste entre luz e sombra, preto e branco, e trabalhando esses matizes com suas significações imaginá-rias do Bem e do Mal, do divino e do satânico. O contraste dramatiza a imagem, aumenta seu impacto emocional no espectador de um quadro ou de um filme, porque esconde nas sombras o que não tem interesse para a mensagem, real-ça na luz o que deve ser visto e, principalmente, traz com as sombras os sentimentos de medo do desconhecido, do que não se pode ver, de um perigo sempre iminente. “A luz natural e artificial é um problema fundamental; sua distribuição, o ritmo de sua aparição ou de sua desaparição, condiciona fisiologicamente o homem” (SCHÖE-FFER, citado por ALEKAN, 1979, p. 02)1. Esse condicionamento, acrescenta Alekan, é também da ordem da interioridade, do psicológico. Ao discorrer sobre a concepção imagética de “Faus-to”, Eisner (1985) reconhece, nessa obra, uma síntese da atmosfera de outros filmes do expres-sionismo alemão e enfatiza sua repercussão na psique do espectador.

A nictofilia da alma alemã, reivindicada por Eisner, e os sentimentos a ela vinculados (o Mal, as trevas, os temores ancestrais) encontrarão, nos filmes expressionistas, um ambiente fomen-tador para sua plena expansão. A noite é quase uma personagem em filmes como “Nosferatu” e “Caligari”. O clima de inquietação suscitado com a aproximação da noite e a negrura que a acom-panha levam a psique a vincular irracionalmente a cor negra e a escuridão ao Mal, às trevas, à cegueira e ao tempo implacável. Para Eliade (ci-tado por DURAND, 2002 p. 92), “o tempo é negro porque irracional, sem piedade”.

A estética e a temática do expressionismo alemão fundem, amiúde, de forma magistral, for-ma e conteúdo. A transposição do claro-escuro do pintor holandês, dos “efeitos mágicos de luz” e do “gosto pelo fantástico que prenunciava o ex-pressionismo” deveu-se à vinda, para as hostes do cinema, do revolucionário encenador Max Rei-nhardt (NAZÁRIO, 1999). Com seus mitos e fes-tas maléficas, sonâmbulos e dementes, vampiros e possuídos e outras criaturas estranhas, os fil-mes do expressionismo alemão envolvem o es-pectador num clima de sofrimento, desesperan-

ça, de morbidez e de terror, como em “Fausto”, em que uma peste inexplicável devasta a cidade. Nas artes plásticas, no teatro e no cinema, os expressionistas primavam pela materialização, em imagens, da angústia, do medo e do horror face à morte, ao destino, ao tempo e aos temores do pós-guerra. Essas imagens deveriam expres-sar esses sentimentos não apenas no conteúdo, mas também na sua forma, com todo o poder de sugestão que elas pudessem potencializar. Nas obras mais emblemáticas do movimento, a foto-grafia se distancia do realismo e opta por uma exacerbação da distorção da arquitetura dos ce-nários, dos objetos de cena, da maquiagem e do figurino dos personagens, além da atuação dos atores, que passa ao largo de uma interpretação naturalista (NAZÁRIO, 1983).

O monocromatismo dessas imagens se presta eficazmente à atmosfera de terror preten-dida. A fotografia em preto e branco de “Fausto” e de “Nosferatu” acentua, ainda mais, o comba-te eterno entre luz e sombra e, ao se imbricar no tema, desempenha papel fundamental, como um recurso dramático, e produz forte impacto emocional no espectador por toda a significação mística que carrega. Ao reduzir a rica paleta de cores a dois tons extremos e a gradações do cin-za de um extremo a outro, a fotografia em preto e branco representa, com mais eficácia, as re-lações antitéticas do claro-escuro. “A noite é o espaço-tempo não preênsil. Sua representação plástica pelo preto é o valor paroxístico da an-gústia humana” (ALEKAN, 1979, p. 93).

“Nosferatu” e suas significações imaginárias

Em “Nosferatu, uma sinfonia de horror”, baseada no romance “Drácula”, de Bram Stoker, a ação se passa em 1838, na cidade de Bremen, e o enredo trata da história do corretor Hutter, que viaja à Costa do Mar Báltico para encontrar o misterioso Conde Orlock, interessado na compra de uma casa “deserta e agradável” na cidade. No percurso, Hutter se hospeda numa estalagem e deixa atônitos os moradores da região, que o advertem da maldição do local que ele pretende visitar. À noite, um lobo agitado dá os primeiros sinais do clima sinistro da viagem. Vamos encon-trar aqui o isomorfismo do animado associado às significações maléficas imaginárias dos símbo-los teriomórficos discutidos por Durand. O autor revela, no bestiário da imaginação simbólica, o papel desempenhado pelas figuras cinomórficas:

1. As citações do livro Des lombres et des lumières de Henri Alekan foram traduzidas por nós.

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O lobo é ainda no século XX um símbolo infan-til de medo, pânico, de ameaça, de punição. (...) Num pensamento mais evoluído, o lobo é assimilado aos deuses da morte e aos gênios infernais. (...) É, portanto, na goela animal que vêm concentrar todos os fantasmas terrificantes da animalidade: agitação, mastigação agressiva, grunhidos e rugidos sinistros (DURAND, 2002, p. 85-86).

O primeiro encontro do Conde Orlock com Hutter acontece no interior do castelo. Orlock surge de uma passagem arqueada e sombria, que se assemelha a uma enorme goela animal. O próprio Nosferatu, duplo do Conde Orlock, tem uma aparência cinomórfica, com suas orelhas pontudas, olhos grandes e esbugalhados, olhei-ras profundas, supercílios volumosos e arquea-dos como asas de uma ave e dentes longos e afia-dos. Suas mãos, finas e anormalmente longas, assemelham-se a garras. Veste uma sobrecasaca negra, ajustada ao corpo esquálido e corcunda. “Nosferatu”, lê-se numa legenda, “essa palavra não parece com o som do canto do pássaro da morte da meia-noite?”

Uma carruagem conduzida por um estra-nho cocheiro surge do nada, num ritmo frenético (efeito acelerado da câmera ou fast motion), e o apanha. Coche e cocheiro portam um figurino funesto, composto de longas capas negras, que vestem, inclusive, os cavalos, o que conferindo muita semelhança com um antigo transporte funerário. Na cena seguinte, o efeito da câme-ra acelerada imprime uma velocidade insólita ao coche, às densas nuvens e à vegetação que se agita. Acrescido a isso, um efeito de solarização (a imagem torna-se negativa com a inversão do tom das áreas claras e escuras) dá à ação um aspecto aterrador, que se constitui a passagem de Hutter para um mundo fantasmagórico. “O negativo presta-se especialmente para evocar o outro mundo, um reino espectral, em que coi-sas vivas se tornam esqueletos, um demoníaco, macabro antimundo” (STEPHENSON E DEBRIX, 1969, p.143).

Temos aí, numa mesma imagem, a conver-gência de símbolos teriomórficos, catamórficos e nictomórficos: o cavalo e sua isomorfia com as imagens funestas, e o aceleramento exacerbado de sua cavalgada, isomorfo do caos e da queda. A imagem em negativo transforma dia em noite, com todas as suas significações maléficas atri-buídas pelo Regime Diurno da imagem.

As imagens caóticas e repugnantes do fer-vilhamento e da agitação vão estar presentes

na sequência seguinte, quando uma nuvem de morcegos, que se agitam em torno da torre do castelo, prenuncia a tragédia. Ela se instala, de fato, com a chegada de Nosferatu (o Conde Orlo-ck) e sua praga de ratos pestíferos, infestando a barca que o conduz a Bremen e dizimando todos os seus tripulantes. A imagem da agitação dos ratos é recorrente, ao longo do filme, e reforça sua atmosfera de terror. Temos mais um mo-mento emblemático da animação como anúncio macabro na cena (com efeito de aceleramento da câmera), em que Nosferatu empilha, freneti-camente, caixões mortuários sobre uma carroça que, veremos em seguida, serão transportados por barqueiros, através de um rio agitado, antes de embarcarem na nau da morte. A imagem dos barqueiros descendo o rio evoca o mito de Ca-ronte, o barqueiro condutor dos mortos para o Hades, o Mundo Inferior, cuja entrada tem como vigia Cérbero, o cão de guarda de três cabeças.

Em “Nosferatu”, é o sobrenatural, o funes-to, que anima os objetos: as portas se abrem e fecham sozinhas. A nau fantasma, depois de dizimada toda a sua tripulação, chega ao porto sem timoneiro, solene e assustadora. O próprio Nosferatu age como um autômato ao se erguer do sarcófago como se levitasse. Nessa obra, Mur-nau não explorou, de forma paroxística, o emba-te luz-sombra, como fez em Fausto, quatro anos depois. No entanto, lega ao cinema momentos surpreendentes do uso da sombra como arqué-tipo do horror.

É a sombra ameaçadora de Nosferatu que toca, em primeiro lugar, suas vítimas. Murnau e o fotógrafo Fritz Arno souberam trabalhar com a significação terrificante da sombra “projetada” de um ser que se move, extraindo daí seu poten-cial expressivo. É essa relação notável entre obje-to e sombra que é magistralmente explorada nos ataques do vampiro. Na segunda, a anunciação aterradora do Conde Orlock, na pele de Nosfe-ratu, é construída numa alternância, em rápida fusão, de um plano aberto a outro fechado, que torna mais violento o efeito de horror.

Nosferatu se apresenta em duplo: sua sombra ampliada se projeta na parede ao fundo e dá a impressão de dois seres postados lado a lado. Quando ele chega à porta dos aposentos de Hutter, um bordejamento sinistro de luz contor-na sua figura esquálida e lhe confere um aspecto ainda mais fantasmagórico. Lentamente, como se deslizasse, ele avança sobre sua presa. É a sombra de suas mãos, agigantadas ainda mais pelo efeito da iluminação, que primeiro se pro-jeta sobre Hutter antes do contato físico de fato.

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Da mesma forma, quando consumado o ato, ve-mos sua sombra deixar o corpo inerte do jovem corretor.

A sombra, nesse sentido, apresenta-se em sua morfologia como algo mais aterrador do que a própria criatura que a produz, simplesmente porque é uma sombra, com toda a valorização simbólica negativa de sua natureza antiluz, mas também porque maior e mais disforme do que o objeto que a projeta. Esse efeito de sombra lançada é mais impactante ainda quando o vam-piro sobe as escadas que levam ao quarto onde se encontra Ellen, a jovem esposa de Hutter. Sua sombra se mostra descomunal e desproporcional ao cenário: a porta do quarto, por exemplo, pa-rece minúscula face ao tamanho de suas mãos. A sombra do corrimão, geometricamente proje-tada na parede, forma, com a sombra disforme de Nosferatu, uma insólita composição de uma beleza plástica intrigante (Ilustração 02).

Para Nazário, a significação da sombra vai muito além de sua materialidade física:

A sombra é a materialidade do inconsciente, do lado obscuro da mente, do material reprimido. Ela é atributo daqueles personagens proscritos pela lei, pela natureza e pelo Bem, obrigados a viver na clandestinidade, nas trevas, num sono intermitente (NAZÁRIO, 1983, p. 23).

O poder assombroso das imagens supraci-tadas reside não só na dimensão gigantesca da sombra que se move, mas também, e principal-mente, na estratégia de não mostrar ao espec-tador o objeto que a provoca. A ameaça do des-conhecido, do que não se vê, ganha, nesse uso magistral da iluminação, uma dimensão fantásti-ca, surreal, que, certamente, levou as plateias da época a um estado de horror cataléptico. Martin (1990) discute duas funções no uso da sombra: uma elíptica e outra simbólica. Na primeira, a sombra toma lugar do objeto na ação; é o caso da sombra de Nosferatu sobre suas vítimas. Na segunda, carrega outra significação que não aquela expressa na imagem. O emprego expres-sivo da luz e da sombra, nos filmes alemães des-se período, é notado por Kracauer (1988, p. 124-5), para quem “a luz dos filmes expressionistas é

Ilustração 02

uma luz irreal, que ilumina paisagens interiores e revela conflitos da alma humana (...). Essa luz ajuda a enfatizar os acontecimentos irracionais da vida instintiva.”

Conclusão

A contundência das imagens dos filmes aqui analisados e de outras películas do cinema expressionista teve forte impacto nas cinemato-grafias mundiais, influenciou todo o cinema ime-diatamente ulterior e repercutiu, nos dias atuais, numa e noutra obra. A iluminação produzida para os filmes expressionistas tornou-se uma es-pecialidade dos estúdios alemães e foi reconhe-cida mundialmente como a grande contribuição daquele cinema. Selecionamos filmes que, sob nosso ponto de vista, apresentam, em sua arqui-tetura de iluminação, uma combinação expres-siva de luz e de sombra, em consonância com sua temática funesta. Trata-se de uma narrativa que encerra elementos da constelação simbóli-ca agrupada nos regimes estruturados por Du-rand. Com a análise das imagens de “Fausto” e de “Nosferatu”, acreditamos ter contemplado o enfoque pretendido.

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NOSFERATU. W.F. Murnau, Alemanha, 1922, filme em 35mm.

REFE

RÊN

CIAS

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26Djavan Antério1

Pierre Normando Gomes da Silva2

A imagem cinematográfica

como recurso icônico

Introdução

Cada vez mais sólido no cenário artístico, o cinema é fruto de uma produção complexa e muito bem estruturada, em que diferentes for-mas artísticas são conectadas e sincronizadas em prol de uma única e exclusiva produção. Se-gundo Loureiro (2008), dentre as artes, o cinema é capaz de ser a síntese total das mais diversas

manifestações estéticas do homem. Essa arte consegue apresentar a verdade dos conceitos e das categorias da ciência, através de situa-ções humanas típicas elaboradas por meio de uma série de técnicas desenvolvidas a partir de outras intervenções estéticas, tais como literatura, pintura, arquitetura, e música.

Em consonância com Duarte (2002), creditamos o cinema como atividade essencial

Resumo

Este artigo insere-se no âmbito de uma investigação à luz de conceitos e significados da imagem cinematográfica como recurso icônico para a exterio-rização da subjetividade. Objetiva-se revisar diferentes linhas de pensamento, fomentando uma discussão reflexiva acerca dessa temática. A metodologia adotada foi a revisão bibliográfica, realizada nas bases da Filosofia, das Artes e da Educação. Para isso, consultaram-se conceituadas obras literárias, que fo-ram analisadas com uma sistematização interpretativa previamente elaborada. Consideraram-se: (i) a essência epistemológica da imagem; (ii) os conceitos acerca da imagem e do pensamento; e (iii) as perspectivas ideológicas das potencialidades da imagem cinematográfica. Os estudos apresentam contextos diversificados, porém com similaridades conceituais em que é possível vis-lumbrar aproximações ideológicas acerca do uso da imagem cinematográfica como recurso da exteriorização da subjetividade crítico-reflexiva.

Palavras-chave: Educação; Imagem; Cinema; Pensamento.

1. Mestre em Educação pelo Centro de Educação da UFPB / Vinculação institucional: Professor do Departamento de Pedagogia (modalidade a distância) da mesma insti-tuição; Pesquisador membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Corporeidade, Cultura e Educação (GEPEC) - CNPq do Centro de Ciências da Saúde - Campus I da UFPB.2. Doutor em Educação pela UFRN, 2003 / Vinculação institucional: Professor Associado do Departamento de Educação Física/CCS/UFPB; Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Corporeidade, Cultura e Educação (GEPEC) - CNPq do Centro de Ciências da Saúde - Campus I da UFPB.

E-mail: [email protected]

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para a socialização e a inserção no mundo da cultura, que provoca e possibilita um processo reflexivo acerca do papel desempenhado pelos filmes na formação das pessoas em sociedades audiovisuais como a nossa. Para a autora, o cine-ma pode contribuir para desenvolver a capacidade de analisar, criticar, compreender e assimilar in-formação, além da experiência estética e textual que se pode obter por meio dos filmes. Duarte (2002) defende que o ato de ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais.

Do mesmo modo como temos buscado criar, nos diferentes níveis de ensino, estratégias para de-senvolver o interesse pela literatura, precisamos encontrar maneiras adequadas para estimular o gosto pelo cinema. (...) O cinema é um ins-trumento precioso, por exemplo, para ensinar o respeito aos valores, crenças e visões de mundo que orientam as práticas dos diferentes grupos sociais que integram as sociedades complexas (DUARTE, 2002, p.18).

Ao referenciar Pierre Bourdieu, Duarte (2002) diz que a experiência das pessoas com o cinema contribui para desenvolver o que se pode chamar de “competência para ver”. Porém, o de-senvolvimento de tal competência não se restringe ao simples ato de assistir a filmes, mas também de se ligar com o universo social e cultural dos indivíduos. A autora argumenta, ainda, que, em sociedades audiovisuais como a nossa, o domínio dessa linguagem é requisito fundamental para que possamos transitar em diferentes campos sociais.

Estudos como o de Vasques (2001) defen-dem o filme como fonte de conhecimento que se propõe a reconstruir uma realidade por meio de uma linguagem ficcional. Segundo autores especializados no assunto, a linguagem cinema-tográfica tem o mérito de permitir que a relação entre os filmes e o imaginário social aconteça de forma espontânea.

Para uns o cinema tem que emocionar. [...] Outros mais o verão como distração, algo que liberte das preocupações diárias, uma bela história, paisagem bonitas. Qualquer que seja abordagem, ele se tornou inegavelmente uma

das grandes fontes inspiradores e modeladoras de valores ideais, de vida, anseios e desejos e, é claro, responsável também por muitas frustra-ções, decepções e problemas pessoais e sociais (VASQUES, 2001, p. 68).

Procuramos, com este artigo, elencar uma discussão à luz de conceitos e significados da ima-gem cinematográfica como recurso icônico para a exteriorização de uma subjetividade inerente ao “sujeito-crítico-pensante”. Objetivamos revisar diferentes linhas de pensamento e fomentar uma discussão reflexiva acerca dessa temática.

A metodologia adotada foi a revisão biblio-gráfica, realizada nas bases da Filosofia, das Artes e da Educação, debruçando-se sobre conceituadas obras literárias, analisadas a partir de uma siste-matização interpretativa previamente elaborada. São elas: Aumont (1993); Cabrera (2006) e De-leuze (1990). Para cada obra, foram considerados (i) a essência epistemológica da imagem, (ii) os conceitos acerca da imagem cinematográfica e (iii) as perspectivas ideológicas do uso da imagem cinematográfica na educação.

Relação imagem-sujeito

Partindo do princípio de que o contexto imagético se define pela inter-relação entre a imagem (objeto observado) e o sujeito (observador do objeto), é fundamental que entendamos essa relação, com vistas a identificar de onde ela se sobressai (AUMONT, 1993). Desse modo, abor-daremos aqui não o eixo da objetivação exterior da subjetividade, muito menos da subjetivação da objetividade exterior, mas, prioritariamente, a exteriorização da subjetividade, na qual se pode verificar a ligação entre os elementos: sujeito, representação, modo de representação e o objeto representado.

Outro ponto sobremaneira importante é que, dentre os diferentes tipos de signos imagé-ticos, dedicaremos nossa análise ao signo icôni-co, ou seja, aquele que mantém uma relação de proximidade sensorial ou emotiva com o signo, a representação do objeto e o objeto dinâmico em si. Esse signo tipificado refere-se ao objeto e às características que lhes são peculiares.

Segundo Aumont (1993), no sujeito, encontra-se o espectador, que congrega a capa-cidade perceptiva da imagem. Ele é dotado de

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múltiplas esferas que implementam suas repre-sentações do mundo, onde o olhar estar relaciona-do aos processos históricos, culturais, orgânicos, espaciais e psíquicos. A imagem, em relação ao indivíduo, como refere o citado autor, não existe gratuitamente. Ela vincula-se ao real e estrutura-se ao valor de representação, ao valor simbólico e ao valor de signo, que engendram o uso da imagem em sua capacidade latente de “estabelecer uma relação com o mundo”.

Devemos entender que, nessa relação – imagem x sujeito – segundo a teoria de Aumont (1993), delineiam-se processos de reconhecimen-to e rememoração responsáveis pela função do raciocínio e da memória. É o que Aumont chama de “construção do espectador pela imagem e a construção da imagem pelo espectador”. É nessa perspectiva que temos as estruturas do imaginá-rio, das emoções, da base sociocultural, do real, do saber, do tempo e do espaço, que se relacionam entre si.

De acordo com Aumont (1993), a “imagem só existe para ser vista”, portanto, o processo ima-gético é uma relação orgânica que se constrói his-toricamente. A analogia, o espaço representado, o tempo representado e a significação na imagem são os quatro elementos principais analisados na estrutura da imagem. A imagem visual está atada a “analogias” e suscita uma problemática ligada à semelhança entre imagem e realidade. Para o autor, as imagens analógicas se pautam em cons-truções que misturam em “proporções variáveis imitação de semelhança natural e produção de signos comunicáveis socialmente”.

Temos, portanto, a imagem como uma linguagem entre várias que constroem a civiliza-ção. Então, apesar da reprodução intensiva da imagem visual na contemporaneidade, ela tem ascendência em relação às outras, por motivos estruturais e históricos, porém não de uma ele-vação suprema. A imagem, pelo canal cognitivo, captura o espectador de forma mais imediata, pois lida, sobretudo, com diferentes conexões neurais que facilitam e potencializam o registro mental. Logo, é perfeitamente aceitável pensarmos a imagem como elemento que se configura provo-cativo, inquietante, estimulador da interpretação do observador. Tal afirmação encontra subsídio em Cabrera (2006), que fundamenta que um dos elementos constitutivos da imagem é a emoção.

A subjetividade da imagem cinematográfica

Partindo do pensamento de Cabrera (2006), a imagem é o elemento que vincula conceitos e explora o humano “de maneiras mais perturba-doras que a lógica e a ética escritas”. Por conse-guinte, o valor conceitual de um filme reside nas “proposições imagéticas” por ele instauradas, incompatíveis com a condição epistêmica prévia à sua experiência, porquanto nela emerge a sensi-bilidade condizente com o caso cinematográfico.

O fato é que, segundo Cabrera (2006), a riqueza conceitual de um filme é justamente dada a partir da forma como essas possibilidades são pressupostas e encontram seu desfecho, o que acontece mediante unidades iconográficas ex-pressas ou postas em paralelo ao roteiro. Assim, a imagem cinematográfica se tornaria um único argumento cujo termo consequente residiria em premissas que não se podem isolar num tempo só seu, logo, numa temporalidade que, só em seu desfecho, reencontra o timer do projetor.

É sólida a premissa de que o filme, como um único conceito-imagem composto, inferencial-mente, com estruturas iconográficas impróprias ao isolamento funcional, ao longo do seu desenvol-vimento, não tem fundamento. A unidade obtida se afirmaria com base em uma lógica ordenada, pressuposta com a sistematização dos elementos manifestos - a linguagem utilizada pela direção na estruturação do filme. Um ponto a reforçar esse argumento se revela no questionamento acerca do uso didático do cinema pela Filosofia, ou admis-são de uma delimitação funcional dos elementos iconográficos na unidade da obra cinematográfica como condição ao “impacto emocional”.

Corroboramos com Cabrera (2006), na pers-pectiva de que o cinema, por meio de sua imagem peculiar, não pode ser considerado apenas um instrumento complementar e ilustrativo, mas, sobretudo, uma tecnologia formadora, a partir da qual se atingem os objetivos educacionais. Primeiramente, porque os filmes introduzem novos objetos e fazem novas abordagens do processo histórico. Em segundo, pelo fato de cinema estar imbuído de carregar um conhecimento que pro-blematiza a história vigente e estabelece novos conhecimentos, novos conceitos.

RELAÇÃO IMAGEM-PENSAMENTO

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Analisando a imagem cinematográfica, agora no campo educacional, partiremos da pers-pectiva de Deleuze (2007), que difunde a ideia de que essa imagem produz inúmeras sensações fisiológicas que desencadeiam um processo cogni-tivo. Isso significa que a imagem cinematográfica pode levar o expectador a pensar de forma crítica e reflexiva a respeito do filme a que assistiu. Tal fato se justifica pela conjuntura imagética que se caracteriza pelo produto da soma de fatores ine-rentes ao contexto cinematográfico, que inferem no ato de pensar do sujeito.

De acordo com o pensamento de Deleuze (2007), não basta possibilitar ao expectador a capacidade de pensar de forma ampla, genérica e, por consequência, superficial. Segundo o au-tor, é fundamental que o sujeito tenha autonomia suficiente para ser capaz de pensar a partir do filme. Todavia, apesar de Deleuze conceber o cinema como um campo de experimentação do pensamento, que atua de forma pensante, por meio de seus autores, e nos fazer pensar em uma relação de mediação, ele enuncia que isso seria pouco provável se idealizado da maneira clássica. Isto é, para Deleuze, mantermo-nos numa esfera filosófica para fazer emergir a questão do pensar através do cinema chega a ser uma utopia.

Nesse sentido, Deleuze (2007) apoia-se em três aspectos primordiais que sustentam a questão da possibilidade de se pensar através do cinema. O primeiro aspecto corresponde ao percurso da imagem até o pensamento, ou seja, é extremamente necessário que haja, nessa re-lação entre imagem e pensamento, o “choque cinematográfico”, aquele que instigará a fluidez do pensar através da imagem. Em seguida, porém de forma quase que concomitante, temos o aspecto que evidencia o pensamento como produto do choque cinematográfico (imagem provocando o pensamento) e também pelo retorno sináptico dessa mesma relação, isto é, o pensamento re-tornando à imagem.

Por consequência dessa relação síncrona, temos o terceiro aspecto a ser evidenciado - o da união sintomática da imagem com o pensamento – que incorpora, por sua vez, a relação existencial do homem com o mundo em que vive. Segundo o autor, o homem deve ser considerado a partir de sua singularidade pensante, de sua capacidade de interpretar, assimilar e gerar seus próprios pensa-mentos. Logo, sendo capaz de gerir sua interati-

vidade pensante com a imagem cinematográfica, ele poderá, de forma consciente, entrelaçar aquilo que pensa com o meio que o entorna.

Não obstante, frente ao tripé elencado, De-leuze (2007) elucida que, no cinema contemporâ-neo, tais aspectos encontram força nas questões--problema evidenciadas nas produções, ou seja, o cinema não mais se limita a representar o real, mas se preocupa em problematizar, também, a realidade ali abordada, instigando o espectador a refletir por meio de situações representadas pela imagem.

A imagem cinematográfica e suas potencialidades

A partir das concepções referenciadas, teceremos algumas reflexões que acreditamos ser pertinentes no que se refere ao uso da ima-gem cinematográfica como recurso icônico. Versaremos, fundamentalmente, sobre a pers-pectiva do contexto imagético como elemento mediador entre a imagem e o sujeito-pensante. A priori, entendemos que os estudos aqui ana-lisados apresentam contextos diversificados, porém com similaridades conceituais em que é possível vislumbrar aproximações ideológicas acerca do uso da imagem cinematográfica como um recurso para se exteriorizar a subjetividade crítico-reflexiva.

Com Aumont (1993), percebemos que a relação imagem-sujeito é mais profunda do que parece ser. Isso significa que nos sensibilizamos em relação a aspectos subjetivos que, nem sem-pre, são atentados quando analisados tecnicamen-te. O fato é que, para esse autor, tal relação não ocorre gratuitamente. Ela advém de processos de reconhecimento e rememoração responsáveis pela função do raciocínio e da memória. É o que ele chama de “construção do espectador pela imagem e construção da imagem pelo espectador”.

Na perspectiva de Cabrera (2006), temos a mediação do conceito-imagem como elemento fundamental para a compreensão do contexto problemático presente num filme. Isso porque, segundo o autor, é através da sensibilidade consciente que o filme se manifesta em nossos sentidos, em nossos pensamentos. Logo, a ima-gem cinematográfica deve ser encarada como a “verdade nua e crua”, mas como um elemento ins-tigador, provocador na construção do pensamento

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ideológico. Tal afirmativa parte da prerrogativa de que o cinema imerge o espectador num contexto surreal, momentâneo, paralelo.

A partir de Deleuze (2007), esclarecemos nosso posicionamento em defender a imagem cinematográfica como um elemento pulsante no pensamento humano, que convida e conduz o espectador a refletir sobre inúmeros saberes adquiridos e intrínsecos à sua própria trajetória como “ser-humano-pensante”. O cinema, dessa forma, produz no sujeito uma inquietação pen-sante, a qual poderá ou não ser fonte para um desencadeamento crítico-reflexivo, em que opini-ões, saberes, valores, sentimentos e concepções poderão se inter-relacionar dinamicamente.

Ressalte-se, contudo, que, embora seja considerado como uma fonte do pensamento crítico-reflexivo, o cinema não se sustenta de forma solitária e/ou isolada, razão por que deve se relacionar de forma interativa com o sujeito que o contempla. Assim, teremos um espectador crítico, atento às nuanças problemáticas que es-tão presentes nos filmes, ora, de forma explícita, ora, implícita.

Considerações finais

Os diferentes conceitos e significados da imagem cinematográfica nos oferecem um le-que de possibilidades para trabalharmos com a subjetividade. Isso significa que, ao elucidar o recurso icônico como um elemento que pode ser empregado exteriorizar pensamentos, opiniões e concepções, garantimos que signos imagéticos sejam codificados de forma mais eficaz. Por con-seguinte, a relação de proximidade sensorial ou emotiva entre o signo, a representação do objeto e o objeto dinâmico é otimizada, o que faz do ob-servador partícipe da construção dos significados semióticos das imagens.

É fundamental ressaltar que, apesar de os estudos analisados apresentarem contextos diversi-ficados, é possível traçar similaridades conceituais e, até, exprimir aproximações ideológicas acerca do uso da imagem cinematográfica como um recurso que potencializa a exteriorização da subjetividade. Logo, é de grande valia reconhecer e considerar essa imagem como um elemento agregador no processo de conscientização crítico-reflexiva.

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP; Papirus Edi-

tora, 1993.

CABRERA, J. O cinema pensa. Rio de Janeiro, Rocco, 2006.

DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Ed. Brasi-

liense, 2007.

DUARTE, Rosália. Cinema & educação. Belo Horizonte: Au-

têntica, 2002.

LOUREIRO, Robson. Educação, cinema e estética: elemen-

tos para uma reeducação do olhar. Revista Educação e Rea-

lidade, 33 (1): 135-154, jan/jun, 2008.

VASQUES, Cid Marcus. Cinema, TV e violência. THOT – Re-

vista da Associação Palas Athena, São Paulo, n.75, p. 67-

72, abr. 2001.

REFE

RÊN

CIAS

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31Eunice Simões Lins Gomes1

Pierre Normando Gomes da Silva2 Neide Miele3

O mito cosmogônico Judaico-cristão:corporeidade e imaginário dos sobreviventes das inundações

Introdução

Aproximamo-nos da água como uma re-alidade essencial provocadora da imaginação expressa nos relatos míticos ou cosmogônicos.

Também como um dos princípios fundamentais da poética bachelardiana, uma forma arquetí-pica que produz um ordenamento dos a priori da imaginação criadora. De modo que não es-tudamos a substância água, mas o devaneio

1. Educadora e teóloga; Professora Doutora do Departamento de Ciências das Religiões, Centro de Educação, da Universidade Federal da Paraíba; Profª. do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões; líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Antropologia do Imaginário – GEPAI-CNPq – [email protected] ou http://gepai.yolasite.com/2. Educador e teólogo; Professor Doutor, lotado no Departamento de Educação Física, da Universidade Federal da Paraíba; Prof. do Programa de Pós-graduação em Educação e Educação Física; líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Corporeidade, Cultura e Educação – GEPEC-CNPq. [email protected]. Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões – PPGCR-UFPB e Vice-chefe do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB. [email protected]

Resumo

Nosso objetivo foi analisar o mito cosmogônico judaico-cristão e compará-lo com os relatos jornalísticos de sobreviventes da catástrofe de duas inundações (Tsuna-mi e Câmara). O método de investigação foi o da “sociologia das profundezas”, que vê a sociedade expressa em símbolos, e o mito (imaginação material) como organizador inconsciente das relações sociais. Por isso, descrevemos o corpo social a partir das narrativas míticas e jornalísticas. A narrativa mítica é a cosmogonia judaico- cristã, e a narrativa jornalística, os vídeos, os jornais de televisão e as matérias jornalísticas, que continham os depoimentos dos sobreviventes de duas catástrofes com água: o rompimento da Barragem de Câmara 17/06/2004 (Paraíba/Brasil) e o Tsunami de 26/12/2004 (em países do sul e do sudeste asiático). O método de análise utilizado foi a mitocrítica e comparamos o mito cosmogônico judaico-cristão com os relatos jornalísticos dos sobreviventes.

Palavras-chave: Mito. Imaginação. Corpo.

E-mail: [email protected]

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1. DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983.

2. Idem. As estruturas antropológicas do imaginário. 2.ed.SP: Martins Fontes, 2001.

que ela provoca, a mitologia que expressa esse psiquismo hídrico. Nessa perspectiva, a água foi concebida como uma realidade material, ou me-lhor, como “imaginação material”, considerando--se os relatos cósmicos de nascimento, morte e renascimento do social.

Portanto, estamos atentos para o que a água provoca na imaginação humana. Há uma experiência do homem com a água, que é uma força, na medida em que oferece resistência ao agir humano. A conduta do homem em terra seca é uma, em meio às águas, é outra. Devido a essas experiências com a água, o homem tem uma imagem dessa matéria, logo, detém uma força imagética, criada inconscientemente para manter o equilíbrio psíquico e gerar acomodação ao movimento da vida social. Nessa compreen-são, formulamos nossa questão-problema: Qual será a imaginação material que é despertada nas pessoas que viveram a experiência de inun-dação? Essa imaginação corresponde ao mito da cosmogonia judaico-cristã? Assim, formulamos nosso objetivo – o de analisar o mito cosmogô-nico judaico-cristão e compará-lo com os rela-tos jornalísticas de sobreviventes de catástrofes de duas inundações: Tsunami e Camará. Desse modo, adentramos o nosso itinerário da pesqui-sa, o procedimento investigativo-metodológico.

1. Metodologia

1.1 Abordagem, procedimento de coleta, tipolo-gia e técnica de análise

Nossa abordagem é fenomenológica e visa descrever as formas simbólicas das narra-tivas míticas e jornalísticas, ou seja, adotamos a “Hermenêutica Simbólica” de Durand1 (1983), buscando entender como a cosmogonia judaico--cristã se apresenta (ou não) nos relatos jorna-lísticos. Esse método está estruturado em níveis de complexidade: a arquetipologia, que busca entender como se estruturam os dinamismos fi-gurativos dos “reflexos dominantes” (deglutição, copulação e postural); a Mitanálise busca enten-der o mito como o primeiro discurso da signifi-cação, no complexo dos regimes de imagens e a Bacia Semântica, que se preocupa com a duração

das fases do imaginário sociocultural. Nossa pesquisa é descritiva, do tipo do-

cumental. Descritiva porque visa descrever uma vivência coletiva - a do enfrentamento da inun-dação. É descrição porque pretendemos dar conta da razão interna que move as pessoas diante dessas circunstâncias. Empenhamo-nos em descrever o que foi sentido pelas pessoas ao experimentarem tal vivência, tentando captar sua forma plural e onírica, os schémes (reflexos dominantes e prolongamento cultural), os sím-bolos (configurações invisíveis) e o mito (sistema de símbolos, narrativa) (DURAND, 2001)2. É uma pesquisa documental porque nossas fontes de informação são os documentos.

Quanto ao levantamento das informações míticas, mais precisamente, do relato da cosmo-gonia judaico-cristã, tomamos os dez primeiros capítulos do texto bíblico de Gênesis. Para as in-formações sociais, consultamos os documentos que veiculam informações sobre duas catástro-fes: o Tsunami (que atingiu países do sul da Ásia) e a Barragem de Camará (cidade no Nordeste do Brasil). Sobre o tsunami, são diversos docu-mentos, disponíveis na internet com imagens do acidente (pequenos vídeos, fotografias e reporta-gens). Sobre o incidente na Barragem de Cama-rá, alguns vídeos: um editado pelo Núcleo de Es-tudos e Produção Audiovisual do Departamento de Comunicação Social/UFPB e outro do jornal televisivo Correio da Paraíba. Os dois documen-tos (mítico e jornalístico) foram tomados como processo comunicativo e como texto canônico, porquanto ambos têm uma mensagem e trazem imagens para se referir à emoção coletiva ou à afetividade grupal. Para tratar dos territórios da comunicação, primeiro, caracterizamos o docu-mento mítico, a narrativa cosmogônica e, em se-guida, pusemos em evidência o documento de ordem jornalística.

2. Resultados: Narrativas míticas e sociais

2.1 Narrativa cosmogônica judaico-cristã

Escolhemos a cosmogonia judaico-cristã porque é uma das cosmogonias universais mais

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3. SANTAELLA, Lucia. Comunicação e pesquisa. SP: Hacker, 2001.

4. Idem. Ibidem, p.88.

5. BOWLER, K.C.; OSBORNE, R. A Biblia. SP: Ed. Vida, 2002. 3

conhecidas da humanidade e suspeitamos que seja uma das formas arquetípicas do Ocidente. Quanto ao território da mensagem, que é o dado em si, o mais palpável, é aquele a que se tem acesso (SANTAELLA, 2001, p.86)3. O documento mítico corresponde à mensagem bíblica sobre a criação do mundo. É o texto escrito constituinte do livro de Gênesis (gr.-começo). Na tradição ju-daica, bereshith (“no princípio”), está agrupado aos outros quatro livros como pertencentes ao Torá. Portanto, Torá é um livro escrito em cin-co volumes, ou na expressão judaica, “os cinco quintos da lei”, que tratam, respectivamente, da origem do mundo (Gênesis), da libertação do Egito e da aliança do Sinai (Êxodo), da lei dos sacerdotes (Levítico), dos recenseamentos (Nú-meros) e da segunda lei ou de um resumo da lei (Deuteronômio). Gênesis contém, sobretudo, tex-tos narrativos, que o tornam o livro mais popular e conhecido do Antigo Testamento. A mensagem objetiva que analisamos é a primeira seção desse livro, do capítulo 1 ao 11. Em termos de conte-údo, esse trecho pode ser assim dividido: o livro das origens: do céu e da terra (1-2), do pecado (3-5), do dilúvio (6-8), de novas gerações (9-10) e das diferentes línguas (11). Também poderíamos dividi-lo assim: criação e queda (1-3); gerações violentas (4-6); destruição, volta ao caos (7-8); nova geração (9-11).

Quanto ao território do código, refere-se ao modo de organização dos signos e determina sua gramaticalidade (SANTAELLA, 2001, p.86)4. Atribuir um código é associá-lo a uma categoria. Os capítulos de 1 a 11 retratam o início da hu-manidade, mas não se restringe a um povo em específico. Sua linguagem tende a um código simbólico. As histórias contadas não têm preten-sões factuais, mas simbólicas, apesar de várias genealogias que também têm o fim simbólico de representar o começo dos diferentes povos e de dar ênfase à história da família, e não, de gran-des eventos. O código simbólico, a rigor, prevale-ce amplamente, até nas menções históricas das genealogias, como, por exemplo, os anos de vida de Henoc, que o destacava dos demais, porque ele “andava com Deus”, e sua idade (365 anos)

compreendeu a totalidade dos dias de um ano solar. Todo o texto está permeado de símbolos, como a serpente (símbolo da natureza, do poder imperial egípcio, da idolatria do culto à fertilida-de), a luz, antes da criação do sol, e os gigantes de Nefilim.

Quanto ao território dos meios e dos mo-dos de produção, refere-se aos suportes ou ca-nais da mensagem (SANTAELLA, 2001, p.87). O texto do Gênesis, como toda a Bíblia, foi escrito em placas de barro, peles secas de animais (per-gaminho) e em papiro. O último livro da Bíblia foi escrito 1350 anos antes de inventarem a im-prensa. Durante todo esse tempo, os livros eram copiados à mão pelos escribas ou copistas, com base em regras fixas (tipo de pergaminho, tinta a ser usada, espaço a ser dado entre as letras e as linhas, contagem das letras e comparação com os originais). Durante a Idade Média, essa tarefa esteve, por centenas de anos, sob a responsabi-lidade dos monges. O texto de gênesis que utili-zamos para analisar foi retirado da tradução da Bíblia de Jerusalém (1981), considerada, no mun-do teológico, como uma das melhores traduções do original.

O contexto comunicacional da mensagem diz respeito à situação em que a comunicação se dá acontece (SANTAELLA, 2001, p.88). O tex-to de Gênesis, como quase todo o Antigo Testa-mento, foi escrito em hebraico - uma escrita da direita para a esquerda e traduzido, inicialmente, para o grego, mais ou menos 200 anos a.C. Essa tradução ficou conhecida como septuaginta. Depois, em 405 d.C, a Bíblia toda foi traduzida por Jerônimo para o latim - tradução conhecida como vulgata. Perto do ano de 1200, a Bíblia co-meçou a ser traduzida para as línguas europeias. Em 1456, foi o primeiro livro impresso e, atual-mente, é o mais lido do mundo e está traduzida em mais de 2000 línguas ou dialetos (OSBORNE; BOWLER, 2002, p. 6-19)5. Portanto, trata-se de uma mensagem multicultural, que tem intercâm-bios do regional com o global e faz uso de di-versos suportes, desde físicos (manuscritos) até digitais.

O caráter multicultural da Bíblia está pre-

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sente também no trecho que escolhemos para analisar (Gn. 1-11), visto que, nele, podemos identificar tradições culturais para além do judai-co-cristão. O dilúvio, por exemplo, que provém de uma copiosa chuva de 40 dias, não perten-ce à experiência do povo palestinense, em cujo mundo o perigo da destruição é pelo fogo, que representa o estágio final da seca. Outro desta-que que damos sobre esse livro (Gn.1-11), em termos místicos, é o relato dos gigantes no início do capítulo seis - os Nefilins, filhos da relação entre os filhos de Deus e as filhas dos homens, heróis dos tempos antigos. Essa narrativa reme-te ao mito dos Titãs orientais, nascidos da união entre mortais e seres celestes. Uma raça insolen-te de super-homens. Essa tradição não é judaica, mas cananeia. De modo que Gn.1-11 não perten-ce apenas ao povo judeu-cristão, mas se consti-tui numa síntese de mitos cósmicos universais. É um patrimônio do imaginário da humanidade.

Quanto ao território do emissor ou fonte da comunicação, diz respeito a quem a mensagem é produzida e quais as injunções físicas, psíqui-cas e sociais do contexto. (SANTAELLA, 2001, p.88). Nem sempre podemos situar historica-mente a autoria dos textos bíblicos. Temos dú-vidas. A composição literária do texto analisado (Gn.1-11), como de toda a Torá, tem diferentes estilos, repetições e desordens nos relatos. De acordo com aTeoria Documentária Clássica (final do Século XIX), isso se justifica porque a Torá não é obra de um só autor, mas a compilação de quatro documentos. Nessa perspectiva, Schwan-tes (1989) propõe a autoria de Gn.1-11 aos de-portados no exílio da Babilônia (ex-sacerdotes e ex-cantores), por volta do sexto Século a.C, escri-tos pelos sacerdotes, que estavam escravizados e usavam os documentos javistas e elohistas.

O território do destino ou recepção da men-sagem refere-se aos modos como a mensagem é transmitida e difundida ou que influências o re-ceptor pode receber, a partir da eficácia persua-siva da mensagem. (SANTAELLA, 2001, p. 89). A mensagem de Gn.1-11 é recebida de diversas ma-neiras, conforme as mais diversas tradições cultu-rais e doutrinárias. Para se ter uma ideia, o texto da criação (Gn.1) tanto é interpretado em termos literais, usando-se a Arqueologia e a Geologia

6. MESQUITA, A.N. Estudo no livro de Gênesis. RJ: Junta de Educação Religiosa, 1979.

7. SCHWANTES, Milton. Projetos de esperança: meditações sobre Gênesis 1-11. Petrópolis: Vozes, 1989.

para provar sua veracidade (MESQUITA, 1979, p. 29-38)6, quanto em termos poéticos, entendendo--o como o anúncio do projeto de esperança para todos os povos (SCHWANTES, 1989)7.

2.2 As narrativas jornalísticas sobre o Tsunami

Levantamos as narrativas jornalísticas de duas catástrofes provocadas pelas águas ocorri-das em 2004: uma em nível internacional, o Tsu-nami, que atingiu sete países na Ásia, e a outra em nível local, o rompimento da Barragem de Câmara, que atingiu duas cidades na Paraíba--Brasil. Uma de proporção internacional, cata-clísmica, e a outra em nível local. Do vasto mate-rial que coletamos - vídeos, matérias de revistas, relatórios, artigos em periódicos e blog - fizemos uma triagem, julgando sua qualidade em função das necessidades da pesquisa, ou seja, escolhe-mos apenas o material que se refere aos depoi-mentos dos sobreviventes, nos dois casos, ten-tando identificar se há semelhanças arquetípicas nos relatos dos sobreviventes.

No que diz respeito ao território da men-sagem, trata-se de matérias jornalísticas que apresentam relatos de sobreviventes das duas inundações: do Tsunami e da Barragem de Ca-mará. Esses documentos selecionados retratam o testemunho dos que sobreviveram à catástrofe, que tiveram seus pertences e até familiares per-didos e o que representou para eles a experiência de viverem a inundação.

Em relação ao território do código, refere--se aos signos que são organizados em termos de informações úteis para o público. O código é o noticiário. Todas as matérias publicam co-mentários de anúncios e entrevistas, portanto, a gramática desses documentos é o informativo de utilidade pública. Neles constam a quantidade de mortos e de desaparecidos, quais as áreas atingidas, as explicações técnicas do aconteci-mento, os destroços causados, os donativos so-licitados, o trabalho de ajuda de voluntários, as providências governamentais e não governamen-tais em atendimento às vítimas e as informações sobre a vida das pessoas depois da catástrofe.

Quanto ao território dos meios e modos de produção, os documentos selecionados têm su-

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portes distintos, pois os da Barragem de Camará são audiovisuais. Há um documentário, um vídeo de dezenove minutos e a gravação da reporta-gem televisiva de três minutos. Os documentos sobre os relatos dos sobreviventes do Tsunami são seis reportagens escritas e publicadas em jornais brasileiros e estrangeiros, que contêm fotografias e depoimentos, todos disponíveis na Internet, dois depoimentos gravados e um pe-queno vídeo amador de menos de um minuto.

Quanto ao contexto comunicaconal da mensagem, os documentos se referem à situação da catástrofe. Destacamos, na análise, os aspec-tos explicativos dos acontecimentos. O Tsunami do dia 26/12/2004, no sul e no leste da Ásia, consistiu em ondas gigantes, decorrentes de um terremoto submarino de magnitude de nove, na escala Richter, que provocou milhares de mor-tes e destruição em sete países, especificamente nas áreas costeiras.

Só na Indonésia, país mais atingido, o ma-remoto matou 228.429 pessoas. No total, foram mais de 280 mil mortos, sem falar no impacto ambiental deixado pela catástrofe. Na Província de Aceh, na Indonésia, mais de 400 mil pesso-as perderam suas casas e empregos, vilarejos foram destruídos e instalações de infraestrutu-ra de cidades foram arruinadas. (Jornal Reuters, 01/02/05). Na Índia, mais de 700 km de rodo-vias foram danificados. No Sri Lanka, cem mil casas foram destruídas, além de 65% da frota de navios pesqueiros do país (Jornal BBC Brasil.com - 18/03/2005). Algumas reportagens registram que os habitantes da região tornaram-se mendi-cantes, ficaram sem moradia, mesmo depois de três anos (Jornal o Globo - 27/12/2007), e que

muitos chegam a vender seus órgãos para sobre-viver (Jornal BBC Brasil.com - 09/03/2007).

O rompimento da Barragem de Camará, no município de Alagoa Nova, a 140 quilômetros de João Pessoa, capital da Paraíba, aconteceu no início da noite do dia 17 de junho de 2004, quando cerca de 16,2 milhões de metros cúbi-cos de água escoou da Barragem e atingiu parte dos territórios e dos moradores dos municípios de Alagoa Nova e Areia e os sítios urbanos das cidades de Alagoa Grande (30 mil habitantes) e Mulungu (10 mil habitantes), onde o desastre as-sumiu maior dimensão. Houve cinco mortes, e centenas de casas foram destruídas.

A Barragem de Barra de Camará foi inau-gurada em junho de 2000, com capacidade de armazenar 27 milhões de metros cúbicos de água. Sua área aproximada é de 160 hectares e tem como finalidade acumular água para abaste-

Figura 01- Foto de satélite mostra a costa de Kalutara, no Sri Lanka, momento em que a onda alcança essa região.

Fonte: http.starnews2001.com.br/mapa.htm. Acesso: 19/02/2006

Figura 02 - A Barragem de Camará cinco dias antes do rompimento

Fonte:httm://www.onorte.com.br/anexos/fotos

Figura 03 - Vista completa da Barragem de Camará após o rompimento. As marcas escuras mostram o escoamento da água.

Fonte:www.brejo.com.br/nimagens/279.jpg

Figura 04 - Vista do rompimento da ombreira esquerda da Barragem de Camará

Fonte:http://www.propris.hpg.com.br/html/imagens/Barragem_camará/05.htm

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cer os vários municípios do brejo paraibano no pe-ríodo de seca. Porém, falhas de engenharia, desde sua construção (cf. Relatório, 2004), ocasiona-ram, dois anos depois, o rompimento da ombreira esquerda, devido às chuvas dos dias anteriores. A Barragem comportava apenas 60% do seu total (Jornal da Paraíba, 22 de outubro de 2004).

O escoamento desse grande volume de água foi catastrófico. Para podermos estimar, só na cidade de Alagoa Grande/PB, local mais atin-gido, as águas alcançaram 900 casas, destruíram quase totalmente a metalúrgica e muitas planta-ções, inclusive de subsistência; devastaram 50 Km de mata ciliar, destruíram casas comerciais, a atividade pecuária, visto que os animais, inclusive os peixes, foram levados pela enxurrada e o patri-mônio público (praças, postos de saúde, escolas, bibliotecas e outros). Também alterou o curso do Rio Riachão, afluente do Rio Mamanguape, colo-cando uma parte dele dentro da cidade. De modo que, se houver um volume significativo de água (chuvas), a cidade poderá ser inundada novamen-te (SILVA, et al. 2006, p. 25)8.

Sejam as águas do Tsunami ou as de Ca-mará, em ambos os casos, houve duas catás-trofes – uma, devido a um acidente geológico, e a outra, por uma falha de construção, que não suportou as águas das chuvas daquele período, e por falta de compromisso político, visto já se saber dos problemas da Barragem. Em ambos os acidentes, as águas inundaram a terra e causa-ram uma catástrofe no espaço humano.

O emissor, ou fonte da comunicação, é

aquele por quem a mensagem é produzida, tan-to em relação à Barragem de Camará quanto ao Tsunami. As fontes do emissor dos documentários sobre a Barragem da Barra de Camará foram dois vídeos, um de 19 minutos, baseado em depoi-mentos, e outro de três, da reportagem da TV Correio da Paraíba. As fontes do emissor dos docu-mentos sobre o tsunami foram artigos de Jornais (Cibéria; Jornal Terra Networks Brasil; Jornal Fo-lhaonline; Jornal BBC Brasil; Jornal Portas Aber-tas; Jornal Chabad); Canal RealAudio e um vídeo amador, intitulado “Crianças na praia”.

Quanto ao território do destino ou recep-ção da mensagem, podemos dizer que os di-versos documentos reunidos, apesar de serem difundidos de diferentes modos - vídeos, fotogra-fias, comentários jornalísticos ou técnicos – têm uma mensagem em comum: atrair a atenção das pessoas para a gravidade do problema, reclamar a solidariedade delas e/ou exigir providências governamentais. Esta parece ser a eficácia per-suasiva da mensagem: oferecer um conhecimen-to da catástrofe, a partir daqueles que sobrevive-ram, e apelar para a solidariedade.

3. DISCUSSÃO: Análise das narrativas

1.3.1 Primeira aproximação: seleção e descrição dos documentos

Quando descrevemos a caracterização do objeto da pesquisa, já realizamos um primei-ro tratamento dos dados, porque, da volumosa

8. SILVA, M. Impactos ambientais causados em decorrência do rompimento da Barragem de Camará no município de Alagoa Grande, PB. Revista de Biologia e Ciências da Terra. V.6, n.1, 1ºsem, 2006, p.20-34.

Figura 05 - Vila inundada em Alagoa Grande/PB

Fonte:http://www.onor te.com.br_anexos/fotos

Figura 06 - Vila inundada no Sri Lanka

Fonte: http://www.safe.com.org/ur/imagens_tsunami/srilanka.jpg

Figura 07 - Vila na Indonésia com casas destruídas e barcos nas ruas

Fonte:http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/tragédia-asia/galeria.html

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documentação reunida, proveniente de diver-sas fontes (reportagens, editoriais, enunciados de moradores, de políticos, de engenheiros, de pesquisadores sociais), selecionamos apenas os documentos referentes aos sobreviventes; depois os ordenamos numa lista cronológica e informa-mos a natureza e a fonte de cada um. Em se-guida, descrevemos seu conteúdo e fizemos um breve apanhado sobre cada documento.

1.3.2 Segunda aproximação: transcrição e catalogação das imagens

Além de ter ordenado as informações para selecionar as que pareceram mais pertinentes, transcrevemos as falas dos dois vídeos sobre a Barragem de Camará e dos dois depoimentos dos sobreviventes brasileiros e um da jornalis-ta espanhola. Também recortamos, no texto da cosmogonia, todas as vezes em que foi mencio-nada a palavra água, versículo por versículo. Es-ses textos foram sendo cumulativos numa ordem sequencial, que resultou num documento para análise. Com o material coletado, resultante da transcrição das falas e das citações dos sobrevi-ventes nos documentos escritos e do relato cos-mogônico, fizemos um estudo minucioso do seu conteúdo, das palavras e, particularmente, das imagens que foram evocadas no depoimento. Em seguida, catalogamos e analisamos as imagens fotográficas ou filmográficas que apresentaram as ações das pessoas diante da catástrofe.

Dessas imagens organizadas, compuse-mos uma aproximação do diverso, na lógica con-traditorial (DURAND, 2001)9, construímos uma espécie de vitral imagético, com vistas a pro-curar os seus sentidos, captamo-lhes as inten-ções, comparamos e reconhecemos o essencial e selecionamo-lo em torno das imagens princi-pais. O tipo de recorte das imagens realizado e o modo como foram agrupadas tiveram como fim deixar que emergissem as categorias míticas provenientes daquilo que agrega as ações huma-nas tão dispares, com culturas tão distintas (Hin-duismo e Cristianismo). Percebemos, então, que o que agrega é a força interna da situação vivida pelos sobreviventes e, a partir dessas imagens,

construímos uma arquetipologia e uma mitocrí-tica, que são configurações capazes de traçar as matrizes da simbolização que estrutura o pensa-mento simbólico do social.

Nessas análises, descobrimos a conste-lação de imagens próprias de catástrofes com água, para perceber como se estrutura a dinâmi-ca dos símbolos, que circulam nos núcleos orga-nizadores do social. Para abordar a “convergên-cia” (maneira como se organizam) das diferentes representações da narrativa mítica, elegemos algumas séries de imagens que foram mais ex-pressivas. Fizemos isso catalogando as imagens pela estrutura do “trajeto antropológico”, valori-zando os schémes (tendência geral dos gestos), os arquétipos (representação dos schémes), os símbolos (signos) e o mito (sistema dinâmico de símbolos).

1.3.3 Terceira aproximação: Mitocrítica

Após as duas aproximações, passamos para a análise mitocrítica. Depois de todas as passagens estarem cotejadas por categorias, procedemos à mitocrítica, segundo prescreve Durand (1983)10. Dos textos (cosmogônico e jornalístico), evidenciamos as camadas “genera-tivas” e redundantes (sincrônicas, paradigmáti-cas, constelações e mitemas), que constituem a metalinguística do sermo mythucus.

1.3.3.1 Mitema: decomposição do mito em “pa-cotes” sincrônicos num curso diacrônico

A leitura do mito é feita captando-se seu núcleo, por meio do levantamento das redun-dâncias, das repetições e das homologias. Esse núcleo, que é o centro do mito, permite a análi-se e é denominado de “mitema”. Tomamos os textos bíblicos e os relatos/imagens jornalísticos e analisamos os seus mitemas, aqueles gestos, imagens ou palavras que adquirem um caráter de repetição insólita, quase obsessiva. “Os mite-mas são os pontos fortes, repetitivos, da narrati-va”, diz Durand (1983, p.29). É a menor unidade significante, mas isso não quer dizer que são os elementos importantes das sintaxes (verbo, ad-

9. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 2 ed. SP: Martins Fontes, 2001.

10. DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983.

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jetivo...), mas que as unidades redundantes po-dem ser desde uma partícula de ligação até um gesto inusitado. O que caracteriza o mitema é a repetição do objeto. Assim, não só verificamos em cada tipo de narrativa (bíblica e jornalística), em separado, mas também comparando os te-mas que se intensificaram nelas.

Na análise do texto bíblico, não nos detive-mos nas controvérsias relativas à canonicidade, nem na análise dos relatos jornalísticos, mas nas controvérsias políticas: se a ajuda humanitária aos sobreviventes do Tsunami foi insuficiente ou se o estouro da Barragem de Camará foi um inci-dente ou erro administrativo culposo. Tomamos os textos (verbal e visual) como uma narrativa mítica, valiosa como qualquer outra. Nosso pri-meiro tratamento foi a exegese dos termos perti-nentes: extraímos de Gênesis (1-11) e dos relatos dos sobreviventes, a partir de passagens concor-dantes, os episódios redundantes. Foi uma ope-ração crítica de interpretação, e para analisar as Escrituras Sagradas, aproximamo-nos da “exe-gese simbólica” (GIRARD, 2005)11, derivamos da letra/texto/fotografia e nos dirigimos a sua significação simbólica. Rompemos, assim, com a exegese literal, ao atribuir ao texto um sentido simbólico, identificado pela realidade humana que ele sintetizou. Ou seja, selecionamos os tex-tos e os catalogamos a partir de temáticas de realidades humanas que foram objeto das falas e que sofreram uma transposição simbólica. Essas passagens descreveram o mistério de uma reali-dade inesperada, a consciência mítica profunda que emergiu e transcendeu os limites da razão, da reflexão e da história.

A montagem simbólica que fizemos, sugeri-da por Girard (2005)12, partiu do simbolismo da Bíblia, para buscar a universalidade da linguagem simbólica. Também não centramos a interpreta-ção exclusivamente na ética, mas, sobretudo, na dimensão cosmogônica. De modo que tratamos de analisar o símbolo ou imagem por sua proje-ção psíquica, mas o abordando por meio do mito bíblico. Nesse sentido, partimos do pressuposto de que qualquer símbolo ou qualquer atividade de imaginação, bíblica ou jornalística procede de uma realidade vivencial, que demarca os aspectos a que faz frente. Nessa opção, estudamos cada

imagem, palavra, gesto e adotamos três procedi-mentos para identificar o mitema: 1) revelando o mecanismo dos termos pertinentes; 2) agrupan-do-os em categorias sintéticas e descrevendo sua concentração simbólica.

1.3.3.2 Mitologema: ampliação da narrativa

A análise não esteve presa ao texto bíblico da cosmogonia ou à narrativa jornalística da ca-tástrofe, pois remetemos esses símbolos a toda a complexidade simbólica das Escrituras e de ou-tras mitologias. Também comparamos as análises jornalísticas, não apenas entre si, mas com outros episódios semelhantes. Essa ampliação foi feita porque encontramos as sequências repetitivas do mitema, seja em outras passagens bíblicas, seja em outras reportagens, porquanto a repetitividade é o signo indicativo do mitema. Quando fizemos isso, encontramos o mitologema, que consiste na modulação do mitema, numa situação mitológica. Isso foi importante para não ficar restrito à exclu-sividade daquele texto, daquela imagem, daquele episódio, mas para se perceber a amplitude do mito que está sendo investigado, apesar de se sa-ber que, “quanto mais amplo é o campo, mais o mitema se empobrece em mitologema, e mais os mitemas são pobres”, diz Durand (1983, p.32)13.

