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1.2 O pensamento republicano e o problema da identidade
Se a Abolição da Escravatura, juntamente com a Revolução Industrial, iniciou
o movimento de liberação da arquitetura brasileira das velhas técnicas e dos velhos
programas ligados ao cotidiano da vida colonial, como disse Lucio Costa (COSTA,
1995, pp. 160-1), a Proclamação da República foi data marcante para inserir a
questão nacional como outra preocupação a ser somada no quadro de sua
renovação.
Ocorrendo apenas a partir do período republicano, o nacionalismo em
arquitetura revelou-se fenômeno posterior ao movimento iniciado pela literatura e
artes plásticas brasileiras na metade do século XIX. Como a chegada da Família
Real deu a partilha para a modernização econômica e a instauração da República
confirmou a primeira etapa da modernização política, finda apenas nos anos 1930,
era chegada a hora das modernizações urbana e cultural, esta última a responsável
por ensaiar uma definição de identidade para a Nação.
Nesse momento, duas prerrogativas se uniram: a atualização do vocabulário
arquitetônico a que corresponderia tais modernizações e o sentimento de
nacionalismo que já acompanhava o desenvolvimento das artes no período anterior
a 1889. No entanto, há diferença fundamental esses dois momentos nacionalistas:
se no primeiro o modelo era europeu, no segundo ele iniciou uma busca por uma
identidade autóctone que, na arquitetura, acabaria por resultar em uma procura por
um “estilo nacional”.
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Na Europa, os estilos nacionais quase sempre foram buscados tendo por
base manifestações artísticas representativas de períodos heróicos do passado,
cujos exemplos podem ser o Estilo Vitoriano, na Inglaterra, ou os “Luíses” na França.
No Brasil, no entanto, essa busca encontrou um vazio que não pôde ser preenchido
da forma européia. Nosso passado arquitetônico mais distante, além de não conter
tantos feitos históricos a considerar, e excetuadas as formas do século XIX que os
republicanos queriam expurgar, só tinha duas raízes: a arquitetura de origem lusa,
aqui aclimatada, e a produção indígena, caracterizada como de “raça inferior” e até
então não estudada.
Em vista da escolha entre esses dois modelos, pensamos que fosse mais
lógico, em uma sociedade estamental, fazê-la em defesa daquela primeira. Tendo,
então, que a arquitetura deveria utilizar-se do vocabulário colonial luso-brasileiro na
busca da definição de um estilo nacional, restava saber em que condições esse
movimento poderia acontecer, pois, de toda forma, a arquitetura antiga deveria
pertencer a um “passado exemplar” (GONÇALVES apud MEURS, 1995, p. 78).
A construção de um passado cuja arte fosse a autêntica expressão da
brasilidade não alinhavou apenas o sentido da renovação arquitetônica, mas
ancorou toda a base do modernismo brasileiro. A montagem de uma “história”
coerente e contínua em todos os seus termos, sobretudo artísticos, era fundamento
necessário à formação cultural da nação e, por isso mesmo, objetivo moderno a
cumprir.
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Assim foi que arquitetura brasileira, em seu processo de definição de uma
identidade nacional, inicialmente durante o ecletismo e de forma mais madura no
modernismo, construiu um “discurso” sobre uma tradição a recuperar bastante
seletiva e, em parte, “inventada”, cujo “passado exemplar” pareceu muito bem
representado pela civilização do ciclo do ouro mineiro.
Justificando. A sociedade do ouro foi, em comparação com a da cana-de-
açúcar, muito mais liberal e progressista: menos familiar, era, em parte
revolucionária, abolicionista e nacionalista. Segundo Comas (1995, p.15), “o
momento lembrado é de fausto econômico”, tendo a sociedade mineira manifestado
pioneiramente “aspirações de independência e unidade nacionais, no marco duma
cultura urbana essencialmente mercantil”. As cidades mineradoras foram “vistas
como símbolo da riqueza nacional, miscigenação cultural e independência” (MEURS,
1995, p. 76).
Ao mesmo tempo, sendo a arquitetura mineira produto do “interior” e não do
“litoral” – portanto, menos propensa à mão do português da costa - podia ela ser
considerada mais brasileira, mais representativa de um gênero artístico nacional do
que qualquer outra.
Paul Meurs, em seu artigo Modernismo e Tradição: preservação no Brasil,
aventou a possibilidade da escolha pela arte e arquitetura de Minas ter sido feita
apenas dentro do âmbito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN), sendo suas principais motivações questões políticas. Ele enfatizou o teor
progressista das revoltas em torno da independência ocorridas como sendo
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respeitável fator ideológico de mobilização dos modernos e lembrou que vários
políticos de importância do cenário nacional à época, dentre eles Capanema,
provinham de Minas. Contestamos suas prerrogativas, na medida em que as
ligações entre modernidade e tradição na cultura brasileira se mostram, claramente,
anteriores a 1934 (posse de Capanema no MES) e a 1936 (ano do anteprojeto de
Mário de Andrade para o SPHAN). Porém, não discordamos que tenha sido a partir
dessas datas que tal elo tenha se fortificado.
Por isso preferimos sustentar que escolher a arquitetura do ciclo do ouro
mineiro fazia parte da relação de negação da Monarquia estabelecida pela
República brasileira em seu processo de modernização da sociedade. Sobre isso,
OLIVEIRA (1997, p. 188) escreve:
Os doutrinadores, historiadores, educadores, jornalistas, cientistas,
enfim, os intelectuais que participaram desta luta ideológica a partir de
1870 tiveram que combater o passado e passaram a caracterizá-lo
como atrasado, retrogrado; a Monarquia como uma anomalia na
América (...). Os republicanos tiveram que construir uma tradição e
uma memória que mostrassem como o regime republicano tinha sido
sempre uma aspiração sufocada pelo governo imperial. Dentre as
revoltas esmagadas e os heróis desta aspiração republicana do
passado, sobressai a figura de Tiradentes.
Quando esse fato se deu, exatamente, não sabemos, sendo esse ponto
objeto de questionamentos futuros. O que podemos ver, apenas, é que uma “ponte”
pode ser feita de maneira mais ou menos simples: se a República inventou a
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tradição do herói libertário que foi Tiradentes, a arquitetura do ouro poderia também
cumprir ao propósito de resgatar um protótipo de sociedade avançada, algo heróica,
como base de uma manifestação artística genuína e nacional.
No entanto, a escolha por uma tradição mineira e mesmo a abordagem com a
qual o material da arquitetura antiga seria tratado no processo de renovação não
foram unânimes. Outras propostas para responder ao tema da identidade existiriam.
Preocupado não só com a brasilidade, mas também com premissas de modernidade
e monumentalidade, o processo de constituição de um estilo nacional de arquitetura
converteu-se em verdadeira luta, com várias vertentes a objetivar sua primazia.
1.3 Modelos de modernidade e de tradição3
O processo de afirmação da arquitetura moderna brasileira seguiu linha
paralela a da definição institucional de uma identidade para a cultura nacional.
Enquanto a modernidade chegava, através das mais dispares expressões formais,
um tipo específico de tradição era construído no âmbito do aparelho de Estado.
Embora não possamos falar em estilo “oficial”, na medida em que o Governo
recorreu a várias alternativas de modernidade arquitetônica simultaneamente,
diremos que uma proposta, a partir de 1937 e, com mais certeza, depois de 1940,
saiu-se vencedora como nossa “receita local” de arquitetura moderna para o mundo.
3 As principais idéias desta parte do texto são fruto do raciocínio desenvolvido pelo Prof. Candido Malta Campos
durante as aulas da disciplina Arquitetura Moderna Brasileira, do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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O anteprojeto de Mário de Andrade para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN) moldou a forma pela qual os arquitetos brasileiros defenderiam
tanto seu passado artístico como suas perspectivas de trabalho no futuro.
Ilustração 9. Caixa d’água de Olinda, com a Igreja da Sé ao lado (projeto de Luís Nunes, com colaboração de Fernando Saturnino de Brito em 1937) e folha de rosto da publicação de Henrique Mindlin, “Modern Architecture
in Brazil”, de 1956: Igreja de Santa Luzia com Edifício do Ministério da Educação e Saúde ao fundo (projeto de Lucio Costa e equipe em 1936).
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 391 e 430)
No entanto, mesmo constatada a aparente vitória, nos perguntamos porque,
dentro de tantas vertentes, a arquitetura moderna de raiz corbusieriana4, aclimatada
pela tradição local, era a solução mais viável em termos de um estilo nacional.
