como e por que ler a literatura infantil brasileira

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o <

REGIN ZILBERM N

OMO E POR QUE LER

LITER TUR INF NTIL BR SILEIR

OBJHIY

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© 2p 4

Regina Zilberman

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA OBJETN

LTDA., rua Cosme Velho, 103

Rio de Janeiro -

RJ

-

CEP

22241-090

TeI.: 21) 2556-7824 -

Fax:

21) 2556-3322

www.objetiva.com.br

Capa

Glenda Rubinstein

Revisão

Umberto Figueiredo Pinto

Neusa Peçanha

Editoração Eletrônica

FtITURA

Z99c

Zylberman, Regina

Como

e

por

que ler a literatura infantil brasileira / Regina Zilberman _

Rio de Janeiro: Objetiva,

2 5

181

p

ISBN 85-7302-663-4

1 Literatura infantil - Teoria. I

Título

CDD 028.55

À

memória das crianças de Beslan,

para não esquecermos o horror

que

as

privou da vida e da arte.

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 ,

SuMÁR o

c P Í T U L O 1

O

QUE

É QUE A LITERATURA TEM? 9

C A P Í T U L

2

POR ON E COMEÇAR? 3 é :

C A P

Í

1 U L 3

MONTEIRO LOBATO E SUA FANTÁSTICA

MÁQUINA E CRIAR 2

C A P Í T U L O 4

LOBATO NÃO ESTAVAS6 34

é::

C A P Í T U L

5

A AVENTURA

E

COMEÇAR

E NOVO

44

C A P [ T U L O

6

REIS, FADAS E SAPOS PARA AS CRIANÇAS

BRASILEIRAS 56

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C A P f T U L

?

GENTES E BICHOS 66

CA P Í T U L 8

GAROTAS QUE MUDAM O

MUNDO

8

C A P Í T U L O 9

DOS CONTOS TRADICIONAIS AO FOLCLORE 90

CA P Í T U L

10

MENINOS DE RUA 102

C A P Í T U L O

DETETIVES MIRINS 110

CA P f T U L 12

E PARA A POESIA NÃO VAI NADA? 127

CAP Í TULO

13

YES NÓS TEMOS TEATRO 144

CAP Í TULO

14

QUANDO FALA A ILUSTRAÇÃO 55

C A P Í T U L O

5

PARA ONDE VAMOS? 65

ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 173

ÍNDICE DE OBRAS E POEMAS CITADOS 177

C :

O

QUE É QU

A LITERATURA TEM?

m bom

livro é aquele que agrada não

importando se

foi escrito

para crianças ou adultos

homens ou

mulheres brasileiros ou estran

geiros. E ao livro que agrada se costuma voltar lendo-o de novo

no

todo ou

em

parte retornando de preferência àqueles trechos que pro

vocaram prazer particular.

Com a literatura para crianças não é diferente: livros lidos na infância

permanecem

na

memória do adolescente e do adulto responsáveis que

foram por bons momentos

aos

quais as pessoas não cansam de regressar.

Moacyr Sdiar autor de contos e romances lembra

os

que povoaram sua

infância e confessa já

bem

crescido e maduro ter procurado reconstituir

a coleção que consumia

com

avidez

em

seus anos de criança:

Aos poucos

num

sebo e em outro fui refazendo parte de minha

biblioteca de então: Rute e Alberto de Cecília Meireles; Os Nenês

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10

Como e Por

que ler

D Água, de Charles Kingsley; Alice

no

País das

Maravilhas; As

Aven-

turas

de Tibicuera, de Erico Verissimo; Histórias de um

Quebra-nozes,

de Alexandre Dumas; Robin Hood, T arzan, livros sobre piratas ..

Apanho um volume: é a trigésima edição de

Cazuza,

de Viriato

Correa obra concluída

pelo

autor justamente 110

ano em

que

nasci

-

1937. Folheio-a com a mesma sensação que tive pela primeira

vez

a

de descobrir um Brasil que eu não conhecia, o Brasil do Maranhão, o

Brasil

do Pata Choca, do Padre Zacarias, de Luiz Gama. O

Brasil

do

professor João Câncio dizendo - numa época em que o ufanismo era

a tônica: Somos um

país

pobre, um povo pobre

..

Mas justamente

porque a terra não é mais doce nem a mais generosa, nem a mais rica

é que é maior o valor de nossa gente. Humildes livros bravos livros.

 

Depoimentos dessa natureza são expressos por outros escritores,

como Manuel Bandeira, que recorda ter sido apresentado à poesia por

intermédio dos contos de fadas, guardando profunda saudade de seus

primeiros livros de imagens, entre os quais João Felpudo, Simplício

Olha pro Ar, Viagem

à Roda

do Mundo numa Casquinha de Noz.

 

João

Ubaldo Ribeiro não faz por menos, confessando que melho r que jogar

bola

ou

subir em árvores era ler os livros que descobria na casa de seus

pais e avós.

3

Reler obras que marcaram

as

lembranças de leituras passadas é sinal

de que aqueles livros foram julgados bons. Não quer dizer que isso só

ocorra com os escritos que compõem a literatura infantil, pois, por toda

a vida, podemos ser convidados a retomar os textos que vieram a cons

tituir nossa biblioteca interior, formada

por

aquilo que as recordações

armazenaram. Aqueles que predominam na primeira década e meia de

vida de cada

um

são chamados de literatura infantil. Poder-se-iam defi

nir os livros para crianças por essa característica: são os que ouvimos ou

a l i teratura Infantil IIrasileira

11

lemos antes de chegar à idade adulta. Não significa que, depois, não

voltemos a

eles;

importa, porém, que o regresso se deva ao fato de terem

marcado nossa formação de leitor, imprimirem-se na memória e torna

rem-se referência permanente quando aludimos à literatura.

Os

primeiros livros brasileiros escritos para crianças apareceram ao

final

do

século XIX, de modo que a literatura infantil nacional con

tabiliza mais de cem anos de história. Por isso, aparece nas recorda

ções de escritores consagrados, como o Viriato Correia citado por

Scliar. A experiência

do

novelista difere, pois,

do

que se passou aos

autores nascidos no começo

do

século XX, como Erico Verissimo,

que reteve na lembrança outros nomes, quase todos nascidos na

Europa, como Júlio Verne, um dos prediletos de sua geração. Jorge

Amado, da mesma época, relembra Viagens de

Gullíver,

de J

onathan

Swift, enquanto Carlos

Drummond

de Andrade tem nostalgia do

Robinson

Crusoé, de Danie l Defoe. Moacyr Scliar, e contemporâneos

seus, como Affonso

Romano

de Sant'Anna, conforme esse declara no

poema O Burro, o Menino e o Estado Novo ,4 fizeram-se leitores a

partir

do

acervo brasileiro, variado e disponível por ocasião das res

pectivas infâncias.

Centenária, a literatura infantil brasileira oferta ao leitor atual

um

acervo respeitável de boas obras, para serem lembradas

por

adeptos

de várias gerações. Vale a pena recapitular sua trajetória, para ent en

der as qualidades

que

exibe aos leitores contemporâneos de todas as

idades.

otas

1 Seliar Moacyr. Mem6rías de um Aprendiz de Escritor. Rio de Janeiro: Agir 1984.

p.

22-4.

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Como e Por

flue

ler

Cf. Bandeira, Manuel. Itinerdrio

de

Pasdrgada. Rio de Janeiro: ornal de Letras 1954.

3 Ribeiro, João Ubaldo. Memória

de Livros.

In:

_ Novas

Seletas. Organização, apresentação

e notas Domício Proença Filho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

4 Cf. Sant'Anna, Affonso Romano

de

O Burro, o Menino e o Estado Novo . In: Ladeira,

Ju/ieta de Godoy (org.).

Lições de Casa. Exercidos de Imaginação.

São Paulo: Cultura, 1978.

POR ONDE COMEÇAR?

A

iteratura não contraria a velha

lei

de Lavoiser, conforme a qual

nada

se

cria, tudo

se

transforma. Ainda que

se

considere que

um

escri

tor é

um

criador, ele produz

uma

obra a partir de sua experiência, de

leituras e do que esperam dele. Esse ponto de partida é muito amplo,

de modo que

as

variações são infinitas, e

as

obras bastante diferentes

entre

si

O escritor dispõe também de grande liberdade, pois, soman

do experiência e imaginação,

ele

pode ir longe, inventando pessoas,

lugares, épocas e enredos diversificados.

Contudo,

ele

não pode ir longe demais: os leitores precisam

se

reco

nhecer nas personagens, há limites para mexer com a temporalidade,

e a ação precisa ter um mínimo de coerência.

