resenha baumer cris2 impressao

21
1 UMA PEQUENA VIAGEM NO TEMPO - SÉCULOS XVII A XXI SÉCULO XVII - Indivíduo (o processo de atomização já vinha acontecendo antes do XVII): dupla acepção (Dumont): amostra individual da espécie humana & ser moral independente, autônomo, que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna. Holismo (ênfase no todo) & Individualismo (ênfase no indivíduo). Comunidades de pessoas (hierarquia naturalizada; castas; vertical idade) & Sociedades de indivíduos (horizontalização; classes) (Elias). - Identidade fixa, fechada, centrada na razão, cujo âmago consistia num núcleo que permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo (Hall). Com base nessa concepção identitária se forjaram as categorias duais, como, por exemplo, primitivo/ civilizado, centro/ periferia, etc. - Início do século: conjuntura política e econômica conturbada: limites territoriais deslocados constantemente (guerras e colonialismo). - Galileu Galilei (1564-1642) publica em 1638 “Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo: copernicano e ptolomaico", onde afirma verdadeiro o modelo heliostático de universo (Copérnico): retirada do homem do centro do universo. - René Descartes (1564 -1650): racionalismo: sistema segundo o qual a realidade, absolutamente inteligível, só poderia ser idoneamente apreendida através da razão. Na obra "Discurso do Método" descreve como encontrar a verdade crível por si mesma, acessível a todo pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o que se interponha para desviá- lo ou entorpecê-lo. Método: é possível conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente um sistema composto a evidências simples, claras e distintas: viabilidade de apreender o todo através da sua decomposição em partes. Sistema de pensamento com inclinação totalitária: redutor (a experiência sensível é enganadora), matemático (o "resto" é não-ciência), a verdade é única (negação da polissemia). Forneceu um critério classificatório da espécie humana (a razão): fulcro na igualdade (neutralização da diferença). Sistema fechado: estabilidade e intemporalidade. - Francis Bacon: empirismo: muito embora fosse o homem maleável, estivesse em transformação constante (movimento), existia uma espécie de estrutura universal das faculdades mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou seja, admitiam uma natureza humana original, que não mudava entre os integrantes da espécie (universal). Embora sua lógica tendesse, através da observação, à constatação do relativismo dos povos e indivíduos, os empiristas, em sua grande maioria, não chegavam a levar ao extremo tal verificação, contentando-

Upload: gabriela-feldens

Post on 01-Dec-2015

172 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Page 1: Resenha Baumer CRis2 Impressao

1

UMA PEQUENA VIAGEM NO TEMPO - SÉCULOS XVII A XXI

SÉCULO XVII

- Indivíduo (o processo de atomização já vinha acontecendo antes do XVII): dupla

acepção (Dumont): amostra individual da espécie humana & ser moral independente, autônomo,

que se encontra em primeiro lugar na ideologia moderna. Holismo (ênfase no todo) &

Individualismo (ênfase no indivíduo). Comunidades de pessoas (hierarquia naturalizada; castas;

vertical idade) & Sociedades de indivíduos (horizontalização; classes) (Elias).

- Identidade fixa, fechada, centrada na razão, cujo âmago consistia num núcleo que

permanecia essencialmente o mesmo ao longo da existência do indivíduo (Hall). Com base nessa

concepção identitária se forjaram as categorias duais, como, por exemplo, primitivo/ civilizado,

centro/ periferia, etc.

- Início do século: conjuntura política e econômica conturbada: limites territoriais

deslocados constantemente (guerras e colonialismo).

- Galileu Galilei (1564-1642) publica em 1638 “Diálogo sobre os dois máximos sistemas

de mundo: copernicano e ptolomaico", onde afirma verdadeiro o modelo heliostático de universo

(Copérnico): retirada do homem do centro do universo.

- René Descartes (1564 -1650): racionalismo: sistema segundo o qual a realidade,

absolutamente inteligível, só poderia ser idoneamente apreendida através da razão. Na obra

"Discurso do Método" descreve como encontrar a verdade crível por si mesma, acessível a todo

pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o que se interponha para desviá-

lo ou entorpecê-lo. Método: é possível conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente

um sistema composto a evidências simples, claras e distintas: viabilidade de apreender o todo

através da sua decomposição em partes. Sistema de pensamento com inclinação totalitária: redutor

(a experiência sensível é enganadora), matemático (o "resto" é não-ciência), a verdade é única

(negação da polissemia). Forneceu um critério classificatório da espécie humana (a razão): fulcro

na igualdade (neutralização da diferença). Sistema fechado: estabilidade e intemporalidade.

- Francis Bacon: empirismo: muito embora fosse o homem maleável, estivesse em

transformação constante (movimento), existia uma espécie de estrutura universal das faculdades

mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou seja, admitiam uma natureza

humana original, que não mudava entre os integrantes da espécie (universal). Embora sua lógica

tendesse, através da observação, à constatação do relativismo dos povos e indivíduos, os

empiristas, em sua grande maioria, não chegavam a levar ao extremo tal verificação, contentando-

Page 2: Resenha Baumer CRis2 Impressao

2

se em procurar o que era comum aos homens, pela via da observação e da experimentação dos

fatos (a posteriori).

- lsaac Newton (1642-1727) publica em 1687 "Princípios Matemáticos da Filosofia

Natural", onde definiu os princípios da gravitação universal (desvelando os movimentos dos seis

planetas conhecidos, das luas, cometas marés e equinócios, unindo a partir de uma única explicação

o planeta Terra a tudo o que podia ser visto no céu) e enunciou as leis do movimento dos corpos (a

partir de uma perspectiva de tempo linear, determinista e simétrica: conhecendo as condições

iniciais de um sistema, era possível calcular todos os estados seguintes, bem como os precedentes).

Tempo absoluto (igual para qualquer observador situado em qualquer lugar, desde que usasse

medidor preciso); espaço relativo (o movimento é um conceito relacional = Newton nunca aceitou

esta conseqüência de suas teorias).

- No XVII o "devir" não desalojou o "ser", e nem o desafiou seriamente (Baumer): o

pensamento, não obstante as inúmeras descobertas científicas e as profundas modificações,

continuou com ênfase no permanente, no fixo, no absoluto, na estabilidade, no universal, na

perfeição das idéias "eternas", entendendo a mudança como sinal de deleito ou irrealidade.

SÉCULO XVIII

- Início do século: ciências humanas eram desprestigiadas (método cartesiano de

constatações apriorísticas-dedutivas para as ciências exatas e empirismo baconiano das

constatações a posteriori para as ciências naturais). Giambatistta Vico (1668-1744) propõe o

método da "imaginação reconstrutiva" para as humanidades, através do qual se poderia chegar à

"realidade em transformação", que para ele é a história dos homens: partindo-se do estudo dos

meios de expressão (mitos, fábulas, monumentos, rituais, etc.), de como eles eram compreendidos

e interpretados por um grupamento humano, permitir-se-ia uma aproximação à realidade que eles

pressupõem e articulam. Espanto: isso não podia ser provado pelo método cartesiano! Opositor do

cartesianismo: valorização da imaginação, crítica da necessidade de certeza na ciência

(verossimilhança), operava com probabilidades.

- lluminismo: racionalidade, crença no progresso do conhecimento e no controle do

homem sobre a natureza, individualismo, vontade de secularização e de afastamento da

"obscuridade" da Idade Média, igualdade.