As demandas advindas tanto da inserção do país em uma economia mundial,
quanto do nacionalismo, como das mudanças políticas do século XX propuseram a
4 Lucio Costa citou que Le Corbusier foi o único dos grandes mestres da arquitetura moderna igualmente
preocupado com os três aspectos principais da construção: a revolução técnica, a plástica e a social (que respondia pelo universo do planejamento urbano). No entanto, uma razão que nos parece válida é a de que Le Corbusier, ao defender a arquitetura moderna como legítima herdeira da tradição mediterrânea, forneceu arcabouço teórico que sustentava o “discurso” da tradição brasileira que aqui era elaborado. Conjuntamente, sua arquitetura era, frente a de Gropius ou Mies, a menos avançada tecnologicamente, sendo portanto, adequada ao universo de atraso proposto por nossa “modernização conservadora”.
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seguinte equação: como realizar uma arquitetura nova, igualmente internacional e
brasileira, cuja revolução formal pudesse ainda estabelecer-se como imagem
monumental?
Nenhuma das vertentes antagonistas ao modelo de modernidade e tradição
proposto pelo grupo do (SPHAN) conseguiu responder tão bem a essas
inquietações quanto ele mesmo5. Senão vejamos.
Ilustração 10. Ministério da Guerra. Rio de Janeiro, final da década de 1940.
Fonte: CAVALCANTI (1995, p. 39).
5 Outra razão importante para o debate consistiu na capacidade de resposta da arquitetura moderna não só a vários tipos de programas funcionais, mas também a diversas situações de “local, sítio, entorno e contexto” (COMAS, 2004, pp. 26-7). Nenhuma das propostas, além dela, foi capaz de cumprir tal espectro de soluções.
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O movimento neocolonial resistiu com certa força até, exatamente, o início
dos anos 1940. As razões principais de sua “derrota” perante a empreitada
modernista foram, principalmente, o fato de seus projetistas não terem operado uma
leitura abrangente e nova do passado, realizando quase que uma colagem de
imagens coloniais diversas, por vezes desconexas e desproporcionadas, do que era
nossa tradição construtiva. Faltando-lhes o “dom da criação”, atentaram contra o
novo; ao misturar arquiteturas de países outros, atentaram também contra a
“brasilidade” necessária à representação nacional.
Do ponto de vista teórico, os escritos e manifestos dos neocoloniais não
tinham a perspicácia, o rigor e a erudição das escrituras modernistas. Faltou também
aos neocoloniais algo internacionalizante, que pudesse ser enxergado como
“contribuição” dos brasileiros à cultura mundial.
Embora tenham perdido na continuidade de seu projeto, a postura neocolonial
guiou as primeiras ações estatais no âmbito do patrimônio histórico brasileiro.
Gustavo Barroso, inicialmente frente à Diretoria dos Monumentos Históricos, e, logo
depois, dentro do Museu Histórico Nacional, enfatizou uma tradição ufanista de
civismo simplista, baseada na exaltação dos heróis, símbolos e monumentos
nacionais. Sua ação principal em termos arquitetônicos ficou a cargo da Inspetoria
dos Monumentos Nacionais, criada para orientar as obras de conservação de Ouro
Preto entre os anos de 1934 e 1936. Para ilustrar a ideologia de Gustavo Barroso,
vejamos o que disse Adolpho Dumans sobre o Museu Histórico Nacional:
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Instituto voltado ao culto da história, ao estímulo dos sentimentos
cívicos e patrióticos do povo brasileiro. Nele estão depositados
lembranças e testemunhos da glória nacional, esclarecedoras de
nossas origens e feitos (DUMANS, 1940, p.211).
Sem apresentar uma alternativa de cultura globalizante e sem responder às
três questões por completo, o neocolonial permaneceu como estilo oficial apenas
nos anos de 1920. Se a ele sobrava brasilidade, embora confusa, e algumas
realizações como as da Exposição do Centenário da Independência em 1922
demonstrassem sua capacidade de mostrar-se monumental, faltava-lhe uma
modernidade que pudesse ser enxergada como “contribuição”, esta o grande feito
dos “modernos”.
Outra opção de modernidade recorrente nos anos 1930 foi o Art Déco, ou
clássico modernizado, estilo exaltado na Exposição de Artes Decorativas de 1925,
em Paris. No Art Déco, não faltaram nem modernidade nem monumentalidade; seu
erro residia em não ser um produto de nossa brasilidade, o que também foi tentado.
Vários “abrasileiramentos” foram feitos, sendo o mais conhecido aquele que admitia
a incorporação de motivos marajoaras às linhas clássicas do referido estilo, presente
na proposta vencedora do concurso do Ministério da Educação e Saúde, de autoria
de Archimedes Memória, por exemplo. Por qual razão essa proposta não foi aceita,
sendo ela capaz de responder às três questões citadas, não sabemos. Talvez essa
representação do Brasil, ligada a uma história “menor”, regionalizada, não
convencesse, enquanto a tradição das Minas Gerais, da sociedade do ouro, do
SPHAN, fosse realmente o passado que queríamos exaltar como exemplar.
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Ilustração 11. Projeto vencedor do concurso para o Ministério da Educação e Saúde, de autoria de Archimedes Memória. Rio de Janeiro, 1935.
Fonte: CAVALCANTI (1995, p. 60).
Tendo visto os modelos de modernidade6 e de tradição que ficaram pelo
caminho, comentaremos especificamente sobre o movimento neocolonial e sobre a
vertente projetual que conduziu Lucio Costa e boa parte da arquitetura brasileira em
sua versão local e específica de modernismo.
6 Fora os neocoloniais, os clássicos modernizados e os próprios modernistas, havia, também, os projetistas “acadêmicos”, diretamente ligados à Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Não comentamos a respeito deles, pois, embora se considerassem “modernos”, a reprodução de modelos europeus classicizantes que realizavam não tinha maiores preocupações com a brasilidade. Sua modernidade internacionalista estava mais ligada à inserção do país em uma economia mundial do que às questões de identidade cultural interna.
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1.4 O movimento neocolonial
O nacionalismo, embora disfarçado pelo viés romântico de base européia,
apareceu como tema de nossa intelectualidade ainda no século XIX. Para os nossos
construtores, porém, engenheiros em sua maioria, as “tarefas nacionais” tiveram
peso maior somente a partir do início do século XX, em função das atribuições da
urbanização vindoura e, sobretudo, do impacto ideológico – de caráter republicano,
das comemorações do 4º centenário do descobrimento do Brasil (SEGAWA, 2002,
p.18).
A modernização produtiva e o êxito da economia que marcaram a
transformação do país em Vice-Reino no início do século XIX logo exigiram infra-
estrutura adequada nas cidades, tendo a urbanização respondido ao crescente
povoar que as novas transações atraíam, sendo, ela mesma, negócio dos mais
lucrativos. Ao mesmo tempo, o campo também crescia e novas correntes migratórias
foram geradas pelo deslocar dos centros agrícolas dentro do país.
Com a Abolição da Escravatura, a imigração forneceu mão-de-obra branca
livre necessária ao modelo liberal, em substituição à negra que não mais interessava
econômica nem etnicamente, com o Estado tendo fomentado um novo povoamento
de interesses “arianizadores”. Os anos 1900 marcaram o primeiro grande surto de
imigração não-negra no país, e as lavouras de café entopem-se de estrangeiros, em
sua maioria italianos. Segundo Carlos Lemos (1994, p. 149), em São Paulo, à
época, a cada dez habitantes, cinco eram forasteiros, e dos mesmos, quatro
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provinham da Itália. Depois da cafeicultura, os imigrantes ocuparam os principais
postos de trabalho da indústria incipiente.
A prosperidade de muitos deles incentivou um crescimento da capital
paulistana com edificações realizadas em vários estilos (estávamos no auge do
ecletismo), dos quais sobressaíam, notadamente, os ligados ao Renascimento
Italiano na sua vertente florentina. No entanto, não faltaram construções de aspecto
árabe, espanhol, indiano ou português.
Afirmação étnica e arquitetura caminharam juntas em um período de ânimos
nacionais exaltados. As famílias ricas brasileiras, temendo o avanço do “estranho”,
ameaçadas pelo progresso dos estrangeiros, e quando não, de portugueses
abastados que não se enxergavam como tal, começaram uma campanha
anticosmopolita em busca de uma arquitetura tradicional a qual pudessem se valer
enquanto identidade nacional, em clara oposição aos vários estilos dos de fora.
Lemos chama atenção para outros dados. A partir de 1914, decretada a
Guerra Mundial, as comunicações do Brasil com o exterior ficaram
momentaneamente cortadas, o que dificultou solenemente a importação de material
de construção externo, parte importante no realizar eclético. Simultaneamente, a
chegada do cinema propagou a arquitetura americana em nossas terras, e, em
especial, o estilo “missões” e seus bangalôs.