1.3.3.3 Narrativa canônica

O termo canônica, nessa expressão, não se refere ao cânon sagrado das escrituras, mas à sistematização do mito. Assim, a narrativa canô-nica é mais complexa do que o mitologema. Não se restringe ao resumo da obra (os textos, entre si, daquela época), mas leva em consideração to-das as lições de um mito e tenta dar o modelo delas. Ou seja, é por meio da narrativa canôni-ca que identificamos, nas narrativas analisadas (bíblica e jornalística) ou nas demais narrativas, qual o padrão a partir do qual as variantes deri-vavam. Mostramos, assim, qual é a narrativa ca-nônica do texto bíblico e jornalístico.

1.3.3.4 Identificação das variantes do mito

Para fazer a narrativa canônica, foi preciso

11. GIRARD, Marc. Os símbolos da Bíblia. Ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. SP: Paulus, 2005.12. GIRARD, Marc. Os símbolos da Bíblia. Ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. SP: Paulus, 2005.

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13. DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983.14. DURAND, Gilbert. Mito e sociedade: a mitanálise e a sociologia das profundezas. Lisboa: A regra do jogo, 1983.15. MAFFESOLI, Michel. O fundo das aparências. RJ: Vozes, 1996.

compreender as variantes que se apresentam na ampliação do mito, porque, no decorrer do tem-po ou da obra, o mito não permanece com as mesmas características, assume outras funções ou acrescenta outros elementos a sua imagem. São três as possibilidades de variação: as varian-tes de um tema (temas que recorrem no texto); as variantes da situação mítica (heroica, mística, triangular...) e as variantes de derivação - “de-rivações intra-culturais, que se desenvolvem no curso de uma fatia de tempo, de um eixo de tem-po genérico-literário a outro” (DURAND, 1983, p. 35)14.

1.3.3.4 Construção das constelações de afinidades

Nessa fase da análise, ultrapassamos o texto específico, o resumo da obra (bíblica e jor-nalística) e seu padrão simbólico no tempo, mas estabelecemos uma comparação com outras cul-turas. É o momento das afinidades de mitemas ou de mitos de uma cultura para outra. Vimos como aparece o mitema da água em outras cos-mogonias e como ele se relaciona com as situa-ções sociais e políticas das diferentes culturas. Nessas análises comparativas, estivemos nos perguntando se, no decorrer de uma cultura para outra, não há um fio condutor profundo. Daí é possível apreender se o mito analisado é univer-sal ou, ao contrário, se pertence a uma experi-ência histórica, política e ideológica. Na análise das constelações, questionamos se a imagem ar-quetípica da água, apresentada nos textos, é um conjunto mitémico estratificado, pertencente a uma cultura passada, ou se é um germe de mito e que se desenvolve.

Considerações finais

As águas violentas, do rio ou do mar, são símbolos da horrenda possibilidade que ame-aça os homens, sem cessar, de que o “vazio e o sem-forma” vão engolir o mundo novamente. Mas, de forma ambivalente, como é próprio do imaginário, a água diluviana é oportuna para a renovação. A criação veio do tumulto das águas,

em cujo caos se gerou a ordem da criação. Havia um mundo que estava incubado nas águas, tal como o feto no líquido amniótico – cosmogonia judaico-cristã.

A destruição que vem das águas, como boca devoradora que a “tudo estraçalha nos den-tes de leão”, misturando tudo, é imaginação ma-terial que elabora um novo laço social. As muitas águas fazem emergir uma nova criação. No caos, a existência cotidiana é revirada e nela se elabora outro modo de ser. E em meio à perdição e ao desastre, à feiura do caos, outra experiência es-tética é experimentada. Em meio aos destroços, no sentir comum da perda, cria-se outra estética, e outro estilo de comportamento aparece. A so-cialidade produzida nesse estar junto catastró-fico é poderosa, tão forte quanto as forças das grandes águas. Nessas ocasiões, as pessoas que estão vivendo aquela situação partilham de um sentimento, de uma sensação orgânica de uma unidade. A explosão dos afetos desencadeada nesse momento inaugura uma nova forma de so-lidariedade social.

A estética produzida, no entendimento de Maffesoli (1996)15, dos sentimentos partilhados, é de uma beleza descomunal. “Em maior esca-la, esse desastre aqui atingiu toda a raça, credo e religião juntos. Não há divisões no sofrimen-to. Não há barreiras. Rico, pobre, jovem, idoso, homem, mulher, eram todos iguais ao furor das ondas. E agora, mais uma vez, são todos iguais ao oferecerem ajuda, apoio e amor”, diz o Rabi Nechemia Wilhem, de Puket, Tailândia, que ofe-receu ajuda aos sobreviventes 24 horas, por três dias, sem parar.

O vínculo social, em meio à calamidade, não é racionalmente definido, mas reforçado numa empatia particular do ambiente comuni-tário. O ambiente natural produz certo ambiente comunitário, uma sinergia de solidariedade so-cial - esse é o social que a imaginação material das águas diluvianas produz. E assim, cria na-quela experiência uma obra de arte. Arte não no sentido artístico, mas uma criação única. Todos estão envolvidos por um mesmo sentimento, uma só é a alma das pessoas. Todos estão inte-grados afetivamente.

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O laço social forma um só corpo. O conjun-to está vivendo um sentimento de religação, uma magia participativa, outra humanidade surgiu da devastação, com coragem de amar. É nessa expe-riência com as forças da natureza que desenca-deia as forças da nossa natureza. A matéria das muitas águas, em seu movimento devorador, ativa em nós, no nosso sistema nervoso, a energia de um dinamismo solidário. Essa é a nossa tese.

Como as considerações não são para en-cerrar, terminamos por fazer duas reflexões míti-cas que, possivelmente, abrem perspectivas para novas pesquisas, numa espécie de pos scriptum. A primeira é de que é necessário lembrar que os símbolos são ambivalentes, são uma coisa e outra ao mesmo tempo, pois, apesar de termos feito a distinção entre Deus e as águas devorado-ras, como arqui-inimigos arquetípicos na cosmo-gonia judaico-cristã, é preciso dizer que, nesse imaginário, Deus é também a própria água, ou tem a forma dela. Em Gn.1:2, consta que “[...] o espírito de Deus se movia sobre a face das águas” (BÍBLIA SAGRADA- Versão Revista e Corri-gida). Chama-nos a atenção essa expressão “face das águas”, ou espelho das águas, porque sugere que as águas violentas, primordiais, o oceano do caos, são o espelho de Deus. Refletem sua face. Água indomável e infinita, que a tudo cobre e a tudo esconde. A água é espelho do sem fim, do sem forma, do vazio...

A segunda é que, no último nível de aná-lise proposto pela Mitocrítica - a constelação - percebemos que o texto bíblico diz que, depois de as águas diluvianas cobrirem a terra, “Deus lembrou-se então de Noé e de todas as feras e de todos os animais domésticos que estavam com ele na arca” (Gn.8:1 – BÍBLIA DE JERUSALÉM). Essa expressão curiosa deixa transparecer que as muitas águas fizeram Deus se esquecer dos vivos. Portanto, muitas águas, um mar de água é símbolo do inconsciente. Mas a expressão “Deus lembrar” nos remete a algumas falas que trazem essa temática nos relatos dos sobreviventes:

Eu morro e não esqueço. Não esqueço nunca. A tragédia de Câmara vai ficar guardada na me-mória de todos os que passamos por ela. Os outros vão esquecer porque não foram atingi-dos. Lembram-se, mas não tanto quanto nós, que passamos por ela. [...] Eu não queria mais me lembrar daquele dia. (Dona. Alzira, 77 anos,

Alagoa Grande/PB). Preciso estar ocupado. Se não estiver, minha mente fica estressada por-que fico lembrando da tragédia e fico pensando que ela pode acontecer de novo. (Abu Pundi, 40 anos, Província de Aceh, Indonésia).

“Não esqueço” e “fico lembrando” são da mesma ordem. Os sobreviventes passam a ter uma mesma memória perturbadora. Querem es-quecer, fazem um esforço consciente, mas é da ordem do inconsciente. Eles não conseguem. É a ambivalência de lidar com o imaginário. Para Iahweh, as águas o fizeram esquecer; para os sobreviventes, as águas vividas não os deixam esquecer. Esquecimento e lembrança parecem se justapor e se contradizer ao mesmo tempo. O que está no inconsciente é aquilo de que não lembramos, de que esquecemos. Só temos notí-cias desse material por meio de sonhos noturnos, não são memórias, são imagens que aparecem confusas, cifradas. Mas, para os sobreviventes, as águas pelas quais passaram, que os atingiram e levaram inúmeras pessoas e coisas são uma lembrança permanente. É a marca do não esque-cimento.

Pensamos, no entanto, que essa memória consciente do vivido remete a uma experiência que mobiliza o inconsciente: a sensação de estar entregue à própria sorte, como Noé, num barco sem rumo, ao sabor das águas. É a experiência de ter sido esquecido por Deus. Daí o apelo de Dona Francisca (78 anos, Alagoa Grande): “Pelo amor de Deus! Por caridade! Aquela cheia quan-do veio, veio para matar foi tudo”.

As águas que fizeram Deus se esquecer de Noé e dos demais vivos foi a mesma que produziu a lembrança permanente na vida dos sobreviven-tes. Mas é uma lembrança inconsciente, porque faz “lembrar” o estado pré-evolutivo provável, em que todas as formas vivas estiveram imersas. Portanto, essas águas, que quase os fizeram sub-mergir para sempre, atingiu neles uma camada mais profunda da psique humana. E como essa recordação, que não saia da mente dos sobrevi-ventes, não neutraliza o efeito do recordado, não produz recalcamento, ao contrário, presentifica-o com intensidade e vigor.

Nesse sentido, a constelação mitológica dessas narrativas parece apontar para outra es-trutura mítica, que retorna das cinzas. O homem herói não é aquele que conquista a natureza e

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 41

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gia e Ciências da Terra. V.6,n.1, 1ºsem, 2006, p.20-34.

REFE

RÊN

CIAS

busca o sucesso individual, mas o que apela para o transcendente, como Dona Francisca, que reco-nhece sua fragilidade diante das forças da natu-reza, que lida com sua temeridade de deixar de

existir e que faz da convivência com os outros e da vida de cada dia um ato de possessão de que todos somos um, diante da morte, por isso, rea-ge acolhendo o sofrimento.

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42Janine Marta Coelho Rodrigues1

Galdino Toscano de Brito Filho2

Silvestre Coelho Rodrigues3

Em busca da Formação de Professores:

velhas estradas, novos caminhos

Inclusão não é ter privilégio, é conviver com as diferenças

Introduzindo a discussão: O que é inclusão? Antes de tudo, é atitude. Assim, não pode ser im-posta, é construída a partir da interiorização da aceitação, da ação colaborativa e da convivência com as diferenças. É a nossa capacidade de enten-der e reconhecer o outro partilhando e acolhendo

todas as pessoas sem exceção. Inclusão no respeito à diversidade para inclusão das mi-norias: dos(as) meninos(as) de e na rua, dos afrodescendentes, dos(as) homossexuais, dos ciganos, dos índios, dos idosos, das mulheres, enfim, dos que representam um grupo vítima de opressão ou discriminação por qualquer motivo. A escola deve ser o reflexo da vida da sociedade e, como tal, deve viver a experiência

Resumo

Este estudo tem como objetivo estimular as discussões sobre a formação de professores a partir da perspectiva da Educação, como espaço de formação do humano. Sabemos dos inúmeros entraves que a escola precisa superar para concre-tizar uma prática pedagógica e social democrática e inclusiva. São diversos fatores a serem mobilizados: a qualidade e o compromisso sociopolítico e cultural de todos (as) os (as) que fazem a escola, metodologias diversificadas, retomada do contexto das políticas públicas para a Educação, que se distancia do discurso pragmatista de formações rápidas, e de ser e estar professor sem dominar o campo teórico da Educação. Parece-nos que um dos caminhos seria o estabelecimento de parcerias e de cooperações interinstitucionais e a inclusão socioeducacional por meio do acesso, da democratização e do uso de novas tecnologias. Refletir sobre essas questões já se revela como o primeiro passo para a construção de uma escola preocupada com a formação dos seus professores, que lida com a inclusão, respeita a diversidade e onde a finalidade da Educação seja a formação do humano.

Palavras-chave: Formação de professores - Inclusão - Diversidade - Formação do humano.

1. Professora Doutora do Centro de Educação da UFPB2. Professor Doutor do Centro de Educação da UFPB3. Professor Mestre em Psicopedagogia da UFPB

E-mail: [email protected]

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de conviver com as diferenças.No Brasil, a inclusão vem caminhando a

passos muitos lentos. Incluir não é só remover barreiras arquitetônicas, criar rampas ou adaptar os espaços. A Constituição de 1988 garante o acesso a todos à escola, mas, por que tanta eva-são, por que tanta indisciplina? A escola é o reflexo da via lá fora, e viver a experiência da diferença é contribuir para que os alunos se desenvolvam de acordo com suas condições.

O atendimento educacional especializado oferecido pela escola, paralelamente às aulas, ajuda na integração de todos os alunos, e a escola é capaz de analisar sua atuação de forma crítica e autônoma. Nesse contexto, o professor precisa ser capacitado para ensinar, contudo não precisa ser especialista em deficiência quando a escola cumpre seu papel, dando-lhe suporte pedagógico adequado, com intérprete de sinais, tradutores do Braille e parcerias profissionais muito produtivas. Isso se justifica porque a quantidade de alunos com algum tipo de necessidade cresce a cada ano nas escolas. Segundo dados do INEP, em 1989, eram 43,9 mil matriculados, e em 2005, 164 mil.

A inclusão, que havia conseguido espaço com a Declaração de Salamanca (UNESCO), em 1998, destaca-se, ainda mais, com a Convenção da Guatemala (UNESCO), em 2001. O documento gerado nesse encontro preconiza a proibição de qualquer tipo de discriminação, exclusão ou res-trições baseadas nas diferenças ou na deficiência das pessoas.

Nessa perspectiva, a escola precisa começar a atender ao aluno que não é o “ideal”. Os alunos e os professores não podem ser reféns de um cur-rículo mal elaborado, com propostas incoerentes, em que não há espaço para o talento das crianças, e quem não acompanha o conteúdo está fadado à exclusão e ao fracasso. Há que se ressaltar que a inclusão não deve atender somente a crianças com deficiência, mas também a todas as que são excluídas e discriminadas.

As avaliações, também, não raras vezes, são excludentes, visto que a escola não valoriza a di-versidade, e o conteúdo é determinante. Portanto, é uma escola que não valoriza seu potencial. Mas deve-se atentar para o fato de que é oferecendo meios diversificados que a escola impulsiona seus alunos a fazerem parte do mundo. Rodrigues (2007, p.24) assevera que um dos objetivos da Educação Inclusiva é de “quebrar as barreiras que

impedem os indivíduos de exercerem a sua cidada-nia”. Entendemos, então, que o atendimento es-pecializado deve ser visto como um complemento, e não, como um substituto da escola regular. As salas de multimeios e as de recursos servem para atender aos alunos, em parceria com a professora de sala de aula.

Na escola inclusiva, crianças e adolescentes aprendem a ser solidários, os(as) aluno(as) com deficiência têm mais chances de se desenvolver, e todos ganham ao exercitar a tolerância e o respeito.

Não basta aprender o trabalho docente.

Uma questão inicial se coloca como norte de nosso estudo é esta: Como se capacita um(a) professor(a) em uma dinâmica social que sabe-mos ser movida por fatores econômicos, sociais e políticos, e cuja meta é a formação do humano? É nosso interesse analisar a formação do humano, como um dos aspectos fundamentais da Edu-cação, estudando os processos formativos dos profissionais que lidam com a diversidade e com a Escola.

A partir da constatação das várias direções da trajetória profissional de um(a) professor(a), verificamos a influência de vários modelos forma-tivos, dos mercados de trabalho, da (des)valoriza-ção profissional e de outras questões como gênero e classe, e que tais questões têm influenciado, desde então, os (des)caminhos de uma Educação mais tolerante e inclusiva, por meio da qual a capacidade de fazer análises e articulações com outras áreas do conhecimento possa caracterizar a profissionalidade do ensino.

Convém enfatizar que, apesar de a formação de profissionais para atuarem na área da Educa-ção ser um tema fácil de ser abordado e, atual-mente, venha sendo incorporado nos discursos formativos, é difícil de operacionalizar, sobretudo no momento da formação. Então, questionamos: O que deve ser modificado ou reorganizado na formação dos professores para lograrmos uma aproximação da profissionalização, que seja ca-paz de trabalhar a inclusão e a diversidade com tolerância e respeito às diferenças?

São inúmeros os fatores a serem mobi-lizados, controlados e definidos. Uma questão importante é a visão fragmentada das teorias psicopedagógicas que impedem o profissional de

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argumentar e explicar com segurança suas ações pedagógicas.

Rodrigues (2003) e outros autores justificam a necessidade social de se reconhecer o(a) profis-sional professor(a), tendo em vista as especifici-dades da profissão que ele(a) demonstra com os saberes e as competências do desempenho de seu trabalho. Sabemos que formar um(a) professor(a) que domine as tecnologias e que seja capaz de empregá-las como uma ferramenta pedagógica é uma busca difícil, complexa, mas possível, se perseguida através de atitudes de valorização da pesquisa no processo formativo, da socialização de resultados e de estudos psicopedagógicos que consolidam um modelo, posto que esse é o tipo de profissionalização que se espera obter, por meio da qual o(a) professor(a) seja preparado para conviver e trabalhar com a diversidade nos diversos espaços sociais.

O reconhecimento do trabalho profissional do professor é redimensionado em parcerias institucionais, que acenam para a construção de um status profissional distinto, que é construído no individual e no social, que se articulam e se complementam, sobretudo quando pensamos em atividades pedagógicas integradoras. Algumas pontuações podem ser refletidas: o discurso pro-fissionalizante, em que se enfatiza a solidez da formação, as políticas formativas, que minimizam a fragmentação dos processos formativos, e as práticas docentes, com a formação específica ancorada nas concepções de Educação mobili-zadora e participante dos movimentos sociais. As agências formadoras têm a responsabilidade de oferecer esses espaços reflexivos e de garantir uma formação plena, interagindo e interligando as interfaces da Educação na vida acadêmica, cultural e social da Escola e da comunidade.

A construção de uma nova atitude ética, pedagógica e a escolha de ser um(a) profissional com fazeres, dizeres, contradições e compro-missos profissionais e mais mobilização do pen-samento crítico sinalizam as oportunidades de refletir sobre as práticas pedagógicas atualizadas e inseridas no mundo da tecnologia, do que fazem e porque fazem o trabalho educativo dentro de uma realidade social posta. Saviani (12003:21) diz que se para formar homens, é necessário um profundo conhecimento da realidade humana, e se a realidade humana é essencialmente histórica, o educador precisa dominar e conhecer a história.

São essas questões pensadas e contextualizadas que se constituem, hoje, como o norte das nossas buscas.

A inclusão, as tecnologias e os procedi-mentos para se lidar com a diversidade, no âm-bito da escola, passam por vários segmentos: a inclusão digital define, atualmente, um quadro internacional de conexão com a informação e o conhecimento, visando evitar que pessoas e países fiquem à margem da sociedade informatizada. A ONU, segundo Monteiro (2001), passa a exigir que os países abram suas atividades econômicas e o mercado para a tecnologia. Isso significa conside-rar o ciberespaço como uma rede comunicacional global.

O uso de cartões eletrônicos, robôs, apa-relhos eletrodomésticos, fotocopiadoras, fax, celulares, TV, DVD e de computadores representa a captura e a apresentação de informações que os sujeitos sociais precisam dominar. Assim, cabe à escola passar aos seus alunos - tenham eles ou não alguma dificuldade – para inseri-los na sociedade informatizada, todas as funções da informática que, para Levy (1996, p.46), são: captura, digitalização, memória, tratamento e apresentação. São funções que, na perspectiva ge-ral de uma Educação tecnológica, oportunizarão a inclusão dos alunos e da escola no mundo virtual.

As dimensões da vida que perpassam por elementos diversificados contrapostos na contra-dição entre a situação econômica e a situação social do sujeito, em sua formação pessoal e pro-fissional, são conduzidas frente as suas ideologias e aos seus valores que, em alguns momentos, podem até parecer incompatíveis, mas são com-plementares na conjuntura histórica e política.

O exercício profissional fundamentado em atividades intelectuais e manuais argumen-ta a qualidade da formação, aproximando ou distanciando as práticas nas diversas esferas profissionais, o que demonstra que a formação profissional deve ser mais contextualizada. Para isso, a formação do(a) professor(a), na socieda-de do conhecimento, requer uma relação entre os processos formativos e os novos significados trazidos à sociedade por meio da informatização e das tecnologias. A sociedade da informação, ou sociedade do conhecimento, utiliza uma intensa rede de informática e de telecomunicações que disponibiliza, com mais eficiência os conhecimen-tos, ignorando fronteiras geográficas ou limites

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espaciais. Isso torna a Educação mais que um processo de ensino e de aprendizagem. O(A) professor(a), como mediador(a) das informações tecnológicas, precisa desenvolver as próprias competências para lidar com o avanço das tec-nologias. O uso de TV, de videoconferências, de retroprojetor e da pesquisa através das infovias, propicia, nos cursos de formação de professores, a aprendizagem de uma atitude investigativa, que constrói entre os(as) alunos(as) perfis de pesqui-sadores. Tais ações didático- pedagógicas inovam os contextos educacionais.

Compreendemos que os computadores e os softwares educacionais trazem em si duas faces em relação à democratização de sua utilização. A tecnologia não escapa do bem ou do mal histori-camente percebido nas mudanças sociais. O uso de um simples computador na escola é fator de diferenças, que realça as desigualdades sociais e as ações educativas.

Os desafios dessa era tecnológica para as escolas e seus(as) profissionais(as) são inúmeros. Por outro lado, pensamos que é preciso rever os conteúdos dos cursos de formação de professores. A formação dos(as) professores(as) que atuam nas escolas precisa passar por mudanças que impli-cam a formação do próprio homem. Freire (2002), na Pedagogia da Autonomia, apresenta o que ele considera os saberes necessários à prática educa-tiva. Tais saberes, que aglutinam aspectos da do-cência como especificidade da atividade humana, exigem rigorosidade, método, respeito, criticidade, ética, alegria, esperança e disponibilidade para o diálogo. Tais questões representam uma prática pedagógica responsável pela formação de um(a) professor(a) comprometido com a mudança que a Educação é capaz de promover. Freire (1999) já previa que era preciso educar e conscientizar o homem, como sujeito social, inserido numa realidade que ele deveria compreender e transfor-mar. Nesse sentido, a escola e o(a) professor(a) devem desempenhar esse papel transformador, evitando uma prática bancária, e assumir uma prática pedagógico-social cujo suporte seja uma pedagogia da esperança, que liberta e faz pensar.

À luz das ideias freireanas, o(a) professor(a) é o Outro, aquele que entende a importância do ato de ler como uma leitura da vida como prática de uma liberdade de pensamento que liberta da opressão e descortina o entendimento do mundo, das coisas e das pessoas, sem medo e com a ou-

sadia que a Educação, como Prática da Liberdade, inspira. Educação é mudança, é viver e aprender cada dia, através das ações de cultura e de edu-cação que podem ser desenvolvidas na escola da vila, na escola da vida.

Desafios, dificuldades e perspectivas de uma Educação frente às tecnologias na ótica da diversidade

Os termos inclusão, exclusão e diversidade expressam uma abordagem educacional, que vem se mostrando benéfica para os (as) que devem ser considerados(as) cidadãos(ãs) aceitos(as) como iguais e para os(as) ditos(as) normais, que conseguem exercitar a estruturação de suas per-sonalidades e conviver com as diferenças.

No Séc. XX, os processos de reabilitação, socialização e integração das minorias excluídas na rede regular de ensino eram norteados pelo conceito de normalização. Tal expressão era usada para identificar necessidades de atenção específica, com recursos diferenciados: materiais, supressão de barreiras arquitetônicas, adaptação de prédios públicos e edifícios, formação de pro-fessores, (re)elaboração de processos de avaliação e adaptação dos currículos a novas metodologias.

A educação inclusiva, a partir dos anos 90, com a Resolução 45/91 da Assembleia Geral da ONU, sob o lema Sociedade para Todos, influen-ciou o Brasil na criação da proposta educacional Plano Decenal de Educação - 1993 a 2003. Obje-tiva essa proposta a inclusão educacional e social de grupos marginalizados e minoritários, como: crianças de rua, negros, idosos, ciganos, indígenas e todos os que sofrem exclusões parecidas nos processos educativos.

Da Assembleia da ONU, na Tailândia, em 1990, e na Espanha, em 1994, onde estavam presentes 155 governos, inclusive o do Brasil, surgiu a Declaração de Salamanca – documento que expressa a inserção e a visão pedagógica do desenvolvimento humano, respeitando os ritmos e as formas diferenciadas de aquisição de apren-dizagens.

A proposta inclusiva representa uma política pública na área da pesquisa e do trabalho e de práticas educativas com atividades que precisam sair do discurso, romper com o caráter assis-tencialista e paternalista que sempre envolveu a Educação para todos. A inclusão dos excluídos, em

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todos os níveis de ensino, assume uma bandeira, sobretudo, humanista e democrática.

A prática da tolerância às diferenças e o respeito às deficiências dependem muito da conscientização, da sensibilidade, do respeito, do conhecimento dos processos de desenvolvimento, da aceitação e, muito menos, da legislação. Acre-ditamos que isso signifique uma atitude constru-ída, um engajamento individual, social e coletivo de superação de preconceitos.

Entendemos a Educação e a diversidade como um processo dinâmico de muitas faces, desenvolvido através de um trabalho social e pedagógico, em que a atitude de aceitação das diferenças extrapola a simples colocação dos alunos com necessidades especiais na sala de aula ou se estabeleçam contas de inserção. Os princípios da diversidade e da inclusão podem ser compreendidos como a celebração das diferenças, da liderança, do direito de pertencer, da valoriza-ção da diversidade humana, da solidariedade, da importância das minorias, da cidadania, enfim, da qualidade de vida, do padrão de excelência dos resultados educacionais, da colaboração e da cooperação com estratégias de apoio, novos papéis e responsabilidades, envolvendo todos os que fazem a escola e os parceiros comunitários nos processos educativos.

O(a) professor(a) e a tecnologia: como lidar com as diferenças?

Uma ação pedagógica que tenha como

norte a diversidade reconhece seu fazer e saber pedagógico assumindo, explorando e estimulando as potencialidades do universo da escola. Valo-riza a identidade sócio-cultural e étnica, atende aos desafios de reunir alunos diferentes, e o(a) professor(a), nesse contexto, é o(a) mediador(a), que garante espaços de ensino e de aprendizagem para todos.

Um dos aspectos mais significativos dessa escola inclusiva é a formação e a capacitação de seus(as) professores(as), a quem devem ser dadas condições práticas educacionais e pedagógicas para que possam trabalhar com seus alunos com total participação na sala de aula.

Através da informação e da reflexão a res-peito das necessidades educacionais especiais, de atividades integradas orientadas por um(a) professor(a) que invista nos processos inclusivos,

da reformulação de currículos, da articulação de conteúdos, para evitar a fragmentação teórica descontextualizada da prática, do conhecimento dos processos diferenciados de ensino-aprendi-zagem oferecidos ao(à) professor(a) certamente, os resultados pedagógicos dessa escola cidadã, esperados pelos pais e pela sociedade em geral, demonstrarão uma inclusão socioeducacional possível.

Assim, considerando as discussões postas até aqui, perguntamos: O que é inclusão? Enten-demos que, antes de tudo, é atitude, e, como tal, não pode ser imposta. É construída a partir da interiorização da aceitação, da ação colaborativa e da convivência com as diferenças, com a diver-sidade dos seres humanos. É a nossa capacidade de entender e reconhecer o outro, partilhando e acolhendo todas as pessoas sem exceção. Inclu-são no respeito à diversidade para inclusão das minorias: dos(as) meninos(as) de rua, dos afrodes-cendentes, dos(as) homossexuais, dos ciganos, dos índios, dos idosos, das mulheres, enfim, dos que representam um grupo vítima de opressão ou discriminação por qualquer motivo.

A escola deve ser o reflexo da vida da so-ciedade, portanto, deve viver a experiência de conviver com as diferenças. Um(a) professor(a) preocupado(a) com a formação do humano, na perspectiva da inclusão, precisa ser capacitado, mas não precisa ser especialista em determinada deficiência. A escola cumpre seu papel, dando ao professor suporte pedagógico adequado, com intérpretes de sinais e tradutores de Braille, atra-vés da construção de parcerias profissionais e institucionais, que poderão ser muito produtivas para os(as) alunos(as) e os(as) professores(as).

A colaboração de outros profissionais e a Educação inclusiva

O psicopedagogo é o(a) profissional que coordena as atividades educacionais otimiza-doras que, quando aliadas ao conhecimento proporcionado pela Psicologia e pelas Ciências da Educação, trazem como consequência ime-diata o sucesso do desempenho acadêmico do(a) aluno(a), especialmente aquele (a) que apresenta alguma dificuldade de aprendizagem, facilitando sua inserção na comunidade onde vive.

As dificuldades de aprendizagem são ques-tões vivenciadas diariamente nas escolas, que

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despertam o interesse dos(as) educadores(as) e chamam a atenção para um grande número de crianças que as frequentam e são traídas por suas dificuldades de adaptação, de metodologia ou de desenvolvimento desarmônico. Por muitos anos, essas crianças foram mal diagnosticadas, mal tratadas ou ignoradas. Muitas são negras ou vindas das camadas sociais mais comprometidas economicamente. Alguns adjetivos com que são rotuladas - lentas, preguiçosas e, até, deficientes - escondem uma prática docente ineficiente ou desinteressada e uma escola que não atende às necessidades dos(as) aluno(as) ou desconhece a questão. Muitos (as) professores(as) ainda igno-ram que crianças, adolescentes e adultos podem apresentar algum problema de aprendizagem de ordem orgânica, psicológica, social ou cultural. Então, é preciso qualificar e estimular o professor a empregar ferramentas tecnológicas que facili-tem o processo educacional e promovam atalhos pedagógicos que viabilizam formas de aprendiza-gens mais concretas.

A presença de um professor inclusivo, que lida com as novas tecnologias na escola, pode ampliar sua reflexão sobre o que está acontecendo com seu(a) aluno(a), como e por que apresenta dificuldades para aprender. Se admitirmos que a base para a aprendizagem são as necessidades individuais e que a força motriz da conduta huma-na são os motivos, as aspirações, os desejos e os interesses que se organizam em aprendizagens, estaremos aceitando a ideia de que o conheci-mento aprendido advém de uma diversidade de necessidades que a maioria dos autores divide em: materiais, espirituais, biológicas e culturais. Dessas necessidades derivam-se muitas outras. Yershov (1999) agrupa as necessidades do homem em biológicas: sono, conforto, alimentação, de de-fesa e sobrevivência; sociais: interação, afeto, ca-rinho, aprovação, justiça e ideais; conhecimento: informação e cultura. Assim, no que diz respeito às necessidades, somos todos iguais.

O desenvolvimento sociocultural leva o ser

humano a outras necessidades. Vigotsky (1999, p.85) enuncia que a ação do homem surge no pro-cesso de desenvolvimento cultural e histórico através de uma ação dirigida ao futuro.

A forma de ensinar extrapola a sala de aula. É preciso observar o(a) aluno(a), para veri-ficar suas aprendizagens, o que envolve brincar, ouvir e observar como se organizam diante do mundo, das coisas e das pessoas. Nessa pers-pectiva, o trabalho pedagógico é sobremaneira relevante, porquanto exige de quem o pratica competência para observar os(as) alunos(as), avaliá-los e intervir no processo educativo para minimizar suas dificuldades. O (a) professor(a), a família e a escola envolvem aspectos sociocultu-rais importantes para a aprendizagem. Portanto, ensinar e aprender são questões complexas, que exigem a participação da família e dos técnicos da escola, requerem muita reflexão e se configuram como um compromisso social e político. Além disso, exigem dos(as) educadores(as) um conhe-cimento específico sobre as teorias e os processos de aprendizagem. São inúmeras as contribuições do trabalho pedagógico especializado e compe-tente, no sentido de estruturar a construção ou a reconstrução da aprendizagem dos(as) alunos(as), compensar ou minimizar suas limitações, ajudá--los(las) a dirimir suas dificuldades ou conviver com elas e reavaliar ou redirecionar suas neces-sidades.

Com objetivos multidimensionais, o(a) professor(a) adota enfoques integrados de in-vestigação científica e vivências de práticas psi-copedagógicas em suas atividades, trabalhando os aspectos preventivos e atuando como agente facilitador dos processos cognitivos. Dessa forma, beneficiam os(a) alunos(as) em quaisquer que sejam suas dificuldades.

Esperamos, com essas colocações, ter contribuído para aprofundar as discussões sobre inclusão, a partir de uma formação embasada na perspectiva da Educação como formação do humano.

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49Jaldes Reis de Meneses

Professor Associado do Departamento de História da UFPB. Membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (CCHLA-UFPB).

Greve nas Universidades e trabalho docente

Pela primeira vez desde 1998, as univer-sidades brasileiras se encontram em levante. Acabei de assistir ao programa Jô Soares, no começo da madrugada, e o assunto em pauta era a greve dos docentes das Universidades públicas. Por quê? Não tenho respostas conclusivas, mas o atrevimento de algumas hipóteses.

Pretendo escrever outros artigos, mas gostaria em primeiro lugar de glosar a questão do trabalho intelectual docente. Só há como abordar o tema da (des)valorização do trabalho docente inserido no contexto das transformações do capitalismo contemporâneo e dos sistemas de ciência e tecnologia. Ao tratarmos de uma cam-panha salarial e de uma greve das universidades federais, em um país como o Brasil, que possui um dos 16 sistemas de produção de ciência do mundo, e o maior da América Latina, mais de 90% nas universidades públicas, é quando aqui-latamos a dimensão global do processo no qual estamos inseridos.

Trabalho intelectual-cerebral é a principal forma do trabalho vivo hoje. É difícil, porém, mensurar formalmente o trabalho intelectual, ao menos seguindo a maneira das formas clás-sicas do capitalismo monopolista do século XX, baseado no fluxo do tempo de produção de mercadorias junto a uma linha de montagem automatizada, com uma divisão de trabalho bem delimitada entre executores e executantes, diri-gentes e dirigidos. Pode até parecer aos incautos

que o trabalho intelectual seja improdutivo, mas o fato objetivo é precisamente o inverso: o trabalho intelectual extrapola, trata de uma atividade eminentemente cerebral, criativa, afetiva (não pensamos somente na pesquisa, mas também no ensino), produz exatamente a desmedida do valor porque é mais do que ele, e não menos, o que não pode ser mensurado com as técnicas convencionais de medição da produtividade quando estas se baseavam no taylorismo e no fordismo. O que significa, portanto, a valorização do trabalho docente, se ele extrapola, para mais e não para menos, a medida de valor? A política decide a distri-buição da des-medida de riqueza, as maneiras de partilha do excedente social. Saliento que estou longe de negar Marx, mas exatamente o contrário: o valor continua a vigorar, inclu-sive porque ele continua a reger até mesmo a lógica racional das atividades de trabalho que extrapolam a clássica divisão do trabalho do modo de produção capitalista, tanto na esfera da produção como da reprodução.

Várias são as dimensões de análise das vicissitudes do trabalho intelectual, e diversas, as vertentes teóricas, inviáveis de serem descritas no espaço de um texto curto. Como esquema explicativo do caso particular da Universidade, cabe o comentário de que, enfim, temos hoje concretizadas as prédicas do sociólogo Max Weber, no clássico texto A

E-mail: [email protected]

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ciência como vocação (1919) – o processo de exaustão da figura do intelectual artesão (que Gramsci chamou de intelectual tradicional) e a assunção plena do trabalho intelectual coletivo, formador das estruturas de classe que Gramsci chamou de orgânica. Em outras palavras, tra-duzindo no vocabulário da economia política de Marx: a divisão social de trabalho originária da fábrica (o antigo loci da produção capitalista), em vez de simplesmente se esgotar, expandiu forma e conteúdo, alterando substantivamente a esfera da reprodução social (Estado, família, sistema educacional, etc.). Produção e reprodução se entrelaçaram, ou tendem vertiginosamente ao enlace.

Do meu ponto de vista, as vicissitudes do trabalho intelectual contemporâneo, em lugar de destruir, atualizam – certamente de maneira modificada –, a organização sindical do trabalho. Contudo, esta é uma questão em disputa entre várias percepções e projetos políticos, especial-mente entre os que vêem o trabalho docente sob uma perspectiva individualista, solitária, e os que vêem sob uma perspectiva coletiva, solidária; entre os que não detectaram ainda os controles externos (Estado e capital, principalmente) e os que se insurgem contra estes mesmos controles. Enfim, não se trata de uma disputa entre “pro-dutivos” e “improdutivos” – até porque o rigor e capacidade intelectual podem ser encontrados em ambos os lados desta divisão muitas vezes artificial e performática –, mas entre os que re-conhecem como uma das dimensões ineliminá-veis do cotidiano universitário as problemáticas atinentes à profissão e ao trabalho e os que, na prática, denegam esta dimensão, muitas vezes se acostando subjetivamente no cultivo de um ideal morto de ciência neutra. O trabalho intelectual--cerebral como trabalho alienado.

Começamos a ter em presença, atual-mente, nas universidades públicas – e o debate subterrâneo de adesão da categoria docente à greve demonstrou isso –, um conflito entre o projeto de constituição da categoria como sujeito coletivo de trabalho e uma percepção conformista da Universidade como o loci de um trabalho de

tipo artesanal, que existe somente como resíduo e ideologia. O que tudo isso tem a ver com car-reira docente? A primeira carreira docente que tivemos na modernidade (passada a grande crise da Universidade na época do iluminismo) foi a da Universidade alemã, hierarquizada e organizada sob as bases de uma divisão artesanal do traba-lho (professor catedrático, assistente e auxiliar), que tinha mais a ver com divisão de poder do que trabalho. Com diferenças nacionais importantes, de alguma maneira, a nomenclatura alemã foi exportada para a Universidade francesa e norte--americana e inclusive a brasileira.

No entanto, no Brasil, na prática, subverte-mos a hierarquia estamental do trabalho univer-sitário tradicional. Qual é mesmo a diferença real de trabalho nas Universidades federais brasileiras entre o professor auxiliar (começo da carreira) e o associado (ápice)? Difícil perceber. Pode-se argüir, com razão, que o professor-associado trata-se de um doutor, e que a partir da titulação tem acesso à concorrência em pesquisa. Perfeito. Porém, a prerrogativa de acesso aos editais de pesquisa, necessário a partir de certo patamar de conhecimento demonstrado, trata-se de uma atividade de pesquisador, que sem dúvida é um plus, mas não constitui rigorosamente diferen-ça hierárquica em relação aos seus colegas de atividade laboral. A não ser como ideologia de diferenciação.

Na verdade, o trabalho do pesquisador se assemelha mais ao de um técnico do que o de um intelectual clássico (figura histórica hoje rara de cujo ethos talvez tivesse sentido cobrar uma hierarquia de carreira). Para pontuar e concor-rer aos editais, o novo técnico tem mais que se inserir em uma agenda de pesquisa internacio-nal, reconhecer um nicho do conhecimento e se integrar nele, do que propriamente cultivar o espírito (se ambos coadunarem, ótimo). Não há demérito algum na atitude salutar de se integrar a uma agenda ou paradigma de pesquisa, ao contrário, pois assim, se podemos definir, nos tornamos mais “coletivos” e menos “artesanais”, mais divisão social (e intelectual) do trabalho do que solidão.

João Pessoa, 08 de junho de 2012, no primeiro mês da greve dos docentes universitários das Universidades Federais brasileiras.

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51José Octávio de Arruda Mello

Historiador de ofício, integrante dos IHGB, IHGP, APL e UNIPÊ, com doutorado pela USP, em 1992.

Dois livros na revelação de uma realidade

O sentido desta abordagem consiste em divulgar dois livros editados pelo autor em 2010 – Da Resistência ao Poder – o (P)MDB na Paraíba (1965/99) e Conflitos e Convergências nas Elei-ções Paraibanas de 1982, 2002 e 2006.

Inspirados no politólogo francês Jean Blon-del, adotam a metodologia deste, no sentido de, por meio do processo político-eleitoral, recons-truir o conjunto da Paraíba, em articulação com os planos regional, nacional e, onde for o caso, internacional(1).

1.1. Das singularidades de um partido – Durante boa parte do consulado militar 1964/85,

a seção paraibana do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) tornou-se uma das três mais consistentes do país ao lado das da Guanaba-ra e Rio Grande do Sul(2).

No caso paraibano, tal se deveu à as-similação dos antigos PSD, PTB e PSB que formaram bloco oposicionista contrário aos UDN, PDC e PL das eleições governamentais de outubro de 1965, decididas no olho mecâ-nico(3).

Assim, ao contrário de Estados como Pernambuco, em que, quando da extinção dos partidos da democracia populista, em outu-bro de 1965, a agremiação governista ARENA

Resumo

A fusão dos planos nacional e local constituem a tônica deste estudo em que, discutindo dois livros, analisam-se a trajetória do (P) PMDB paraibano, no período 1965/99 e as eleições estaduais de 1982, 2002, e 2010. A força do MDB, como herdeiro da aliança PSD/PTB/PSB, ofereceu-lhe substância vitalizada pela liderança nacional de Ulisses Guimarães, o que não impediu a estrondosa derrota de 1982 em que, herdeiro da ARENA, o PDS confundiu-se com o Estado que cooptou a classe média e controlou as periferias urbanas. Com a Nova República, o PMDB transformou-se no partido hegemônico da Paraíba. Acontecimentos locais, todavia, levaram-no à cisão de 1998, a partir de quando, desfrutando dessa condição, o PSDB, em aliança com o PFL, elegeu os governadores de 2002 e 2006, tendo contra si a coligação PMDB/PT.

Palavras-chave: Partidos e eleições na Paraíba. Aparelho do Estado e classe média. Resulta-dos eleitorais de 1982, 2002 e 2006

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assimilou os antigos PSD, UDN e até bigorrilhos do PTB, na Paraíba o binômio Governo/Oposição não experimentou maiores alterações.

Tal se consumou quando o senador Ruy Carneiro, um dos principais caciques nacionais do antigo Partido Social Democrático, ultrapas-sou as indecisões da primeira hora e filiou-se ao MDB cujos primeiros passos, em novembro de 65, foram ensaiados pela dupla Humberto Luce-na, do PSD, e Argemiro de Figueiredo, por inter-médio do filho Petrônio, do PTB.

Dos pessedo-petebistas de maior expres-são, apenas os deputados federais Teotônio Neto, Jacob Frantz e Milton Cabral inscreveram--se na ARENA, com Janduhy Carneiro, Fernandes de Mamanguape, Bivar Olinto de Patos e Arnaldo Lafayete, de Monteiro, agregados ao MDB. Em Sousa e Santa Rita registrou-se reversão de ex-pectativas. Como os exudenistas da família Ga-delha e o populista Heraldo Gadelha optassem pelo MDB, seus adversários Antônio Mariz/Gon-çalves de Abrantes e Antônio Teixeira fixaram-se na ARENA(4).

Entre 1965 e 66 o número de diretórios emedebistas era pequeno mas o partido saiu-se, airosamente, nas eleições desse último ano, em que se reelegeu o senador Ruy Carneiro, sagran-do ainda cinco deputados federais contra oito e catorze estaduais, em trinta e oito.

A chamada ARENA-2 das sublegendas en-tão criadas votou maciçamente em Carneiro, o mesmo acontecendo com os municípios em pro-cesso de urbanização. Beneficiária do voto de ca-bresto, a ARENA era o contrário(5).

1.2. A arrancada de 68 e a debacle de 70 e 72 – Sob a liderança dos senador Oscar Passos e deputado Pedroso Horta, o MDB logo se identi-ficou à sociedade surgente dos intelectuais, uni-versitários, jornalistas, empresariado moderno, sobreviventes do movimento camponês e clero progressista. Este muito ativo no eixo Pernambu-co-Paraíba, graças aos arcebispos Dom Helder Câmara e José Maria Pires(6).

Isso explica o sucesso do MDB nas elei-ções municipais de 1968, quando vitoriou em Campina Grande, Areia, Bayeux, Cuité, Garabira, Itabaiana, Mamanguape, Monteiro, Patos, Pom-bal e Teixeira, entre os principais municípios. Na capital, onde os prefeitos passavam a ser nomea-dos pelo governador, o MDB integralizou a maio-

ria dos vereadores.Esse quadro foi radicalmente alterado em

1970 e 72. Depois da Constituição por decurso de prazo de 1967, o Governo Federal recorreu ao temível Ato Institucional número 5(AI-5) que su-primiu o habeas-corpus e revigorou as punições políticas e culturais. Na Paraíba, onde o gondi-nismo, que migrara para a oposição, viu-se risca-do do mapa, o prefeito de Campina Grande teve os direitos políticos suspensos, com cassação, ademais, de três deputados federais e seis es-taduais. Professores, magistrados, funcionários, profissionais liberais e religiosos viram-se atingi-dos. Emissora de rádio, que oferecera cobertura às manifestações estudantis de 1968, chegou a ser fechada(7).

As esquerdas e o MDB reagiram com votos nulos e em branco, em razão dos quais seus can-didatos senatoriais Humberto Lucena e Argemiro de Figueiredo foram largamente derrotados, em novembro de setenta. O número de deputados federais da oposição baixou para três e o de es-taduais para nove.

Nos chamados anos de sufoco, o MDB al-cançou os mais baixos índices em 1972, quan-do a percentagem de votos municipais caiu para 19,36% correspondentes a apenas trinta e duas prefeituras. A ARENA totalizou 51,4% dos votos válidos, o que lhe assegurou cento e trinta e oito municipalidades. Em cidades como Campina Grande, os postulantes emedebistas foram me-ramente simbólicos(8).

1.3. A resistência de 1970 a 74 – Mesmo em face da severidade dos órgãos de segurança, o MDB paraibano não desertou da resistência. Enquanto em João Pessoa os vereadores Osval-do Jurema, Álvaro Magliano e Derivaldo Men-donça denunciavam o arbítrio, novas lideranças emergiam em Patos, Pombal, Guarabira, Areia, Bayeux, Catolé do Rocha e Cuité.

Nesses dias tormentosos, a principal voz da resistência emedebista paraibana foi a do deputado federal Marcondes Gadelha que com-punha, com outros parlamentares, os chamados autênticos. Tendo no paranaense Alencar Furta-do sua principal figura, eles se opuseram, cora-josamente, ao modelo político, econômico e cul-tural do movimento de 1964(9).

O governo contaatacou, institucionalizando a tortura, em todo o país. Eram os tempos de

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Médici. Na Paraíba, centro de sevícias funcionou, na localidade Cuités, de Campina Grande, onde foram brutalizados funcionários, sindicalistas e militantes da esquerda ligados ao MDB.

No plano nacional, este respondeu com as anticandidaturas de Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho, à presidência e vice da República. Satirizados pelo cartunista Ziraldo, os anticandidatos não vieram à Paraíba mas, percorrendo o Brasil, fomentaram os resultados de novembro de 1974, em que o MDB absorveu dezesseis das vinte e duas cadeiras em dispu-ta. Tratava-se, claramente, de plebiscito contra o regime militar. Segundo o jornalista Sebastião Nery, em livro desse título, o pleito configurou As 16 derrotas que abalaram o Brasil (1975).

Na Paraíba, totalizando seu quarto conse-cutivo mandato, o veterano senador Ruy Carnei-ro encaixou 297.780 sufrágios sobre 278.590 do desenvolvimentista Aluízio Campos, da ARENA. A representação parlamentar emedebista agora voltava a crescer, com quatro deputados federais e onze estaduais.

Outra novidade consistia na presença da esquerda, dentro da legenda oposicionista, em suas variantes néo-marxista, sindical-janguista e de socialismo mangabeireano, como era o caso dos candidatos Octacílio Queiroz, Arnaldo La-fayete e Cláudio Santa Cruz Costa. Curiosamen-te, a Paraíba elegeu outro senador, no Paraná, através do itaporanguense François Leite Chaves. Como universitário, sua carreira política teve iní-cio na terra natal onde também se tornou sindi-calista do Banco do Brasil(10).

1.4. Dos grupos de resistência e novo discurso à Frente de Redemocratização e fusão com o PP – O sucesso de 1974 vitalizou o MDB paraibano que fortaleceu os grupos de resistên-cia nas áreas cultural, religiosa e estudantil. Ati-vos em Santa Rita, Bayeux e Patos, inspiraram nebulosa guerrilha rural em Catolé do Rocha e controlaram a emissora da Diocese de Cajazei-ras, graças a ligações com os Centro de Justiça e Paz e Pastoral da Juventude dessa cidade. Se-manas Universitárias de participação heterodoxa e emedebista principiaram a questionar o regi-me(11).

Aproveitando a distensão da presidência Ernesto Geisel, com parcial neutralização da co-munidade de informação, o discurso emedebista

subiu algumas oitavas, com Marcondes Gadelha e Octacílio Queiroz, no plano federal, e Ruy Gou-veia, Paulo Gadelha e Bosco Barreto, na Assem-bléia Legislativa.

Nas eleições municipais de 1976, em que a chapa Ivandro Cunha Lima/Orlando Almeida disputou para valer a Prefeitura de Campina Grande, os resultados tornaram-se diversos de quatro anos antes. Mesmo com a abstenção al-cançando 22,7%, a oposição sacou 24,7% dos votos, exatamente a metade da ARENA(12).

Nesse contexto, o falecimento do veterano senador Ruy Carneiro, a 20 de julho de 1977, dinamizou, paradoxalmente, o partido, porque o suplente Ivandro Cunha lima, presidente do Dire-tório Municipal de Campina, vinculou-se ao pre-sidente nacional Ulysses Guimarães e incorporou novos contingentes e linguagem. Com os Cunha Lima em Campina Grande, Paulinos em Guara-bira, Humberto Lucena em Bananeiras/Solânea e familiares do ex-deputado José Maranhão, em Araruna, o MDB principiou a controlar o centro geográfico do Estado. Daí, no futuro, saíram qua-se todos seus governadores(13).

Exercendo o Direito Político de Resistência e apoiando o Movimento Feminino pela Anistia, de dona Terezinha Zerbini, o MDB paraibano cal-çou a Frente Nacional de Redemocratização da candidatura do general Euler Bentes à Presidên-cia da República, em 1978, Ex-comandante da Guarnição Federal da Paraíba, entre 1967 e 68, compareceu a Campina e João Pessoa, para co-mícios públicos, na companhia de seu vice, sena-dor Paulo Brossard.

Nesse mesmo ano, ocoreu a cisão da ARE-NA paraibana. Preterido pela cúpula arenista, o heterodoxo deputado situacionista Antônio Mariz levou seu nome a convenção partidária onde foi suplantado, por pequena margem, pelo Secretá-rio de Educação e Cultura Tarcísio Burity. A mo-bilização política ganhou as ruas, com os arenis-tas do ex-governador João Agripino favorecendo, abertamente, o candidato senatorial emedebista Humberto Lucena, como único aspirante à Câ-mara Alta eleito pela oposição, do Amazonas à Bahia(14).

Quando sobreveio o fim do AI/5, a anistia e a reforma partidária 1978/79, o quadro político paraibano contava com três principais forças – o oficialismo da ARENA, convertido em PDS, a oposição do MDB cuja denominação, mediante

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acréscimo de um “p” de partido, passou para PMDB, e o agripino-marizismo do PP – Partido Popular. Este último contava com organização a cargo do deputado federal (pe)emedebista Car-neiro Arnaud.

Na Paraíba, o Partido do Movimento De-mocrático Brasileiro, oficialmente constituído a 19 de setembro de 1980, em João Pessoa, fun-diu-se com o PP e lançou a candidatura do de-putado Antônio Mariz, ao governo do Estado, no pleito de novembro de 1982. Quase todos os ex--cassados e contingentes esquerdistas, além dos marginalizados pelo regime militar, alinharam-se a seus quadros.

Mesmo assim, elegendo o novo governador do Estado, na pessoa do deputado federal pedes-sista Wilson Braga, o PDS registrou acachapante vitória para os Senado, Câmara Federal e Assem-bléia Legislativa. Esse triunfo tomou como base a massa de pequenos municípios, basicamente wilsista. No plano nacional, como o êxito das oposições do PMDB e PDT ocorreram no centro--sul, o novo governador mineiro Tancredo Neves taxou o PDS de “partido do Nordeste”(15).

1.5. O PMDB e o poder em 1986 e 90 – Eleitoralmente majoritário em municípios como Campina Grande, Patos, Santa Rita, Bayeux, Guarabira e Pombal, o PMDB habilitou-se ao Go-verno da Paraíba, uma vez encerrado o consula-do militar, em abril de 1985.

Esse objeto seria alcançado em dois tem-pos. Ante a ascensão nacional do partido que, sacrificando Ulysses Guimarães, assegurou o conciliadorismo de Tancredo Neves (ex PP) e adesismo de José Sarney (ex-PDS), a fórmula estendeu-se à Paraíba.

Tal se verificou, em 1985, quando o eleito prefeito de João Pessoa Carneiro Arnaud rece-beu o apoio do PDS de Wilson Braga, contra o peemedebista Marcos Odilon, prestigiado pelas esquerdas do PCdoB -, e, principalmente, 1986.

Nesse ano, abdicando da natural candi-datura governamental de Humberto Lucena, o PMDB fechou com o ex areno-pedessista Tarcísio Burity, dentro do entendimento de que “quem ganha eleição é dissidência”.

Politicamente, os acontecimentos subse-qüentes a 1986 não acompanharam as expecta-tivas peemedebistas. Sufragado com mais de tre-zentos mil votos, Burity principiou a apartar-se

da legenda, ao atrair adversários e derrotados, por intermédio da via alternativa do PL do verea-dor Carlos Gláucio.

Com isso, o quadro político paraibano complicou-se, substancialmente. Na Assembléia Legislativa, onde o peemedebista João Fernan-des chegou à presidência, com votos arrecada-dos fora do partido, porque o Governador apoiou o expepista Ramalho Leite, seis peemedebistas situaram-se em oposição ao Executivo... do pró-prio partido... Tal se refletiu na elaboração da nova Constituição do Estado, em 1989. Para o publicista Flávio Satyro, reproduzindo José Amé-rico, a Constituição paraibana de 1989 represen-tou “um fruto peco, deprimente, de nossa cultura jurídica”(16).

Em matéria constitucional, onde o PMDB se houve com destaque foi no plano nacional em que os deputados Antônio Mariz e Agassis de Almeida, de acordo com as especificações do DIAP, obtiveram nota máxima (dez) e nove. O louvadíssimo preâmbulo da Constituição Federal teve como autor o constituinte paraibano Aluízio Afonso Campos, do PMDB(17). Na área municipal, essa agremiação também salientou-se na elabo-ração das leis de Organização Municipal, de João Pessoa e Campina Grande. Os vereadores Fran-cisco Barreto/Potengi Lucena e Félix Araújo Filho ofereceram segura contribuição ao documento básico dessas duas cidades.

Enquanto isso, evitando colidir com o go-vernador Burity, o ex-prefeito de Campina Gran-de, Ronaldo Cunha Lima, alcançou o Governo do Estado, pelo PMDB, em 1990. Ultrapassado no primeiro turno, coube-lhe derrotar o pede-tista Wilson Braga, no segundo, por 704.375 a 571.802 votos(18).

Teve então início experiência ortodoxamen-te partidária. Colocando o PMDB no centro da administração, Ronaldo governou com o partido que controlou a Assembléia Legislativa e elegeu o maior número de prefeitos – 74, afora os aliados, em 171 municípios, de toda História da Paraíba. A coesão peemedebista permitiu-lhe assegurar a governabilidade de Ronaldo, quando este aten-tou contra a vida do antecessor Tarcísio Burity, no restaurante Gulliver, e inocentar o senador Humberto Lucena, na questão dos calendários do Senado(19).

1.6. Ajustes e divergências no PMDB – De

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1994 a 1998, a história do PMDB paraibano re-gistrou sucessão de êxitos somente interrompi-dos com o cisma de março desse último ano.

Sob a liderança do tripé Humberto Lucena--Ronaldo Cunha Lima-Antônio Mariz, com este último substituído por José Maranhão, o PMDB estadual distinguiu-se no impeachment do Pre-sidente Collor, mediante atuação do senador An-tônio Mariz. Assegurou a substituição do (vice) governador Cícero Lucena, por Mariz, em 1994, ocasião em que cravou os dois senadores, oito deputados federais em doze e 19 estaduais, em 36. Ajudou a eleger o novo Presidente da Repú-blica, Fernando Henrique Cardoso, cristianizan-do o postulante partidário Orestes Quércia e, em 1994, elegeu novamente a maioria dos prefeitos, recuperando a Prefeitura da capital e as de Santa Rita e Guarabira, além de manter Campina Gran-de e Cajazeiras(20).

Constituindo nova Comissão Executiva, em 1995, o PMDB da Paraíba, já então com o vice--governador José Maranhão, no Governo do Es-tado, em substituição ao falecido Antônio Mariz, articulou o chamado Acôrdo da Granja. Por meio deste, José Maranhão seria reeleito em 1998, com Ivandro Cunha Lima na vice-governadoria e Ney Suassuna como postulante ao Senado. O prefeito campinense Cássio Cunha Lima seria guardado para 2002, mediante transição asse-gurada pelo tio, Ivandro, quando Maranhão dei-xasse o Governo para se candidatar ao Senado, também nesse ano(21).

Não bastasse isso, seu principal dirigente estadual Humberto Lucena elegeu-se por duas vezes para a presidência do Senado. A enfermi-dade deste, antes do falecimento a 13 de abril de 1998, propiciou, todavia, virtual competição en-tre os governador José Maranhão e senador Ro-naldo Cunha Lima, pelo controle da agremiação. As divergências de bastidores foram num cres-cendo, até explodirem a 21 de março de 1998, no Clube Campestre de Campina Grande.

Aproveitando o aniversário, Ronaldo convi-dou Maranhão para a festa, ocasião em que pro-duziu veemente discurso, cheio de advertências e ameaças(22).

Como resultado, esfumou-se o Acôrdo da Granja, no lugar do qual emergiram dois PMDBs, o do “M”, liderado pelo governador José Mara-nhão, e o do “R”, chefiado pelo senador Ronaldo, dividindo a sociedade inteira. Ante o fracasso das

tentativas de conciliação intentadas pela Executi-va Nacional, os dois grupos partiram para a luta, com o Governador controlando os aparatos parti-dários e os Cunha Lima os Diretórios Municipais e Prefeituras de João Pessoa e Campina Grande.

Duas tensas reuniões do Diretório Estadu-al, uma das quais como Convenção Partidária, a 14 de junho de 1998, sacramentaram a hegemo-nia do Governador José Manranhão, reeleito para o Governo Estadual, a 4 de outubro de 1998, tendo como vice o guarabirense Roberto Paulino. Na pessoa do empresário de educação Ney Su-assuna, o PMDB elegeu, novamente, o senador em disputa. O Presidente da República Fernando Henrique Cardoso foi reeleito com os votos do partido, no Brasil e Paraíba. Chapão para as Câ-mara Federal e Assembléia Legislativa significou primazia peemedebista, embora sacrificando postulantes do melhor nível(23).

Depois dos acontecimentos de março de 1998, em Campina, não haveria retorno. O agru-pamento antimaranhista passou a considerar-se de oposição interna e, com os prefeitos Cícero Lucena e Cássio Cunha Lima, à frente, migrou para o PSDB. Este e o PMDB tornaram-se, então, as principais siglas partidárias da Paraíba, o que explica, como se verá, a feição das eleições esta-duais de 2002 e 2006.

1.7. Um exercício da Sociologia Urbana em 82 – O outro livro sobre o qual nos detemos trata-se de Conflitos e Convergências nas Eleições Paraibanas de 1982, 2002 e 2006(2010).

Dividido em três partes, a primeira enfei-xa Sociologia eleitoral de João Pessoa onde, em 1982, os partidários do candidato governamen-tal peemedebista Antônio Mariz cogitavam de maioria de oitenta mil votos que não passou de dez.

Isso se verificou quando a classe média, propulsora daquela candidatura, viu-se prisio-neira de nova configuração social urbana. Nesse sentido, o chamado milagre brasileiro que em-purrou para a periferia as massas lumpen das População de Baixa Renda (1983), com trinta e uma favelas devidamente catalogadas(24), afetou, profundamente, a classe média, em suas varian-tes de média-alta, média-média, e média-baixa.