- Continuava-se acreditando na universalidade do homem (possibilitadora de uma

igualdade), mas agora se pensava que ele poderia aperfeiçoar-se através da educação disciplinada

pela razão (de modo que a perfeição era possível e provável, pelo desenvolvimento da inteligência

e da moral). Se o homem podia se modificar para melhor, era natural que também pensasse o

Page 3: Resenha Baumer CRis2 Impressao

3

mesmo do mundo: crença num projeto de aprimoramento para o mundo, efetivável pela ciência e

pela técnica, ambos produtos do logos. Crença no progresso linear em direção à perfeição, à ética e

à felicidade: o éden na terra.

- Sobretudo a partir da década de 80: Romantismo: reação contra o que se julgava a

"estreiteza" da filosofia, das ciências, das artes, derivada de um pensamento eminentemente

racional, mecanicista, geométrico, redutor, que fabricava modelos ideais com regras universais para

todos os planos da vida humana. Proclamava a existência de um espírito (componente) irracional

ou inconsciente (em um sentido mais metafísico do que cientifico), uma parcela de forças ocultas e

obscuras, incontroláveis, perturbadoras, mas também criativas: recusa do homem transparente,

racional, ordenado e cognoscível, previsível porque sujeito à regras universais.

SÉCULO XIX

- Romantismo & Neo-Iluminismo (razão; crença na humanidade "humanização de Deus";

progresso; culto à ciência = cientificismo; determinismo).

- Segunda metade do século: evolucionismo (vertente darwiniana), que acentuou o

sentimento de fluxo, de movimento, de impermanência. Acaso e espontaneidade banidos da

ciência: determinismo. Já se fazia sentir o movimento, mas ainda havia bastante conservadorismo:

sistema fechado, completo, dotado de leis fixas.

- Final do século: o racionalismo cientificista. Neo-Iluminista continuava forte, porém em

um número cada vez maior de pessoas crescia um sentimento de crise e se aguçava o espírito

crítico.

- Sigmund Freud: a teoria sobre o inconsciente corroeu a idéia de racionalidade

totalizadora. O cientista entendia essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar

consciente para que se pudesse formar um juízo correto do que é psíquico (última parte de "A

interpretação dos sonhos" - 1899). As mais complexas operações da psiquê residiriam no

inconsciente. Mas Freud era um moderno...: a ferocidade com que defende a ciência como única

forma de "encontrar a realidade" (rechaço à intuição, à religiosidade. e ao imaginativo - vide "O

futuro de uma ilusão''): crença no progresso da humanidade de uma barbárie instintual para uma

civilização racional, processo a ser conduzido pelos "mais capazes" (líderes); crença de que nada

poderia unir os homens de forma tão completa e firme quanto a submissão dos instintos dos

indivíduos aos domínios da razão ("'Por que a guerra?").

- Sentimento de desorientação, condenação à errância, angústia, absurdo, privação de

referências. Decadência que solapava o progresso, "o homem estava a sentir-se problemático"

(Baumer). Vide Edvard Munch ("O grito"), Sartre ("A náusea" = dor física e psíquica, embrulho

Page 4: Resenha Baumer CRis2 Impressao

4

no estômago causado pela percepção dessa gratuidade = todo ente nasce sem razão, se prolonga

por fraqueza, e morre por acaso) e Kafka.

- Henri Bergson: incorporou o movimento no pensamento cientifico; rompeu com a

dualidade físico/psicológico, apregoando que tais sistemas são solidários (o cérebro não é um lugar

especifico do corpo): o conhecimento ocorre com a atividade interpenetrada dos instintos e da

inteligência; papel da criatividade na produção da vida: bifurcações, tendências, cargas de

imprevisibilidade e de desordem inerentes ao sistema vital.

- Friedrich Nietzsche: atingiu os pilares da cultura moderna (identidade fixa, sujeito,

consciência, igualdade, moral, racionalidade, possibilidade de domínio da realidade através da

ciência, estabilidade), bombardeando tais cristalizações a ponto de tomar a forma de um complô:

não se limitando a diagnosticar a conjuntura da época, suas idéias serviram como instrumento de

intervenção, de deslocamento de perspectivas (Klossowsky).

SÉCULO XX

Albert Einstein: teoria especial da relatividade em 1905 (o tempo é relativo ao referencial

- na velocidade da luz o tempo pára); teoria geral da relatividade em 1916 (quatro dimensões

espaço-tempo (conotação integrada). Permaneceram, contudo, o determinismo e a simetria

temporal (apesar de seus cálculos indicarem que o universo estava em expansão, Einstein

introduziu uma "constante cosmológica" para que a sua teoria corroborasse a sua crença em um

universo estático).

- Werner Karl Heisenberg: princípio da incerteza (1927): as entidades subatômicas não

podem ter sua posição e velocidade medidas concomitantemente de forma absolutamente precisa.

Os resultados dos cálculos velocidade/ posição só poderiam ser expressos por meio de

probabilidades. E mais: a própria medição altera o resultado obtido. Durante muitos anos a física

presumira o determinismo dos processos da natureza e a precisão rigorosa de suas medições:

Heisenberg, através da mecânica quântica, inseriu a probabilidade e a incerteza no âmago da

compreensão do mundo natural.

- Primeira Guerra Mundial: 1914-1918: a racionalidade por tanto tempo compreendida

como "redentora", sustentáculo de um processo de desenvolvimento rumo ao éden, mostrou sua

faceta destrutiva.

- Segunda Guerra Mundial: a shoah não foi produto da irracionalidade humana. Gestão

burocrática da morte, visando a máxima eficácia, sob o apelo e o amparo cientifico: produção

programada de sofrimento.

- Bombas atômicas: 1945: dois Maracanãs de pessoas reduzidas a nada em alguns

Page 5: Resenha Baumer CRis2 Impressao

5

segundos.

E a atualidade?

- Complexidade: coexistência de elementos antigos e recentes, e não, tanto, a substituição

("superação") gradual de uns pelos outros: Rui Cunha Martins.

- "O tempo das tribos": Mafessoli.

- Sociedade do risco: Douglas e Beck.

- Homus complexus: Morin.

- Aceleração e vertigem da velocidade: Virilo.

- Prigogine e o universo de possibilidades (termodinâmica do não-equilíbrio); o caos que se

auto-organiza.

- Passar além das identidades originárias e puras para perceber que o humano se forma no

entre-lugar, no interstício, na sobreposição e no deslocamento dos domínios da diferença (Bhabha).

BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno: séculos XVII e XVIII. Vo1. 1.

(pp. 11-40.)

O objetivo a que se propõe o texto é permitir uma aproximação ao modo de pensar do

homem moderno (sobre como ele se via e como via o universo), para então tentar captar o

significado do próprio termo "moderno".

O texto está norteado por questões escolhidas por Baumer como fundamentais para a

discussão da modernidade: a visão que o homem tinha de Deus, da natureza, dele próprio, da

sociedade e da história.

Baumer não priorizou um campo de conhecimento ou o pensamento de determinados

indivíduos e ilustrou o texto com obras de arte para demonstrar que as idéias de um determinado

período transparecem nos trabalhos artísticos, o que comprovaria o fato de que as pessoas

partilham de um substrato de idéias comuns, isto sem desmerecer o potencial vanguardista da arte e

a capacidade visionária de alguns artistas.

A preocupação principal de Baumer é compreender a história, ficando por detrás dos

homens, captando suas idéias. Neste sentido busca-se romper com a tendência à história meramente

política, pois, para o autor, uma análise posta unicamente nesses termos resultaria no desprezo das

"forças impessoais que governam o mundo", isto é, das doutrinas e idéias que impelem as coisas

para certas conseqüências. O que se busca é entender o movimento das idéias, percebidas por

Baumer como causas e não como efeitos dos acontecimentos.

