comunicação e linguagem citeli

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=143012788001

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Adilson CitelliComunicao e linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    Matrizes, vol. 2, nm. 1, 2008, pp. 13-30,Universidade de So Paulo

    Brasil

    Como citar este artigo Fascculo completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Matrizes,ISSN (Verso impressa): [email protected] de So PauloBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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    A D I L S O N C I T E L L I *

    Comunicao e linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    * Professor titular da Escola de Comunicaes e Artes da USP.

    Resumo

    Este trabalho indica alguns referenciais tericos que podem colaborar na discusso acerca dos vnculos entre comunicao e linguagem. Para tanto, remete a autores que fixaram categorias, sobretudo no mbito verbal das quais so exemplos multicentra-lidade, dilogo, interao, jogo, contrato, ao , com potencial para permitir anlises mais proficientes dos textos comunicacionais mediados tecnologicamente. Palavras-chave: comunicao, linguagem, mediaes, procedimentos analticos

    AbstRACt This work indicates a few theoretical references that will collaborate in the discussion regarding the connections between communication and language. Moreover, the text refers to authors who, mainly in the verbal dimension set categories which includes dialog, interaction, game, contract, action , with potential to allow more efficient text analysis of communication mediated technologically. Key words: communication, language, mediations, analytical procedures

    A linguagem to velha como a conscincia: a linguagem a conscincia prtica, a conscincia real, que existe tambm para os outros

    homens e que, portanto, comea a existir tambm para mim; e a linguagem nasce, como a conscincia, da necessidade de promover

    intercmbios com os demais homens (Karl Marx).

  • 14 matrizes Ano 2 N 1 segundo semestre de 2008

    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    A comunicao, afora os aspectos empresariais ou tcnico-industriais, , fundamentalmente, linguagem sob diferentes configuraes de cdi-gos e signos. Por imperativos histricos, as reflexes sobre a linguagem aplicadas ao campo da comunicao mantm vnculos com tradies oriundas seja dos estudos clssicos que remontam retrica seja com vertentes abrigadas, amplamente, sob o ttulo de semitica. E aqui no se est situando origens conflitantes ou excludentes, mas firmando orientaes gerais que podendo dialogar entre si, modulam tendncias prprias no amplo tratamento dos signos. A exemplo de Charles Sanders Peirce e Mikhail Bakhtin que, conquanto enten-dam a linguagem como um amplo sistema semitico, tratam o problema sob siglas diferentes, seguindo procedimentos metodolgicos, inflexes filosficas e compreenses fenomnicas que andam por caminhos prprios.

    provvel que o cenrio da nova comunicao, pensada a complexidade de uma construo tcnica cada vez mais interconectada, convergente, aberta a expe-rincias participativas, tenha de encontrar outras maneiras de trabalhar os desafios da linguagem, instituindo procedimentos ancorados em formulaes tericas capazes de melhor explicar os andamentos, desdobramentos, aparatos formais, estratgias de composio dos sentidos substanciados no roteiro dos signos. E isto segundo perspectiva que reconhea no apenas como o novo incorpora o velho, mas o que de velho resiste no novo, ou seja, acionando-se a dimenso arqueolgica do conhecimento, circunstncia capaz de atualizar o tempo remoto das tcnicas do ver e do ouvir, como formulado por Siegfried Zielinski (2006).

    Em funo deste roteiro parte dele passvel de tratamento sob outras circunstncias recuperamos algumas contribuies vindas da teoria da lin-guagem, sobretudo as de fundo verbal. Aqui, no se trata, portanto, de seguir percurso diacrnico ou abrangente envolvendo matrizes dos estudos de lin-guagem, que podem ser desdobradas em vertentes lgicas, empiristas, prag-mticas, fenomenolgicas, scio-interacionistas, etc., mas apenas aproximar e problematizar linhas de fora que contribuam para ampliar as reflexes acerca dos vnculos entre aqueles estudos e a comunicao.

    ReGRAs Do JoGo

    O que no pode ser dito deve ser calado (Wittgenstein).O que no pode ser dito no pode ser dito, nem sequer assobiado (Ramsey).

    Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nome fundamental para o arrefecimento do peso escolstico-metafsico que presidia os estudos de linguagem. Os escritos iniciais do filsofo austraco foram produzidos no interior de uma atmosfera intelectual em que circulavam idias como as do pensador alemo Gottlob

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    Frege (1848-1925), e sua teoria dos sentidos, e de Bertrand Russel (1872-1970), que expunha a convico empirista segundo a qual era possvel conhecer acionando a experincia. Wittgenstein no apenas receberia influncias do pensamento de Russel como sobre ele iria exercer influncias, a se ver as elaboraes do ingls em torno do atomismo lgico.

    Em Frege (1978) se identifica o pressuposto de que o sentido da frase deriva do pensamento expresso na constituio do valor de verdade, sendo a referncia o que permanece sem alterao aps a mudana, por exemplo, dos nomes1. Em: Pel o rei do futebol ou Edson Arantes do Nascimento o rei do futebol, o fato de ter ocorrido modificao no substantivo prprio no altera a referncia, tampouco o sentido da frase.