Esses extratos, andando de ônibus, em razão do aumento da gasolina, esmagados pela correção monetária do BNH e pendurados nos

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bancos onde contraíram empréstimos, subordi-nados à elevação da taxa de juros, perderam a condição de se opor ao Governo, como à época dos prefeitos Oswaldo Pessoa e Luiz de Oliveira Lima e governadores José Américo e João Agri-pino.

Em uma palavra, a capital paraibana deixa-ra de assinalar o predomínio das classes médias de funcionários públicos que votavam contra o governo(25).

Ao revés, agregada ao aparelho de Estado cujo extraordinário crescimento favorecia o go-verno e seu braço político-eleitoral do PDS, as camadas médias dividiram-se, daí resultando a vantagem média marizista de 12,4 votos na Tor-re, 15,81 em Cruz das Armas, 12,66 no centro, 22,58 em Jaguaribe e apenas 3,13 votos, nas se-ções da Escola Técnica Federal da Paraíba.

Com o voto vinculado desse pleito, tais re-sultados deveram-se, em grande parte, à votação do candidato a deputado federal pedessista Tar-císio Burity que, de um total de 173.107 votos no Estado, integralizou nada menos de 34.890 votos em João Pessoa, onde só deixou de ser o mais votado em raríssimas urnas. Essa performance buritizista também contribuiu para travar a su-premacia média peemedebista em redutos como Bancários, Expedicionários e Miramar onde não passou de, respectivamente, 14,5, 20,67 e 34,42 sufrágios por urna. Dentro desse quadro, o PDS chegou a vencer no Conjunto Geisel(26).

Ante as características dessa abordagem eleitoral, mais social que política, “A capital pa-raibana no pleito de 1982” discute as peculia-ridades da nova classe média – apendicular ao aparelho de Estado – e o calo verticalista do populismo braguista que a capturava, mediante doação paternalista acionada pela máquina bu-rocrática.

Nesse particular o esquema estatal do oca-so do consulado militar penetrou firme junto às classes médias e periferia da capital, reduzindo, consideravelmente, a maioria peemedebista.

1.8. Dissidência e emersão do PT – A segunda parte de Conflitos e Convergências nas Eleições Paraibanas de 1982, 2002 e 2006(2010) focaliza as eleições governamentais paraibanas de 2002.

Nelas, em razão dos acontecimentos do Clube Campestre, de março de 1998, defronta-

vam-se o PSDB do candidato Cássio Cunha Lima e o PMDB do (vice) governador Roberto Paulino, substituto de José Maranhão, postulante ao Se-nado.

Explorando a conhecida tese da dissidên-cia como histórica determinante do processo eleitoral paraibano, os tucanos saíram na frente, ao atraírem o PFL a cujos filiados Wilson Braga e Efraim Moraes reservaram-se as duas vagas se-natoriais.

Essa situação permaneceu até o início de setembro de 2002. Como as eleições eram ca-sadas, o PMDB, todavia, começou a crescer por conta da supremacia, em sua categoria, do can-didato presidencial petista Lula da Silva e pulsão do aspirante governamental Avenzoar Arruda, bem votado em João Pessoa e áreas de tensão social onde os assentamentos rurais prolonga-vam as Ligas Camponeses, anteriores a 1964(27).

Com as alianças PSDB/PFL e PMDB/PT elegendo cada uma um senador e repartindo, quase meridianamente, os deputados federais e estaduais, a consulta governamental foi enca-minhada ao segundo turno. Neste, o favoritismo propendeu para o peemedebista Roberto Pauli-no, como beneficiário do apoio de Lula e iminen-te fusão dos votos governamentais peemedebis-tas e petistas do primeiro turno, em municípios da zona litorânea(28).

Para triunfar por 889.922 sufrágios a 843.127, o candidato Cássio Cunha Lima rea-lizou ingente esforço que consistiu em, arregi-mentando prefeitos aliados no clube AABB, de Campina Grande, mobilizar o eleitorado evan-gélico de classe média, otimizar os redutos de Campina Grande, Santa Luzia, Patos, Cajazeiras e Solânea, atrair a esquerda moderada, até do próprio PT, e reformular o comando da campa-nha oposicionista.

No segundo turno, este transferiu-se para o eleito senador pefelista Efraim Moraes que inter-veio no diretório partidário de Campina Grande e concentrou esforços na grande João Pessoa atra-vés dos candidatos governamental Cássio, sena-dor Ronaldo Cunha Lima e prefeito Cícero Lucena cuja esposa Lauremília Lucena era candidata a vi-ce-governador do Estado pela aliança PSDB/PFL.

1.9. Na revanche de 2006 – Desde os acontecimentos de março de 1998, em Campi-na Grande, as estruturas partidárias da Paraíba

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enrijeceram-se de tal modo que as eleições de 2006 podem ser consideradas revanche de 2002.

Não só os blocos políticos eram os mes-mos – PSDB/PFL do candidato a reeleição Cás-sio Cunha Lima contra o binômio PMDB/PT do senador José Maranhão – como as entranhadas rivalidades se mantinham acesas. Em razão dis-so, ninguém mudou de lado. O fator dissidência, responsável pelas decisões eleitorais de 1950, 58, 60, 82, 86, 90 e 2002, deixou de existir.

Refeita dos insucessos municipais de 2004, a coligação tucano-pefelista deslanchou porque organizou mais cêdo sua chapa. Os adversários não só demoraram a fazê-lo como se expuseram a fricções internas, devido às clivagens entre o candidato senatorial Ney Suassuna e o aspirante governamental José Maranhão. Quando o presi-dente Lula veio à Paraíba, Ney não subiu ao pa-lanque deste.

Nessa perspectiva, o primeiro turno já incli-nou o pêndulo para o agrupamento PSDB/PFL. Este elegeu o senador em disputa e a maioria dos depu-

tados estaduais, enquanto o PMDB encolhia(29).Mesmo assim, prevaleceu o equilíbrio de

forças entre Cássio (943.992 votos) e José Mara-nhão (926.272), com a votação dos nanicos Da-vid Lobão, Lourdes Sarmento, Marinésio Ferreira e Francisco Firmino transferindo a decisão para o segundo turno.

Este foi também acirradamente disputado. A presença do candidato presidencial à reelei-ção Lula da Silva não acarretou a influência de quatro anos antes. Sua votação, algo clientelista, não se transferiu para o aliado José Maranhão(30). Já Cássio Cunha Lima, embora sem o tradicional contingente de Campina Grande, compensou-se com a massa de pequenos municípios, alguns dos quais, como Igaracy e Cubati, reverteram, na passagem do primeiro para o segundo turno.

Para alguns analistas, a vitória do tucano Cássio Cunha Lima por 1.103.102 votos (51,35%) a 960.269 (48,65%), do peemedebista José Ma-ranhão, teria derivado da maneira como o eleito-rado jovem e feminino formou a seu lado(31).

(1) O livro de Blondel da declarada inspiração do autor é

As Condições da Vida Política no Estado da Paraíba. Rio de

Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1957. A segunda edi-

ção, pela Assembléia Legislativa, em 1994, contou com

prefácio de José Octávio.

(2) MELLO, José Octávio de Arruda. Formação, Resistência

e Ascensão Política: O (P)MDB na Paraíba (1965/79), in

Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica – SBPM, Anais

da XX Reunião. Curitiba: SBPH, 2001, p. 387. A distinção

considera que, enquanto o MDB da Guanabara registrava a

excrescência do chaguismo e o do Rio Grande do Sul recor-

te getulista e jongo-brizolista que o expunha a frequentes

punições, o paraibano tornava-se mais ameno, por posicio-

namento centrista, levemente à direita com Ruy Carneiro e

mais levemente ainda, à esquerda, com Humberto Lucena.

(3) Nas eleições paraibanas de outubro de 1965, o sena-

dor João Agripino, da coligação UDN/PDC/PL, derrotou

seu colega Ruy Carneiro, da aliança PSD/PTB/PSB, por

168.712 a 165.782 votos. Ainda hoje, os derrotados con-

testam a legitimidade desses números.

(4) MELLO, José Octávio de Arruda. Da Resistência ao Poder

– O (P)MDB na Paraíba (1965/1999), Campina Grande:

EDUEP, p. 49/50. Os casos de Santa Rita e Sousa eviden-

ciam a influência das questões locais no reclinhamento

partidário paraibano.

(5) Ibidem, p. 71 e 74. Tal como no Brasil, já nas origens

do consulado militar o MDB tendia a significar a socieda-

de e a ARENA o Estado.

(6) Enquanto Dom Helder Câmara tornou-se Arcebispo de

Olinda e Recife, logo após o golpe militar, a 12 de abril de

1964, Dom José Maria Pires converteu-se em Arcebispo

da Paraíba em 26 de março de 1966. Ambos distingui-

ram-se pela firme oposição ao regime castrense.

(7) MELLO, José Octávio de Arruda.Da Resistência ao Po-

der - O (P)MDB na Paraíba (1965/1999), p. 88. Os par-

lamentares punidos com perda de mandato e suspen-

são de direitos políticos, na Paraíba, foram os federais

Osmar de Aquino, Vital do Rêgo e Pedro Gondim e es-

taduais Mário Silveira, José Maranhão, Ronaldo Cunha

Lima (que se encontrava como prefeito de Campina) e

Sílvio Porto, Francisco Souto, Robson Espínola e Romeu

Abrantes. Em outubro de 68, o CONTEL suspendeu as

transmissões do RádioArapuan de João Pessoa do qual

o autor era redator chefe.

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(8) Estatísticas eleitorais: Estado da Paraíba, João Pessoa:

FIPLAN, 1982 (Resultados das eleições para Prefeitura

Municipal (15/11/1997), João Pessoa, in MELLO, José

Octávio de Arruda. Da Resistência ao Poder – O (P)MDB na

Paraíba (1965/1999), cit. P. 186. Em Campina, o emede-

bista Nestor Alves Filho sacou apenas 2.150 votos contra

40.001 dos arenistas Evaldo Cruz e Juracy Palhano. O

grosso da oposição votou em um dos aspirantes arenis-

tas.

(9) Completa análise dos autênticos do MDB que, entre

1971 e 76, constituíram o principal núcleo de resistên-

cia oposicionista ao regime militar, na Câmara Federal,

encontra-se NADER, Ana Beatriz – Autênticos do MDB:

semeadores da democracia (História Geral da Vida Po-

lítica). Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1975. O

cearense Alencar Furtado, deputado pelo Paraná, cunhou

o importante Salgando a Terra (Rio de Janeiro: Paz e Ter-

ra, 1977), Coletânea de discursos prefaciada por Alceu

Amoroso Lima.

(10) SEBASTIANI, Sylvio. Por Dentro do MDB do Paraná.

Curitiba: 1992, p. 50. Na companhia do ex-deputado Jo-

nas Leite Chaves, irmão de François, o autor entrevistou

Sebastiani, em Curitiba, a 27 de julho de 1999.

(11) MELLO, José Octávio de Arruda. Da Resistência ao Po-

der – O (P)MDB na Paraíba (1965/1999), cit. P. 123/6. A

nebulosa guerrilha rural de Catolé do Rocha, que enqua-

drou vereadores do MDB constitui tema de pouco conhe-

cida dissertação de mestrado do ex-deputado Francisco

Marcelino Moniz de Medeiros (Frei Marcelino).

(12) Em Campina Grande, como segundo maior colégio

eleitoral do Estado, os candidatos a prefeito emedebistas

Ivandro Cunha Lima e Orlando Almeida sacaram 15.563

e 10.798 votos contra 19.972 e 9.985 dos arenistas Eni-

valdo Ribeiro e Juracy Palhano. Em eleitorado de 87.442

eleitores, os votos em branco ascenderam a 1.299 votos

e os nulos a 2.825, com abstenção de 30,4%.

(13) O fenômeno pode ser esclarecido através do mapa da

página 134 de Da Resistência ao Poder – O (P)MDB na Pa-

raíba (1965/1999), cit. Com efeito, do centro geográfico

paraibano provieram os governadores peemedebistas Ro-

naldo Cunha Lima, Cícero Lucena, José Maranhão e Ro-

berto Paulino, assim como o neo-peemedebista Tarcísio

Burity, de Ingá, nas vizinhanças de Campina. O sousense

Antônio Mariz não provinha do MDB histórico.

(14) MACHADO, Jório. Resistência ao Medo (História de uma

Eleição Indireta para governador). J. Pessoa: O Momento,

1978, passim.

(15) A mais circunstanciada análise das eleições paraiba-

nas de 1982 encontra-se em MELLO, José Octávio de Ar-

ruda. Historiografia e História das Eleições na Paraíba – Es-

tado e Sociedade em 1982 (mimeo, 1992) como tese de

doutorado produzida para a USP, sob orientação do his-

toriador José Sebastião Witter. Meu entendimento consis-

te em que, na Paraíba, os pequenos municípios estavam

para os grandes, como, no plano nacional, os Estados

mais atrasados no Norte/Nordeste, figuravam para seus

congêneres mais avançados do Centro-Sul. Quer dizer,

tanto em um como em outro caso, o PDS apoiava-se em

relações sociais mais atrasadas.

(16) SATYRO, Flávio. “Radiografia de uma Constituição” in

Conheça uma Constituição. J. Pessoa: Universitária, 1995,

p. 257.

(17) Em pronunciamento a 27 de janeiro de 1988 na Câ-

mara dos Deputados o também constitucionalista Afonso

Arinos de M. Franco considerou o preâmbulo da Carta

de 88 como de autoria do colega Aluizio A. Campos, do

PMDB da Paraíba, a quem elogiou.

(18) No primeiro turno das eleições governamentais de

1990, na Paraíba, os números acusaram 478.763 vo-

tos para Wilsom Braga, do PDT, 462.562 para Ronaldo

Cunha Lima do PMDB, 137.487 de João Agripino Neto,

do PDS, 44.719 de Genival Veloso de França, do PT, e

6.494 votos de Juracy Palhano, pelo PDC.

(19) Sobre o chamado atentado do Gulliver veja-se a ma-

téria de capa da revista Veja 1313 de 10 de novembro

de 1993 – “Denúncias respondidas a balas – o governa-

dor da Paraíba, Ronaldo Cunha Lima, revida com tiros as

acusações do ex-governador Tarcísio Burity”. Quanto ao

caso das confecções de calendários pelo Senador Hum-

berto Lucena consultem-se os discursos parlamentares

do deputado Antônio Mariz, em cima dos quais o jornalis-

ta Gerardo Melo Mourão produziu a Série “O Novo Négo

da Paraíba” para a Imprensa carioca.

(20) Diante dessas iniciativas, o autor considerou que o

PMDB da Paraíba “navegava em céu de brigadeiro” cf.

MELLO, José Octávio de Arruda - Da Resistência ao Poder

– O (P)MDB na Paraíba (1965/1999), cit. p. 216/227.

(21)O Acordo da Granja ganhou esse nome por haver sido

celebrado na Granja Santana, residência oficial do gover-

nador. Na sequência dos acontecimentos, o humorista

Cristovam Tadeu satirizou-o, inteligentemente, in “char-

ges que dizem tudo” in O Norte de 29 de março de 1998,

p. 19.

(22)Uma das melhores versões dos acontecimentos do Clu-

be Campestre foi a de O Norte de 24 de março de 1998

em matéria de primeira página “PMDB racha de vez”.

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(23) O chapão das eleições para deputado federal de 1998

implicou no sacrifício dos deputados Zito Clerot, conside-

rado pela revista Veja um dos dez melhores do país, do

PMDB, e Álvaro Gaudêncio Neto, do PFL.

(24) População de Baixa Renda. J. Pessoa: FIPLAN, 1983,

com detalhada análise das trinta e uma favelas então

existentes em J. Pessoa.

(25) MELLO, José Octávio de Arruda. “A Capital Paraibana

no Pleito de 1982” in Conflitos e Convergências nas Elei-

ções Paraibanas de 1982, 2002 e 2006. J. Pessoa: O Sebo

Cultural, 2010, p. 25/7.

(26) Ibidem, p. 31, com análise do comportamento eleito-

ral do ex-governador Tarcísio Burity.

(27) MELLO, José Octávio de Arruda. “Vitória Tucana e Sin-

gularidades Eleitorais na Paraíba de 2002” in Conflitos

e Convergências nas Eleições Paraibanas de 1982, 2002 e

2006, cit. P. 63 e 76. Os municípios onde os assenta-

mentos do MST prolongavam o irredentismo das Ligas

Camponesas eram o Pilar, Alagoa Grande, Sapé, Conde,

Alhandra, Caaporã, Pilões, Pedras de Fogo e Espírito San-

to em que os percentuais petistas alcançaram respectiva-

mente 17,6%, 15,01%, 23,2%, 12,6%, 12,04%, 18,6%,

9,2% e 12,8%.

(28) Os municípios litorâneos onde o candidato Roberto

Paulino, conjugando votos do PMDB e PT, ameaçava tri-

turar Cássio Cunha Lima no segundo turno das eleições

de 2002, eram Santa Rita, Bayeux, Cabedelo e Conde.

Sobre eles incidiu a atuação do senador Ronaldo Cunha

Lima, recorrendo ao apoio dos vice-prefeitos locais.

(29) Mello, José Octávio de Arruda. “Paraíba 2006: Êxito

Cassista na Revanche de 2002” in Conflitos e Convergên-

cias nas Eleições Paraibanas de 1982, 2002 e 2006, cit. P.

97 e 100.

(30) Ibidem, p. 97. A diferença de votos entre Lula e José

Maranhão foi de pouco mais de 497 mil.

(31) Ibidem, p. 97 e 101, com tais colocações derivando de

survey junto à Associação dos Professores de Licenciatu-

ra Plena (APLP).

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60Maria Lúcia de Oliveira

Sincronia e pancronia:

linguísticas modernas

1. As iniciais

As várias correntes da Linguística atual são divergentes, especialmente no que diz res-peito à noção de estrutura que cada uma adota. Para umas, há um modelo estático que se refere à língua em sua imanência. Para outras, voltadas para razões biológicas, sociais, culturais e histó-ricas, há um modelo que concebe o signo tutela-do por uma dinâmica entre os signos linguísticos e os usuários. Essas linhas de pesquisa, cujas teorias cientificamente se distinguem, conforme Barbosa, “podem ser agrupadas, ainda que de maneira elementar, em dois grupos”. Conforme a nomenclatura utilizada pela autora, há um grupo denominado de meta/modelos sincrônicos (que

prioriza a análise do sistema linguístico está-tico, e não, se modificável pelo uso), e outro, denominado de meta/modelos pancrônicos (que concebe o sistema linguístico como um processo estrutural dinâmico que se modifica pelo uso).

As distintas perspectivas epistemoló-gicas permitem observar orientações teó-ricas que se aproximam e se distanciam de modo racional, embora tenham origem em abordagens diferentes que, de algum modo, foram denominadas e ficaram conhecidas na literatura pertinente como formalistas e fun-cionalistas. Elas propõem várias dicotomias: opõem língua/fala, código/mensagem, com-petência/desempenho, sistema/processo. No

Resumo

Este artigo analisa as interfaces da Linguística moderna, numa instância sincrônica e pancrônica, como metateorias que guardam entre si distanciamentos e aproximações epistemológicas e metodologias coerentes. Procuramos fazer da aná-lise um percurso dos vários cruzamentos teóricos, tendo como objetivo demonstrar as contribuições da cada proposta para o desenvolvimento da Linguística moderna. Abordaremos a relação da Semiótica, como uma disciplina nova, inaugurada por Greimas, nos anos 60, em face das duas principais correntes: o formalismo e o funcionalismo.

Palavras-chave: Sincronia. Pancronia. Semiótica. Ideologia.

Doutora em Linguística e Língua Portuguesa – Universidade Federal da Paraíba/UFPB

E-mail: [email protected]

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entanto, observa-se que essas abordagens têm em comum uma conhecida metodologia, que se constrói na base da dualidade do objeto/língua.

2. Metamodelos sincrônicos 2.1. Imanência: Saussure

Epistemologicamente, os modelos sincrôni-cos caracterizam-se por desconsiderar toda e qual-quer interferência histórica e de domínio humano, uma vez que concebem a língua como objeto arbi-trário e imanente, totalmente estável e abstraído de outras áreas do conhecimento. Sua estrutura só muda, em longo prazo, em função, exclusivamente, das forças imperativas do tempo. As questões de ordem enunciativa são concebidas como desorga-nizadas e impossíveis de serem classificadas, fixa-das e estudadas cientificamente. São representan-tes dessas perspectivas linguísticas importantes o suíço Saussure, o francês Martinet e o americano Chomsky, para citar os mais identificados com o estruturalismo, como foi concebido e profunda-mente estudado no Ocidente.

Em Saussure, há um aspecto interessante que não se percebe com muita nitidez noutros linguistas e que merece destaque: é o fato de que, para o genebrino, a língua não se confunde com a linguagem. Na literatura linguística, é co-mum o uso dos termos língua e linguagem como sinônimos, o que causa dúvidas a quem não é muito afeito às nomenclaturas desses pequenos universos do conhecimento. Na realidade, Saus-sure se refere à não possibilidade de tratamento científico das linguagens, exceto a vocal, como universos diversos de formas e sentidos que vão além do sistema de signos linguístico em si mes-mo. É dessa visão metodológica rígida que vem a clássica separação entre os atos linguísticos (pa-role) e o sistema de suporte (langue). Vem des-se ponto de vista também a ideia do mestre de que é a Semiologia que trata dos signos não lin-guísticos. A língua, como um conjunto de signos imanentes e inter-relacionados, define-se como coletiva e imutável. Também de forma bem níti-da, Saussure (1916/2004, p.81) demonstra que “[...] o signo linguístico é arbitrário”, e o tempo é o fator de mutação por excelência.

2.2 Dupla articulação: André Martinet

O funcionalista Martinet apresenta con-

tornos mais “abrangentes” sobre a natureza da língua, ao concebê-la como um fenômeno ima-nente, mas voltada para a comunicação social. Trata-se de um processo composto de dois ele-mentos básicos: o código, que são os elemen-tos linguísticos, e a mensagem, que são as in-formações operacionalizadas pelos atos de fala. Isso implica dizer que, na realização do sistema linguístico, o falante pode escolher os elementos estruturais do ato de fala para estabelecer a co-municação. No entanto, o linguista não estuda como a informação se processa nem como se efetiva entre os interlocutores, conforme afirma: “[...] l’homme emploie souvant pour s’exprimer, c’est-à dire pour ce qu’il ressent sans s’occuper outre mesure dês réactions d’auditeurs éven-tuels” (MARTINET, 1970, p.10).

A palavra “abrangentes” nada tem a ver com a relação de uso, enunciação ou transfor-mação, ao contrário, a postura de Martinet é idêntica à de Saussure. A mudança é apenas de caráter sistêmico linguístico e não tem rela-ção com a enunciação efetivada pelos indivídu-os. A mutação, nesse contexto, também ocorre em longo prazo, através do tempo, sem que o falante interfira ou perceba. Para complementar o dito sobre o tempo real da mudança, Martinet (1969, p.163) indica: “Les locuteures n’ont géné-ralement pas conscience que leur langue change. Quand on leur dit et q’on leur montre comme elle était différente Il y a quatre ou cinq siécles [...].”

2.3 Gramática gerativa: Chomsky

Por volta de 1957, o linguista acredita que sua gramática gerativa seria a melhor solução que revolucionaria a Linguística moderna. A pro-posta publicada no livro, Syntatic Structures, esta-belece uma nova metodologia de análise restrita ao âmbito da sintaxe das frases, considerando dois níveis de análise: o superficial e o profundo. No nível estrutural de primeira articulação (sin-tática), uma sentença como A rua é perigosa, considerando-se apenas o nível linear, é perfeita, aceitável e utilizada com frequência pelos falan-tes, devido aos termos que a constituem. Um gramático da linha tradicional diria que é uma frase nominal constituída de um sujeito e um pre-dicado. O sujeito é um substantivo, e o predicado é formado por um verbo de ligação e um adjetivo, que é chamado de predicativo, como outras sen-

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tenças semelhantes da língua portuguesa. Do ponto de vista do sentido subjacente,

porém, não reconhece que há um julgamento do falante de que não há rua perigosa. Assim, a frase encerra outro enunciado e denota outra informação: Atravessar a rua é perigoso, seja porque o trânsito é veloz ou lento, e as pesso-as não podem passar sem correr o risco de ser atropeladas e até mortas, ou porque a rua é es-buracada, alagada, não tem sinalização e outras possibilidades de enunciação coerentes. Pode--se, então, dizer que a metodologia gerativa de considerar a língua como um conjunto de regras homogêneas interiorizadas pelo falante torna impossível explicar as próprias regras da gramá-tica transformacional, inclusive a ambiguidade estrutural e outras inconsistências do sistema. Aliás, a inconsistência, nesse contexto, significa que os falantes reconhecem o que é aceitável e o que não é no sistema de regras lineares, embora esse conhecimento não seja necessário, porque o próprio sistema já o tem como uma previsão automática. A gramática gerativa também pro-põe que se separe o que é linguístico do que não é, reformule-se a dicotomia saussuriana e se conceba a dicotomia competência x performance.

Eis o dizer de Lyons (1970, p.63) sobre a proposta da gramática de estrutura da frase:

O passo revolucionário dado por Chomysk, no que diz respeito à Linguística, foi o de recor-rer [...] (a teoria dos automata finitos e teoria das funções recursivas) aplicando-o às línguas, como o inglês, e não a línguas artificiais cons-truídas por lógicos e por cientistas especializa-dos em computação. Fez ele, no entanto, mais do que simplesmente apanhar e adaptar, para uso dos linguistas, um já existente sistema de formalização e um conjunto de teoremas de-monstrado por outros.

O autor acrescenta que

o que Chomsky sustentou, em Syntactic Struc-tures e em outros trabalhos, foi existirem sen-tenças em inglês que só ‘canhestramente’ po-deriam ser colocadas no sistema de referência proporcionado pela gramática de estrutura de frase – ou seja, só se poderia fazer de maneira que é ‘extremamente complexa, ad hoc e ‘não esclarecedora.

3. Metamodelos pancrônicos É fato indiscutível que as línguas têm como

característica inerente as constantes transfor-mações advindas de múltiplos fatores já crista-lizados por muitas escolas linguísticas. Durante muitos anos, algumas escolas inferiram ao tem-po o fator preponderante das mudanças e só aos linguistas competia estudá-las e “resolvê-las”, buscando sempre estabelecer entre as línguas o mínimo de diferenças possíveis. Outros linguis-tas seguiram um rito diferente, mas não tanto, para tentar adentrar um mundo linguístico, cujo fator desencadeador da instabilidade fosse a ne-cessidade comunicativa dos falantes de vários grupos sociais e a capacidade de selecionar, de modo adequado, os elementos formais da lín-gua. Nesses casos, as abordagens, novamente, eram de cunho estruturalista.

Diante das limitações das abordagens sin-crônicas e diacrônicas, algumas linhas da Lin-guística atual, como a Semiótica francesa, por exemplo, fizeram uma fusão entre as duas abor-dagens para poder compreender a fenômeno em sua generalidade. É dessa tentativa de neutrali-zação que surge a abordagem pancrônica, que concebe a língua como um sistema enunciativo em constante transformação discursiva. Isso quer dizer que a Semiótica greimasiana se apre-senta com fundamentos que se organizam pan-cronicamente ao se voltar para as relações entre linguagem e sociedade.

A pancronia já se fazia presente em es-tudos anteriores, como na Análise do Discurso (AD), na Pragmática, na Semiótica, entre outras, que transitam, metodologicamente, entre a sin-cronia e a pancronia, uma vez que se concen-tram em aspectos que fazem referência ao dina-mismo de vários fenômenos linguísticos. Pode-se ilustrar essa assertiva citando como exemplos Eugênio Cosério e Hjelmslev, em cujas pesquisas se percebe a presença de uma visão pancrônica de sistema e de estrutura.

3.1 Estrutura tríplice: Coseriu

Coseriu concebe a língua sob um aspecto tripartite: o sistema, a norma e a fala (“uso”). Para o linguista, a dualidade peca por se deter na imanência, busca dados permanentes e não se vale de dados concretos que construam a fun-

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cionalidade da linguagem. No entanto, a norma e o sistema mantêm a mesma concepção: repre-sentam, respectivamente, o primeiro e o terceiro níveis de abstração para a análise dos fatos lin-guísticos. Os dois níveis são organizações abs-tratas, embora o sistema não esteja distribuído em toda a comunidade linguística. Como se vê, a variação linguística está no nível da fala que é acidental e não se repete nas mesmas condi-ções do tempo, de enunciado ou de enunciação. A abordagem de Coseriu pode ser sintetizada da seguinte maneira “(...) a mudança linguística que atinge os níveis se inscreve no mesmo processo dinâmico, cujo ponto de partida é sempre o in-divíduo falante-ouvinte” (BARBOSA, 1996: p.43).

4.1 Teoria da glossa: Hjelmslev

Pode-se dizer que o dinamarquês foi o mais ousado fundador de uma teoria para des-crever a língua. Foi ele também um dos linguistas que usou a lógica matemática para operacionali-zar as investigações linguísticas, moldadas pelos pensamentos mais profundos de Saussure sobre a língua. De Saussure mantém as concepções de que a língua é forma, e não, substância e de que toda língua tem dois planos indissociáveis: o de conteúdo e o de expressão. O autor amplia esses dois planos e propõe como elementos do conte-údo uma substância sêmica e uma forma sêmi-ca, que formam o significado. Para o plano de expressão, o mesmo acontece: a expressão tem forma fêmica e uma substância femêmica, que fomam o significante.

À interdependência entre os dois planos, Hjelmslev chamou de função semiótica, que se solidariza e, ao mesmo tempo, se opõe numa re-lação dialética. Sobre signo e função, Hjelmslev (1975, p.53) afirma o seguinte:

[...] deixaremos, por ora, de falar em signos pois não sabemos o que são, procuramos defini-los, a fim de tratar daquilo cuja existência consta-tamos, isto é, a função semiótica, situada en-tre duas grandezas: expressão e conteúdo. É partindo dessa consideração fundamental que poderemos decidir se é adequado considerar a função semiótica como uma função externa ou interna da grandeza que chamamos de signo

Pode-se deduzir que a função semiótica

é o meio operacional para o sistema funcionar, que produz o discurso e transforma-o de manei-ra ininterrupta, num mecanismo de alimentação e regulamentação da própria função semiótica.

4.2 Níveis semióticos: Greimas

A ciência da significação advinda da Semi-ótica linguística tem como seu maior represen-tante, nos anos 60, Algirdas Julien Greimas. O status dessa ciência advém dos trabalhos do au-tor e auxiliares. A Semântica Estrutural (1966) rejeitou a ideia de que a Semiótica era apenas a ciência dos signos, uma vez que essa percepção não permitia que a “nova” ciência alargasse os limites das descrições intuitivas e filosóficas, já que também estavam circunscritas na análise da significação. Seu grupo e núcleo de pesquisas fo-ram tão importantes que deram origem à École de Hautes Études em Sciences Sociales de Paris.

É a partir dessa nova visão e de outras pro-postas epistemológicas que Greimas deixa de lado as preocupações da simples descrição da comunicação, para desbravar os sentidos atra-vés de novos métodos, avançando em direção ao discurso. Desse ponto de vista, a linguagem é uma rede de relações significativas, e não, um sistema de signos concatenados. Na definição de Greimas, a Semiótica é uma teoria abrangente, que integra a comunicação na vertente da com-petência dos sujeitos enunciativos a um processo de construção da significação que ocorre da se-guinte maneira: a priori, cada novo ato enunciati-vo é retomado por outrem, que retoma os valores e os atualizam com outras feições, que vão (re)construindo novos sentidos que circunscrevem no discurso.

O objetivo principal dos semioticistas não é de saber o que foi dito, no sentido convencio-nal abstrato, mas como foi dito; onde os senti-dos aparecem como veridictórios, simulacros da realidade. Na atualidade, a Semiótica, como ci-ência, define-se da seguinte maneira, conforme Pais (1993: p.57):

La sémiotique peut être definie comme La science de La signification. Son objet est de constitué par lês sistèmes sémiotiques – ver-baux, non-verbaus et complexes ou syncréti-ques – et leus discours. Elle oposse, donc à La conception système de signes de La sémiologie

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structuraliste, as conception de système de sig-nification. Greimas concebe o sentido como uma for-

mação significativa, como um percurso que vai do mais simples e abstrato até o mais comple-to e concreto, atento às dependências internas que constroem qualquer unidade textual, seja ela verbal ou não verbal. As estruturas geradoras da significação estão no nível narrativo, que com-porta o fazer de um sujeito semiótico, motivado por destinador, auxiliado por um adjuvante e pre-judicado por um oponente. No nível discursivo, produzem-se as relações de fidúcia, em que as escolhas vão transformar a narrativa em discur-so, e no nível fundamental, estão as relações se-mânticas básicas em torno das quais o discurso se constrói.

Na realidade, o primeiro nível é o funda-mental, ou profundo, que representa o início do discurso. Esse nível é o operatório através das axiologias, dos valores recorrentes ou das ideolo-gias. O gráfico que representa esse eixo lógico é

conhecido como quadrado semiótico, que repre-senta um microuniverso semântico do discurso, como, por exemplo, amor e ódio. O vínculo entre os dois termos gera os contrários, os contradi-tórios e as implicações. O quadrado semiótico foi ampliado por vários motivos, em função da complexidade das relações semânticas e enun-ciativas específicas de cada cultura ou grupo so-cial, que empregam procedimentos enunciativos direcionados à leitura da verdade, da mentira e até da dissimulação, fruto de coerções sociais, culturais, históricas, entre outras.

Quando se compõe um discurso-enuncia-do, existem estratégias discursivas que indicam como o sentido deve ser compreendido ou não, encerrando, assim, um contrato de identidade ou de não identidade. Por exemplo, tradicional-mente, nas fábulas, a elocução é feita através de animais ou de seres sem o poder de fala arti-culada real. Entretanto esses seres agem e têm sentimentos e defeitos como os seres humanos. Dessa maneira, explicitam sentidos e conteúdos verdadeiros.

COSERIU, Eugenio. Teoria da linguagem e Linguísti-

ca geral. Rio de Janeiro: Presença, Editora da Univer-

sidade de São Paulo, 1979.

GREIMAS, J. A. Semântica estrutural. São Paulo:

Cultrix Edusp, 1973.

HJELMSLEV, LOUIS. Prolegômenos a uma teoria da

linguagem. Tradução de J. Teixeira Coelho Neto. São

Paulo: Perspectiva, 1973

LYON. John. As idéias de Chomsky, 4ª ed. São Paulo:

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ria Aparecida. Língua e discurso: contribuição aos Estudos

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sive. Doctorat d’Etat eLettres et Sciences Humaines.3

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Université de Paris-Sorbonne(Paris-IV),1993.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral.

(A. Chelini, J.P.Paes & I. Blinkstein, Trads., 32a ed.) São

Paulo: Cultrix

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 65

65Maria Auxiliadora Leite Botelho

Professora Doutora do Departamento de Serviço Social da UFPB - Campus João Pessoa. Doutora em Ciências Socais pela Universidade Estadual de Campinas

Questão urbana e a moradia popular

Pensar a questão urbana é pensar sobre a vida que levamos nas cidades. Entende-se que a cidade é produto das ações dos homens em da-das condições históricas; lugar de tensões, con-tradições e, ao mesmo tempo, de reprodução da ordem. A cidade pré-existiu à industrialização, porém a questão urbana e os problemas rela-tivos ao crescimento desordenado das cidades uma consequência da industrialização. Quando a burguesia toma a seu encargo o desenvolvimen-to econômico, político e social da cidade, tudo vira mercadoria, que passa a mediar as relações entre as pessoas e as coisas. “O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização

tendem a destruir, ao suborná-los a si, a cidade e a realidade urbana...” (LEFEBVRE, 2001,p.14). No lastro desse processo, a questão da habi-tação se transforma num grave problema para a classe trabalhadora que, sem “direitos”, tra-va um constante embate com a burguesia e o Estado pelo direito à moradia.

Em “Para a questão da habitação”, En-gels assinalava que, para entender a confor-mação das cidades, é preciso se reportar à destruição da manufatura e ao surgimento da indústria – fato determinante para a formação do espaço urbano e, por conseguinte, o capital a ela vinculado. Na visão do citado autor, sob

Resumo

O presente artigo tece algumas reflexões sobre a questão urbana no Brasil e os problemas decorrentes da ocupação desordenada e irregular do solo urbano, que dão origem à proliferação das favelas. O déficit na área da habitação popular tem levado o trabalhador a apelar para a autoconstrução como uma forma de solucionar, por conta própria, a lacuna deixada pelas políticas habitacionais. Regiões sem a mínima infraestrutura e sem a rede de serviços essenciais à reprodução da classe trabalhadora vão conforman-do esses assentamentos ilegais. A ausência crônica do Estado na condução do desenvolvimento urbano, aliada à mercantilização do solo, gerou um quadro de profunda desigualdade e segregação socioespacial no qual se consolida uma estrutura social dualizada entre ricos e pobres, cidadãos e não cidadãos.

Palavras-chave: Questão urbana, Questão Social, Política habitacional, Habitação popular.

E-mail: [email protected]

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a égide do capitalismo, a carência de habitação para a classe trabalhadora é uma condição ine-rente à própria lógica de exploração e dominação de uma classe sobre outra.

Mas de onde vem a falta de habitações? Como surgiu ela? Como bom burguês, o senhor Sax não pode saber que ela é um produto necessário da forma burguesa de sociedade; que não pode existir sem falta de habitação uma sociedade em que a grande massa trabalhadora depende exclusivamente de um salário, ou seja, da soma de meios de vida necessária à sua existência e reprodução. [...] Numa sociedade assim, a falta de habitação não é nenhum acaso, é uma ins-tituição necessária e, juntamente com as suas repercussões sobre a saúde, etc., só poderá ser eliminada quando toda a ordem social de que resulta for revolucionada pela base. O so-cialismo burguês, porém, não pode saber isto. Não ousa explicar a falta de habitação a partir das condições. Assim, não lhe resta qualquer outro meio senão explicá-la com frases morais a partir da maldade dos homens ou, por assim dizer, do pecado original. (ENGELS, 1873)

Em se tratando do Brasil, a permanente ausência do Estado na condução do desenvolvi-mento urbano, aliada à livre mercantilização do solo, gerou o cenário de profunda desigualdade e o caos social que assolam as cidades brasi-leiras. Refletir sobre os impasses e os desafios que envolvem a questão urbana é imprescindível quando se pretende discutir o problema da mo-radia popular.

O Brasil urbano e a questão da moradia popular O Brasil urbano é produto da junção de in-

teresses entre o capital internacional e as frações locais da burguesia mercantil, inseridas no com-plexo conformado pela tríade produção imobili-ária – obras públicas – concessão de serviços públicos. De acordo com Ribeiro & Santos JR (2011), o Estado interviu não só protegendo os interesses da acumulação urbana da concorrên-cia de outros circuitos, como também realizan-do encomendas para a construção de vultosas obras urbanas e se omitindo em seu papel de planejador do crescimento urbano. Essa omis-são, “além de servir à mercantilização da cidade,

teve papel fundamental na transformação do territó-rio em uma espécie de fronteira interna da expansão capitalista, aberta à ocupação livre da massa expro-priada do campo”.

Estudos revelam que, entre 1950 e 1970, com a intensificação do processo de industrializa-ção e urbanização, quase 39 milhões de pessoas migraram do campo para as cidades e passaram a viver em precárias condições de assalariamen-to e moradia. Nesse contexto, um problema crô-nico se instala nas cidades em virtude da ocupa-ção desordenada e irregular do solo. Como bem salienta Singer (1973, p. 117), “o crescimento acelerado das metrópoles em países subdesenvolvi-dos acentuou e tornou mais perceptível uma série de desequilíbrios, principalmente entre procura e ofer-ta de habitações e serviços urbanos, que compõem uma problemática urbana específica”.

Nesse sentido, um olhar mais atento para a realidade urbana do país revela que a ação do Estado tem se pautado em subordinar a política urbana e habitacional aos interesses do grande capital imobiliário, em detrimento das necessi-dades das classes populares. A valorização do solo urbano, produto da especulação imobiliária, torna o preço do solo, ou da terra, uma mercado-ria inacessível à população carente. Para resolver a questão crucial da moradia, a população é em-purrada para locais mais distantes e terrenos me-nos valorizados, em áreas de terrenos alagados e encostas. Pelos dados do IBGE (CENSO, 2010), 11,4 milhões de brasileiros vivem em aglomera-dos subnormais. O referido instituto denomina de aglomerados subnormais cada conjunto constitu-ído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, a maioria de serviços públicos essen-ciais, que ocupam ou têm ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. A identificação atende aos seguintes critérios:

a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, cons-trução em terrenos de propriedade alheia (públi-ca ou particular), no momento atual ou em perío-do recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos);

b) Posse de urbanização fora dos padrões vigentes (refletido por vias de circulação es-treitas e de alinhamento irregular, lotes de ta-

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manhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos) ou precarie-dade na oferta de serviços públicos essenciais (abastecimento de água, esgotamento sanitário, coleta de lixo e fornecimento de energia elétri-ca) (IBGE, 2010).

Por essa via, cria-se a segregação do espa-ço urbano, e a cidade passa a ser dividida entre centro e periferia, entre muros dos condomínios privados e a precariedade das habitações popu-lares. A cidade legal, dotada de infraestrutura e de serviços, onde a necessidade de morar se transforma numa mercadoria cara, destinada a poucos privilegiados, é um “lugar de felicidade, de um novo estilo de vida, uma nova arte de viver, onde a cotidianidade parece um conto de fadas” (LEFEBVRE, 2001, p.32). Por sua vez, a cidade ilegal surge como produto da ocupação irregular do solo e da autoconstrução, carente de serviços e de equipamentos urbanos, reino da informali-dade e do crescimento da violência, e torna-se a única opção de moradia para a população de bai-xa renda. Trata-se de um lugar onde o cotidiano é marcado por problemas e desafios.

Devido ao déficit habitacional de residên-cias populares, o trabalhador recorre à autocons-trução como alternativa para resolver, por con-ta própria, a questão da moradia. Na verdade, a prática da autoconstrução se transforma em fator de exploração e desgaste da força de tra-balho, pois os trabalhadores usam seu tempo de lazer para construir suas casas. Ademais, como muitos deles não dispõem de mão de obra quali-ficada na área da construção civil, terminam uti-lizando técnicas e ferramentas rudimentares, o que resulta em moradias com baixos padrões de segurança. Assim, a construção da casa própria leva o trabalhador a um endividamento, ao pro-longamento da jornada de trabalho, à utilização de benefícios como férias, décimo terceiro salá-rio e empréstimos para realizar o sonho de se livrar do aluguel. Concomitante ao seu desgaste físico e financeiro, a autoconstrução representa um investimento de risco, pois o imóvel, por se situar em área de ocupação ilegal, tem baixo va-lor de revenda. Some-se a isso a sensação de in-segurança e de desamparo que acomete as famí-lias quando veem suas casas desmoronarem em tragédias oriundas das intempéries da natureza. Enfim, a favelização se consolida como solução

para o descaso perpetrado pelo Estado, no que se refere à habitação popular.

Na ótica de Kowarick (1993, p. 25), as fave-las cumprem papel fundamental, na medida em que acolhem e abrigam a classe trabalhadora, e são a forma de sobrevivência mais econômica (e mais drástica), diante dos inúmeros fatores que impossibilitam a sobrevivência dos trabalhado-res em outras áreas, como: gastos com moradia, prestações elevadas no financiamento da casa própria, entre outros. Ao mesmo tempo em que abrigam e acolhem, as favelas também são res-ponsáveis pela degradação do ser humano, por não terem infraestrutura, saneamento básico, pavimentação e transporte e porque a maioria de suas casas comportam apenas dois cômodos sem janelas. Além dos aspectos citados, ressal-tam-se os altos índices de doenças infecciosas que estão diretamente relacionadas à falta de sa-neamento ambiental e à subnutrição, fatores que geralmente aparecem associados.

Intervenção do Estado

Com o intuito de atender às reivindicações das classes populares, o governo recorre a algu-mas estratégias. Uma delas é a de financiar a construção de conjuntos habitacionais, em áre-as de difícil acesso, distantes do centro urba-no e desprovidas dos serviços essenciais como saneamento, equipamentos sociais, transporte, geração de emprego e de renda. Aliás, um dos desafios da política habitacional brasileira é o de articular políticas de capacitação para o tra-balho, com a consequente geração de emprego e renda, visando à redução das desigualdades sociais. Tais fatores têm dificultado o assenta-mento das famílias nessas regiões e, em muitos casos, a população volta para as comunidades de origem. Acrescente-se a isso o fato de que a população cuja renda varia de zero até três salá-rios mínimos, exatamente o segmento onde o dé-ficit habitacional é maior, não consegue se inse-rir nesses programas porque não têm condições de arcar com as prestações do imóvel, visto que grande parte de seu salário está comprometida com sua sobrevivência.

Na verdade, tanto os investimentos públi-cos quanto os do Mercado, resultados dos pro-gramas habitacionais implementados a partir do governo Lula, têm se limitado à construção

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de casas populares sem nenhuma intervenção, em termos urbanísticos e fundiários. O sonho da casa própria, depositado no Programa Minha Casa Minha Vida, transforma-se num pesadelo devido aos entraves e às limitações cotidianas a que o trabalhador tem que enfrentar, além da dívida que contrai com os agentes financeiros. A construção a cargo do Estado não torna a habi-tação um serviço público, porquanto os progra-mas se limitam a fornecer moradias o mais rápi-do possível, pelo menor custo possível, para as construtoras com baixos padrões de qualidade. O resultado desta política reduzida à simples cons-trução de casas é o favorecimento da especulação imobiliária, com o aumento no preço dos terrenos (MARICATO, 2009).

Outra maneira de resolver o problema da cidade ilegal é a urbanização das favelas, uma vez que as experiências de remoção para os con-juntos habitacionais normalmente resultam num tremendo fracasso pelos motivos acima expos-tos. Tal medida consiste em dotar as favelas de serviços de infraestrutura, saneamento básico, iluminação, rede de esgotos, pavimentação, co-leta de lixo etc. A moradia não precisa ser al-terada, pois, através da autoconstrução, cada morador edificou e/ou reformou sua residência. A urbanização das favelas tem sido o mecanis-mo através do qual o governo intervém nessas regiões. É mais viável tanto do ponto de vista econômico, quanto político, ao atender aos an-seios da população, que prefere permanecer na comunidade por se encontrar mais próxima dos serviços urbanos e pelas relações de vizinhança e de amizade que firmou em sua trajetória de vida na localidade.

Assim, o chamado problema urbano – ha-bitacional – deve ser visto por meio de dois pro-cessos que se interligam. O primeiro se refere às condições de exploração do trabalho, ou melhor, às condições de pauperização relativa ou abso-luta a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do anterior, é resultante do somatório de extorsões que se operam através da precarieda-de ou da inexistência de serviços de consumo

coletivo, instaurando no solo urbano a segrega-ção socioespacial que caracteriza a excludente paisagem das cidades brasileiras.

Considerações finais

O Estatuto das Cidades (2001), em seu Art. I, inciso II, assevera que a política urbana deve

[...] garantir o direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à mo-radia, ao saneamento ambiental, à infraestrutu-ra urbana, ao transporte e aos serviços públi-cos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e as futuras gerações (ESTATUTO DAS CIDADES, 2001).

Ressalte-se, no entanto, que o elenco de di-reitos previstos nesse documento está longe de ser efetivado numa ordem social que pauta seus interesses pela lógica da acumulação a qualquer preço. Nesse sentido, o número de aglomerados subnormais cresce a cada dia, à proporção que se dilapida o valor da força de trabalho e se deteriora a qualidade de vida de quem mora nesses locais.

Por outro lado, os conjuntos habitacionais construídos pelo poder público se localizam em áreas muito afastadas dos centros urbanos, ca-rentes de todo tipo de estrutura, principalmente transporte público, segurança, entre outros be-nefícios, e terminam por reeditar a situação de pobreza e de violência vivida na favela. Assiste--se à reprodução da desigualdade social e da segregação socioespacial, estabelecendo a opo-sição entre o centro e a periferia, entre áreas valorizadas pela especulação imobiliária e os terrenos baratos e longínquos, entre a cidade legal e a ilegal.

Os direitos previstos no Estatuto das Ci-dades só serão viáveis quando houver uma refor-ma fundiária aliada a uma política habitacional pautada pelos princípios democráticos e redistri-butivos, que garantam o acesso a terra, onde o direito de usufruir da cidade seja assegurado aos cidadãos sem distinção de classe social. Isso é viável na sociedade burguesa?

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70Maria de Fátima Marreiro

Direitos humanos e educação política:

1. Introdução

A Revolução Francesa pode ser considerada como um evento político que foi o ponto de parti-da na promoção dos Direitos Humanos. Mas, antes mesmo desse acontecimento, as doutrinas surgidas nos Séculos XVII e XVIII, no período de ascensão da

burguesia, no mundo ocidental, já reivindicavam mais liberdade de ação e de representação políti-ca do povo diante da nobreza e do clero.

Um dos mais expressivos iluministas da época, Jean Jacques Rousseau, em sua obra “Discurso sobre a origem da desigualdade en-tre os homens”, defendia a libertação do indi-

Resumo

Com o fim da Ditadura Militar no Brasil, instaurada em 1º de abril de 1964 e que durou 21 anos, os horrores sociais que ela provocou e a grave crise econômica que deixou como sobras um triste legado de abusos de poder e muita repressão, instituições espalhadas por todo o país têm se empenhado em contribuir com a formação da educação política do povo. O Núcleo de Cidadania e Direitos Huma-nos da UFPB (NCDH) tem demonstrado, em suas ações, um compromisso com esse desiderato, que se constitui como uma das inúmeras provas que as lutas pela liberdade democrática e pela garantia de justiça para todos não cessaram. O papel necessário dos partidos políticos - de fomentar uma educação política transforma-dora em favor do povo – evidencia-se falido, e essa lacuna é ocupada por forças antenadas com ações transformadoras que visam recuperar a memória histórica do Brasil e construir uma educação política reveladora e emancipacionista. O NCDH, ao longo de sua formação, tem um leque de ações em função dessa missão e que vale a pena ser explicitado, mesmo que em linhas gerais, com o objetivo de chamar a atenção do público acadêmico e de outros interessados no assunto, para eviden-ciar a importância de sua criação. É a tarefa bem objetiva e breve que se pretende realizar no presente artigo.

Palavras-chave: Direitos Humanos; NCDH/UFPB; Ditadura

Doutora em Ciências Sociais pela UFRRJ. Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas , Letras e Artes da UFPB

o trabalho do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB

E-mail: [email protected]

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víduo para que pudesse exercer a sua atividade criadora e criticava a injustiça e a opressão da so-ciedade de seu tempo. Apoiava a igualdade entre os homens, afirmando que todos nasciam igual-mente bons, e sustentava que a educação era a base do desenvolvimento de toda sociedade.

Jean Antoine Condocert, um dos principais ideólogos da Revolução Francesa, escreveu uma frase significativa, válida até hoje: “Sob a mais livre das Constituições, um povo ignorante é sempre escravo”. Assim, tanto Rousseau quanto Condocert colocavam a educação política como algo sobremaneira relevante para o avanço das sociedades pela conquista e pela garantia da li-berdade democrática e da cidadania.

Castilho (2010) oferece cópia dos disposi-tivos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, produto da Revolução Fran-cesa, que assim se expressam nos artigos que seguem:

Art. I – Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

Art. IV – A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem. “As-sim, o exercício dos Direitos Naturais do homem não tem limites senão aqueles que assegurem aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos; seus limites não podem ser de-terminados senão pela lei”.

Art. IV – Nenhum homem pode ser acusa-do, detido ou preso, senão em caso determinado por lei, e segundo as formas por elas prescritas. Aqueles que solicitam, expedem ou fazem exe-cutar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas todo cidadão chamado ou preso em virtude de lei deve obedecer em seguida; torna-se culpado se resistir.

A Constituição brasileira, promulgada em 5 de outubro de 1988 (CAMPANHOLE, 1999), pode ser exemplo de um arcabouço jurídico influen-ciado pela Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Alguns de seus dispositivos podem ser destacados:

Art. 1º: A República Federativa do Brasil,

formada pela união indissolúvel dos estados, dos municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fun-damentos:

I – a soberania;II – a cidadania;III – a dignidade da pessoa;IV – os valores sociais do trabalho e da livre

iniciativa;V – o pluralismo político.

Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Cons-tituição.

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;III – erradicar a pobreza e a marginalização

e reduzir as desigualdades sociais e regionais;IV – promover o bem de todos, sem precon-

ceitos de origem, raça, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;II – prevalência dos direitos humanos;III – autodeterminação dos povos.

Em que pese o aparato jurídico liberal da Constituição brasileira vigente, a violação dos di-reitos humanos tem se registrado de forma re-corrente e alimentando as lutas dos movimentos sociais e das instituições, no sentido de obter as garantias desses direitos conquistados, o que comprova que a formalização dessas conquistas democráticas não é suficiente para torná-las só-lidas e perenes. Trindade (2011), ao se referir à História Social dos Direitos Humanos, assim se expressa:

Os Estados Unidos da América, país que ensina seus estudantes a repetirem, de memória, pas-sagens libertárias de sua Declaração da Inde-pendência, não hesitaram em apoiar ou instalar

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ditaduras ao redor do mundo durante a maior parte da segunda metade do Século XX. Foi nos ideais de democracia e liberdade que os mili-tares brasileiros instauraram, por meio do AI-5, um dos regimes que mais crimes contra os direitos humanos cometeu em toda a história nacional.

2. O fim da Ditadura e a necessidade de se cria-rem organismos de defesa dos direitos humanos

O movimento militar de 1964, no Brasil, apoiado pelo governo americano da época, im-plantou uma das mais assassinas ditaduras do mundo, a partir de 1º de abril de 1964, quando a nação foi tomada de assalto com a publicação da notícia de que fora deposto o Presidente João Goulart. Naquela época, foi indicado o primeiro presidente golpista, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Oito dias depois de efe-tuado o golpe, foi editado o Ato Institucional nº 1, que determinava a suspensão de direitos de milhares de cidadãos, que iam desde a cassação de mandatos eletivos, até prisões e torturas des-providas de qualquer julgamento legal. Jório Ma-chado, jornalista e escritor do sertão paraibano, também um dos artífices da criação das Ligas Camponesas, publicou a obra “1964: a opres-são dos quartéis”, uma das mais valiosas peças produzidas no Brasil a respeito da memória da Ditadura Militar. Nesses escritos, registra que, somente para começar, sob o Ato Institucional nº 1 (AI – 1), foram cassados 2.985 brasileiros e, mais adiante, cerca de 10.000 pessoas indi-ciadas em inquéritos policiais militares - os IPM. Não havia, na época, presídios suficientes para tanta gente e ordenou-se engendrar prisões em dezenas de navios.

Cecília Coimbra, em seu artigo Gênero, Mi-litância e Tortura (2005), assim se pronunciou a respeito da necessidade de ações educativas que ajudem a combater a alienação, o desconhe-cimento da história crítica do Brasil e da neces-sidade imperativa da formação política do povo:

A história que nos tem sido imposta seleciona e ordena os fatos segundo alguns critérios e in-teresses construindo, com isso, zonas de som-bras, silêncios, esquecimentos, repressões e negações. A memória histórica oficial tem sido,

portanto, um lado perverso de nossa história, produzida pelas práticas dos “vencedores”, no sentido de apagar os vestígios que os subalter-nizados e os opositores em geral têm deixado ao longo de suas experiências de resistência e luta. Essa história “oficial” tem construído dis-torções e mesmo desconhecimento sobre os embates ocorridos em nosso país, como se os “vencidos” não estivessem presentes no cenário político, apagando até mesmo seus projetos e utopias. Entretanto, apesar desse poderio, essa história não tem conseguido ocultar e mesmo eliminar a produção cotidiana de outras his-tórias. Apesar dessas estratégias de silencia-mento e acobertamento, essas outras histórias vazam, escapam e, de vez em quando, reapa-recem, invadindo muitos de nós. Por isso, falar delas é afirmar/fortalecer certa memória igno-rada, desqualificada, negada.

Antes de 1º de abril de 1964, o país vivia uma fase de intensa mobilização popular. Isso pode ser comprovado, por exemplo, pela criação do Centro Popular de Cultura da UNE, da circu-lação dos chamados Cadernos do Povo Brasileiro e, aqui no Nordeste, o Movimento das Ligas Cam-ponesas, na sua luta por reforma agrária. A Dita-dura militar quebrou a construção dessas lutas, violentando todo um processo de formação de uma consciência brasileira em torno de um pro-jeto de desenvolvimento autônomo do país, com base na democracia e na justiça social, que se gestava no cotidiano das populações envolvidas. Em lugar disso, as forças políticas da repressão impuseram o abortamento dessas lutas, usando como instrumento jurídico a chamada Lei de Se-gurança Nacional e sua operacionalização atra-vés do Serviço Nacional de Informação (SNI), do famigerado Destacamento de Operações e Infor-mações/ Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI).

Em função disso, é imperativo relembrar o depoimento contundente da psicóloga e profes-sora universitária, Cecília Coimbra (op. cit.), uma das muitas mulheres envolvidas na luta contra a Ditadura, vítima da tortura:

Em especial, a tortura perpetrada à mulher é violentamente machista. Inicialmente são os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calão ditas agressiva e violentamente como for-

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ma de anular a pessoa, o ser humano, a mulher, a companheira e a mãe. Logo que sou levada ao DOI_COI / Rio de Janeiro, depois de três dias no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) ... colocam-me nua e acontecem as pri-meiras sevícias... Os guardas que me levam, fre-quentemente encapuzada, percebem a minha fragilidade... constantemente praticam vários abusos. Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado são cada vez mais intensos... e eu me sinto desintegrar: a bexiga e os esfincteres sem nenhum controle... “Isto não pode estar acontecendo: é um pesadelo... eu não estou aqui...” , penso eu.

Muitos jovens brasileiros desconhecem os estragos sociais provocados pela Ditadura Mili-tar, cujas influências foram capazes de se esten-der até os dias de hoje. Até porque a Ditadura não foi, nem de longe, um movimento, em si, desvin-culado de interesses externos. Ela seria apenas um mero instrumento de governo e orientação política para atender aos interesses do capital estrangeiro - particularmente dos Estados Uni-dos - e de grupos oligárquicos ligados ao setor exportador. A orientação liberal do capitalismo, desde a década de 1960, contrapunha-se aos movimentos populares no Brasil e, sobretudo, às chamadas reformas de base do governo anteces-sor de João Goulart. Vinte e um anos de Ditadu-ra, com certeza, podem cristalizar uma cultura do poder arbitrário, da intolerância e do estúpi-do individualismo que segregam irmãos de uma mesma pátria. Subjacente ao governo militar, escondia-se um modelo de capitalismo globali-zado, que fomentava vários tipos de violência, oriundas da intolerância. Afinal, para o bem ou para o mal, cultura e ideologia não coisas fáceis de se demolir, de se apagar.

Assim, a violência que continua sendo re-gistrada no país, nos dias de hoje, e que deman-da urgentes ações de entidades afinadas com as lutas sociais, não pode ser encarada como algo que surgiu do nada, sem que sejam identificadas as suas raízes.

Dados atuais e ilustrativos a respeito po-dem ser extraídos do Jornal da Paraíba, em sua edição de 24 de novembro de 2011, que diz:

Em 2010, a Paraíba registrou 1.438 assas-sinatos. Enquanto a criminalidade cresceu,

investimento em policiamento diminuiu. A Paraíba apareceu em uma colocação nada confortável em relação aos índices de homi-cídios dolosos registrados em 2010, divul-gados ontem pela organização não gover-namental Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Ministério da Justiça. O Estado atingiu a segunda maior taxa de crimes intencionais do país e teve 38,2 assassinatos por grupo de 100 mil ha-bitantes no ano passado. A Paraíba (1438 homicídios) ficou atrás apenas de Alagoas, que ficou no primeiro lugar no ranking com taxa de 68,2 e 2.127 homicídios. Os dados são do 5º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Segundo os dados, o número de vítimas de homicídio teve um acréscimo de 262 casos em apenas um ano. Em 2009 foram registrados 1.176 assassinatos na Paraíba e a taxa ficou em 31,2 homicídios por 100 mil habitantes. Com isso, o Estado apareceu com a sexta maior taxa do país em 2009. Os índices de violência revelam que a média de assassinatos no Estado foi de 3,9 casos por dia, enquanto em 2009 ficou em 3,2. Ainda segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a média de idade atingida pela violência na Paraíba varia entre 15 e 24 anos e 81% dos crimes de homicídio foram praticados com uso de arma de fogo.