A História das Idéias cresce durante o século XIX muito ligada à História Política em

Page 6: Resenha Baumer CRis2 Impressao

6

função da importância à época crescente dos Estados e do mundo político. O interesse pela História

das Idéias aumentou consideravelmente no final do século XIX por razões diversas: a) A História

das Idéias se beneficiou da luta entre historiadores da política e historiadores da cultura (que

exigiam uma espécie mais lata de história, que englobasse todos os aspectos da "civilização", tanto

intelectuais como materiais e políticos); b) A História das Idéias se beneficiou da "revolta contra o

positivismo" que tomara lugar à época, insurreição esta pautada num desafio ao determinismo

científico reinante, e na afirmação da influência decisiva, no comportamento humano, das idéias

concebidas livremente pelo espírito; c) A História das Idéias se beneficiou ainda do que sustentava

o filósofo Wilhelm Dilthey, no sentido de que as ciências humanas proporcionam um meio muito

melhor para a compreensão da realidade histórico-social e, por conseguinte, da natureza do

homem, do que as ciências naturais.

Baumer afirma que Dilthey fez do espírito humano e das suas idéias o fulcro da história,

alargando o seu campo para incluir não só o pensamento racional, mas também os produtos da

imaginação e vontade humanas, personificados na literatura, na arte, na religião, assim como na

filosofia e na ciência.

A História das Idéias estabeleceu-se firmemente no século XX. No período político

carregado das décadas de 30 e 40, as idéias embateram mais violentamente do que em qualquer

outro período da história, movendo homens e exércitos.

A História das Idéias oferece uma tentativa de estancar a fragmentação contínua do

conhecimento que acometeu a cultura ocidental, e que atualmente chegou a proporções alarmantes.

A História das Idéias não é assunto para espíritos altamente compartimentados. Ela abre portas nos

muros que a especialização levantou entre as seções de conhecimento, apregoando que os ramos do

saber devem ser constantemente interelacionados. Procura compreender o pensamento no conjunto

concreto de uma situação histórico-social fora da qual o pensamento individual diferenciado só

muito gradualmente emerge.

A História das Idéias ainda carece de uma definição mais clara: seu conteúdo, sua

metodologia, e, principalmente, seus pressupostos sobre o processo histórico das idéias,

permanecem ainda um tanto nebulosos e vagos.

Em certa medida, o termo "idéia" é elástico e pode referir-se desde ao pensamento de uma

pequena elite até o de toda a gente. A História das Idéias difere da História Política, Social ou

Institucional. Concentra-se nas idéias dos homens, no "mundo interior do pensamento". Pretende

ser mais vasta que uma História da Filosofia, mas não tão vasta que inclua a cultura popular, pelo

menos não fundamentalmente. A História das idéias não está limitada ao pensamento dos

talentosos (mentes privilegiadas), que normalmente encontramos na História da Filosofia. Está

mais interessada nas idéias que alcançam grande difusão, entendida sob dois aspectos: a) difusão

Page 7: Resenha Baumer CRis2 Impressao

7

para além de um departamento do pensamento (a História das Idéias é interdepartamental por

excelência); b) difusão para além dos indivíduos, através de grupos e segmentos significativos. A

História das Idéias busca ir além do pensamento privado e chegar ao público, aos estados de

espírito coletivos.

A História das Idéias não se ocupa exclusivamente das idéias claras e distintas

(pensamento racional), possuindo como objetivo principal a descoberta de uma classe de idéias que

subjazem e condicionam todo o pensamento formal. Estes são os pressupostos fundamentais, as

pré-concepções que os homens absorvem, quase por osmose, do seu ambiente mental, e de que não

estão freqüentemente de todo conscientes ou raramente mencionam, uma vez que as tomam como

garantidos. Isso significa que, mesmo operando em grande parte no ambiente do pensamento

racional, a História das Idéias também lida com idéias que mais podem ser chamadas crenças ou

convicções. Segundo Ortega y Gasset, há idéias que são apenas pensamentos, e idéias em que

também se acredita. As últimas, porque empenham não apenas o mecanismo intelectual, mas a

personalidade inteira, fornecem a chave para o pensamento mais íntimo de um povo numa época.

Os intelectuais desempenham o papel principal na História das Idéias, porque possuem a

capacidade de refletir com acuidade, articular melhor as idéias das pessoas da sua época, mas,

também, pela sua capacidade de aperfeiçoá-las.

A História das Idéias não nega que os agentes insensíveis, ou seja, os acidentes naturais,

as mudanças de população, etc., desempenhem um papel importante na história. Porém, segundo

Baumer, é necessário entender que a história não pode ser reduzida a causas mecanicistas, e que

os homens raramente agem de um modo decisivo na história, a não ser sob o estímulo de idéias

gerais que representem valores, objetivos e utopias.

A História das Idéias concentra-se essencialmente nas respostas às questões perenes, que,

conforme Baumer, são questões que o homem levanta mais ou menos continuamente em todas as

épocas e por todas as gerações. Tais questões correspondem às perguntas mais profundas que o

homem pode trazer acerca de si mesmo e do seu universo. Questões que versam sobre Deus, a

natureza, o homem, a sociedade e a história.

1 - Deus: existe? Quais seus atributos? Como relaciona-se

com o homem?

2 - Natureza: refere-se ao mundo físico ao redor do homem.

Mundo não cultural.

3 - Homem: o que é? O homem é sui generis ou é melhor

compreendido quando assimilado à natureza como animal? O

que é mais importante no homem, a natureza ou a educação?

Page 8: Resenha Baumer CRis2 Impressao

8

Ele pode ser condicionado pelo meio? Qual sua principal

característica? O desejo? O pecado? O sexo? A

agressividade? A morte? O espírito? Ou a liberdade? Se for

esta última, será um dia o homem senhor de sua natureza e

História?

4 - Sociedade: o que a regula? A tradição? Deus? A razão? A

lei natural? Ela é uma máquina? Ela vai ser secularizada um

dia?

5 - História: é significativo o passado? Deve-se libertar dele?

O processo histórico tem significado? Existe uma direção

para a história? Espiral? Linha reta? Em círculos? É vontade

de Deus ou do homem?

Se não houve uma resposta definitiva para as questões perenes, é uma indicação que o que

as rege é o fluxo e as permanências.

Ao longo da modernidade européia, o que se percebe é a ultrapassagem do "ser" pelo

"devir" como categoria mais importante do pensamento. Isso engloba um modo de pensar a

natureza, o homem, a sociedade, a história e Deus, não somente como mudando, mas também

evoluindo para algo diferente e novo. A passagem do "ser" ao “devir" é a transferência do interesse

do permanente para o mutável, a crescente colocação dos absolutos e das idéias eternas em dúvida.

Este sentido de "devir" está no núcleo do que chamamos de espírito moderno, nascido com

as descobertas do além-mar e através da ciência nova, que evidenciaram o atributo mais evidente

do cosmos, qual seja, a sua impermanência.

A verdade é que mudamos sem cessar, e que o próprio estado não é senão mudança. Todas

essas mudanças somente foram aceleradas com as revoluções: Francesa, industrial, tecnológica,

mecânica, elétrica.