    Bertrand Russel (1980) trabalha em outra direo, esvaziando o conceito de sentido e destacando o significado. Agora, considera-se que os nomes re-presentam algo por indicarem objetos com os quais temos familiaridade. Da a assertiva do pensador ingls segundo a qual o significado do nome aquilo a que o nome se refere2. Isto , o significado de um nome ou de uma sentena deriva do movimento entre particulares e universais, num arranjo que compatibiliza o conhecimento por familiaridade (a rigor afeito s intuies, experincia, ao sensrio; trata-se de um conhecimento, digamos, verdadeiro, incapaz de nos enganar ou provocar iluses) e por descrio (as entidades, situaes, objetos, construes lgicas, s quais temos acesso atravs da familiaridade, mas que, no processo descritivo trazem consigo valores, juzos, de onde podem decorrer equvocos, simulacros, portanto, noes como certo e errado). A familiaridade do nome Pel permite descries que significam coisas como: o melhor atleta do mundo, o interessado em vender a sua imagem s grandes empresas, a celebridade, o benemrito, etc. Paradoxalmente, e no limite, o pensamento de Russel abstrai o mundo real entregando-o ordem da conscincia, tornando o problema do significado passvel de montagem fora das relaes sociais marca-das pela intersubjetivadade e pelos processos interacionistas da linguagem.

    Neste ambiente, Wittgenstein escreve o seu Tractatus Logico Philosophico (1961) do qual a proposio 3.203 paradigmtica. L est escrito que o nome significa o objeto, sendo o objeto a significao do nome. O fundo positivista e de arranjo paralelstico (h relao entre estado das proposies e estado das coisas) posto sob suspeio com os aforismos das Investigaes filosficas (1987). De certo modo, Wittgenstein teve de cruzar o seu prprio rubico reorientando anlises e dirigindo-as para um conceito ampliado de significao que j no estivesse mais preso aos princpios da verificabilidade. A isto que se atribui o epteto de giro lingstico, preferimos entender como um caminho percorrido da perspectiva ideal do estudo da linguagem para uma dimenso ordinria.

    1. Frege, Gottlob. Lgica e filosofia da linguagem. So Paulo, Cultrix/Edusp, 1978. No livro encontra-se o artigo central Sobre o sentido e a referncia.

    2. Russel, Bertrand. The problems of philosophy. Oxford, Oxford, 1980. Sobre a teoria das descri-es, ver: Os pensadores. Vol. LII, So Paulo, Abril, 1975. Especialmente o artigo Sobre denotao.

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    A constituio dos processos significativos advir da relao estabelecida entre os nomes/frase/sentenas e o andamento das atividades. A percepo do nome no curso de uma atividade determinada faculta depreender trs con-ceitos fundamentais presentes nas Investigaes filosficas e que representam avano significativo quanto s posies emprico-positivistas balizadoras do Tractatus: jogo da linguagem, uso e contexto.

    O conceito central de jogo da linguagem alcana expressivo mbito de utilizao, podendo ir dos movimentos entre o c da linguagem e o l do mundo, passando por funes diversas que incluem elementos performativos (ordenar, agir, solicitar, saudar etc.) e enunciados ou enunciaes mais amplas como a resoluo de um enigma, a formulao de um problema matemtico, o sistema retrico de um sermo religioso. Dos jogos fazem parte no apenas as pala-vras, mas toda a seqncia contextual nas quais se incluem os participantes, os objetos, as circunstncias vrias afeitas situao de uso. Isto , os jogos se alimentam e so alimentados pelos usos da linguagem em contextos determi-nados que circundam cultural e historicamente os usurios.

    neste movimento de vnculos mltiplos que os sentidos das expresses, segundo um conjunto de regras de usos e referncias contextuais, so apreendi-dos. Vale dizer, um enunciado no significa em si, mas se faz nas relaes (jogos) que a linguagem permite em seus exerccios ordinrios, cotidianos. Elaborado o problema desta maneira, compreende-se porque Wittgenstein abandonou a idia da lngua como realidade autnoma e unitria, to a gosto dos filsofos lgicos, da lingstica e da gramtica at os incios do sculo XX. Em lugar de apresentar a lngua como um sistema nico, ideal, o filsofo austraco propunha a existncia de sublinguagens, variabilidades ordinrias resultantes da presena de diversos nveis de jogos, com suas regras lgicas, gramaticais, semnticas etc. Atentemos para a seguinte proposio:

    Sou cortador de cana, trabalho muito e ganho pouco.

    Os significados resultam do uso (palavras como: cortador, cana, traba-lho), de regras, que no se revelam necessariamente (por exemplo: sintticas, de relaes entre termos, frases, pargrafos, perodos), referidas a contextos (h canaviais e pessoas que ali labutam precariamente, o que conhecido e evidenciado pelos meios de comunicao, entidades sindicais, foras polti-cas). Os significados que decorrem da proposio (um enunciador esclarece o tipo de atividade e a condio de vida com a qual est envolvido), no so apreendidos nos limites ideais de seqncias que inter-relacionam diretamente palavras e coisas, designadores e objetos, mas em jogos vinculando sublingua-gens (a seqncia discursiva que tem determinada ordem interna), usos (as

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    vrias escolhas, vocabulares, semnticas), e contextos (quadros situacionais balizadores do enunciado). Tal movimento (um nvel do jogo de linguagem) ativa o processo da comunicao permitindo que as significaes se faam nos fluxos entre enunciadores e enunciatrios.

    Se a linguagem (e a lngua) no deve ser vista como categoria universal, pr-formada, simples descritora da realidade, e sendo o jogo um procedimento de trocas, arranjos, rearranjos a mquina formuladora dos sentidos , com-preensvel que a construo dos consensos resulte em algo provisrio. Concebe-se, portanto, o consenso como a outra face do conflito. Tal carter migrante, de trnsitos precariamente estabilizadores dos sistemas de significao, remete a linguagem (ou as linguagens) para um espao investigativo em que no cabem vetores nominalistas, metafsicos ou de idealizao retrica.