Outra

questão é crucial:

o leitor também traz algum tipo de experiência,

uma

bagagem de

conhecimentos que precisa ser respeitada, caso contrário

se

estabelece

um choque entre quem escreve e quem lê, rompe-se a parceria que

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14

Como

e Por

que

ler

dá certo se ambos se entendem.

e

o escritor contradisser demais as

expectativas do leitor esse rejeita a obra que pode ficar à espera de

outra oportunidade

ou

então desaparecer da história.

O mesmo se passa quando se introduz um novo gênero para um

público que começa a

se

formar.

Não

se

trata agora de

uma

questão

particular e sim mais geral: um grupo de leitores se materializa ainda

que de

modo

incipiente requerendo um produto original.

Como

rea

gir a essa situação? É claro cabe oferecer algo não muito distinto do

que o mercado representado por seus consumidores já se acostumou

a receber e aceitar para contar com simpatia e adesão.

o que ocorre no nosso país ao final do século XIX determinan

do o aparecimento dos primeiros livros para crianças escritos e publi

cados

por

brasileiros.

O Brasil daquele período estava mudando de regime político: a

República adotada a partir de 1889 substituía a monarquia após o

longo reinado de D. Pedro II impera dor desde 1840. O Brasil tinh a

sido a única região da América que garantida a independência prefe

rira o sistema monárquico optando por

uma

forma de governo em

grande voga na Europa mas ausente

no

Novo

Mundo

cujas novas

nações livres do domínio colonial prefer iam escolher

por

intermédio

de pleitos eleitorais

os

dirigentes em vez de apostar nos herdeiros da

Família Real.

Nas últimas décadas do século XIX porém mesmo países europeus

em que o Brasil se espelhava começavam a mudar para o regime repu

blicano que à primeira vista parecia mais democrático. Afinal

por

meio de eleições periódicas e livres

os

dirigentes pod iam ser trocados

de modo que a sociedade dispunha de ocasiões mais numerosas para

a

Literatura Infantil llrasileira

15

manifestar insatisfação quando

essa

acontecia. Além disso o regime

republicano quando acompanhado de consulta aos votantes oportu

nizava a um maior núm ero de pessoas declarar sua opinião mostran

do-se pois mais liberal e dinâmico.

No

Brasil do final do século XIX a monarquia cheirava a imobilis

mo e o país estava progredindo a população aumentando as varieda

des culturais e étnicas se exprimindo. Um governante único que reina

va por quase 50 anos não respondia mais a esses anseios e ele acabou

sendo deposto. De forma pacífica como se sabe; mas não houve mais

retrocesso e o país daí para a frente se passou por situações políticas

distintas e conturbadas nunca mais recorreu ao modelo monárquico.

A grande diferença situava-se na nova conformação

da

sociedade

marcada pela ascensão de

uma classe média urbana desejosa de ver

suas reivindicações serem atendidas: maior liberdade política melho

res negócios dinhe iro mais acessível novas oportunidades para educa

ção. Essa classe média responsabiliza-se doravante pelas mudanças

ocorridas no país e em nome dela revoluções avanços e retrocessos

acontecem. O aparecimento dos primeiros livros para crianças incor

pora-se a esse processo porque atende às solicitações indiretamente

formuladas pelo grupo social emergente.

nesse ponto que um novo mercado começa a se apresentar re

querendo dos escritores a necessária prontidão para atendê-lo. O pro

blema é que eles não tinham atrás de

si

uma tradição para dar conti

nuidade pois ainda não se escreviam livros para crianças na nossa

pátria. O jeito então era apelar para uma das seguintes saídas:

- traduzir obras estrangeiras;

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  6

Como e Por

que ler

- adaptar para

os

pequenos leitores obras destinadas originalmente

aos adultos;

- reciclar material escolar, já que os leitores que formavam o cres

cente público eram igualmente alunos e estavam

se

habituando a uti

lizar o livro didático;

- apelar para a tradição popular, confiando em que

as

crianças gos

tariam de encontrar nos livros histórias parecidas àquelas que mães,

amas-de-Ieite, escravas e ex-escravas contavam em voz alta, desde

quando elas eram bem pequenas.

Essas

soluções não foram inventadas pelos brasileiros, e é

que se

explicita pela primeira vez com a lei de Lavoiser, mencionada antes. A

Europa, que inspirava a mudança de regime político, oferecia também

os

modelos utilizados para

se

escrever para crianças.

Se

traduções

foram menos freqüentes no Velho Continente, muito se adaptou, a

ponto de certas obras passarem a ser conhecidas quase que exclusiva

mente como infantis. É o caso, por exemplo, de dois romances britâ

nicos que aparecem nos textos memorialísticos de Carlos Drummond

de Andrade

 

e Jorge Amado,2 respectivamente: Robinson Crusoé de

Daniel Defoe, e Viagens de Gulliver de Jonathan Swift. Publicados

mais

ou

menos

na

mesma época, o primeiro em 1719, e o segundo,

em 1726, foram logo abreviados e simplificados para a leitura dos

meninos ingleses, e até hoje circulam pelo

mundo

com mais facilida

de nesse formato reduzido que na versão integral.

Procedeu, porém, da tradição popular a principal contribuição, a

saber, as histórias conhecidas até hoje como contos de fadas. Aventuras

como as de João e Maria, da Bela Adormecida, da Cinderela, de Cha

peuzinho Vermelho eram contadas por e para adultos, até que homens

a

Literatura Infantil

Brasileira

como Charles Perrault 1 6 2 8 ~ 1 7 0 3 ) , na França, e Jacob 1785-1863)

e Wilhelm 1786-1859) Grimm, na Alemanha, as transcreveram e

publicaram visando ao público infantil. Daí para a frente, foram muito

difundidas, acontecendo com elas o mesmo que ocorrera aos romances

de Defoe e Swift: transformaram-se em sinônimos de literatura infan

til, dificultando o retorno à condição original.

Os candidatos brasileiros a escritores para crianças não fugiram a

essa

regra. Fazendo assim, porém, eles viraram o feitiço contra o feiti

ceiro: repetindo o que ocorrera na Europa, acabaram inventando a

literatura infantil brasileira, abrindo caminho para um percurso que,

como já se observou, conta mais de cem anos.

Vale a pena mencionar os nomes desses pioneiros. Um deles, Carl

Jansen 1823 ou 1829-1889), nasceu na Alemanha, mudando-se, jo

vem, para o Brasil, onde trabalhou como jornalista e professor.

Percebeu logo que, no Brasil, faltavam livros de histórias apropriados

para os alunos

e

entre, aproximadamente, 1880 e 1890, tratou de tra

duzir alguns clássicos, como

os

já lembrados Robinson Crusoé 1885) e

Viagens

de Gulliver

1888), a que somou, por exemplo,

As

venturas

do

Celebérrimo Barão de Münchhausen 1891) e D

Quixote

de la

Mancha

1886).

O outro, Figueiredo Pimentel 1869-1914), era brasileiro

e

como

Jansen, militava na imprensa. Quando decidiu dedicar-se à literatura

infantil, preferiu seguir o caminho sugerido pelos irmãos Grimm. Pu

blicou coletâneas de muito sucesso, como os Contos da Carochinha

1894), onde se encontram as histórias de fadas européias, ao lado de

narrativas coletadas entre

os

descendentes dos povoadores do Brasil.

Há histórias de origem portuguesa e também narrativas contadas pelas

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Como

e

Por que

ler

escravas que educavam a infância brasileira no século XIX. Foi como

a tradição popular e oral entrou na literatura infantil brasileira, para

não mais sair.

N O começo, a literatura infantil se alimenta de obras destinadas a

outros fins: aos leitores adultos, gerando

as

adaptações;

aos

ouvintes das

narrativas transmitidas oralmente, que se convertem nos contos para

crianças; ou ao público de outros países, determinando, nesse caso, tra

duções para a língua portuguesa.

Há um

último segmento que vale a

pena citar:

as

obras destinadas à escola.

Na

mesma época em que se inauguravam linhas editoriais brasileiras

de textos para crianças, encaminhadas pelos trabalhos de pioneiros

como Carl Jansen e Figueiredo Pimentel, editavam-se também os pri

meiros livros didáticos. Chamavam-se, muitos deles, Seletas Antologias

ou Livros de Leitura e eram adotados pelos professores, que os reco

mendavam aos alunos ou reproduziam, em voz alta, trechos deles para

todo o grupo. Nem todas

essas

obras restringiam-se à sala de aula, e

alguns tornaram-se a leitura favorita de nossos tataravós. Um dos auto

res mais difundidos foi Olavo Bilac (1865-1918), cujas poesias foram

recitadas e memorizadas por várias gerações. Alguns poemas estão

cheios de civismo, como "A Pátria", que convoca

os

leitores ao brio

nacionalista, dizendo, na abertura:

Ama, com

e orgulho, a terra

em

que nasceste

Criança não verás nenhum país como

este

Outros porém são engraçados e merecem ser transcritos

integralmente:

a LiteraÍlui' Infantil Brasileira

A boneca

Deixando a bola e a peteca,

Com

que inda

pouco brincavam,

Por causa de

uma

boneca,

Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira:

É

minha '

- É

minha ' a outra gritava;

E

nenhuma se

continha,

Nem a boneca largava.