O "devir" é uma concepção explosiva que fragmenta o universo. Antagonicamente,

produz a possibilidade de navegação em mares largos e, por outro lado, a depressão de viver num

universo em eterna mudança. Para Baumer, os espíritos modernos, estavam ao mesmo tempo

admirados pelas expectativas e possibilidades, e exaustos pela falta de estabilidade e de certezas. A

civilização exige um meio termo: um amálgama entre o "ser" e o "devir'": o segundo para garantir a

critica constante, e o primeiro para proporcionar uma continuidade e uma direção.

Page 9: Resenha Baumer CRis2 Impressao

9

(pp. 41-182):

SÉCULO XVII

O pensamento europeu ocidental, segundo Baumer, experimentava no início do século

XVII um período de difícil definição, dados os contrastes e polaridades vividos no período. A

conjuntura política encontrava-se extremamente conturbada. Na Europa ocidental do século XVII

os limites territoriais foram deslocados inúmeras vezes, e através de guerras que perduraram

durante longos períodos de tempo. Da mesma forma, o confronto de interesses econômicos entre

os países, em especial os decorrentes da ambição pela manutenção de colônias ou pela conquista

deste tipo de mercado fornecedor de matérias-primas baratas e consumidor de produtos

elaborados, repercutiu enormemente nas condições de vida dos europeus do ocidente. Do ponto de

vista interno dos países, a agitação derivada da contraposição de interesses de grupos sociais e

econômicos, além das divergências religiosas, tomaram o século XVll pródigo em revoluções

intestinas. Na arte, verificava-se a oposição entre os estilos Clássico e Barroco. O Racionalismo e

o Empirismo disputavam a supremacia como modelo para atingir o conhecimento.

Apesar disso, na visão de Baumer, o XVII é o primeiro século "moderno", sendo as razões

para tal rotulação em grande parte psicológicas: os indivíduos. em número cada vez maior

começaram a pensar em si como "modernos", distintos dos “antigos" (Idade Média), como fazendo

algo historicamente novo (inaugurando uma nova época do pensamento). Adverte Baumer, no

entanto, que embora seu número tenha crescido considerável e constantemente, no XVII os

"modernos" eram ainda uma minoria.

Em relação ao panorama científico-cultural europeu ocidental, o século XVIl foi

vivenciado pelo homem como momento paradoxal de grande excitação, expectativa e

deslumbramento com as importantes descobertas científicas, mas igualmente de medo e

perplexidade pelo abalo da estabilidade e certeza, além de exaustão ocasionada pela urgência na

adaptação. A ciência experimentou notável desenvolvimento no século XVlI, produto do

conhecimento adquirido ao longo do tempo precedente, mas também da genialidade de alguns

homens que viveram aquela época.

No ano de 1638 o astrônomo e matemático Galileu Galilei (1564-1642) publicou a obra

"Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo: copernicano e ptolomaico" (Dialogo sopra i

due massimi sistemi deI mondo: Tolemaico e Copernicano), onde afirmava verdadeiro o modelo

heliostático de universo defendido pelo padre polonês Nicolau Copérnico (1473-1543),

contestando a imagem do cosmos proposta por Aristóteles (384-322 a.c.) e Claudius Ptolemaeus

(Ptolomeu, 87-150 d. C.), que vigorara, com poucas modificações, por bem mais de um milênio.

Tal acontecimento surtiu grande efeito sobre as pessoas da época, pois a teoria copernicana

Page 10: Resenha Baumer CRis2 Impressao

10

reivindicava a retirada do homem do centro do cosmos, ao postular que o Sol, e não o planeta

Terra, encontrava-se próximo do centro do universo.

A contribuição de Isaac Newton (1642-1727) foi de inestimável importância para a

revolução científica em curso desde o século XVI. Formulou os princípios da gravitação universal

e definiu as leis do movimento e da atração na obra "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural"

(philosophia Naturalis Principia Mathematica), publicada em 1687. Através da lei da gravitação

universal desvelou os movimentos dos seis planetas conhecidos, das luas, cometas, marés e

equinócios, unindo a partir de uma única explicação para o planeta Terra a tudo que podia ser visto

nos céus. Três leis contidas na primeira parte do Principia descreviam o movimento dos corpos, a

partir de uma perspectiva de tempo linear, determinista e simétrica: conhecendo as condições

iniciais de um sistema, era possível calcular todos os estados seguintes, bem como os precedentes.

Passado e futuro desempenham, no sistema newtoniano, o mesmo papel, pois as leis são

invariantes em relação à inversão dos tempos (t- e -t).

Para Newton, o tempo era absoluto: acreditava ser possível medir sem ambigüidade o

intervalo de tempo entre dois eventos; esta medida seria a mesma para qualquer observador situado

em qualquer local, desde que fossem usados marcadores precisos. No entanto, as leis newtonianas

revelavam a ausência de um padrão absoluto de repouso, o que implica na impossibilidade de se

determinar se dois eventos que ocorreram em diferentes momentos tiveram lugar na mesma

posição no espaço. Em outras palavras, o espaço, como inferido das proposições de Newton, não é

absoluto, e o movimento é um conceito relacional. Newton não foi capaz de aceitar essas

conseqüências de suas teorias, porque não estavam de acordo com a sua idéia de um Deus absoluto:

o cientista preferiu negar por toda a vida a relatividade do espaço.

Assim, a questão da Natureza tomou-se central graças em grande parte as revoluções de

Copérnico, Galileu, e Newton. Cada uma produzindo reflexos específicos, mas tendo em comum

a potencialização do poder do homem não somente sobre a natureza, mas também sobre a

sociedade: crescia a idéia de que o homem poderia submeter a história aos seus desígnios.

As idéias de René Descartes eram muitíssimo importantes na época: formavam um

substrato sobre o qual se assentou grande parte do pensamento do XVII (e também, como se verá,

dos séculos seguintes).

O racionalismo transparece nas idéias de Renatus Cartesius (René Descartes, 1596-

1650), filósofo francês, em especial na sua busca por uma verdade apodíctica, crível por si

mesma, “acessível a todo pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o que

se interponha para desviá-lo ou entorpecê-lo", e da qual em cadeia se deduzam as verdades

restantes. Para Descartes, é possível conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente

um sistema composto a evidências simples, claras e distintas. Este método significa a viabilidade

Page 11: Resenha Baumer CRis2 Impressao

11

da apreensão do todo através da sua decomposição em partes, e a existência de uma lógica

subliminar que explica o funcionamento do mundo, e que pode ser alcançada pelo homem através

da razão. Há, na filosofia cartesiana, a crença de que o homem alcançou pela primeira vez uma

segurança intelectual completa, a confiança de que todo o conhecimento é atingível sempre que

se utilize o método conveniente, como se tosse este a chave de uma linguagem.

O racionalismo estava amplamente arraigado nos homens do século XVll, permeando seu

modo de entender a sociedade, a economia, a ciência, e ainda a forma de lidar com a diferença,

com a intersubjetividade. Como percebe GAUER, o racionalismo edificou o paradigma

dominante da época moderna: "a deusa razão, estruturou a igualdade, eliminou a diferença em

nome dessa igualdade e do progresso da humanidade".

O racionalismo desmerecia a diferença ao duvidar da experiência sensível inquinando-a

de enganosa, anulando, por conseguinte, a pluralidade de verdades e a polissemia próprias da

subjetividade. Só a razão, veiculada pelo método correto, expressão da igualdade dos homens,

seria capaz de encontrar a única verdade, longe da qual não se reconheciam outras possibilidades

de compreensão da realidade. A racionalidade se regozijava com a estabilidade e a

intemporalidade: em seu sistema a natureza humana não mudava, seria a mesma em todos os

tempos e lugares (imutável e universal). Por conseguinte, não era comum, no século XVII, a

visão historicista do homem, sua auto-compreensão como produto da história, como parte de uma

natureza formada e reformada incessantemente no tempo e no espaço.