    A linguagem vista como jogo de possibilidades para que os sujeitos ativem contratos comunicacionais complexos, conforme Wittgenstein, foi retomada por uma srie de autores dentro da linhagem pragmtica como as de John Langshaw Austin (1962), John Searle (1969) e mesmo moda de Jrgen Habermas, ou na anlise cultural de Michel de Certeau (com mulos mais ou menos aderentes como John Fiske (1988), e Roger Silverstone (1994), ambos aqui lembrados pela proximidade que mantm com os estudos de comunicao).

    Michel de Certeau, a partir dos conceitos de linguagem ordinria e mo-vimentos/operaes tticas reafirma a perspectiva segundo a qual os usos da linguagem, enquanto mecanismos que no dizem respeito apenas ao plano da produo enunciativa, incorporam, necessariamente, o outro, o leitor/ouvinte. E isto torna possvel a constituio dos sentidos.

    participando dos jogos, ou seja, apreendendo a linguagem ordinria, ou as sublinguagens, em seus mltiplos arranjos, conforme praticado pelos mestres da tcnica, que se torna possvel construir roteiros da comunicao. Segundo Michel de Certeau, a voz cosmolgica que organizou a experincia no pode ser mais ouvida, afinal os deuses quedaram mudos, motivo pelo qual a busca da verdade passa a ser o resultado de uma construo social, dos diversos percursos afeitos aos fazeres. Eis o motivo de a linguagem ter que se reconstituir permanentemente, no estando em seu percurso a estabilidade, as regras permanentes (afora aquelas instrudas de maneira tnue, por exemplo, pelas gramticas restritas das sublinguagens) ou o consenso universalizado. fcil encontrar nas reflexes e anlises do jesuta Michel de Certeau e que incluem conceitos como uso, fora dos contextos, negociao de sentidos, mo-vimentos tticos de apropriao da linguagem (outro designativo para jogo), o desenho de uma viso dos processos comunicacionais cuja evidente fonte dialgica o segundo Ludwig Wittgenstein.

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    FALAR e FAZeRJohn Langshaw Austin (1911-1960) retoma e aprofunda a assertiva wittgenstania-na de que a linguagem possui a capacidade de promover aes: pedir, receber, ordenar etc: so os atos de fala. Austin trabalhar o problema da linguagem segundo o entendimento performativo, ou seja, menos como dimenso des-critiva (ainda que esta continue a existir) do mundo e mais como instncia de ao atravs da qual participamos nos variados planos da vida social. Neste aspecto, os sentidos resultaro de atos linguajeiros presididos pelo encontro de dois grandes mecanismos: os constatativos e os performativos.

    Os enunciados constatativos (constative utterance) so utilizados com fi-nalidades informativas, que explicitam direes tomadas pelos proferimentos, afirmando, relatando, nomeando: aqui se trabalha com as idias de verdadeiro e falso. Os enunciados performativos/regulativos (performative utterance), dizem respeito a uma ordem, uma determinao, atravs da qual so promovidas aes decorrentes de verbos como pedir, prometer, proibir, consentir, declarar, etc. H situaes nas quais o performativo est implcito, no registrando sequer a presena de verbos. Por exemplo, no sintagma at mais pode existir um elemento implcito de ameaa (duas pessoas brigam, so separadas e uma das partes manifesta disposio para futuro pugilato), ordem (um funcionrio precisa deixar momentaneamente o trabalho, o chefe permite, mas requisita que haja pronto retorno) que s o contexto enunciativo facultar reconhecer. As sentenas performativas no colocam em jogo o falso ou o verdadeiro, mas a consecuo ou fracasso de uma ordem, pedido, promessa etc. Austin chama a estas duas situaes de felizes ou infelizes, vale dizer cumpriu-se ou no a performatividade. Ou, nos termos dos exemplos acima: ameaa e ordem foram compreendidas, executadas, reconhecidas etc.

    A partir da seco XI do seu How to do things with words (1962) Austin apresenta perspectiva superadora da tenso constatativo/performativo, entendendo ser impossvel estabelecer linhas claras entre os dois planos, estando um a contaminar o outro. Do mesmo modo que algum afirma uma verdade como mentira, ou o contrrio, pode, performativamente, prometer sem jamais cumprir.

    A percepo de que a performatividade da linguagem no apresentava sada levou Austin a elaborar a teoria da fora ilocucionria, ou, propriamente, dos atos de fala desenvolvido, depois, por John Searle. A teoria ilocucionria consigna que os enunciados se tornam completos (esclarecendo os seus sentidos, levando, por exemplo, a determinada ao) caso integrem trs nveis: locu-cionrio, ilocucionrio e perlocucionrio. O plano locucionrio, o dizer algo, o enunciado composto configurado por trs nveis: fontico; ftico nveis

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    sinttico-semnticos e rtico versa acerca de alguma coisa, situao. O ilocucionrio enseja a performance, encaminha o locucionrio na direo dos interlocutores permitindo a apreenso de uma dada assertiva. O perlocucion-rio, diz respeito ao fazer, ao efetivar uma ao expressa pela sentena.

    Em sntese, a viso performativa da linguagem alimenta a perspectiva de que os atos de fala buscam produzir, junto aos co-enunciadores, efeitos, resul-tados. Aqui se revela o ncleo da teoria dos sentidos na perspectiva de Austin: a saber, no cabe linguagem apenas descrever o mundo, ou refletir sobre a prpria linguagem, mas promover comunicao, sendo a fora ilocucionria, em seu conjunto de usos, contextos e jogos, o elemento central para garantir tal processo.

    Como se ver, as reflexes austinianas sero recuperadas por Jrgen Habermas e expandidas na teoria da ao comunicativa.