Por essa época surgiu, com destaque, a figura de Ricardo Severo, engenheiro
português chegado desde 1908 e já reconhecido em sua terra por seus estudos de
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prospecção artística – escreveu Portugália, revista na qual defende a necessidade
de reconhecimento da arquitetura vernacular do norte de seu país. Membro de alta
classe, casado com uma filha de um barão do café, cunhado de Santos Dumont e
dos irmãos Villares, logo pode circular nas altas rodas da aristocracia cafeeira,
tornando-se sócio de Ramos de Azevedo no maior escritório de projetos de São
Paulo.
Bem inserido socialmente, e não bastando a ligação de Ramos com figuras
fortes da República, Ricardo Severo foi logo ouvido em suas preocupações, que de
forma alguma eram diferentes das aspirações nacionalistas republicanas ou dos
interesses das famílias abastadas brasileiras, em sua vontade de afirmação frente à
prosperidade dos estrangeiros.
Ilustração 12. Residência Numa de Oliveira. São Paulo 1916. Ricardo Severo.
Fonte: LEMOS (1979, p. 131).
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Em 1914, em plena guerra, Ricardo proferiu uma conferência “A Arte
Tradicional no Brasil”, de caráter notadamente nacionalista, em defesa de idéias
como pátria, progresso, individualidade, autonomia, integridade e liberdade. Tal fala
é considerada o marco de iniciação do movimento neocolonial, tendo sido publicada
dois anos mais tarde, mesmo ano da feitura de sua primeira casa em estilo
“brasileiro”, pertencente ao banqueiro Numa de Oliveira.
A partir daí muitos foram os combates em relação ao estilo, todos travados
com boa exposição na imprensa. Monteiro Lobato foi um dos que defendeu a causa
de Severo, usando do mesmo tom nacionalista e anticosmopolita. Do lado oposto,
na ponta, estava Christiano Stockler das Neves, influente profissional e defensor
ferrenho da postura eclética academizante. A maioria ficou do lado do primeiro.
O certo é que tais discussões, travadas com afinco nos meios locais,
despertaram a atenção de uma parcela da elite urbana para os elementos antigos,
sejam eles objetos, móveis, edifícios e cidades, o que por si só era uma grande
novidade, em um começo de século ávido por tradição. Esse interesse justificaria,
em parte, as viagens de reconhecimento artístico realizadas primeiro por José Wasth
Rodrigues, depois por Mário de Andrade e pelos modernistas ao lado de Blaise
Cendrars, e, posteriormente, pelos contatados de José Mariano no Rio: Lucio Costa,
Nestor de Figueiredo e Nereu Sampaio.
Não custa lembrar que tais eventos foram importantes para concretizar, duas
décadas depois, no período estadonovista, uma política institucionalizada de
preservação desse mesmo patrimônio, conforme o eixo de pesquisas realizadas
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pelos “Andrades”, Mário e Rodrigo Melo Franco, consolidada como verdadeira
cartilha historiográfica de atuação moderna nas mãos de Lucio Costa.
A viagem do pintor José Wasth Rodrigues foi das mais importantes para a
definição de um repertório formal do neocolonial. “Financiado por Severo, ele reuniu
uma série de documentos sobre a arquitetura antiga em todo o Brasil (desenhos e
aquarelas, sobretudo) na intenção de reconhecer a maior quantidade possível de
informações” (LEMOS, 1994, p. 153, baseado em tradução nossa) que dessem
suporte ao desenvolvimento de um léxico compositivo do estilo por parte de
profissionais avulsos. O conjunto de tal investigação está transposto nos volumes de
“Documentário arquitetônico”.
Outras tomadas de posição ocorreram. Longe de radicalismos e defesas
pessoais de um estilo, Alexandre Albuquerque, contemporâneo de Rodrigues,
enxergou no neocolonial mais uma possibilidade a ser utilizada no grande rol de
tendências que propunha o ecletismo, defendendo, inclusive, que, no caso de São
Paulo, somente tal mistura seria capaz de representar alguma identidade, em um
espaço social de total heterogenia ética. Por fim, seu fala abarcou críticas à simples
aplicação da arquitetura de outrora sem a necessária revisão do “momento
histórico”, certamente diverso, e ao uso de um vocabulário formal bem mais
português que brasileiro nas aplicações neocoloniais daqueles tempos.
Mesmo tendo construído a Estação Ferroviária de Mairinque em 1907 com a
técnica do concreto armado (primeira obra moderna brasileira para alguns
historiadores), Victor Dubugras foi outra personalidade de importância para a
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divulgação de ideais nacionalistas e de edifícios “tradicionais” em São Paulo. Sua
relevância no estudo do estilo se dá por três visadas: primeiro porque foi um dos
pioneiros na realização de residências em quantidade logo no início do movimento;
segundo porque realizou, com o apoio do político Washington Luís, obras oficiais
muitíssimo importantes como a reurbanização do Largo da Memória em 1919 e os
monumentos do Caminho do Mar em 1922; e terceiro porque foi ele, a favor de sua
franca criatividade, um dos que mais colaborou para a descaracterização do estilo,
ao misturar, quase que incansavelmente, elementos de épocas e aplicações tão
distintas. Sobre isso, diz-se que Dubugras não era um profundo conhecedor do
estilo, sendo suas viagens raras e circunscritas aos arredores de São Paulo, o que
lhe garantia, no mais, um interesse maior pela arquitetura dos “bandeirantes”.
Ilustração 13. Rancho da Maioridade 1922. Projeto de Victor Dubugras no Caminho do Mar.
Fonte: LEMOS (1979, p. 132).
A suposta falta de princípios artísticos rígidos do neocolonial - francamente
inserido em um ambiente eclético – foi a tônica de sua condenação enquanto estilo
pelos recém-convertidos modernos. Muitos fatores alimentaram tal desvio: primeiro a
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própria falta de conhecimento e documentação da arquitetura antiga, (por vezes
tentada, como já dito) aliada à constante confusão no uso de elementos da
arquitetura civil e da religiosa, que prevaleceu no fim do movimento, graças à sua
extensa ornamentação; segundo o despreparo dos profissionais de “menor escalão”
que, quando não inventavam, repetiam soluções estéticas consagradas em outros
arranjos formais menos qualificados; terceiro a impossibilidade cada vez maior de se
rejeitar as técnicas e o viver modernos que, quando aplicadas a um receituário
vernacular, acabavam em erros constantes; e quarto a presença direta da
propaganda cinematográfica americana a noticiar as “modas”, como o estilo
“missões” ou mesmo o “mexicano”, e sua conseqüente procura pelos clientes.
Do encontro desses dois indivíduos – o proprietário, saído do cinema a
sonhar com a casa vista em tal fita, e o arquiteto, saído da escola a
sonhar com a ocasião de mostrar as suas habilidades -, o resultado
não se fez esperar: em dois tempos transferiram da tela para as ruas
da cidade – desfigurados, pois haviam de fazer “barato” – o bangalô, a
casa espanhola americanizada e o castelinho (COSTA, 1995, p. 461).
Não é sabido, ao certo, como as idéias dos paulistas chegaram ao Rio de
Janeiro. O mais provável é que tenha sido através da imprensa, da trincheira que
havia se tornado as disputas intelectuais entre Monteiro Lobato e Christiano das
Neves. As duas cidades trataram de forma distinta o fenômeno:
Se em São Paulo a onda nacionalista na arquitetura nasceu da
necessidade da classe média de reafirmar-se frente aos imigrantes
que haviam ascendido socialmente, no Rio de Janeiro a euforia
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patriótica se gestou durante os dias comemorativos do Centenário da
Independência, quando pavilhões da exposição realizada nessa
cidade foram levantados no novo estilo a fim de mostrar que o Brasil,
como país livre, inclusive na arquitetura, podia reafirmar-se no
concerto das nações por ser dono de uma personalidade própria. Daí
em diante, na capital da República, o estilo “oficial” para os novos
edifícios públicos foi o tradicionalista (LEMOS, 1994, p. 157, tradução
nossa).
Na Capital Federal, o tom nacionalista na arquitetura foi encabeçado pela
figura bem-nascida do médico pernambucano José Mariano Filho, cujo proselitismo
vigorou a partir de 1920.
Já relatamos a importância de sua atuação enquanto financiador de
importantes viagens de pesquisa durante a década de 1920, mas sua atuação foi
bem mais ampla, pois se tratava de um “agitador cultural” do campo da arquitetura
naquela época. Além de bom mecenas de jovens alunos interessados, circulou por
periódicos, dirigiu entidades profissionais, sociedades artísticas e organizou
concursos privados, sempre tendo como foco a divulgação do “tradicionalismo”.