Os empiristas (ex vi um de seus expoentes, Francis Bacon), partidários da outra grande

corrente de pensamento do século XVII, salientavam que muito embora fosse o homem maleável,

estivesse em transformação constante (movimento), existia alguma espécie de estrutura universal

das faculdades mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou seja, admitiam uma

natureza humana original, que não mudava entre os integrantes da espécie (universal). E não

obstante sua lógica tendesse, através da observação, à constatação do relativismo dos povos e

indivíduos, os empiristas, em sua grande maioria, não chegaram a levar ao extremo tal verificação,

contentando-se em procurar o que era comum aos homens, pela via da observação e da

experimentação dos fatos.

Assim, sob vários aspectos, o que se percebe ao longo do XVII é a substituição de um

conhecimento contemplativo, meramente especulativo (Aristóteles, Agostinho = salientavam o

conhecimento em si), por um conhecimento também voltado para a ação, utilitário (Francis Bacon

e René Descartes), a fim de "alargar os limites do império humano e torná-lo o senhor da

natureza". Como escreveu Descartes no "Discurso do Método": "tem-se de produzir uma filosofia

para uso das cidades e não para o isolamento das escolas".

Em relação à natureza, existia uma visão teológica (natureza como criada por Deus, dada,

Page 12: Resenha Baumer CRis2 Impressao

12

perfeita, imóvel, que deveria prestar-se somente à observação) à qual foi se somando a concepção

mecanicista (natureza como grande máquina ou relógio, que funcionava mecanicamente em

obediência a leis naturais invariáveis). O mecanicismo existia menos puramente do que misturado

à concepção teológica. Não raro continuava-se a acreditar em uma causa primeira (Deus),

colocando-a, contudo, fora do mundo, ao qual era permitido funcionar com base nos princípios

mecanicistas. Situava-se o relojoeiro num lugar seguro, viável, defensável e que atrapalhava o

experimento o mínimo possível.

Como acentua Baumer, apesar do aumento do "fascínio" pela natureza, as questões

religiosas conservaram um lugar proeminente no espírito do homem do XVII. Os cientistas, de um

modo geral, não eram hostis nem indiferentes à religião. Pelo contrário, viam a ciência como um

empreendimento religioso. Os principais debates quanto à religião eram aqueles em que opunham

os racionalistas e os partidários das várias vertentes do ceticismo. Para os racionalistas, que

confiavam no poder da razão para provar a existência de Deus e a sua essência, o “criador” dava

unidade ao sistema. Boa parte dos tratados do período se destinavam a provar a existência de Deus.

Mas a tendência, segundo Baumer, era limitar cada vez mais a Teologia a uma esfera

restrita da fé e da moral (como apregoava Francis Bacon, por exemplo): a Teologia, embora ainda

conservasse o prestígio, perdera a sua superioridade sobre a ciência. O século XVII não foi uma

época comparável, em intensidade religiosa, ao século precedente da Reforma. Obviamente a

Teologia não mais permanecia no centro do pensamento, mas, por outro lado, não havia ainda sido

forçada à defensiva, como aconteceu mais tarde, no lluminismo do século XVIII.

De acordo com Baumer, o homem do XVII se via ao mesmo tempo como "miserável" e

"grandioso". "Miserável" porque controlado pelo pecado, ou, de forma mais secular, porque

geralmente enganador, vaidoso e injusto, incapaz de controlar as suas paixões. “Grandioso" porque

tinha consciência da própria '"miserabilidade", e, principalmente, pelo poder racional que lhe

conferia crescente domínio sobre a natureza.

Das duas visões, a pessimista predominava no início do século. Com o passar dos anos a

ênfase se deslocou para o otimismo, em especial pela influência dos raciona listas (Descartes:

Locke, no plano político), que tinham fé inabalável na razão como forma de tornar o homem senhor

de suas paixões, e de empiristas como Francis Bacon. Restava claro para os otimistas que grandeza

humana e racionalidade estavam ligadas diretamente: a queda que teria levado o homem à desgraça

era basicamente uma ausência temporária de razão.

No entanto, estas duas antropologias (pessimista e otimista) tinham em comum a visão

clássica da natureza humana que permeou o XVII: viam-na como fundamentalmente idêntica em

todos os tempos (imutável) e lugares (universal). Não existia o sentido de homem como produto da

história, formado e reformado incessantemente no tempo e no espaço (historicismo).

Page 13: Resenha Baumer CRis2 Impressao

13

O Século XVII contribuiu para desenvolver um pensamento político que se poderia chamar

de moderno. Tais contribuições devem, segundo Baumer, ser buscadas em idéias novas como

soberania, estado secular, direitos do homem, enfim, categorias que iriam rapidamente apontar

para uma estrutura de governo racional. Ver idéias políticas de Hobbes e Locke (contratualismos).

Resta tentar perceber que o século XVII testemunhou a mudança da forma como o homem

encarava o passado, o presente e o futuro, enfim, uma modificação de perspectiva no que diz

respeito à história. Tais debates ficaram conhecidos como a querela dos “antigos” e “modernos”. O

movimento foi no sentido de uma visão mais secular, mais crítica das épocas passadas, e mais

otimista quanto ao presente e ao futuro (em direção à concepção histórica "progressista" advogada

pelos "modernos").

Foi preciso, contudo, para atingir esta concepção "moderna" uma longa marcha passando

pelo paulatino abandono das idéias de “decadência histórica" e de "ciclos históricos" em voga no

início do XVII. De qualquer forma, no final do XVII a idéia de "degeneração" ainda tinha alguns

adeptos, e da mesma forma a idéia de “história cíclica". Mas o "ânimo" do "progresso" havia sido

plantado no ideário dos homens durante o seiscentos, especialmente pelos cartesianos e

baconianos, que viam na ciência um "caminho", e que exultavam pelas aquisições do presente.

Inicia-se aqui uma longa caminhada que iria acabar gerando o devir nas ciências, mas que

no XVII, ainda desenvolvia seus primeiros passos. Dito de outra forma, se o século XVII

testemunhou transformações muito importantes no modo como as pessoas compreendiam o mundo,

na visão de Baumer o "devir" não desalojou o “ser”, e nem sequer o desafiou seriamente, como

uma categoria maior de pensamento. Isto significa que as reflexões, inobstante as progressivas

modificações, continuaram com ênfase no permanente, no fixo, no absoluto, no final, na

estabilidade, no universal, e na perfeição das idéias "eternas", entendendo a mudança como sinal de

defeito ou irreal idade. Esta negação do movimento e da transformação retratava não só a

concepção newtoniana de tempo absoluto, mas também a impossibilidade de assimilação, por parte

dos homens do seiscentos, da mudança e da imprevisibilidade em seu sistema filosófico, que

acreditavam lógico, completo e hermético.