Paraíba: crimes sexuais e no trânsito:

A violência contra a liberdade sexual também teve aumento no período pesquisado, (2010) pulando de 257, em 2009, para 261 casos de estupro no ano passado. No quesito crimes no trânsito, o estudo revela que os homicídios não intencionais também tiveram crescimento no Estado. Em 2009 foram 416 homicídios culpo-sos no trânsito e, no ano passado, saltou para 521. Os acidentes letais no trânsito causaram a morte de 196 pessoas em 2010. ( Jornal da Paraíba, 2011)

Paraíba: Investimento em Segurança Pública:

Em relação aos gastos com segurança pública no Estado, as despesas com policiamento tota-lizaram R$ 4,1 milhões em 2012, uma redução

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de 41,47% em relação ao ano anterior, que teve, segundo os dados do 5º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, despesas de cerca de R$ 7 milhões. No Brasil, os gastos totalizaram R$ 13,4 bilhões em 2012, uma queda de 123,48% em relação ao ano anterior, que ficou em R$ 15,3 bilhões. Conforme o estudo, a despesa per capta realizada com a função de segurança pública no Estado ficou em R$ 153,09. O va-lor tem apresentado crescimento desde 2006, quando era de apenas R$ 100. Contudo, ain-da está longe do topo do ranking onde aparece Rondônia com gastos de R$ 405.09 por pessoa ano passado. A Paraíba ficou na 20ª posição. (Jornal da Paraíba, 2011)

O Censo de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) reve-lou que 613.781 paraibanos têm renda domici-liar per capta de até R$ 70,00 por mês e, portan-to, estão na linha de pobreza extrema. O número corresponde a 16,3 da população do Estado que, no período, registrou 3.766.528 habitantes. As-sim, a Paraíba, em números absolutos, ocupa, no período, o 11º lugar no ranking da miséria no país. Entre os paraibanos mais pobres, 64,8% se declararam pardos ou pretos – quase duas vezes o número dos que se reconheceram como bran-cos - e 53,7% confirmaram viver em áreas urba-nas. Considerando os grupos de idade, 246.345 dos paraibanos mais pobres têm entre 25 e 64 anos, o que significa 40,14% do total. As crian-ças e os adolescentes formam o segundo grupo mais vulnerável socialmente. Ao todo, 241.003 paraibanos com idades entre zero e 14 anos es-tão em situação de miséria, o que representa 39,27% da população em situação de extrema pobreza. Das pessoas desse grupo com mais de 15 anos, 126.317 são analfabetas ( Teixeira A. , Jornal da Paraíba, 2011).

Exemplos como esses estimularam a Uni-versidade Federal da Paraíba a fundar o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos. A ditadura Mi-litar de 1964, que durou 21 anos no Brasil, se não trouxe a paz e o desenvolvimento econômico com justiça social, acabou por oferecer o triste legado de um exemplo que nunca se deve seguir. As lutas sociais que se empreenderam, ao lon-go desses anos tormentosos, mostraram que a educação política do povo é instrumento básico para, verdadeiramente, emancipar o país, com

um povo capaz de ser artífice da própria história.Essa compreensão está reiterada no cader-

no do Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas – PPG-DH - que trata do Curso de Mestrado em Direitos Humanos, do NCDH, no ano de 2012, que diz:

A promoção e defesa dos direitos humanos na UFPB remontam aos tempos da resistência à ditadura militar, quando vários dos seus mem-bros foram cassados e sofreram repressão, por causa de suas posturas políticas em defesa da liberdade de ensino e pesquisa e da autonomia universitária contra as ingerências do regime. Para resgatar e dar continuidade a esse passa-do, no período de transição do regime autoritá-rio para a democracia, registram-se os primei-ros intentos visando articular as atividades de promoção, de defesa e formação em direitos humanos existentes na UFPB, em um órgão es-pecífico; intentos que resultaram, em 1989, na criação da “Comissão de Direitos Humanos”, vinculada ao gabinete do Reitor (...) Para arti-cular melhor as atividades de ensino, pesquisa e extensão da UFPB, e ampliar a pesquisa e a pós-graduação, foi criado, em 2007, o Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos, órgão suple-mentar da UFPB (Resolução 09/2006 do Conse-lho Universitário – CONSUNI), e regulamentado pela Resolução 28/2006 do Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão – CONSEPE.

O Núcleo é importante, sobretudo, porque é um espaço onde é possível fomentar atividades de pesquisa, ensino e extensão, com base em valores universais, que refletidos no respeito às diferenças, numa ética libertadora e numa jus-tiça calcada nos direitos iguais para todos. Evi-dentemente, não se pode esperar do Núcleo uma entidade sem qualquer tipo de divergência entre seus componentes, porém, certamente, trata--se de um lugar onde é possível reproduzir uma cultura política emancipacionista do conjunto da sociedade.

Direitos Humanos da UFPB

Quem recorre à Resolução de nº 25, de 28 de março de 1990 do Conselho Universitário da UFPB irá constatar um dos mais significativos documentos de sua história que formaliza a cria-

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ção da Comissão dos Direitos do Homem e do Cidadão. Vale a pena transcrever alguns de seus artigos para se ter ideia da sua relevância:

I – conscientizar a comunidade paraibana da importância do respeito aos direitos do ho-mem e do cidadão;

II – promover o acompanhamento da situa-ção dos direitos humanos na Paraíba e denunciar a violação desses direitos;

III – solidarizar-se com a causa dos direitos humanos;

IV – tomar posição sobre a questão dos direitos humanos, participando de atos e ações que concorram para o respeito desses direitos, ou para fazer cessar a sua violação;

V – promover seminários, debates, pesqui-sas e outros eventos sobre os direitos humanos;

VI – promover ou apoiar iniciativas de cará-ter individual ou coletivo, que visem à restaura-ção ou à preservação da moralidade administra-tiva e à integridade do patrimônio público;

VII – cooperar com outras comissões con-gêneres e com outros órgãos semelhantes, para a realização dos objetivos indicados nos incisos anteriores desse artigo;

A dinâmica dos trabalhos realizados por essa Comissão dos Direitos do Homem e do Cidadão, na UFPB, levou à sua ampliação e ao seu aprofundamento. Isso pode ser constatado na fase que coincide com o governo de Fernando Henrique Cardoso (presidente do Brasil por duas vezes: 1995 a 2002), no qual foi implantado, em 1996, o Programa Nacional de Direitos Hu-manos, que ofereceu às Universidades Públicas brasileiras um ambiente favorável à promoção de ações que levariam à temática dos Direitos Hu-manos a uma enorme gama de realizações, em sintonia com os anseios das populações carentes ou injustiçadas. A UFPB não ficou de fora e, tanto em nível nacional quanto local, passou a atuar em eventos significativos, como, por exemplo, no “Seminário de Avaliação do Programa Nacional de Direitos Humanos” (2000) e na elaboração

do Plano Estadual de Direitos Humanos, do Es-tado da Paraíba, cujas metas foram definidas na I Conferência Estadual de Direitos Humanos, rea-lizada no ano de 2002.

De lá para cá, mudanças ocorreram a pon-to de ser possível criar o Núcleo de Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos (NCDH) da UFPB. Dados atuais fornecidos pela Coordenação desse Núcleo dão conta de seus objetivos e de sua re-cente estrutura, transcritos a seguir.

O Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB, criado pela Resolução de nº 28/2006 do CONSEPE e inaugurado no dia 6 de julho de 2007, é fruto de um longo acúmulo de experiên-cias anteriores da Comissão de Direitos Huma-nos. Nasce com o propósito de reunir professo-res, alunos e funcionários da UFPB que atuam no ensino, na pesquisa e na extensão universitária em Direitos Humanos, para permitir uma melhor articulação e um melhor desempenho individu-al e coletivo. Na formalização de suas propos-tas, o Núcleo se pronuncia como uma instância eminentemente interdisciplinar, que pretende superar a departamentalização do saber, típica da Universidade, e que se orienta pelo princí-pio da indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Reúne pessoas que compartilham a mesma visão da importância social e relevância acadêmica do tema “Direitos Humanos”. O Nú-cleo, formalmente, tem sustentado a posição de respeito à pluralidade de opiniões, o que, na prá-tica, pode fomentar o debate livre e crítico entre seus membros.

Institucionalmente, o NCDH está vinculado ao Centro de Ciências Humanas Letras e Artes – CCHLA, do qual também participam professo-res, alunos e funcionários de outros Centros da UFPB. Mantém convênios com outras Universi-dades e instituições afins, nacionais e interna-cionais. Tem uma sede própria, com uma sala para a biblioteca de Direitos Humanos, intitula-da “Enzo Melegari”, sala de reuniões, sala para computação, sala de aula e secretaria. O Núcleo se estrutura em torno de grupos temáticos, cujos representantes compõem um Conselho Técnico--científico, presidido por um coordenador e um vice-coordenador.

Objetivos

É necessário, aqui, transcrever dos boletins

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do Núcleo os aspectos basilares que orientam seu trabalho. Nele, desenvolvem-se programas e projetos em Direitos Humanos na área de ensino, pesquisa e extensão e se empreendem esforços no sentido de levantar e sistematizar as infor-mações sobre recursos humanos e a produção acadêmica existente na área de Direitos Huma-nos. Além disso, tem promovido o intercâmbio técnico-científico entre Universidades, centros de pesquisas e de ensino, entidades de defesa e de promoção em Direitos Humanos, públicas e privadas, em nível nacional e internacional. O Núcleo fomenta a pesquisa em Direitos Huma-nos e divulga a produção científica e o material didático produzido por seus membros ou de seu interesse. Contribui para a formação e capaci-tação em cidadania e direitos humanos de uma enorme gama de jovens e adultos. Procura con-tribuir com a implementação e o monitoramento de políticas públicas em cidadania e direitos hu-manos, fomentá-las e colaborar com elas.

Cartaz sobre a Campanha pela Criminalização da Tortura promovido pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão e pela Comissão dos Direitos do Homem

e do Cidadão da UFPB – João Pessoa – Paraíba.

Parcerias do Núcleo:

A relação de trabalho do Núcleo tem se sustentado através de parcerias com diversas instituições que podem permitir um largo alcan-ce dos seus propósitos formalizados. As princi-pais parcerias são:

Comissão dos Direitos Humanos da UFPB (CDH); Mestrado em Ciências Jurídicas (CCJ/UFPB); Pró-reitoria de Extensão e Assuntos Co-munitários (PRAC/UFPB); Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC / PB); Comitê Paraibano de Educa-ção em Direitos Humanos (CPEDH); Comissão de Direitos Humanos do Campus de Souza da UFCG (CDHUFCG); Secretaria Especial dos Di-reitos Humanos da Presidência da República (SEDH-PR); Secretaria de Educação Continua-da, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC); Associação Nacional de Direitos Humanos Ensi-no e Pesquisa (ANDHEP).

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Algumas das atividades realizadas pelo Núcleo:

A pequena relação parcial dos inúmeros eventos realizados pelo Núcleo, que segue , pode fornecer uma idéia geral da magnitude de suas ações :

IV Seminário Internacional de Direitos Humanos – 2007

Conferência Brasil-Alemanha sobre Direi-to Internacional da Paz – 2007

Projeto REDHBRASIL – Projeto de Capa-citação de Educadores da Rede Básica de Ensino em Educação em Direitos Humanos. De 01 de ja-neiro de 2007 a 01 de janeiro de 2008;

I Curso de Especialização em Segurança Pública e Direitos Humanos – 2008/2009;

I Seminário Socializando Experiências em Educação Integral e em Direitos Humanos – 2009

I Curso de Especialização em Segurança Pública e Direitos Humanos. De 20 de julho de 2008 a 20 de julho de 2009;

VI Seminário Internacional de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba. Seminário do Consórcio Latino-americano de Pós--graduação em Direitos Humanos. 07 a 10 de de-zembro de 2010;

Seminário Avanços e Desafios na Efetiva-ção dos Direitos da Criança e do Adolescente. De 17 a 19 de outubro de 2011;

Curso de Extensão em Educação Integral Integrada e Direitos Humanos. De setembro a de-zembro de 2012;

VII Seminário Internacional de Direitos Humanos da UFPB – Justiça de Transição: direito à Justiça, à Verdade e à Memória. De 20 a 23 de novembro de 2012;

Curso de Mestrado em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas. 2012.

Relações internacionais:

JURA GENTIUM: Centro de Filosofia de Direito Internacional e da Política Global do De-partamento de Teoria e História do Direito da Uni-versidade de Florença/Itália: http://www.juragen-tium.unifi.it

Escola de Direito da Universidade do Mi-nho – Braga/Portugal

http://www.direito.uminho.ptParticipa da Cátedra da UNESCO de Di-

reitos Humanos

Participa do Consórcio Latino-Americano de Direitos Humanos

Composição do Núcleo:

O NCDH tem informado a respeito de sua constituição, através de folders ou da internet. A transcrição dessa particularidade está assim resumida:

O NCDH é constituído por docentes, dis-centes, pessoal técnico-científico, servidores técnico-administrativos da UFPB e outros cola-boradores, conforme deliberação do Conselho Técnico-científico. Para ser membro do Núcleo, é necessário apresentar o Currículo Lattes e um Projeto de ensino, pesquisa e/ou extensão na área de Direitos Humanos. Está organizado da seguinte forma:

Conselho Técnico-científico: Coordenador e Vice-coordenador

GTs – Grupos de Trabalho:GT 1 Educação e Cultura em Direitos Hu-

manosGT 2 Violência, Segurança Pública e Direi-

tos HumanosGT 3 Teoria e História dos Direitos Huma-

nos e da DemocraciaGT 4 Território, Etnicidade e Direitos Hu-

manosGT 5 Instrumentos de Proteção e Defesa

dos Direitos HumanosGT 6 Direitos Humanos da Criança e do

Adolescente

A Biblioteca Setorial Enzo Melegari:

Resultado do convênio entre a UFPB e o Movimento Leigo América Latina (MLAL), ONG de cooperação internacional com sede em Verona (Itália), a Biblioteca de Direitos Humanos “Enzo Melegari” homenageia, com esse nome, um ex--presidente do Movimento Leigo da América La-tina. Dispõe seu acervo para toda a comunidade acadêmica da UFPB e situa-se nas dependências do próprio prédio do Núcleo, precisamente na área denominada Central de Aulas, defronte ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFPB, Campus I de João Pessoa – Paraíba.

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REFE

RÊN

CIAS

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79Maria das Graças Nóbrega de Almeida1

Liliane Stelzenberger 2

Margarida Maria Dias Monteiro Gonçalves 3 Mercídio Gonçalves Filho 4

A nova gestão pública (NPM) e a importância da liderança:

(re)configurações

1. Introdução

O tema liderança vem sendo discutido, desde a década de 50, em vários artigos, por vá-rios autores. Atualmente, houve um crescimento na abordagem dessa temática, principalmente

devido ao aumento significativo da impor-tância desse debate nos vários segmentos interessados - as instituições de ensino, as organizações empresariais e, principalmente, os pelos estudiosos sobre o assunto, em face das grandes transformações que ocorreram e

Resumo

O artigo objetiva demonstrar a importância da liderança em relação à confiança sobre atitudes de trabalho, equipes, comunicação, justiça, relacionamentos organizacionais e gestão de conflitos, conforme as (re)configurações sobre o assunto. A discussão permeia, particularmente, a liderança no âmbito público, apesar de não existir unanimidade quanto à sua definição e aplicabilidade e, menos ainda, quanto ao papel eficiente do líder e do gestor. É fundamental discutir o processo de liderança na gestão, porque ambos são determinantes na administração privada e na pública, vez que a liderança é uma prerrogativa para se alcançar a eficiência e a eficácia na NPM.

Palavras-chave: Liderança. Nova Gestão Pública. Gestor.

1. Professora do Departamento de Finanças e Contabilidade, UFPB/Campus João Pessoa. Doutoranda em Ciências da Administração, área Gestão Pública, Universidade do Minho, Braga - Portugal. 2. Doutoranda em Ciências da Educação - especialidade: Políticas Educativas, Universidade do Minho, Braga-Portugal; 3. Doutoranda em Ciências da Educação – especialidade: Políticas Educativas, Universidade do Minho, Braga-Portugal; 4. Mestrado em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior -POLEDUC. Universidade Federal do Ceará.

E-mail: [email protected]

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estão acontecendo, no âmbito das organizações, em relação às mudanças exigidas pelo mundo contemporâneo e às diversidades de inovações que surgem de forma acelerada.

Nesse contexto, são claros o interesse e a relevância dados à liderança, tanto no espaço or-ganizacional quanto pelos gestores em relação ao seu conceito, pois a liderança é um dos fato-res determinantes, em termos gerenciais, para o mundo dos negócios e para a vida pessoal de um modo geral. Mas, apesar dessa importância, várias questões fundamentais ainda são esqueci-das (COHEN, 1974), como, por exemplo, no que diz respeito à pouca tentativa de acumular e ava-liar a pesquisa de ordem empírica sobre a con-fiança na liderança, que ainda é objeto de discus-são na literatura, e sobre seus resultados, uma vez que não está claro o que a pesquisa empírica tem descoberto sobre as relações entre confian-ça e outros conceitos.

Do ponto de vista académico, o que temos, em relação à questão da confiança na liderança, são dois enfoques: ela é concebida como uma variável de importância muito significativa (GO-LEMBIEWSKI & MCCONKIE, 1975) e (KRAMER, 1999), mas, em contrapartida, esse fator é in-terpretado como de pouco ou nenhum impacto no que diz respeito à liderança (WILLIAMSON, 1993). Apesar desse enfoque, o conceito de lide-rança, em relação à confiança no líder, pode ser encontrado na literatura nas mais diversas situ-ações - trabalho, equipe, comunicação, justiça, contratos, relacionamentos psicológicos, relacio-namentos organizacionais, gestão de conflitos - e é um tema abordado por meio de várias discipli-nas, como: Organização, Psicologia, Administra-ção, Gestão Pública, Comunicação e Educação, entre outras, o que denota que liderança é um assunto que merece destaque nos mais variados âmbitos de estudo.

Podemos conceituar liderança, singular-mente, como a ação de guiar, conduzir e de an-tecipar, pois nela estão intrínsecas todas essas atitudes. Podemos afirmar que liderar é uma ca-pacidade rara nas pessoas, mas essa habilida-de não é prerrogativa de alguns, ela pode existir em todos os seres humanos. A liderança pode ou não ser desenvolvida, mas, para algumas pesso-as, é mais confortável ser conduzido que condu-zir, pois tomar decisões exige responsabilidades, mais esforço e acúmulo de trabalho, e poucas

são as pessoas que se dispõem a tomar para si essas atribuições, ao contrário, preferem ser guiadas e que os outros decidam por elas, pois é necessário coragem para tomar decisões, já que elas afetam ao grupo e, consequentemente, à vida pessoal de várias pessoas. Tomar decisões em instituições, grupos ou empresas é, de certa forma, responsabilizar-se pelo sucesso ou insu-cesso que possa advir dessa atitude.

Com o avanço da tecnologia, a lideran-ça, atualmente, deriva seu poder na estratégia, com uma nova visão, através de transformação convincente, ao invés de hierarquia, posição ou padrão de procedimentos operacionais (BRAY-MAN, 1993). Assim, a liderança encontra-se atrelada a um componente de valor estratégico. Por exemplo: quando do furacão ‘Katrina’, que revelou uma emergência nacional e desordem no sistema de gestão incapaz de responder efetiva-mente às necessidades imediatas sentidas pe-las comunidades ao longo da Costa do Golfo, a crítica centrou-se na falta de liderança em todos os níveis de Governo, especialmente na incapaci-dade da Federal Emergency Management Agency (FEMA) e do Department of the United States of American of Human Services (DHS), no que di-zia respeito a montar um quadro de respostas ao ocorrido e de coordenar uma estratégia para aliviar a desordem. Os críticos apontaram para a emergência da gestão e de respostas para o ocorrido como sendo um problema de liderança (William L. Waugh Jr. and Gregory Streib, 2006).

Quanto à liderança no setor público, embo-ra não haja unanimidade em relação a sua defi-nição nas organizações e, menos ainda, quanto ao papel do líder, parece razoável admitir que o papel do líder é o de assumir riscos, fomentar uma cultura própria da organização e definir es-tratégias adequadas para a concretização dos objetivos da organização, face às oportunidades e às ameaças do meio em mudança num contex-to de incertezas (FIRMINO, 2010).

Nesse panorama, há que se compreender como as organizações hoje estão estruturadas e tomando suas decisões, frente ao fenômeno da globalização, que modificou o cenário mundial de forma bastante abrangente, não só em ter-mos organizacionais, mas também em todas as instâncias da vida que vivenciamos e incorpora-mos ao nosso cotidiano e na maneira de interpre-tar os acontecimentos.

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2. O gestor e o líder

Toda entidade, privada ou pública, precisa gerir suas necessidades estruturais de modo a poder alcançar aquilo a que se propõe. Embo-ra seja do conhecimento de grande parte das pessoas os termos gestão e liderança, seu sig-nificado, na maioria das vezes, não é suficiente para se entender qual é o papel do líder, como gestor, razão por que essas funções são vistas numa ordem inversa e confusa, porquanto mui-tas pessoas veem o líder como um gestor que goza da supremacia de poder encarar um mundo de desafios e sempre obter sucesso. Porém, na realidade, isso não procede.

O líder ou gestor precisa, permanentemen-te, assessorar-se de pessoas com conhecimento em gestão, para que as metas estabelecidas pos-sam alcançar bons resultados. Algumas vezes, os gestores não estão satisfeitos com seus co-laboradores: alegam que eles não querem traba-lhar, que não são responsáveis, que não desem-penham as tarefas adequadamente e que não são suficientemente proativos. Um gestor que tem essa postura não pode ser considerado um líder, pois precisa saber que, enquanto aponta um dedo para sua equipe ou seus colaboradores, os outros dedos estarão apontados para si mes-mo. O que denota que talvez não tenha escolhido a equipe certa, tenha colocado os colaboradores nas posições erradas ou não sabe motivar a sua equipe. Para ser um bom líder, o gestor precisa estar constantemente em vigília, não como uma sentinela sobre os colaboradores, mas sobre si mesmo, porque a qualidade da sua liderança pode levá-lo ao estrelato ou ao fracasso. E a es-colha é sempre sua como gestor.

Ao adotar uma atitude, o gestor deve pro-ceder com respeito e de forma corajosa, dessa forma, certamente irá encontrar quem o siga em relação a sua conduta como líder. Um líder não deve tolerar atritos, deve saber se impor, defen-der as suas convicções, estar consciente de onde quer chegar e transmitir suas informações com clareza. Apesar de ter posições firmes, ele deve ser flexível, criativo e original, posto que ser líder requer talento, formação e disciplina. Por essa razão, não são muitas as pessoas que ocupam a posição de líderes, porque é mais confortável e fácil eleger e seguir um líder.

É função do líder persuadir seus colabo-

radores a contribuírem com o máximo de suas capacidades individuais, com o objetivo de atin-gir as metas traçadas, entretanto, é fundamental que perceba as necessidades de cada indivíduo e procure atendê-las.

Segundo Koontz & O´Donnel,

uma vez que as pessoas tendem a seguir aque-les que veem como um meio de satisfazer suas próprias metas pessoais, quanto mais um ad-ministrador compreender o que motiva seus su-bordinados e como operam essas motivações, e quanto mais ele refletir essa compreensão na execução das suas tarefas administrativas maior será a probabilidade dele ser um líder eficaz. (1989, p. 434)

O líder deve empregar estratégias para atu-ar eficaz e eficientemente. Aprender a lutar (o que é inevitável em situações de ameaça); mostrar o caminho (a sua função); fazer as coisas de forma adequada (eficácia das ações); conhecer os fatos (informação como desafio, o que, aqui, implica dominar a tecnologia); contar com o pior (não subestimar a concorrência); aproveitar o tempo (ser rápido, utilizando o método que seja eficaz); queimar etapas (trabalhar em conjunto); buscar a perfeição, embora saiba que não a alcançará (ser inovador), e trabalhar com harmonia (des-pertar confiança) (MINTZBERG, 1995).

Ser um líder significa buscar nos outros a percepção de si, de habilidades de comunicação e influência, que poderá comprometer o processo de gestão (RICHARDS, 2003). Portanto, o papel do gestor é o de gerir questões diárias, definindo e implementando métodos em relação à aplica-ção de planos e programas, enquanto o papel do líder é, geralmente, mais abrangente, por ser o de um gestor de estratégia, que se ocupa com questões de curto, médio e longo prazos. O líder é considerado pelos seus pares como um gestor de destacada orientação em um mais alto nível (FIRMINO, 2010). Nesse aspecto, ele deve saber qual o trabalho a ser executadas, as metas a se-rem atingidas, observar as constantes mudan-ças, nos âmbitos externo e interno do ambiente organizacional, prever os problemas e procurar solucioná-los, por meio da participação colabo-rativa do grupo. Quanto ao gestor, cabe gerenciar as questões cotidianas e sua aplicabilidade.

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3. A Importância da liderança

Só a partir dos anos 90 foi que a liderança começou a ganhar importância quando dos co-mentários sobre se o vértice estratégico estaria mais voltado para a gestão ou se, ao contrário, teria apenas acrescido as funções de liderança.

Segundo Jesuíno e Kotter (1987) (in FIR-MINO, 2010), enquanto a gestão gera em curto prazo e atribui qualidade à ação das entidades, em função das suas metas e zelando pela ordem interna, a liderança inspira-se na visão estratégi-ca e motiva as equipes para a inovação de proje-tos, principalmente de sustentabilidade, traçan-do estratégia de mudança para médio e longo prazos. Porém, essa ação não deve implicar uma perspectiva austera de planejamento estratégico. Tem-se, aqui, a reafirmação da importância da liderança e da gestão em que ocorre uma forma-ção mais acurada no desenvolvimento dos líde-res, e a inovação e a criatividade se fazem pre-sentes, impulsionando uma melhor gestão nas organizações. Assim, constata-se que há mais interesse na liderança administrativa com ênfase nos elementos focados no problema, nos valores dos serviços e no próprio líder como um ‘front line’, ou seja, como um elemento de formação de 360 graus, um linha de frente, que centra a admiração por parte dos demais.

Apesar de estudos científicos demonstra-rem que existe um conjunto de competências essenciais e comuns entre lideranças, as carac-terísticas imputadas ao líder não são consenso, e em cada história que buscarmos conhecer lí-deres bem-sucedidos, temos que levar em con-ta as suas aspirações, seus interesses, seus valores, seu estilo de vida e sua contextualiza-ção (OZAKI,1996). Nesse sentido, refletir sobre liderança significa perceber a abrangência e os enfoques que abordam o assunto sobre diversas perspectivas. Para isso, apresentamos, a seguir, alguns conceitos desse termo.

Para Richards e Engle (1986), a liderança trata da articulação de visão, incorpora valores e propicia um ambiente onde as coisas podem ser concretizadas. Sob o ponto de vista de Gardner (1990), o termo liderança sintetiza o processo de persuasão ou exemplo, por meio do qual um indi-víduo ou uma equipe de liderança incute em um grupo o desejo de lutar por objetivos mantidos ou compartilhados pelo líder e seus colaboradores.

Jacobs e Jaques (1990) consideram a liderança como o processo que incentiva as pessoas ao es-forço coletivo (direção significativa) e impulsiona o desejo para atingirem um objetivo.

Assim, uma pessoa de personalidade fra-ca, mesmo que tenha autoconhecimento e mui-ta competência, poderá não ser bem sucedida, se colocada em posição de responsabilidade e, dificilmente, chegará a ser líder. Também se não tiver valores e princípios agregados a essas competências, não atrairá admiração e respeito. Montgonny Wart (2003) enfatiza que a impor-tância da liderança influi positivamente na qua-lidade e na eficiência no fornecimento de bens e serviços, proporciona um sentido de coesão, desenvolvimento pessoal e níveis de satisfação mais elevados entre os trabalhadores e um senti-do de visão e de direção mais apurado, além de estabelecer o alinhamento com o ambiente, in-centivando a criatividade e a inovação. Em suma, a liderança revigora a cultura organizacional. O autor acrescenta que os líderes públicos estão mais expostos à opinião pública, que há mais es-tudo na liderança política do que propriamente na administração pública e que há uma concen-tração desses estudos no setor privado (2003).

Nos Estados Unidos, as pesquisas apontam que aos bons gestores são imputadas as seguin-tes características, por ordem de importância: ser capaz de assumir riscos; ser ético e íntegro; ser visionário; orientar processos, pessoas e re-sultados; ser negociador e enfrentar os desafios com flexibilidade; ter espírito inovador e criativo; ter instrução; ser enérgico e dinâmico; ter com-prometimento com o negócio; ser comunicativo e ter tino assertivo; solucionar problemas; entro-sar-se com os vários níveis de hierarquia; domi-nar idiomas; ser autêntico e transparente. Final-mente, presume-se que o líder seja um indivíduo que reúna todas essas características em menor ou maior escala. Essas avaliações baseiam-se em atributos cognitivos e emocionais, tais como o caráter, a competência, os motivos e as inten-ções da outra parte (MCALLISTER, 1995). Essa dimensão traduz-se em expectativas relativas aos comportamentos dos outros.

Na administração pública, o conceito evo-lutivo de liderança não é apenas mensurável, mas também qualificável. Nesse sentido, exis-tem quatro importantes linhas teóricas que abor-dam o termo liderança: a Teoria dos Traços, do-

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minante até finais dos anos 40, segundo a qual “os chefes eram geralmente olhados como seres superiores” (FIRMINO, 2010, p.115);

a Teoria Centrada no Comportamento do Líder, que esteve em evidência até os anos 60. Para Firmino (2010, p.116), esse modelo é mais eficaz que o primeiro e de mais produtividade e satisfação, pois as motivações são controladas pelas ameaças e punições, e as comunicações são de estilo top-down (de cima para baixo). A terceira teoria aponta a liderança como um pro-cesso interativo, aplicado entre os anos 50 e 70, com perspectivas apontadas para fatores contin-genciais, na perspectiva de autores como Fied-ler, House e Mitchell, Hersey e Blanchard, Tan-nembaun e Schmidt, Vroom e Yetton. (RETRO e LOPES, 1991 in FERREIRA, 2010). Ultimamente, fala-se de uma quarta teoria, que salienta a lide-rança como um processo interativo e de retorno, em parte, à teoria dos traços (FERREIRA, 2010).

Essas teorias dizem muito sobre a qualida-de de performance da liderança, em relação ao líder, em sua visão e aos valores, o condicionan-te que assegura tal destino. Assim, a “liderança evoluiu de modo a alcançar uma visão do líder ampliada sobre a tríade organização, sociedade e indivíduo”. Na visão do autor, uma liderança forte e/ou mais participativa depende do modelo cultu-ral adotado pela organização (FERREIRA, 2010).

Brayman (2004) considera a liderança transformacional, surgida no início dos anos 80, como uma nova visão de liderança, que se diferencia pelas ideias de gestão, por meio do simbólico, e que esse é o paradigma da mudan-ça pós-moderna. Nesse prisma, a liderança se define com um novo estilo em que o líder tem paixão por um ideal, e seus liderados, inspiração e motivação para transcender os próprios inte-resses para o bem da organização, com entusias-mo e força para liberar o máximo de si e de seus esforços, com vistas a alcançar os objetivos da equipe. Nessa perspectiva, o líder deve dispen-sar atenção individualizada aos seus liderados, e promovê-los intelectualmente e ser carismático. É comum o líder agir pela exclusão quando os seguidores não abraçam os objetivos.

4. A NPM e as (re)configurações de liderança

A princípio, é importante tecer comentá-rios sobre as incursões encaminhadas para a

modernização do estado, espelhada nos mode-los de gestão pública que priorizam os resulta-dos que consolidam os instrumentos gerenciais ancorados

no movimento que considera como abordagens de administração pública: a new public admins-tration, implementada nos Estados Unidos du-rante o governo Reagan, a new public manange-ment, de orientação liberal adotada no governo de Margareth Thatcher e o managerialism que gera na Inglaterra visões diferentes de geren-cialismo. Em síntese, compreendem uma valo-rização do serviço público ao utilizar técnicas gerenciais das empresas privadas, conforme a perspectiva de mais eficiência, na qual predo-mina uma lógica instrumental e financeira con-siderada de melhor qualidade e que satisfaz o cliente (cidadão) (ALMEIDA, STELZENBERGER, GONÇALVES, 2012, p.136).

Nessa visão, a nova gestão pública se ca-racteriza e se estrutura, mundialmente, pelo modelo corporativo que vem se consolidando no âmbito da gestão pública brasileira. A partir des-sas iniciativas associadas ao movimento da cha-mada nova administração pública e do construto da liderança, as funções e as ações se confun-dem e passam a ter características semelhantes, tanto no setor público quanto no privado, no que se refere aos temas, às questões aos desafios e às implicações que advêm das reformas estabe-lecidas nas entidades públicas, em consonância com os novos perfis de liderança que permeiam as organizações, independentemente de serem públicas ou privadas.

O desafio a que nos propomos é de pro-mover uma discussão que esclareça as relações entre a nova administração pública e a liderança, no sentido de perceber as competências exigidas da figura do gestor e da figura do líder, nessa nova configuração gestionária do setor público. Para Terry (1998), a legitimidade da liderança é resultante de princípios que o líder detém e à sua gestão pública compete criar e manter valo-res e habilidades, apesar das dificuldades.

Nos últimos anos, a liberalização orientada para a gestão de mercado emergiu com aborda-gens dominantes, no campo da gestão pública e da liderança administrativa. Assim, o neo-geren-cialismo cultiva a ideia de que, na gestão pública,

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os líderes administrativos devem assumir o papel de empreendedores públicos e cria o argumento de que, persuadidos pelo neo-gerencialismo, eles representam uma ameaça à governabilidade de-mocrática (TERRY, 1998). Essa visão é discutida e criticada na perspectiva da responsabilidade democrática e da sua posição em relação aos pressupostos comportamentais.

Covey (2008, p. 124) assevera que “uma liderança proativa forte precisa monitorar cons-tantemente a mudança no meio social, particu-larmente dos hábitos de compra e impulso dos consumidores, fornecendo a energia necessária para organizar os recursos na direção certa”. Apesar de esse ser um comentário voltado para o setor onde se verifica a figura do consumidor e dos seus hábitos de compra, esse pensamen-to pode ser transportado para a administração pública, uma vez que a nova gestão se estabe-lece com o pensamento gerencial das organiza-ções privadas. Portanto, nessa conjuntura, o lí-der, independentemente de o setor ser público ou privado, deve estar em interação constante com o ambiente externo e o interno e observar as mudanças tecnológicas e de hábito dos con-sumidores, porque, hoje, a competitividade é a palavra de ordem em qualquer tipo de gestão, seja ela pública ou privada. Com a propagação dessa ideia, surgem situações que sucitam ques-tionamentos e nos levam a perguntar: quais os novos perfis de gestores e de que tipo de lideran-ça o setor público necessita para gerir esse novo modelo de gestão?

O líder precisa exercer um papel inovador e, ao encontrar problemas na equipe, deve concor-rer para ajudar, incentivar e mostrar o caminho certo a percorrer, por meio da motivação e do exemplo, para que as pessoas se sintam estimu-ladas a continuar o trabalho. Um dos eixos fun-damentais para se liderar se concretiza na ação de conseguir que a equipe ou o grupo trabalhe com satisfação e se envolva com os objetivos da organização. Para isso, não basta ditar normas, é preciso motivar as pessoas a desenvolverem suas atividades. Em síntese, no Século XXI, e com a nova gestão pública instalada em todas as áreas do setor público, muito do perfil do gestor e do líder teve que se adequar aos conceitos vigentes. Hoje, o modelo burocrático, baseado nos proce-dimentos rígidos, cedeu lugar para o profissional flexível e criativo. Portanto, o líder e o gestor de-

vem seguir esses passos e se (re)configurarem como sujeitos acessíveis, participativos, que in-centivam as ideias dos seus colaboradores, apli-cam-nas e reconhecem a atitude empreendedora do grupo.

Panzenhagen e Nez (2012, p.7) entendem que

ser líder, na gestão pública, parece uma tarefa mais difícil ainda, tendo em vista que o indiví-duo lidera um público diversificado, passa-se a ter pessoas de toda a comunidade que estarão te avaliando, tornando-se um desafio constan-te e sem dúvida interessante. A gestão pública vem sofrendo mudanças, o comprometimento com o bom atendimento com o público por par-te dos servidores púbicos cada vez é maior e isso origina novas ideias de pensamento, que se pode atribuir às mudanças que se apresentam nesse contexto.

Os autores acrescentam que

as instituições públicas são gerenciadas por dirigentes que devem ter o compromisso de manter a instituição cada vez melhor, para isso o desafio de liderar de forma que se consiga atender a toda a demanda administrativa. As-sim, terá que desenvolver um trabalho em equi-pe, com parcerias, sempre focado no grupo e estar preparado para receber o cidadão-cliente. Para o sucesso da instituição, e não correr o risco de prejudicar a instituição pública pela má gestão o dirigente/líder deverá ser um bom co-municador, saber ouvir a opinião da equipe que forma seu quadro de gestão, estimular, motivar a realizarem um trabalho com eficácia e com-promisso.O líder deverá ter capacidade de desenvolver um trabalho em equipe, sempre garantindo o respeito e honestidade entre os funcionários, ser um dirigente/líder inovador acompanhan-do as necessidades da instituição. Contudo, o cidadão-cliente sempre espera do dirigente pú-blico uma superação, pois esse dirigente tende a atender uma demanda e a necessidade de um bom atendimento e melhoria das instituições públicas. (PANZENHAGEN, NEZ, 2012, p.8)

A nova (re)configuração de liderança e ges-tão não se restringe a liderança hierárquica, mas

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a liderança chamada de relacional, os novos tem-pos sugerem mudanças de atitudes do perfil do gestor e do novo líder e a delegação de poderes é essencial. Na contemporaneidade, a liderança se alicerça no contexto emergente e se reflete na valorização dos relacionamentos. Por isso é fun-damental demonstrar o respeito pelas pessoas que contribuem com o desenvolvimento organi-zacional.

5. Conclusão

Há muito desafios para o processo evoluti-vo da liderança: um, em especial, é a educação, que concorre para conduzir grupos ou pessoas, a fim de que realizem o que é necessário, pois, sem educação, não há respeito nem responsabi-lidade.

A liderança é uma abordagem bastante complexa, subjetiva, envolve traços até mesmo na formação e na dissolução de alianças e nas estratégias para se ganhar ou se opor aos ou-tros. É algo muito sútil, em que, às vezes, até a mentira, a fraude e a deslealdade podem captu-rar a atenção e o entusiasmo dos seguidores. É assim que surge um falso líder, embora por um curtíssimo período e, por essa razão, há autores que apontam não ser viável esse tema para pes-quisas.

A Nova Gestão Pública não pode prescin-dir de líderes inovadores, que sejam capazes de aceitar partilhar o poder interno para que possa mobilizar a adesão dos subordinados aos objeti-vos da organização. O líder deve ser alguém que influência mais do que comanda e que detém mais autoridade do que poder. O seu papel deve estar centrado na concepção de uma liderança visionária que anteveja o futuro.

De acordo com Motta (2007), a gestão pú-blica não mais acata ações que podem até ser denominadas de “cosméticas”. Atualmente, é condição sine qua non colocar em evidência os

fundamentos e os princípios da gestão e da li-derança, embora esse debate ainda não se veri-fique no plano académico nem no político, com a intensidade necessária para o aprimoramento dessas questões. Portanto, o desafio da lideran-ça, na administração pública, está em buscar uma boa harmonia entre líder e seguidores e uma excelente relação pessoal para manter to-dos motivados, porquanto há ambiguidades no processo de liderança que Cohen & Tichy (2000) classificam como ambiguidade das intenções, ambiguidade do poder, ambiguidade da experi-ência e ambiguidade do êxito.

Na concepção da NPM, o líder é a pessoa que ‘aceita o risco da inovação’, que busca trans-formar o real por meio da motivação, é, essen-cialmente, uma pessoa proativa, e cujo mecanis-mo são a interação e o respeito ao pensamento do outro (FERREIRA, 2010). Então, para que o gestor e o líder se consolidem nessa nova con-juntura da gestão pública, os perfis de cada um devem se amoldar conforme as exigências pro-venientes das características associadas à nova gestão pública, que valoriza a eficiência, a efi-cácia e a produtividade, como foi enfatizado ao longo deste trabalho. Por isso, cabe ao gestor ser proativo e, ao líder, incentivar e motivar os co-laboradores a se sentirem satisfeitos quando da execução do seu trabalho, posto que, no modelo do Estado burocrático, essas características não eram incentivadas ou, sequer, mencionadas.

Sob o ponto de vista de Martins (1997), os novos mecanismos de gestão pública devem ser acompanhados de uma análise mais consistente, no que diz respeito às abordagens de traços, de comportamento situacional e cultural e no âmbi-to de sua qualidade carismática e transformado-ra. Nessa perspectiva, para que a gestão pública consiga avançar em suas concepções atuais e obter sucesso, ela não pode prescindir de cola-boradores que tenham as características de líder gestor aqui mencionadas.

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87Maria Patrícia Lopes Goldfarb1

Aquiles Cordeiro do Nascimento2

Hermana Cecília de Oliveira Ferreira3

Educação e cultura: um exercício de aprendizagem sobre a diversidade cultural em Sousa-PB

Apresentação

De acordo com registros históricos, a po-pulação cigana encontra-se no Brasil desde o Século XVI, e sua entrada remonta o período de

colonização do país. Nesse sentido, são gru-pos com pouca visibilidade nacional, estigma-tizados no imaginário coletivo e pouco estu-dados nos centros acadêmicos. Este trabalho pauta-se em tais grupos étnicos, objetivando

Resumo

Este trabalho é produto de pesquisa desenvolvida nos anos de 2010 e 2011, como parte do Projeto de Extensão PROBEX, da Pró-reitoria de Extensão da Univer-sidade Federal da Paraíba, vinculado ao Grupo de Estudos Culturais – GEC. Nosso projeto buscou investigar os processos de interação cultural que se desenvolvem entre ciganos e não ciganos na cidade de Sousa, estado da Paraíba, Região Nor-deste do Brasil. Observamos, especialmente, as relações sociais (ou sua ausência) que são travadas em Escolas públicas de Ensino Fundamental e Médio. Verifica-mos uma forte presença de estigmas em torno da identidade cigana na cidade, o que nos motivou a realizar palestras para a Rede Pública de Ensino (professores e alunos), visando discutir e problematizar conceitos como Cultura, Etnia, Etnocen-trismo e Relativismo Cultural, sempre focalizando a interação entre ciganos e não ciganos como parâmetro de análise.

Palavras-chave: Ciganos; Interação social, Exclusão.

1. Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais, área de Antropologia e Programa de Pós-Graduação em Antropologia, CCHLA – UFPB, Líder do GEC- Grupo de Estudos Culturais.2. Graduanda em Ciências Sociais, DCS/CCHLA/UFPB, Membro de GEC – Grupo de Estudos Culturais)3. Graduanda em Ciências Sociais, DCS/CCHLA/UFPB, Membro de GEC – Grupo de Estudos Culturais

E-mail: [email protected]

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suprir lacunas existentes na produção acadêmi-ca sobre eles. Com o termo cigano, referimo-nos a grupos específicos, do ponto de vista cultural, que se pensam e são pensados como diferentes.

Dispersos pelo mundo inteiro, os ciganos são grupos étnicos que, por variadas razões, encontram-se em diferentes países, legando e enriquecendo a sua cultura. Forçados pela ne-cessidade de sobreviver e de serem aceitos so-cialmente, hoje em dia, a maioria da população cigana é quase sedentária ou sedentária.

De acordo com o sociólogo britânico Ar-thur Ivatts (1975), a maior concentração dos ciganos está na Europa, onde reside metade da população total. Registram-se ciganos na África, no Egito, na Argélia e no Sudão. Eles também podem ser encontrados no continente america-no, dos Estados Unidos à Argentina, com uma grande concentração no Brasil.

São várias as versões sobre as origens dos ciganos, baseadas em dados hipotéticos, com diferentes justificativas para sua presença no mundo. De acordo com a maioria dos estudiosos da temática – os “ciganólogos” - os ciganos são originários da Índia, de onde saíram por volta do ano 1000, aproximadamente, e hoje estão espa-lhados no mundo inteiro. Quase todos os pesqui-sadores consideram as línguas ciganas como um indício comprobatório da sua origem indiana, devido a sua semelhança com o sânscrito (MOO-NEN, 1994).

Registra-se a presença de ciganos no Bra-sil desde os Séculos XVI e XVII, vindos como de-gredados do reino português, foragidos ou sim-plesmente em busca de melhores condições de vida. Atualmente, encontram-se em quase todos os estados do país.

Este trabalho trata, especificamente, de grupos Calon, que residem na cidade de Sousa, sertão do estado da Paraíba, Região Nordeste do Brasil, e estão sedentarizados desde a década de 1980. São os chamados ‘ciganos ibéricos’, que se diferenciam de outros grupos ciganos (como os Rom) pelos aspectos físicos, pela economia, pela língua e pelos costumes.

Na cidade de Sousa, atualmente, residem quatro grupos ciganos, localizados perto da BR 230, Bairro Jardim Sorrilândia III, a 3 km do

centro, no âmbito periférico da cidade. A comu-nidade cigana localiza-se próximo ao Parque de Exposições de animais, à Colônia Penal e ao Ins-tituto de Educação, Ciência e Tecnologia Federal (IEFPB) da cidade.

É importante destacar que constatamos na cidade um imaginário acerca dos ciganos asso-ciado à produção de estigmas, que servem para definir, descriminar e excluir a população ciga-na de um amplo convívio social. Nesse sentido, este artigo busca analisar tais estigmas e des-crever nosso projeto de extensão1 implementado na cidade, que buscou minimizá-los, oferecendo à comunidade - professores e alunos do ensino público - um ciclo de palestras e debates sobre as temáticas que tratam das formas de interação entre os grupos ciganos residentes em Sousa e a sociedade envolvente, com vistas a levar nossos conhecimentos para fora dos muros da univer-sidade e ampliar o debate sobre a diversidade cultural.

Metodologia

Para a realização do projeto, adotamos como recorte metodológico uma pesquisa do tipo exploratória que, segundo Cervo e Bervian (1996, p. 49), procura descobrir, com a máxima precisão possível, a frequência com que um fenô-meno ocorre, sua relação e conexão com outros, sua natureza e características específicas.

A importância desse tipo de pesquisa pode ser justificada pelo fato de que a realidade em-pírica se revela por meio de ações e representa-ções, cada uma com significados particulares, ou seja, “os fatos acontecem na realidade, indepen-dentemente de haver ou não quem os conheça. Mas, quando existe um observador, a percepção que ele tem do fato é que se chama fenômeno” (RUDIO, 1986, p. 11), e os fenômenos merecem ser investigados de modo científico.

A pesquisa foi realizada através de um es-tudo etnográfico que, conforme Geertz (1989), consiste na realização de um trabalho de campo, que se relaciona com o apreender de “dentro” as categorias nativas através das quais as pessoas articulam relações sociais e experiências de vida, ordenando suas práticas coletivas.

1. Projeto de Extensão intitulado Educação e Cultura: um exercício de aprendizagem sobre a diversidade cultural em Sousa-PB, realizado junto a Pro-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários – PROBEX – no ano de 2011.

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Antes de começar o ciclo de palestras, constatamos, por meio de observação direta, conversas informais e entrevistas abertas com as famílias ciganas e sousenses não ciganos, a reprodução de estigmas e de relações discrimi-natórias na cidade.

As fronteiras

Verificamos que existe, na cidade de Sou-sa, uma fronteira bem delimitada entre ciganos e não ciganos, e alguns elementos são tomados (quase unanimemente) como definidores da identidade cigana, tais como “vida fácil”, “de-sonestidade”, “eternos nômades”, “forasteiros”, “sujos” e “pedintes”, como mostram estas falas:

Os homens roubam, e as mulheres se prosti-tuem. Essa história de casar virgem é furada! (Comerciante não cigano, 31 anos).

O cheiro é fedido. O cabelo é sujo. O mau cheiro é devido ter nascido, criado, dormido no chão, misturado com a urina e fezes. Eles fedem. Se você abraçar uma cigana, você vai sair correndo (Radialista não cigano, 54 anos).

Nesses termos, constatamos que ali a po-pulação cigana é representada de forma extre-mamente depreciativa. A sociedade sousense constrói categorias acerca dos grupos ciganos ali residentes, pautadas em estigmas.

Erving Goffman (1988, p. 15) define o ter-mo estigma da seguinte forma:

Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente hu-mano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e mais vezes sem pensar, reduzimos suas chan-ces de vida. Construímos uma teoria do estig-ma, uma ideologia para explicar a sua inferiori-dade e dar conta do perigo que ela representa...

É necessário frisar que os estigmas estão presentes nas relações interétnicas, articulados como instrumentos de diferenciação por parte da população não cigana frente à alteridade, e são delimitadores culturais entre o que é tido como superior e como inferior nesse processo de interação social e de lutas simbólicas.

Abordando o estigma, sociólogo Goffman (1998) afirma que a sociedade estabelece meios de categorizar as pessoas e os atributos conside-rados normais, comuns, aceitáveis, e os indivídu-os que não se encaixam em tais categorias são considerados “uma espécie menos desejável”. Assim, quando há um descrédito em relação a indivíduos ou grupos sociais, diz-se que eles têm um estigma, por terem “desvantagens sociais”, que coincidem com os estereótipos desenvolvi-dos para identificá-los. Assim, o sujeito estig-matizado não é visto como uma pessoa normal, mas como alguém inferior, estragado ou diminu-ído (GOFFMAN, 1998, p. 12).

O termo estigma é usado em referência a atributos negativos que depreciam a imagem de um indivíduo ou grupo de pessoas, através do es-tabelecimento de uma linguagem específica. Ele se constrói pelo desenvolvimento de uma lingua-gem que objetiva, na maioria das vezes, como no caso dos ciganos, interferir nas relações sociais, portanto, é um mecanismo bastante eficaz nas formas de segregação social (GOLDFARB, 2004).

Loïc Wacquant (2005), ao tematizar as formas de marginalidade urbana, mostra que comunidades ou grupos estigmatizados estão alocados num sistema hierárquico, onde os que são “marginalizados” pelos sistemas econômico, político e social são vistos como “populações--problema” ou “pários urbanos”, apontados pela mídia, pelo Estado e pela sociedade como veicu-ladores das mazelas sociais.

No caso de Sousa, as imagens coletivas sobre os ciganos só devem ser compreendidas através das interações sociais cotidianas, em que os aspectos culturais são tomados e funcio-nam como diferenciadores, e cujo significado é a própria alteridade socialmente construída (GOL-DFARB, 2004).

Em relação ao local de moradia dos ciga-nos, observamos que é descrito pelos sousen-ses não ciganos como “rancho”, que representa, sobretudo, um “lugar de perigo”. O lugar, aqui pensado como espaço territorial e socialmente demarcado pelos grupos em interação, também é estigmatizado, porque representa a morada e a própria comunidade cigana como “lugar de dife-rentes”, de “estrangeiros”.

A esse “estigma do lugar” liga-se um “es-tigma da pobreza”, o que desemboca em segre-gações, exclusões e na ausência de cidadania

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entre os ciganos (WACQUANT, 2005).

A diferença está nas roupas, o jeito de falar, o andar. Os ciganos de Sousa são pobres, têm roupas maltratadas, os de fora tem ouro, se vestem melhor, tem mais dinheiro (Comercian-te de 60 anos).

A ausência de cidadania pode ser obser-vada na ausência de saneamento básico na comunidade cigana, no grande número de de-sempregados e na pobreza. Assim, as fronteiras étnicas que são cotidianamente erigidas na cida-de retratam a desigualdade de poder que asse-gura um lugar de “superioridade” e uma posição dominante aos não ciganos, que se veem como “pessoas melhores” e mais virtuosas do que os ciganos, tidos como “inferiores” ou carentes de certas virtudes e regras de moralidade (ELIAS; SCOTSON, 2000).

Eles vivem pro lado da Estação, vivem batendo demais nas portas pedindo. Acho que poderiam se controlar mais. Acredito que eles têm traba-lho, mas aperreiam demais. Os ciganos não têm terra fixa, enquanto nós temos o nosso lugar. É por isso que os ciganos não têm vergonha de nada, vivem assim, pedindo. (Padre, 45 anos)

Nessa fala, os ciganos são descritos como “pedintes”, que “aperreiam demais”, portanto não se esforçam para obter honestamente seu sustento. Além disso, são comumente apontados como “estrangeiros”, embora muitos sejam nas-cidos na cidade de Sousa. Esses estigmas são empregados como formas de evitação social.

Nesse cenário, também observamos que um número considerável de crianças ciganas se matriculava na Escola Estadual de Ensino Fun-damental e Médio Celso Mariz, localizada nas imediações da comunidade cigana. Porém um nú-mero expressivo vivenciava o processo de evasão escolar. De acordo com as famílias ciganas, tal fato se deve ao modo como os alunos são trata-dos pelos membros da instituição, que parecem reproduzir, nesse universo específico, todo um conjunto de estigmas que circulam sobre os ciga-nos no município de Sousa e nas regiões vizinhas.

Oiá, eu procurei todo mundo doutora, prá botar esses cigano pra estudar, e o povo só dizendo

que não, não, não, discriminano os cigano, e nós num somo gente não? E como é que os ci-gano vão viver sem estudo? Sem água, sem lim-peza? Se a senhora visse a nossa comunidade como vive, é por que a senhora não foi lá pra vê ainda, porque se a senhora for lá vai achar ruim (R. A., cigano de 45 anos)

Pronto, aquele menino que tá com a blusinha do Flamengo, que num estudava não por que a professora puxava nas oreias dele, aí eu fui to-mar satisfação lá, ele num queria ir, chorano. Eu nunca bati nos meu filho, agora eu botar mais ele pra estudar, não! (V. M., cigano de 33 anos).

A evasão escolar de alunos ciganos já cons-titui um fato, o que já justificava uma interpreta-ção desse fenômeno. Por essa razão, elaboramos um projeto de extensão que propunha modos de ação que pudessem ultrapassar os limites for-mais de aprendizagem em sala de aula, amplian-do o debate entre a universidade e a sociedade sousense.

Nesse sentido, o projeto contribuiu para que as alunas extensionistas envolvidas neles exerci-tassem as teorias estudadas na grade curricular do Curso de Ciências Sociais, especialmente da área de Antropologia. Destaque-se, ainda, sua re-levância social, na medida em que se voltava para uma situação social de contatos entre grupos culturais distintos, que interagem cotidianamen-te, mas que, na maioria das vezes, não exercitam um diálogo necessário para o desenvolvimento de uma sociedade mais igualitária.

Oiá, eu num tô dizeno nada ruim de ninguém. Agora, eu tô dizeno aqui que cigano é discri-minado, eu tô dizeno que cigano aqui é discri-minado pela sociedade inteira, principalmente pelos poderes. Por Doutor João Estrela, o Jú-nior, o Adair José, esses daí, ninguém faz nada, esses que tão no poder. Nem o prefeito faz. Aqui na nossa comunidade não. Aqui eu to mostrano a vocês a realidade, eu to mostrano a vocês a realidade, num to contano mentira, que vocês mermo tão presenciano aí. A gente tamo aqui no abondono pela alta sociedade, nós somo dis-criminado, samo tudo discriminado (L.C., ciga-no de 80 anos).

Partindo da hipótese de que o processo de

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estigmatização de um grupo sobre o outro im-possibilita o real acesso a direitos básicos (como a educação) e ao exercício pleno da cidadania, buscamos desconstruir esses estigmas com os que formam opiniões – contíguo ao sistema es-colar da cidade - mostrando que certas imagens são construções culturais e as consequências desse processo, que leva à exclusão social e ao aumento da pobreza dos grupos marginalizados.

Traduzindo conceitos, refletindo o cotidiano

Na segunda parte do Projeto, promove-mos atividades que possibilitassem a discussão de conceitos trabalhados pelas Ciências Sociais, com o intuito de contribuir para a formação de profissionais e analítica, atentando para a articu-lação entre teoria, pesquisa e prática social.

A princípio, tínhamos planejado fazer qua-tro palestras, especialmente na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Celso Mariz, lo-calizada perto da comunidade cigana. Entretanto, devido à falta de interesse da escola, as palestras foram realizadas na Escola Normal Estadual José de Paiva Gadelha, que atende à formação de pro-fessores na cidade. Assim, buscamos capacitar professores e alunos da Rede Pública de Ensino de Sousa, mediante a reflexão de temas básicos para a aceitação das diferenças culturais e do convívio social entre os grupos em interação.

As palestras tiveram o objetivo de articular o exercício e a reflexão sobre conceitos fundantes das Ciências Sociais, de acordo com a seguinte a ordenação:

A) O que é cultura: perspectivas antopológicas

B) Diversidade e choque cultural; etnocentrismo e relativismo cultural

C) raça, racismo; grupos Étnicos e identidade cultural

D) Etnicidade: direitos e cidadania: um caminho para o diálogo e o respeito às diferenças culturais

É importante destacar que as palestras foram organizadas periodicamente, previamente agendadas com a 10ª Região de Ensino, na cida-de de Sousa, e a Direção da Escola Normal, de acordo com o calendário escolar. Assim, a dinâ-

mica básica desses encontros compreendeu as exposições das temáticas pelas alunas extensio-nistas, seguidas por debate com a plateia pre-sente.

A pesquisa no mostrou que as fronteiras erguidas na cidade de Sousa baseiam-se em for-mas de distinção entre ciganos e não ciganos, construídas por meio de processos coletivos de fechamento, subjugação e exclusão de um grupo sobre outro, através de construções hierárquicas e formas de estratificação social.

Considerações finais

Com o processo de sedentarização, os ci-ganos, na cidade de Sousa-PB, vivenciam gran-des transformações nas interações cotidianas com a população não cigana e no cenário polí-tico-econômico nacional. É inegável que melho-rias ocorreram com os programas sociais, como o Bolsa Família e o Bolsa Escola. A criação do Centro Calon de Desenvolvimento Integral – CCDI - primeiro do Brasil, em Sousa, é bem exemplar desse novo cenário.

Essas mudanças têm apontado que é pre-ciso reordenar os valores e os papéis sociais no interior desses grupos e, por conseguinte, novas arrumações que lhes permitam (re) definir a sua identidade. Esses arranjos referem-se a uma maior elaboração de discursos sobre a “cigani-dade”, aliada à constante busca por meios reais de sobrevivência. Nesse sentido, os ciganos se apresentam como grupos que, dia a dia, reinven-tam-se.

Convém, entretanto, ressaltar que, a des-peito de novas demandas e conquistas internas, observamos que o convívio na cidade não deixou de ser ambíguo. Não desapareceu a fronteira que distingue, com total precisão, ciganos de não ciganos, e isso divide o “ser sousense” em tipos diferenciados, o que reflete num quadro de desafios e de problemas que se colocam sobre a questão da pobreza vivenciada pelos ciganos na atualidade. Soma-se a isso a exclusão política representada pelo não acesso às informações e, consequentemente, sobre seus direitos e deveres como cidadãos, agravados pelo fato de não te-rem acesso à educação e, portanto, às formas básicas de reivindicação.

Nessa perspectiva, propusemos, sobre-tudo, um diálogo com a comunidade, o que re-

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presentou uma oportunidade para a construção de um conhecimento pluralista e para o debate sobre a configuração de uma cidadania real para todos os sousenses.

Enfim, através do ciclo de debates, pude-mos problematizar e fabricar um espaço para

desnaturalizar os estigmas que giram em torno dos ciganos. Os professores e os alunos que par-ticiparam das atividades receberem uma capaci-tação, no sentido de ampliar seus conhecimen-tos e aplicar novos conceitos na sala de aula e na vida cotidiana.

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94Marlene Helena de Oliveira França

Do Estado Social ao Estado Penal:

1. Introdução

Sob o argumento de “guerra à criminalida-de”, as políticas de Tolerância Zero, instituídas em vários países, atuam na contramão das con-venções internacionais de proteção aos direitos humanos e dos princípios constitucionais moder-nos e institui um sistema penal repressivo, mas, ao mesmo tempo, simbólico. Essa é a tendência ideológica que surgiu, inicialmente, nos Estados Unidos, e espalhou-se pela Europa e pela Améri-ca Latina.