No panorama geral do movimento, o caso excepcional para entendermos de
que forma a oficialidade abraçou a nova causa da tradição foi a Exposição
Internacional do Centenário da Independência em 1922, no Rio de Janeiro, ano
também da Semana de Arte Moderna em São Paulo. Segundo Yves Bruand,
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o sucesso do neocolonial (...) (na exposição do Rio) teve profunda
repercussão; o estilo não apreciado apenas em termos locais, mas
também elogiado pelos estrangeiros, encantados com o exotismo que
ele exalava; por sua vez, esses elogios reforçaram o entusiasmo
brasileiro pelo movimento, que a partir de então passou a contar com o
apoio oficial declarado (2003, p. 56).
Ilustração 14. Pavilhão das grandes indústrias na Exposição Internacional do Rio de Janeiro. Arquimedes Memória e F. Cuchet. 1922.
Fonte: BRUAND (2003, p. 56).
Tido como “símbolo da emancipação artística do país” (ibid, p. 55), o estilo
não constituiu a totalidade dos pavilhões, mas foi o que mais chamou a atenção do
público, tendo por comparação o “brasileirismo” virtuoso e local frente aos exemplos
ecléticos exibidos pelos estrangeiros. Os edifícios mais significativos, em ordem
decrescente, foram: o Pavilhão das Pequenas Indústrias, o Pavilhão das Grandes
Indústrias (atual Museu Histórico Nacional) e o Pavilhão de Caça e Pesca, todos
diferentes em suas abordagens do tradicional.
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Após essa bem sucedida empreitada e em virtude do prestígio social de José
Mariano, o neocolonial tornou-se “quase uma obrigação nos concursos de seleção
de projetos para os pavilhões brasileiros, como demonstram as exposições
(internacionais) de Filadélfia (1925) e de Sevilha (1929) e a seleção do projeto para
a Escola Normal em 1928” (LEMOS, 1994, p. 158, tradução nossa).
Durante toda a década de 1920, o neocolonial será o estilo tanto nacional
quanto oficial, encontrando “adversários fortes” somente a partir da década de 1930,
quando mais alternativas modernizadoras surgem: o clássico modernizado,
comumente chamado Art Déco, estilo soberano na Exposição de Artes Decorativas
de 1925 em Paris, e o próprio racionalismo de raiz corbusieriana, melhor assimilado
após a passagem do mesmo Le Corbusier pelo Brasil em 1929.
Como não é raro, o neocolonial prescindiu dos arquitetos para sobreviver.
Carlos Lemos chama a atenção para a divulgação do estilo em âmbitos extra
profissionais. Em parte vislumbrada pela propaganda em periódicos da Capital, em
parte pelo trabalho de “compatibilização” eclética do trabalho de Severo em São
Paulo, a “casa colonial” chegou mesmo a constituir-se como gosto popular, com
soluções inventivas próprias desvinculadas de qualquer erudição, até a metade da
década de 19307.
No entanto, a vontade modernizadora característica do neocolonial - no
sentido de atualizar nossa arquitetura senão com as técnicas ou com o viver
contemporâneo, mas pelo menos com os vocabulários e conceitos nacionalistas que
7 Daí uma pista do abandono gradativo do estilo por parte das elites e da lenta assimilação do vocabulário modernista em construções particulares a partir desta época.
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emergiam de uma novíssima sociedade republicana - operou uma posição “que
admitia uma ruptura fundamentada em padrões do tradicionalismo (...) (sendo)
incapaz, (entretanto), de estabelecer uma crítica coerente sobre a imprevisibilidade
do novo” (SEGAWA, 2002, p. 38).
1.5 Os intelectuais, os artistas e o nacionalismo
Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com
violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o
prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado
de espírito nacional (ANDRADE, 2002, p. 475).
Ao contrário das vanguardas européias que inauguraram a arquitetura
moderna no mundo, a arquitetura brasileira de mesma raiz adotou a história e a
tradição como um dos seus principais temas de experimentação formal e de
autolegitimação. Tal construção foi discutida até aqui em função do pensamento
republicano que, desde o fim do século XIX, nos incitava a formar a Nação; nos
termos colocados pelos ideais nacionalistas que, da mesma forma que na política e
na economia, internalizavam no país a necessidade de um projeto de cultura que
pudesse projetá-lo no cenário de internacionalização que o século XX exigiu.
Desse momento nacionalista, já destacamos a importância da virada do
século enquanto momento modernizador e dos ares de comemoração ufanista do IV
Centenário do Descobrimento e do I Centenário da Independência, este 22 anos à
frente do primeiro. Durante esse tempo, na arquitetura, o movimento neocolonial
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comandou a discussão em torno da criação de um estilo nacional e, para tanto,
colocou em pauta que valor tinha nossa arte colonial ou, pelo menos, parte dela,
como já vimos.
No campo das artes, o começo do século XX foi movido por ares
internacionalistas. Um dos grandes acontecimentos de 19178 foi a exposição das
telas expressionistas de Anita Malfati que, abrindo as portas do país às idéias
“futuristas”, desencadeou o período de polêmica renovação das artes plásticas.
Em seguida, a chegada do escultor Victor Brecheret da Europa e sua
descoberta em 1920 por Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia foram outro ponto
importante para o nascimento de uma estética modernista entre nós. Desse artista,
contaram episódios: a leitura “da inocência dos primitivos” feita de suas obras pelo
mesmo Oswald, a inspiração de Mário de Andrade para escrever Paulicéia
Desvairada, revelada pela obra Cabeça de Cristo e a encomenda pelo então
governador de São Paulo Washington Luís do Monumento dos Bandeirantes,
considerada “a primeira vitória oficial do modernismo brasileiro” (AQUINO, 2003, p.
29).
Nos cinco anos que separam a exposição de Anita do “levante” da Semana
de Arte Moderna em São Paulo, diversos artistas brasileiros mantiveram contato
com a Europa, tendo formado-se, aqui, uma elite de intelectuais antenados com toda
a produção artística européia, notadamente com a de Paris. Essa ponte possibilitou
a divulgação, para os paulistas, dos diversos “ismos” (futurismo, dadaísmo,
8 É sabido que nesse ano Mário de Andrade visitou Congonhas do Campo, tendo conhecido, não sabemos se pela primeira vez, a obra de Aleijadinho (ANDRADE, 1965, p. 44).
75
fauvismo, cubismo e surrealismo) manifestações cujo conteúdo sintonizavam com o
clima urbano e industrial que a cidade começava a viver.
Ilustração 15. Estudo para a boba, de Anita Malfatti e Cabeça de Cristo, obra de Victor Brecheret.
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 54 e 56).
Os questionamentos quanto ao verdadeiro impacto provocado pela Semana
ainda são muitos. O repetido é que foi menor do que a história comum nos tem
contado, que a “revolução” exibida foi parcial e que as reais conseqüências das
atitudes da Semana só puderam ser percebidos bem depois. Sodré nos diz que ela
foi “uma ruptura com as idéias vigentes, mas uma ruptura sob proteção das
representações mais consagradas do regime, as mais austeras, as mais
conservadoras” (SODRÉ, 2003, p. 32). Idéia para qual Mário de Andrade, no clima
fim-de-festa do texto O movimento modernista, de 1942, colabora:
A Semana marca uma data, isso é inegável. Mas o certo é que a pré-
consciência primeiro, e em seguida a convicção de uma arte nova, de
76
um espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo
no...sentimento de um grupinho de intelectuais paulistas (ANDRADE,
2002, p. 475).
Ilustração 16. Capas de importantes publicações modernistas.
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 165, 166, 167 e 168)
Na Semana, a arquitetura contou apenas com um projeto de indefinido
neocolonial, realizado por Pzyrambel, e uma seleção de obras ligadas à arte pré-
colombiana, de autoria do arquiteto Moya. Quanto ao primeiro, este era exaltado por
suas características de “modernidade” e “nacionalismo”, com o próprio Mário de
Andrade defendendo a adoção do estilo e o justificando como uma tentativa válida e
“moderna” de renovação arquitetônica.
Exceto pelas preocupações dos arquitetos neocoloniais, podemos dizer que a
primeira fase de nosso modernismo se caracterizou
pelo combate ao passado, pela elaboração de uma nova estética
adequada à vida moderna e pela captação da realidade atual
entendida como a vida urbana e industrial que tinha São Paulo seu
77
exemplo máximo. Nesse momento, pensava-se ser possível participar
da moderna ordem mundial, desde que se afastasse o passado que
teimava em permanecer (OLIVEIRA, 1997, pp. 190).
Ilustração 17. Antropófago, 1921. Vicente do Rego Monteiro.
Fonte: SCHWARTZ (2002, p. 53).
Após a Semana iniciou-se uma nova fase, mais nacionalista, do modernismo
artístico. As críticas à produção geral de 1922, considerada alheia à questão da
identidade nacional, colocaram um certo freio no tom internacionalista e mudaram
seus rumos, na medida em que era esperado “que a arte, no compasso das idéias e
dos projetos políticos, contribuísse para formular um ‘pensamento sobre o Brasil’”
(FONSECA, 2004, p. 101).