(pp. 163-283):

SÉCULO XVIII

A questão da natureza agora já não era tão perturbadora quanto no XVII de Galileu e

Newton. A Teologia declinou mais em prestígio, mas isso não significa que a indiferença religiosa

fosse a marca do século XVIII, e sim que o ânimo anti-religioso era a tendência nesse século. Se o

sobrenatural parecia mais duvidoso e remoto, o natural parecia mais familiar e mais instigante:

Page 14: Resenha Baumer CRis2 Impressao

14

assim, a questão do homem (e as questões relacionadas com a. sua organização social, política, e a

sua história) tomaram-se muito importantes. O homem foi colocado no centro das discussões

intelectuais: a Antropologia tomou-se a nova rainha das ciências (destituindo a filosofia naturalista

do XVII). Cultura com pretensão secular sempre crescente.

A uniformidade da natureza humana era ainda uma noção comum no XVIII. A maior parte

dos pensadores do XVIII não tinha compreendido a idéia de natureza humana histórica, que

mudasse consoante o tempo e lugar. Acentuação da uniformidade, e não da singularidade ou da

mudança da natureza humana, expulsão do relativismo histórico. Até os empiristas, que pensavam

que o homem era maleável, pressupunham alguma espécie de estrutura universal das faculdades

mentais sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar: natureza humana original, que não

mudava entre os integrantes da espécie (era universal).

O que nasce no mundo é um esboço inacabado, sem caráter, é a impressão que faz o

homem. Não se nega as idéias inatas e as constituições originais, o que possibilita a afirmação de

uma igualdade básica humana, e a onipotência da educação para formar o espírito e o caráter.

Assim, a perfeição era possível, e mesmo provável, através da educação, que se acreditava

desenvolver a inteligência e a capacidade moral aperfeiçoando a espécie humana. LEMBRAR:

igualdade na origem: diferença pela educação: ligação entre ambientalismo (formação da pessoa

através de experiências) e perfectibilidade: a natureza fez o homem suscetível à experiência, e

assim cada vez mais aperfeiçoável.

Homem moral: o homem nascera, se não bom, ao menos com um instinto ou faculdade que

tornava possível uma vida virtuosa e em sociedade. Há aí uma intima ligação dessa moral com a

razão: a razão, além de elaborar as regras morais, era o que fazia com que o homem as cumprisse.

Por isso o temor do "povo", das classes mais baixas, consideradas ferozes e irracionais, e

provavelmente para além da esperança da ilustração.

Percebe-se então que a uniformidade da natureza humana ainda era uma noção comum no

século XVIII: acreditava-se que o homem nascia dotado de razão, de um sentido de moral, de

consciência, ou seja, não se negavam as idéias inatas e as constituições originais, possibilitadoras da

afirmação de uma igualdade básica humana. Mas atribuía-se ao homem a capacidade de se

aperfeiçoar através da educação, de modo que a perfeição era possível, e até mesmo provável, pelo

desenvolvimento da inteligência e da moral. Se o homem podia modificar-se para melhor, através

de uma educação disciplinada pela razão, era natural que se considerasse apto a executar também

um projeto de aprimoramento para o mundo, efetivável pelo desenvolvimento técnico e científico,

pelo controle do meio natural, pela organização social, todos produtos do mesmo instrumento: o

logos.

A crença no perpétuo progresso linear em direção à perfeição, à ética e à felicidade, que

Page 15: Resenha Baumer CRis2 Impressao

15

encontrou larga aceitação entre os europeus ocidentais a partir de meados do século XVIII,

notadamente nos anos que antecederam a Revolução Francesa (quando parecia prenunciar-se uma

grande mudança das trevas para a luz), estava inscrita em uma concepção de história universal

(expansão em direção à um ideal, que contém uma norma para a raça humana como um todo),

porém etnocêntrica, Baumer afirma que os europeus colocaram o seu continente no centro desta

história universal, e chamaram a si o atributo de dirigentes da revolução mundial, eis que haviam

sido os primeiros a ver a luz - a luz da ciência - que tomou possível o Iluminismo, Por este motivo

estavam convictos que poderiam levar à América, e depois para a Ásia e para a África, os princípios

e o exemplo da liberdade, da iluminação, e da razão européia.

A racionalidade, a crença no progresso do conhecimento e no controle do homem sobre a

natureza, além de um individualismo pretensamente secular, pautaram o pensamento "esclarecido"

no século XVIII, O Iluminismo tinha como meta “Iibertar o indivíduo das algemas que o

agrilhoavam: do tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra sobre o

mundo, da superstição das igrejas (distintas da religião "racional" ou “natural"), da irracionalidade

que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o

nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida. a

fraternidade de todos os homens eram seus slogans. No devido tempo se tomaram os slogans da

Revolução Francesa."

Nos primórdios do século XVIII o estudo das humanidades encontrava-se bastante

desprestigiado, muito em função do predomínio das concepções descartianas, que relegavam

aquela espécie de conhecimento ao status de miscelânea de informações periféricas e de reduzida

importância, que não deveriam ocupar mais do que alguns minutos do tempo dos homens

racionais. O conhecimento válido e proveitoso só poderia ser obtido através da aplicação do

método enunciado em seu "Discurso" (no qual, aliás, Descartes destila falta de apreço pelas

humanidades), reduzindo-se o problema à categorias estanques claras e distintas, e, a partir da

resolução do simples, ascendendo-se progressivamente até os problemas mais difíceis, a fim de

assim alcançar a verdade. Esta noção de conhecimento verdadeiro encontrava-se fortemente

arraigada no modelo matemático, tanto que as humanidades sofreram à época sucessivas tentativas

de imposição de métodos próprios às ciências naturais e exatas, que aos seus objetos eram

freqüentemente inadequados.

É nesse contexto que Giambattista Vico (1668-1744) reivindica prestígio às ciências

humanas, visando retirá-las dessa posição subalterna. O napolitano não discorda da importância e

da validade dos conhecimentos matemático e natural, porém, ao lado de tais categorias

tradicionais, e de seus próprios métodos (a priori-dedutivo e a posteriori-empírico), propõe se

agregue uma nova modalidade de conhecimento, as humanidades, com o método da "imaginação

Page 16: Resenha Baumer CRis2 Impressao

16

reconstrutiva", através do qual se poderia chegar à uma "realidade em transformação", que

conforme Vico é a história dos homens, partindo-se do estudo dos meios de expressão

(sistematicamente em mutação) de um grupamento, e procurando perceber a visão de realidade

que eles pressupõe e articulam.

Exatamente por entender o valor dos meios de expressão de um povo como elemento

possibilitador de uma aproximação, Vico, de forma absolutamente vanguardista, pugnou pelo

exame criterioso dos mitos, das fábulas, dos monumentos e dos rituais, não como fantasias

absurdas ou invenções deliberadas das pessoas (entendimento que prevalecia em seu tempo), mas

como meios de transmissão de uma visão coerente do mundo, da forma como este era

compreendido e interpretado por um determinado grupamento humano. Esta proposta foi recebida

com espanto por grande parte dos cientistas de seu período histórico, não apenas porque a análise

dos mitos não podia ser provada segundo o modelo de ciência cartesiano, mas principalmente

porque conferia distinção à elementos "obscuros", "fantasiosos", "instintuais", "primitivos",

"impuros", "limítrofes", tomando-os como chaves para o conhecimento, num momento em que o

pensamento estruturava-se em uma pretensa segurança fornecida pela assepsia e clareza do método

científico dominante.