    NeGoCiAo e CoNseNso

    Nos contextos da ao comunicativa s pode ser considerado capaz de respon-der por seus atos aquele que seja capaz, como membro de uma comunidade de comunicao, de orientar sua ao por pretenses de validez intersubjetivamente reconhecidas (Jrgen Habermas, 1987).

    Jrgen Habermas (1930-) realizou fecunda, ainda que nem sempre bem resolvida, reflexo sobre a linguagem e o papel por ela ocupado nas relaes sociais e nos processos comunicacionais.

    O pensador alemo, ao elaborar a sua pragmtica universal, algo afeito diretamente teoria dos atos de fala, ou ao comunicativa, estava diante dos rescaldos de uma tragdia que deixara, entre outros legados de horror, o cogumelo anunciador do juzo final. Este dado histrico importa para se pensar a viso habermasiana sobre os fenmenos da linguagem. Em solo conflagrado e exausto de violncia e dor era necessrio trocar os mtodos do conflito aberto e direto pelos contratos consensualmente negociados. Ou seja, tratava-se de administrar e encontrar planos de convivncia em condies de gerar acertos estabilizadores das relaes entre os sujeitos, mesmo que cruzados por interesses dspares.

    O elemento central animador do projeto de Habermas revela, ao mesmo tempo, uma face tecno-poltica-ideolgica e outra de natureza terico-meto-dolgica. Atentemos para os dois aspectos.

    A linguagem, mais do que instrumento de comunicao, tende a ser vista como sada poltica para a busca de alternativas consertadas entre partes no necessariamente confluentes em seus interesses pessoais ou coletivos. Partidos,

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    sindicatos, corporaes e grupos de presso devem exercer as suas foras nos limites dados pelos dilogos racionalmente orientados. Turnos conversacionais, argumentos, comprovaes, fazem parte do estoque de possibilidades visando ao exerccio da persuaso ou convencimento, conforme o caso, recurso pleno de validade para ao mesmo tempo montar acordos sociais e encaminhar as demandas em disputa. O discurso , pois, instncia administrativa dos conflitos, j que eles no desaparecem do mundo da vida. E isto requisita, da parte dos interlocutores, a construo de roteiros argumentativos sustentveis e passveis de resistirem fora do contraditrio.

    A linguagem concebida, por esta via, como prtica socialmente constru-da, alimentada pela capacidade de promover consensos a partir de movimentos dialgicos ativadores de relaes intersubjetivas. A pragmtica universal torna-se, portanto, estruturante das condies que precisam ser satisfeitas para a ocorrncia da comunicao.

    Habermas elaborar, a partir de uma classificao dos atos de fala, aquelas que seriam as condies universais para o exerccio da ao comunicativa. A saber:

    1. Atos de fala comunicativos: deixam claro como os sentidos so estrutu-rados a partir de regras semnticas e sintticas. Manifestaes verbais: dizer, falar, perguntar, objetar;

    2. Atos de fala constatativos: esto, conceitualmente, vinculados ao que John Austin chamou de constative utterance (proferimentos constatati-vos). Dizem respeito ao aclaramento do sentido do enunciado enquanto tal, permitindo a montagem dos efeitos de verdade. Manifestaes ver-bais: descrever, relatar, afirmar, explicar;

    3. Atos de fala regulativos: revelam as interaes enunciador/enunciatrio a partir de um conjunto de regras. Possuem o claro papel performativo, de realizao enunciativa. Manifestaes verbais: ordenar, pedir, avisar, proibir, prometer;

    4. Atos de fala representativos: o modo como o enunciador se apresen-ta para os enunciatrios. Aqui se abre a dimenso cenogrfica da lin-guagem, estando afeita a expresses, atitudes e intencionalidades dos enunciadores. Manifestaes: ocultar, simular, desejar, lamentar.

    A articulao dos atos necessria para que seja validada a sentena, o enunciado. necessria, mas no suficiente, pois a ocorrncia do fazer comunicativo pela linguagem solicita o exerccio da inteligibilidade. Sem o entendimento do que se afirma, a apreenso do que se diz, resta o silncio, logo a fratura na cadeia dos sentidos. Nos termos habermasianos, a ao comunicativa, requisita, como instncia preliminar de realizao, a compre-ensibilidade enunciativa.

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    Os atos de fala compem parte do sistema capaz de gerar validade universal dos enunciados, cuja completude requisita, pelo menos, mais trs categorias, que no se fazem isoladamente, podendo conhecer cruzamentos, a despeito de se tornarem dominantes em uma ou outra manifestao discursiva:

    1. Pretenso de verdade. O enunciador, nos atos constatativos, precisa compor argumentos capazes de promover o (efeito) de verdade;

    2. Pretenso de correo. A norma, ou as regulaes, facultam o reconhe-cimento da validade enunciativa em contextos determinados. Trata-se, em ltima instncia, de assegurar que as solicitaes, pedidos, etc., no fujam quilo consagrado no direito ou no que foi socialmente estabele-cido: so os atos regulativos;

    3. Pretenso de veracidade. Institui-se, propriamente, a cenografia expressiva, pois diz respeito s nfases, ao tom de (in)sinceridade, capacidade de gerar confiana. So atos de tipo representativos. Na Arte retrica, Aristteles chamou a este predicado de carter moral do orador (1999: 33).

    fcil reconhecer nesta linhagem pragmtica dos estudos de linguagem qual se filia Habermas a clara influncia exercida seja por Wittgenstein seja por um dos seus seguidores mais diretos, John Austin.