Desde então, o grupo modernista elaborou uma estratégia de reconhecimento
das artes da nação brasileira, tendo por base uma cartilha “primitivista”, conforme os
acontecimentos europeus recentes. Começam por Minas, talvez pelas razões aqui já
descritas. Segundo Fonseca,
78
o início desse processo de auto-reconhecimento e de reconhecimento
das culturas extra-européias pode ser buscado no surgimento de
idéias “primitivistas”, que marcaram toda uma geração de artistas na
Europa e, contaminando o campo das artes no Brasil, conduziram à
formulação de projeções de tipo nacionalista (ibidem).
Ilustração 18. Capa da revista francesa Cannibale, 1920 e a tela Antropofagia, de Tarsila do Amaral, 1929.
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 27 e 29).
Na Europa, artistas como Picasso se mostram claramente tocados pela arte
africana. Gauguin, Cézanne, Van Gogh ou o Matisse fauvista também fizeram
incursões estéticas a formas menos “acabadas” de arte, de certo motivados pelo
crescente interesse dos europeus na descoberta de culturas menos civilizadas. “Os
artistas haviam começado a ‘colecionar” arte não-ocidental, haviam ‘descoberto’ a
arte africana através de objetos adquiridos em bistrôs, através dos museus
etnográficos e das discussões geradas pelos historiadores de arte sobre esse tipo
de objeto artístico” (ibid, p. 104).
Em 1924, os modernistas liderados por Mário de Andrade organizaram uma
grande viagem exploratória ao interior de Minas, imbuídos da razão nacionalista a
79
que foram impelidos e conscientes da ligação que deveriam fazer. No mesmo ano,
financiado por José Mariano, Lucio Costa conheceu Diamantina.
Embora com focos diferentes - a primeira observou com detalhe o folclore e a
arte, a segunda fez uma documentação de arquitetura antiga; as viagens se
aproximavam em sua ideologia: era no homem, na natureza e na arte brasileira que
nossa modernidade deveria se apoiar quisesse ela ser autêntica.
A segunda fase do movimento modernista tem na questão da
brasilidade seu eixo principal. (...). O modernismo cria e difunde a
necessidade de identificar a substância do SER brasileiro, denuncia os
conhecimentos/saberes atrasados que impedem a captação do ser
brasileiro e colabora na elaboração de inúmeros “retratos do Brasil”
(...) (OLIVEIRA, 1997, pp. 190-1).
Embora nacional, parte do teor local do “ser” brasileiro se mostrava como
típico dado do momento cultural europeu, desenvolvido, sobretudo, por Jean-
Jacques Rousseau. Fonseca nos diz:
Visões mais positivas da pureza e bondade essencial da vida
“primitiva”, em contraste com a decadência das sociedades ocidentais
supercivilizadas, ganhavam espaço. Essas visões eram influenciadas
por noções do “bom selvagem” (derivadas dos escritos de Jean-
Jacques Rousseau) e de tradições de pastoralismo na arte e na
literatura. (...). Essas tradições supunham que havia uma relação entre
pessoas “simples” e expressão mais direta ou purificada; exaltavam o
80
camponês e a cultura popular como evidência de um tipo de
criatividade inata (2004, p. 104).
As conseqüências do pensamento primitivista ecoaram com maior volume de
1924 até 1930. Além das viagens citadas, Lucio foi novamente a Diamantina (1927)
e Mário de Andrade conheceu a Amazônia e o Nordeste no biênio 1927-8. Na
literatura é lançada uma série de textos-manifestos de um programa primitivista para
a cultura brasileira: Oswald de Andrade redigiu o Manifesto Pau-Brasil em 1924 e o
Manifesto Antropofágico em 1928; já em 1929, o Grupo da Anta, de oposição,
lançou o Manifesto Nhegaçu Verde-Amarelo. Foi em 1928, também, que Mário de
Andrade escreveu “Macunaíma. O herói sem nenhum caráter”, prosa emblemática
do período.
Embora o primitivismo tenha sido a veia que irrigou o pensamento geral do
segundo momento modernista, o conjunto dessas idéias não era uniforme. Várias
tendências se sobrepuseram quanto a que posição tomar frente ao desafio de uma
cultura nacionalizante. Segundo Oliveira (1997, p. 191) nossos intelectuais agiram
em três orientações bem distintas:
a) (...) dispensar o todo. O exemplo mais significativo é o Movimento
Verde-Amarelo, que tem como proposta abandonar as influências
européias, fixar-se na originalidade brasileira, voltar aos mitos
fundadores, ao mito tupi (...). Aceitam a vida no interior, regional, como
a que teria se mantido mais autêntica em oposição ao litoral, visto
como a parte falsa e enganadora do Brasil (...)
81
b) (...) deglutir o todo. O exemplo relevante é o Movimento
Antropofagia, que propõe a apropriação das influências européias pelo
canibalismo cultural (...)
c) (...) incorporar-se ao todo. A via analítica e erudita de Mario de
Andrade que se dedica aos estudos do folclore e da música é
exemplar. É desta vertente que sairá o grupo que mais tarde criará o
Serviço do Patrimônio Histórico, com Rodrigo de Melo Franco.
Dessas posições, nos interessa mais perceber a proposta dos últimos, pois é
dela que surgiriam as principais referências em termos do desenvolvimento da
arquitetura futura: a erudição referida de Mário de Andrade contaminou o
pensamento arquitetônico não mais em favor de um estilo, como foi o neocolonial,
mas de uma estratégia projetual ampla e plural. Sua idéia de nacionalismo e de
modernidade previu abranger o passado local e a atitude internacional modernista
em um mesmo corpo artístico, cujo caráter era totalmente diferente dos que lhe
deram origem.
Com isso, uma grande inversão de valores foi operada. Se, para os
antropófagos, nossa cultura, um tanto primitiva, precisava de referências européias
para se valorizar no plano interno, para Mário de Andrade, nós éramos notórios
criadores, a colaborar, mundialmente, com um novo modelo de modernidade,
efetivamente comprometido com a história e com a tradição. Tomando os mesmos
elementos de antes, ao assumir a brasilidade como traço sui generis, heterogêneo e
espetacular de uma nação moderna que nascia nos trópicos, sua teoria foi capaz de
enxergar naquilo que era expressão de atraso, verdadeira contribuição do povo
brasileiro à cultura universal, sendo essa capaz não só de nos atualizar
82
artisticamente, mas de recolocar a ordem das coisas, indo contra o sentido indicado
pelo recalque primordial.
Com seu texto de 1928, Arquitetura Colonial, cujo sentido orientará,
principalmente, as idéias de Lucio Costa, ele diagnosticou a pretensa ligação que
poderia se fazer entre nosso passado arquitetônico e a arquitetura moderna.
A arquitetura modernista, a meu ver, não permanecerá nem no
anonimato nem no internacionalismo em que está agora. Se se
normalizar ela virá, fatalmente, a se distinguir em frações étnicas e a
se depreciar em função do indivíduo.
Se assim é, nada mais justo que a procura e fixação dos elementos da
constância arquitetônica brasileira. É com eles que, dentro da
arquitetura moderna, o Brasil dará a contribuição que lhe compete dar
(ANDRADE, 2006).
Entrelinhas que deixam ver como a arquitetura, inserida em um projeto
cultural amplo e ambicioso, poderia ser capaz de colocar o país, através da
brasilidade, na roda intelectual da modernidade mundial. Por isso não foi simples o
papel atribuído a ela no quadro, tanto dos profissionais quanto das preocupações
espirituais, do Patrimônio.
83
84
Capítulo II
Renovação e tradição
2.1 Os anos 1930-40 e a maturação do projeto modernista brasileiro
Os anos 1930 foram palco de modificações no quadro político e econômico de
conseqüências marcantes no campo das artes. A instauração através de um golpe
de Estado de um governo de caráter modernizador forneceu a base institucional
necessária para o preparo, por parte de nossos altos intelectuais, de um projeto de
cultura moderna para o país (em progresso desde os anos 1920) em consonância
com o desenvolvimento vislumbrado pelos novos agentes econômicos saídos do
crescente fluxo industrial. A crise mundial deflagrada pela quebra da bolsa de Nova
Iorque em 1929 mostrou-se como a primeira grande depressão capitalista do mundo
liberal (e do universalismo, por extensão) e motivou, no âmbito do pensamento
contemporâneo, um questionamento dos valores internacionalistas.