Quem

mais sofria (coitada )

Era a boneca.

tinha

Toda

a roupa estraçalhada,

E amarrotada a carinha.

Tanto

puxavam por ela,

Que a pobre rasgou-se ao meio,

Perdendo a estopa amarela

Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,

Voltando

à

bola e

à

peteca,

Ambas, por causa da briga,

Ficaram sem a boneca

..

3

19

Carl Jansen, Figueiredo Pimentel e Olavo Bilac são os desbravado

res

da literatura infantil brasileira. Praticaram, cada um a seu modo, a

lei de Lavoiser, já mencionada . Sem eles, talvez

os

livros nacionais para

crianças demorassem a aparecer; mas "fé e orgulho" teremos em/de

Monteiro Lobato, o sucessor desse núcleo original, aquele que ainda

hoje

se

lê e relê, graças ao patrimônio literário que legou.

- - - - - - - - - ~ - - - - - - - - - - ~

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w

omo e Por

que

ler

Notas

1

Cf. Andrade Carlos Drummond de.

Fim

In: _

Boitempo

6

Falta que Ama

Rio de

Janeiro: Sabiá 196 8. p. 83.

2 Amado Jorge. O

Menino Grapiúna

Rio de Janeiro: Record 1981. p. 101

Bilac Olavo. Poesias Infantis 13. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves 1935. p. 27-28.

ONTEIRO LOBATO E SUA

f NTÁSTIC MÁQUIN DE

CRIAR

m

escritor é muito popular quando o mundo que criou escapa

a seu controle como

se

as personagens vivessem independentemente

dele. Emilia Dona Benta e o Visconde de Sabugosa por exemplo são

frutos da imaginação de Montei ro Lobato assim como o sitio do

Picapau Amarelo onde vivem aqueles seres de fantasia. Hoje porém

vende-se a boneca Emilia em lojas e supermercados e o sitio aparece

diariamente na tela dos aparelhos de televisão. Poder-se-ia contrapor

que nesses casos trata-se de um uso comercial e lucrativo das criatu

ras inventadas pelo escritor; contudo em quantas festas de aniversário

encontram-se paredes e doces decorados com as figuras que habi tam

o sitio? Jogos brincadeiras concursos - eis algumas atividades do coti

diano em que

se

recorre

ao

universo concebido pelo escritor mostran-

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22

Como e Por

que

Ler

do que a realidade fabulosa que

saIU

de sua cabeça acabou sendo

maior, mais poderosa e mais duradoura do que

ele mesmo cogitou.

De certo modo, nem

se

precisaria ler a obra de Lobato para conhe

cer as principais personagens ou o cenário em que elas viveram. Mas,

se

lida, esclarece-se por que ela ficou famosa

e

de troco, ainda

se

obtém grande prazer pessoal, resultante da qualidade dos livros elabo

rados por ele.

Um elenco permanente de personagens

Nos primeiros livros, Monteiro Lobato preocupou-se em introduzir as

personagens, mostrando-as ao leitor. Reinações de

Narizinho,

por exem

plo, começa pela apresentação da menina Lúcia, a Narizinho do título,

apelido que a consagrou.

Na

mesma página de abertura, informa que

ela mora com a avó Dona Benta, e que Tia Nastácia, a cozinheira, deu

lhe uma boneca de pano, de nome Emília.

Essas personagens, a que logo

se

somaram o menino Pedrinho, o

primo de Narizinho, e outro boneco, o Visconde, feito com sabugo de

milho, popularizaram-se tanto, que apareceram em quase todos

os

livros. À vezes acontece de faltarem algumas dessas figuras; Nari

zinho, por exemplo, fica de fora da aventura narrada em O

Minotau-

ro À

vezes

elas são apenas os ouvintes de enredos contados por ou

tros, como acontece em D.

Quixote d s Crianças

e Peter

Pan,

que

Dona Benta resume para os netos, ou em Histórias da

Tia

Nastácía,

que reúne contos do folclore brasileiro. Mas, de um modo ou de

outro, o núcleo de seres, humanos e não humanos, exibidos nas pági-

a

Literatura

Infantil Brasileira

nas iniciais do primeiro livro de Monteiro Lobato que, aliás

se

cha

mou inicialmente

Menina

do

Nariz

Arrebitado e só depois, com o

acréscimo de outros episódios, denominou-se Reinações

de

Narizinho ,

passa a formar o elenco inalterável das obras que aquele escritor desti

nou

ao público infantil.

A sistemática adotada

por

Lobato mostrou-se, desde o começo,

muito útil. Tal como ocorre nas histórias em série, como as que se

conhece da televisão ou das revistas em quadrinhos, o escritor repetia

as personagens, de modo que não precisava inventar novos indiví

duos a cada vez em que principiava outra narrativa. Era preciso bolar

tão-somente aventuras originais para as mesmas pessoas, o que deu

certo por uma razão: elas revelam, desde o começo, espírito aventu

reiro, gostam de aderir a atividades desafiadoras, estão disponíveis

para o que der e vier. Portanto, trazem consigo a personalidade dos

heróis tradicionais, aqueles que habitam os mitos, as lendas, os con

tos folclóricos, as epopéias,

em

outras palavras, todas

as

narrativas

ouvidas desde pequenos e reencontradas não apenas na literatura,

mas em outros meios de comunicação, sobretudo

os

de massa, como

o cinema, a

TV

a história

em

quadrinhos e atualmente, os jogos de

computador.

Monteiro Lobato pode não ter inventado a técnica de reunir um

grupo de figuras com grande presteza para a ação. Conferiu-lhe, po

rém, uma série de atributos que o particulariza, como:

- Os principais agentes são crianças, como Pedrinho e Narizinho,

ou mimetizam o comportamento delas, como

os

bonecos Emília e

Visconde de Sabugosa; portanto, o universo das personagens aproxi

ma-se do mundo do leitor e permite identificação imediata.

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24

Como e Por que ler

- Trata-se de

um

conjunto de seres inteligentes e independentes,

dispondo de ampla liberdade para tomar iniciativas, inventar ações

originais e resolver problemas; abordam

os

adultos de igual para igual,

às vezes até com algum desrespeito, como Emília em relação à cozi

nheira Nastácia; mesmo diante da avó,

Dona

Benta,

as

crianças des

conhecem limites, embora aceitem

os

princípios que norteiam a ação

da velha senhora, sobretudo

os

que se referem à justiça, à ética e à fra

ternidade entre

as

pessoas.

-   s

crianças, representadas pelos seres humanos, Pedrinho e Na

rizinho, e pelos bonecos, Emília e Visconde, são figuras inseridas

na

vida brasileira, o que lhes confere autenticidade e nacionalidade. Não

quer dizer que representem algum traço

ou

peculiaridade nacional,

porque isso é desnecessário; mas elas integram-se aos problemas do

país, reagem às dificuldades de seu e de nosso tempo, o que mais uma

vez facilita a aproximação entre

as

personagens e o leitor.

Esse

proces

so

como

se

verá, patenteia-se

na

construção de

As Caçadas

de

Pedrinho

uma das mais divertidas histórias criadas pela imaginação de Lobato.

Lobato escreveu o primeiro livro voltado ao público infantil,

Menina

do

Narizinho Arrebitado em 1921, e o último,

Os

Doze Tra-

balhos

de

Hércules

em 1944. Ele faleceu em 1948, e nos derradeiros

anos de vida, após a publicação de

Os Doze Trabalhos de Hércules

dedicou-se a organizar sua obra. Por isso

diferenças entre

as

edições

de algumas histórias, a começar pela primeira, que mudou de nome,

quando

ele

agregou, ao Nariz inho Arrebitado original, episódios

como, entre outros,

O

Marquês de Rabicó ,

O

Irmão de Pinóquio

ou O

Circo de Escavalinho , que vieram a compor, em 1931,

Reinações

de

Narizinho com o formato atual.

a

l i teratura

Infantil Brasileira

Ai Caçadas de

Pedrinho também não nasceu com

esse

nome; foi pri

meiramente

Caçada da Onça

narrativa publicada em 1924. Depois,

Lobato acrescentou a história do rinoceronte Quindim, e o livro

aumentou de tamanho e mudou de título.

Esse

processo ocorreu com

outras obras, o que pode confundir

um

pouco o estudioso da história

da produção literária do escritor.

Por que isso nunca confundiu o leitor?