    No cabe, no momento, ponderar acerca das diferenas entre Wittgenstein e Habermas, por exemplo, no que tange ao conceito de consenso, decididamente provisrio para o autor das Investigaes filosficas, enquanto para o formulador da teoria da ao comunicativa a questo fica submetida ao princpio da racio-nalidade consensual, sendo, portanto, algo mais duradouro e universalizvel. Tampouco pertinente verificar a amplitude daquilo que Paulo Eduardo Arantes e Otlia Fiori Arantes (1992) chamaram de ponto cego da teoria habermasiana, no interior da qual poderamos alinhar o problema do enfraquecimento da objetividade das ocorrncias e dos mltiplos deslocamentos ideolgicos frente aos vetores da consensualidade. Ao eleger a chamada situao ideal de fala, como instncia que repele a coero, visto que aquela situao permitiria a simetria participativa dos diferentes agentes discursivos, Habermas estaria caindo noutra forma de idealizao plasmada no princpio de que o melhor argumento teria fora assertiva para trocar a coero pela coao cabvel e reveladora do papel legitimador da linguagem na conquista dos auditrios universais3.

    O ponto fundamental que cabe evidenciar no momento reside na con-vergncia estabelecida pela teoria da ao comunicativa com uma varivel conceitual da linguagem pensada enquanto prtica social, mediao, siste-ma simblico, possibilidade de ao, ancorada em procedimentos dialgicos. So eles que facultam a construo dos sentidos e seus efeitos, respeitados os vrios nveis, planos e trnsitos contextuais, cuja realizao ocorre segundo

    3. Para uma discusso mais ampla do pensamento habermasiano acerca da linguagem, ver: Thorie de lagir communicationel. Paris, Fayard, 1987; Morale et communication. Conscience morale est activit communicationelle. Paris, Cerf, 1986; De lthique de la discussion. Paris, Cerf, 1992.

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    fluxos comunicativos presentes na gerao/produo, circulao e recepo de mensagens.

    As diferentes fontes da pragmtica ensinaram uma lio importante: a linguagem perdeu a inocncia de simples nomeadora das coisas ou mero ins-trumento dos pensamentos. Acrescentaramos, ou de corporificar sentidos fora do fogo vivo das relaes sociais.

    DiLoGos mLtiPLos

    A comunicao verbal entrelaa-se inextricavelmente aos outros tipos de comu-nicao e cresce com eles sobre o terreno comum da situao de produo. No se pode, evidentemente, isolar a comunicao verbal dessa comunicao global em perptua evoluo. Graas a esse vnculo concreto com a situao, a comunicao verbal sempre acompanhada por atos sociais de carter no-verbal (gestos de trabalho, atos simblicos de um ritual de cerimnias, etc.), dos quais ela muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar (Mikhail Bakhtin, 1989).

    Mikhail Bakhtin (1895-1975) radicalizou no entendimento da amplitude scio-histrica da linguagem, permitindo que fosse desenvolvido um rico vetor para se pensar o signo segundo perspectiva no naturalizada. Ele ensina que o significado constitudo graas s mltiplas interaes entre sujeito/histria/cultura para indicarmos alguns termos exemplares que matizam o processo (Bakhtin, 1981, 1984, 1989).

    O conceito de interao, ao qual voltaremos em outro passo, deixa de ser apenas sinnimo de vnculo comunicativo entre sujeitos para ganhar peso decisivo no esquema explicativo bakthiniano: A interao verbal constitui a realidade fundamental da linguagem (Bakhtin, 1989: 109). Vale dizer, retirados os agentes, contextos e movimentos internos dos sistemas de signos ou remetida a palavra, o sintagma, o enunciado ao estado de dicionrio, nada mais restar aos sentidos seno a orfandade.

    Colocado o problema sob tal inflexo, o nosso autor empreende debate de cunho epistemolgico, cuja contra face pode ser localizada nas duas grandes tendncias que alimentavam os estudos de linguagem. De um lado, a tradio alem, com Humboldt, Meyer Lbcke que alcana algumas correntes da estils-tica chamada de subjetivismo idealista e, de outro, teorias elaboradas ou ama-durecidas entre o final do sculo XIX e o incio do XX, das quais Ferdinand de Saussure pode ser tomado como referncia emblemtica, posta sob o designativo de objetivismo abstrato. Em ambos os casos, o problema diz respeito seja a um formalismo modelar, seja ao isolamento descritivo-explicativo de enunciados

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    que se desgarram dos contextos. Para um pensador que buscava compreenses totalizantes, certamente as tendncias acima indicadas no respondiam s necessidades tericas de se formular uma viso interativa da linguagem.

    O nosso propsito no o de historiar os longos embates travados por Bakhtin e seu crculo de colaboradores na elaborao de um pensamento ino-vador no atinente aos estudos de linguagem, mas apenas recuperar linhas de fora capazes de ajudar na reflexo do problema central que nos ocupa: saber como so formuladas algumas experincias tericas sugestivas para o mbito das relaes linguagem-comunicao.

    Com este esprito necessrio revisitar pontos enunciados por Bakhtin e que contribuem para a efetivao do nosso intento. A pesquisa em torno da interatividade da linguagem deve ser acompanhada ao menos de dois outros conceitos, integrados ambos, e, de certo modo, compondo a base terica na qual o autor se movimenta: dialogismo e polifonia.

    O dialogismo no visto como uma tcnica em que as partes envolvidas nas trocas discursivas apenas mudam de lugares para exercitar os proferimentos. Trata-se, antes de tudo, de elemento instituidor da linguagem. Equivale dizer: os sistemas verbais ou no-verbais permitem que promovamos movimentos de recuperao da linguagem, quer no interior de uma mesma srie, quer entre sries distintas. O texto que produzimos, sendo nosso, tambm seqncia do vasto dilogo no qual nos inserimos e ajudamos a fomentar, independentemente do maior ou menor grau de conscincia que tenhamos acerca dos fenmenos matizadores da linguagem: No h enunciados isolados. Um enunciado pres-supe enunciados que o precederam e que o sucedero; ele nunca o primeiro e nem o ltimo; ele somente uma ligao no interior de uma cadeia, no podendo ser estudado fora dela (Bakhtin, 1984: 134). Entram nesta dinmica interlocutiva as teorias, conceitos, expresses populares, preconceitos, opinies, estigmas, esteretipos, leituras, audies, etc.