Nas artes plásticas e na literatura brasileiras ocorreu uma politização das
temáticas, em escala menor do que se verificará em 1945, mas de toda forma o
movimento se inicia aí. Como exemplo, em 1934, vestido com a roupa socializante
que a arte moderna deveria costurar, Lucio Costa escreve o artigo Razões da Nova
Arquitetura, em que defende a arquitetura moderna e a industrialização da
construção civil do país.
85
Ilustração 19. Operários, obra de Tarsila do Amaral em 1933 e Marias, de Cândido Portinari, obra de 1936.
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 68, 69 e 98).
Ilustração 20. São Paulo em 1940 (foto de Marcel Gautherot) e Capa do “romance proletário” Parque Industrial, obra de Mara Lobo em 1933.
Fonte: SCHWARTZ (2002, pp. 238 e 174).
Mas embora o clima fosse de euforia, de ordem e progresso estadonovista,
de industrialização acelerada e relações estreitas com o mundo “civilizado”, a
caracterização do Brasil nesta década, que vai de 1930 a 40, é um pouco diferente
do costumeiramente descrito. Ao mito do mundo urbano se sobrepunha uma
realidade rural, onde “ainda em 1940, 70% da população aí residia” (GARCIA;
86
PALMEIRA, 2001, p. 40), sendo a população urbana de apenas 12,3 milhões de
pessoas9. Não bastasse isso, o país mostrava-se dividido em regiões quase sem
integração, regidos pela autoridade das oligarquias locais; estas os verdadeiros
donatários do “espaço físico e o poder social” (ibidem) até a metade do século XX.
É mesmo de assombrar como o Rio de Janeiro mantém, dentro de sua
malícia vibrátil de cidade internacional, uma espécie de ruralismo, um
caráter parado tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é
dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o “exotismo”
nacional (o que aliás é prova de vitalidade do seu caráter), mas a
interpenetração do rural com o urbano (ANDRADE, 2002, p. 476)
Le Corbusier e o tradicional.
Por volta de 1930-1, já contra o referido internacionalismo, Le Corbusier partiu
em incursões vernaculares, em certo motivado por sítios agrestes, fazendo que, por
extensão, tal plástica logo seja percebida nos acontecimentos futuros da arquitetura
brasileira. Exemplo é o projeto da Vila Operária de Monlevade, em 1934, de Lucio
Costa, no qual um programa social privado (habitação coletiva) é lócus de
interpretações racionais e tectônicas ao mesmo tempo.
Os anos 30 indicam a paulatina substituição do discurso progressista
maquinista por um tom de conversa mais afim à redescoberta de uma
tradição inclusiva. Ao processo de destilação por que passa a
arquitetura moderna no início da década anterior sucedem os
9 Dados considerados a partir do Censo de 1940. Retirado de BERQUÓ (2001, p. 30).
87
requerimentos de transformação dos anos de depressão da década de
30 (HECK, 2005, p. 24).
Assim que se estabelecem os termos básicos do discurso sobre o
novo “estilo” – que seria decodificado e chamado de International Style
em 1932 por Henry-Russel Hitchcock e Philip Jonhson, em exposição
no MoMA de Nova York -, surgem variações de cunho tradicional
vernáculo em um novo gênero de matérias próprias da arquitetura,
livres ainda das matizes historicistas. Le Corbusier recebe o encargo
da casa Errazuris (1930) no litoral chileno: vislumbrando o potencial de
uma linguagem que seria enriquecida pela mistura de materiais e
formas (ibidem).
Ilustração 21. Casa Errazuris, Chile 1930. Le Corbusier.
Fonte: BOESINGER (1994, p. 68).
De tal forma, o ano de 1934, por Monlevade e Razões, marcou o início do
período principal para a definição do debate modernidade versus tradição na
arquitetura brasileira. Depois dele, 1936 e 1937 foram importantes: o primeiro é ano
do projeto do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro e da segunda
88
passagem de Le Corbusier pelo país; no segundo é fundado o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e escrito Documentação Necessária, seu
“texto-cartilha”.
Até o biênio 1942-3, quando a Pampulha e o MES foram concluídos, temos
mais acontecimentos marcantes e indispensáveis para o cenário. Em 1939, a
participação de Lucio Costa e Niemeyer na feitura do Pavilhão de Exposições em
Nova Iorque e o imediato reconhecimento das características inovadoras e
“nacionais” de nossa arquitetura são, junto com a divulgação internacional do
Ministério, as portas para a realização da exposição Brazil Builds no Moma, do qual
resultou o importante e homônimo catálogo.
Ilustração 22. Dois exemplos do “milagre”: Ministério da Educação e Cultura 1936. Lucio Costa e equipe; e Pavilhão do Brasil em Nova Iorque 1939. Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
Fonte: WISNIK (2001, pp. 52 e 64).
Como nos adverte Comas (2005), tal iniciativa não foi um olhar exclusivo para
nossa produção, como pode parecer inicialmente, mas estava antenada com a
89
divulgação da produção de várias regiões e tendências. A crise de 1929 abriu os
olhos modernos para a falência do salvacionismo internacionalista e atraiu a atenção
para as caracterizações nacionais, com a divulgação da arquitetura mexicana e
finlandesa, por exemplo. A nossa, especificamente, sobressaía por ser filha de uma
nova nação, sem grande lastro intelectual a priori e mesmo poder econômico. Outra:
a vinculação muito acertada do trabalho de Niemeyer na Pampulha e daí com o
resto de sua obra com o barroco - com as curvas, com o irracional, exuberante e
sensual ambiente natural e cultural do Brasil, fez do conjunto da arquitetura brasileira
um “milagre”; misto de graça, despretensão, ironia e refinamento que muito agradou
ao ambiente desiludido da Guerra.
Ilustração 23. Capa e folha de rosto da publicação Brazil Builds mostrando o Cassino da Pampulha, de Oscar Niemeyer.
Fonte: GOODWIN (1943).
Por essa época, a nova construção brasileira realizou o que Otília Arantes
chamou de depuração negativa, uma espécie de inversão de valores - possível aqui,
em virtude de nossas condições histórico-materiais e de nosso formalismo
exacerbado, em que o “irracional” reclama para, em primeiro plano, a perfeição
90
mecânica apresentada pelo International Style e, em segundo plano, para a
consciência do esvaziamento social da arquitetura moderna. Em palavras exatas, “o
Movimento Moderno fora levado a confessar na periferia o que escamoteara no
centro (...) (pois) tudo poderia muito bem não passar de um jogo abstrato de formas”
(ARANTES, 1997, p.127). A curva de Niemeyer acabou sendo a mais consagrada
vertente de nosso fazer arquitetônico, arquitetura moderna sem cânones
funcionalistas estritos, mais livre, moldada em concreto, material de plástica fluida e
lírica.
Ilustração 24. Casa de Baile. Pampulha, Belo Horizonte 1942. Oscar Niemeyer.
Fonte: GOODWIN (1943, pp. 188-9).
Por outro lado, sem as curvas de Niemeyer, nada exclusivas no período
(COMAS, 2005), a arquitetura realizava outro modelo de brasilidade, cujo sentido foi
descrito pelo SPHAN e pelo texto de Documentação, mas que só pode ser realizado,
- embora tenha havido Monlevade - no Museu das Missões pelo mesmo Lucio
Costa. Ali, em concomitância com o projeto do MES, era executada, com técnica
“arqueológica”, a ligação buscada pelos modernistas: a vinculação de nosso
91
passado a um futuro, e vice-versa, uma forma de tornar o novo aceito e o velho
reconhecido e valorizado.
Assim, em duas linhas e de forma paralela, mas tocando-se vez por outra,
caminhava nossa produção. Ora curva e serpenteante, ora retilínea e tradicional.
Como na teoria de Lucio, exposta posteriormente em 1952, em Consideração sobre
Arte Contemporânea: nossa arte era o resultado da fusão de dois conceitos opostos
e complementares, capazes de resumir toda a história universal.
2.2 Lucio Costa
De Lucio Costa em diante, salvo engano, ninguém historiou a
arquitetura brasileira sem, de um modo ou de outro, com maior ou
menor intensidade, tomá-lo como modelo de análise. A revisão de toda
nossa historiografia arquitetônica das ultimas décadas passa
obrigatoriamente por ele (...). Daí a necessidade de relê-lo também
como historiador, ou melhor, como criador de um projeto
historiográfico que vingou plenamente no país. (PUPPI, 1998, p. 12).
O entendimento dos enunciados e da atuação profissional do arquiteto Lucio
Costa permanece um enigma da arquitetura brasileira do século XX. Difícil não é,
porém, ver a dimensão de sua importância. O perfil do arquiteto, que combinava o
articulador teórico e o homem prático, é chave de interpretação de nossa
modernidade, ao lado de outros intelectuais que colaboraram para a definição do
que seria uma cultura moderna e nacional.