Uma

razão foi dada em pa

rágrafos anteriores: as personagens mantiveram-se inalteráveis, não se

transformando nem

por

dentro - sua personalidade está desenhada

desde a primeira página em que aparecem - nem por fora: no sítio do

Picapau Amarelo, ninguém envelhece, nem mesmo

Dona

Benta e

Tia

Nastácia, senhoras idosas já nos episódios iniciais. Lobato, con

tudo, procedeu a modificações, quando julgou ser necessário: algu

mas personagens entram

e

depois, saem das histórias, como ocorre

ao anjinho, importado para o sítio

em Viagem ao Céu

de 1932, e que,

mais adiante, em

Memórias de

Emília de 1936, retoma ao lugar de

onde partiu; outras,

por

sua

vez

incorporam-se

ao

sítio e pertencem

a

uma

categoria que Lobato somente passou a empregar depois de

As

Caçadas de Pedrinho:

os bichos falantes, como o rinoceronte Quin-

dim, já mencionado, e o burro Conselheiro, que aparece em

Viagem

ao Céu e

depois disso, torna-se residente permanente nas terras de

Dona

Benta.

Há, enfim,

os seres

temporários e esporádicos, como Peninha, versão

brasileira do Peter Pan inglês, e Rãzinha, de

Reforma da Natureza

de

1941. Afinal, Lobato tinha necessidade de variar os enredos, o que deter

minou a interpolação de novos figurantes, com

os

quais interagem

as

personagens principais. Mesmo temporários, contudo,

eles

não alteram

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26

Como e Por que Ler

o núcleo essencial, evitando que o leitor

se

disperse e deixe de entender

para quem deve torcer e com quem é chamado a se identificar.

o

sítio é

um

mundo

Outro fator que garante a compreensão das histórias é a unidade de

lugar: o sítio do Picapau Amarelo está presente em todas

elas.

A ação

pode ocorrer em outros locais, e as personagens têm liberdade para se

deslocar no espaço - visitam a Lua e os planetas em Viagem

ao

é -

e no tempo, podendo recuar até o século V

a.c.

época de Pérides,

com quem Dona Benta mantém longas conversas, ou mais para trás,

quando Pedrinho, Emília e o Visconde ajudam Hércules a executar os

trabalhos para os quais tinha sido designado.

De

todo modo, coloca

do no início e no fim dos episódios, ou ocupando posição central, o

sítio é o cenário de recorrência das histórias, garantindo a estabilidade

necessária para a vida e o comportamento de todas as personagens.

O sítio do PicapauAmarelo não é apenas isso porém. Não por acaso

ele se converteu em sinônimo da obra para crianças de Monteiro Lo

bato, aparecendo

num

dos títulos de um dos livros mais conhecidos,

bem como nas várias

séries

de televisão inspiradas na criatividade do escri-

tor. O sítio é um mundo independente e auto-suficiente, e

esse

é outro

grande achado do primeiro grande autor para a infância brasileira.

Para entender o que significa dizer que o sítio é um

mundo

próprio,

basta tentar responder à seguinte pergunta: onde ele se localiza?

Se

ele

estivesse assentado, por exemplo, em São Paulo, estado e cidade onde

Monteiro Lobato viveu boa parte da existência, ele não seria indepen-

a Literatura Infantil Brasileira

27

dente, e sim uma parte daquela região. Se se pensar, por exemplo, no

bairro de Botafogo, onde moraram algumas das personagens de Ma

chado de Assis entende-se imediatamente que aquele local pertence a

qma cidade real, Rio de Janeiro, escolhida pelo romancista para paisa

gem de sua obra.

Monteiro Lobato mesmo faz isso em contos de Cidades Mortas um

de seus livros destinados ao público adulto: Oblivion pode não existir

no mapa, mas corresponde a Areias ou a outra localidade onde ele resi

diu, antes de mudar-se definitivamente para a capital do estado de São

Paulo. Com o sítio, isso não acontece, pois não se pode situá-lo em

alguma geografia regional ou local; o máximo que se pode dizer é que

ele fica no Brasil. Embora também se possa dizer que ele é o Brasil.

Vale a pena ver isso mais de perto, porque poucos escritores conse

guem concretizar o que Lobato teve em mente e converteu em fato

literário.

O sítio do Picapau Amarelo aparece desde o primeiro volume da

obra que Monteiro Lobato destinou à infância, sendo descrito com

detalhes

na

abertura de O Saci 1921). propriedade de Dona

Benta Encerrabodes de Oliveira, que habita lá, na companhia de

uma

cozinheira,

Tia

Nastácia, e da neta. Nas férias, recebe a visita do

neto Pedrinho, filho da filha mencionada algumas vezes, mas pessoa

que deve residir na cidade, de onde provém o garoto. Ignora-se

quem são os pais de Narizinho, mas ninguém se preocupa em per

guntar por eles.

Perto da propriedade de Dona Benta, há a venda de Elias Turco,

freqüentada por desocupados e onde Tia Nastácia abastece a cozinha.

Conforme

se

depreende de obras como O

Poço

do Visconde

e

Chave

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  8 Como li Por que

ler

do

Tamanho

o Coronel T eodorico é lindeiro de Dona Benta, sendo

que, entre os dois, há mais animosidade que amizade. O Coronel T eo

dorico, conforme as declarações da velha senhora, é pessoa conserva

dora, despreocupada em atualizar-se seja em termos culturais, seja em

termos econômicos.

Dona

Benta, pelo contrário, é mulher moderna. Deveria se susten

tar às custas das rendas proporcionadas pelo sítio, mas somos informa

dos de que

as lavouras de café estão arruinadas, e pouco

se

faz pelo

crescimento econômico da região. A velha seguidamente critica a

situação, embora não

se

queixe de falta de dinheiro; mas, quando per

cebe que é hora de mudar, adere ao ideal de Lobato não por acaso

tem o nome do próprio escritor, José Bento): patrocina a prospecção

de petróleo em suas terras, obtendo grandes lucros e promovendo o

progresso não apenas na área, mas em todo o país.

Esse resumo, ainda que breve, revela que nenhuma fazenda de café,

do interior de São Paulo ou do vale do Parnaíba, poderia correspon

der

ao

modelo proposto por Monteiro Lobato em seus livros. Isso

decorre do fato de que, de um lado, ele deseja que o sítio mostre como

o Brasil é ou foi, nas primeiras décadas do século

XX

- o predomí

nio da economia agrícola, a decadência do

mundo

rural, o atraso da

mentalidade das pessoas que vivem no campo. De outro, o lugar

ex-

pressa o que Lobato deseja para o Brasil inteiro, a saber, a possibilida

de de modernização, crescimento e fortuna graças à exploração das

riquezas minerais, em especial, do petróleo.

O sítio, porém, não é apenas o espaço do enriquecimento da famí

lia Encerrabodes de Oliveira em decorrência do bom aproveitamento

das potencialidades da terra. É também um lugar ideal, porque:

a

l i teratura Infantil

Brasileira

a É dirigido por uma pessoa culta, inteligente, bem-intencionada e

competente, Dona Benta, modelo do político que, segundo Lobato,

deveria governar o Brasil;

b

Dona Benta é igualmente uma pessoa liberal e democrata, escuta

os

demais, acolhe opiniões divergentes, opta pela solução prática que,

ao mesmo tempo, beneficia a todos. Vale lembrar que, quando Lobato

escreveu boa parte de seus livros, o Brasil era vítima de uma ditadura,

a de Getúlio Vargas, assistia-se à ascensão do fascismo e do nazismo, e a

Europa estava sendo devastada por uma guerra brutal; entende-se, pois,

por que Dona Benta representa o melhor dirigente possível, conforme

reconhecem eminentes políticos da época, oriundos de várias regiões

do globo, citados por Monteiro Lobato na abertura de Chave

do

Tamanho narrativa que dá conta da utopia do escritor.

c

O sítio está aberto para todos, sem discriminação. Além dos já

mencionados Quindim e Conselheiro, admite as personagens do mun

do da fábula, como príncipes, princesas e outros

seres

mágicos que

fogem de Dona Carochinha, conforme narra

Reinações

de Narizinho.

Em O Sítio do

Picapau

Amarelo Dona Benta chega a comprar os ter

renos vizinhos, para abrigar as mais variadas personagens e figuras, que

migram para o lugar que consideram o mais perfeito para

se

viver.

O sítio é

uma

espécie de paraíso, mas

um

paraíso muito especial:

em primeiro lugar, porque,

se

tem uma proprietária, não existe um

dono, nem se verifica o exercício do poder autoritário. Não há domi

nadores, o que se encontra até no Jardim do :Éden. Ali podem apare

cer vilões, mas eles jamais levam a melhor, e isso é outro po nto a favor

do sítio,

se

comparado com outros espaços ideais, imaginados pela

raça humana. Por último, mas não menos importante: o sítio é brasi-

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Como

e Por

que

ler

leiro, como se fosse uma representação idealizada de nossa pátria. Em

outras palavras, é o Brasil conforme o desejo de Lobato,

um

Brasil

sonhado, mas sempre

um

Brasil.