    De certa maneira, as nossas falas atualizam um conjunto de experin-cias de linguagem com as quais convivemos, sejam elas retiradas dos livros, das ruas, das conversas, do concerto, do filme, do espetculo teatral, da visita exposio de arte, das informaes do telejornal, do rdio, da revista, dos encontros fortuitos, da partida de futebol, da mesa de bar, do salo de dana, etc. Na profuso das vozes, a constituio da voz. Neste sentido, o estatuto da autoria ganha outro parmetro analtico, pois sendo manifestao do talento, do trao individual (como de modo quase nico o considera a estilstica), da competncia, do acento criativo, , sobretudo, a manifestao/presena de um instante enunciativo substanciado no interior de uma ordem/cadeia/formao discursiva.

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    A questo do dialogismo escapa, portanto, da circunscrita definio de tcnica comunicacional para se revelar como viso de mundo, uma maneira de conceber as relaes humanas, a histria, a cultura: O dilogo, no sentido estrito do termo, no constitui, claro, seno uma das formas, verdade que das mais importantes, da interao verbal. Mas pode-se compreender a palavra dilogo num sentido amplo, isto , no apenas como a comunicao em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda a comunicao verbal, de qualquer tipo (Bakhtin, 1989: 109). Entende-se porque os temas do discurso interior, da comunicao cotidiana, dos gneros discursivos, do elemento citativo, das incurses nos estudos de Rabelais, de Dostoievski esto atravessados pela multicentralidade do dilogo.

    Junto com a questo interativa e dialgica afirma-se no pensamento bakhtiniano, o estudo da polifonia. A rigor, so categorias que se articulam, definem e direcionam a filosofia da linguagem produzida pelo autor da Cultura popular na idade mdia e no renascimento. A dimenso polifnica insere-se na lgica segundo a qual a vida da linguagem se revela na pluralidade de vozes que nuanam os enunciados. Ou seja, o sintagma, a frase, os diferentes siste-mas de signos produtores de significao, expressam, em cada circunstncia enunciativa, o encontro das vozes sociais dispersas por grupos, classes, seitas, partidos, crenas, formaes discursivas mltiplas: artsticas, cientficas, co-tidianas, etc. A longa anlise feita por Bakhtin do sistema polifnico na obra de Fidor Dostoivski, demonstra, exao, como a aparente univocidade das frases apenas a camada aparente que esconde as dinmicas polifnicas: na fala dos eruditos h registros do estilo praticado nas ruas; no homem das ruas, o reconhecimento das vozes eruditas.

    Os conceitos centrais formulados por Bakhtin revelam extrema produtivi-dade quando instruem a reflexo acerca dos discursos mediticos. E ensinam que o carter descentrado das linguagens postas em circulao social pelos meios de comunicao pluralidade, nveis e tipos de registros aos quais se ajustam elementos polticos e ideolgicos explicitam um conjunto complexo que no pode ser remetido ao restrito mbito monolgico, das assertivas linea-res, ou das idealizaes encantadas com a capacidade de os signos constiturem uma certa ordem natural das coisas.

    NotA FiNAL: VNCuLos ComuNiCAo e LiNGuAGemAs indicaes de algumas fontes que ajudam a refletir acerca da linguagem, sobretudo na vertente verbal, respeitadas as diferenas, tenses, contradies e superposies existentes entre elas, facultam estabelecer um corpo de referncias que se cruzam com os estudos da comunicao, particularmente quando entram em cena os dispositivos ampliadores dos circuitos das mensagens.

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    Uma anlise mais acurada das teorias da linguagem aqui pontuadas (e ou-tras, como as afeitas de modo mais determinado aos condutos semiticos, cujo andamento terico, metodolgico, solicitam, pelas suas implicaes, o cuidado de inflexo prpria) ajudaria a identificar, respeitadas as diferenas, elementos recorrentes entre elas. Estejamos falando de jogos, de fora ilocucionria, de busca de consenso/revelao do dissenso, de dilogos, permanecemos, com suas nuances e possveis irredutibilidades, entre elaboraes conceituais que enviam os fenmenos da linguagem a problemas do cotidiano, da persuaso, das estratgias de composio dos significados, dos marcadores contextuais, enfim, do vasto cenrio por onde circulam os signos verbais. Posto de outro modo, a perspectiva metafsica ou limitadamente descritiva, cede lugar para novas compreenses do que implica configurar as mensagens processadas nos e pelos dispositivos comunicacionais. Simulacro, montagem, representao, construo, servem como exemplos de conceitos que dirigidos aos textos em trnsito no telejornal, na revista, na fico seriada, no blog etc., contribuem para esclarecer como a discursividade miditica formula/ajusta/promove os diferentes planos dos sentidos.

    A partir do roteiro estabelecido nas pginas anteriores, pensamos o proble-ma do discurso verbal nos meios de comunicao sob ngulo antes analtico-conceitual do que tcnico-descritivo. Deste modo, possvel estabelecer dilogo tenso com alguns estudos comunicacionais que se dedicam ao problema do discurso e da produo dos sentidos. A saber, as anlises processadas pelo Colgio Invisvel, de Gregory Bateson, para quem existe a inevitabilidade da comunicao, ou mesmo as assertivas sistmicas de Niklas Luhmann, que circu-lam em torno da idia da impossibilidade comunicativa, e, por ltimo, um vasto e difuso conjunto de autores abrigados sob orientao fenomenolgica, em linha com os ensinamentos bergsonianos, que reconhecem estar fadado ao fracasso qualquer tentativa de se dar aos sentidos contornos minimamente estveis, posto estarem eles em movimento permanente, sem fora de estabilizao.