92
Lucio era um homem extremamente conservador. Ele mesmo não cansou de
repeti-lo. Nascido em 1902 em Toulon, França, era filho de pai engenheiro naval,
militar de alta patente e veio para o Brasil ainda pequeno. Sua estada no Brasil foi
curta e não durou para que voltasse à Europa, vivendo boa parte da infância e
adolescência e, portanto, seus estudos primários, em cidades como Newcastle e
Liverpol na Inglaterra; Friburgo na Suíça e Paris e Montreaux na França.
Aos 15 anos, ingressou na Escola Nacional de Belas Artes, onde se formou
arquiteto em 1923. De antemão, podemos dizer que sua formação se deu em meio
ao academicismo reinante, sendo simpatizante do movimento neocolonial desde
estudante.
Entre 1919 e 1921, trabalha como desenhista na Firma Rebecchi e no
Escritório Técnico Heitor de Mello, dirigido por Archimedes Memória e
responsável por importantes projetos no Rio de Janeiro, entre os quais
os principais edifícios da Exposição Internacional do Centenário da
Independência em 1922. (...). Nessa época, o jovem estudante
envolve-se, inspirado em grande medida por seu professor e líder do
movimento colonial, José Mariano Filho, no movimento pela criação de
uma arquitetura nacional, inspirada nas construções do colonial
brasileiro (WISNIK, 2001, p. 122).
José Mariano Filho, médico de grande prestígio no Distrito Federal, financiou
as viagens que o jovem Lucio realizou às cidades históricas de Minas. Na primeira,
em 1924, ele conheceu Diamantina, Sabará, Ouro Preto e Mariana. Na segunda, em
1927, logo após uma ida à Europa, ele passou mais três meses “mineiros”,
93
aprofundando os estudos sobre a arquitetura tradicional. Nos textos, a cidade que
mais relatou foi Diamantina, que disse ter visitado em 1922, embora um documento
que aparece em seu livro “Registro de uma vivência” (COSTA, 1995, p. 28) revele a
datação descrita por Guilherme Wisnik, de 1924. Não entendemos o motivo de tal
gesto.
Muito se fala do valor de descoberta dessas viagens na “conversão moderna”
do Lucio neocolonial para o Lucio modernista. Ele mesmo atribuiu a sua ida a
Diamantina de 1927 tal mudança radical. Para ele, o contato com a verdadeira
essência do estilo, lá, no “Brasil profundo”, abriu seus olhos para a “macaqueação”
quase sempre realizada pelos neocoloniais. Intriga-nos apenas que o tom que
envolveu a mudança seja sempre simplista. “De repente” é a palavra, e assim tudo
toma o caráter de milagre.
Além das viagens, a primeira coincidente em data com a de Mário de Andrade
e Blaise Cendars, outros episódios contam a reviravolta. Em 1929, ele descobriu,
também fortuitamente, o projeto da Casa Modernista de Warchavchik, publicado em
Para todos (WISNIK, 2001, p. 123). No mesmo ano da visita nada atrativa de
Corbusier, sua nova fé começa a dar frutos e a desconfiança demonstrada em
relação à arquitetura moderna começa a se desfazer.
Tais tensões se traduziram em sua obra material. Em 1930, ele projetou duas
versões para uma mesma casa, a Ernesto Gomes Fontes: uma, a última de caráter
academizante; a outra, uma proposta notadamente moderna. Lucio ainda oscilava
entre uma Europa maquinista e um Brasil escravista.
94
Ilustração 25. Duas propostas para a Residência Ernesto Gomes Fontes, 1930. Lucio Costa.
Fonte: COSTA (1995, pp. 58 e 60).
Tendemos a acreditar que a crise de 1929, o declínio parcial de nossas
oligarquias rurais e o clima político também tenham orientado as opções do
arquiteto. Se a crise capitalista despertou o Primeiro Mundo para a necessidade de
tradição, para nós ela pediu o contrário. Ela nos deu uma injeção de velocidade
burguesa que Lucio talvez queira ter aproveitado. A modernidade pedia, pelo menos
em parte, o abandono de certos valores rurais.
Ilustração 26. Casa em Le Mathes, 1935. Le Corbusier.
Fonte: BOESINGER (1994, p. 69).
Na impossibilidade da burguesia particular assumir a modernidade
imediatamente, por questões econômicas e ainda estéticas, a resolução completa
95
pelo projeto modernista só se confirmou no biênio 1930-1, quando o Estado Novo,
de caráter notadamente modernizador, tomou fôlego e o emprestou aos nossos
intelectuais, incumbindo-lhes de realizar, por vez, um projeto de cultura para o país.
As incoerências e indefinições dos nossos homens de inteligência, nos anos 1930,
dissolveram-se, pelo menos em parte, em favor de uma certeza progressista clara,
nacionalista, sob a tutela do Estado.
Em 1930, antes mesmo da deflagração da revolução, Lucio foi convocado por
Francisco Campos, então Ministro de Educação de Washington Luís, a assumir a
direção da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), por indicação de Rodrigo Melo
Franco de Andrade.
De posse de plenos poderes para empreender uma ampla reforma na
ENBA, o arquiteto surpreende a todos ao romper publicamente com o
movimento neocolonial na primeira entrevista concedida como diretor,
intitulada “A situação do ensino das belas-artes”. Então, afasta alguns
dos antigos professores, substituindo-os por arquitetos e artistas
alinhados ao incipiente movimento moderno, como Warchavchik,
Affonso Eduardo Reidy, Alexander Buddeus e Leo Putz (WISNIK,
2001, p. 123)
A parte superficial de tal batalha entre acadêmicos e modernos já é de todo
conhecida e sua real importância é objeto de estudo de outros pesquisadores. Maria
Lúcia Bressan Pinheiro (2005, p. 5) relata que o convite, como já dito, foi anterior ao
Estado Novo, por parte do Ministério, e realizou-se em função não do alinhamento
moderno do arquiteto, mas de sua ligação com o tradicionalismo.
96
Segundo a pesquisadora, a reviravolta de Lucio ocorreu publicamente já
como diretor, e, passado alguns meses, já no Estado Novo, como é possível ver em
uma entrevista dada ao jornal O Globo, em que o arquiteto fala de “reforma”, assim
“como é do pensamento do governo”, “transformação radical”. Ao fim das citações
contidas no trabalho de Pinheiro, aparecem frases relativas à verdade construtiva e
ao conhecimento real de nosso passado arquitetônico, o binômio conceitual mais
repetido nas falas do profissional. O texto de Maria Lúcia revela outras surpresas
quanto às razões da saída do diretor, mas não cabe aqui repeti-las. Este episódio, a
reforma da ENBA, ainda tem peso considerável na historiografia atual, pois
considera-se que a partir daí e do Salão de 31, organizado pelo próprio Lucio e que
contou com presença maciça de artistas e arquitetos modernistas (WISNIK, 2001, p.
123), era impossível o retrocesso ao academicismo completo.
Ilustração 27. Apartamentos proletários da Gamboa, 1932. Lucio Costa e Gregory Warchavchik.
Fonte: COSTA (1995, p. 75).
Após tal investida, Lucio se associou com Warchavchik (1931-3) e com Carlos
Leão (1933-5), a quem devotou seu contato mais profícuo ao ideário dos mestres do
movimento moderno. Sua sociedade com Leão não foi muito produtiva e ele se viu
envolto por um período que ele mesmo chamou de “chômage”, rico em leitura e
pobre em finanças, no qual ele elaborou quatro obras primordiais: as “casas sem
97
dono”, experimentos em terrenos padrão onde ele exercitou a nova linguagem; os
“projetos esquecidos”, não realizados; a participação no concurso da Vila Operária
em Monlevade e a feitura do texto Razões da Nova Arquitetura, ambos em 1934.
Abordaremos os dois últimos.
Teoria e projeto
O projeto para Monlevade revelou um profissional disposto a mobilizar, pela
primeira vez no Brasil, alguma conciliação entre industrialização e estética modernas
e a utilização de materiais e processos mais tradicionais. No texto de Razões, expôs
um universo confuso, como a própria modernidade, mas que, ao mesmo tempo, já
apontava para um novo equilíbrio.
O texto continua com Lucio chamando atenção para a necessidade de
adaptação da nova arquitetura às condições da sociedade presente e para uma
participação profissional atenta aos dramas sociais, no sentido de responder
igualmente aos fatores técnicos e estéticos. Com isso, quis propor um entrosamento
maior num campo dicotômico até então: a existência de uma modernidade
exageradamente proletária e outra muito estetizante.
Nesse ambiente registrou sua opinião quanto à necessidade de uma
arquitetura livre do trabalho manual, ajustada à máquina e à tecnologia modernas.