Vico afirmava também que a memória era perpassada pela imaginação, e por óbvio uma

teoria do conhecimento com tais características não poderia trabalhar com uma categoria absoluta

como a verdade. Assim, o filósofo italiano lidava com verossimilhanças, que se situavam entre o

verdadeiro e o falso, operando no campo do provável. Por estas razões Giambattista Vico se

contrapôs de forma expressa ao racionalismo cartesiano, que para ele não passava de despotismo

pedagógico, supressor de outras faculdades de desenvolvimento mental (imaginação, por

exemplo), e de outros métodos também úteis para auferir conhecimento: "a mente humana, quando

se submerge na ignorância, faz de si mesma a regra do universo".

Criticava ainda o cartesianismo em outros três aspectos: Vico apregoava que o sujeito só

poderia conhecer e demonstrar logicamente as suas próprias obras, de forma que o homem, não

havendo criado a si próprio, não poderia se conhecer, assim contrapondo-se a Descartes, por

sustentar de que o cogito é apenas a consciência, e não o conhecimento do ser humano. Por razões

análogas o filósofo refutava a demonstração aprioristica da existência de Deus proposta pela

metafísica cartesiana: se Deus não foi criado pelo homem, então a existência daquele não poderia

ser logicamente demonstrada por este. Por fim, Vico negava que as idéias claras e distintas

constituíssem critério universal de verdade, asseverando que a sua refutabilidade advém do fato de

que elas são produtos humanos: assim, o que foi por muito tempo apreendido como verdadeiro

poderia se tomar falso por uma simples modificação no sistema pelo seu criador.

Duas concepções sobre o funcionamento da natureza distinguiram-se no XVIII: a estática

Page 17: Resenha Baumer CRis2 Impressao

17

e a dinâmica. A primeira teve primazia até mais ou menos a metade do XVIII. A partir de então, o

fluxo das idéias corre em direção ao segundo sistema.

Ernest Cassirer afirma que, no XVIII, estava a surgir uma nova concepção de natureza,

que não mais procurava derivar e explicar a existência a partir do ser (estática: produto de Deus),

mas sim a partir do devir (dinâmica: produtos de leis naturais). Isto é rigorosamente correto, estava

a surgir, mas não era ainda dominante, como seria no século seguinte. A última década do século

XVIII marcou a publicação de alguns trabalhos transformistas notáveis, mas a tônica do séc. XVIII

foram as concepções estática (Lineu) e dinâmica não transformistas. VER que a concepção

dinâmica não impõe, necessariamente, uma visão transformista (que é a idéia de que a natureza é

dinâmica, se transforma, e está em desenvolvimento, em evolução). Este transformismo é o

precursor da teoria da evolução.

O interesse pelas questões políticas e sociais aumentou consideravelmente durante o

século XVIII, em parte porque a política e a economia política eram consideradas ramos da ciência

do homem. Aplicação de métodos científicos aos estudos sociais.

Debates entre os naturalistas e os utilitaristas. Naturalistas: leis universais, invariáveis,

anteriores a todas as convenções, que não podiam ser mudadas pelo soberano. Os utilitaristas

denunciaram o apelo dos revolucionários franceses à lei naturalista, opondo a ela o utilitarismo.

Direitos imprescritíveis, supostamente impressos na mente de todos os homens e protegidos pelo

contrato social ou político eram disparates metafísicos. As questões políticas deveriam ser

discutidas não através de um apelo à deusa natureza, que era ficção, mas em referência à utilidade.

Utilidade significava, simplesmente, preocupação com o bem estar geral, com a felicidade dos

indivíduos e das comunidades, e obviamente, só podia atingir-se experimentalmente (pela

experiência). Com o curso dos tempos, mas de certo não antecipadamente, devia ser possível

deduzir algumas proposições gerais na política. Embora o utilitarismo abrisse as portas para o

relativismo político, observa-se que nenhum utilitarista do XVIll levou o utilitarismo à sua

conclusão lógica. Todos procuravam o universal na vida política, ainda que peja via da

experimentação, embasados numa natureza humana comum (mais ou menos as mesmas

necessidades, prazeres e dores). Verifica-se uma primazia no XVIII para os utilitaristas. Mas ainda

tinha muito de naturalismo: a Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem (em que

os direitos se podiam descobrir através da razão, anteriormente à lei positiva, e eram aplicáveis a

todos os povos), etc.

Absolutismo modernizado (despotismo esclarecido): Alemanha, mas não só: contrasta

com o direito divino: o rei, outrora representado por uma espécie de ser divino que governava o

seu reino de modo absoluto, era agora considerado como a mola principal da máquina do Estado, o

primeiro servo do Estado, o cidadão tomando-se útil aos seus companheiros cidadãos. O rei tirava

Page 18: Resenha Baumer CRis2 Impressao

18

seu poder não de Deus, mas do consentimento do povo, e com a condição de lhe proporcionar

felicidade e bem-estar. Nada se dizia, contudo, sobre o direito de resistir, caso o rei não cumprisse

com as obrigações. Sua justificação principal era a sua maior eficiência.

Liberalismo: é palavra do XIX, e não do XVIll. Centrava-se na ordem estabelecida e

acentuava a liberdade e igualdade dos indivíduos. Teve o seu embrião no XVIll, em que era

severamente reprimido. Embora existissem muitas espécies de Liberalismo, o foco principal da

doutrina era alargar o domínio da liberdade individual. O legislador, para além de liberalizar a

forma de governo, deveria proteger e ampliar os direitos dos indivíduos. Deveria o legislador

esforçar-se para fazer os homens iguais, para além de livres? A maior parte dos fIlósofos

acreditava em classes sociais, baseadas, no entanto, não em privilégios feudais, mas na

propriedade e no conhecimento, que, por sua vez, se baseavam em graus inatos de talento. Então

se afirmava uma sociedade hierárquica ao mesmo tempo que igual, entre certas pessoas, em

direitos civis. A idéia de igualdade ganhou terreno rapidamente. Realizar a igualdade através de

uma educação igual e de condições iguais.

Gabriel Divan

FRANKLIN BAUMER - "O Pensamento Europeu Moderno" VoI. 2, parte V - Século XX

: "O Triunfo do Devir": o homem passa a tomar plena consciência da falência de categorias

totalizantes na tarefa de apreender o mundo e encaixar ele dentre as leis e preceitos racionalistas.

Fim das "modernas" certezas. Derrocada de uma fixidez e uma estabilidade que eram

epistemologicamente impostas a muito custo.

Pequeno apanhado de considerações sobre a questão do Devir nos capítulos

anteriores:

O século XVII é um marco da modernidade. A diversificação intelectual dos pensadores

europeus faz surgir um novo caminho para as respostas das "questões perenes" (homem - Deus -

natureza - sociedade - história). O homem passa a ter uma espécie de consciência de sua

"modernidade" e passa a se ver como diferente dos antigos. A ruptura com a idade média é visível.

É um período onde as respostas buscadas e obtidas para as questões perenes dão total predomínio

ao "Ser".

META-ANÁLISE das questões perenes: o "ser" no Século XVII não só aparece como

aparece como predicado das respostas "A natureza é ...", "Deus é...", como também enquanto

condicionante da própria pergunta: "O que é Deus?"

Há a predominância da forma de ver e pensar o mundo no âmbito do "Ser". Há a

predominância da estabilidade. A tentativa de impor regras e regulamentos racionais a tudo, a todo

Page 19: Resenha Baumer CRis2 Impressao

19

o mundo que cerca o homem é uma notável busca por estabilidade e assim superar as controvérsias

existentes. As leis racionais são verificáveis na natureza.

Noção da natureza como o funcionamento do relógio: o "Ser" aparece de novo. A natureza,

o mundo, é algo mensurável; que pode ser "desmontável", decodificável e apreensível.