    Digamos, de maneira rpida e nutrida pelo esprito provocativo: o mundo existe. Do mesmo modo a linguagem, com a sua enorme capacidade de gerar significaes, traz consigo a possibilidade de atualizar, inventar, narrar, des-crever, compor a experincia. Ela permite aos acontecimentos4, aos elementos extralingsticos, por exemplo, fazer parte de circuitos e relaes mediativas que ajudaro a configurar o plano dos sentidos, sem com isto comprometer qualquer idia de processo, movimento interno, deslocamento, precariedade ou perspectiva orientada para o pressuposto de que significar estabilizar, logo, comprometer a comunicao.

    Da porque pertinente reconhecer na linguagem verbal uma prti-ca social, mediao, sistema simblico, possibilidade de ao, ancorada em

    4. Cabe lembrar que para Gilles Deleuze apenas o conceito de acontecimento comunicacional tem fora para tratar das questes do sentido e da significao, sendo o referido conceito transcendente, impessoal e pr-individual, sem vnculos de qualquer natureza com o plano em-prico. Fazemos o registro apenas para consignar uma varivel de uso do termo acontecimento, no necessariamente ajustado perspectiva em exposio.

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    procedimentos interlocutivos, interativos e dialgicos que facultam a construo dos sentidos e seus efeitos, respeitados os diferentes nveis, planos e trmites contextuais, cuja realizao ocorre segundo fluxos comunicativos presentes na gerao/produo, circulao e recepo de mensagens (Citelli, 2006: 32).

    Na esteira de Bakhtin, verifica-se que a linguagem no pode abstratamente positivar o mundo, tampouco este se acopla mecanicamente nela. Nem auto-nomia nem subtrao: entre a experincia vivida (em faces mltiplas que in-cluem observao, percepo, reflexo, etc.) e a expresso dela, existem sujeitos, histria(s), culturas, um vasto ambiente que teima em se manter funcionando como cenrio, cenografia, referencialidade, das (re)ligaes e regulaes dos significados. Posto sob outro registro: no h sentidos em abstrato (mesmo que o assunto do discurso seja o tema da abstrao), visto que eles iro se fazer nos trnsitos entre partes localizadas cronotopicamente e tensionadas em seus va-lores, conceitos, idiossincrasias, interesses, etc. Seria possvel, aqui, reconstituir a idia do movimento, no segundo marcadores bergsonianos, mas a partir de uma perspectiva dialeticamente orientada, ou mesmo ativando-se, conquanto sob outro registro filosfico, a idia chave de Wittgenstein que remete aos jogos de linguagem, aos contextos, ao uso e ao cotidiano a capacidade de orientar enunciaes. E isto aclara a passagem das Investigaes filosficas que vincula o exerccio da lngua a uma atividade, ou, a uma forma de vida.

    compreensvel o desassossego que enforma alguns dos atuais estudos de comunicao, preocupados, de uma parte, em afastar ou diminuir o impacto dos tpicos referentes linguagem, e, de outra, em acalentar o terreno difuso em que se misturam desde o moralismo abrigado sob o manto da boa conscincia at o discurso ideolgico temeroso de revelar os seus avessos.

    Prosseguimos em outra direo, insistindo que no centro do processo co-municacional est a linguagem em seus bvios e evidentes laos sistmicos com as dinmicas empresarias, a fora das organizaes miditicas, a economia da comunicao, as tecno-polticas etc. a partir dela, linguagem, em suas formas de produo simblica, que os contratos comunicacionais so estabelecidos no que interessa aos co-enunciadores: o alcance do discurso miditico posto em circulao social decorre dos arranjos, constituies, modulaes, dilogos, presses, contrapresses, impresses, composies, ditos, no ditos, acordos e desacordos assegurados pelos contextos enunciativos.

    A linguagem verbal presente na chamada indstria cultural consigna, ademais, tonalidades e nveis fortemente ancorados nas lgicas do espetculo, do valor de troca da palavra5, do relativismo tico, do encantamento estetizan-te, tudo isto podendo resultar no monoplio interpretativo. Encontra-se, nesta via, a presena dos configuradores retrico-discursivos aos quais no faltam

    5. possvel afirmar que o valor de troca das palavras se

    diverte custa do seu valor de uso. Compreenda-se o conceito de uso em duas

    direes. A primeira, que no est sendo trabalhada nesta passagem, pode ser encontrada no repertrio

    dos lingistas e diz respeito circulao da linguagem

    verbal, tendo em mira as manifestaes vivas da

    lngua, em suas variabilida-des, singularidades de uso,

    nem sempre contidas nas estruturas predefinidas e

    normatizadas pela gramtica formal. Na segunda direo,

    objeto de nosso interesse no momento, o termo uso

    da linguagem expressa uma dimenso referida ao

    conceito de valor, conforme trabalhado por Marx. Nesse caso, afirmar que o exerccio da lngua s parece importar como valor de troca e no de uso mostra o sentido redutor que acompanha as operaes

    com muitas das palavras em circulao nas mdias.

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    acenos messinicos e salvacionistas dados pelo mercado, partidos polticos, personalidades redentoras, pela sujeio ao economicismo/pragmatismo do-minantes: enfim, amplos e diversificados so os novos mandamentos para que homens e mulheres consigam chegar terra prometida, sem o desagradvel incmodo de transpor as pedras interpostas no meio do caminho. Trata-se, pois, olhando o problema a partir do ngulo contra-discursivo, de lembrar que o servio poltico exercitado por aquele monoplio pode levar renncia da interpretao.