Em termos mais técnicos, Razões defendeu a ossatura independente como a
verdadeira ferramenta a que o arquiteto moderno deveria recorrer para realizar suas
98
intenções; ou seja, através dela, ele poderia resolver todos os problemas técnicos e
estéticos da construção.
Embora diferente de todas as anteriores, na medida em que resultava de
premissas tão diversas, a arquitetura moderna deveria se guiar pelos mesmos
princípios permanentes que regeram aquelas do passado. Tal indicativa de
continuidade, exibida na necessidade de conhecimento do vernáculo e a sua
possível incorporação a uma palheta de tons modernos, afasta a escrita de Razões
dos manifestos modernistas de Warchavchik, Rino Levi e Flávio de Carvalho. Em
resumo, o racionalismo de Lucio defendeu a indústria unida à tradição, elementos
principais da proposta de Monlevade, embora se note, no texto, uma certa
preponderância da primeira sobre a segunda.
O clima exposto no texto de Lucio não era exclusivo ao Brasil. Em 1931, com
algumas diferenças, os catalães do Grupo de Arquitetos y Técnicos Españoles para
el Progreso de la Arquitetura Contemporânea (G.A.T.E.P.A.C.) propuseram, “ao
calor do clima de liberdade e entusiasmo coletivo que se implantou com a República”
Espanhola, um verdadeiro “ressurgimento da arquitetura, paralelo ao que o país
conhecia em outras esferas da cultura” (FREIXA, 1979, p. 10-1). O manifesto do
grupo coincide com o pensamento de Lucio em vários pontos, sendo interessante
perceber a presença, em ambos, do pensamento corbusieriano, tendo em vista que
Josep Ll. Sert, líder do movimento catalão, foi colaborador de Le Corbusier no fim da
década de 1920.
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De maneira similar a nós, a nova arquitetura de lá se preparava para exibir
suas transformações sociais e políticas. Como em Razões, a maior parte do texto
espanhol fala da necessidade de alteração tecnológica da arquitetura frente às
condições técnicas, sociais e econômicas e, portanto, frente à indústria, citando
termos como renovação, desenvolvimento, funcionalidade, reprodução em série.
Embora o manifesto dos europeus fale de “anulação das tradições” e negue a
possibilidade de uso das linguagens tradicionais em tempos contemporâneos, os
dois textos vêem-se unidos pela valorização acadêmica do “estilo”, visível em alguns
trechos dos catalães:
A arquitetura do passado, os estilos históricos, não foram resultados
de caprichos ou fantasias. Eram a expressão das profundas
características dos diversos períodos e regiões, e refletiam a estrutura
social, os métodos de construção, o emprego de adequados materiais,
as condições econômicas e as aspirações espirituais.
(...) As tradições locais, costumes e processos mudam com as épocas.
Os elementos fundamentais permanecem, as formas secundárias
passam.
(...) procurar a expressão construtiva mais simples, a beleza das
proporções, a ordem e o equilíbrio (G.A.T.E.P.A.C. apud FREIXA,
1979, p. 11-3).
Mas o que foi apenas indicado em 1934 por Lucio seria tomado como forma
acabada em 1937. Em Documentação Necessária, o arquiteto elaborou uma
proposta metodológica de tratamento de nosso patrimônio arquitetônico, assim como
100
criou uma escrita da história desse mesmo passado que orientou toda a arquitetura
brasileira a partir de então.
Ilustração 28. Esquemas “evolutivos” de Lucio Costa constantes no texto Documentação Necessária, 1937.
Fonte: COSTA (1995, pp. 460-1).
O programa de Documentação forneceu, através de uma “linha evolutiva” da
arquitetura, obtida através de algumas aproximações formais (o crescente abrir de
vãos, por exemplo) e técnico-construtivas (a suposta semelhança entre a
racionalidade das estruturas de madeira do passado e a técnica do concreto
armado) entre a arquitetura civil colonial e a arquitetura moderna, uma determinada
singeleza e originalidade que pudesse tornar nossa modernidade algo específica.
101
Ilustração 29. Desenho “evolutivo” de Sylvio de Vasconcellos.
Fonte: ÁVILA (1997, p. 358).
Para Marcelo Puppi, o que Lucio Costa realizou foi uma “reconstrução
puramente mental do passado segundo os interesses do presente” (PUPPI, 1998, p.
13), que tem como corolário a afirmação da arquitetura nacional no campo formativo
da cultura brasileira. Realizando a “construção literária de um argumento”
(ARANTES, 1997, p. 116) que tem no passado sua principal raiz, Lucio tornou-lhe
dose necessária a fim de embasar as novas soluções do presente.
Os escritos do arquiteto tem uma função claramente operativa,
visando sempre e sobretudo, de um lado, divulgar os princípios do
movimento moderno no país e, de outro, fundar uma vertente local do
movimento, bem como justificar e valorizar sua existência. Dito de
outro modo, seu objetivo é formular o programa teórico (não sem idas
e vindas, como veremos) da arquitetura moderna brasileira.
Conseqüentemente, o modernismo apresenta-se nos manifestos do
autor como o ponto culminante de toda a história da arquitetura (ibid,
p. 12).
A citação acima ficará mais completa se observarmos não apenas o texto de
1937, parte menos elaborada do programa teórico de Lucio. Em outro texto de 1952,
chamado Considerações sobre Arte Contemporânea, ele reescreveu sua teoria da
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arte nas mesmas condições de antes, porém justificando o modernismo brasileiro
não somente em uma linha evolutiva do nosso passado, mas como um ponto alto
mesmo da cultura arquitetônica mundial do séc. XX: uma síntese de dois conceitos-
pólo por ele elaborados, o “orgânico-funcional” e o “plástico-ideal”, por si capazes de
englobar toda a história da arte de até então.
Ilustração 30. “Constantes de sensibilidade do brasileiro”. Desenho de Paulo F. Santos.
Fonte: SANTOS (1975).
Tendo com base a interpretação que Bruand (2003, p. 121) fez sobre esse
texto, entendemos que a arte orgânico-funcional seria aquela produzida pela cultura
103
do Norte da Europa e da Ásia cujas formas, de “concepção dinâmica” responderiam
pelo o gótico e o barroco, por exemplo, e que a arte plástico-ideal, radicalmente
ligada à cultura mediterrânea, teria produzido formas de “concepção estática”, como,
por exemplo, a Arte Clássica e do Renascimento.
Ilustração 31. “Constantes de sensibilidade do brasileiro”. Desenho de Paulo F. Santos.
Fonte: SANTOS (1975).
Segundo Puppi (1998), tal dialética, em complexidade superior à linha
evolutiva de 1937, responderia a duas necessidades básicas. Primeiro: colocar a
arte brasileira no mapa mundial, na medida em que era na manifestação moderna
brasileira que essas duas linhas tinham se encontrado de forma magistral. Segundo:
na duplicidade desse caminho era possível achar um lugar específico tanto para a
arte barroca de Aleijadinho, não bem visto no texto de 1929 - O Aleijadinho e a
Arquitetura Tradicional, quando só interessava a Lucio a simplicidade e o
despojamento da arquitetura civil; quanto para os últimos acontecimentos, as formas
livres e ao mesmo tempo ordenadas de Niemeyer, este, o verdadeiro “milagre”.
Desse modo, havia lugar para ambas as manifestações: o racionalismo mais estrito
do conjunto da produção até a Pampulha e o virtuosismo posterior da forma de
Niemeyer, bastante criticado um ano antes por Max Bill.
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Imprimindo às formas básicas um novo e surpreendente significado,
ele (Niemeyer) criou variantes e novas soluções cuja graça e requinte
eram inovadores; repentinamente, os arquitetos de todo o mundo
viram-se obrigados a tomar conhecimento da obra deste brasileiro
anônimo que era capaz de transformar, sem nenhum esforço aparente
– como que por um passe de mágica – qualquer programa
estritamente utilitário numa expressão plástica de puro refinamento
(COSTA, 1995, p. 196) (grifo nosso).
Como vemos, a nova orientação de Lucio alterava o conceito de tradição: se
antes nos bastavam a simplicidade e a pureza da construção civil mineira, seu
caráter “funcional e lógico”, depois era necessário contemplar também a virtuose do
gênio artístico local. Aleijadinho e Oscar cumprem essa função.
A teoria de Lucio também englobou o desenvolvimento de nossa engenharia
no que tange ao concreto. Nos escritos de 1937 e 1952, chama-nos a atenção a
preocupação de Lucio com os aspectos plásticos, em medida possibilitados pela
evolução da técnica, esta exaltada em favor dos primeiros. Em Razões, a ossatura
independente de concreto possibilitava uma liberdade de expressão nunca
experimentada, mas ainda limitada por padrões racionais. Já em Considerações, o
mesmo material, agora moldado livremente, é que permitiria o avanço formal que
respondia à nova síntese da tradição local.