É interessante o nacionalismo de Monteiro Lobato: o escritor foi,

desde

os

primeiros livros, como

Urupés

de 1918,

um

ferrenho crítico

das mazelas nacionais; mas nunca deixou de colocar o país no centro

de seu pensamento, procurando verificar o que era melhor para a

população. Foi até mais além: em Chave do Tamanho fez do Brasil

o coração do

mundo

capaz de propor alternativas a problemas cru

ciais e com isso, tornar-se um exemplo para todos.

Alguns dos livros esclarecem

essas

aspirações, como

As Caçadas de

Pedrinho.

Como

se

anotou antes, essa obra não foi escrita de

uma

vez

só: em 1924, foi publicada a história da caçada da onça; em 1933,

Lobato acrescentou a segunda parte, relativa à fuga do rinoceronte,

que se esconde na propriedade de Dona Benta. É nesse formato que

permanece até hoje.

Os nove anos que separam a redação da primeira e da segunda parte

não alteram alguns dados fundamentais. O primeiro deles diz respei

to ao cenário

da

ação, que

se

passa inteiramente no sítio do Picapau

Amarelo. Aqui aparece a onça, perseguida

por

Emília, o Visconde e

Rabicó, o porquinho até agora não mencionado, mas que pertence à

constelação de personagens secundários de Monteiro Lobato.

Os

heróis conseguem vencer o animal, mas, a seguir,

os

companheiros da

onça juntam-se, para retribuírem a agressão que sofreram. O núcleo

principal do enredo da primeira parte de

As Caçadas de Pedrinho

é for

mado pelos estratagemas bolados

por

Emília, que consegue evitar o

-

  Literi ltura Infantil Brasileira 31

perigo e salvar a pele da turma, inclusive a dos adultos, as velhas teme

rosas da reação das feras vingativas.

A segunda parte é mais original, porque começa com o aparecimen

to

de um

rinoceronte nas terras de Dona Benta. Emília, que o encon

tra, não

se

perturba com a descoberta, tratando de tirar vantagem do

acontecimento: atiça a curiosidade de Pedrinho, que compra o animal.

Acontece que o rinoceronte dera com

os

costados ali por ter fugido de

um circo, onde era maltratado. O dono do circo não se conforma e sai

em busca da propriedade perdida, contando, para tanto, com a ajuda

do governo.

É quando Mo ntei ro Lobato exerce, com grande habilidade, a verve

cômica, denunciando a incompetência do aparato governamental para

resolver

um

problema que, a rigor,

nem

era de sua alçada. Aliás,

as

medidas tomadas pelo poder público dizem bem da atualidade da crí

tica de Lobato: primeiro, cria-se o belo Departamento Nacional de

Caça ao Rinoceronte , conforme conta o narrador; depois, aparecem

os

cargos, preenchidos por burocratas bem remunerados, que nada

fazem: o chefe de serviço ganha um bom salário, dispõe de doze auxi

liares , afora grande número de datilógrafas e 'encostados ' . O narra

dor lembra que essa gente perderia o emprego

se

o animal

fosse

encontrado ,

l

de

modo

que

eles

fazem de tudo para fracassar a busca

do rinoceronte. Por fim,

as

ações executadas

são

caras e ineficientes,

gastando-se o dinheiro público em ações impróprias e inadequadas.

Ao final,

os

homens do governo desistem e vão embora, sendo o

rinoceronte adotado pelos habitantes do sítio, graças às suas virtudes -

é sábio, experiente e erudito, fazendo, de certo modo, parceria com

Dona

Benta. É nesse sentido que o sítio constitui

uma

espécie de repú-

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32

Como e Por que leI

blica ideal, que admite

seres

dotados de qualidades positivas e expulsa

o julgado negativo, como o próprio sistema governamental. Note-se

que Lobato assume atitude corajosa,

à

época em que, no Brasil, esta

belecera-se despótica ditadura, avessa a críticos e opositores, fossem

eles

políticos de partidos diferentes, intelectuais

ou

artistas. Note-se

também que sua república adota

um

sistema muito original: dispõe de

dirigentes, como Dona Benta, mas não conta com

um

aparelho esta

tal, isto

é, uma

burocracia que impede o

bom

funcionamento da socie

dade e o convívio democrático entre

as

pessoas.

Transformado em regime ideal para viver e residir, o sítio torna-se

modelo para outras nações, como mostra

A

Chave

do

Tamanho, já

mencionada. A ação passa-se agora

numa

época datada: a Segunda

Guerra Mundial. Londres está sendo bombardeada pela aviação nazis

ta, depois de

os

demais países europeus terem sido vencidos pelo exér

cito alemão comandado por Adolf Hitler. Os principais dirigentes do

mundo decidem reunir-se para dar fim ao morticínio e acabam ape :

lando para a ajuda de Dona Benta e sua turma. O modo como o pro

blema

se

resolve acaba sendo bem complicado, porque Emília se intro

mete e quase põe tudo a perder. Contudo, fica o fato de Monteiro

Lobato chegar aonde queria:

fez

do espaço onde localizou

os

heróis

um

exemplo para todo o planeta, sem que

ele

deixasse de ser brasileiro.

Referimo-nos até aqui

à

porção principal da obra de Monteiro Lo

bato. Ficaram muitas realizações de lado, como as adaptações de clás

sicos da literatura

Dom

Quixote

das Crianças,

de 1936 e de obras

européias destinadas à infância Peter Pan, de 1930 , as incursões no

folclore Histórias de Tia Nastácia, de 1937 e na mitologia ocidental

O

Minotauro, de 1939 , o aproveitamento da história História do

I

I

33

Mundo para Crianças,

de 1933 , da geografia

Geografia de

Dona

Benta, de 1935 , da matemática Aritmética

da

Emília, de 1935 e da

ciência

Serões

de Dona Benta, de 1937 , que aparecem em muitos dos

títulos. Ele só não fez poesia para criança, tornando-se assunto de fil-

mes, peças de teatro, histórias em quadrinhos e seriado de televisão.

É

bastante, não? Por

essas

e por outras, é que, sozinho, é quase

um

sis-

tema literário inteiro. Mas, na época, não estava isolado, como

se

verá

adiante.

Notas

1

Monteiro Lobato.

s Caçadas de Pedrinho.

São Paulo: Brasiliense, 1956.

p.

84.

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LOBATO NÃO ESTAVA SÓ

o

livros que Monteiro Lobato escreveu com o pensamento nas

crianças obtiveram grande sucesso. Sinal de que rendiam o suficiente

para o autor viver quase que exclusivamente da literatura é a observa

ção dirigida, em carta, a Godofredo Rangel, seu amigo desde a juven

tude, em que compara cada obra a

uma

vaca holandesa que me dá

leite de subsistência . Depois, completa: o

meu

estábulo no Brasil

conta com 23 cabeças no Otales [proprietário da Companhia Editora

Nacional], mais 12 na Brasiliense e mais

as

30 Obras Completas.

Total 65 vacas de 40 litros .l

Graças à atividade de escritor em tempo integral, a literatura infan

til apareceu

no

horizonte das editoras como um negócio rentável,

razão

por

que elas se sentiram à vontade para publicar outros autores

nacionais. Não

fosse

assim, elas abrigariam apenas autores estrangeiros

em tradução

ou

facilitariam

as

adaptações de obras consagradas, como

Literatura Infantil rasileira

aconteceu no inicio do século XX. Como vender livros para a infância

dava lucro, as editoras procuraram investir em outros nomes, fato que

conferiu consistência e durabilidade à literatura destinada às crianças

do Brasil.

Vale a pena lembrar

os

nomes dos que atuaram no período media

do pela vida e influência de Monteiro Lobato, nomes que formaram

o time de autores da época e seus companheiros de profissão.

o realismo de Viriato Correia

. Talvez o principal concorrente de Monteiro Lobato tenha sido Viriato

Correia, não no sentido do antagonismo, mas de intensidade de produção.

No

depoimento de Moacyr Scliar citado no começo deste livro Viriato é

lembrado a propósito de

Cazuza

história publicada em 1938 que

se

tor

nou uma d s obras mais populares da

ficção

nacional destinada à infância.

Mas o autor não escreveu apenas esse livro redigindo grande número de

narrativas que têm como assunto episódios da história do

Brasil.

Esse foi um tema que deu muitos frutos: a história do país deveria

estar cheia de eventos marcantes, que podiam ser traduzidos

na

lingua

gem da literatura - como personagens e muita ação - para o público

infantil. Viriato dedicou-se a essa tarefa, publicando História

do Brasil

para Crianças Meu Torrão Descoberta

do Brasil

e

Bandeira

das

Esmeraldas

por exemplo. Foi, porém, com Cazuza que se consagrou,

e até hoje

esse

livro pode ser lido com a mesma satisfação que levou

Moacyr Scliar a tent ar recuperá-lo, para voltar a fazer parte de seu acer

vo pessoal de literatura infantil.