    Considere-se, porm, que a despeito da evidente importncia da grande mdia e sua ordem discursiva, as palavras registram nuances, andamentos e, sobretudo, alternativas nem sempre afeitas a procedimentos disciplinares que reduzem a comunicao informao, o polifnico ao monocrdico. oportuno atentar para o fato segundo o qual os sentidos desdobrados pelas palavras no se elaboram por conjuntos de regras abstratas, fixas, mas se vin-culam a contextos, sublinguagens, prticas sociais, contratos de entendimentos, interlocues, fatores mediativos interpostos nas relaes entre enunciadores e enunciatrios, emissores e receptores, conforme ensinam em um ou outro caso os autores que indicamos no percurso acima.

    Nas bordas esquecidas das grandes cidades, no meio dos jovens exclu-dos, a comunicao (re)processada pela novilngua dos cantores de rap que animaro os bailes da periferia. Nas reaes ao Frum Econmico Mundial expresso mxima do consenso articulado pelos gerentes da globalizao excludente inscrevem-se tendncias problematizadoras e contra-discursivas (a exemplo do Frum Social Mundial) das redues analticas que matizam o monoplio da informao.

    curioso notar, neste aspecto, o paradoxo discursivo em curso nos grandes veculos de comunicao, nos quais desfilam muitos dos crticos de Marx, que identificam no sistema elaborado pelo autor dO capital, a grave inconsistncia de valorizar excessivamente os fatores econmicos ou materiais. De sua tumba londrina, Marx deve estar rindo do destino reservado aos seus exegetas mais furiosos, pois se transformaram, eles prprios, em construtores e executores de um modelo social calcado, at a medula, no elemento econmico. Finalmente o conceito de homo economicus, teorizado por Adam Smith, em Na Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations passou a ser tratado sem pejo ou prurido de associar-se a qualquer gestor mal intencionado da explorao do trabalho alheio. E podemos compreender, em leitura mais atenta do clebre livro sobre a natureza e as causas da riqueza das naes, como se elaborou uma consistente exposio de princpios retricos e exerccios de linguagem acerca da relao entre o discurso econmico e a montagem de uma forma de

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    Comunicao e Linguagem: dilogos, trnsitos e interditos

    organizao social ancorada nas dinmicas do mercado. Discurso que incor-porando a ordem maior do circuito das mercadorias pudesse garantir sobre qualquer interesse coletivo a precedncia dos anseios privados, individuais (self-interest). Em tal contexto, j no se tratava apenas sempre lembrando Adam Smith de garantir espaos de fala, leitura ou escrita, mas faz-lo sob configuraes culturais e estilos de vida decisivamente aproximados s deter-minaes do capital. revelador que tenha partido de um economista-filsofo como Adam Smith o ensinamento, digamos, realista, acerca dos vnculos entre formaes discursivas e formaes sociais.

    Charles Bazerman chegou a identificar nos andamentos discursivos evi-denciados por Adam Smith a existncia de uma comunicao econmica, considerando-a como espcie de nova retrica orientadora da cultura da no-tcia, da cidadania econocntrica. (Bazerman, 2006: 101-109). A importncia das sees econmicas dos jornais e telejornais so disto exemplo presente, nada metafsico, tampouco identificado com a idia fenomnica segundo a qual impossvel estabilizar os sentidos. O papel antes secundrio de comentaristas e analistas econmicos mudou substancialmente, pois, agora, muitos deles foram transformados em celebridades miditicas, com suas colunas influenciando rotas de negcios, movimentos das bolsas, amplificao dos lobbies. So vozes, escritos, imagens, discursos portanto, esclarecendo a fora crescente dos pro-cessos de linguagem, conquanto neles continuem ecoando smiles, esteretipos, constituintes suasrios e de convencimento encarregados de substanciar a voz dos diferentes grupos de presso.

    Ao que tudo indica, a linguagem em exerccio nos meios de comunicao no fica longe de planos retrico/discursivos que se cruzam acelerando em direo oposta: enquanto decresce a presena do esprito republicano, cidado, poltico, sobreleva-se a sociedade do valor de troca, da exacerbao individu-alista: estamos frente a um novo patamar regulador das relaes sociais e dos jogos de linguagem.

    No interior deste quadro, os vnculos linguagem/meios de comunicao precisam ser tratados luz das mudanas pelas quais passa a polis, com a cres-cente centralidade da gora eletrnica (Ianni, 2000). Reconhecido o problema, mas tomando-o em registro um pouco distinto do consignado pelo autor de O prncipe eletrnico, possvel visualizar uma abertura importante para reconfi-gurar os processos comunicacionais representada pelas chamadas novas media. Parece claro que a idia da abertura voltada a produzir comunicao sob outros registros entre os quais esto a internet fica dependente de prticas polticas e formaes de consensos cujas dinmicas conhecero regulagem a partir de ordenamentos sociais e tenses da histria. no interior destes movimentos

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    marcados por dinmicas de poder e possibilidades sociotcnicas que acompa-nhamos os desdobramentos da linguagem nos contextos miditicos.

    De toda sorte, os signos em exerccio nos/pelos meios de comunicao, graas capacidade que possuem de produzir significados e interpelar su-jeitos, continuam a velar e desvelar, constituir e restringir, regular e libertar. Como em um baile de mscaras, os signos cobrem, recobrem, mas, tambm, descobrem.

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    Artigo recebido em 9 de agosto de 2008.