O conceito do "Devir" começa a ganhar força quando os pensadores passam a se dedicar ao

estudo do universo, infinito, descentrado. Uma contraposição ao mundo finito do Medievo.

"Estética do Infinito" na literatura, nas artes. As referências constantes ao infinito.

Entre os séculos XVIII e XIX há um fortalecimento da noção do "Devir", que começa a

estabelecer essa lógica dentre a visão de mundo e vai abrir as portas para que ocorra a derrocada da

noção estanque do "Ser" no século XX.

O homem começa, aos poucos a para de buscar respostas definitivas em tudo. O ser e a

estabilidade começam a ser questionados e o "aquecimento" dos debates a cerca de Deus são prova

disso.

A história passa a se concentrar cada vez mais no indivíduo do que em leis naturais com

pretensão total.

Perplexidade diante do aumento de complexidade do conhecimento. Matthew Arnold fala

de um estado de multiplicidade e anarquia: o homem começa a se dar conta de que buscar respostas

fixas para lidar com o caos pode ser um erro. Talvez a anarquia seja a própria a resposta.

W.R. Greg fala na "velocidade como característica do modo de vida do séc XIX" ("Life at

high pressure"). Pioneirismo.

DARWINISMO: apresenta e reforça noções de eterno fluxo das coisas com a sua noção de

evolução.

Ambiente de desilusão com a ciência do iluminismo e as leis estanques do positivismo

(Nietzsche, séc XIX): o primado das leis humanas e racionais para explicar um mundo natural e

irracional por excelência começa a ruir.

Ernest Renan escreve que não se pode mais considerar tudo de forma absoluta. Tudo está

em devir, em vias de ser feito. Surge a noção de essência, mas diferentemente da essência universal

moderna, a essência não é inimiga nem antagonista do movimento (Bergson trazendo a máxima de

Heráclito "não me banho duas vezes no mesmo rio. O rio não é o mesmo e eu não sou o mesmo”).

O historiador francês Augustin Thierry sentencia a história como a "ciência do devir" e

identifica até mesmo a Evolução de Deus no fluxo histórico.

SÉCULO XX - O Triunfo do devir:

Segundo Baumer, a "revolução" do século XX foi a mais contundente revolução

Page 20: Resenha Baumer CRis2 Impressao

20

intelectual já verificada. O homem se encontra em um lugar epistemológico sem pontos de

referência. Para Ortega Y Gasset se opera um "rompimento com a cultura moderna". No século

XX o homem se dá conta de que não há um ponto de partida necessário de onde se partir.

Noção que passa a ganhar corpo: "Mundo-corno-história". Dinamismo em primeiro lugar.

Sentimento de abandono: todo o brilho e o júbilo das promessas racionais-iluministas

culminaram com a Europa, beligerante, devastando a si mesma. A 1ª Guerra teve um impacto de

pessimismo sobre a ciência. O que, afinal é o racionalismo? De que serviram aquelas pedras

fundamentais fincadas pelo Evolucionismo (antropológico) que pregavam o modelo europeu de

sociedade evoluída?

A "resposta" para os problemas do homem não passava (pelo menos não única e

obrigatoriamente) pelo cientificismo racionalista da modernidade. Os preceitos modernos de

fixidez acabam abalados junto com as expectativas frustradas do primado mecanicista. Mais

reforço ao fluxo, ao cambiante, ao. "Devir".

Franz Alexander critica essa máxima de evolução. Somos realmente desenvolvidos?

Todos os pensadores influentes se manifestam nesse sentido. Os conflitos bélicos na Europa no

início do século são alvo de manifestações e motivo de pessimismo e descrédito das promessas da

modernidade. A psicanálise, por sua vez, já consolidada, expõe que o caminho para a perfeição

não está dentro do homem: não existe interior racional puro. O interior é igualmente um caos.

Cercado por todos os lados, o Racionalismo encara um desmascarar não antes visto: trata-

se, afinal, de um trapaça epistemológica? Totalidade? Apreender o mundo? Voltamos à velha

máxima de tentar colocar o quadrado dentro de uma abertura circular: importante menção feita por

Ruth Gauer ("A qualidade do tempo") expõe o dilema da ciência moderna em tentar adequar o

mundo à teoria ao invés de moldar a teoria a partir do mundo. Chega-se a um ponto onde a

proposta epistemológica da modernidade ou precisa de abandono ou se vê obrigada à se assumir

enquanto ilusória e não mais suficiente.

Questões perenes:

Nenhuma delas passou a ter uma resposta que não fosse turbulenta. Baumer exemplifica: a

questão teológica ia perdendo hipóteses de resposta e passava a ser tachada de sem sentido, sem

importância para um cada vez maior número de pessoas. Diferentemente das eras pregressas, que

sofreram ainda os ventos da Inquisição, nada mais justificava a inclusão forçada de Deus dentro de

um sistema de mundo.

DEUS a metáfora máxima do fixo, do absoluto, do imutável, também implode.

Em meio à crise e o descentramento, a psicanálise, a nova filosofia, o existencialismo e o

surrealismo, nas artes, propunham que não haveria como fugir do vórtex da confusão. A confusão

era a realidade, o caminho a resposta. Salvador Dali e André Breton propõem com o

Page 21: Resenha Baumer CRis2 Impressao

21

surrealismo um manifesto anti-consciência ("Não será o medo da loucura que nos fará hastear a

meio pau a bandeira da imaginação" - André Breton "Manifesto surrealista"). O século XIX teve

o Romantismo que, dentro dos parâmetros modernos, ainda, buscava alternativas à modernidade,

afrontando o racionalismo mecanicista. O século XX possibilita o avanço na crítica.

A lógica do "absurdo" impera: cabe ao homem descobrir o sentido do universo? O

universo, de fato tem algum sentido?

Passa ser absolutamente impossível e impensável tomar a uma lógica de "Ser", na medida

em que o abandono da falida lógica de certezas é obrigatório. O "Devir" passa a ser uma

incômoda, porém necessária presença nas respostas frente às questões perenes e aos seus

desdobramentos.

A evolução científica de cunho iluminista-racionalista desaguou na própria ruína de seus

pressupostos.

Toda a dor de se ver obrigado a abandonar as certezas modernas em prol da nova ordem

de probabilidades (em lugar das leis fixas), de infinito (ao invés de natureza compreensível), de

ausência de sentido (ao invés de racionalização da natureza) e de ausência espiritual (no lugar da

crença em um Deus soberano que passou a ser posta em xeque) pode ser sintetizada por Nietzsche,

que, às bordas do século XX, e crítico voraz do absolutismo moderno, prega a assunção dolorosa

da incerteza. O DEVIR incômodo, a custa de muito medo e insegurança, suplantou o falso

conforto do SER:

Deixamos a terra, subimos a bordo! Destruímos a ponte atrás

de nós, melhor destruímos a terra atrás de nós. E agora, barquinho,

toma cuidado! Dos teus lados está o oceano; é verdade que ele nem

sempre ruge; a sua toalha estende-se às vezes como seda e ouro, um

sonho de bondade. Mas, virão as horas em que reconhecerás que ele é

infinito e que não existe nada que seja mais terrível do que o infinito.

Ah! pobre pássaro, que te sentias livre e que esbarras agora com as

grades desta gaiola! Desgraçado de ti se fores dominado pela nostalgia

da terra, como se lá em baixo tivesse havido mais liberdade,... agora

que deixou de haver "terra"!

F.W. Nietzsche af. N.124 - G.C.