Na mesma direção, visando garantir a se-

gurança urbana, surgiu, nos anos 80, o Movi-mento “Lei e Ordem”, que adota a pena como um castigo e recomenda, além da eliminação de inúmeros direitos, punições cada vez mais severas para combater o aumento da crimina-lidade, incluindo a aplicação da pena de mor-te e da prisão perpétua para crimes graves e a construção de penitenciárias de segurança máxima, com a adoção de severos regimes prisionais.

Fortalecida pelo discurso da “Lei e Or-dem”, a proposta da “Tolerância Zero” su-gere, por sua vez, uma repressão intensa e

Resumo

Este artigo versa sobre a influência que o Programa de Tolerância Zero, originado em Nova Yorque, exerceu sobre a política penal de outros países, entre eles, o Brasil. De acordo com Wacquant (2003), a doutrina da Tolerância Zero, instrumento de legitimação da gestão policial e judiciária da pobreza, que incomoda, propagou-se, através do globo, a uma veloci-dade jamais vista. A principal mudança ocorrida após a implantação do referido programa foi em torno do aumento nos índices de encarceramento dos infratores de pequenos delitos, cometidos, sobretudo, por pessoas pro-venientes das classes mais empobrecidas, excluídas impiedosamente da sociedade do consumo e consideradas o refugo da humanidade.

Palavras-chave: Estado penal. Estado social. Prisão. Pobreza.

Profa. Drª. Departamento de Mídias Integradas na Educação da UFPB - Campus João Pessoa

enclausuramento da pobreza

E-mail: [email protected]

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intolerante em relação a pequenos delitos, vi-sando reforçar a segurança pública. É dessa pro-blemática que este artigo se ocupa, buscando, sobretudo, apropriar-se das teorias de controle social, como, por exemplo, o Programa de To-lerância Zero, mas também da ineficiência dos chamados sistemas prisionais.

2. O Programa de Tolerância Zero

O Programa Tolerância Zero se baseia, em grande medida, na chamada teoria das janelas quebradas (broken windows), que se sustenta no argumento de que, quando uma pequena infra-ção é tolerada, pode levar a um clima de ano-mia, que gerará as condições propícias para que crimes mais graves aconteçam. O exemplo das janelas quebradas é usado como metáfora para demonstrar que, se alguém quebra uma janela de uma casa ou edifício, e elas não são conser-tadas, a tendência é de que outras pessoas tam-bém quebrarão, e isso vai gerar uma sensação de desordem social. Com isso, a desordem vai tomando conta dos lugares e revelando aos cida-dãos que, além de inseguros, esses lugares estão prestes a se tornar territórios do crime.

Quanto à violência, o programa pregava que os crimes mais graves são frutos de uma sé-rie de pequenos delitos não punidos e que levam a formas mais graves de delinquência. Embora jamais tenha sido validada empiricamente, a te-oria das janelas quebradas alcançou status de verdadeira fórmula contra o crime.

Segundo a nova teoria, o Estado não deve se preocupar com as causas da criminalidade das classes pobres, à margem de sua “pobreza moral”, mas apenas com suas consequências, que deve punir com eficácia e intransigência.

Wacquant (2003) chama a atenção para a propagação, também na Europa, de um novo senso comum penal neoliberal, articulado em torno da maior repressão dos delitos menores e das simples infrações, o agravamento das pe-nas, a erosão da especificidade do tratamento da delinquência juvenil e a vigilância em cima das populações e dos territórios considerados de “risco”. O autor refere que “esse novo modelo

penal se apresenta em perfeita harmonia com o senso comum neoliberal e o dogma da eficiência do mercado ao domínio do crime e do castigo” (p. 129). O programa promove um enfraqueci-mento do Estado social e o fortalecimento e a glorificação do Estado penal. Os resultados de-monstram, ainda, que, não obstante as desigual-dades sociais e a insegurança econômica terem se agravado profundamente, no curso dos três últimos decênios, o Estado caritativo americano não parou de diminuir seu campo de intervenção e de reduzir seus modestos orçamentos. Nesse contexto, a guerra contra a pobreza foi substituí-da por uma guerra contra os pobres.

De acordo com Wacquant (2003), a nova legislação revogou o direito à assistência de que as crianças desfrutavam e, em seu lugar, instau-rou a obrigação para os pais assistidos de tra-balharem ao cabo de dois anos. Afirma também que, sob o manto da “reforma”, a lei confirma a substituição do estado-providência por um esta-do carcerário e policial, no seio do qual a crimi-nalização da marginalidade e a contenção puni-tiva das categorias deserdadas fazem as vezes de política social. A nova ideologia difundida afir-ma que a assistência aos pobres só serve para manter na ociosidade e no vício os habitantes do gueto, encorajando os comportamentos antisso-ciais1. A “mão invisível” tão cara a Adam Smith certamente voltou, mas, dessa vez, vestida com uma “luva de ferro” (WACQUANT, 2003, p. 151).

O que as pesquisas recentes do autor vêm demonstrando é que, na ausência das políticas sociais, a tendência verificada, nos Estados Uni-dos e em vários outros países, nas últimas dé-cadas, é de uma contínua expansão do sistema carcerário.

3. O Programa Tolerância Zero no Brasil: a experiência do Rio de Janeiro

No Brasil, as políticas sociais do estado de bem-estar nunca se universalizaram. O pro-cesso civilizador de inclusão e normalização dos indivíduos, no Estado moderno e capitalista, foi incompleto. Esse é um dos fatores que tem contribuído para o agravamento do aumento da

1. O governo de Reagan desenvolveu uma cruzada contra o Estado-providência, baseado no livro Losing Ground, de Charles Murray, guru da administração de Reagan, segundo o qual a excessiva generosidade das políticas públicas de ajuda aos mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza nos Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e induz à degenerescência moral das classes populares, sobretudo essas uniões ilegítimas, que são a causa de todos os males das sociedades modernas – entre os quais, a “violência urbana”.

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criminalidade. Além disso, sabe-se que, ao longo dos últimos séculos, as políticas de segurança foram direcionadas para o controle dos grupos “indesejáveis e perigosos”, entre eles, os negros, os malandros, os marginais, os vagabundos, no Século XX, os favelados, os desocupados e as mi-norias (MISSE, 2006, p. 143).

Importa considerar que as políticas de con-solidação do Estado Penal, nas últimas décadas, podem ser observadas não apenas no campo da programação legislativa criminalizante, que será mais bem analisada mais adiante, mas também na esfera da segurança pública.

As medidas adotadas pelo governador Bri-zola, como exigir que a polícia agisse dentro da lei e respeitasse os moradores de favelas, encon-traram receptividade da população das áreas mais carentes. Por outro lado, sofreram resistên-cia de significativos setores das polícias civil e militar, assim como críticas de segmentos das classes média e alta e dos políticos mais conser-vadores.

A resistência encontrada difundiu uma as-sociação do brizolismo com a permissividade, com o banditismo, a desordem urbana e o crime organizado. O governo de Moreira Franco adotou uma política conservadora e repressiva e privile-giou a ocupação policial nas áreas populares2.

Nas eleições de 1990, Leonel Brizola re-torna ao governo3, realçando a necessidade de levar à presença do Estado as áreas carentes e manter ações preventivas de segurança pública. No entanto, a chacina da Candelária e de Vigário Geral, em 1993, e o arrastão em praias cariocas atingiram a imagem do governo do Estado e sua política de direitos humanos e puseram na de-fensiva tanto as autoridades quanto aqueles que defendiam as políticas adotadas.

A partir desse quadro, o discurso conser-vador e autoritário faz uma distinção entre os diretos humanos e a cidadania, em que os pri-meiros seriam privilégios para desordeiros, ban-

didos, enquanto os direitos da cidadania seriam próprios dos “bons cidadãos”. De um lado, o dis-curso dos direitos humanos se desqualifica; do outro, as práticas ilegais, arbitrárias e violentas, que têm como alvo principal as classes popula-res e vulneráveis não valorizadas.

No ano de 1994, Nilo Batista assume, em substituição a Leonel Brizola, o governo do Rio de Janeiro, que passava por um profundo iso-lamento político. Além de forte oposição e ma-nipulação da mídia, policiais corruptos e crimi-nosos destilavam seu ódio à política de direitos humanos com assassinatos e queima de arqui-vo, fragilizando ainda mais o governo. Frente à pressão do governo federal, o governador assinou um convênio para iniciar operações em conjunto com o Exército e a Polícia, visando combater o tráfico de drogas e as armas no Estado. Iniciava--se, então, o que se chamou “Operação Rio”4.

As favelas se tornaram o território inimi-go a ser invadido. O governo de Marcelo Alen-car (1995-1998) manteve a política repressiva do confronto e assumiu o discurso da lei e da ordem na segurança pública, marcado por estig-mas sociais, preconceito e autoritarismo. Foi um governo conservador, apoiado em uma política de segurança reacionária e antidemocrática.

Em princípio, o governo de Anthony Ga-rotinho (1999-2002) apresentou propostas pro-gressistas, com base na defesa da dignidade hu-mana5. Porém, logo depois, adotou um discurso ambíguo, que aparentava ser progressista, mas que permitia medidas repressivas - postura que permanece até os dias atuais com o governo de Sérgio Cabral.

A breve análise das políticas de segurança no Rio de Janeiro, nos últimos vinte anos, é reve-ladora do embate de propostas e discursos sobre as funções da segurança pública. De um lado, tem-se a defesa dos diretos humanos, do direito penal mínimo, da descriminalização, como algo que protege os bandidos e aumenta a crimina-

2. Foi durante o período de Governo de Moreira Franco que se realizaram as operações Mosaico I e II, operações policiais de ocupação de favelas, com a intimidação de moradores, a prisão indiscriminada de suspeitos e a morte de traficantes. DORNELLES. Ob Cit. p. 149.3. O governo contava, em seus quadros, com a participação, como vice-governador, de Nilo Batista, advogado criminalista de reconhecida militância em favor dos direitos humanos, e o Coronel da Polícia Militar, Carlos Magno Nazaré Cerqueira, que assumiu a PMERJ com uma concepção transformadora e a preocupação com práticas policiais preventivas.4. Sobre a Operação Rio, ver CERQUEIRA, Carlos Magno. Remilitarização da segurança pública – a Operação Rio. In: O futuro de uma ilusão: o sonho de uma nova polícia. Coleção Polícia do Amanhã. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia / Editora Freitas Bastos, 2001. 5. Ver Plano Estadual de Segurança Pública feito em parceria com Luís Eduardo Soares. GAROTINHO, Anthony. Uma política de segurança para o Rio de Janeiro. In: Arché Interdisciplinar, Rio de Janeiro: Faculdades Integradas Cândido Mendes. Ipanema, nº 19, 1998.

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lidade. De outro, as políticas repressivas, que visam a mais punição e recrudescimento penal, são vistas como solução para os problemas so-ciais da violência nos grandes centros.

O discurso oficial tende a adotar a ideolo-gia da tolerância zero em termos semelhantes aos utilizados nos países centrais, mas a práti-ca cotidiana da polícia parece interpretar as pa-lavras duras dos líderes políticos como licença para aniquilar os inimigos internos6. A retórica da guerra contra o crime e as classes considera-das criminosas, propiciada pela nova ideologia, já vinha sendo aplicada no Brasil, por meio da violência policial ilegal e de uma longa tradição inquisitorial da história brasileira.

Na verdade, quando se deixa de acreditar na possibilidade de reabilitação e se perdem de vista as causas sociais do fenômeno criminal, o Estado fica liberado para canalizar seus esforços nesse campo para a vigilância e a repressão. E se a maioria dos criminosos é irrecuperável, pode--se, mais facilmente, despejá-los nas prisões por mais tempo sem drama de consciência. Assim, nota-se uma privatização da responsabilidade pela situação de exclusão, não mais atribuída às falhas e às deficiências da sociedade, mas expli-cadas pela culpabilização dos miseráveis.

Em suma, contra todas as propostas pro-duzidas no âmbito acadêmico de redução do direito penal e todas as críticas que o deslegiti-mam, assiste-se, no Brasil, a uma crescente ex-pansão da esfera penal, que se apresenta como uma (aparente) solução fácil para os problemas sociais e atua no plano simbólico, para tranqui-lizar a opinião pública, produzindo um aumento vertiginoso na população carcerária brasileira, sem, no entanto, discutir os reais problemas so-ciais que assolam a sociedade.

4. A expansão do Sistema Penal como uma nova ideologia de controle

O assombroso crescimento do número de presos nos EUA7 explica-se pelo encarceramen-

to dos pequenos delinquentes e dos usuários de drogas. Mas, ao contrário do discurso político dominante, as prisões americanas estão reple-tas não de criminosos perigosos e violentos, mas dos envolvidos em pequenos crimes, como: uso de drogas, furto, roubo ou simples atentado à ordem pública, em geral, oriundos das parcelas precarizadas.

A causa-mestra desse crescimento astro-nômico da população carcerária é a política de guerra à droga, que desmerece o próprio nome, pois designa, na verdade, uma guerrilha de per-seguição penal aos vendedores de rua, dirigida contra a juventude dos guetos, para quem o comércio do varejo é a fonte de emprego mais acessível. Foi essa política que entupiu as celas e escureceu seus ocupantes. Assim, à medida que se desfaz a rede de segurança do Estado caritati-vo, vai se tecendo a malha do Estado disciplinar, chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço social americano.

A extensão do sistema penal se exerce, prio-ritariamente, nas as famílias e nos bairros deser-dados, particularmente, os enclaves negros das metrópoles. Os afro-americanos são maioria nas prisões, embora representem apenas 12% da po-pulação do país. A prisão se tornou o substituto do gueto8. Isso mostra o caráter discriminatório das práticas policiais e judiciais implementadas na política “lei e ordem” das duas últimas déca-das (WACQUANT, 2003).

A conclusão de Wacquant (2003) é de que o encarceramento serve bem antes à regulação da miséria, talvez à sua perpetuação, e ao arma-zenamento daqueles que estão fora do jogo do mercado. Os indivíduos que enchem os cárceres são, essencialmente, as pessoas debilmente inte-gradas à sociedade e percebidas como de má re-putação: gatunos, vagabundos, marginalizados, toxicômanos, psicopatas e estrangeiros. É para esses indivíduos que se direcionam as políticas da Tolerância Zero e o discurso da Lei e a Ordem, que servem para garantir o controle sobre aque-les que não estão integrados a um determinado

6. Não se trata de uma política explícita de extermínio, mas de uma estratégia de “polícia de resultados”. Isso se traduz em prisões e apreensões de armas e drogas e, como consequência, há um incremento daquelas pessoas que resistiram à atuação da lei e, por isso, foram mortas, porque se colocaram francamente em confronto com a polícia.7. Em 1975, eram 380.000 presos nos EUA, saltando 1998 para dois milhões.8. O gueto é um dispositivo socioespacial, que permite a um grupo dominante explorar um grupo dominado, portador de um capital simbólico negativo, isto é, uma propriedade corporal, percebida como fator capaz de tornar qualquer contato com ele degradante. Em outras palavras, o gueto é uma relação étnico-racial de controle e de fechamento, composta de quatro elementos: estigma, coação, confinamento territorial e segregação institucional. A prisão também é composta desses elementos.

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“modelo de sistema social”.Estamos buscando demonstrar que, nos

anos 90, a legislação penal, em vários países, foi marcada por características muito conhecidas: simbolismo e punitivismo. No Brasil, por exem-plo, constata-se a existência de uma legislação simbólica, porque não é aprovada para resolver os verdadeiros problemas, e punitiva porque, não resolvidos os reais problemas sociais, isola os excluídos e indesejáveis nos cárceres por cada vez mais e mais tempo. A preocupação central é acalmar a população alarmada com a violência. Legisla-se para contentar as elites, a mídia e a parcela insatisfeita da sociedade. O punitivismo revela-se patente na criação de novos crimes, no aumento de penas, no endurecimento da execu-ção penal e no corte de direitos e de garantias fundamentais.

A irracionalidade de tais medidas de com-bate à criminalidade, previstas nas novas leis penais, especialmente a Lei de Crimes Hedion-dos, pode ser constatada na potencialização dos problemas carcerários acarretada pela vedação dos benefícios prisionais. Na legislação brasilei-ra, houve um retrocesso significativo, em compa-ração com as medidas liberais instituídas pela reforma de 1984.

As medidas previstas na Lei 8.072/90 cau-saram o agravamento da superlotação em geral, especialmente das delegacias, ao aumentar o prazo da prisão temporária até sessenta dias, ve-dar a fiança e a liberdade provisória e determinar que a pena seja cumprida integralmente em regi-me fechado, impedindo a progressão de regime.

Temos presenciado diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais quanto à extensão dos dispositivos da lei 9.714/98 (penas alterna-tivas) aos crimes definidos como hediondos. Principalmente no delito de tráfico de drogas (pequeno tráfico), com condenação de até qua-tro anos de reclusão, que representa um consi-derável número de presos no país, o que ocorre é que “minitraficantes” (condenados com base no artigo 12 da Lei 6368/76), com pena de até quatro anos de reclusão, não podem ter suas pe-nas substituídas pela Lei 9.714/98, pois ela não revogou os dispositivos da Lei 8.072/90, onde o tráfico ilícito de entorpecentes e de drogas é

9. Dado publicado por GOMES, Luiz Flávio. O direito penal na era da globalização. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

considerado crime hediondo, e cuja pena deve ser cumprida integralmente em regime fechado.

As estatísticas produzidas pelo Departa-mento Penitenciário – Conselho Nacional de Polí-tica Criminal e Penitenciária/Ministério da Justi-ça - comprovam o aumento crescente no número de detentos, nas prisões brasileiras, nos últimos anos. Em 1990, ano de promulgação da Lei de Crimes Hediondos, no Brasil, o total de presos era, em média, de 90 mil9. Vinte anos mais tarde, esse número chegou a 400.000.

Em apenas quatro anos, de 2000 a 2004, houve um aumento de mais de cem mil presos, o que revela, certamente, a nova opção das po-líticas públicas brasileiras pelo encarceramento em substituição às políticas sociais. Por outro lado, as estatísticas que demonstram o aumento da criminalidade, nos últimos anos, representam um forte argumento para aqueles que defendem um endurecimento penal.

Esses dados revelam, ao contrário do que pensa o argumento popular - “mais crime, mais cadeia” - que a opção por uma política de re-pressão penal para o problema da criminalidade urbana não tem se revelado eficaz, e o encarce-ramento não é a mais adequada solução para o aumento de alguns crimes no Brasil. Mas, ao contrário do que muito pensam, a lei de crimes hediondos não inibiu o aumento do número de homicídios nos últimos anos.

Percebe-se que as medidas despenaliza-doras se aplicam apenas a uma parcela mínima de condenados, e o encarceramento é mantido como regra. A introdução do conceito de justi-ça penal alternativa pouco significou, em termos de realidade carcerária, pois alcançou acusados que já não cumpriam pena privativa de liberdade, sem que houvesse alteração no sistema repres-sivo dos crimes hediondos. As leis brasileiras, cada vez mais repressivas, revelam a opção das políticas públicas pelo encarceramento daqueles que cometerem delitos, mas que se espera que cometam outros, ou seja, mantê-los presos para que não reincidam. Já há um pré-julgamento de que eles poderão reincidir e, portanto, é melhor deixá-los presos. A forma preventiva dessas leis não está baseada apenas no aumento da pena com base na coação moral, no cálculo racional

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que o indivíduo irá fazer ao cometer um crime, mais do que isso, a prevenção que se espera é que, se forem presos mais criminosos, muitos crimes deixarão de ser cometidos. Essa lógica, sem nenhuma comprovação científica, pare-ce sustentar a manutenção do aprisionamento como principal meio coercitivo e se agrava com a situação desumana encontrada nos cárceres brasileiros.

A nova onda de encarceramento identifi-cada no Brasil, na Europa e nos EUA, segundo Bauman (2005) e Wacquant (2003), representa uma característica da nova fase da modernidade. A promessa de construir a ordem e o progres-so econômico também produziu “refugo huma-no” (seres humanos excessivos e dispensáveis). Os não consumidores, ou consumidores falhos, estão “excluídos do único jogo disponível, não são mais jogadores e, portanto, não são mais necessários”. Portanto, as pessoas supérfluas são tratadas pela “sociedade organizada” como parasitas, intrusas, marginais, acusadas de viver à beira da criminalidade e de se alimentar para-sitamente do corpo social. Sua incapacidade de participar do mercado tende a ser cada vez mais criminalizada, através do aumento das penas, do endurecimento da execução penal e da tipifica-ção de novos crimes.

A pesquisa de Wacquant revela que o in-chamento explosivo da população carcerária, o recurso maciço às formas mais variadas de pré e pós-detenção, a eliminação dos programas de trabalho e de educação no interior das penitenci-árias, a multiplicação de instrumentos de vigilân-cia, modelos da nova penalogia norte-americana, que vem se espalhando pelo globo, não tem por objetivo reabilitar os criminosos, mas gerenciar custos, controlar populações perigosas e, na falta disso, estocá-los em separado para reme-diar a incúria dos serviços socais. Para o autor, a ascensão do Estado penal americano responde assim não à ascensão da criminalidade, mas ao deslocamento social provocado pelo desengaja-mento do Estado caritativo.

Nesse sentido, o desdobramento dessa política de criminalização das consequências da miséria de Estado opera segundo duas mo-dalidades principais. A primeira, menos visível, consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas classes perigosas. O segundo componente da po-

lítica de contenção repressiva dos pobres é o re-curso maciço e sistemático do encarceramento.

Bauman (2005) correlaciona a criminaliza-ção da sociedade contemporânea com as expec-tativas da sociedade do mercado do consumo. Segundo ele, quanto mais elevada à procura do consumidor, mais a sociedade de consumidores é segura e próspera. Todavia, simultaneamente, mais amplo e mais profundo é o hiato entre os que desejam e os que podem satisfazer os seus desejos. Aqueles que aprenderam que possuir e consumir determinados objetos, adotar certos estilos de vida é a condição necessária para a felicidade, talvez até para a dignidade humana, mas não podem agir em conformidade com os desejos induzidos, são considerados os jogado-res incapazes e indolentes e devem ser mantidos fora do jogo - são o refugo do jogo. As classes perigosas são assim redefinidas como classes de criminosos. “E, desse modo, as prisões ago-ra, completa e verdadeiramente, fazem as vezes das definhantes instituições do bem estar” (BAU-MAN, 2005, p. 57).

Desse modo, o aumento da prisionização, nas sociedades contemporâneas, relaciona-se à incapacidade dos excluídos de participarem do jogo do mercado, aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos e os que recusaram a opor-tunidade de vencer enquanto participavam do jogo de acordo com as regras oficiais (BAUMAN, 1998). O autor salienta que, hoje, o sistema se resume a separar de modo estrito o “refugo hu-mano” do restante da sociedade, excluí-los e neutralizá-los, pois o refugo humano precisa ser lacrado em contêineres fechados com rigor, e o sistema penal fornece esses contêineres. As pri-sões que, teoricamente, funcionavam como me-canismos de correção e ressocialização, hoje são concebidas como um mecanismo de exclusão e de controle. “O principal e talvez o único propósi-to das prisões não é de ser apenas um deposito de lixo qualquer, mas o deposito final, definitivo. Uma vez rejeitado sempre rejeitado” (BAUMAN, 2005, p. 109).

Em suma, as prisões, como tantas outras instituições sociais, passaram a tarefa de reci-clagem para o depósito de lixo. Assim, a cons-trução de novas prisões, o aumento do número de delitos puníveis com a perda de liberdade, a política de tolerância zero e o estabelecimento de sentenças mais duras e mais longas podem

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ser medidas mais bem compreendidas como es-forços para se construir a deficiente e vacilante indústria de remoção do lixo - uma nova base, mais antenada com as novas condições do mun-do globalizado. (BAUMAN, 2005).

Ao contrário da sociedade panóptica, tal como identificado por Foucault (2002), que tinha a intenção de controlar e dominar com o intuito de tornar os anormais funcionais para a socieda-de, o que Bauman ressalta na mesma linha de Wacquant é o fim dessa preocupação ou respon-sabilidade coletiva e, por conseguinte, a transfor-mação do controle em pura e simples exclusão da convivência social. O exemplo mais evidente dessa tendência, nos países centrais, é o aumen-to das taxas de encarceramento e a explosão dos gastos com o sistema de justiça penal (polícia e prisões), ao mesmo tempo em que as despesas com as instituições de bem-estar são cortadas drasticamente10.

5. Considerações finais

Vimos, no decorrer do artigo, algumas leis que criminalizaram uma série de novas condu-tas sociais. Elas são chamadas de neocrimina-lizantes, devido ao excessivo número de novos crimes que a partir delas foram definidos. Im-portante destacar que a maioria das leis repre-senta um avanço na garantia dos direitos consti-tucionais individuais como também dos direitos difusos e coletivos, e algumas delas vieram com o intuito de permitir maior controle estatal e ju-

rídico em áreas, ou questões sociais onde ha-via uma antiga demanda por fiscalização e re-gulação. No entanto, este breve artigo buscou chamar a atenção para uma série de condutas que poderiam ter sido tratadas como infrações administrativas, mas foram classificadas como criminosas. Isso aumentou significativamente, nos últimos anos, o rol de crimes no Brasil e es-tigmatizou, ainda mais, os indivíduos que nelas são enquadrados.

O ilícito civil visa ao ressarcimento e à in-denização do dano sofrido, enquanto o ilícito penal objetiva penalizar o agente causador. Em razão disso, exige-se que o agente sofra com a pena imposta. Essa forma punitiva, comum na sociedade brasileira, revela que, no Brasil, não se acredita na possibilidade de composição civil dos conflitos, nem na restauração ou na mediação do conflito, ao contrário, deseja-se a supressão dos conflitos. Interessante destacar que, no caso de algumas leis, não há divergência dos legisladores a respeito do amplo processo de criminalização.

Em suma, é preciso chamar a atenção para a adesão de amplos setores da esquerda à ideolo-gia da repressão, da lei e da ordem, com interes-se no combate à criminalidade, no crescimento da demanda por mais repressão e no rigor puni-tivo. Assim, ao se voltarem para objetivos mais imediatos, tais setores abandonam a perspectiva de construir uma nova sociedade, entregam-se a um pragmatismo político-eleitoral sem ideais e princípios, o que favorece, em última instância, a ampliação do poder punitivo do Estado.

10. “O Big Brother mais antigo, aquele criado por George Orwell (...) estava preocupado em incluir, integrar, colocar as pessoas na linha e mantê-las assim. A preocupação do novo Big Brother (reality show) é a exclusão – identificar as pessoas desajustadas e bani-las de lá (...). Uma vez fora, eternamente fora” (BAUMAN, 2005, p. 162).

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REFE

RÊN

CIAS

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101Mariza de Oliveira Pinheiro1

Carlos Alberto de Jesus2

Jean Amós Comenius e os princípios da Educação Universal

1. O que é Pandidascália?

Pandisdascália é parte da obra intitula-da Pampaedia, ou Educação Universal, de Co-menius, que, por sua vez, é parte de uma obra maior: Deliberação Universal acerca da reforma das coisas humanas. Foi escrita em 1645, quando o autor estava no exílio, em Amsterdã, e já havia vivenciado a desagregação política e cultural da

Boêmia, sua terra natal. A Pampaedia, ou Educação Universal,

ocupa o lugar central na deliberação, como instrumento básico da Reforma Universal. A obra sistematiza um ideal de instrução univer-sal, não apenas ligado à escola, como na obra Didática Magna, mas também em um princí-pio de formação para toda a vida, inclusive a vida eterna. Nessa obra, estão contidas a filo-

Resumo

Ao estudar e discutir sobre a obra de Jean Amós Comenius, identifi-camos muitas semelhanças estruturais entre a escola de hoje e o sistema educacional proposto pelo pensador. Essa constatação nos instigou a apro-fundar esses paralelos com algumas situações que vivenciamos em nossa prática pedagógica, na escola de ensino médio e, até mesmo, na universi-dade, ou seja, nos atuais sistemas educacionais do Brasil. Para esse diálo-go, utilizaremos a obra Pampaedia, no capítulo que trata da Pandidascália, e fragmentos da obra Didáctica Magna, também do mesmo autor.

1.Docente e coordenadora do Curso de Artes Visuais/DAV/CCTA/UFPB. Graduada em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, Es-pecialista em Educação Básica (UFPB) e Mestre em Educação, na linha de pesquisa História da Educação e Cultura (UFRN.)2.Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS). Doutor em Educação (UFRN). Tem experiência na área de Física, com ênfase em Física Clássica; Mecânica e Campo. Atua, principalmente, nos seguintes temas: educação profissional, sistemas operacionais, currículo e ensino de Ciências e prática de ensino de Física. http://www.cefetse.edu.br.

E-mail: [email protected]

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sofia, a pedagogia e a teologia de Comenius que segundo Gasparin (1994, p 95), “É um centro que ilumina retroativamente todas as suas de-mais obras”.

No capítulo da Pandidascália, Comenius apresenta os requisitos necessários para um ver-dadeiro Pandidáscalo, ou seja, o professor que é capaz de promover uma educação universal, que prepara o aluno para lidar com as coisas da na-tureza, da vida e com a morte. A ideia central do capítulo é a apresentação de vinte e cinco pro-blemas, que podemos chamar de princípios nor-teadores da Didática comeniana, para o ensino universal. Os princípios constituem uma indica-ção metodológica e didática da ação docente e, sobretudo, detalha os meios e os métodos para ensinar a todos todas as coisas totalmente. Não é preocupação nossa detalhar tais problemas, uma vez que as citações de muitos dos seus títulos já os identificam por si só, mas, como menciona-mos, nossa intenção é de identificar conceitos fundantes, cristalizados e, ainda hoje, sólidos,

nas práticas pedagógicas e na estruturação dos sistemas educacionais.

Essa obra pode ser considerada como a maior obra pedagógico-educacional de Come-nius, por conter noções pedagógicas de forma sistemática e harmoniosa com o objetivo de con-duzir os homens para o mesmo fim, através do conhecimento e da fraternidade, conceitos uni-versais utilizados na educação.

Observa-se, na apresentação e no desen-volvimento das ideias, que Comenius sempre re-mete a uma tríade (a respeito da qual teceremos mais detalhes adiante). No que se refere ao con-teúdo do texto, em primeira análise, percebe-se que a religião é o elemento norteador, de maneira que a santíssima trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – se revela, quando se relaciona ao conjun-to de princípios e relações emergentes, como: a) nascer, viver e morrer; b) aprendizagem, conhe-cimento e sabedoria; c) a todos, tudo, totalmen-te, entre outros, que se apresentam ao longo do desenvolvimento da obra comeniana.

2. Os pilares da tríade principal: Todos, Tudo e Totalmente - elementos da universalidade

1º- Todos (OMNES) significa “todo o gênero humano, seja qual for a sua idade, o seu estado, o seu sexo e a sua nacionalidade” (GASPARIN, 1994, p.106). Comenius refere que esse pilar se justifica porque Deus não faz discriminação entre os ho-mens. O autor funda as bases para a democrati-zação do ensino, mesmo que não houvesse essa intencionalidade na época. Outro detalhe a se veri-ficar é que aparece aí o caráter de educação inclu-siva. Para Comenius, todas as pessoas deveriam ter acesso a tudo e a todas as coisas, de forma plena ou totalmente, incluindo mulheres e deficien-tes. Nesse sentido, entendemos que se manifesta a horizontalidade do acesso, ou seja, a intenção de atingir o máximo de educandos possível.

2º- Tudo (OMNIA): trata-se da formação

integral do homem para aperfeiçoar a natureza humana “em todas as coisas que podem tornar o homem sábio e feliz” (GASPARIN, 1994, p.109). Significa conhecer, escolher e fazer necessária na vida e na morte. Fornecer o conhecimento mais completo das coisas. Nesse pilar, cogita-se a in-tegralidade do homem quanto ao acesso ao en-sino, à escola, enfim, ao saber. Contudo, Come-nius ainda não percebia o aluno como produtor de saber antes do acesso à escola. Outro aspecto a ser considerado é a verticalidade do conheci-mento em termos de gradualidade. A forma do ensino gradual é uma contribuição de Comenius.

3º- Totalmente (OMNIMODE): Significa ser íntegro, total, profundo, real e duradouro. Trata--se de uma educação não fracionada, mas que orienta para a busca completa do equilíbrio, do

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desenvolvimento harmonioso de todas as partes do homem, de forma sólida e segura, prazero-sa e acelerada. Poderíamos nos arriscar a dizer que, nesse ponto, Comenius propõe uma forma-ção integral do indivíduo, porque entende que todo o conhecimento existente e em construção deve ser disponibilizado de forma harmônica, não fragmentada. Dessa forma, ele aponta para a construção da personalidade do homem. Outro fato importante é a prudência de que não se po-dia retardar o ingresso dos (as) jovens na escola para todos (as).

A representação gráfica dessas ideias, em forma de triângulo (fig.01), traduz a compreen-são da tríade principal. Os vértices do triângu-lo, da forma como estão dispostos, não indicam uma ordem determinada para os termos omnia (tudo), omne, em qualquer disposição espacial em que esteja o triângulo, devido ao caráter inte-grador dos conhecimentos contidos nos termos. A presença da cruz de malta, no centro do triân-gulo, também simboliza a santíssima trindade e representa o caráter religioso com presença in-tensa na obra.

Quando tomamos, especificamente, a Cruz (fig.02), como representação gráfica da proposta comeniana, percebemos nela a verticalidade e a horizontalidade da proposta do ensino, de acor-do com a metáfora da árvore que utiliza em sua obra Didáctica Magna, que comentaremos mais adiante. “Ensinar tudo” tem o sentido de cres-cer gradativamente, de acumular conhecimento - verticalidade e horizontalidade - ensinar a todos, como forma de democratizar o acesso ao ensino e ao conhecimento, como o próprio Comenius afirma: ‘indiscriminadamente a todos’. E o “Total-

mente” representa o caráter de universalidade e de solidez da formação do educando e do edu-cador; é como se a universalidade constituísse as raizes da árvore, em especial, como a própria árvore como um todo.

A análise da Cruz demonstra os três ele-mentos constituintes da formação do professor pampédico e pandidáscalo: Ensinar tudo, a todos, totalmente.

Vejamos mais uma análise gráfica (fig.03) para compreender o método comeniano para o ensino, usando, mais uma vez, a representação gráfica da Cruz, com as ideias de conhecimento horizontal e vertical. Entendemos estar implíci-tos nos termos ‘tudo’ (ensinar de forma vertical), ‘a todos’ (ensinar de forma horizontal) e ‘total-mente’ como o resultado do cruzamento dos ei-xos horizontal e vertical, que determinam uma totalidade: o conhecimento universal, que abran-ge as regiões determinadas pelos quadrantes.

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Através desse gráfico, vê-se que há uma semelhança com o plano cartesiano de René Descartes, definido como o resultado do cruza-mento de dois eixos ortogonais, que determinam quatro regiões, chamadas de quadrantes, e um ponto central, chamado de origem. Quando cru-zamos as palavras “vertical” e “horizontal”, no-tamos que elas determinam a palavra zero, no centro geométrico da Cruz, que se assemelha ao sistema cartesiano. Descartes propõe a frag-mentação dos objetos de estudo – conhecimento - (fragmentação do ‘tudo’) e procura, por meio dessa fragmentação, estabelecer relações com o ‘todo’, reconstituí-lo e conhecê-lo gradual e cumulativamente, para atingir o totalmente, isto é, o conhecimento.

No que se refere ao ensino, Comenius pro-põe a compreensão do todo, como conhecimento universal, construindo-o e ampliando-o gradati-vamente. O conhecimento vertical expande-se a tudo, de forma horizontalmente democratica e a todos indiscriminadamente; assemelha-se à sua metáfora da árvore que cresce para cima (verti-calidade) e expande a copa para os lados (hori-zontalidade).

Para ambos os pensadores, o objetivo é de atingir a totalidade do conhecimento. No caso de Descartes, trata-se do método de investiga-ção e construção do conhecimento científico; em Comenius, o método aponta para a formação do professor e do aluno, principalmente para ensi-nar o conhecimento sistematizado e construir os saberes. Ele concebe que ensinar a todos sig-nifica fornecer a todos os homens, de todas as idades e de todos os lugares um conhecimento mais completo. Ensinar todas as coisas total-mente significa aperfeiçoar a natureza humana, conhecer todas as coisas verdadeiras, escolher todas as coisas boas e fazer todas as coisas que são necessárias na vida e na morte. Ensinar to-talmente significa ensinar de modo a chegar até o fundo da questão: 1- solidamente e com segu-rança; 2 - com agrado, prazer e rapidez em todas as coisas e 3 - prudentemente, em toda parte.

3. Os Elementos para a Pampaedia (Educação Universal)

Aportando-se sempre em uma tríade, para o êxito da Educação Universal, Comenius destaca a ênfase em três elementos: “as Escolas” (Pans-

colas), que se constituem como locais de forma-ção universal, que deixam de ser o lugar priva-do e privilegiado da elite e se tornam espaços que atendem a todos os que se preparam para o trabalho; “os Livros” (Pambíblias), que são ne-cessários e devem ser elaborados de acordo com leis e métodos para se chegar à cultura univer-sal; e “os Professores” (Pandidáscalos), que são preceptores ou mestres, necessários à formação dos pansófos (alunos universais) - uma profissão específica, exigência da nova sociedade.

Comenius propõe um espaço específico para a educação e para o ensino, quando defi-ne as Panscolas. Assim, funda a ideia de orga-nização da escola com salas de aula e estrutura administrativa, bibliotecas, para dar suporte às Pambíblias e, talvez, seja o primeiro pensador da educação a propor uma formação e profissiona-lização docente.

A prática pedagógica, segundo Comenius, apresenta três características: a) competência intelectual - organização, zelo e atualização dos fins e dos meios da profissão e a variedade de métodos e especialidades; b) integridade moral, como modelo e exemplo de virtudes, que deve abranger homens seletos, piedosos, honestos, dignos, trabalhadores e prudentes; c) o método, que deve estar de acordo com as etapas do de-senvolvimento do aluno.

Dessa forma, a prática pedagógica, para Comenius, deixa de ter um sentido de sacerdó-cio, ou doação, para ser uma profissão como as outras. O professor é um profissional com dedi-cação exclusiva, que exerce uma tarefa especí-fica, e deve, por isso, receber um salário digno.

No que diz respeito aos indicadores me-todológicos da ação docente, Comenius destaca como importantes: a) a Motivação: ao preparar o ambiente de ensino, prepara-se a natureza huma-na, para se entregar com entusiasmo, e tornar-se apta a receber a formação; b) o Planejamento; visa desenvolver e executar as atividades de acor-do com as etapas do processo ensino-aprendiza-gem; c) a Avaliação: para se certificar se os obje-tivos foram atingidos. A relação professor-aluno deve ser de ânimo e afeto, como pais espirituais. O professor auxilia e orienta os alunos de forma coletiva, instruindo todos ao mesmo tempo.

Comenius utiliza-se dos exemplos da natu-reza, como metáforas, para justificar a defesa do ensino coletivo e popular para todos:

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“O professor deve ser único, como o sol que chega para todos os lugares”.

“ou, como o caule de uma árvore, que, sen-do único, embebe toda a árvore.”

Quanto à organização do trabalho na es-cola, Comenius menciona três aspectos: a) a di-visão do trabalho, no encadeamento de cargos e de funções interdependentes; b) a cooperação, que pode ser simples - todos executam o mes-mo trabalho; e complexa – divide-se o trabalho em grupos, para, depois, agrupar o todo; c) con-dução do processo de ensino-aprendizagem - o professor é o responsável, como um artesão que executa por inteiro a sua obra. Nesse sentido, a aprendizagem, para Comenius, depende do pre-paro do conhecimento e da habilidade do profes-sor para conduzir o processo de ensino.

Enfim, a Pandidascália, para Comenius, engloba a Universalidade, ou seja, ensinar tudo a todos; a Simplicidade, através de meios e mé-todos fáceis e seguros; com Espontaneidade, usando-se a suavidade para instigar o prazer de aprender. O objetivo de ensino do Pandidáscalo é tornar sábios todos os pansofos sábios, atra-vés do conhecimento de si, do mundo e de Deus; autônomos, para serem grandes governantes; éticos, bons, piedosos, misericordiosos e justos. Para Comenius, em sua missão de ensinar, o pro-fessor deve ser um modelo absolutamente perfei-to de sabedoria e de santidade, no desempenho da vocação pandidascália; e a educação é a arte das artes, voltada para a formação do homem.

4. Os fundamentos universais do método comeniano

As bases do método comeniano são: a Natureza e os fundamentos da Bíblia. A educação, para Comenius, é a forma de desenvolvimento pleno do homem. É o instrumento que envolve a vida individual e social, que concretiza sua for-

mação e salvação. A infância é a fase em que se devem corrigir as deficiências.

A razão de se utilizarem os mesmos mé-todos para todos os indivíduos, segundo Come-nius, está no fato de que todos os homens devem ser dirigidos para os mesmos fins: a sabedoria, a moral e a perfeição. Embora tenham inteligên-cias diferentes, todos têm a mesma natureza humana, dotadas dos mesmos órgãos. As dife-renças de inteligência são os excessos, ou uma deficiência da harmonia natural.

5. Os meios e os métodos para ensinar tudo a todos totalmente

A intenção, aqui, não é de discutirem os ‘problemas’, como denomina Comenius, ou ‘prin-cípios‘ e ‘diretrizes’, como preferimos chamá--los, para um método de ensino a ser utilizado pelo pandidáscalo, uma vez que eles - os proble-mas - já estão bem discutidos e apresentados na obra por Comenius. Nossa leitura aponta para o estabelecimento de relações e de heranças co-menianas, visíveis na escola atual e sua forma de estruturação, a partir de conceitos explícitos e implícitos.

Em seu rol de ‘princípios’, Comenius for-mula ideias sobre a estruturação do ensino e da escola, que passo a passo, levam à formação do pansofo. É bem verdade que, nesse capítulo es-pecífico da obra, ele não aponta para a formação em nível superior, mas já o tinha feito no Capí-tulo XXXI da Didática Magna. Assim, citaremos os ‘problemas’ na mesma ordem, com breves comentários, quando entendermos que são rele-vantes.

1º- Ensinar desde a infância: continua-mente, carinhosamente e cuidadosamente;

2º- Aprimorar através do exemplo;

3º- Experimentação: através do exercício de práticas - Galileu já havia proposto um méto-do experimental de investigação do conhecimen-to. Portanto, a apreensão do conhecimento, no que se refere ao ensino, também necessitava de atividades práticas, inclusive no âmbito das ar-tes e dos ofícios;

4º- Através das virtudes religiosas;

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5º- Do concreto para o abstrato: elabora-ção de estratégias de pensamento;

6º- Exercitando a mente (raciocínio), a lín-gua (palavra) e a mão (ação): a) na puerícia e na adolescência, o estudo das ciências; na juventu-de, as virtudes; e na maturidade, o ensinamento aos outros; b) utilizando-se de método completo: a análise é a decomposição das partes, primeiro fundamento de todo verdadeiro conhecimento; a síntese (a recomposição das partes no seu todo) e a síncrise, a (comparação);

7º- Saber, querer e poder;

8º- Conhecer do global para o parcial: aparece a ideia, como pano de fundo, do conhe-cimento relativo, ou seja, é global, de acordo com a maturidade e, ao mesmo tempo, parcial, na medida em que a verticalidade promoverá a ampliação do mesmo gradualmente;

9º- Unir (vontade), subordinar (prudência)

e juntar (esforço): trabalhos em grupo, que ain-da hoje fazemos em sala de aula, têm origem nessa diretriz comeniana;

10º- Libertar-se dos erros: além da verten-

te religiosa, a escola e o professor determinam o que é certo e o que o aluno deve aprender. Os rudimentos de Currículo e Projeto Político-peda-gógico têm aqui suas bases estabelecidas;

11º- Solidez; 12º- Assimilação (compreensão);

13º- Fixar o conhecimento (memorizar): atualmente, muitas escolas e muitos docentes utilizam a técnica da memorização como elemen-to constitutivo e facilitador da aprendizagem;

14º- Segurança; 15º- Métodos fáceis;

16º- Relação com o conhecimento prévio do aluno: apesar de defender, em sua obra Di-dáctica Magna, que o aluno chega à escola vazio de conhecimentos, Comenius abre a possibilida-de, nesse princípio, de que é viável que ele leve

um saber para a escola, e que o ‘diálogo’ é viável como elemento gerador de conhecimento;

17º- Conteúdo cumulativo: mais uma vez,

a verticalidade e a gradação do conteúdo, em seus graus de dificuldade, estão presentes;

18º- Espontaneidade; 19º- Ludicidade: Comenius traz uma con-

tribuição para a Psicologia da Aprendizagem, quando propõe o ensino-aprendizagem, em de-terminados estágio do desenvolvimento humano, de forma lúdica;

20º- Prazerosamente (sem castigos e/ou

punições): há relativa abolição de castigos muito violentos, com espancamentos, como mandava a tradição da época. Porém, ainda os mantinha de forma mais branda, com o uso da palmató-ria, a detenção e, até mesmo, a surra, em situ-ações previstas. Comenius funda as bases dos regimentos internos e da organização didática, elemento regulatório das escolas;

21º- Clareza: o Professor deve ser, sempre,

claro na explicação, ter boa formação e ser pro-fissional;

22º- Utilizar-se de sínteses: mais uma vez,

fica determinado que a formação docente é im-portante para o cumprimento dessa diretriz;

23º- Livros didáticos analisados e avalia-

dos: aparece a intencionalidade do conteúdo a ser ensinado, quando se trata dos livros didáti-cos;

24º- Conteúdo sequenciado gradualmen-

te: diz respeito à construção das disciplinas de estudo, pois as coisas da natureza e do espírito vão sendo ensinadas e estudadas de acordo com a maturidade do educando, progressivamente, e retomando o conteúdo de forma mais profunda. Atualmente, essa estratégia está muito presente nas escolas - a chamada seriação;

25º- Gradualmente, de modo: a) Intuitivo

(sentidos, puerícia); b) Comparativo (raciocínio, juventude); c) Ideativo (juízo perfeito, adulto).

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Com base na leitura e na discussão inter-pretativa que fizemos, podemos afirmar que é possível identificar um direcionamento do pro-cesso de ensino, dirigido somente pelo professor, que decide sobre o conteúdo a ser ensinado e aprendido. Esse modelo ainda é uma prática co-tidiana para muitos docentes, em qualquer nível de ensino. Categoricamente, podemos dizer que o controle do processo de ensino-aprendizagem é do professor, de forma impositiva.

A tese da tábula rasa (o aluno não leva conhecimento para a escola) é muito presente no pensamento comeniano. Há princípios fundan-tes na implantação da gradação, da ordenação das ações didáticas, da criação das disciplinas de estudo, da ideia de grade curricular, dos pré--requisitos e da organização didática, e uma es-pécie de taxionomia do conhecimento, a partir da análise, da síntese e da síncrase (do todo para as partes).

A escola, para Comenius, passa a ser um espaço com estrutura administrativa e divisão de papéis. Os alunos são divididos por faixas etárias e em classes (espaço coletivo, sala de aula) de

aprendizagem, e o professor ‘pandidáscalo’ pre-cisa ser formado.

A visão de ensino, para Comenius, é de “adestramento e de docilidade”. Esta última com o significado de abertura e de disponibilidade do aluno para o aprendizado. Sob esse ponto de vista, a aprendizagem se dá em sala de aula e de forma individual, sem que haja o ato de co-laboração, ou seja, o significado de coletivo. Ob-servamos que Comenius influenciou vários auto-res modernos, como Piaget, Paulo Freire, Morin, entre outros, e preconizou a educação para o trabalho, quando afirma que é preciso ensinar atividades laborais e que a escola deve preparar o homem para ter uma profissão. Assim, surge o primeiro fragmento de escola profissionalizante, específica para o mundo do trabalho. Não per-cebemos nesse capítulo - a Pandidascália - qual-quer menção ao processo de avaliação.

Poderíamos, ainda, apresentar outras conclusões, identificações e interpretações. No entanto, o caráter de inacabamento de qualquer obra nos impõe a consciência e a atitude aberta para novas reflexões.

COMENIUS, J. A. Pampaedia (Educação Universal). Trad. Joaquim F. Gomes. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Instituto de Estudos Psi-cológicos e Pedagógicos, 1971.

______. Didática Magna. Trad. Joaquim Ferreira Go-mes. 3ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1957. (Ed. Original 1657).

GASPARIN, João Luís. Comenius ou da arte de ensinar tudo a todos. Campinas, SP. Papirus, 1984. (Coleção Magistério, formação e trabalho pedagógico).

DESCARTES, René. O Discurso do Método. Edição Ele-trônica, disponível em <http://www.eduardostefani.eti.br/bennett/filosofia/discurso-metodo.pdf >; consulta feita em 29.05.2006, às 10:20 horas. Trad. Enrico Cor-visieri.

GLOSSÁRIO

PAMBÍBLIA: conjunto de livrosPAMDIDASCÁLIA: culturas universaisPAMPAEDIA: educação universalPAMPÉDICO: mestre que serve aos espíritosPANDIDÁSCALO: professor universalPANGLÓTICO: traduzível em todas as línguasPANSCOLAS: escolas de formação universalPANSÓFIA: sabedoria plenaPANSÓFOS: alunos universais

REFE

RÊN

CIAS

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012108

108Ana Paula Rocha de Sales Miranda1

Patrícia Barreto Cavalcanti2

Renata Silva Azevedo Amaral3

O trabalho do serviço social na saúde

Introdução

Nos anos 1980, a política de saúde foi mar-cada pelo aumento das discussões em torno da ampliação dos direitos sociais, da redemocrati-zação e da redefinição de políticas sociais, em-bora ainda permanecesse cindida pela dicotomia

entre os serviços prestados pelo Ministério da Saúde e os oferecidos para os trabalhadores formais vinculados à Previdência Social e pro-vidos pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).

Essa dicotomia, no âmbito da política de saúde, teve início nos anos 1920, com a

Resumo

Coetaneamente, a interdisciplinaridade ganha destaque nas discussões so-bre o trabalho em saúde, como estratégia para sua reorganização, e se confronta com posturas tradicionalistas e corporativistas, que temem uma possível perda de autonomia. Por meio de pesquisa bibliográfica, buscou--se ressignificar a importância de se articularem os saberes, enfatizando o assistente social como elo entre instituição e usuário e entre as distintas políticas, como articulador entre os diferentes saberes. Ressalta-se que a ausência da interdisciplinaridade implica a reprodução da fragmentação dos saberes e de práticas reificadoras e empobrecedoras dos processos de trabalho e banalizadoras dos usuários, o que exige a ultrapassagem de limites conceituais e teórico-profissionais.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Trabalho em saúde. Assistente social.

e questão da interdisciplinaridade

1. Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Professora Adjunta I do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba – DSS/UFPB, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA. E-mail: [email protected] em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP; Professora Associada III do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba – DSS/UFPB, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA. E-mail: [email protected]. Graduanda do Curso de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba – UFPB - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA; Esta-giária de Serviço Social da Associação dos Fiscais de Renda e Agentes Fiscais do Estado da Paraíba – AFRAFEP. E-mail: [email protected].

E-mail: [email protected]

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criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), e foi intensificada nos anos 1930, com a implantação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), e as marcas foram tão profundas que, mesmo após a conquista legal do Sistema Único de Saúde (SUS), ainda se observam refle-xos dessa desarticulação de serviços. Contudo, tal segmentação remete ainda a um contexto mais amplo, pois se constitui em um traço recorrente no cenário nacional e que Santos (1979) define como “cidadania regulada”, que, resumidamente, implica uma separação entre cidadãos e não ci-dadãos pelo ingresso e pela permanência (ou sua ausência) no mercado de trabalho formal.

Buscando reformular esse paradigma de saúde, o Movimento de Reforma Sanitária, ins-taurado na década de 1970, intensificou, nos anos 1980, os debates políticos em torno da saúde e concorreu para a aprovação do SUS, no texto constitucional de 1988, ainda que, já no seu processo de estabelecimento, tenha sido descurado por forças políticas contraditórias ao seu projeto de universalização dos serviços de saúde e pelo fortalecimento do ideário neoliberal no plano econômico e social, que provocaram a criação de um paradoxo fundamental pautado no enfraquecimento dos princípios de universalida-de, equidade e integralidade pela baixa qualida-de dos serviços, falta de recursos e ampliação do subsistema privado (com o uso de recursos públicos) (POLETTO, 2007).

Como proposta para ampliar a oferta de serviços básicos de saúde, reduzir as iniquida-des em saúde e reorganizar o sistema público e as formas de acesso aos serviços, nos anos 1990, foi criada a Estratégia do Programa Saúde da Família (PSF) que, a despeito das inovações proporcionadas, não tem conseguido dirimir as lacunas de cobertura e, em algumas unidades, compromete a qualidade dos serviços, cujo au-mento da demanda não foi acompanhado em mesmo nível, qualitativa ou quantitativamente, pelo investimento nas condições da oferta (MI-RANDA, 2006; BRASIL; CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, 2002).

Nesses termos, ao se pensar na reorgani-zação da rede de serviços, atrelada à necessida-de de aumentar os leitos e os serviços públicos de saúde, preparar gestores e demais recursos humanos, criar mais estratégias de controle so-cial e aumentar o aporte de recursos financei-

ros investidos na saúde, destaca-se a questão de mudanças qualitativas que promovam integrali-dade, intersetorialidade e equidade e que, por conseguinte, rebatam, de modo decisivo, os três níveis de atenção, particularmente, sobre seus recursos humanos. Assim, o debate sobre a in-tegralidade e a intersetorialidade dos serviços tornou a questão da interdisciplinaridade uma condição para mudar os processos de trabalho em saúde e, por conseguinte, reorganizar o mo-delo de saúde tradicional - médico-hegemônico, fragmentado e voltado para a cura da doença.

Destarte, o tema da intersetorialidade ga-nha mais notoriedade pela complexidade do tra-balho coletivo e pela realidade social coetânea, perpassada pela reconfiguração do papel do Es-tado na oferta de políticas sociais cada vez mais secundarizadas em prol do mercado livre e da figura do cidadão consumidor, o que exige dos profissionais uma capacitação abrangente, com visão de totalidade, cuja dinamicidade do mun-do remete à constante reavaliação das práticas profissionais que, acredita-se, podem ser mais eficazes pela interdisciplinaridade.

Como aponta Nogueira (1998, p. 41-42), “o trabalho em equipe situa-se como uma das formas de dar maior rentabilidade às atividades humanas, superando as ações fragmentadas e buscando uma visão de globalidade, atributo dos fenômenos e fatos sociais.”

Ao intervir na perspectiva de globalidade dos sujeitos e de suas demandas, o Serviço So-cial, ainda que isoladamente, inicia esse proces-so de intercâmbio entre as esferas do conheci-mento em seu trabalho.

No caso do assistente social, como profis-sional inserido nas equipes de saúde e que fun-ciona como intermediário entre a instituição e o usuário, é preciso frisar os constantes reba-timentos da precarização dos serviços públicos de saúde sobre seu trabalho e a necessidade de articular as políticas e de reforçar a importância do trabalho multiprofissional, para que os resul-tados sejam otimizados, numa perspectiva não apenas restrita ao tratamento, mas também ao cuidado em saúde do usuário.

Ademais, é mister destacar a importância do tema, devido à proposição contida no Código de Ética do Assistente Social de 1993, que prevê o incentivo à prática interdisciplinar, consonante ao princípio fundamental do referido Código, que

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012110

versa sobre o compromisso que defende, em relação à qualidade dos serviços prestados aos usuários e à competência profissional (CRESS/SP, 2007).

2. Refletindo sobre relações interdisciplinares no trabalho em saúde

As discussões sobre a interdisciplinaridade surgiram na Europa, especialmente na França e na Itália, em meados da década de 1960, num período caracterizado pelos movimentos estu-dantis que, entre outras reivindicações, exigiam um ensino mais sintonizado com as questões de ordem social, política e econômica da época. Diante disso, a interdisciplinaridade teria sido uma resposta a essa reivindicação, na medida em que os grandes problemas da época não po-deriam ser resolvidos por uma única disciplina ou área do saber. Em outras palavras, os estu-dantes da época lutavam por uma nova universi-dade, uma nova dinâmica escolar.

Assim, a interdisciplinaridade aparece como um modo de reorganizar as disciplinas científicas e de reformular suas estruturas de ensino. Muitas vezes, pode provocar atitudes de insegurança e de recusa, já que se constitui como um desafio ao pesquisador e ao trabalhador, de modo geral. Tal desafio consiste em se evitar o esfacelamento dos saberes e conciliar os conceitos pertencentes às diversas áreas do conhecimento, a fim de promo-ver avanços como a produção de novos conheci-mentos ou novas subáreas.

O estudo sobre a interdisciplinaridade che-gou ao Brasil no final da década de 1960. Japias-su (1976) foi o autor responsável pela primeira produção significativa que desenvolveu reflexões sobre essa temática no país e sobre sua impor-tância no campo do conhecimento e do exercício profissional, ao alertar que o cientista deveria adotar uma postura interdisciplinar e crítica, que pensasse em sua produção como uma totalida-de, e não, como o fragmento de um processo unilateral.

Japiassu (1976) entende a interdisciplina-ridade como um processo que exige uma reflexão profunda e inovadora acerca do conhecimento, que não pode ser fragmentado. Para tal, sugere um avanço em relação ao ensino tradicional, com base na reflexão crítica sobre a própria estrutura do conhecimento, com o intuito de superar o iso-lamento entre as disciplinas e repensar o próprio

papel dos professores na formação dos alunos para o contexto atual em que estamos inseridos.

Para Japiassu e Marcondes (1989), a in-terdisciplinaridade visa à interação entre as dis-ciplinas, e a “[...] pesquisa interdisciplinar se faz das aproximações, das interações e dos métodos comuns às diversas especialidades” (JAPIASSU, apud PINHEIRO, s/d, p. 3). Oliveira (apud OLIVEI-RA; SOUZA, 2007) aponta a interlocução entre as várias áreas do saber como uma característica inevitável do atual mundo organizado do conhe-cimento, e a interdisciplinaridade transcende a união de forças para o alcance de um objetivo comum, porquanto proporciona o diálogo, a tro-ca de conceitos e de ideias e a criatividade.

Ressalte-se, no entanto, que a interdiscipli-naridade requer equipes de trabalho compostas por profissionais de diferentes qualificações, entre as quais haja interação e trocas, com interesses em comum, interdependência, coesão e coopera-ção, discussão e diálogo, em que há confrontos de pontos de vista, e as ideias se clarificam.

Outrossim, na visão dos autores supraci-tados, a interdisciplinaridade é concebida como cooperação entre as áreas do saber e da ação, que tanto pode ser voltada para a intervenção profissional na sociedade quanto para as ativi-dades de estudo e de pesquisa ou produção de conhecimentos (NOGUEIRA, 1998).

Segundo Vasconcelos (apud ELY, 2003), ao se discutir sobre interdisciplinaridade, é neces-sário atentar para uma série de conceitos que apresentam relações semelhantes, que variam de acordo com o grau de cooperação e de coor-denação entre as disciplinas, a saber: multidis-ciplinaridade; pluridisciplinaridade; interdiscipli-naridade e transdisciplinaridade.

Por sua vez, a interdisciplinaridade situa--se em um nível avançado de cooperação e coor-denação, de forma que todo conhecimento seja valorizado, com relações de intersubjetividade e de copropriedade, baseadas em uma atitude de diálogo. Nessa interação e articulação entre as diversas áreas do saber envolvidas, é preciso ha-ver respeito à autonomia e à criatividade ineren-tes a cada uma dessas áreas, para que não se-jam influenciadas ou excluídas desse processo.

Sobre a implementação de equipes inter-disciplinares nos espaços socioinstitucionais, Nogueira (1998, p. 47) adverte:

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[...] a abertura para o novo, para o desconheci-do, para a mudança é um dos requisitos para o sucesso do trabalho interdisciplinar, o qual supõe reconhecer o conhecimento do outros, as trocas e reflexões com inúmeros pontos de vista diferenciados, a complementaridade e a cons-trução de projetos com objetivos comuns.