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  omoe POi que Ler

Cazuza

telu uma particularidade pouco utilizada por Monteiro

Lobato: o entedo é narrado em primeira pessoa recurso que só apare

ce em Memórias de

Emília

e ainda assim de modo parcial. Não é fácil

escrever em primeira pessoa principalmente quando o autor é um

adulto e o leitor uma criança. Corre-se o perigo de tentar imitar a lin

guagem infantil e abusar da puerilidade. O risco aumenta quando o

narrador apresenta-se como uma criança cujos vocabulário e domínio

da sintaxe são ainda relativamente reduzidos. O resultado pode ser um

texto simplório se o escritor quiser facilitar demais;

ou

inverossímil se

o narrador revelar um conhecimento lingüístico impróprio para a

idade.

O melhor é fazer como Viriato Correia: o narrador é um adulto que

recorda a infância. Só isso porém não basta: ele precisa mostrar fami

liaridade diante do assunto repetindo à sua maneira o gesto do lei

tor que também chega perto pelo lado da emoção do mundo exibi

do pela narração. Assim estabelece-se certa intimidade entre quem

conta a história e quem a lê intimidade garantida principalmente pelo

tema da obra e a perspectiva com que ele é oferecido.

O tema está bem próximo da experiência da maior parte das crian

ças

urbanas pois relatam-se

as

diferentes etapas da escolarização do

narrador e personagem principal. Esse tópico determina outra carac

terística da obra - seu realismo - e que a diferencia de Lobato. Como

se observou antes Monte iro Lobato criou um mundo imaginário o

sítio do Picapau Amarelo e dentro desse espaço aboliu todas as fron

teiras - entre seres humanos e não humanos pessoas e animais reali

dade e fantasia. O

Cazuza

de Viriato Correia está do outro lado: não

há heróis dotados de poderes extraordinários nem acontecimentos

l

I

a Literatura

Iri fanti l

Eln lsileir<l

3

fantásticos.

É

da vida cotidiana e dos problemas do dia-a-dia que

se

fala;

e mesmo assim o livro é encantador o que sinaliza a variedade

que a literatura infantil brasileira ia alcançando já na década de 1930.

. A ação do livro começa no interior do Maranhão onde vive o pro

tagonista quando pequeno.

Tem um

grupo de amiguinhos com

os

quais compartilha brincadeiras e o gosto de ouvir histórias. O menino

está ansioso para ir para a escola mas quando isso acontece sofre

grande decepção: o colégio onde estuda é pobre o professor castiga as

crianças e todos aprendem pouco.

À

medida que o enredo avança o narrador vai passando por outras

experiências estudantis até chegar a São Luís onde freqüenta uma

escola de elite. Vivencia momentos desagradáveis e difíceis mas apren

de a confiar em

si

nos professores nos colegas e nas possibilidades da

terra e do país. Descobre principalmente como se tornar atento e crí

tico perante as manifestações de ufanismo barato de racismo ou de

militarismo.

Cazuza

é

à sua maneira um romance de

formação

empregado aqui

o conceito aplicado

às

obras de ficção em que a personagem principal

passa por um processo interno e externo de crescimento na direção da

maturidade e da sabedoria.

É

o que ocorre nesse livro sem que ele

se

mostre didático - Viriato Correia não quer transmitir nenhuma lição

- ou cansativo. O resultado é um texto cheio de vivacidade que vale a

pena ler hoje e sempre ou então reler se ele constituiu uma de suas

preferências juvenis como ocorreu a Moacyr Scliar.

Publicado em 1938 azuza foi por um longo tempo um best-

seller garantindo uma fatia do mercado editorial para a literatura

infantil. Na época em que foi lançado outros autores escolhiam redi-

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Como

e Por

que ler

gir textos para crianças, como forma de ampliar seu público, destacan

do-se, dentre

eles os

que estavam

se

consagrando como romancistas

voltados à produção de uma literatura comprometida com intuitos

políticos e vontade de mudar a sociedade. Vale a pena mencionar dois

deles, Erico Verissimo e Graciliano Ramos, responsáveis por obras que

acabaram se enraizando na tradição da literatura infantil brasileira.

Dos adultos para cl'ianças

Quando

Graciliano Ramos decidiu escrever livros para crianças,

ele

era

um

novelista aclamado pela crítica e pelo público nacional. Pelo

menos duas criações importantes já tinham sido lançadas, São Ber-

nardo de 1934, e Angústia de 1936, obras que, sozinhas, bastariam

para afiançar ao autor alago ano um lugar no panteão dos grandes

nomes da nossa literatura.

Em

1937, residindo no Rio de Janeiro e livre do encarceramento

político a que o regime Vargas o submeteu, Graciliano Ramos resol

veu concorrer a

um

prêmio literário proposto pelo Ministério da

Educação. Inscreveu uma história não muito longa e bastante original,

chamada

Terra dos Meninos

Pelados publicada em 1939. Embora

vencedora, a narrativa não contou logo com muitos apreciadores; ho

je, porém, reconhecem-se seus méritos.

O livro narra a história de Raimundo, um menino que tem a cabe

ça pelada e

os

olhos de cores diferentes,

um

preto e o outro, azul. Po r

causa disso, sente-se discriminado e inferior às demais crianças de sua

idade, até que, de modo mágico, chega a um lugar, Tatipirun, onde

Literatlu'a Infant i l Bl'asileit'

todas as pessoas são como

ele.

Descobrindo sua turma, Raimundo

passa a acreditar em

si

próprio, retornando a casa, em Cambacará,

dotado de energia suficiente para enfrentar situações adversas.

.

De

certa maneira, a narrativa

foge às

características da obra que

Graciliano escreveu para o público adulto, pois, em

Terra

dos

Meni-

nos Pelados predomina a fantasia e o fabuloso. Mas ela carrega traços

tanto do estilo sintético, quanto da visão de mundo do autor, porque,

como ocorre a Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos, filhos do

casal, personagens de obra da mesma época,

Vidas Secas

de 1938,

deparamo-nos com uma pessoa que não pertence aos grupos domi

nantes da sociedade e sofre muito com a exclusão de que é vítima.

que Raimundo tem a oportunidade de dar uma virada em sua vida,

apresentando-se como exemplo de auto-afirmação perante o leitor.

Nos dias atuais, Terra

dos Meninos

Pelados pode ser julgado texto

politicamente correto , ao falar de pessoas perseguidas pelos precon

ceitos da sociedade, que sabem dar a volta por cima, não p or se adap

tarem aos valores predominantes, mas po r se aceitarem como são.

Graciliano é responsável por outros dois textos de excelente quali

dade. Num deles, Pequena História da

República

aborda fatos do pas

sado e da atualidade do Brasil de seu tempo. O adjetivo pequena ,

que acompanha o título, vale apenas para a extensão da obra, bastan

te curta; de resto, ela é grande , porque, em plena ditadura de Ge

túlio Vargas, o escritor usa e abusa do

humor

para falar dos políticos

brasileiros que fizeram a história republicana e recente do país. À épo

ca

a república era já

um

regime consolidado, mas o sistema presiden

cialista tinha sido interrompido pela implantação do Estado Novo,

governado por Vargas. Raros historiadores se atreviam a abordar o

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Como o Por que ler

assunto por temerem a repressão o que não ocorre com Graciliano

que enfrentou o touro à unha. A publicação do livro acabou sendo

sustada e a obra veio a ser conhecida apenas na década de 1950. Ela

continua sendo exemplar pois o escritor oferece uma visão crítica e

audaciosa de

um

importante período da trajetória nacional nem sem

pre suficientemente discutido.

O outro texto de excelente qualidade pertence a gênero oposto. Na

Pequena História da República Graciliano trabalha com fatos históri

cos que devem ter acontecido e sobre os quais dá sua interpretação

seguidamente em desacordo com a versão proposta pelo poder consti

tuído. Nas Histórias de Alexandre

ele

recorre

ao

folclore recolhendo

narrativas da extração popular apresentadas pela personagem referida

no título da coletânea.

O folclore foi desde o começo da literatura infantil brasileira um

dos tesouros de que os escritores se socorreram quando queriam

produzir textos capazes de atrair o novo público. Mas em obras

como os Contos da Carochinha de Figueiredo Pimentel mistura

vam-se histórias da mais variada procedência predominando o

material trazido pelos colonizadores europeus sobretudo os portu

gueses.