No entanto, a despeito de sua importân-cia, a prática interdisciplinar não é uma tarefa fácil, tendo em vista que seu trabalho é desen-volvido por diferentes áreas de conhecimento, observando-se as limitações de cada especiali-zação. Como essa interação prevê a realização de uma troca mútua de conhecimento entre as áreas do saber, com o compartilhamento de fins comuns para a ação coletiva, é muito frequente o estabelecimento de relações conflituosas, origi-nadas de atitudes dominadoras, assumidas por determinados profissionais, que agem com au-toritarismo e comprometem a interação entre os profissionais que compõem as equipes de saúde, por inibir contribuições das demais áreas.

No caso particular da política setorial da saúde, a interdisciplinaridade entra em confron-to direto com a tradicional separação/hierarqui-zação dos saberes e exige negociação entre as diversas categorias, para que essa perspectiva possa ser inserida nos processos de trabalho.

2.1 - O Trabalho do assistente social na saúde e a perspectiva da interdisciplinaridade

Os assistentes sociais atuam diretamente com as políticas e com os serviços sociais, e seu objeto de trabalho são as expressões da questão social. Portanto, a temática da interdisciplinari-dade recai diretamente sobre seu trabalho, seja pela dificuldade de empreendê-la, seja pela inevi-tabilidade cotidiana de articular conhecimentos para o atendimento das necessidades dos usuá-rios, cujo cerne não é em apenas uma questão isolada, ou seja, ainda por ser cada vez mais in-dispensável e premente colocá-la em ação para assegurar serviços com mais qualidade, centrali-zados na figura do usuário.

No âmbito do Serviço Social, a prática in-terdisciplinar é recomendada pela Resolução Nº 218, de 06 de março de 1997, que frisa “[...] a importância da ação interdisciplinar no âmbito da saúde”, bem como pelo Código de Ética do

Assistente Social, que expõe, em seu capítulo III, Artigo 10, alínea d, a necessidade de “[...] incen-tivar, sempre que possível, a prática profissional interdisciplinar” (CRESS/SP, 2007).

Assim, a participação em equipes, de modo interdisciplinar, é apresentada como uma necessidade que precisa ser impulsionada pela atuação profissional, tendo em vista que, além de compreender o significado social e o papel do Serviço Social na sociedade atual, bem como as novas necessidades do mercado de trabalho, urge ao assistente social respaldar sua compe-tência profissional a partir de subsídios teóricos, éticos, políticos e técnicos que o auxiliem desen-volver habilidades que possibilitarão uma atua-ção crítica, criativa e comprometida.

Embora as discussões sobre intersetoria-lidade no trabalho vinculado à política setorial da saúde venham se intensificando nos dias co-etâneos, foi a partir da instituição do Sistema Único de Saúde (SUS) que sua relevância ga-nhou maior notoriedade, porque, segundo Costa (2006, p. 342),

[…] as práticas do SUS revelam a superação de um processo de trabalho vigente até os anos 70, em que os profissionais podiam atuar iso-lada e autonomamente. O modelo atual aponta para a emergência de um conjunto de práticas, dentre as quais emergem novas ocupações e atividades que são resultantes da ampliação, complexificação e redivisão dos tradicionais ofí-cios da área da saúde.

Devido à extrema desigualdade e à concen-tração de riquezas reproduzidas historicamente no Brasil, é na tensão entre as reais necessidades dos usuários e a limitação dos serviços disponi-bilizados pelo SUS que se definem os processos de trabalho na área de saúde. Nesse sentido, Sarreta (2008, p. 36) assevera a importância do Serviço Social ao apontar que

o assistente social dispõe de atribuições especí-ficas na área da saúde, o que constitui um ins-trumento importante na construção de estra-tégias para o exercício profissional e na busca de alternativas visando ao atendimento das ne-cessidades sociais apresentadas pelos usuários nos serviços de saúde.

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Pensar, hoje, em uma atuação competen-te e crítica do Serviço Social, na área de Saúde, significa estar sintonizado com o movimento dos trabalhadores; facilitar o acesso aos serviços pú-blicos, na perspectiva de garantir os direitos dos usuários; buscar a construção coletiva de espa-ços nas instituições, que favoreçam a participa-ção e o controle social; desenvolver estudos na área de Saúde e participar de projetos de Edu-cação Permanente e assessoria em serviços de saúde e contribuir para o processo de democra-tização das políticas sociais.

Nesse contexto, compete ao assistente so-cial estabelecer estratégias que tenham como objetivo reforçar ou criar experiências nos ser-viços que efetivem o direito à saúde, numa ação articulada com os demais profissionais dessa área, que compõem o SUS, tendo como diretriz o Projeto Ético-político da profissão. Ademais, o assistente social é o profissional capacitado para articular a política da saúde com as demais políticas sociais, a fim de desenvolver uma prá-tica profissional centralizada na construção do exercício da cidadania dos usuários e na garan-tia dos direitos sociais que lhes são atribuídos. Para o exercício dessa atuação, deve, entre ou-tras estratégias, democratizar as informações para facilitar o acesso dos usuários aos serviços disponibilizados, humanizar as relações sociais e defender os direitos desses sujeitos contra a normatização e a burocratização dos serviços.

Para Costa (2006, p. 341),

[...] o assistente social se insere, no interior do processo de trabalho em saúde, como agente de interação ou como um elo orgânico entre os diversos níveis do SUS e entre este e as de-mais políticas sociais setoriais, o que nos leva a concluir que o seu principal produto parece ser assegurar – pelos caminhos mais tortuo-sos – a integralidade das ações.

Dessa forma, o Serviço Social cumpre a tarefa de estabelecer o elo entre setores, profis-sionais, usuários e instituições, visto que o pro-fissional dessa área atua nos hospitais e se põe entre a instituição e a população, com o objetivo de viabilizar o acesso dos usuários aos serviços e benefícios que lhes são disponibilizados.

Observando-se as ações do assistente so-

cial, nas diversas áreas de atuação, é possível afirmar que esse profissional, “[...] mesmo reali-zando atividades partilhadas com outros profis-sionais, dispõe de ângulos particulares de obser-vação na interpretação dos mesmos processos sociais e uma competência também distinta para o encaminhamento das ações” (IAMAMOTO, apud ELY, 2003, p. 116).

No curso do trabalho interdisciplinar, tanto na área de Saúde quanto em qualquer outra, os profissionais precisam se respeitar mutuamente, com vistas a romper as barreiras existentes entre as profissões, pois, segundo Fazenda (apud LIMA; PIMENTA, s/d, p. 2), “[...] o medo de perder seu prestígio pessoal, a ética profissional e a moral impedem a montagem de uma equipe especiali-zada que parta em busca de um maior compro-metimento [...]”, junto com a equipe interdisci-plinar e com o paciente/usuário que precisam de atendimento. Essa postura autoritária e isolada, assumida por alguns profissionais, desenvolve-se por meio de uma cultura respaldada pela ideia de que o prestígio e o sucesso no atendimento do paciente/usuário são dados apenas por um tipo de categoria profissional, e não, de uma equipe interdisciplinar.

Em oposição a esse isolamento, a postu-ra interdisciplinar revela-se como uma condição para o trabalho do assistente social. Melo e Al-meida (apud SANTOS, s/d, s/p) dispõem que

[…] é necessário que o profissional envolvido em trabalhos interdisciplinares funcione como um pêndulo, que ele seja capaz de ir e vir: encon-trar no trabalho com outros agentes, elementos para a (re)discussão do seu lugar e encontrar nas discussões atualizadas pertinentes ao seu âmbito interventivo, os conteúdos possíveis de uma atuação interdisciplinar.

Em qualquer que seja a área de atuação, o Serviço Social faz um trabalho cujo objetivo é de humanizar o atendimento, viabilizar os direitos dos usuários referentes às políticas sociais e fa-zer encaminhamentos necessários aos usuários que se encontram em situação de vulnerabilida-de social. Assim, atua nas variadas expressões da questão social e concebe o usuário como ci-dadão e sujeito de direito.

Nessa perspectiva, o papel do assistente

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social, em uma equipe interdisciplinar, é sobre-maneira importante, porque, se tiver

[...] um olhar crítico, uma intencionalidade no trabalho social e sendo conhecedor de seu pa-pel, contribui para que o trabalho em uma equi-pe interdisciplinar tenha efetividade e seja de acordo com que se propõe. Pois é necessário que todos caminhem na mesma direção, com um olhar amplo da situação [...] (ROCHA; GIME-NEZ, 2009, s/p.).

Convém, todavia, enfatizar que o trabalho interdisciplinar é um processo lento, que não acontece imediatamente, e cuja complexidade provoca avanços e retrocessos diretamente rela-cionados aos profissionais que compõem a equi-pe, aos seus projetos pessoais e coletivos e às suas perspectivas de direito.

3. Considerações finais

Não se podem negar os obstáculos relati-vos à dificuldade de transformar as formas de organização e de gestão tradicionais nas institui-ções e à resistência ao trabalho multiprofissional e à interdisciplinaridade. Porém, as discussões sobre essa temática se adensam nas diversas áreas do saber, incluindo-se a saúde, devido à necessidade de responder às novas demandas oriundas dos problemas contemporâneos. Nesse sentido, a “interdisciplinaridade, como postura e como perspectiva de articulação dos conheci-mentos, é uma necessidade cada vez mais incon-testável no mundo do trabalho” (RODRIGUES, apud ELY, 2003, p. 115).

Diante disso, pode-se afirmar que a pro-posta da interdisciplinaridade é uma possibi-lidade de intercâmbio e de integração, como uma maneira de transpor fronteiras e diferen-ças existentes entre as profissões, com a fi-nalidade de alcançar uma comunicação mais efetiva e de sistematizar conhecimentos, cuja

autonomia não seria ferida como alguns re-ceiam, mas estaria assegurada pela função técnica de cada categoria, ou, como assevera Rodrigues On (1998, p. 156),

[...] como postura profissional que permite se pôr a transitar o “espaço da diferença” com sentido de busca, de desvelamento da pluralidade de ângulos que um determinado objeto investiga-da, capaz de proporcionar que uma determina-da realidade é capaz de gerar, que diferentes formas de abordar o real podem trazer.

Partindo do pressuposto de que a ativida-de profissional não se processa isoladamente, o papel mediador do Serviço Social é de funda-mental importância para a interação entre as políticas, os serviços, os usuários, a instituição e as diferentes categorias profissionais, que per-mitem uma reflexão constante para decodificar a realidade que perpassa o âmbito profissional.

Destarte, ressalta-se a necessidade do tra-balho em equipe voltado para o sujeito inserido em sua realidade e como um todo, não apenas uma parte refletida na doença tratada por um saber fragmentado.

Assim é que o Serviço Social, como uma profissão que trabalha com a interdisciplinari-dade, desde o seu processo formativo, por meio de ações socioeducativas e políticas, e devido à produção do conhecimento que gera, ao investi-gar a realidade em seus diversos campos de atu-ação, pode contribuir para que se desencadeie um processo de reflexão, no que diz respeito aos processos de trabalho em saúde, para além da questão do adoecimento físico, numa perspec-tiva de interagir com o usuário e sua família e de garantir seu acesso e seu direito. Para isso, precisa se confrontar com práticas reificadoras que ignoram a realidade, as vivências e os sabe-res desse usuário, que o transforam em um mero objeto de intervenção.

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115Patrícia Costa e Silva Cruz1

José Augusto Ribeiro da Silveira2 Cybelle Frazão Costa Braga3

Milena Dutra da Silva4

Bordas intraurbanas: uso da ocupação do solo nos espaços

periféricos do Centro principal de João Pessoa-PB

1. Introdução

A cidade de João Pessoa – PB, ao lon-go de seus 427 anos de existência, enfrentou, como de resto em outras cidades, um consi-derável deslocamento de seus espaços ditos “centrais”, sobretudo, nos últimos 30 anos. Essa dinâmica de produção de “novas cen-tralidades” e subcentros produziu, nas novas

relações centro-periferia, uma excentricida-de sem precedentes. A configuração radial, identificada na história evolutiva de João Pessoa, caracteriza-se por apresentar dife-rentes níveis de ocupação de seu território, tendo em vista a relação entre o centro prin-cipal, o núcleo inicial da cidade e suas ocu-pações periurbanas.

Ao retomarmos a história do desenvol-

Resumo

O presente trabalho analisou a dinâmica da estruturação urbana por intermédio dos processos de dispersão espacial, embasada na produção e na apropriação do espaço nas bordas do tecido intraurbano da Área Central da cidade de João Pessoa. A metodologia utilizada no desenvolvimento do trabalho baseou se em pesquisas bibliográficas e no levantamento de da-dos de uso e de ocupação do solo. Foi possível observar como os espaços limites e contíguos ao centro evoluíram e quais as principais características que os configuram.

Palavras-chave: Franja urbana. Expansão urbana. Uso e ocupação do solo.

1. Arquiteta e urbanista, LAURBE, CT, Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFPB. 2. Arquiteto e urbanista; Doutor em Desenvolvimento urbano; Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, LAURBE, CT - UFPB 3. Cybelle Frazão Costa Braga: Doutora em Engenharia Civil; Pós-doutoranda/CAPES, LAURBE, CT, Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFPB. 4. Milena Dutra da Silva: Doutora em Geografia; Pós-doutoranda/CAPES, LAURBE, CT, Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFPB.

E-mail: [email protected]

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vimento do centro urbano tradicional de João Pessoa, podemos identificar as fases de influên-cia dos seguintes períodos: a) período colonial e imperial; b) período republicano; c) período das reformas sanitaristas e do processo moder-nizador; d) período modernista e da vitalidade comercial da economia de escala; e) período contemporâneo dos mercados seletivos.

O núcleo inicial da cidade foi estabelecido em um sítio geográfico de cota mais elevada, seguindo a orientação que, no Século XVI, foi marcante no Brasil, no que se refere à localiza-ção em altura dos núcleos urbanos, fundados pelo princípio de defesa. Dessa forma, deu-se início à evolução urbana, com seu adensamento construtivo (Figura 1).

A cidade distribuía-se em duas grandes áre-as de importância: a região portuária (Cidade Bai-xa), onde se localizavam o comércio e os serviços, e a parte alta (Cidade Alta), onde estavam locados os principais edifícios públicos, administrativos e religiosos. Na faixa intermediária, entre Alta e Baixa cidades, estavam localizados os setores re-sidenciais, com a presença das classes altas.

No Século XVII, a cidade tinha um plano regular. As quadras e o traçado das ruas eram em disposição ortogonal, com adaptações ne-cessárias e decorrentes da implantação, em suas origens, da praça principal. Já no Século XVIII, embora o crescimento demográfico tenha sido lento, houve mudanças importantes nos edifícios públicos e religiosos, assim como no exterior das casas das ruas mais antigas, a maioria do tipo térreo ou sobrado, que contribuíam para embe-lezar a cidade e dar-lhe uma nova feição. Depois da expulsão holandesa, foram edificadas as se-guintes igrejas: a do Senhor do Bonfim, situada na Rua das Trincheiras, hoje Matriz de Lourdes; a de Nossa Senhora do Rosário, na Rua Direita (de-molida); a de Nossa Senhora Mãe dos Homens (demolida) e a de Nossa Senhora das Mercês (de-molida). Tais igrejas situavam-se, ainda, no nú-cleo do Século XVII e em sua expansão, em dire-

Figura 1 - Evolução urbana de João Pessoa, de 1585 a 1925. Fonte: IPHAN.

ção ao Bairro de Tambiá e à Rua das Trincheiras, constituindo indicativos da pequena expansão da cidade no período.

A estrutura acima descrita permaneceu praticamente imutável durante todo o Século XIX. Só no período republicano foi que a cida-de passou por um processo mais expressivo de transformação, quando houve grande migração de proprietários, que deixaram suas casas de campo para viver na cidade. Tal fluxo de pesso-as fez com que a cidade, gradativamente, fosse mudando seu aspecto. Assumiu uma feição mais urbana e passou por reformas embelezadoras, com o aumento do comprimento, a retificação de ruas e a construção de praças e de jardins. Quanto às vias de acesso, assumem o posto de vias principais comerciais as Ruas Maciel Pinhei-ro, Barão do Triunfo, Cardoso Vieira, entre ou-tras. A rua principal, de modo geral, é larga e calçada com grossas pedras, mas que precisa de frequentes consertos (TINEM, 2006).

As casas, em geral, são construídas no térreo, o qual, em muitas circunstâncias, serve de estabelecimento para comércio. A cidade bai-xa é composta por casinhas e edificada à borda de uma bacia ou de um lago muito vasto, onde se reúnem três rios que se encaminham para o

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mar. As margens do lago, como as de outros rios, são cobertas de vegetação ciliar nativa fechada. O surgimento das praças e dos jardins, com a demolição de edifícios, veio disponibilizar novos espaços de usufruto da população, introduzir de-finitivamente o conceito de embelezamento ur-bano e iniciar a produção de novas centralidades.

A introdução dos bondes urbanos, no co-tidiano da cidade, veio favorecer sua expansão e o surgimento de novos espaços abertos, como o “Ponto de Cem Réis”, em virtude de ser uma estação importante dos bondes. Ruas como Trin-cheiras e Tambiá são áreas preferenciais para a localização das residências da classe alta. Nesse período, a expansão em direção ao Leste foi di-ficultada pela Lagoa dos Irerês, atual Lagoa do Parque Solon de Lucena, que era considerada área insalubre, por ser ponto de convergência das águas pluviais e não receber nenhum trata-mento. Depois que foi saneada, a cidade iniciou a expansão, que chegaria até a orla marítima (MOURA FILHA, 2000).

A classe alta expandiu-se em direção ao Tambiá e ao redor da Lagoa, saneada e urbaniza-da, e constituiu um ponto focal de valor paisagís-tico notável. No início da década de 30, foi cons-truída a Avenida Presidente Epitácio Pessoa, que desempenhou um papel importante como eixo condutor do desenvolvimento da malha urbana na direção Leste, e ligou, definitivamente, a cida-de ao litoral (Tambaú). Aos poucos, residências de luxo instalaram-se na avenida e perduraram até meados da década de 60, quando o uso des-sa via começou a sofrer modificações e se trans-formou em espaço de comércio e de serviços. O desenvolvimento de bairros como Treze de Maio, Torre e Bairro dos Estados também foram obser-vados ao longo da nova avenida.

A partir da década de 70, o Bairro da Torre formou o “centro expandido” da área do centro tradicional, ao longo do eixo da Avenida Epitá-cio Pessoa. Atualmente, é o bairro urbano de maior número de atividades licenciadas, depois do Bairro do Centro. O Bairro da Torre é visto como “território de transição”, entre o “velho” e o “novo”, ou seja, entre a área central e os no-vos territórios produzidos. Esse fato influenciou sobremaneira os novos eixos em direção ao su-deste, marcados pelos corredores abertos, como os das Avenidas Dom Pedro II e Dois Fevereiro, e estimulados pela localização da Universidade

Federal da Paraíba, no Bairro do Castelo Branco. Assim, pode-se dizer que o centro se “estende” na direção leste da cidade, configurando novos eixos comerciais e de serviços. A área central é subdividida em: Núcleo Central, Perímetro de Tombamento do Centro Histórico, Área Central e Centro Expandido.

O Núcleo Central representa a gênese ur-bana e o desenvolvimento inicial da cidade. A área correspondente à Cidade Baixa, onde esta-vam situados o Porto do Capim, Alfândega, co-mércio e serviços, e a Cidade Alta, onde estavam locados os setores administrativos, públicos e religiosos, na primeira fase de desenvolvimento urbano. Hoje equivalem ao Barirro do Varadouro e a parte do Bairro do Centro.

O Perímetro de Tombamento do Centro Histórico é reconhecido pela importância de suas edificações. A área de tombamento abrange 502 edificações, a maior parte dos Bairros do Varadouro e Cidade Alta, em uma área de 370 mil m². O conjunto abrange prédios representati-vos dos vários períodos por que passou a cidade.

A área central de João Pessoa não se res-tringe ao núcleo histórico, mas o integra com todo o perímetro tombado, tanto pelo IPHAN quanto pelo IPHAEP. Essa é uma área que, ape-sar da decadência, consegue manter o vigor eco-nômico e tem o maior faturamento, por bairro, da cidade de João Pessoa. A morfologia da área central, sua permanência e localização levaram à formação de percursos rádio-concêntricos, centrífugos, em que se sobressai o percurso da Avenida Epitácio Pessoa. O desenvolvimento do percurso iniciou-se em meados do Século XIX e se originou de dois eixos de expansão, já citados - Tambiá e Lagoa do Parque Solon de Lucena - (SCOCUGLIA, 2004; TINEM, 2006).

O crescimento urbano consolidou-se atra-vés do Bairro da Torre, território projetado con-tíguo à área central da cidade, como espaço de transição entre o antigo e o novo, onde o uso do solo residencial se destacou como elemento da organização espacial urbana. Dessa maneira, de-senvolveram-se relações entre o percurso, a mor-fologia, o uso do solo e as práticas sociais, ao longo da Avenida Epitácio Pessoa, concretizando o Centro Expandido.

Assim, o presente trabalho é uma parte in-tegrante do estudo e da análise da dinâmica da estruturação urbana, por intermédio dos proces-

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sos de dispersão espacial, a partir da produção e da apropriação do espaço nas terras-limite do tecido intraurbano da cidade. Discute o espraia-mento urbano e suas implicações, no que se refe-re, especificamente, aos espaços mais avançados ligados à Área Central da cidade de João Pessoa.

2.Conceitos

Algumas conceituações são necessárias para se entender o que é abordado neste presen-te. Por isso, serão apresentados, de maneira su-cinta, os conceitos de espraiamento urbano, ou urban sprawl, de bordas urbanas e o modelo de estruturação espacial das cidades, defendido por Hoyt (1939), e utilizados na análise da expansão da cidade.

2.1. Espraiamento urbano - Urban sprawl

Segundo Ribeiro e Silveira (2009), o cresci-mento urbano avantajado é uma forma de estru-turação que evidencia a fragmentação e a mescla de territórios urbanos e territórios semirrurais na cidade. Entre as causas, estão a segregação so-cial, a especulação imobiliária e a imposição de conceitos de “qualidade de vida urbana” que se distanciam da verdade. Alinhado a isso, soma--se o uso exagerado do automóvel. A estrutura resultante são células urbanas que se agrupam em ilhas de diversos tamanhos e localizações e definem cheios e vazios. Por sua vez, o avanço contínuo da mancha urbana sobre as bordas da cidade denota que a dispersão parece não ter barreiras, sejam físicas ou sociais.

As cidades se expandem de forma anôma-la, dentro de um princípio de organização dese-quilibrado, em um processo citado e criticado por vários autores. O fenômeno recebe diversas denominações, entre elas, urban widespread, po-rém, o mais utilizado internacionalmente é ur-ban sprawl ou espraiamento urbano. Em sentido figurado, significa a cidade irradiada para todos os lados, a cidade esparramada. É o crescimen-to exagerado da cidade, a partir de eixos princi-pais de acesso e de práticas como a produção de subúrbios, condomínios horizontais fecha-dos e conjuntos habitacionais populares, locali-zados nas franjas ou bordas urbanas, distantes do centro principal e da mancha consolidada da cidade.

2.2. Bordas urbanas

Em “Bordas e espaços públicos: frontei-ras internas na cidade contemporânea”, Arroyo conceitua o termo “borda” como o extremo ou a margem de algo

confim, no qual se verifica um limite, o per-fil ou figura que fecha uma forma configurando-a e estabelece o deslinde entre essa e seu entorno adjacente, gerando um fecho perimetral. A borda define uma área fechada ou um espaço, conti-do e delimitado por elementos envolventes (AR-ROYO, 2007).

No âmbito da área de Arquitetura e Urba-nismo, o termo não se refere apenas à ideia de esmiuçar determinado campo, mas também ao estado ou à situação intermediária entre duas áreas ou regiões próximas. As bordas físicas da cidade se associam, metafórica ou literalmente, a fronteiras, margens, limites, passagens, um-brais e transições. Cada um confere matizes e qualidades ao conceito inicial de borda.

Na urbe, as bordas proporcionam uma fenomenologia perceptível na ordem física e na simbólica. Exemplificando através de Arroyo, uma via marginal não só implica o limite entre a terra firme e a passagem da água como também entre cidade e natureza. Um corredor viário pode ser um elemento de associação entre duas vizi-nhanças, enquanto uma via férrea pode demar-car bairros irreconciliáveis entre si.

As bordas, ou franjas urbanas, atualizam-se continuamente e significam deferentes estágios, espacialidades e temporalidades do desenvolvi-mento urbano. Essas mudanças e variabilidades auxiliam na definição da característica do espa-ço público da cidade contemporânea e evidencia um de seus principais problemas, que envolve a cisão, a segregação e a interrupção da cidade com um todo. Neste estudo, as franjas urbanas, material aqui descrito, são as relacionadas à área central da cidade de João Pessoa, ou seja, as faixas-limite dessa área da cidade que, em uma parte, são ligadas ao centro principal, e em outra, às áreas ainda rurais, no decorrer do de-senvolvimento histórico da cidade.

2.3 Modelo de Hoyt (1939) de estruturação es-pacial das cidades

Homer Hoyt formulou para as áreas resi-

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denciais norte-americanas, em 1939, um mo-delo geral, denominado “modelo setorial”. Os moradores de uma cidade costumam movimen-tar-se, preferencialmente, ao longo dos princi-pais eixos de transporte, que, em geral, dispõem--se radialmente por razões de desenvolvimento histórico das áreas urbanas. Assim, a população de determinado nível socioeconômico, com há-bitos semelhantes, dificilmente se desloca per-manentemente de um setor a outro da cidade diferente de sua área de interesse, confinando-se em espaço que se estende do centro à periferia ao longo de um mesmo eixo. Assim, formam-se, na cidade, setores circulares com características relativamente homogêneas, que constituem uma estrutura tentacular definida, simultaneamente, pelas direções de ocupação e pelas distâncias intraurbanas.

As indústrias localizam-se, portanto, ao longo dos principais eixos de transporte. A par-tir daí, a classe operária, de mais baixa ren-da, distribui-se na proximidade das indústrias para poder ficar perto dos locais de trabalho, por serem sensíveis aos custos do transporte. Em contrapartida, como têm acesso facilitado aos meios de transporte, as famílias que têm rendimento alto se deslocam para áreas mais distanciadas das zonas industriais. Com isso, inicia-se uma setorização que acaba por gerar uma variação no valor do solo de um setor para outro.

3. Metodologia

No que tange aos procedimentos metodo-lógicos, realizaram-se pesquisa de campo, pes-quisa documental/bibliográfica e de gabinete, pesquisa de uso e ocupação do solo, desenvol-vimento da base cartográfica digitalizada, além da utilização de modelo referência com base nos estudos de Castex e Panerai (1986) das lógicas evolutivas de um tecido urbano, nos estágios de superação de limites, crescimento (expansão ur-bana) e combinação - conflitos (físicos e sociais).

Os setores territoriais são identificados por meio da aplicação do modelo de Hoyt (1939) so-bre a cidade de João Pessoa. Esse modelo iden-tifica setores de círculo, físicos e sociais, a partir de localizações e de eixos principais de acesso da cidade. Essa linha de estudo é aplicada na pesquisa sobre uma investigação morfológica dos espaços - crescimento, traçados e parcela-mentos, conjuntos tipológicos e articulações – considerando-se a ocupação e os usos do solo.

O recorte espacial dessa análise compre-ende os bairros que compõem a franja urbana da Área Central da cidade, a saber: Centro, Varadou-ro, Roger, Tambiá, Jaguaribe e Torre (Figura 2). Foram realizadas visitas in locus, para coletar da-dos e observar as características físico-espaciais da área - os usos do solo, a configuração espa-cial, a circulação viária, os percursos de pedes-tres e os equipamentos e os mobiliários urbanos.

F igura 2 - Recorte espacial:

Centro de João Pessoa, PB,

e os bairros que compõem a

borda urbana da Área Central:

Varadouro, Roger, Tambiá, Ja-

guaribe e Torre. Fonte: PMJP.

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4. Evolução da borda urbana da área central de João Pessoa

Fi gura 3 –Planta de distribuição das edifica-

ções na cidade da Parahyba, 1889

Fig ura 4 – Planta da cidade da Parahyba em 1913

Através da análise do mapa de 1913 (Fi-gura 4), percebeu-se o desenvolvimento mais acentuado da malha em direção leste, influencia-do diretamente pela edificação do Novo Hospi-tal da Santa Casa (que hoje se situaria perto da Praça da Independência) e do estabelecimento da Usina Elétrica. Naquela época, o número de praças e de áreas verdes começou a aumentar,

com o surgimento, por exemplo, do espaço desti-nado ao Jardim Público e às Praças das Mercês, da Independência (atual Venâncio Neiva), entre outras. O número de equipamentos relaciona-dos à educação, à saúde e ao comércio também cresceu, devido a edificações como bibliotecas públicas, colégios, escolas, um novo hospital e mercados.

A evolução da borda central foi analisa-da através de mapas e plantas para os anos de 1889, 1913, 1923, 1930, 1940 até 1960, uma vez que, nessa década, houve certa cristalização na malha urbana central.

Em 1889 (Figura 3), o traçado do solo do núcleo histórico central já se encontrava conso-lidado, com um traçado mais irregular, na parte da Cidade Baixa, em detrimento da declividade

da área, e um traçado mais regular no trecho que compõe a Cidade Alta. Na época, os espaços li-vres de uso da população estavam muito relacio-nados às igrejas e se resumiam aos seus adros e pátios. Ainda existiam três praças inseridas na malha urbana: a Praça D. Pedro II, a Praça do C. Silvino da Cunha e a Praça do Coronel Luiz Igná-cio, esta última em frente ao adro do Convento Franciscano.

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Figu ra 5 - Planta da cidade da

Parahyba em 1923

Figura 6 - Planta da cidade de João Pessoa

em 1930

Em 1923 (Figura 5), o maior desenvolvi-mento da malha muda de direção para o norte, posteriormente ao Convento de São Francisco. Essa área, hoje situada em trecho do Bairro do Roger, já apresenta um traçado mais irregular, se comparado ao que foi desenvolvido concomitan-temente em outros trechos da cidade. A leste, a Lagoa já se encontra integrada à malha urbana.

O traçado apresenta-se de maneira regular, com algumas vias que convergem para a Lagoa. A Rua Walfredo Leal desmembrou-se em três estradas: a do Boi Só, a de Tambaú (onde se estabeleceu a Avenida Epitácio Pessoa) e a antiga estrada de Tambaú. Ao sul, a malha se expandiu mais ainda, quando teve início o traçado da estrada de Cruz das Armas.

Observa-se que, em 1930 (Figura 6), a cida-de se expandiu significativamente e foi ao encon-tro do mar, originando os Bairros dos Estados, Torre e Tambaú. Em relação à borda urbana cen-

tral, a Norte, pode ser observado um acréscimo, com a expansão de sua malha, aproximando-se da linha ferroviária propiciada pela abertura da Avenida Miramar.

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Já em 1940 (Figura 7), a forma de a cida-de se expandir consolidou-se ainda mais, razão por que se afastou da área no núcleo central. Ao norte da borda urbana, ficam os novos Bairros do Roger e Mandacaru, com seus traçados ainda não consolidados, mas já predominantemente ir-

regulares. Ao longo da Avenida Epitácio Pessoa, consolida-se o crescimento urbano, através do Bairro da Torre, um projeto contíguo à área cen-tral da cidade, onde o uso do solo residencial se destacou como elemento de organização espa-cial urbana.

Figura 7- Planta da cidade de João Pes-

soa, 1940

Na década de 60, as mudanças na malha da área central foram poucas. Através do mapa de 1960 (Figura 8), é possível perceber o lote-amento com traçado em malha quadricular da área que se encontrava próxima à Fazenda Boi Só e se estendeu até a altura da Avenida Epitá-cio Pessoa em direção ao norte. A morfologia da área central, sua permanência e localização levaram à formação de percursos rádio-con-cêntricos e sobressaiu-se o percurso da Aveni-da Epitácio Pessoa, cujo desenvolvimento co-

meçou em meados do Século XIX e se originou através de dois eixos de expansão: o primeiro, na direção nordeste, e o segundo, na direção leste, o que resultou na urbanização da Lagoa, nas primeiras décadas do Século XX. A Avenida Epitácio Pessoa foi a única via principal radial da cidade que se desenvolveu em linha reta e ofereceu elementos para a reconstituição da história do cotidiano e da lógica evolutiva do tecido da cidade, desde a área central até a orla marítima (Figura 9).

Os bairros que compõem a chamada Área Central da cidade de João Pessoa são Centro e Varadouro. Suas bordas englobam os Bairros de Jaguaribe, Roger, Tambiá e Torre, cujos dados de domicílio e população estão apresentados na Figura 10. Quanto ao macrozoneamento da ci-dade, estão inseridos na área de adensamento prioritário e em trecho do Bairro do Roger, em área em processo de adensamento. Encontra-se também, toda a área de estudo na Zona de Res-trições Adicionais e na Zona Especial de Preser-vação Ambiental Cultural e Histórica.

De acordo com o zoneamento da cida-de, o Bairro do Centro contempla áreas que estão nas zonas comercial e de serviços 1 e 2. O Bairro de Jaguaribe, assim como trecho do Bairro da Torre, encontra-se na zona in-dustrial 5. Os Bairros do Roger e de Tambiá encontram-se na zona residencial 2, e trechos, na zona especial de preservação 2. Além do trecho já citado, o Bairro da Torre tem áreas nas zonas comercial de bairro e residencial 2. O Bairro do Varadouro encontra-se na zona co-mercial de terminais (ZCT).

5. Análise dos bairros que compõem a borda urbana da área central de João Pessoa

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Figura 8 - Planta da cidade de João Pessoa, 1960

Figura 9 - João Pessoa: eixos radiais principais de circulação urbana e o modelo setorial urbano de Homer Hoyt (1939)

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Figura 1 0 - Domicílios e habitantes por bairro – área central de João Pessoa (Adaptado de IBGE (2000)).

Hoyt (1939) considera que as classes mais baixas tendem a habitar perto de onde trabalham para reduzir as despesas com transporte. Tal te-oria é comprovada na área estudada, visto que a área central concentra grandes oportunidades de emprego e, através de levantamentos de renda da população, foi possível comprovar que grande par-te dela vive em condições de extrema pobreza - dos 13.873 responsáveis por domicílios, nos bairros estudados, cerca de 20% tem renda de 0 - 1 salário mínimo (Tabela 1).

Quanto ao suprimento dos equipamentos públicos, constata-se que, no Bairro do Centro, existem 13 praças, um parque, nove escolas – qua-tro particulares e cinco estaduais - além de duas

creches, três hospitais particulares e um mercado público. O Bairro de Jaguaribe dispõe de quatro praças e se limita com a reserva da Mata do Bura-quinho, duas escolas, três creches, três hospitais, um mercado público, um centro administrativo, um presídio feminino e um Instituto de Ensino Federal.

No Bairro do Roger, existem uma praça, um parque, quatro hospitais, duas escolas, duas cre-ches e um presídio. O Bairro do Tambiá dispõe de cinco praças, um hospital, uma escola e uma cre-che. Já a Torre tem três praças, um hospital, cinco escolas e uma creche. O Bairro do Varadouro tem nove praças, dois hospitais, uma escola, um termi-nal rodoviário, um de integração de ônibus e um de trens urbanos.

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Tabela 1 - Rendimento mensal da pessoa responsável pelo domicílio (IBGE, 2000)

Quanto à porcentagem de domicílios abas-tecidos de água, ligados à rede de esgotos e com coleta de lixo, aproximadamente, 100% dos lotes de todos os bairros que compõem a área de es-tudo estão supridos, exceto o Roger e o Varadou-ro, cuja cobertura de esgotamento sanitário é de cerca de 50% apenas.

Em relação ao uso e à ocupação do solo (Figuras 11 e 12), o Bairro do Centro se desta-

ca por deter o maior percentual de imóveis com uso comercial entre as áreas analisadas (Figura 11 e 12). Apresenta os dois maiores percentu-ais seguintes correspondentes a domicílios e à prestação de serviços (Figura 11 e 12). Se so-mados os percentuais de comércio e prestação de serviços, nesse bairro, constata-se que é des-tinado mais da metade dos lotes estabelecidos para esses fins.

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(d) Tambiá (e) Torre (f) Varadouro

Figura 12 - Distribuição percentual de

uso e ocupação do solo da área central

de João Pessoa e sua borda intraurbana

(Bairros Jaguaribe, Roger, Tambiá, Torre

e Varadouro) (PMJP, 2010)

O Bairro do Varadouro é, entre os demais que compõem a borda urbana da área central, o que mais se assemelha ao Centro, quanto ao uso e à ocupação do solo, em termos percentuais, do qual se diferencia por apresentar um número maior de lotes destinados ao uso residencial. O Bairro Tambiá também segue os padrões percen-tuais exibidos pelo Varadouro, no entanto apre-

senta um percentual maior de uso domiciliar e de prestação de serviços e diminuição de lotes com fins comerciais.

Os Bairros de Jaguaribe, Roger e Torre são, predominantemente, de uso domiciliar. Jaguari-be e Roger se destacam, ainda, por apresentar os menores percentuais de lotes com fins de pres-tação de serviço.

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REFE

RÊN

CIAS

6. Conclusões

O presente trabalho analisou a dinâmica da estruturação urbana por intermédio dos pro-cessos de dispersão espacial embasada na pro-dução e na apropriação do espaço nas bordas do tecido intraurbano da Área Central da cidade de João Pessoa.

Através da reconstituição da evolução urba-na dessa cidade, foi possível observar que o de-senvolvimento urbano se deu, de forma geral, em orientação aos equipamentos urbanos e à conso-lidação de vias de acesso. Nesse contexto, des-tacam-se o estabelecimento de um hospital, que expandiu o centro urbano de João Pessoa a leste, em 1913; um convento, ao norte, em 1923, além da expansão ao sul; vias de acesso, que intensifi-caram a expansão urbana a leste, em 1930, e a nordeste e leste, em 1960, e o adensamento de lotes residenciais, que consolidaram a forma de expansão em 1940, sobretudo no Bairro da Torre.

A identificação do uso e da ocupação do

solo da área central da cidade e dos espaços que compõem a sua borda explicita a história evolu-tiva da expansão urbana do centro de João Pes-soa, o qual é o maior responsável pelo comércio e pela prestação de serviços, seguido por bairros que ficam ao norte da borda da área central, que dão suporte e apresentam força nesses usos. Os demais bairros que compõem a borda são predo-minantemente de uso domiciliar. Isso corrobora outros estudos que indicam que as regiões peri-féricas dos centros são destinadas a comportar as necessidades residenciais que o centro urba-no, por diversos motivos, já não comporta.

AGRADECIMENTOSAo Programa de Pós-graduação em Arqui-

tetura e Urbanismo (PPGAU) da Universidade Fe-deral da Paraíba (UFPB); ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) e à Coor-denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão de bolsa de estudo e desenvolvimento, e às entidades ceden-tes de dados pertinentes a esta pesquisa.

ARROYO, J. Bordas e espaço público. Fronteiras inter-

nas na cidade contemporânea. IN: Portal Vitruvius; Ar-

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CASTEX, J., DEPAULE, J e PANERAI, P. Formas urbanas:

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MOURA FILHA, MARIA BERTHILDE. O cenário da vida

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SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. Revitalização

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(1987-2002). João Pessoa: Editora Universitária - UFPB,

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SILVEIRA, JOSÉ AUGUSTO RIBEIRO, RIBEIRO, EDSON LEITE.

O fenômeno do sprawling urbano - O fenômeno do sprawl urbano

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TINEM, Nelci (ORG.). Fronteiras, marcos e sinais - Leituras

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- UFPB, 2006.

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128Maria do Socorro Gomes Barbosa

A Revolução das Formigas: leitura

Esse romance, para quem (eu, inclusive) ainda não é familiarizado com o estilo e com a temática a que Bernard Werber vem, atualmente, dedicando-se, causa, no início da leitura, certa estranheza, sobretudo porque a capa, ilustrada coerentemente com o título, traz o rótulo ROMAN. Assim, antecipando a narração, seria possível imaginar que esse seria um romance diferente de tudo o que já se havia lido até hoje. Também, se for contabilizado, no geral, o que já foi lido, vê-se que isso representa, apenas, uma parcela ínfima, um grãozinho de areia do universo dos romances publicados. Então, essa assertiva que fundamen-ta a causa da estranheza não leva a nada.

A internet anda espalhando, entre outros, lindos arquivos sobre animais e suas organiza-ções sociais. Já viram as imagens do que fizeram os siris para se defender de grandes aves que os perseguiam? Em certo momento da leitura, jul-gar-se-ia que o material espalhado on line tivesse

sido inspirado nos trabalhos do autor desse livro (De sua autoria há, ainda, sobre esse tema: Les fourmis, roman, 1991; Le jour des fourmis, roman,1992; Le livre secret des four mis, Enciclopédie du Savoir Relatif et Savoir Ab-solu, 1993). Se o julgamento estiver correto, os arquivos estarão, apenas, sutilmente para-lelos ao conteúdo, sem nenhuma promessa de se encontrarem. Jamais.

A revolução das formigas (Le révo-lution des fourmis) é um livro maior do que o padrão tradicional - 533 páginas. A leitura é iniciada muito antes da história a ser contada: o autor-narrador descreve com detalhes as primeiras ações físicas e mentais do possível leitor, no momento em que se prepara para ler o livro. São ações também reveladoras do processamento cognitivo em que o sentido é negociado para que o processo linguístico se instaure. Então, começa o jogo do ato de ler,

Resumo

Este trabalho é o resultado de leitura efetuada no original da última obra que integra a Trilogia das Formigas, do autor francês, Bernard Werber. Nes-se processo, seguimos pistas do próprio texto, de ordem literária e linguís-tica, que contribuíram, a nosso ver, para a tessitura de mensagens presen-tes, implícita e/ou explicitamente, em A revolução das formigas.

Palavras-chave: Formigas. Homem. Civilização. Revolução

Professora de Linguistica e de Língua Portuguesa do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPB

E-mail: [email protected]

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isto é, a busca dos elementos significativos para a possível interpretação, visto que ela evidencia um processo plural e infinito em seu caráter. Com essas explicitações sobre esse fenômeno não ficcional - o processamento cognitivo que en-volve o ser humano durante o ato de ler - o autor--narrador também fecha o ato de narrar.

E num evidente processo hierárquico, partindo do alto, como se sobrevoasse o gran-dioso universo – “ univers immense, bleu marine et glacé ...’’ (p13) - vai nos apresentando, como se fotografasse ou filmasse, em descida, regiões de miríades de galáxias multicores; foca o velho sol, em torno do qual está um planetinha morno, marmorizado de nuvens, sob as quais se veem oceanos bordados de continentes. Sobre esses continentes, cadeias de montanhas, de planícies e de florestas. Como numa cena de filme, sur-gem, no meio da floresta, Julie e o pai, espécies particularmente evoluídas, segundo o narrador. Com essa referência, o leitor é preparado para conhecer o universo das formigas, espécies para quem nós (os humanos, denominados Os Dedos) somos monstros gigantescos ou mesmo seus deuses infinitos, senhores de seus destinos.

À medida que o romance se desenvolve, mergulhamos, também, nos trabalhos anteriores do autor sobre as formigas. Há informações in-teressantes sobre essas duas espécies de vida: a humana e a das formigas. O tom científico que permeia a ficção motiva o leitor a refletir, seria-mente, sobre o conteúdo. Por exemplo: ... “la dernière frontière inconnu de l’ homme est sa propre fin.” (p.241)

Sob este viés duplo de ficção e de “ciên-cia”, há, como suporte “científico”, a Enciclopé-dia do Saber Absoluto e do Saber Relativo, do Professor Edmond Wells, personagem de ficção criada por Bernard Werber, capaz de constituir firme elemento de ligação entre diferentes sagas desse notável escritor francês, na trilogia das for-migas.

Para nós, o Professor Edmond Wells fun-ciona como um excelente ingrediente literário, no processo de fermentação intelectual de itens como física quântica, receita de cozinha, espi-ritualidade, religião, música, informática, ecolo-gia, biologia, psicologia, sociologia, sociobiolo-gia, política, matemática ( 1+1= 3), filosofia, que o leitor vai saboreando e, no final, digere tudo muito bem.

Sob o viés linguístico, a presença da in-tertextualidade evidencia-se, sobretudo, através do diálogo que A revolução das formigas man-tém com o trabalho do estudioso das formigas, o sociobiólogo Edward Osborne Wilson. Nesse as-pecto, seria um exercício interessante catalogar os possíveis diálogos suscitados no referido livro com outros.

Justificando a categoria literária expres-sa na capa, lê-se a história tumultuada da es-tudante Julie. Tumultos de ordem psicofísica e ideológica. É essa a narração sobre a qual nem o título nem a ilustração da capa oferecem pis-ta ao leitor. Julie faz parte de um grupo musical que se autodenomina As formigas, por influência do livro do Professor Edmond Wells, cuja obra - Enciclopédia do Saber Absoluto e Saber Relativo - conduzia sempre, em sua mochila, para con-sultas frequentes. Existe, ainda, a narração do intenso trabalho de um exército de formiga e de outros insetos, com objetivo bem definido por es-ses seres. Esse longo relato é sobremaneira im-portante para se compreenderem as atitudes de

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Julie e de seu grupo. Complementando o bloco narrativo, há a narração dos policiais da cidade, como elemento repressor da revolução.

Admirável livro. Lido no original (La révo-lution des fourmis), vê-se que, na tradução em língua portuguesa, a capa - elemento paratextual - recebeu um novo tratamento. Na publicação em língua francesa, ela parece ser mais sugestiva. Uma possível e breve interpretação da obra é, também, pensar que nela os elementos envolvi-dos na tessitura da narração, como um todo, são capazes de canalizar as reflexões do leitor para o próprio universo interior, em busca da auto(r)evolução. Na penúltima página (530) do final dessa trilogia, isso fica mais evidente:

C’est fini. Et poutant, ce n’est que le débout. C’est à vous maintenant de faire la révolution. Ou l’évolution. C’est à vous de vous forger une ambi-tion pour votre société et votre civilisation. C’est à vous d’ inventer, de batir, de créer afin que la socié-té ne reste pas figée et qu’elle n’ aille plus jamais en arriêre.

Completez l’Encyclopédie du Savoir Relatif et Absolu. Inventez de nouvelles entreprises, de nou-velles manières de vivre, de nouvelles méthodes d’ éducation pour que vos enfants puissent faire encore mieux que vous. Élargissez le décor de vous rêves. Tentez de fonder des sociétés utopique. Créez des oeuvres de plus en plus audacieuses. Addition-nez vos talents car 1+1=3.

Partez à la conquête de nouvelle dimensions de réflexion.Sans orgueil, sans violence, sans effets spectaculaires. Simplement, agissez.

Nous ne sommes que des hommes préhis-toriques. La grande aventure est devant nous, nom derrière. Utilisez l’ enorme banque de donnés que represente la nature qui vous environne. C’est um

cadeau. Chaque forme de vie porte en elle une le-çon. Comuniquez avec tout ce qui est vie. Mêlez les connaissances.

L’ avenir n’a appartient ni aux puissants ni aux étincelants.

L’ avenir est forcément aux inventeurs.Inventez.Chaqun d’ entre vous est une fourmi qui ap-

porte as brindille à l’ édifice. Trouvez de petits idées originales. Chaqun de vous est tout puissant et éphé-mère. Raison de plus pour s’empresser de construire.Ça sera lon, vous ne verrez jamais les fruits de votre travail mais, comme les fourmis,accomplissez votre pas. Um pas avant de mourir. Une fourmi prendra discrètement le relais et puis une autre, puis une autre, puis une autre.

La Révolution des fourmis se fait dans les têtes, pas dans la rue. Je suis mort mais vous, vous êtes vivants. Dans mille ans, je serai toujours mort, vous serez vivants. Profitez d’ être vivants pour agir.

Faites la Révolution des fourmis “

Enfim, a leitura de A revolução das formi-gas surpreende, motiva, encanta; atinge o bri-lhante ponto máximo nessa penúltima página, já referenciada: verdadeiro recado poético para o espírito, cujo efeito só se produz após a ne-gociação do sentido disseminado ao longo do romance. Esse sentido é capaz de transformar, de fato, nossa relação com as formigas e com nossos semelhantes. Por que será que é mais fá-cil direcionar o olhar, sempre, para o outro, sem que importe a espécie, do que olharmos para nós próprios?

Atender ao apelo do Professor Edmond Wells é caminhar em direção a nossa própria (r) evolução e, consequentemente, a uma nova civi-lização.

REFE

RÊN

CIAS

WERBER, Bernard. Les Révolution des fourmis, Fran-

ça: Édition Albin Michel S.A. 1996.p.13; p.241; p.530.

NOTAS:

1. Além do sucesso obtido nas livrarias, de ser aclama-

do pela imprensa francesa, Bernard Werber foi adota-

do em escolas e em universidades, citado como refe-

rência em Cursos de Ciências, sobretudo, de Biologia.

A obra foi traduzida para mais de 25 idiomas. A série, com

estilo dinâmico, curioso e consistente, conquistou prêmios

literários.

2. O Professor Edmond Wells é pura ficção. Autor já faleci-

do da Enciclopédia do Saber Absoluto e Saber Relativo, forte

ingrediente na Trilogia das Formigas, pode ser associado ao

famoso sociobiólogo e pesquisador das formigas, Edward Os-

borne Wilson.

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 131

131Paulo César Geglio

Voltaire e a razão como princípio e método historiográfico

O Iluminismo foi um movimento marcado pela supremacia da razão, ou melhor, pela afir-mação da autonomia da razão, diante dos sabe-res e da interpretação do mundo frente aos ar-gumentos oriundos da tradição, da superstição e do absolutismo monárquico. Esse movimento pretendeu retirar o homem de sua ignorância e do obscurantismo, com o auxílio da reflexão críti-ca em relação à cultura religiosa e mítica.

Os pensadores desse movimento defen-diam uma reflexão crítica como forma de auto-nomia do pensamento. Para eles, mais que in-dagar sobre o mundo, o pensamento deveria se preocupar com ele mesmo, ou seja, refletir sobre sua natureza e sua capacidade. Os filósofos es-tavam preocupados muito mais com a forma de

atuação do pensamento, que possibilitasse descobertas, do que com as criações em si. Esse novo olhar para o pensamento os con-duziu para o progresso, que não se resumia à concepção de uma simples acumulação de conhecimentos, mas a uma reflexão crítica acerca do próprio conhecimento. Como a pró-pria expressão indica, um pensamento sobre o pensamento, sobre si mesmo.

Nessa militância em busca da razão dominante, Voltaire (1694-1778) figura como um dos principais expoentes. Ele defendeu, de maneira incisiva, a crença na razão. Suas obras se revelam como canais por meio dos quais as ideias do Iluminismo eram divulga-das. Nascimento (1993) refere que Voltaire

Resumo

O texto apresenta algumas considerações sobre a perspectiva do fi-lósofo francês, Voltaire (1694-1778), a respeito de sua concepção sobre a forma de se escrever sobre a história humana. Para ele, que figura entre um dos expoentes do movimento Iluminista na França, a razão deve ser o prin-cípio norteador e o método para se relatar os acontecimentos históricos. A história, na concepção de Voltaire, deve ser escrita com base nos fatos, nos registros fidedignos e na análise racional dos relatos, e o historiador tem a função de revelar aquilo que de fato aconteceu e que contribui com a humanidade.

Palavras-chave: História humana. Reconstrução dos fatos. Filosofia da História.

Professor do Departamento de Ciências Fundamentais e Sociais do Centro de Ciências Agrárias - CCA/UFPB.

E-mail: [email protected]

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1 Jacques Benigne Bossuet (1652-1704) foi um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino. Foi designado bispo de Condom (1669), no sudoeste da França. Renunciou ao bispado e ingressou na corte, onde teve a oportunidade de aperfeiçoar seus conhecimentos e integrar-se na política. Eleito para a Academia Francesa, também foi nomeado conselheiro do rei. Em 1681, foi designado bispo de Meaux e deixou a corte. Bos-suet esteve tão integrado no absolutismo do reinado de Luís XIV que chegou ao extremo de definir como herético qualquer um que tivesse opinião própria. Temendo uma cisão dentro da igreja, entre os partidários do rei e os ultramontanistas (alusão ao fato de estar a sede da Igreja além dos Alpes), que consideravam os poderes do papa supremos e inatacáveis mesmo em solo francês, promoveu uma assembleia geral do clero francês em 1681-1682, cujo documento final redigiu e na qual ficou definido que o papa era autoridade somente em matéria religiosa.

propôs a razão como militante no combate à superstição e à ignorância, dois aspectos neces-sariamente causadores da infelicidade dos ho-mens.

Voltaire foi um escritor fervoroso. Seu tra-balho era escrever. Isso era definido por ele como uma militância que o vigorava e divertia. Entre suas produções, há aquelas voltadas para a his-tória, como O século de Luís XIV, História de Carlos II, Pedro da Rússia e Ensaio sobre os Costumes. Sua produção como historiador é definida por ele mesmo como uma “filosofia da História”, pois diz respeito a uma maneira peculiar de examinar o processo histórico e de reconstituí-lo. Esse ter-mo também pode ser entendido como um con-traponto à interpretação teológica da história.

Um dos grandes interlocutores de Voltai-re foi Bossuet1 que, no Século XVII, em sua obra Discurso sobre a História Universal, traçou a histó-ria de um mundo governado por Deus. Um enten-dimento de que o processo histórico vivido pelos homens era um plano de Deus. Voltaire contes-tou veementemente esse pensamento, pois, para ele, o historiador deve revelar os acontecimentos à luz da razão humana. Assim, o filósofo com-bateu as ideias que defendiam o poder e a inter-ferência de Deus na história universal. Em suas leituras e análises sobre os escritos bíblicos, ele desconstrói os relatos míticos, por entender que eles apresentam contradições e fatos impossí-veis de ser considerados do ponto de vista da razão, como, por exemplo, a serpente falante e o dilúvio universal.

A maneira jocosa como Voltaire realiza essa desconstrução da história mítica é eviden-ciada no Dicionário Filosófico. Com uma perspicá-cia e ironia únicas, ele tece críticas severas das quais não poupa imperadores, nobreza, filósofos e, sobretudo, os religiosos, assim como os cos-tumes, as tradições e as crenças. Um exemplo disso é este seu comentário acerca das façanhas de Abraão:

Bem difícil seria, à luz da história moderna, ter

sido Abraão pai de duas nações tão diferentes. Dizem que nasceu na Caldéia, filho de pobre oleiro que ganhava a vida fazendo pequenos ídolos de barro. É pouco verossímil que esse filho de oleiro se haja balançado a ir fundar Meca a trezentas léguas de distância, debaixo do trópico, tendo de vingar desertos intransitá-veis. Se foi um conquistador, certamente ter--se-á dirigido ao belo país da Assíria. Se, como o despintam, não passou de um pobre diabo, então não terá fundado reinos senão na própria terra (VOLTAIRE, 1764).

No item em que aborda o mito do dilúvio, ele afirma:

Ora, sendo a história do dilúvio a coisa mais miraculosa de que jamais se falou, insensa-to seria explicá-la: trata-se de mistérios que se acreditam pela fé; e a fé consiste em crer no que a razão absolutamente não crê, o que constitui, ainda, outro milagre. Assim a histó-ria do dilúvio universal é como a da torre de Babel, da burra de Balaão, da queda de Jericó ao som das trombetas, das águas transforma-das em sangue, da passagem do Mar Vermelho e de todos os prodígios que Deus se dignou fazer em favor dos eleitos de seu povo; trata--se de profundezas que o espírito humano não pode sondar (VOLTAIRE, 1764).

Em relação ao trecho citado acima, pode-mos complementar com outra afirmação do au-tor, feita no Tratado sobre a Tolerância, portanto em outro contexto, que contribui para se compre-ender o sentido que, em nosso entendimento, ele pretendeu dar àquela afirmação: “Quando os ho-mens não têm noções corretas da divindade, as idéias falsas as substituem, assim como nos tem-pos difíceis trafica-se com moeda ruim, quando não se tem a boa […]” (VOLTAIRE, 1993, p. 117)

A História, na concepção de Voltaire, deve ser escrita com base nos fatos, nos registros fi-dedignos e na análise racional dos relatos. Para

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ele, o historiador tem a função de revelar aqui-lo que de fato aconteceu e que contribui com a humanidade. Assim, ele se esforçou para excluir da história universal a ideia da intervenção divina sobre o mundo natural e humano e as anedotas que são passadas pelos historiadores antigos, que versam sobre a pequenez de atos fortuitos da vida na corte ou de nobres. Diz ele, em Novas Considerações sobre a História: “Je veux parler ici de l´histoire moderne, das laquelle on ne trouve ni poupées que embrassent lê courtisans, ni éve-ques mangés par les rats”. (VOLTAIRE, 1957, p. 46). (Eu quero falar aqui de história moderna, na qual não se encontram nem bonecas que beijam os cortesãos nem bispos comidos pelos ratos).

Essa perspectiva histórica se evidencia em alguns dos seus textos, como Observações sobre a História, que ele inicia com a seguinte frase interrogativa: “Ne cessara-t-on jamais de nous tromper sur l´avenir, le présent, et le pas-se? (VOLTAIRE, 1957, p. 41) (Jamais cessarão de nos enganar sobre o futuro, o presente e o passa-do?). Com isso, ele apresenta um questionamen-to sobre as bases do conhecimento histórico da sociedade, com o intuito de estabelecer alguns princípios a partir dos quais constitui elementos para efetivar uma crítica do gênero humano, em termos sensíveis, com a possibilidade de fazer comparações. Dessa maneira, ele também esta-belece como seu principal foco de objeção aque-les que recusam essa visão, que ele aponta como enganadores, recitadores de fábulas e multiplica-dores de erros.

Voltaire faz uma solicitação a seu leitor para que considere seus argumentos. Nesse sen-tido, ele questiona “Que gagne-t-on à nos redire que Ménès était petit-fils de Noé? Et par quel ex-cès d´injustice peut-on se moquer dês généalo-gies de Moréri, quando n em fabrique de pareil-les?” (VOLTAIRE, 1957, p. 41) (O que ganhamos ao dizer que Ménes era neto de Noé? E por qual excesso de injustiça pode-se zombar das genea-logias de Moreri quando se fabricam similares?).

Nesse primeiro movimento, sua crítica se dirige claramente à proposta cristã da narrativa histórica. Ele procura minar suas bases tanto contrapondo fatos quanto usando o bom senso e, mais que isso, propondo que o tempo é munda-no, que há progresso ou ao menos que os seres humanos precisam de “instrução” para realizar os mais variados feitos, pressupondo que tal ins-

trução tem um tempo próprio. Assim, a história é usada como arma contra o dogma.

O que importa para Voltaire, na História - isso é evidente no texto Novas considerações so-bre a História - é conhecer as ações humanas em relação ao seu contexto social, o que conduz aos conhecimentos dos costumes de um povo, suas leis, o caráter dos governantes, seus feitos so-ciais, e não, particulares ou pontuais. Portanto, o que importa não é se ele (povo) venceu uma batalha, mas com que isso contribuiu para a na-ção. Interessa saber e registrar como um país como a Alemanha deixou de ser somente flores-ta e passou a uma opulência, assim como o de-senvolvimento e o crescimento populacional da Europa. Mais do que se ater ao mero relato de um povo, o historiador deve revelar sua virtude, suas forças, suas fraquezas, sua arte, suas leis, seus tratados, suas relações comerciais, sua vida e sua evolução. A História, desse ponto de vis-ta, torna-se curiosidade para qualquer homem, desde que se tenha uma visão ampliada e crítica dos fatos. “[...] Il voudra savoir comment les arts, les manufactures se sont établis; il suivra leur passage et leur retour d´um pays dans un autre. Les changements dans les moeurs et dans les lois seront enfin son grand objet […]” (VOLTAIRE, 1756, p. 48). (Ele desejará saber como as artes e as manufaturas são estabelecidas, como se dão a passagem e o retorno delas de um país a ou-tro. As mudanças nos costumes e as leis serão, enfim, seu grande objetivo). Para isso, é preciso que ele não se atenha ao relato, mas à análise e à interpretação, que utilize a razão, e não, somen-te, a pena para falar da história.

O que Voltaire propõe é uma “filosofia da História”. Um historiador que olhe para ela como filósofo, que faça uso da razão e não somente da memória. Isso não significa que a memória não seja importante, mas seu papel é o de comple-mentar os sentidos e ser instrumentalizada pela razão. “[…] Daí sua crítica à história meramen-te compiladora, na medida em que são gêneros narrativos que se debruçam em demasia sobre detalhes ou fatos insignificantes e que sobrecar-regam a memória” (CONSOLIM, 1997, p. 37).

Ao reconstituir a história, o historiador dá uma grande contribuição às novas gerações, pois revela os erros do passado, as faltas dos go-vernantes. Essa história reconstituída auxiliará a evitar a repetição de fatos desagradáveis para a

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nação, como guerras, massacres e impiedades religiosas. Os homens que se instruem se tornam seus próprios guias e juízes, e a historiografia se constitui como um poderoso instrumento para o esclarecimento dos homens.

A história reconstituída, para Voltaire, deve ser objetivada. Não que o historiador deva tomar partido por causas ou interesse políticos parti-dários, ao contrário, deve ser imparcial. Mas sua história deve contribuir, em si mesma, para ex-tinguir perseguições, barbáries, superstições e deve servir de exemplo para o progresso civiliza-tório e próspero dos homens.

A perspectiva histórica que Voltaire propõe é a de uma interpretação sistemática da História a partir de princípios racionais que deem susten-tação e unificação aos acontecimentos, em dire-ção a um objetivo maior, que é apontar para os homens os caminhos que devem seguir em dire-ção ao progresso e à evolução civilizatória. Nesse sentido é que se caracteriza seu esforço em fazer uma “filosofia da História”, ou seja, olhar para a história com uma visão racional, pois ela é fruto de ações humanas e, portanto, é feita com base em seu substrato empírico e em seus fins. Isso significa que a História, para Voltaire, tem uma dimensão empírica que se atém à verdade dos fatos, com uma dimensão interpretativa espacial e temporal que conduz a uma síntese analítica dos acontecimentos. Para ele, isso é um novo modo de relatar a história, uma maneira que afasta os engodos e os falsos relatos. A expres-são “filosofia da história”, que se pode dizer da produção historiográfica de Voltaire, como ele próprio define, justifica-se e se caracteriza pelo método com que ele pretendeu abordar a histó-ria, o mesmo que opera a própria filosofia: de maneira abrangente, radical e relacional. Uma história universal, que analisa e aponta erros, fa-lhas e progressos exemplares para o presente e para o futuro da humanidade.

Voltaire foi um homem de pensamentos modernos, com ações que visavam ao progresso humano. Logo, sua historiografia não poderia ser uma mera contemplação do passado. Ela tinha a pretensão de ser “útil” para o avanço da socie-dade. “[…] Narrar a história de qualquer nação e de qualquer período é sempre, para Voltaire, ocasião de tomar partido frente aos interesses das nações modernas” (CONSOLIM, 1997, pp. 10-11). Por isso, sua obra historiográfica não é

de narrativas de fatos passados, mas de juízos sobre políticas de governantes, condutas morais de homens, vícios, virtudes e suas repercussões na vida da nação. Podemos, então, perceber que a razão se constituiu como a base para a histo-riografia de Voltaire.

Ele procurou mostrar, em sua historiogra-fia, as nações que, em determinadas épocas, se deram melhor no comércio, na construção, nas artes, nos costumes e que influenciaram outras e até impuseram seus hábitos ao mundo - as grandes conquistas, as expansões comerciais e os grandes tratados que realizaram. Sobre essas nações, Voltaire ressalta o período do governo de Luís XIV. Ele concebe que a História pode ser dividida em quatro grandes épocas ou, como ele se refere, quatro grandes séculos. O de Felipe, Alexandre, Aristóteles e outros; o de Lucrécio, Cícero, Tito Lívio, Virgílio, Ovídio, Vitrúvio e ou-tros; o dos Médicis (tempo da glória italiana); e o de Luís XIV. Nos dois primeiros, ele ressal-ta a superioridade em relação à existência dos homens ilustrados; o terceiro é destacado pelo renascimento – o florescimento das artes, da arquitetura; o quarto século é defendido por ele como superior a todos, pois, além de ter se bene-ficiado das produções dos anteriores, estendeu seus costumes para outras nações europeias. Segundo Voltaire, de todos os governos impor-tantes, esse foi o maior. Foi um período em que houve um grande florescimento da Filosofia e a revolução nos costumes e no pensamento de tal ordem que ultrapassou as fronteiras da França e se estendeu para quase toda a Europa. Na visão de Voltaire, a polidez e a consciência de socieda-de, presentes na Europa do seu tempo, eram um produto da corte de Luís XIV. Mas ele reconhece que todos os períodos citados tiveram algo em comum: são séculos com grandes feitos consti-tuídos pela razão.

Voltaire assevera que, antes do Século de Luís XIV, os franceses eram considerados pelos italianos como bárbaros. Realmente, ele concor-da que essa injúria era merecida para uma na-ção que negligenciava a arte, a pintura, a poesia, a Filosofia, a poesia e a escultura. Uma socie-dade que não explorava a navegação marítima, que não se importava com sua manufatura, não dominava os princípios do comercio internacio-nal. Um país cuja nobreza habitava os campos e oprimia a agricultura; uma nação que não tinha

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uma metrópole organizada. Ele recorda que, no século de Luís XIII, faltavam estradas, as cidades não tinham segurança, o Estado estava falido, e a nação não tinha crédito com outros países. Uma condição deplorável, financeiramente, que havia começado no governo da família de Carlos Magno.

Voltaire também considera que falar dos grandes feitos, das glórias e das revelações de talentos implica falar também dos crimes e mal--feitos de seus governantes, bem como da omis-são dos povos e dos abusos do clero. Portanto, ao falar de um determinado período ou nação o historiador não pode se furtar a criticar ou de-fender certas ações ou políticas governamentais, bem como os costumes, para que isso sirva de orientação para outras nações em direção ao seu progresso. Se o historiador apresenta os fa-tos sem criticá-los, ele poderá contribuir para a propagação de valores e costumes contrários a um povo, para um progresso e para uma ordem civilizatórias.

A produção historiográfica de Voltaire visa-va, sobretudo, contribuir para o estabelecimento de uma ordem moral entre os homens, para a afirmação do bem público e para expor à críti-ca os vícios e as injustiças cometidos por outras gerações. Ao mesmo tempo, ressalta Consolim (1997, p. 23), ele “[…] perdoa as falhas do cará-ter do soberano quando suas ações são virtuosas do ponto de vista do bem público”. Justamente porque, para ele, importa menos falar de coisas pessoais de um rei, e mais, de suas ações para o povo e para a nação em geral. Essa perspecti-va reforça sua concepção racional em analisar a

história, uma vez que o importante é perceber os exemplos de progresso e de bem comuns.

O grande esforço de Voltaire, em sua obra historiográfica, é o de lançar luzes no renasci-mento e no progresso do espírito humano, fazer da razão humana um instrumento com o qual o espírito possa se libertar dos preconceitos, da ilusão e do misticismo e edificar-se como guia da vida do homem social. Essa perspectiva é cla-ra, no início da obra Novas Considerações sobre a História: “Peut-être arrivera-t-il bientôt dans la manière d´écrire l´histoire ce qui est arrivé dans la physique. Lês nouvelles découvertes ont fait proscrire lês anciens systèmes […]” (VOLTAIRE, 1957, p. 46). (Pode ser que logo aconteça a ma-neira de escrever a história, o que aconteceu na física. As novas descobertas fizeram prescrever os antigos sistemas).

Em Voltaire, a História é entendida como uma iluminação, como o esclarecimento que o homem realiza de si, da descoberta da razão como norteadora de suas ações. Uma concepção da razão que nos remete à expressão que Kant (1724-1804) utilizaria mais tarde para designar o comando da razão nas ações humanas: o Au-fklärung, que se revela como um processo no qual as pessoas se libertam, por vontade própria, de uma situação de menoridade. Kant faz uso do termo menoridade para se referir à própria op-ção que as pessoas fazem por aderir ao pensa-mento alheio para se guiar no domínio da razão. Dessa maneira, o esclarecimento (Aufklärung) é apresentado como uma substancial mudança na relação que se pode estabelecer entre a vontade, o pensamento alheio e a razão.

REFE

RÊN

CIAS

CONSOLIM, Márcia Cristina. Razão e História em

Voltaire. Dissertação de Mestrado. São Paulo: USP,

1997.

NASCIMENTO, Maria das Graças S. do. Voltaire, a

razão militante. São Paulo: Moderna, 1993. Coleção

Logos.

VOLTAIRE, François Marie Arouet. Dicionário Filosó-

fico. Edição Ridendo Castigat Mores, 1764. Versão

para e Book, e BooksBrasil.com (fonte digital).

______. Remarques Sur L´Histoire. In: Ouvres Historiques.

NRF Gallimard, 1957.

______. Nouvelles considérations sur L´Histoire. In: Ouvres

Historiques. NRF Gallimard, 1957.

______. Les Siècle de Louis XIV. In: Ouvres Historiques. NRF

Gallimard, 1957.

______. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Martins Fon-

tes, 1993. Capitulo XX.

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Esse texto é resultado da conferência de abertura da V Mostra do Departamento de Educação Física da UEPB, em 30 de novembro de 2011 na cidade de Campina Grande.

136Ricardo de F. Lucena

Cidade, esporte e lazer: desafios locais para o desenvolvimento regional

Inicio este texto com essa citação do Omegna, que trata das nossas cidades coloniais, que marcam o perfil e a intenção criadora dos co-lonizadores vindos de uma cultura europeia que floresce em clima urbano.

Mesmo que muito dependentes da vida ru-

ral e conscientemente edificadas perto das aldeias indígenas para facilitar o comércio, nossas cidades, como tantas outras, também foram fator de “atração” – pela segurança, pelo trabalho diverso etc. A divisão do traba-lho, com a diversificação de funções e mais

Resumo

O presente texto trata de relações entre esporte e lazer com a cidade. Cidade como espaço privilegiado de vida que, ao longo do Século XX, tor-nou-se o local de presença do homem e da realização de ações que marcam um processo de inter-relação crescente. Considerando que as práticas de esporte e de lazer são uma forma de presença no mundo, pensamos que a elaboração de uma política nessa área, nas nossas cidades, é necessária, ao considerar os espaços físicos da cidade, a forma de vida nesses espaços urbanos e a maneira como os homens se comportam.

Palavras-chave: Esporte. Lazer. Cidade. Espaço urbano.

Professor Doutor pelo CMEFENE. Departamento de Fundamentação da Educação do Centro de Educação da UFPBDFE/CE/UFPB.

Toda a civilização viria da cidade. Os homens que representam a nova cultura e vão triunfar sobre os aborígenes, são a expressão do poder, do domínio, do prestígio. Viver na cidade é usufruir uma categoria que não podem gozar os que só podem residir nas aldeias ou os

desclassificados que devem ficar nas abas, ou nas bandas do além. (Nelson OMEGNA; A cidade colonial, p. 20)

E-mail: [email protected]

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interdependência, com base nas dessemelhan-ças, era, apesar de tudo, o princípio dessas cida-des, que buscava aproximar para ocupar o vasto território em conquista. Contudo, elas não são mais as grandes cidades do Século XX. Nelas, os problemas são outros, a função é outra. A cidade tornou-se autossuficiente, diversa e dividida em sua enormidade. Até as cidades médias, entre nós, estão mais voltadas para dentro de si pró-prias, em suas vidas de shoppings centers e con-domínios fechados, do que para o contato com as “aldeias” do seu entorno.

É dessa cidade que falamos, como lugar e como objeto. Ou seja, é nela que vivemos e sobre ela que aqui queremos tratar. Diversa e individua-lizada, larga e segmentada, a cidade que nós her-damos e/ou edificamos chega ao Século XXI jun-tando individualismo e velocidade e distanciando oportunidades de vinculação. Como nos diz R. Se-nett, em Carne e pedra (1997), corpos individuais que transitam pela cidade tornam-se gradualmente desligados dos lugares em que se movem e das pes-soas com que convivem nesse espaço, desvalorizan-do-os através da locomoção e perdendo a noção de destino compartilhado (p. 264).

Mas, será tão absoluto assim o nosso de-senraizamento? Será que não nos demos oportu-nidade de novos sentidos na vida urbana? Ou por outra, não será possível enxergar caminhos de re-agrupamento? A nosso ver, ainda aí, uma invenção social do Século XIX permite enxergar algumas possibilidades. Falo do esporte moderno e, ao de-fini-lo, vou querer entender os caminhos possíveis de compartilhamento que ele nos oferece.

A ideia é de pensar o esporte a partir do ambiente que lhe serviu – e serve – de habitat des-de que se convencionou denominá-lo de esporte moderno. Falo da cidade como local de encontros e de diferenças, que proporcionou e proporciona, mais do que nunca, num mundo globalizado, o surgimento de ‘manias’que são experimentadas nas inter-relações humanas que têm espaço de motivação no ambiente urbano. Pensar a cidade é pensar o local onde a cultura europeia – da qual somos herdeiros – funciona. Toda cidade neces-sita do diálogo porque o que a organiza, o que a conduz, o que a salva é o encontro. Um encontro, como refere J. Hillman, não é somente um encontro público, é encontrar-se em público; pessoas se en-contrando. (Cidade e alma. 1993 p. 41)

Diversidade e interdependência são ele-

mentos que vemos cada vez mais presentes nas cidades diversas e multiculturais de hoje. As ci-dades consolidaram seu poderio econômico e cultural dominante e, hoje, já abrigam a maior parte da população do planeta. Se, há 50 anos, duas em cada três pessoas viviam no campo, hoje há mais gente nas cidades que no campo. Ou seja, vivemos um século urbano, com todos os problemas e belezas que isso pode significar.

Por tudo isso, vivemos num ambiente onde a presença do outro é sentida e, até certo ponto, necessária. Viver na cidade é viver a ideia do con-fronto e do conforto. Sendo valências abertas, é na cidade que os indivíduos vivem a possibilida-de de experimentar o novo. Assim, como o espor-te é uma invenção social cujo lócus é na cidade, podemos perguntar: O que significam o envolvi-mento e a participação nas ações esportivas?

O esporte é um dos poucos canais possíveis que a nossa sociedade construiu de expressão de formas de sentimentos que, em outros tempos, eram manifestadas por ações com um gradiente de violência bastante elevado. Entender esse pa-pel é um desafio que ainda temos muito que per-correr, afinal, como nos fala James Hillman, ao tratar do esporte, não há nada que pertença mais à vida da cidade, pois que a cidade é o lugar do espe-táculo, do desfile e do cortejo, a mostra da imagina-ção na sua complexidade mais rica. (HILLMAN. Op. Cit. 1993, p. 74). O autor acrescenta que tudo aquilo que promove aglomerações, multidões e a dissolução temporária da individualidade fomenta a vida da cidade (p. 75) Ora, se assim o é, tudo do que o esporte precisa é de aglomeração e multi-dão. Por isso, ele se cria e vive nas entranhas da cidade e, mesmo que se realize no campo ou em mar aberto, são os códigos da vida urbana que ele leva em suas batalhas.

A partir daqui, é preciso observar que falo não apenas do lugar do esportista como sendo unicamente aquele atleta, amador ou profissio-nal, que busca resultados, mas também dos ex-pectadores que constroem o sentido do esporte e só o são porque participam da vida esportiva e, consequentemente, da vida da cidade. Alguns estudos nos mostram que os reais torcedores de eventos esportivos – ciclismo, futebol, beisebol, tê-nis, boliche, o que for – também são esportistas. A pessoa ativa é também a pessoas que assiste; a pes-soa inativa não joga nem assiste (HILLMAN, P. 74). Convém frisar que estou falando do esporte no

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sentido lato, e não, apenas, no sentido restrito, de prática de profissionais. Falo do esporte que ocupa lugar no campo do lazer de muitas pes-soas. O esporte que está no clube, mas também está na escola, na rua, no parque etc.

Aqui vale fazer uma observação sobre as aulas de Educação Física e seus professores que, muitas vezes, desconsideram esse fato. O torce-dor é também – em certo sentido – um esportis-ta porque promove, com sua participação, a vida na cidade. Então, por que, nas aulas da disciplina Educação Física, não discutimos o papel da ob-servação do esporte como participação criteriosa e crítica de um esporte ou de muitos esportes? Não estou advogando aqui a passividade como um elemento das aulas dessa disciplina, mas fa-lando da capacidade de observação do movimen-to, das regras utilizadas, das táticas etc., como uma maneira de participarmos mais efetivamente do esporte, na formação de esportistas criterio-sos, e não, sermos meros consumidores de even-tos esportivos ou de materiais esportivos.

Mas, pensar o esporte em sua relação com a cidade nos coloca o desafio de fazê-lo também a partir de políticas propostas para a sua execu-ção e oportunidades de participação. Pensar, por exemplo, que, para o Ministério do Esporte, “o papel ocupado pelo esporte e pelo lazer no mun-do contemporâneo não pode ser outro senão o de emancipação e desenvolvimento humano”. Ora, se emancipar é “eximir-se da tutela ou tornar-se independente, libertar-se”, como nos ensinam os dicionários, onde aparecem as ações governamen-tais mais efetivas nessa área e com que propósi-to? E como e onde elas promovem o “libertar-se”?

Sem querer traçar grandes análises sobre a política de esporte e lazer e querendo pensar um pouco sobre os grandes eventos como parte dessa política, vale ressaltar que o governo es-timou gastar para a edição do PAN, no Rio de Janeiro, cerca de 700 milhões de reais na pre-paração dos jogos, e o custo final ficou cerca de quatro vezes mais do que o previsto inicial-mente. Considerando que o evento foi bancado, quase que exclusivamente, pelo poder público, vale refletir sobre esta fala do Sr. Carlos Osório, presidente do CO-Rio, quando, em um momento do processo, apresenta-nos esta pérola:

A verba de patrocínio vai surgindo aos poucos. Não podemos contar com elas porque não sabemos o

valor total que conseguiremos. Assim, trabalha-remos com os recursos dos entes públicos, que serão ressarcidos mais para a frente, quando os recursos privados estiverem em nossas mãos. (sic) (consulta feita no site www.citadini.com.br em 03/07/11)

Parece que esse filme está se repetindo agora, nas preparações para a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas. Não sou contra a re-alização dos chamados mega eventos esportivos – eles fazem seu papel cartático necessário às sociedades hodiernas - mas creio que devemos estar atentos aos olhos gordos de empresários e de lobistas de empresas nacionais e multina-cionais que adoram se banquetear com verbas públicas. Qual o valor que foi devolvido ao erário público depois do PAN?

A Copa do Mundo de Futebol e as Olimpí-adas, os esportes de rendimento de uma manei-ra geral, só serão fatores de desenvolvimento e de emancipação quando, a meu ver, efetivarem--se em associação com várias outras ações que enfatizem aspectos educacionais, culturais etc. Recursos públicos como fonte quase exclusiva de financiamento de eventos desse porte, certa-mente, descobrem projetos, muitas vezes, mais urgentes para a população, como moradia e transporte, e deixam de lado também o esporte relacionado ao lazer e ao prazer da população. Por quê? O lençol é curto!

Para evitar grandes lamentações, é impor-tante fazermos referência a alguns aspectos mais particulares ou “domésticos” para entendermos o processo de “emancipação” que a política de governo deveria efetivar. Primeiramente, gos-taria de falar de uma experiência da cidade de João Pessoa que julgo muito rica, embora pouco tenha sido feito a partir da intenção que venho aqui colocar. Falo do projeto das praças nos bair-ros de João Pessoa. Durante muitas décadas, a cidade olhou para as praças com desdém e até com raiva. Lembro-me de que, quando eu ainda era menino, um de seus prefeitos vendeu locais projetados para praças simplesmente porque víamos esse espaço como vazio, sem utilidade. Para muitos, uma praça era o lugar de alguns bancos e um pouco de luz, para os aposentados sentarem e conversar ou para onde os mendigos recorriam à noite. Mas o que quero dizer é que o projeto das praças, em João Pessoa, abriu um

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espaço para a população participar da vida do bairro. Observe-se que a maior parte do espaço da praça está ocupado por equipamentos espor-tivos ou que remetem a atividade física. É pista de caminhada e corrida, pista de skate, quadra de areia etc.. Muitos vão à praça para serem vis-tos. Vão para correr, jogar e viver a vida da cida-de. Acho que, embora o poder público não tenha pensado na relação com o esporte ao construir as praças, é nessa atividade que a maioria da po-pulação se faz presente. As praças reformadas e ampliadas tornaram-se um ponto de encontro e de prática de atividade física de um contingente populacional que antes empregava esse tempo, provavelmente, em espaços privados (acade-mias, clubes etc.) ou no interior da própria casa.

Por outro lado, em junho de 2011, o go-vernador Ricardo Coutinho sancionou a lei de in-centivo ao esporte que tem como objetivo “com-plementar os recursos financeiros destinados ao custeio e investimentos da Secretaria de Estado de Esportes e Lazer (SEJEL) e recuperar e man-ter os equipamentos esportivos em condições ideais de funcionamento.” Esses são os objeti-vos da Lei que cria o Fundo de Apoio ao Esporte e Lazer do Estado da Paraíba, sancionada pelo governador Ricardo Coutinho, em solenidade no Palácio da Redenção.

Em tese, a lei tem uma função social rele-vante, já que o investimento no esporte carece cada vez de mais recursos, mas está sempre as-sociado a uma aplicação relativa ao esporte de rendimento. A mesma matéria trata da relação da política de esporte voltada para a Copa do Mundo de futebol. Continua o texto: “Na soleni-dade, Ricardo Coutinho também apresentou o potencial da cidade de João Pessoa como can-didata a sub-sede da Copa do Mundo de 2014” (Portal do Governo. 12 de julho de 2011). Cabe perguntar onde, como e quanto desse recurso capitado pela lei será aplicado em projetos que fujam da lógica do esporte de rendimento.

Outro elemento poucas vezes associado a uma política de esporte, em cidades como João Pessoa ou Campina Grande, são os clubes de futebol. Todos nós sabemos da importância do futebol na formação social do Brasil. Embora não tenha sido criado por nós, esse esporte é uma das melhores formas de caracterizar o brasileiro, visto que seu valor sociocultural, político e eco-nômico, para o Brasil e para os brasileiros, é in-

contestável. Mas, em João Pessoa, por exemplo, os clubes de futebol recebem recursos públicos, mas não dão o retorno esperado. Numa reunião, em 2011, com a nova diretoria do Botafogo e o Prefeito Luciano Agra, tratou-se do “novo convê-nio entre a PMJP e o Botafogo” e ficou acertado que não aconteceria mais por meio de uma As-sociação e que o contrato seria feito diretamente entre a Prefeitura e o Botafogo (Site do Botafogo em 26/11/2011). No meu entender, os clubes de futebol têm por obrigação ser parceiros em ações sociais que tenham por centralidade os es-portes, particularmente, o futebol. Afinal, se re-cebem verbas e ainda são dispensados de pagar impostos, os clubes deveriam ter como projeto a abertura de espaços para a prática de esportes de forma ampla. Uma política de esportes em municípios como João Pessoa deveria levar em consideração questões dessa natureza.

Projetos de esportes e de lazer que veem na escola apenas mais um espaço de descoberta de valores esportivos e não primam pela eman-cipação e pelo desenvolvimento humano. O Pro-grama Segundo Tempo, por exemplo, afora toda a necessidade de acompanhamento dos procedi-mentos legais que vimos ser propostos, nesses últimos tempos, sempre teve verbas considerá-veis com o objetivo de descobrir valores espor-tivos. Quando se coloca a escola como “seleiro de valores esportivos”, de antemão, já se trai um dos princípios básicos da educação, que é o respeito às diferenças. A seleção no esporte é o avesso da participação. O que se deve buscar no âmbito da escola, em primeiro, segundo, terceiro ou em qualquer lugar, é a participação. Se espor-tista é aquele que joga, mas também aquele que “entende do jogo”, só no espaço da diversidade é possível se construir o diálogo necessário para uma compreensão do esporte que vá alem da simples repetição. Nesse sentido, qualquer polí-tica de esportes deve também se interessar por uma ação pedagógica do esporte.

Pelo exposto, o maior desafio, nessa área, é de sairmos do campo semântico e adentrarmos o espaço de uma reflexão que considere esse as-pecto, não como um mero passatempo ou como um espaço restrito aos iniciados, mas como um direito, porque uma invenção social sem pai nem patrão, como um espaço de vivências emocio-nais e de grupo, só promove identidade numa relação de igualdade, válida para todos os valo-

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res das variáveis envolvidas. Esses elementos, de que tanto carecemos na sociedade brasileira e, particularmente, na Paraíba, são participação, oportunidade e espaço para decisão.

Uma política de esportes valorativa tem que considerar a participação, e não, apenas, a seleção. Segundo dados do Sindicato dos Pro-fessores do Estado de Sergipe, um aluno custa para o Estado de Sergipe R$173,00 por mês, en-quanto que um preso, mais de R$1.500,00. No Jornal da Paraíba de 20 de novembro de 2011, a coluna de Cláudio Humberto falava da constru-ção dos estádios para a Copa do Mundo e dizia

o seguinte: Os estádios construídos ou reformados com dinheiro público, para a Copa de 2014, são os mais caros, considerando-se o custo por cadeira. Segundo ele, no estádio de Manaus, cada cadeira custará R$12.000,00; no do Corinthians Paulis-ta, quase todo financiado por dinheiro público, o custo da cadeira sobe para R$13.800,00. Diante disso, e para concluir, cabe perguntar: Que políti-ca de esportes e de lazer estamos privilegiando? Onde e como o poder público estadual e o mu-nicipal estão investindo os parcos recursos des-tinados ao esporte e ao lazer nas nossas cidades e no nosso estado?

REFE

RÊN

CIAS

SENNETT, R. Carne e pedra. RJ: Record; 1997.

OMEGNA, N. A cidade colonial. Brasília: EBRASA,

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 141

141Sandra Alves da Silva Santiago

Formação e atuação de tradutores/intérpretes de língua

de sinais: algumas considerações para a prática no ensino superior

Introdução

Do ponto de vista teórico, parece resolvido o debate sobre o direito de todos à educação. Documentos internacionais, como a Declaração de Salamanca (1994) e a Carta de Guatemala (1999), por exemplo, referendam tal premissa. Nesses instrumentos, o direito à educação é sal-vaguardado, independentemente das condições

e das necessidades dos sujeitos. Portanto, va-riáveis como etnia, classe, sexo, religião, defi-ciências ou diferenças não devem limitar esse direito.

Ainda seguindo o exemplo dos movi-mentos internacionais, no Brasil, os disposi-tivos legais – Constituição Federal (1988) e LDB 9.394 (1996) - também apontam para a mesma direção. Além disso, pesquisadores

Resumo

É consenso que os alunos surdos enfrentam muitos obstáculos, mas seu principal entrave é o uso de uma língua diferente: a língua de sinais. Nesse contexto, emerge o papel do intérprete/tradutor de língua de sinais, como um dos principais agentes na superação dos limites impostos pela hegemo-nia ouvintista e pela acessibilidade de que a pessoa surda necessita para construir conhecimentos na instituição escolar. Diante disso, a pesquisa traçou um perfil dos intérpretes que atuam no nível superior da UFPB. Para isso, identificou sua titulação, proficiência e experiência e analisou a corre-lação com a área de atuação como elemento importante para um trabalho de qualidade.

Palavras-chave: Intérprete/tradutor. Formação. Ensino Superior.

Professora Doutora Adjunta do Departamento de Habilitações Pedagógicas/CE/UFPB.

E-mail: [email protected]

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012142

da área há muito defendem a legitimidade desse direito e reivindicam mudanças que garantam o pleno atendimento de todos os alunos nas ins-tituições escolares (SKLIAR, 1997; GOLDFELD, 2002; TESSARO, 2005).

Embora estejam resolvidos os impasses te-óricos, do ponto de vista prático, a inclusão edu-cacional tem muitos desafios. A década de 90 e, mais especificamente, os primeiros anos do novo milênio demonstraram a efervescência de pesquisas voltadas para a questão da inclusão educacional de grupos historicamente excluídos, e os resultados revelam, no caso brasileiro, o quanto tem sido desafiador esse processo, so-bretudo para pessoas surdas, especificamente no ensino superior.

Mais recentemente, Leis como a N.º 10.098, de 2000, que defende as principais ações relativas à acessibilidade; a Portaria 3.284, de 2003, que regulamenta a acessibilidade à Edu-cação Superior, ou a Lei 10.436, de 2002, que reconhece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como um meio legal para o surdo se comunicar e se expressar, reafirmam a intenção política de garantir a inclusão educacional e social de sur-dos\as. Mas, infelizmente, parece não ser ainda suficiente para garantir a inclusão (In: SANTIA-GO, 2011). Por essa razão, é urgente que todas as instâncias educacionais mobilizem esforços nessa direção, estimulando a criação de projetos na área e garantindo, no caso dos surdos, uma formação continuada dos intérpretes/tradutores de libras, já que não existe uma correlação entre a formação e a atuação profissional desses indi-víduos.

É consenso que os alunos surdos, como os demais grupos marcados por diferenças, enfren-tam muitos obstáculos durante seu processo de escolarização. No entanto, a situação do surdo se agrava porque essas dificuldades têm sua ori-gem em questões de ordem linguística, ou seja, as limitações impostas a ele não atingem ape-nas o plano arquitetônico ou metodológico, mas também o cultural, o relacional, o comunicativo e o identitário. Nesse contexto, a formação do intérprete/tradutor assume papel fundamental e não pode ser negligenciada, sobretudo no ensino superior.

Apoiados em Skliar (1997:149), ressalta-mos que o “completo acesso à informação cur-ricular e cultural”, no caso dos surdos, só se re-

aliza se garantirmos que os intérpretes tenham condições conceituais para traduzir e interpretar os conhecimentos veiculados no ensino supe-rior. Essa condição é dada quando existe corre-lação entre a formação acadêmica do tradutor/intérprete e sua área de atuação. No entanto, na prática, não temos essa condição garantida em todos os casos, com destaque para a escassez de profissionais intérpretes para atuarem nas ciências exatas. Nesses casos, defendemos que, mesmo tendo que admitir a atuação profissional de intérpretes/tradutores das ciências humanas nas disciplinas e nos cursos de outras áreas, a formação continuada desses indivíduos deve ser garantida pela instituição, a fim de que não se prejudique os/as alunos/as surdos/as.

Assim, é certo que os obstáculos que al-guns estudantes surdos vêm enfrentando no ensino superior não dizem respeito unicamen-te às suas diferenças e necessidades, mas às condições estruturais que lhes oferecidas para garantir a acessibilidade. Assim, destacamos a formação continuada do intérprete/tradutor de libras como merecedora de ações efetivas para garantir qualidade e acessibilidade e que, em-bora seja esse o profissional responsável, em última instância, pelo acesso ao conhecimento, se sua formação não lhe permite executar sua função com competência, ele pode inviabilizar a inclusão do surdo.

Método

Este estudo é parte do projeto de pesqui-sa que desenvolvemos na instituição desde o in-gresso da primeira estudante surda em 2010.2, por isso se configura apenas como um recorte de dois projetos já desenvolvidos com os estudantes surdos e que se intitulam, respectivamente, como “Saberes necessários para a inclusão de surdos/as no ensino superior” e “Mediação pedagógica para alunos surdos no ensino superior”. Portan-to, a fim de traçar um perfil dos intérpretes que atuam no nível superior da Universidade Federal da Paraíba (UFBB), identificando titulação, profi-ciência, experiência, área de atuação e qualidade da atividade, optou-se por realizar uma pesquisa explicativa, de campo e qualitativa.

De modo geral, a pesquisa se configura como explicativa porque, segundo Gonsalves (2003), o objetivo da pesquisa é de identificar

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 143

a correlação de fatores na realização de deter-minado fenômeno, ou seja, a formação dos in-térpretes/tradutores e sua atuação profissional, buscando a relação entre tais elementos e a qualidade da atividade desenvolvida. Não foi fei-ta pesquisa direta com os intérpretes. Os dados foram coletados por meio dos formulários preen-chidos no processo seletivo para ingresso na ins-tituição e acrescidos de elementos apresentados na entrevista. Com os estudantes surdos, os da-dos foram coletados dos relatórios apresentados pelos estudantes surdos e pelos apoiadores, no “Projeto de Mediação Pedagógica”, e por entre-vista semiestruturada concedida ao projeto “Sa-beres necessários para a inclusão de surdos/as no ensino superior”.

Ainda do ponto de vista da natureza dos dados, segundo Richardson (2009), esta é uma pesquisa qualitativa, pois faz uma análise da qualidade, através da inferência das informações extraídas durante a coleta de dados extraídos dos formulários preenchidos pelos dois intérpre-tes de libras que atuam no CCEN e dos relató-rios produzidos pelos 12 apoiadores que atuam no CE e no CCEN. Também foram selecionados como sujeitos da pesquisa três estudantes sur-dos, respectivamente, uma aluna do Curso de Pedagogia do Centro de Educação e duas estu-dantes do Centro de Ciências Exatas e da Natu-reza – uma do Curso de Ciências da Computação e um aluno do Curso de Física.

Os dados coletados foram analisados com base nas seguintes categorias: titulação, profici-ência, experiência, correlação com sua área de atuação e qualidade da atividade desenvolvida.

Resultados e discussão

A UFPB foi criada em meados dos anos 70 e nunca havia contado com a presença de estu-dante surdo em seus diferentes cursos. A partir de 2010 foi que iniciou o processo inclusivo de surdos na instituição, que foram identificados desde o Processo Seletivo Seriado (PSS) ou do Processo Seletivo de Transferência Voluntária (PSTV) e acompanhados durante e após aprova-ção. Tal fato, por si só, já é bastante explicativo da inexistência formal de uma política inclusiva e de acessibilidade para surdos, bem como dos conflitos enfrentados hoje para que se garantam os direitos dessas pessoas. Ressalta-se, ainda,

que as ações que se desenvolvem na atualidade, na UFPB, não nasceram de uma política inclusi-va pré-definida e estruturada, elas emergem das reivindicações dos respectivos estudantes e de grupos comprometidos com a questão, por isso se configuram mais em ações isoladas e desarti-culadas do que numa política inclusiva.

Cabe destacar que a principal ação desen-volvida com os surdos, na UFPB, na perspectiva acessibilidade, é o projeto de “Mediação pedagó-gica para alunos surdos no ensino superior”, no qual existem, pelo menos, dois agentes direta-mente responsáveis pela acessibilidade, ambos com atividades ligadas à interpretação/tradução da libras. Para os efeitos deste estudo, chama-remos de agente 1 o apoiador, e de agente 2, o intérprete. Analisaremos a formação e a atuação de ambos para tecer considerações acerca do bi-nômio formação/atuação do intérprete/tradutor de libras, pois eles realizam essa atividade ainda que em perspectivas diferenciadas.

O agente 1 (APOIADOR) desempenha as funções de mediar as relações entre o professor e o aluno, gravar e transcrever as aulas e tradu-zir/interpretar informações essenciais durante as aulas e fora delas, para garantir acessibilida-de aos surdos. O agente 2 (INTÉRPRETE) tem a função específica de traduzir/interpretar os con-teúdos veiculados em sala, durante as aulas das diferentes disciplinas do curso em que o aluno está matriculado.

São 12 apoiadores – cinco que atuam no Curso de Pedagogia, aqui identificados como apoiador A; cinco, no Curso de Ciências da Com-putação, chamados de apoiador B1 e B2; e dois, no Curso de Física, identificados como apoiador C. Quanto aos intérpretes de libras, são dois, que atuam, especificamente, no Curso de Física. A fim de que possamos discutir melhor a presença do intérprete/tradutor, apresentamos o quadro seguinte, com as categorias observadas durante a coleta de dados, a respeito dos quais tecere-mos algumas considerações. (Veja Quadro 01 na página 142)

A análise do quadro foi apoiada nas infor-mações contidas nos relatórios apresentados pe-los estudantes surdos e pelos apoiadores, acres-cidas de dados da entrevista. A fim de vislumbrar os resultados apresentados pelos estudantes surdos, quanto ao desempenho dos agentes 1 e 2, apresentamos o quadro seguinte (quadro 2).

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012144

TIPO DE ATUAÇÃO DOS INTÉRPRETES

ÁREA DE TITULAÇÃO

APOIADOR A 05 Humanas Regular RegularAPOIADOR B1 02 Humanas Regular RegularAPOIADOR B2 05 Exatas Fraca FracaAPOIADOR C 02 Exatas Fraca FracaINTÉRPRETE 02 Humanas Boa Boa

Quadro 1: CORRELAÇÃO ENTRE A FORMAÇÃO E A ATUAÇÃO DO INTÉRPRETE DE LIBRAS

Fonte: Produzido pela autora a partir de pesquisa direta

Fonte: Produzido pela autora a partir de pesquisa direta

Quadro 2 – AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DOS INTÉRPRETES DE ACORDO COM O ESTUDANTE SURDO

AGENTES AVALIAÇÃO DO DESEMPENHOApoiador A MUITO BOMApoiador B1 REGULARApoiador B2 e C MUITO BOMIntérprete BOM

Da análise dos dois quadros, chegamos aos seguintes resultados:

- Os apoiadores do tipo A têm nível regu-lar de proficiência e experiência em libras e uma correlação adequada entre a área de formação e a atuação. Esses apoiadores, de acordo com a estudante atendida, realizam um trabalho muito bom e promovem a acessibilidade.

- Os apoiadores do tipo B1 têm formação diferente da área de atuação e proficiência e ex-periência regulares. De acordo com informações da estudante surda do Curso de Ciências da Computação, apresentam desempenho regular e não garantem acessibilidade plena da aluna em relação às atividades e aos conteúdos do curso.

- Os apoiadores B2 e C têm formação equi-valente com a área de atuação, mas proficiência e experiência em libras fracas. Ainda segundo a mesma aluna, apresentam desempenho muito bom em relação às ações inclusivas.

- A formação dos intérpretes de libras não é

correlata com a área de atuação, mas a proficiência e a experiência em libras são consideradas boas. De acordo com o aluno assistido, apresentam desem-penho bom no que diz respeito à inclusão.

Tais considerações apontam para o fato de que a formação é um elemento decisivo na quali-dade da atuação do tradutor/intérprete de libras no ensino superior, haja vista que, mesmo em detrimento do conhecimento de libras, os profis-sionais que atuam nas suas áreas de formação se destacam bem mais na avaliação dos alunos do que os que atuam em áreas diferentes. Da mesma forma, o fato de a proficiência em libras ser boa não tem sido suficiente para melhorar a qualidade do desempenho do intérprete/tradu-tor, quando ele atua numa área distinta da sua formação. Diante disso, fica claro que as institui-ções precisam se preocupar com a formação dos intérpretes/tradutores de libras, a fim de que não se comprometa o desenvolvimento acadêmi-co dos estudantes surdos no ensino superior.

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 145

REFE

RÊN

CIAS

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Paulo: Plexus, 2002.

GONSALVES, E. P. Conversas sobre iniciação a pesqui-

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SANTIAGO, Sandra A. S. A história da exclusão das

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012146

146Sueli Meira Liebig

As Vinhas da Ira e a ira das vítimas:entre o destino manifesto eo manifesto dos miseráveis

O romance realista As vinhas da ira (The gr-qpes of wrath) (1939), do norte-americano John Steinbeck, centra-se na experiência da deplorá-vel situação de miséria a que chegaram os agri-cultores de Oklahoma, nos Estados Unidos, em decorrência da “Grande Depressão” 1. O sistema capitalista da época, apesar das vãs tentativas de reforma, era eminentemente norteado pelo

corporativismo e, portanto instável, imprevi-sível e alheio às necessidades humanas. Ho-ward Zinn (1995, p.378) observa que havia milhões de toneladas de comida, mas não era lucrativo transportá-la, vendê-la. Os de-pósitos estavam repletos de roupas, mas as pessoas não podiam comprá-las; havia mui-tas casas, mas elas estavam vazias porque as

Resumo

Este estudo pretende demonstrar como As Vinhas da Ira, romance re-alista de John Steinbeck, tornou-se um lócus de confrontação entre a cons-ciência anticapitalista americana dos anos 1930 e a tradição racista da supremacia branca estadunidense, notadamente entre o destino manifesto e a flagrante espoliação do agricultor vítima da seca. Com base em estudos feitos por Gérard Lebrun (1984), Howard Zinn (1995), Michael Denning (1996) e Charles Cunningham (2002) e nas noções de exílio, errância, ca-pitalismo e essencialismo racial, observa-se que a intervenção política da obra gravita, antiteticamente, entre o revide à diferença de classes e à táci-ta aquiescência à supremacia racial dos brancos.

Palavras-chave: Capitalismo. Essencialismo racial. Destino manifesto.

Professora Doutora Aposentada do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas/CCHLA/UFPB. Professora do PPGLI/UEPB.

1. Também chamada às vezes de “Crise de 1929”, a “Grande depressão americana” originou-se da queda da bolsa de Nova Iorque, em que a alta especulação entrou em colapso e derrubou também a economia dos Estados Unidos como um todo (cf. ZINN: 1995, p. 377). A crise persistiu, ao longo da década de 1930, e só terminou com a Segunda Guerra Mundial. Esse é considerado o pior e o mais longo período de recessão econômica do Século XX. Causou altas taxas de desemprego, quedas drásticas do produto interno bruto de diversos países, bem como quedas drásticas na produção industrial, nos preços de ações e em, praticamente, todo medidor de atividade econômica, em diversos países no mundo.

E-mail: [email protected]

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012 147

pessoas não podiam pagar aluguel, haviam sido despejadas e passaram a viver em barracos, em “Hoovervilles”2, que se formavam com uma rapi-dez meteórica.

A situação agravara-se sobremaneira no campo, onde a população sofria as agruras de uma tempestade de areia, que resultou numa seca sem precedentes, e foi obrigada a migrar para as zonas urbanas, onde se acotovelavam milhares de famílias em busca de sustento, e a garantia de um parco salário era disputada aos tapas entre a população urbana e os egressos das plantações.

Assim, o modelo coercitivo remetia à ine-gável fronteira entre os detentores e os excluídos. Essa fronteira, segundo Gérard Lebrun (1984), é indissociável da relação assimétrica de poder. Essa seria (ou, pelo menos, deveria ser), prima

facie, a pedra angular do engajamento político de Steinbeck, não fosse pelo evidente foco racista do autor na vitimização dos brancos, como se fossem o único grupo étnico a migrar para a o interior da Califórnia em busca de trabalho.

Ratificando a crença no “destino manifes-to”, o romance raramente menciona a presença dos retirantes mexicanos e filipinos que, como os okies 3, vagavam pelos campos e pelas planta-ções em busca de trabalho. Ao invés disso, a obra mitologiza os anglo-saxões como a quintessência dos pioneiros americanos, como se apenas eles merecessem um tratamento digno (CUNNIN-GHAM, 2002) – uma convenção ideológica que desemboca na crença da implícita supremacia ariana defendida pelo agrarismo jeffersoniano.

Na verdade, As vinhas da ira, como um ro-mance de cunho ideológico, tornou-se um lócus

2. “Durante a Grande depressão, favelas cresceram nos arredores das cidades americanas. Povoadas por aqueles que perderam seus empregos e foram despejados, essas “Hoovervilles” se tornaram um símbolo indelével do sofrimento humano causado pela Depressão. Essas favelas receberam seu nome em zombaria ao presidente dos primeiros quatro anos da Depressão, Herbert Hoover (1929-1933). Ele gostava de dizer aos americanos que “a prosperidade está logo na esquina,” embora não oferecesse absolutamente nenhuma assistência aos desempregados e sem-teto” (cf. Tom Eley, 2009). Disponível em http://www.wsws.org/pt/2009/apr2009/ptho-a03.shtm3. Okie é um termo que denota o residente ou nativo de Oklahoma. É derivado do nome do estado, semelhante a texano ou tex, para alguém do Texas, arkie ou arkansawyer, para um nativo do Arkansas. Devido às circunstâncias que envolviam a depressão econômica e suas consequências, o termo era visto, na época, como pejorativo.

Cena do filme “As Vinhas da Ira”(1940): retirantes da família Joad em migração para a Califórnia, única saída para os agricultores vítimas da seca em Oklahoma.Fonte: http://www.uem.br/cinuem/index.php?option=com_content&ta

sk=view&id=221&Itemid=1

Tempestade de areia em OklahomaFonte: http://www.meiapalavra.com.br/showthread.php/20027-As-

Vinhas-da-Ira-(John-Steinbeck)

Figura 01 Figura 02

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C O N C E I T O S Nº 17 Dezembro de 2012148

de resistência entre a consciência anticapitalista dos anos 30 e a tradição racial dos estados Uni-dos. Nosso foco crítico é de que coabitam a obra, sem aparentes justificativas, dois pontos de vista essencialmente conflitantes – o da preocupação com o bem-estar comum, portanto um valor uni-versal, e a defesa de uma suposta supremacia racial branca, um valor restrito à ideologia me-galômana dos americanos.

A respeito dessa espécie de “ideologia es-quiva” existente na mecânica do entretexto, Edu-ardo Portela esclarece o seguinte:

É no interior do entre-texto, e confundindo-se com ele, que vamos surpreender o tenso mo-vimento totalizador da ideologia. Pensar os mecanismos de apreensão ideológica do fenô-meno literário significa pensar o fazer poético em toda a sua movimentada trama constitutiva e verbal. É no interior da circularidade que se deve alojar a reflexão basicamente hermenêuti-ca, sendo impossível pensar a obra sem pensar o pensar da obra. (PORTELA, 1981, p. 117 [gri-fo do autor]). Assim, o fazer da crítica consiste em dei-

xar aparecer a ideologia vigente na literariedade do texto (o entretexto) como estrutura de sentido

Crianças americanas num campo de trabalho: fome e desesperançaFonte: http://www.cntm.org.br/videoplayer.asp?id_CON=1867

Figura 03

que instaura a fenomenalidade de um mundo. Nesse sentido, o objetivo da crítica é de tentar resgatar a verdade ao abrir a compreensão da ideologia e restaurar sua essencialidade.

Partindo desse princípio, notamos que a xenofobia veiculada subliminarmente no entre-texto de Steinbeck é escamoteada pelo crucial momento econômico pelo qual passavam os Es-tados Unidos na época da recepção da obra, em 1939, o que fez com que a crítica concentrasse toda a atenção em fatores essenciais à viabili-dade social do país, como justiça e liberdade, que se constituíam na ordem do dia. Graham Jr.; Ottis (1976, p. 435) observam que as mes-mas questões que suscitaram estudos sobre a situação dos grupos sociais formados por colo-nos, trabalhadores agrícolas itinerantes, índios, negros e até mesmo trabalhadores brancos não qualificados do setor industrial foram abordadas também pela ficção literária. Trata-se de uma farta produção composta por obras de menos va-lor literário, mas que são a prova da consciência de classe no pensamento americano.

A composição dos imigrantes mudava atra-vés dos anos, mas os grupos envolvidos tinham algo em comum: eram uma minoria dos Estados Unidos desprovida de cidadania - ou, pelo me-nos, de uma cidadania adequada. Como “intru-sos”, eles eram presa fácil da exploração. Antes da Guerra Civil, os nativos americanos formavam o primeiro grupo a dominar a força de trabalho rural, porque a escravidão negra defendida por alguns plantadores não era politicamente aceita na Califórnia. Aos nativos americanos, seguiram os imigrantes chineses, que foram seguidos pe-los japoneses.

Por volta de 1920, mexicanos e chicanos4 formavam a maioria, com uma significativa mi-noria de Filipinos. Os plantadores, ansiosos por obter lucros, decidiram descontar a diferença nos trabalhadores, que responderam com uma “militância feroz” (DANIEL,1988, p.68).

Embora as condições de trabalho dos agri-cultores, na Califórnia, tivessem mudado pouco ou quase nada, durante os seus sessenta ou se-tenta anos de existência anteriores à década de 30, as autoridades e a mídia custaram a registrá--la. Mas, quando os nativos brancos de Oklahoma se envolveram na questão, a história tornou-se

4. Mexicanos de origem norte-americana

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conhecida nacionalmente. Quando os brancos se sujeitaram àquelas condições fascistas, a his-tória tornou-se algo mais do que uma simples “disputa por trabalho”, devido ao envolvimento de míticos fazendeiros e de mitos agrários sobre a supremacia branca americana. Se a quintes-sência dos americanos podia ser tratada tão mal quanto os mexicanos e os filipinos, a superiori-dade do branco anglo-saxão - muro ideológico do capitalismo americano – estaria ameaçada. As piores dilapidações dos agronegócios california-nos tinham, até então, sido obliteradas ou san-cionadas em nome da superioridade dos brancos que, efetivamente, culpavam os não caucasianos pela sua própria opressão. Os okies destacavam a contradição ideológica entre os direitos inalie-náveis dos americanos brancos à liberdade e à prosperidade e os direitos dos plantadores de explorar quem bem eles quisessem. Assim, a mi-tologia dos okies passou a ser o palco onde essa batalha se desenrolou.

Essas situações apresentadas, eivadas da flagrante eugenia de Steinbeck, fazem parte da própria natureza do comprometimento literário com a ideologia. Quer como totalização da cul-tura de uma época, quer como conscientização das lutas políticas de uma classe, a literatura encontra-se comprometida com a questão ideo-

Crianças americanas num campo de trabalho: fome e desesperançaFonte: http://www.cntm.org.br/videoplayer.asp?id_CON=1867

Figura 04

lógica. Todas as manifestações culturais do mun-do contemporâneo, incluída aí a própria religião, envolveram-se no desafio político lançado pelo Marxismo. Uns tomam partido abertamente, como Vladmir Mayakowski, Bertold Brecht, Emi-le Zola e o próprio John Steinbeck, mas outros não. Contudo, até os que pensaram que não se envolveram indiretamente o fizeram, pois não to-mar partido acaba se configurando, nos dias atu-ais, como “uma maneira tácita de tomar partido contra” (LYRA, 1992, p.151). Essa poderia ser uma provável explicação para responder à princi-pal questão levantada neste trabalho: o paradoxo entre a universalidade do engajamento político e o recrudescimento mesquinho do preconceito. Teria a questão da opressão do homem do cam-po ressurgido na obra de Steinbeck acrescida de outro “valor” (a eugenia), tão em pauta nos anos 30? Seria essa outra modalidade de presença da ideologia do autor?

Observamos que, apesar de o capítulo 19 do romance fazer menção aos imigrantes não bran-cos, eles aparecem como meros figurantes, ou apenas uma presença, e não, como personagens:

Now farming became industry, and the owners followed Rome, although they did not know it. They imported slaves, although they did not call them slaves: Chinese, Japanese, Mexicans, Fili-pinos. They live on rice and beans, the business men said. They don’t need much. They wouldn’t know what to do with good wages. Why, look how they live. Why, look what they eat. And if they get funny-deport them.5 (STEINBECK, 2002, P.157)

A análise de Steinbeck ataca a lógica e a consciência da propriedade privada em si mes-ma – incluindo uma descrição de como ela pre-judica a psique dos capitalistas. Essa crítica co-meça no capítulo 5, que ilustra a troca de farpas entre o patrão e um arrendatário que está sendo despejado. O lavrador quer revidar, “disparar” a sua ira contra alguém, mas o representante da companhia argumenta que ele não está sen-do escorraçado por uma “pessoa”, e sim, pelo “monstro”, que emerge anônimo como o próprio

5. Agora, a agricultura virou indústria, e os proprietários imitam Roma, mesmo sem saber: Eles importam escravos, embora não os chamem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem à base de arroz e feijão, puro comércio, os homens diziam. Não precisam de muito. Não saberiam o que fazer com bons salários. Para que? Veja como eles vivem, como eles comem... E se acaso se meterem a engraçadinhos, deportem-nos.

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capitalismo. O patrão é uma companhia em dí-vida com os bancos, que são controlados pelos grandes bancos e pelas companhias do Oeste. E as grandes companhias são desumanas. O sis-tema não pode ser humano porque as suas ope-rações são intrinsecamente monstruosas, mas o sistema, como um todo, pode ser mudado por-que é social: “ They breathe profits; they eat the interest on money. If they don’t get it, they die”. (STEINBECK: 2002, p.26). 6

Outro aspecto da crítica do autor ao capi-talismo é a documentação dos horrores que re-sultam da força do acúmulo de capital, incluin-do o crescente empobrecimento de milhões de pessoas e o obsceno desperdício de recursos. O romance, frequentemente, aponta a simultanei-dade entre o excesso e a escassez, como ilustra esta observação: “The fields are fruitful and star-ving men moved along the roads. The granaries were full and the poor grew up rachitic, and the pustules of pellagra swelled on their sides.” 7

Mais adiante, no capítulo 25, a narrativa apresenta essa justaposição entre o excesso e a falta de uma maneira mais tocante. Ela denuncia a atrocidade cometida contra os retirantes quan-do diz que, enquanto as crianças iam crescendo mal nutridas, frutos não colhidos apodreciam porque as companhias haviam resolvido que o baixo preço do produto in natura não compensava a despesa da colheita. Steinbeck lamenta a triste ironia de que, enquanto a tecnologia havia pro-porcionado a extraordinária produção de alimen-tos, o capitalismo levava as pessoas a morrerem de fome. O absurdo dessa contradição é destaca-do pelo comovente tom da narrativa:

There is a crime here that goes beyond denun-ciation. There is a sorrow here that weeping cannot symbolize. There is a failure here that topples all our success. The fertile earth, the straight tree rows, the sturdy trucks, and the ripe fruit. And children dying of pellagra must die because a profit cannot be taken from an orange. And coroners must fill in the certificates -- died of malnutrition -- because the food must rot, must be forced to rot (STEINBECK, 2002, pp. 348-9)8.

Além de ser um apelo ao senso de justiça e de solidariedade do leitor, a invocação também é um convite ao interesse comum. O romance não apenas descreve o “monstro” chamado ca-pitalismo como causador da superexploração, do êxodo e da violência contra os despossuídos, mas também comenta a alienação experimen-tada pela classe média e pelos “grandes plan-tadores”. O monstro que castiga a família Joad simultaneamente aliena os mais prósperos do sentido da sua própria humanidade e da conexão profunda e até spiritual com outras pessoas. Isso fica evidente na narrativa pela oposição entre o sentimento de solidariedade que os Joad come-çam a descobrir e a alienação dos mais abasta-dos e daqueles que traem a própria classe. Ve-jamos o exemplo seguinte: “Could ya give me a lift, mister?” The driver looked quickly back at the

6. “Eles respiram lucro; eles comem as especulações monetárias. Se não tiverem isto, morrem. Além do mais, o monstro tem que crescer para continuar vivo; o monstro tem que lucrar o tempo todo... Quando o monstro para de crescer, ele morre. Ele não pode ficar sempre do mesmo tamanho” (STEINBECK, 2002, p.26). 7. Os campos cheios de árvores carregadas de frutas e homens famélicos arrastando-se pelas estradas; os celeiros repletos, e os pobres crescendo raquíticos; as pústulas de pelagra marcando seus flancos.8. “Há um crime aqui que vai além da denúncia. Há aqui uma tristeza que nem o choro pode traduzir. Há uma falha aqui que supera todo o nosso sucesso. A terra fértil, as fileiras de árvores eretas, os troncos robustos e as frutas maduras. E as crianças morrendo de pelagra porque não se pode obter lucro de uma laranja. E os legistas devem preencher os certificados de óbito - morto por desnutrição – porque a comida deve apodrecer, deve ser forçada a apodrecer” (STEINBECK, 2002, pp. 348-9).

Figura 05

Campo de assentamento: destaque para as crianças brancas malnutridas. Cena do filme ”As Vinhas da Ira” (1940), de John Ford. Fonte: http://oficinadahistoriad.blogspot.com.br/2009/11/grande-depressao.html

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restaurant for a second. “Didn’t you see the No Riders sticker on the win’shield?” “Sure - I seen it. But sometimes a guy’ll be a good guy even if some rich bastard makes him carry a sticker.” (STEINBECK, 2002, p.6) 9

Embora sejam momentos breves, cenas como essas se repetem ao longo da narrativa. Os que têm pouco repartem com os que têm menos ainda. Os Joadslevam Casy para a Califórnia; re-partem os magros recursos com os Wilsons na estrada; Ma tenta alimentar as crianças famintas nos campos de refugiados; e os motoristas de caminhão recompensam com uma gorjeta a gar-çonete que cobra menos que o valor do pão que vende aos imigrantes. O efeito cumulativo dessas histórias é de criar um senso comum “normativo e convidativo”, como afirma Cunningham (2002). O leitor é encorajado a ser um “bom rapaz”, não apenas porque seja embaraçoso não o ser, mas porque existe uma recompensa compartilhada. O senso comum mostra-se preferível às alternati-vas da alienação e do individualismo.

O capítulo 17 descreve a democrática união que se vê, todas as noites, nos campos de imigrantes. A narrativa mostra que há ape-nas duas punições para as violações das regras da comunidade: “a quick and murderous fight or ostracism; and ostracism was the worst” (uma luta fatal ou o ostracismo. E o ostracismo é a pior) (STEINBECK, 2002, p. 189). Quando al-guns agitadores, sob as ordens da “Associação dos Fazendeiros”, são mandados ao acampa-mento federal, certa noite, para provocar um motim durante uma dança, os imigrantes ficam chocados ao descobrir que aqueles homens são seus conterrâneos de Oklahoma. Huston, o líder da comissão de segurança do acampamento, censura: “You’re our own folks... You belong with us” (Vocês são nossos conterrâneos… vocês per-tencem a nós (Ibid., p.238). E arremata: “Don’t knife your own folks... Don’t tear all that down. Jes’ think about it. You’re jes’ harmin’ yourself” (Não apunhalem os seus próprios companhei-ros... Não estraguem tudo. Apenas pensem no assunto. Vocês estão prejudicando a si mesmos) (Ibid., p.239). Os homens não foram feridos, mas foram banidos do acampamento e desapa-receram na escuridão (Ibid., p.239).

9. “Pode me dar uma carona, moço?” O motorista olhou rapidamente para trás, em direção ao restaurante por um segundo.” Não viu o adesivo proibido carona no para brisas?” Claro, eu vi. Mas, algumas vezes, um cara pode ser um bom rapaz mesmo quando um bastardo rico o faz carregar um adesivo”.

Façamos aqui uma pausa para analisar a questão da imigração como consequência da história natural, na concepção de alguns críticos. Denning (1996) chega mesmo a afirmar que o romance está repleto de determinismo biológi-co, que ele associa com a supremacia branca anglo-saxônica. Na verdade, a narrativa faz uma comparação entre a marcha dos okies para o oes-te e o comportamento das formigas e de uma tartaruga. Além do mais, a iminente revolução estaria ligada à evolução: os proprietários e os seus simpatizantes da classe média estariam re-sistindo ao curso natural da história. Entretanto, deveríamos distinguir esse uso das metáforas da eugenia e do darwinismo social. O romance não estabelece que a hierarquia social seja natural ou que a hierarquia atual seja substituída por uma nova, baseada na Biologia. Os plantadores não seriam biologicamente inferiores aos imigran-tes; eles estariam enganados. O seu problema é de conhecimento, não de Biologia. De fato, Ma e os outros membros da família não podem e não esperam pela história. Eles entendem que a ultrapassada ideia do individualismo radical de-veria passar como as condições que o ensejaram haviam passado. Naturalmente, a noção de indi-vidualismo dos retirantes de Oklahoma e a dos proprietários eram diferentes. Como detalha o romance, a suposta independência dos senhores de terras dependia da cooperação com os vizi-nhos, de uma igualdade relativa e da confiança na família como unidade de sobrevivência (JO-NES, 1992). A mais importante articulação a esse respeito é feita por Tom, algumas páginas antes, quando ele estabelece a ligação entre o trabalho organizado, o Socialismo e o conceito de espí-rito coletivo, enquanto, implicitamente, conde-na o individualismo: “Wherever they’s a fight so hungry people can eat, I’ll be there” (Onde quer que exista uma luta para que os famintos pos-sam comer, eu estarei lá.) (STEINBECK, 2002, p. 305). A sociedade mais justa imaginada por Tom tem os traços do ideal do pequeno proprietário, mas sua universalização não mais necessitaria de uma mudança revolucionária da estrutura so-cial. Então, o seu plano imediato é de “fazer o que Casy fez”: organizar os trabalhadores (Ibid.,

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p. 306). Somente quando Ma lhe pergunta o que aconteceria se ele fosse morto, ele lhe dá a res-posta mais espiritual: “I’ll be there” (Eu estarei lá). Tom está começando a adquirir uma consci-ência mais revolucionária.