Na

época em que Pimentel lançou a antologia não podia ser

muito diferente porque ainda não vigorava a noção de que cabia

prestigiar a tradição nacional. Foi preciso aguardar a explosão

modernista na década de 1920 e depois para

se

entender que os

diferentes grupos de brasileiros nas regiões em que haviam se loca

lizado tinham sido capazes de criar e difundi r seus próprios relatos

ainda quando mesclados àqueles recebidos durante o período da

colonização e da imigração européia.

a Literatura Infantil Brasileira

41

O Modernismo soube valorizar o material de origem popular;

mas somente

essa

medida não era suficiente. Cabia buscar um modo

próprio de expô-lo ao leitor que lhe desse a impressão de estar con

vivendo com os contadores originais. Monteiro Lobato tentou con

cretizar

esse

objetivo em

Histórias

da

Tia Nastácia

fazendo a cozi

nheira do sítio do Picapau Amarelo em tese a representante da

camada popular no universo criado pelo escritor narrar contos fol

clóricos às crianças.

É contudo Graciliano que com as

Histórias

de Alexandre alcança

o resultado modelar ao criar um narrador original profundamente

vinculado ao meio onde ocorrem

as

tramas e que

se

imiscui nelas

como se tivessem acontecido com ele. As intrigas são todas fantásti

cas e inacreditáveis de modo que Alexandre além de narrar aventuras

fabulosas tem de convencer os ouvintes - as pessoas que gostam de

ouvi-lo - de que o relatado efetivamente aconteceu por mais absurdo

que pareça. O uso

desses

recursos - integração do narrador aos acon

tecimentos contados; busca da credibilidade da audiência que repre

senta no interior do texto o leitor que está fora - torna

Histórias

de

Alexandre

produto original e engraçado. O resultado final é uma

das

principais obras elaboradas para crianças e jovens da literatura brasilei

ra e outro daqueles livros que diverte grandes e pequenos.

Erico Verissimo não contava com reconhecimento semelhante ao de

Graciliano quando escreveu os livros que dedicou a crianças e jovens.

A maioria foi redigida durante a década de 1930 quando o romancis

ta já tinha sido premiado por

Caminhos

Cruzados em 1935 mas ainda

não tinha lançado obras mais importantes como O Resto

Silêncio

de

1942 e O Tempo

o Vento

trilogia produzida entre 1949 e 1962.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Como e I or

que

Ler

Para crianças, Erico dirigiu

um

grupo de seis histórias curtas, como

Aventuras do Avião

Vermelho 1936), O Urso com

Música na

Barriga

1938) e

A Vida do

Elefonte Basílio 1939). Algumas são entrelaçadas,

como Os Três Porquinhos Pobres 1936) e Outra Vez s Três Porquinhos

1939), mas a sexta é totalmente independente e a única protagoniza

da por uma menina,

Rosamaria

no

Castelo Encantado

1936). Pode-se

concluir, pelos títulos, que o romancista preferiu distribuir os papéis

principais entre figuras originárias

do

reino animal, como

os

porqui

nhos, urso e elefante citados. Mesmo

As Aventuras

do

Avião

Vermelho

cuja personagem central é o menino Fernando, exibe uma série de

bichos na situação de auxiliares ou antagonistas do herói. Entende-se

por

que agiu assim: narrativas

em

que aparecem bichos são muito bem

aceitas pelas crianças, haja vista o exemplo de tantos desenhos anima

dos e personagens de histórias em quadrinhos, co mo as que, desde a

década de 1930, Walt Disney popularizou.

Erico propõe igualmente enredos para jovens leitores, escolhendo

assuntos menos fantásticos: Viagem Aurora do

Mundo

1939) usa a

fic-

ção para explorar matérias de interesse científico, como as descobertas re

lativas

à

pré-história.

As

Aventuras e

Tibicuera

1937) elege como tema

a história do Brasil, relatada e vivenciada pelo indiozinho do título.

A

Vida

e

Joana

D Arc

1935), dedicada

à

biografia

da

heroína fran

cesa que ajudou a França a

se

liberar do jugo inglês

no

século XIV, é

seu

produto

mais

bem

acabado. Relatado em terceira pessoa, não

esconde a simpatia para com a menina e depois,

moça

que desafia

preconceitos e instituições para realizar o ideal de independência pes

soal e política. Obra datada do período da ditadura de Getúlio Vargas,

manifesta a crença do autor nos ideais libertários então em falta, mas

fundamentais para a existência de uma nação,

onde

quer que ela fique.

a Literatura Infantil

Brasileira

Contemporâneos de Monteiro Lobato, Graciliano Ramos e Erico

Verissimo, assim como o antes mencionado Viriato Correia, não são

propriamente seguidores do criador do sítio do Picapau Amarelo. Dos

três, o mais original é Graciliano Ramos, também o mais distante da

lição de Lobato. Os outros dois mostram características próprias, em

obras que ainda revelam grande interesse para o público leitor.

Continuadores de Monteiro Lobato são os escritores que começa

ram a publicar a partir da década de 1940. Éramos Seis de Mar ia José

Dupré, impressionou bastante o autor paulista,

 

mas foram

as

histórias

protagonizadas pelo Cachorrinho Samba que se adequaram com mais

propriedade ao público jovem. Francisco Marins, t ambém de São Pau

lo, adotou uma das principais idéias de Lobato, a de inventar

um

espa

ço imaginário, mas não menos brasileiro, para acolher as personagens e

desenvolver as ações. Chama-o de Taquara-Poca, e é lá que

os

heróis

vivenciam aventuras instigantes.

O melhor, dentre

os

continuadores de Monteiro Lobato, é Jerôni

mo Monteiro, mas seus livros, que apareceram na década de 1950, são

hoje bastante raros. Contudo quem

se

deparar com

A Cidade Perdi-

da ou Três

Meses

no

Século

81, lerá certamente obras de ação e aventu

ra da melhor qualidade, equivalente

à

que, nas primeiras décadas do

século XX, fizeram a alegria dos novelistas citados no início deste livro.

otas

1 Monteiro Lobato.

A

Barca de

Gleyre.

14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. p. 373.

2 Cf. os elogios que o escritor dirige ao romance de Maria José Dupré, em Monteiro Lobato.

A

Barca

de

Gleyre.

14. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. V. 2, p. 356-359.

a

l i teratura Infantil

Brasileira 45

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 23/93

 

AVENTURA DE

COMEÇAR DE NOVO

o

escritores mencionados ao final do capítulo anterior elabora

ram seus principais livros entre 1945 e 1960, numa época em que a

literatura brasileira já se ressentia da falta de Monteiro Lobato. Os oze

Trabalhos de Hércules sua derradeira obra para a infância, ti nha sido

publicada em 1944;

e

embora

as

crianças brasileiras tivessem amplo

acesso à saga do sítio do Picapau Amarelo nos anos 50, poucas foram

as

histórias originais lançadas nesse tempo.

A situação era paradoxal: o Brasil ia bem, obrigado, graças

ao

surto

desenvolvimentista que se seguiu ao final da Segunda Guerra. O país

havia passado por

um

período de agudo nacionalismo, de que é

ex-

pressão a campanha do Petróleo é nosso , como

foi

conhecida, resul

tando dela conquistas mui to importantes, sendo a mais significativa a

fundação da Petrobras. Lobato provavelmente aderiria

aos

promoto

res da política nacional de exploração das riquezas naturais, assim

como talvez se solidarizasse com ] uscelino Kubitschek, que prometeu

fazer o Brasil progredir cinqüenta anos durante

os

cinco de seu man

dato presidencial. O mineiro de Diamantina que conquistou o cora

ção dos eleitores brasileiros deve ter exagerado

um

pouco; mas, levan

do a capital brasileira para o planalto central, com a construção de

Brasília, a judou a domar as fronteiras nacionais e a promover o cresci

mento da região Centro-Oeste, até então pouco povoada.

A literatura infantil, contudo, não ia bem, faltando-lhe a centelha

de imaginação que animou a escrita dos artistas citados antes. Curio

samente, foi preciso o Brasil ir mal para então a literatura infantil cres

cer e aparecer, ajudando o país a

se

recuperar dos percalços políticos e

culturais.

De

fato, o Brasil que crescia nos anos 50 começou a década de 1960

em alta. Ganhou até

Copa

do Mundo e por duas

vezes

seguidas. Mas

a economia tinha sido forçada demais, e o desenvolvimento acelera

do cobrava o preço: inflação, restrição de crédito, agitação urbana e

reivindicações no campo e na cidade. O governo tinha dificuldade

para lidar com isso, e acabou perdendo credibilidade entre as classes

dominantes. A desconfiança gerou o desejo de mudar de governan

tes, o que é legítimo; mas isso aconteceu da pior forma possível: o

Exército tomou a frente e responsabilizou-se por

um

golpe de Estado,

derrubando o presidente então no poder e colocando outro no lugar,

um

general fardado.