A penúltima cena do romance revela-se um apelo à solidariedade dentro da história e ao leitor. O bebê de Rosa de Saron nasce mor-to, e “tio John” tem a incumbência de enterrá--lo. Ele decide que o féretro será a mensagem dos imigrantes aos habitantes da cidade. Coloca o corpo numa caixa de maçãs - dois símbolos re-sultantes da Califórnia agrária: sofrimento e fru-tas – e, gentilmente, empurra-a para a corrente, fazendo-a flutuar na enchente rumo à cidade. O corpo dirá ao povo da cidade uma história que eles ignoram: “Go down and tell ‘em. Go down in the street an’ rot an’ tell ‘em that way… May-be they’ll know then” (Vá lá e diga a eles. Desça pelas ruas e apodreça e diga-lhes como…Esse é o meio de você falar. Talvez eles então saibam) (Ibid., p. 308). Simultaneamente, a narrativa diz ao leitor uma história que ele ignora: a de que o desperdício das frutas é inseparável do desperdí-cio dos seres humanos.

Considerações finais

Enquanto Cunningham (2002) faz uma leitura do romance como crítica radical ao ca-pitalismo e um apelo à solidariedade socialista, alguns contra-argumentos são levantados nessa interpretação, como ficou claro até aqui. O ponto de vista de Denning (1996) é de que o romance é pautado no essencialismo racial. De um lado, o argumento é irrefutável: Grapes mentiona os trabalhadores não brancos apenas en passant e reconta a história do êxodo rural apenas do pon-to de vista dos okies, rasurando a memória dos estrangeiros. A crítica anticapitalista existe, as-sim, lado a lado com esse apagamento – uma contradição que permanece irresoluta. Podería-mos dizer que o romance, por outro lado, im-plicitamente, complica um simples nacionalismo racial. Além do mais, mostra que o fato de os Okies se gabarem da sua herança racial anglo--saxônica não lhes servira para nada: eles só pre-valeceriam através da ação coletiva. Sem contar que a ação coletiva envolve escolha consciente e planejamento e não acontece apenas porque os lavradores de Oklahoma são brancos. Todos

os personagens são brancos, mas nem todos al-cançam essa consciência, e não sabemos o que acontece a eles. A trama termina com os Joad-sem situação precária, não com o clima triun-fal do pioneirismo anglo-saxônico, como afirma Charles Cunningham (2002).

A raça branca nada significa para os gran-des trustes, para a polícia ou para os vigilantes que os agridem e matam. Essa ironia é evidente a partir do primeiro instante em que eles che-gam à Califórnia, quando são empurrados por policiais que não têm o mínimo respeito pela sua brancura. Tom e a mãe ficam chocados com o tratamento: “We ain’t use’ ta gettin’ shoved aroun’ by no cops” (Não estamos acostumados a ser empurrados pela polícia) (STINBECK, 2002, p. 200). É quase impossível imaginar um negro, um mexicano ou um filipino fazendo tal reclama-ção. Mas os Joadsagora sabem que serão discri-minados apesar da sua linhagem. Eles ouvem, pela primeira vez, os policiais chamarem-nos de okies e, em algumas páginas à frente, são cha-mados de gorilas pelos frentistas do posto de ga-solina (Ibid., p. 207). Nesse ponto, eles estão se preparando para atravessar o deserto do Mohave no velho caminhão (o que sabemos ser um ato de bravura e de coragem; uma escolha que eles não têm como evitar). Ainda assim, os atenden-tes do posto concordam que “they’re so godda-mn dumb they don’t know it’s dangerous.” (eles são tão idiotas que não sabem como é perigoso) (Ibid., p. 207).

Como vemos, o preconceito aqui não é ra-cial, mas se refere à vulnerabilidade da família à exploração. O inegável racismo implícito no apagamento da imagem dos agricultores não brancos permanece sem solução, como também a implícita (e talvez não intencional) desmistifi-cação da supremacia racial dos brancos. Outra contradição política do romance encontra-se en-tre o apelo à solidariedade de classe e a naturali-zação dos papéis de gênero, particularmente nas mulheres. Ma Joad pode ser estereotipicamente classificada como a mãe-terra provedora. Mimi Gladstein (1988) argumenta que o papel de Ma, como força motriz da família, é uma representa-ção positiva por causa da sua grande resistência e porque ela assume papéis masculinos quando necessário. Além do mais, ela se torna dinâmica; a jornada muda o seu comportamento e faz com que desbrave novos caminhos para compreender

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10. Cinco mil deles marcharam pela cidade com seus rifles. E atiraram nos trouxas e então marcharam de volta. Foi isso que eles fizeram. Bem, Sr., eles não tiveram mais problemas desde aquele dia.

a situação dos errantes. A tocante cena do epílo-go, em que Rosa de Saron alimenta um homem moribundo ao seio, demonstra que ela herdara o legado filantrópico de Ma.

A última questão sobre o engajamento po-lítico do romance recai sobre a possível ambigui-dade a respeito do que realmente constitui uma mudança revolucionária. Steinbeck posiciona-se radicalmente contra o capitalismo, o que implica que é preciso ser erradicado para que se tenha uma sociedade justa e democrática. Entretanto, como não há nenhuma revolução (embora esti-vesse implícito no romance que ela viria), per-manece a dúvida sobre como ela viria a ser. Um momento-chave da abordagem desse assunto é quando Pa e os outros homens de Weedpatch discutem a mudança que eles pressentem: “May-be we won’t live to see her. But she’s a-comin’. They’s a res’less feelin’” (Talvez não estejamos vivos para vê-la. Mas ela[a revolução] virá. É um sentimento inquietante) (Ibid., p.239).

É fato comprovado, entre os capítulos, que a mudança seria revolucionária, incluindo-se aí o fim da propriedade privada, a reforma agrária e, presumivelmente, muito mais. O incidente que os homens citam como evidência das iminentes mudanças é a “greve da borracha” em Akron, Ohio. Lá, os “mountain men” (montanheses), armados contra “storekeepers and legionaries” (estocadores e legionários), demonstrariam sua vontade de lutar: “Five thousan’ of ‘em jes’ mar-ched through town with their rifles. An’ they had their turkey shoot, an’ then they marched back. An’ that’s all they done. Well, sir, they ain’t been no trouble since then” (Ibid., p.240)10.

Superficialmente, a história é inspiradora, porque os grevistas da borracha compreenderam que teriam que lutar contra os proprietários dos seringais – mas a justiça não pode ser garantida. Além do mais, a noção de que os homens po-deriam mostrar suas armas e, a partir daí, não haveria mais problemas nos parece ingênua, e o seu resultado está longe de ser revolucionário. Na realidade, ela sugere mais que os trabalhadores obtiveram algumas concessões da companhia e pararam por ali, satisfeitos. Mas o romance nos mostra, antes, que o acúmulo de capital nunca para e que, portanto, o problema não estaria re-

solvido. Então, a cena parece ser um equívoco: não está claro se a luta irá terminar depois que melhores salários sejam conquistados ou se ela continuará até que as relações de produção mu-dem. Sylvia Cook (1976, p. 177) assegura que essa ambiguidade resulta de uma definição ne-bulosa do problema, mas temos nossas dúvidas. No romance, o problema está claramente defini-do como sendo fruto do destrutivo acúmulo de capital. Aliás, essa também é a posição de Cun-ningham (2002) a respeito desse fato: a dúvida é sobre se a solução do problema será consistente ou não com a definição que lhe dá a obra.

Essa ambiguidade não é resolvida, tam-pouco o são as contradições de raça e de classe. Mas esse final aberto não nega o radicalismo de As vinhas. A narrativa apela aos leitores da classe média para que juntem suas forças às das clas-ses trabalhadoras da narrativa, argumentando que as devastações do acúmulo de capital são sofridas pela ordem social - ainda que mais con-sistentemente pelos trabalhadores migrantes despossuídos. A crítica encoraja o leitor da clas-se média a ser simpático com a causa dos opri-midos e a solidarizar-se com essas experiências baseadas no mesmo sistema social. O público é instigado a comover-se com os Joads, ao mesmo tempo em que é advertido de que, como unida-de social de sobrevivência econômica, a família é inadequada; é produto de uma ordem social ultrapassada. A obra respalda-se na noção ide-ológica da família autocontrolada, a fim de an-gariar a atenção do leitor para o problema da família Joad, para logo expor a necessidade do bem-estar comum, antes que do familiar.

Por outro lado, a questão da supremacia branca anglo-saxônica, mesmo que ambígua, não pode ser ignorada. Ao invés disso, precisa-mos de uma análise que seja sutil o bastante para enxergar tais contradições onde elas exis-tem. Estamos distantes das polarizações inter-pretativas dos anos 1930, mas não podemos esquecer o que os escritores daquela época têm para nos ensinar. O que está em pauta não é o passado, mas o presente e o futuro, como diria Cunningham (2002).

Temos que ter em mente, antes de tudo, que, no domínio das representações, a literatura

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engajada aparece, quase todas as vezes, como uma noção ambígua e dúplice, posto que pro-cura conciliar alguns valores (os que depen-dem apenas da literatura e os que dependem dos critérios éticos, sociais ou políticos) que a modernidade concebe como irreconciliáveis.

Apesar dessas dificuldades e dessas contradi-ções, a literatura de contestação social tem o seu público fiel e nos lega pensamentos e in-trospecções que dão margem às nossas dúvi-das, alimentam os nossos sonhos e propiciam nossas reflexões.

REFE

RÊN

CIAS

COOK, Sylvia Jenkins. From Tobacco Road to Route

66: the poor southern white in fiction. Chapel Hill:

University of North Carolina Press, 1976.

CUNNINGHAM, Charles. Rethinking the Politics of

The Grapes of Wrath. In Cultural logic: an Electronic

Journal of Marxist Theory and Practice. RAMSEY, Jo-

seph G. Ed.Volume 5, 2002, p.118-129

DENNING, Michael. The Cultural Front: the laboring

of American Cultural in the Twentieth Century. Lon-

don and New York: Verso, 1996.

GLADSTEIN, Mimi Reisel. The indestructible women:

Ma Joad and Rose of Sharon. In: John Steinbeck’s

The Grapes of Wrath. BLOOM, Harold. Ed. New York:

Chelsea House, 1988: p.115-28.

GRAHAM JR, & OTTIS L. Anos de crise In: LEUCHTEN-

BURG, W. E. (org.) O século inacabado: a América

desde 1900. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 367-476

JONES, Jacqueline. The dispossessed: America’s underclass

from the Civil War to the Present. New York: Basic Books,

1992.

LEBRUN, Gérard. O que é poder. São Paulo: Brasiliense,

1984.

LYRA, Pedro. Ideologia. In: JOBIM, José Luís (org). Palavras

da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

PORTELA, Eduardo. Fundamentos da investigação literária.

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981

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nível em http://www.wsws.org/pt/2009/apr2009/ptho-a03.

shtm - Acesso em 04/04/2012

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155Valdério Freire de Moraes Júnior1

Claude Alexandre de Medeiros Marques2

Consequência da credibilidade na tecnologia de informação no

sistema de controle interno: caso de uma indústria

Resumo

O propósito principal desta pesquisa é de mostrar a importância do contro-le interno para a precaução dos efeitos causados pela implantação da in-formática, como auxiliar no processo de controle interno de uma indústria que tem departamento de vendas a varejo e procura interagir mais com os setores que participam do processo de vendas como um todo. Este estu-do chama a atenção para as negligências de gestão, nos departamentos, causadas pelo vício de credibilidade na informatização implantada, como problemas com a tributação, com o controle de estoques, a não relevância da informação contábil e a contribuição indireta para possíveis fraudes. Tem como objetivo identificar quais são as consequências da credibilidade na tecnologia da informação no controle interno de uma indústria. Trata-se de uma pesquisa teórico-empírica, feita à luz da Teoria Contábil, basea-da em livros, artigos e sites da área em questão. Os resultados apontam que, mesmo com a implantação e o avanço da informática para melhorar o repasse das informações financeiras, é de fundamental importância a atuação contundente dos gestores nos setores que interagem com os pro-gramas, a fim de que haja otimização dos controles e auditoria internos.

Palavras-chave: Controle interno. Indústria. Informatização

1. Professor Assistente do Departamento de Ciências Contábeis da UFPB.2. Professor da Universidade Potiguar.

E-mail: [email protected]

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1. Introdução

Desde o início do processo de globalização, na década de 90, um dos principais elementos que vêm desempenhando um papel importante nesse processo é a informática. Assim, falar de bom desenvolvimento significa ter aplicado aos negócios a informática como auxiliar na agilida-de do repasse das informações precisas para a tomada de decisões oportunas pelos gestores. Entretanto, algumas empresas têm grandes gas-tos com a implantação de informática, com vis-tas a agilizar a troca de informações, por duas possíveis causas: não aproveitam bem os seus recursos ou seus gestores se viciam em dar cre-dibilidade aos sistemas e negligenciam a gestão dos setores que interagem no uso da informática.

Os gestores são profissionais responsáveis pela organização dos recursos disponíveis para continuação a empresa, planejamento, direção do pessoal e controle das operações. No exercí-cio da função de controller, os gerentes procuram assegurar que o plano traçado para o funciona-mento da entidade está sendo seguido, através da análise de relatórios contábeis gerenciais destinados aos gestores. Isso não significa que deixem de analisar os relatórios contábeis finan-ceiros elaborados, principalmente, para partes externas à empresa, como acionistas e credores (GARRISON E NORREN, 2001).

O presente estudo tem como objetivo aler-tar os gestores sobre as consequências trazidas pelo vício que a implantação dos programas in-formatizados pode causar em sua administra-ção. Esses profissionais podem se tornar ociosos e negligentes em relação ao seu papel nas de-cisões da empresa, porque supõem que os sis-temas implantados serão totalmente eficientes para o bom desenvolvimento do controle interno, principalmente na área fiscal, independentemen-te de sua atuação como controladores desse sis-tema.

Seguindo essa temática, será feita uma abordagem sobre a importância do gestor na empresa, a necessidade do sistema de controle interno e de auxílio à auditoria e as consequên-cias do vício no uso da tecnologia da informação. Nessa perspectiva, a pesquisa pretende respon-der à seguinte questão: Quais são as consequ-ências da credibilidade na tecnologia da infor-mação, no sistema de controle interno, em uma

indústria de eletrodomésticos?

2. Controle Interno e Auditoria

O controle interno compreende o plano de organização e o conjunto coordenado dos méto-dos e das medidas que são adotadas pela em-presa, para proteger seu patrimônio, verificar a exatidão e a fidedignidade dos seus dados con-tábeis, promover a eficiência operacional e enco-rajar a adesão à política traçada pela administra-ção (ATTIE, 1998).

Quando a entidade implanta o sistema de controle interno, visa buscar mais eficiência no funcionamento do fluxo das operações que são propostas pela empresa. Assim, dará mais se-gurança ao seu patrimônio e poderá saber se os registros contábeis são fontes confiáveis para a elaboração dos relatórios contábeis e as toma-das de decisões.

Um dos melhores instrumentos de contro-le administrativo é a contabilidade. Portanto, vê--se a importância de um controle interno eficien-te para demonstrar confiabilidade na informação para seus usuários. O controle interno, através da auditoria, deve oferecer proteção à riqueza patrimonial e segurança e garantia aos proprie-tários, aos administradores, ao fisco e aos finan-ciadores.

Vasconcelos (2002, p. 01) conceitua um sistema de controle interno como

um conjunto de procedimentos coordenados, aplicados de maneira que ofereça equilíbrio ao seio organizacional para resguardar o patrimô-nio das entidades, envolvendo pontos ligados a eficiência operacional e obediência as normas internas à verificação da exatidão dos dados da empresa.

Nesse contexto, a intenção de um bom sistema é de salvaguardar os ativos contra o uso de forma errônea ou de sua utilização não auto-rizada e dar confiabilidade às informações pres-tadas. Portanto, não há um modelo de controle interno pré-fabricado, segundo Assis, Gomes e Barbosa (p. 9, 2000). O que pode haver é uma adaptação conforme o modelo de decisão que a administração adote, tendo em vista que o siste-ma de controle atua permanentemente, adminis-trando os planos e procedimentos adotados pela empresa, para melhorar o seu funcionamento.

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A auditoria e o sistema de controle interno diferem conceitualmente, embora ambos tenham caráter investigativo dos corretos procedimentos adotados pela empresa. É a auditoria que tem essa característica, pois seu objetivo principal é de verificar se as normas internas estão sendo seguidas e aprimorar as vigentes ou criá-las. E isso será possível se as demonstrações contá-beis refletirem a situação financeira da empresa a ser aprimorada e se o resultado das operações e as origens de aplicações de recursos da empre-sa forem examinados (ALMEIDA, 1996).

3. Controle Interno na Área Fiscal

A área fiscal de uma rede de eletrodomés-ticos é sobremaneira importante para ela, por se tratar de um setor que controla toda a chegada da documentação, no que se diz respeito a no-tas fiscais de entradas e de saídas. Para tanto, é necessário estipular prazos para ser atingida a meta, que é de escriturar e calcular impostos corretamente dentro do prazo. Abaixo, seguem os procedimentos realizados nesse setor:

A documentação é recebida pelo respon-sável operacional até o dia cinco, possivelmente, do mês subsequente, o qual fica encarregado de comunicar ao chefe do setor de protocolo da em-presa, caso isso não ocorra;

O responsável lança o movimento de entradas e de saídas (notas fiscais) no sistema informatizado e, depois, imprime-os para que se-jam conferidos;

O movimento fiscal é conferido por outra pessoa do mesmo setor; feito isso, tira-se o livro de apuração/serviços;

Os impostos federais, estaduais e muni-cipais são calculados baseados nos livros fiscais, levando-se em consideração a forma de tributa-ção da empresa - seja ela Lucro Real, Presumido ou Simples (no âmbito federal);

O operador (responsável pelos cálculos) passa para o supervisor checar e liberar os im-postos para a empresa;

O Setor Financeiro, por sua vez, deve re-

ceber os impostos dois dias antes do pagamento.Não se pode imaginar, atualmente, uma

escrituração manual como a de meados do sécu-lo passado, quando todas as notas fiscais eram preenchidas nos livros fiscais à mão. Por isso é tão importante se ter um programa de informáti-ca que torne eficiente todo o processo de fatura-mento da nota fiscal, na venda em si; a baixa no estoque, pelo preço de custo; e o lançamento na escrita fiscal e na contabilidade.

A escrituração fiscal informatizada é em-pregada frequentemente pelas empresas, seja terceirizada a um escritório de Contabilidade ou feita dentro do próprio estabelecimento, como é o caso dessa rede de eletrodomésticos. Nota-se que, nem sempre, ter apenas um programa auto-matizado garante que o serviço seja executado. Já foram observados casos de erro do próprio programa, no livro de apuração do ICMS, puxan-do-se somatórios errados e saldo credor de im-posto de um mês para o outro.

Não basta o sistema ser integrado para que o controle seja considerado eficiente. Devem-se fazer testes para ter certeza da confiabilidade, caso contrário, a empresa poderá, desneces-sariamente, ser fiscalizada por causa de falhas não analisadas na época da escrituração fiscal. A rede de eletrodomésticos tem máquinas de cupom fiscal espalhadas em suas lojas, que são lacradas pela Secretaria de Tributação do Estado na presença de um auditor fiscal; se a empresa não controlar intensamente o seu sistema, pode-rá pagar impostos erroneamente a maior (e de-pendendo do valor, pode fazer falta, no que tan-ge aos projetos de construção da empresa, por exemplo) como também a menor (que acarretará em um pagamento de juros e de multa para a empresa, ou seja, uma despesa desnecessária), e ser penalizada com um auto de infração.

Por fim, o analista fiscal tem, em suas mãos, o poder de verificar a eficácia do sistema, pois, pelo que se sabe, o software é programado conforme as necessidades da empresa. As fór-mulas que são colocadas devem ser previamen-te analisadas e conferidas, porquanto não basta emitir pelo programa se o imposto não sair cor-retamente. Nesse sentido, é importante o papel da auditoria externa, que é de identificar a fal-ta ou não dos controles internos e do controller, que, internamente, pode evitar danos para a em-presa, com testes de observância e de execução,

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a respeito dos quais falaremos no próximo item.

4. Testes de observância e de execução

Segundo Almeida (1996, p. 60),

os testes de observância consistem em a orga-nização se certificar de que o sistema de con-trole interno levantado é o que realmente está sendo utilizado. Acontece com freqüência que uma empresa tem um excelente sistema de controle interno descrito em seu manual de procedimentos; entretanto, na prática, a situa-ção é totalmente diferente.

Convém enfatizar que, se a empresa tiver em mãos o trabalho elaborado pela diretoria sobre o sistema de controle interno, pode apli-car testes de observância para se certificar se o sistema funciona de fato e se cumpre a finalida-de para a qual foi implantado. Por essa razão, é importante que, antes de aplicar os testes, a administração discuta os pontos fortes e fracos com os funcionários da empresa, para que os controles internos sejam avaliados, mesmo sa-bendo que não há controles infalíveis. Almeida (1996, p. 60) refere que os testes feitos para ava-liar o sistema de controle interno servem para “determinar os erros ou as irregularidades que poderiam acontecer e verificar se o sistema atual de controles detectaria de imediato esses erros ou irregularidades”. Se essa avaliação for feita através dos testes de observância e de execução poderá auxiliar na implantação de um bom siste-ma de informação.

5. Implantação do Sistema de Informação em uma indústria de eletrodomésticos

As indústrias procuram, cada vez mais, implantar seus sistemas de informações visando à eficácia no funcionamento dos seus procedi-mentos adotados para interagir com os setores que ficam responsáveis por determinada função.

Esta pesquisa observou a interação dos se-tores de vendas, almoxarifado, contábil, centro de custos, fiscal, financeiro, administrativo e de produção de uma indústria de eletrodomésticos, em cuja fábrica há um departamento de vendas a varejo. Por conseguinte, foi implantado nos se-tores um excelente programa que promove mais

interação entre eles, em busca da informação proveniente da venda. No ato da venda, foram feitos os seguintes procedimentos nos setores:

Faturamento de nota fiscal com informa-ções inerentes ao produto;

Registro de venda no caixa (1ª via da NF);

Encaminhamento da nota fiscal para o se-tor fiscal para registrar os tributos (2ª via da NF);

Baixa nos estoques, para reposição, no setor de vendas, correspondente à quantidade de produto faturado;

Mobilização do setor de produção para confeccionar o produto vendido de acordo com a necessidade para a venda;

Apuração dos custos de produção;

Registro contábil da venda nas demons-trações financeiras e elaboração de relatórios para a administração.

O Quadro 01, na página ao lado, demons-tra o contexto da empresa, comparando a condi-ção encontrada. Se os gestores dessa empresa depositarem total confiança nos sistemas infor-matizados e acharem que são eficientes a ponto de não precisarem de inspeção, haverá negligên-cia administrativa, e o seu controle interno será totalmente prejudicado, o que acarretará proble-mas como: acúmulo de notas fiscais no setor de vendas e o não repasse desses documentos com-probatórios para os setores contábil e fiscal, pre-judicando a apuração dos tributos, o não apro-veitamento dos recursos oferecidos pelo sistema de informática e o favorecimento de fraudes nos ambientes interno e externo da indústria.

Abaixo, são relacionados quatro casos, atra-vés de testes de observância, em que o não apro-veitamento dos recursos oferecidos, aliado à cre-dibilidade excessiva nos sistemas, pode acarretar:

1º - Os códigos de barra dos produtos não contêm todas as informações necessárias quan-do da emissão da nota fiscal.

Pode-se observar que o código de barra,

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responsável por gerar, na nota fiscal, todas as especificações possíveis do produto, contém apenas o código relativo àquele tipo de produ-to, fazendo com que, no setor de vendas, todos os produtos de um determinado tipo tenham o mesmo código do produto. Assim, a nota fiscal gerada e repassada para os setores de custo, de estoque e contábil apenas demonstra o valor da venda, o tipo e a quantidade vendida do produ-to e os dados do cliente, sem especificar a série do produto ou o número em relação ao estoque. Nesse caso, não há profissional qualificado para executar os sistemas informatizados.

2º - Possibilidade de fraudes no ambiente interno e no externo

As falhas observadas anteriormente po-

dem proporcionar fraudes tanto no ambiente in-terno da entidade quanto no externo. Na fraude interna, pode ocorrer de não se ter dado baixa por nota fiscal, e o funcionário embolsar o di-nheiro, devido ao acúmulo constante das notas e à falta rotineira de cobrança dos setores respon-sáveis pelo registro da venda. Em caso de frau-des externas, o consumidor com nota fiscal que

não especifica detalhadamente o produto vendi-do poderá beneficiar outro que tenha comprado o mesmo produto de terceiros, mas não tem nota fiscal, e seu produto apresentar defeito. Também pode, de acordo com a data da emissão da nota fiscal, dar entrada na manutenção do equipa-mento por tempo de garantia. Nesse caso, o custo da produção de peças para a manutenção de produtos devolvidos com defeito aumentará; por outro lado, a empresa poderá ser processada por agir de má fé, se o consumidor cujo aparelho foi comprado na loja da fábrica e apresentou de-feito for acusado de fraude pela loja, quando da solicitação de manutenção, por alegar que o pro-duto não corresponde ao controle da sua venda e do estoque.

3º - Centralização de funções

Em um determinado setor, várias funções podem ser executadas por um número reduzido de funcionários, levando em consideração o sis-tema informatizado que auxilia nessa execução. Se o setor de vendas não tiver segregação de fun-ções, e a demanda do faturamento for grande, é possível que haja um número considerável de no-

CONTEXTUALIZAÇÃO

CONDIÇÃO

ENCONTRADA

QUADRO 1: Contextualização X condição encontrada

1) Os procedimentos físicos de interação como o setor de vendas encontram-se regulares, mas o acúmulo de notas fiscais sem repasse para o setor contábil dificulta o confronto da NF com informação enviada ao setor pelo sistema.

2) Os códigos de barra de cada produto apenas especificam o número de controle para o setor de vendas.

3) A falta da segregação de funções eleva o número de documentos nesse setor e o não repasse aos devidos centros responsáveis.

O setor de vendas tem como obje vo faturar, de acordo com as ordens de pedido emi das pela loja da fábrica, e expedir para o consumidor a nota fi scal. Esses procedimentos atendem ao obje vo da empresa – o de promover a interação do setor de vendas com o de faturamento.

Esse setor também é responsável por emi r dados das vendas para o setor contábil, o fi scal e o centro de custos.

FONTE: Os autores

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tas fiscais sem repasse desses documentos com-probatórios para os setores responsáveis pelo seu registro, como no caso do setor contábil, do fiscal e do financeiro, o que pode prejudicar a demanda da produção para a reposição dos estoques.

4º - Controle dos estoques

Outro problema observado na indústria foi o fato de se dar importância a um programa de controle de estoques considerado eficiente. Inte-ressante seria implantar um programa de conta-bilidade fiscal eficiente, a ponto de integrar on-line tudo o que acontece na empresa, da seguinte ma-neira: quando a nota fiscal de saída for emitida, deve constar na escrita fiscal e na contabilidade. Caso isso não ocorra, a empresa fica vulnerável a uma falta de controle por trabalhar com um pro-grama fiscal limitado, sem opções de integração. Isso causa um retrabalho indevido. A pessoa res-ponsável por lançar as notas poderá ser um ana-lista, pois um programa eficiente eliminaria esse retrabalho, tendo em vista o interesse da empresa em obter um grau excelência de controle; também não seria necessário que as notas fiscais fossem lançadas na contabilidade, visto que o setor de faturamento daria esse comando.

6. Conclusão

No constante processo de globalização

por que passa o mundo, cada vez mais, as em-presas procuram aperfeiçoar sua produção de bens de consumo, para atender à demanda do mercado consumidor, que exige excelência na qualidade dos produtos e serviços oferecidos, na busca por melhores resultados em suas fi-nanças.

Nesse contexto, a implantação de siste-mas informatizados tornou-se o melhor aliado do mercado, para agilizar a chegada das infor-mações sobre a compra e a venda de merca-dorias aos setores responsáveis pela elaboração dos relatórios financeiros e gerenciais.

Aliando os recursos informatizados à eficácia dos controles internos das empresas, muitos gestores se viciam na credibilidade dada aos softwares implantados, atuam apenas para interpretar os relatórios e executar as tomadas de decisões e negligenciam o gerenciamento de cada setor de onde são geradas as informações financeiras. Consequentemente, a apuração do resultado é prejudicada, os custos gerais da em-presa aumentam e pode haver o favorecimento de fraudes.

Assim, considerando os aspectos aborda-dos nesta pesquisa, sugere-se que os gestores atuem de forma contundente nos setores que interagem com os programas, a fim de que a tecnologia de informação seja otimizada nos controles e na auditoria internos.

REFE

RÊN

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161 Vitor Nicolau1

Henrique Magalhães2

O universo das tirinha na web: um levantamento das tirinhas

no ciberespaço

Introdução

As tirinhas habitam as páginas de jornal e de folhetins do mundo há mais de 100 anos, mas foi apenas a partir da década de 1970, no Brasil, que elas trouxeram um conteúdo de crítica políti-ca, retratando, com uma aguçada ironia, os para-doxos da atual sociedade. As representações dos problemas diários ganharam forma dentro das tirinhas e, hoje, elas são reconhecidas como um gênero jornalístico opinativo.

As novas mídias e todas as inovações tecno-lógicas que surgiram junto com elas fizeram com que vários gêneros migrassem para a internet e se adaptassem às exigências do seu público, prin-cipalmente, procurando formas inovadoras de in-teração e participação no processo de produção de conteúdo. Surgiu, então, o conceito de cultura da convergência, trazido por Jenkins (2008), que explora as possibilidades de confluência de dis-positivos midiáticos e de produção de conteúdo,

1.Artigo científico apresentado ao eixo temático “Jogos, redes sociais, mobilidade e estruturas comunicacionais urbanas”, do V Simpósio Nacional da ABCiber.2.Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPB e Professor do Curso de Design Gráfico do IFPB – Cabedelo. [email protected] Doutor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFPB, Diretor da Marca de Fantasia, editora independente de história em quadrinhos e Coordenador do Grupo de Pesquisa em Humor, Quadrinhos e Games – UFPB. [email protected]

como uma transformação cultural, à medida que os consumidores são incentivados a procu-rar novas formas de se comunicar.

Assim, considerando que, cada vez mais, as tirinhas estão conquistando espaços nos blo-gs, dentro das mídias digitais, o objetivo deste trabalho é de proceder a um levantamento dos blogs que são exclusivamente relativos às tiri-nhas ou que trazem esse gênero de maneira periódica em algumas de suas postagens.

Com o objetivo de verificar quais dos ele-mentos dos conceitos de Webcomics, proposto por Scott McCloud, e de HQtrônicas, por Edgar Franco, que estão sendo utilizados nessas pro-duções, foi aplicada a metodologia de Análise de Conteúdo. Quanto à estrutura, este trabalho está dividido em duas partes. Na primeira, dis-cutiremos sobre as mídias digitais e as suas possibilidades de interação com o usuário, com base nos pressupostos teóricos de autores como Henry Jenkins (2008), Jonh B. Thompson

E-mail: [email protected]

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(2008), Lucia Santaella (2002), entre outros. Na segunda parte, apresentaremos os resultados do levantamento baseado na metodologia de Análise de Conteúdo.

AS TIRINHAS E A CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA

Convergência midiática

Estamos vivendo aquela que pode ser con-siderada a era do usuário. Graças à convergência midiática, as novas e as velhas mídias se cruzem e conduzem o consumidor e o produtor de mí-dia a interagirem na produção de um conteúdo cada vez mais diversificado e imprevisível. Jenkins (2008), em seu livro “Cultura da convergência”, define essa nova era através do fluxo contínuo de conteúdo entre múltiplos suportes, da coopera-ção entre os mercados midiáticos e do comporta-mento migratório do público em busca de novas experiências e formas de interagir.

Ressalte-se, no entanto, que o autor (2008) não se limita a analisar a convergência sob uma ótica lógica. Ele nos mostra esse fenômeno como uma transformação cultural, em que os consumi-dores são incentivados a procurar novas informa-ções e fazer conexões entre os conteúdos midi-áticos. Nesse novo paradigma da convergência, as novas e as antigas mídias estão interagindo de forma cada vez mais complexa, principalmente devido às novas tecnologias midiáticas, que per-mitem que o mesmo conteúdo transite por vários canais e com diferentes pontos de recepção.

A palavra mídia, de acordo com Santaella (2002), não pode mais ser considerada como um meio de comunicação de massa. O surgimento de novos equipamentos técnicos e da internet come-çou a minar o exclusivismo dos grandes meios. Ela considera que o termo “indústria” se tornou obsole-to nos dias de hoje. Já a convergência é um processo de mudança nos padrões dos meios de comunica-ção e impacta, principalmente, o modo como con-sumimos aquilo que é veiculado por esses meios. Ela envolve coisas materiais e serviços produzidos comercialmente e ocorre quando as pessoas come-çam a assumir o controle das mídias.

Qualquer ser humano no globo, segundo Santaella (2002), está interagindo em uma rede de transmissões de dados e acesso, que vem sen-do chamada de ciberespaço. Há uma convergên-cia para a constituição de um novo meio de comu-

nicação, de pensamento e de trabalho, uma nova antropologia própria do ciberespaço, que prevê a fusão das telecomunicações e uma indústria unifi-cada da multimídia. Se a ocupação do espaço era impossível, nos meios de comunicação de massa, o ciberespaço está cheio de brechas, onde há um grande espaço para o hibridismo e uma mistura de formas, gêneros e atividades.

As novas tecnologias estão reduzindo cada vez mais os custos de produção e de distribuição, e isso possibilita a qualquer um criar, arquivar, editar e redistribuir conteúdo e que o alternativo e o corporativo coexistam.

Se os antigos consumidores eram tidos como passivos, os novos consumidores são ativos. Se os antigos consumidores eram previsíveis e fi-cavam onde mandavam que ficassem, os novos consumidores são migratórios, demonstrando uma declinante lealdade a redes ou a meios de comunicação. Se os antigos consumidores eram indivíduos isolados, os novos consumidores são mais conectados socialmente. Se o trabalho de consumidores de mídia já foi silencioso e invisí-vel, os novos consumidores são agora barulhen-tos e públicos. (JENKINS, 2008, p. 45)

A cultura da convergência representa uma mudança no modo como encaramos nossas rela-ções com as mídias. O público que ganhou espaço com as novas tecnologias está exigindo o direito de participar intimamente da produção de conteúdo e da cultura. Nesse contexto, a era da convergên-cia permite que modos de audiência comunitários existam e deixem de apresentar um vínculo maior com as antigas formas de comunicação. A nova cultura da convergência está menos arraigada a espaços geográficos e com laços estendidos entre os usuários, razão por que surgem novas formas de comunidade, onde o conhecimento não é mais só compartilhado, mas construído de maneira co-letiva por todos os membros da comunidade.

A interatividade é uma das peças-chave da convergência. Para Jenkins (2008), é o modo como as novas tecnologias foram planejadas para responder às necessidades do consumidor de se comunicar. A participação do usuário é ilimitada e cada vez menos controlada pelos produtores dos grandes meios de comunicação.

O processo de criação é muito mais divertido e

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significativo se você puder compartilhar sua cria-ção com os outros, e a web, desenvolvida para fins de cooperação dentro da comunidade científica, fornece uma infra-estrutura para o compartilha-mento das suas coisas que o americano médio4 vem criando em casa. (JENKINS, 2008, p. 186)

Como se vê, a web funciona como um ponto de exibição para o produtor alternativo e serve de espaço para a experimentação e a inovação, onde os amadores podem desenvolver novos métodos e temas, com o objetivo de atrair seguidores. Al-gumas dessas produções independentes ainda podem ser absorvidas pelas grandes mídias de maneira comercial.

A Web 2.0 e os blogs

O termo “participação” emergiu como um conceito dominante na cultura da convergência. À medida que se expande o acesso aos meios de distribuição pela web, nossa compreensão do que significa ser autor começa a se modificar.

As principais ferramentas de participação na web de hoje são os blog, os fóruns e sites como o YouTube, o Twitter e o Flickr, por meio dos quais os usuários compartilham conteúdos sem depender das grandes mídias. Alguns desses sistemas são tão simples e fáceis de utilizar que crianças e pessoas pouco habituadas com a internet conseguem usu-fruir de suas ferramentas para se comunicar com outros indivíduos. Para o processo de divulgação, as comunidades virtuais são o grande diferencial na web. Ela permite que os nichos sejam identifica-dos e localizados em um espaço, e o conhecimento compartilhado. Dessa forma, abre espaço para dis-cussões, sugestões e análises que, através de inte-resses mútuos, procuram construir uma nova forma de conhecimento e de entendimento da cultura.

Jenkins (2008) considera que participar de uma dessas comunidades expande a maneira como cada um compreende o mundo a sua vol-ta. Elas permitem compartilhar conhecimentos e consolidar normas sociais, conectam experiências e elevam a consciência em relação ao processo de venda e de consumo das mídias.

O paradigma do emissor da informação li-gado aos grandes meios de comunicação foi que-brado. A informação, agora, como afirma Oliveira

(2010), em seu livro “Blog: cultura convergente e participativa”, não está mais ligada a grandes em-presas. Na internet, qualquer pessoa ou coletivo pode criar novas soluções e conteúdos que pos-sibilitem gerar audiências capazes de superar os grandes grupos. O conteúdo está cada vez mais passível de personalização e sem limites de vei-culação, e o cartunista, quadrinista ou desenhista agora tem o espaço que deseja na web para vei-cular os seus trabalhos, de maneira gratuita, sem vínculo com os grandes grupos de distribuição e com público certo, disposto a interagir com ele e a divulgar o seu trabalho.

A ideia de Web 2.0 nasce com o surgimento de novos aplicativos e ferramentas para a internet, proporcionando maior dinamismo no lado co-mercial da rede, além de novas formas de ge-renciamento de conteúdo e participação do in-ternauta. O termo se refere à ideia de segunda geração de uma internet que acabara de sofrer grande impacto com o estouro da bolha em 2001. (OLIVEIRA, 2010, p. 39)

No contexto da web 2.0, a internet adquire a característica de plataforma, principalmente com o desenvolvimento de aplicativos que aproveitem os efeitos da rede para se tornar cada vez melho-res, à medida que são utilizados pelos usuários.

Na ótica de Thompson (2008), o desenvolvi-mento dos meios de comunicação criou novas formas de ação e de interação e novos tipos de relacionamen-to sociais, formas que são bastante diferentes das que prevaleceram na maior parte da história humana.

Wolton (2004), apesar de considerar que o fim das distâncias físicas pode mostrar como são extensas as distâncias culturais, considera que a comunicação é uma necessidade fundamental, uma característica essencial da modernidade. Cada vez mais, os usuários estão procurando no-vas formas de se comunicar e encontrando na in-ternet plataformas que permitam essa interação da maneira que eles imaginam que deva ser, tanto através de um texto escrito, de fotografias e víde-os quanto de uma tirinha.

As tirinhas nas mídias digitais

Com o advento das mídias digitais, as histó-

4. As atividades do americano médio, na cultura da convergência, é o objeto de estudo de Jenkins (2008).

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rias em quadrinhos e as tirinhas vêm encontrando na web um novo espaço, utilizando-se, inclusive, dos elementos disponíveis nas mídias digitais interativas, como considera McCloud (2006), ao chamar essas produções de Webcomisc. A agili-dade e o imediatismo da tirinha, características também presentes nas mídias digitais, fazem--nos entender que elas são imprescindíveis para a construção do pensamento crítico, quando não se dobram à massificação e se permitem à liber-dade inventiva.

As tirinhas estão passando por modifi-cações e ajustes às novas mídias, e o principal suporte para sua divulgação é o blog. Agora, a produção experimental é livre, portanto, fica a cri-tério do autor, e não, da formatação dos meios impressos, que tipo de estilo ele irá seguir para transmitir sua mensagem. McCloud (2006) consi-dera que o intercâmbio entre os quadrinhos e as novas tecnologias já é uma realidade e, a partir desses cruzamentos, uma reconfiguração do gê-nero tirinhas e um novo produto cultural podem estar surgindo.

Edgar Franco (2004) traz a arte sequencial dos quadrinhos e das tirinhas para o contexto da web, onde podemos encontrar os principais ele-mentos agregados à linguagem dos quadrinhos clássicos, produzidos para ser veiculados em su-porte de papel, nas mídias digitais, mas alguns deles apresentam inovações, como animações, diagramação dinâmica, efeitos sonoros, narrati-vas multilineares e interatividade, que, criam um gênero híbrido com a linguagem da hipermídia. O autor define essas produções como HQtrônicas, da mesma forma realizada por McCloud (2006) com as Webcomics.

Muitas das tirinhas digitais não são mais do que adaptações das impressas, levadas para o meio digital. Durante mais de cem anos, elas habitaram a imprensa, e hoje, a mídia digital está convergindo para um único suporte: o computa-dor. Logo, a evolução da tirinha dependerá de sua capacidade de se adaptar a esse novo ambiente, que inclui tanto as novas tecnologias quanto os desejos do público de consumi-la.

Nesse contexto, os blogs têm sido a prin-cipal plataforma de divulgação das tirinhas digi-tais. Eles contribuíram para que novos desenhis-tas expusessem seus trabalhos, sem depender,

por exemplo, dos conhecidos Syndicates, que se encarregavam de espalhar tirinhas para jornais e revistas de todo o mundo e selecionavam previa-mente as tirinhas que pareciam ser mais merca-dológicas e influenciavam o modelo de produção dos artistas.

O blog, segundo Oliveira (2010), é uma das principais ferramentas do processo de conver-gência midiática e um espaço para a discussão sobre as mudanças de pensamento em relação à Cibercultura. Inúmeros debates, palestras e discussões on-line são travados diariamente por blogueiros e seus públicos, graças às possibilida-des geradas pela web 2.0 e à facilidade na cone-xão com a internet.

Em 2008, o Technorati5 – um mecanismo de busca especializado em blogs - divulgou que exis-tem mais de 133 milhões de blogs cadastrados em seu sistema, desde 2002, com quase um mi-lhão de informações cadastradas por dia. O blog tornou-se uma importante ferramenta como fonte de informação, entretenimento e opinião livre.

Com a produção, cada vez mais simples e acessível, de tirinhas, além da facilidade de sua divulgação, uma nova geração de produtores está surgindo, com novas ideias e muito interessados em explorar as potencialidades das novas tecnologias das mídias digitais. A veiculação das tirinhas está cada vez mais simples, e a produção, com o domí-nio mínimo de programas de edição de imagens, como o Photoshop, o GIMP, entre outros, permite uma expansão na produção de tirinhas autorais.

LEVANTAMENTO DAS TIRINHAS DIGITAIS

Metodologia de pesquisa em tirinhas

Vergueiro & Santos (2010) referem que estudar os quadrinhos e, consequentemente, as tirinhas, é como estar “pisando em ovos”. Essa metáfora demonstra bem como as metodologias aplicadas a esse tipo de corpus geralmente são consideradas frágeis, razão por que os estudio-sos da área devem apresentar pesquisas e teorias aplicadas por meio das quais a comunidade aca-dêmica possam aceita-las.

Desde sua origem, no início da década de 1940, a pesquisa em quadrinhos sofre diversas crí-ticas, principalmente devido à relação desse gêne-

5. http://technorati.com/blogging/article/state-of-the-blogosphere-introduction/

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ro com a sua capacidade de influenciar o público infanto-juvenil. Ao serem consideradas como um meio de comunicação de massa, as HQs sofreram diversos ataques de teóricos como Fredic Wer-tham, por exemplo, que utilizou como referência os estudos feitos no período pela Escola de Frank-furt. Nessa mesma época, a Europa, como um todo, condenava os quadrinhos e direcionavam-nos apenas como leitura para criança e adolescentes. Mas foi na década de 1960, como enunciam Ver-gueiro & Santos (2010), que diversas produções dos quadrinhos foram utilizadas como base para pesquisas semióticas, sociopolíticas, psicológicas e filosóficas. Humberto Eco foi um dos principais defensores, utilizando as HQs como objeto de estu-dos linguísticos e semiológicos.

Nesse contexto, a tirinha começou a ser estudada bem mais a partir do ano 2000, com os estudos feitos por Henrique Magalhães. Tam-bém conhecida como tira diária, pode ser defini-da como uma sequência narrativa em quadrinhos, humorística e satírica, em que se emprega tanto a linguagem verbal quanto a não verbal. A maioria delas transmite uma mensagem de caráter opi-nativo. Através da utilização de metáforas, que a aproxima da sua representação do cotidiano, a tirinha pode burlar censuras e se afirmar, nos jor-nais impressos, como um gênero jornalístico que apresenta as mesmas propriedades de uma crôni-ca, de um artigo, editorial ou charge.

Nicolau (2007) define a tirinha como

(...) uma piada curta de um, dois, três ou até qua-tro quadrinhos, e geralmente envolve personagens fixos: um personagem principal em torno do qual gravitam outros. Mesmo que se trate de persona-gens de épocas remotas, países diferentes ou ain-da animais, representam o que há de universal na condição humana. (NICOLAU, 2007, p.25)

A tirinha é, pois, uma excelente forma de expressão no jornal e na revista. A mídia impressa precisou se diversificar e atender a diversos pú-blicos, dando a possibilidade de o autor colocar suas vivências, experiências e problemas da vida cotidiana de forma divertida e provocativa, em uma realidade metaforizada.

Apesar de muitos jornais diários brasilei-ros praticamente ignorarem as tirinhas ou as lo-calizarem nas páginas de entretenimento, o seu conceito continua fiel a sua condição de crítica e

reflexão sobre a condição humana, a vida do país e o nosso cotidiano.

O jornalismo ilustrado foi uma estratégia para se alcançar um maior número de leitores e os qua-drinhos serviram para consolidar a ampliação do público. Sua linguagem baseada na imagem e na síntese do texto foi, mormente, um fato de sedu-ção que contribuiu para o acesso aos jornais por um público que estava fora do círculo restrito de letrados. (MAGALHÃES, 2006, p. 9)

A agilidade e imediatismo da tirinha nos faz entender que elas são imprescindíveis para a construção do pensamento crítico, quando elas não se dobram à massificação e se permitem à liberdade inventiva.

Segundo Patati e Braga (2006), em sua obra “Almanaque dos quadrinhos”, as tirinhas, assim como as histórias em quadrinhos, os gibis, os comix e todas as outras formas de arte se-quencial, estão perdendo espaço para os meios de expressão de impacto sensorial bem maior, como o cinema. Mas elas também servem de ins-piração para essas mídias que, cada vez mais, adotam o estilo narrativo dos quadrinhos em fil-mes, séries e jogos.

Análise de conteúdo

Durante a construção desta pesquisa, per-cebeu-se a necessidade de realizar um levanta-mento dos blogs brasileiros que trazem tirinhas em seu conteúdo. Para isso, está sendo realizada uma pesquisa baseada na metodologia de análise de conteúdo, proposta por Júnior (2009). Contu-do, o trabalho apresentado aqui está longe de fa-zer uma análise completa, tendo em vista o gran-de número de blogs com a relativa temática e a profundidade da análise.

A análise de conteúdo é uma técnica de pesquisa que se emprega para realizar uma des-crição objetiva, sistemática e quantitativa de de-terminado conteúdo. Aplica-se, geralmente, a uma grande quantidade de material organizado de maneira lógica e objetiva, que possibilita a uti-lização de métodos de pesquisa como a dedução, ou seja, os resultados podem ser verificados com a adoção de diversas ferramentas metodológi-cas. Contudo, ela é considerada superficial, com margem para simplificação e distorções, e sofre

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constantes contestações quando adotada como método científico.

Entendemos a análise de conteúdo como a supremacia dos números, o que faz dela uma im-portante peça para diversas disciplinas, adotando--a como uma técnica de pesquisa. Hoje, quando empregada, procura-se adotar uma perspectiva complementar entre o quantitativo e o qualitativo, com diversas parcerias com outras técnicas de in-vestigação.

A análise de conteúdo tem sua base no Século XVIII, mas só no Século XX foi que ela se envolveu diretamente com a comunicação. Essa técnica atingiu seu ápice na Segunda Guerra Mun-dial e, desde então, passa por ciclos de reconhe-cimento e de contestação. Nos últimos anos, essa técnica incorporou teorias das ciências sociais e redefiniu conceitos, como o de estereótipo, e trouxe novas ferramentas, como as enquetes. Ela herda do positivismo a valorização das ciências exatas e procura formular questões relativas às ciências sociais de maneira mais rígida, linear, metódica e com uma base de dados verificável. A análise de conteúdo pode ser aplicada em pesqui-sas relacionadas à comunicação, principalmente quando ligada a fatos e situações que ocorrem de maneira constante nas mídias, assim como a sua disposição no meio de divulgação e o interesse do publico pela informação.

Podemos também verificar a disposição das matérias relacionadas a determinado políti-co dentro de um jornal. Se as matérias sobre ele estão sempre na página da direita, considerada a mais importante dentro do jornal; se vem na par-te superior ou inferior da página ou se está próxi-ma a certo tipo de matéria.

A análise de conteúdo pode ser utilizada na pesquisa de tirinhas na Web, com o principal obje-tivo de mapear as produções, que tipo de criação é mais frequente, a periodicidade da publicação, se há uma quantidade relevante de recursos multimi-diáticos disponíveis, ou até a localização regional das produções e da identificação dos criadores.

Descrição da pesquisa

Foram selecionados 104 blogs, entre os me-ses de outubro e novembro de 2011, que apre-sentavam tirinhas em suas publicações. Sabemos

que o universo de blogs que trazem tirinhas em seu conteúdo é mais amplo do que esse núme-ro, mas objetivamos retirar uma amostra dessas publicações para realizar um levantamento funda-mentado. Dentre os blogs, foram selecionados os que apresentavam, ao menos, postagens sema-nais e links para outros blogs. A partir das pági-nas mais conhecidas e mais acessadas, começa-mos a seguir um caminho pelas conexões entre os blogs, até que os links se esgotassem.

Ressaltamos que, apesar de alguns sites não terem sido inseridos nesta pesquisa, a amos-tragem selecionada escolhida por conveniência, por apresentar os melhores exemplos, apresen-tam representatividade suficiente para atender aos nossos objetivos - realizar um estudo sobre o desafio das tirinhas em coexistirem, tanto no suporte impresso quanto no digital, sem perder a sua identidade como gênero; procurar analisar o modo como estão sendo reconfiguradas nos suportes digitais e de que modo isso muda suas características; compreender como se ocorre a transformação do gênero, a partir de suas carac-terísticas essenciais; e identificar quais são as no-vas representações do cotidiano em seu discurso. Abaixo apresentamos alguns desses dados, sele-cionados de acordo com sua relevância.

Análise dos dados

Verificamos que o número de domínios par-ticulares, ou seja, aqueles terminados em: .com, .com.br, .org, entre outros, precisam ser compra-dos e correspondem a 59% dos blogs analisa-dos. Isso demonstra um investimento por parte dos blogueiros, que registram os seus domínios. Também percebemos que 10% deles apresentam domínios patrocinados, pagos por empresas que hospedam os sites em troca de acessos para os seus portais. Os gratuitos são aqueles em que os usuários não precisam pagar pelo seu domínio e hospedagem, geralmente fornecidos pelos sites Wordpress, Blogger ou Blogspot.

O formato padrão das páginas é de blogs, com 95% das ocorrências. Para ser considerada no formato de blog, a página precisa ter rolagem vertical, com as publicações1 dispostas por dia. O formato de tira única também foi percebido, mas com apenas 4% do total. Formatos mais

6. Conhecido na linguagem da internet como posts ou postagens.

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semelhantes aos sites, com publicações não dis-ponibilizadas na vertical e sem o caráter diário, caracterizam apenas 1% das páginas analisadas. Nenhum deles apresentou características de um portal, ou seja, com conteúdos de diversas áreas em seu layout7.

Em relação ao conteúdo dos blogs anali-sados, somente 29% sobrevivem com a publica-ção de tirinhas. Esses, geralmente, são feitos por desenhistas ou cartunistas que divulgam o seu trabalho. Poucos são os blogs exclusivos de tiri-nhas que se sustentam com apenas esse conteú-do; 71% dos blogs são publicações mistas, que se aliam às tirinhas com vídeos, textos, ilustrações, charges etc.

Cerca de 57% dos blogueiros são produto-res de tirinhas, que publicam produções inéditas em seu conteúdo, e 29% mesclam tirinhas inédi-tas e já publicadas. Ao comparar esses dois da-dos, percebemos que 86% deles são produtores culturais, que divulgam conteúdo autoral, com as suas visões em relação ao cotidiano. Apenas 14% desses blogs publicam tirinhas copiadas de ou-tros sites. Esse dado pode ser relativo, pois mui-tos dos blogueiros não divulgam as suas fontes nem informam se as suas tirinhas são copiadas ou traduzidas de outras páginas.

Observando o nome que os autores dão as suas produções, vimos que 56% as chamam de tirinhas, e 8% as confundem com o conceito de quadrinho. Mas 32% deles não informam qual o nome desse tipo de produção, e 4% dão outros nomes, entre eles, webcomics, desenho e ima-gens.

O formato da tirinha mais comum é o de leitura vertical, com 42% dos blogs que optam somente por esse estilo de publicação. A diagra-mação na vertical facilita a leitura nos blogs, mas influencia diretamente em sua visualização, já que parte dela encontra-se oculta, como no exem-plo da figura 17.

As tirinhas com formato clássico, na horizontal, correspondem a apenas 27% das publicações. Contudo, as produções com for-mato diferenciado chegam a compor 31% do total. Esse formato tanto apresenta quadros na horizontal, quanto na vertical, parecidos com as composições divulgadas no jornal nas

sunday pages8. Elas variam de tamanho e, ge-ralmente, têm quatro quadros, como apresen-tado Figura 18.

Quanto ao estilo da produção, ainda predo-mina, com 56% de ocorrência, a de tirinhas só com desenhos, que são produzidas utilizando-se diversos métodos e softwares diferentes, incluin-do mesas digitalizadoras que imitam uma folha de papel e transferem os movimentos do lápis para o computador.

Neste gráfico, vemos que 41% do total das tirinhas incorporam imagens digitais as suas produções, somando-se com aquelas que apre-sentam imagens digitais e desenhos. Essas ima-

7. O termo Layout, ou em português, leiaute, refere-se à diagramação e ao design da página, com sua hierarquia de informação. 8. Páginas de domingo, que geralmente apresentam composições com formatos diferenciados e mais quadrinhos que o normal.

Figura 17: Tirinha com diagramação na verticalFonte:http://capinaremos.com/files/2011/11/renato.gif

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gens, conhecidas como memes9, são copiadas de outras produções, ou printscreen de cenas de fil-mes e seriados, e aproveitadas para a elaboração das tirinhas. O uso desse recurso tem se tornado cada vez mais comum nos blogs que publicam ti-rinhas em seu conteúdo. Elas são oportunas para que possamos ver como a inteligência coletiva10 é construída dentro da blogosfera – através do com-partilhamento de elementos simples, que tornam acessível a criação de uma tirinha -, utilizando-se apenas o recurso de copiar e colar (ctrl+c e ctrl+v).

A tirinha da Figura 19 apresenta desenhos que são copiados de outras produções na inter-net. Diversos blogs compartilham essas imagens e aproveitam o desenho para criar novas histó-

rias. Elas também apresentam imagens copiadas de outros sites e portais, editadas para ajudar no entendimento da tirinha. Algumas das tirinhas di-gitais só fazem real sentido caso o usuário conhe-ça alguns desses memes. Sem o conhecimento prévio, adquirido, principalmente, com o acesso

Figura 18: Tirinha em formato diferenciado da sua de-finiçãoFonte: http://capinaremos.com/files/2011/11/suspense.jpg

Figura 19: Tirinha em cuja composição se utilizam memes .Fonte: http://assets.naointendo.com.br/ckeditor_assets/pictures/4ed7bb62494aa14e8200000c/Micro.jpg

9. A expressão memes significa, como afirma Brodie (2009), uma unidade básica de transmissão ou imitação cultural, que se constrói a partir de uma unidade específica e memorável e se propaga como um vírus (vírus da mente), que contamina as pessoas e influencia o seu comportamento, de modo que elas ajudem a perpetuá-lo e a disseminá-lo. 10. A inteligência coletiva, segundo Lévy (2000), pode ser compreendida como uma inteligência compartilhada por todos e em diversos lugares, buscando o reconhe-cimento e o enriquecimento mútuo das pessoas. Ela nasce através do compartilhamento de ideias e forma uma rede de comunicação e de inteligência que abrange todos os conhecimentos criados e adquiridos de forma individual e apresentados em um espaço comum.

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diário aos blogs, algumas tirinhas perdem o seu caráter humorístico, e a mensagem transmitida por ela fica parcialmente prejudicada.

Ao observar as tirinhas digitais que apre-sentam recursos multimiáticos, percebemos que podem ter mais de um recurso, mas constatamos que os recursos disponíveis na hipermídia ainda são pouco explorados nos blogs. 41 deles utilizam as fotos digitais e os memes; 23 hiperlinks, cinco animações, mas 51 não apresentam nenhum re-curso - as tirinhas desenhadas à mão livre, idênti-cas às produções dos jornais e das revistas.

Concluímos, então, que a tirinha ainda não sofre uma grande mudança em relação aos recursos multimiáticos e se mantêm iguais às ti-rinhas impressas. As produções digitais estão se adaptando a esse novo meio e é comum aparece-rem algumas inovações, mas elas não costumam se firmar, tendo em vista o seu sistema centená-rio de produção e veiculação. O mesmo pode ser constatado em relação aos quadrinhos que, mes-mo com algumas histórias completamente adap-tadas à hipermídia, o seu número, em compara-ção com as composições que seguem o formato do impresso, é bastante inferior.

Apenas 15 blogs não apresentaram nenhum link para as principais redes sociais. Já o Twitter representa a maioria das ocorrências, com 83 dos 104 blogs com links para as contas pessoais dos seus produtores. Esse microblog11 é a principal forma de divulgar sua produção e conta, muitas vezes, com mais seguidores do que com acessos ao próprio blog.

Podemos perceber, também, que o Face-book supera, com 48 ocorrências, o número de links para o Orkut. Até mesmo o Google +, que é uma rede social de criação recente, apresenta três ocorrências a mais que ele. O número do Face-book cresce, principalmente, pelo fato de integrar um modo de publicação que favorece a postagem de tirinhas no perfil do blogueiro.

Considerações finais As tirinhas são um gênero jornalístico opi-

nativo, consolidado dentro das páginas de jornal e de revistas, principalmente devido ao seu caráter

crítico e metafórico. Com o surgimento das no-vas tecnologias, não só a tirinha, como também todos os outros gêneros tiveram que se adaptar para acompanhar a rápida evolução das mídias digitais e encontrar novas formas de produção e veiculação, nunca antes vistas e exploradas.

Como Jenkins (2008) define, chegamos à era dos usuários, com produtores culturais cada vez mais descentralizados em relação aos gran-des meios de comunicação, interessados não ape-nas em assistir, mas em participar e compartilhar. Uma verdadeira mudança no modo como consu-mimos os meios de comunicação.

As novas tecnologias estão reduzindo o custo de produção e de distribuição, o que pos-sibilita que novos produtores surjam, procurando uma melhor forma de expor suas ideias. E com a produção ao alcance de todos, quem é que não vai querer produzir também? O número de blogs com produção de tirinhas tem crescido nos últi-mos anos, acompanhando o próprio crescimento da Blogosfera. Nesse levantamento, percebemos o quanto essas produções são diversificadas, des-centralizadas e com muitos aspectos pertinentes à internet ainda para serem explorados. Talvez, o baixo número de recursos multimidiáticos seja o dado que mais chame a atenção nesse levanta-mento preliminar, já que a interatividade, a ani-mação e outros recursos são características que fazem das produções veiculadas na internet dife-rentes dos originais publicados em papel.

A produção de tirinhas não está mais privi-legiada nas mãos de poucos. As ferramentas de criação e veiculação desse gênero proporcionam ao usuário criar uma forma de arte sequencial, sem que precise saber desenhar ou dominar os programas complexos de edição de imagem. Bas-ta ter apenas uma boa ideia.

Assim, o processo de criação na web tor-nou-se mais divertido e significativo. Estamos descobrindo novas estruturas de narrativas e aproveitando as lacunas deixadas pela indústria de produção de conteúdo. A internet é um lugar de experimentação e de inovação; um espaço criado pelos próprios usuários. E as tirinhas são o exemplo dessas novas possibilidades de criação e de veiculação nas mídias digitais.

11. O Twitter recebe a definição de microblog, por apresentar características semelhantes aos blogs, mas comportar postagens de apenas 140 caracteres.

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