O Brasil começou nova fase da história, que, no início, autodeno

minou-se revolucionária, mas que,

aos

poucos, foi-se mostrando con-

46

Como e Por que Ler

l i teratura

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 I

 11

 i

i

:''

 I

servadora autoritária e coercitiva. A degringolada final acontece em

1968 com a promulgação do AI-5. Proibiu-se o que fosse contrário

ao

regime e

os

desobedientes podiam sofrer toda sorte de punição

desde a perda do emprego até a prisão e a tortura.

Diante desse quadro as pessoas se encolheram e tal repressão

afe-

tou a cultura sobretudo o cinema e o teatro artes que mais direta e

imediatamente dependem de público. O acanhamento cultural não

foi

vivenciado logo pois as ações iniciadas nos anos 50 tinham acu

mulado tanta energia que seu impacto repercutiu até a segunda meta

de da década de 1960. Depois disso tudo

foi

ficando mais difícil e

os

artistas tiveram de mudar de país como o cineasta Glauber Rocha e o

dramaturgo Augusto Boal ou então silenciar por algum tempo.

A literatura não escapou da repressão no entanto sofreu menos. E

a literatura infantil que talvez por não ser vista não era lembrada

pôde se apresentar como uma dessas válvulas de escape por onde os

produtores culturais - escritores ilustradores artistas em

geral

tive

ram condições de manifestar idéias libertárias e conquistar leitores.

A transformação por sua vez não

se fez

tão-somente por obra e

graça dos agentes envolvidos com a literatura. Certas mudanças pro

postas pelo Estado tiveram repercussões no campo cultural e literário

beneficiando a arte destinada a crianças e jovens.

A principal mudança disse respeito

à

organização do ensino. Até o

final dos anos 60 a escolarização da infância e da juventude dividia-se

entre o ensino primário obrigatório com a duração de cinco anos e

o ensino secundário em duas etapas conhecidas como ginásio em

quatro anos e colégio em três anos. A essa

etapa seguia-se o ensino

superior ministrado pela universidade.

a Infantil Ilrasileira

A partir da reforma implantada no começo da década de 1970 o

ensino passou a repartir-se em fundamental obrigatório como o anti

go

primário; mas com a duração de oito anos médio em três anos e

superior. A principal providência em termos organizacionais disse

respeito ao ensino fundamental pois a

faixa

de escolarização obrigató

ria estendeu-se de cinco para oito anos fazendo aumentar numerica

mente o número de alunos na escola.

A outra modificação adotada afetou a docência da disciplina que dá

conta da aprendizagem da língua portuguesa. Essa disciplina passou

por várias denominações ao longo do século XX e vale a pena lembrar

algumas delas porque dizem respeito não apenas

ao

período que há

muito ou

pouco tempo passamos pela escola.

Quando o ensino primário tornou-se obrigatório na década de

1930 a disciplina relativa ao estudo da língua e da literatura chama

va-se Português const ituindo os

principais conteúdos a aprendiza

gem da gramática e o conhecimento dos escritores mais importantes

da literatura em língua portuguesa. Esclareça-se que desde o século

XIX os livros de leitura adotados na escola incluíam trechos selecio

nados de vultos do passado literário sem distinguir entre os autores

de Portugal e do Brasil. A diferenciação entre nacionais e estrangeiros

começa a se acentuar após o Modernismo

na

década de 1920 de

modo que os livros didáticos que substituíram as seletas utilizadas até

então passaram a incorporar maior quantidade de textos brasileiros

que portugueses. Um fato não

se

altera porém: a preferência recai

sobre

os

considerados clássicos ou canônicos isto

é os

que já haviam

sido matéria do crivo da crítica e da história da literatura logo julga

dos modelares.

48

Como e Por lue Ler

a

Literatura

Infantil

8rasileira

49

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A disciplina Português foi conhecida nas décadas seguintes também

sob a denominação de Língua Nacional

ou

de Língua Portuguesa sem

que s alterações afetassem a escolha de textos: estudantes dos cursos pri

mário e secundário nos anos 40 e 50 e mesmo nos anos 60 depararam

se

com nomes de valor indiscutível e comparecimento necessário no

panteão de nossa literatura como Gonçalves Dias Casimiro de Abreu

Olavo Bilac ou Afonso Celso conforme exemplifica uma seleção data

da de 1951.

 

Mas esses foram escritores que falavam a linguagem do pas

sado e dirigiram-se a leitores adultos não os pequenos estudantes que

começavam a vida escolar com seis ou sete anos.

Alteração significativa ocorreu no começo da década de 1970 quan

do se adotaram duas medidas inovadoras: valorizaram-se os autores

contemporâneos e não necessariamente os canônicos; e estimulou-se

a presença em sala de aula de obras literárias liberando os professo

res do uso exclusivo do livro didático. Não que este tipo de publica

ção tenha desaparecido da escola; pelo contrário como aumentou o

tempo de permanência do aluno nos colégios cresceu na mesma - ou

até

em

maior - proporção a quantidade de obras destinadas ao profes

sor

na

condição de instrumento auxiliar de ensino.

A reforma

da

educação brasileira introduzida

em

1970

por

inter

médio da seguidamente citada Lei 5.692 trouxe algumas conseqüên

cias complicadas: com tantos novos alunos

na

escola foi necessário

recrutar mais professores. O país não estava preparado para isso e al

guns docentes foram instruídos de modo apressado através de cursos

intensivos patrocinados pelos governos federal e estadual. A seguir na

esteira desse processo estabeleceram-se muitos cursos superiores

em

faculdades particulares encarregados de diplomar professores

em

pou-

co tempo graças às então implantadas licenciaturas curtas de apenas

dois anos de extensão.

Mesmo éom regulamentações posteriores a situação não mudou

muito: até hoje muitos professores não estão suficientemente apare

lhados para assumir tarefas didáticas razão por que tendem a

se

esco

rar no livro didático que lhes oferece lições acabadas. Além disso os

salários para quem trabalha sobretudo em escola pública não são re

compensadores fazendo com que

os

profissionais do ensino tenham

de assumir aulas em demasia decisão que lhes rouba o tempo de estu

dar ou de planejar

s

classes mais adequadamente. Também esse fator

f z com que ele prefira materiais que já se oferecem prontos ou que

facilitem a ação pedagógica.

Não podemos nos iludir: os resultados

da

reforma de 1970 mesmo

que lembradas s tentativas de reparar erros cometidos ou compensar

decisões impróprias trouxeram alguns malefícios de que ainda padece

a educação brasileira. Contudo

nem

tudo deu errado e o incentivo

conferido à literatura infantil considerada doravante material adequa

do à docência nos primeiros anos de freqüência à escola foi

um

dos

benefícios evidentes da nova estruturação do ensino em nosso país.

2

Uma

pesquisa realizada na segunda metade dos anos

7

informa

como andava na época o estudo da literatura nos primeiros anos da

educação fundamental e da adoção dos novos parâmetros pedagógi

cos. Esse trabalho foi realizado em Porto Alegre ou seja

em

meio ur

bano numa região onde predomina a classe média a atividade indus

trial e que apresenta bom nível de escolarização. A amostra pode ser

considerada representativa porque não provém de uma zona muito

desenvolvida e rica como seriam pesquisas aplicadas em São Paulo ou

50

Como

e Por

que

l r

a

Literatura

Infantil Brasileira

51

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Rio de Janeiro,

nem

de um local distante dos grandes centros ou exces

sivamente rural, como seriam, na época, investigações que escolhessem

o Norte ou o Nordeste como espaço de conhecimento.

A pesquisa gaúcha evidencia, pelo menos, dois aspectos interessantes:

3

a

Os

professores utilizavam

em

sala de aula

um

misto de literatura

infantil destacando-se, por exemplo, a adoção,

em

larga escala, de s

venturas

de Tibicuera de Erico Verissimo - com narrativas dirigidas

originalmente ao público adulto. Assim, verificava-se a escolha de tre

chos

ou

obras inteiras de José de Alencar e Machado de

Assis,

por

exemplo.

b Quando optavam por livros dirigidos às crianças, os professores

preferiam, muitas vezes, obras de Monteiro Lobato, fato que sinaliza

va, de um lado, a permanência do grande escritor no horizonte da in

fância brasileira daquele tempo; de outro, que

os

docentes faziam elei

ções motivados não pelo que teriam aprendido nos cursos de magisté

rio, mas pelo que sugeria a memória das próprias leituras. Ao lado des

sas predileções, vinham outras, como as de Erico Verissimo, citada

antes, e de Maria José Dupré, apontando para a persistência de auto

res atuantes nos anos 40 e 50, agora desatualizados, no universo das

escolhas de alunos e professores.

A primeira constatação indicava que os professores oscilavam ainda

entre literatura para crianças e para adultos, porque, sendo recente, a

reforma do ensino ainda não tinha estabilizado

um

procedimento

constante de eleição de livros ou leituras a serem utilizadas em sala de

aula. Similar pesquisa, se realizada hoje, chegaria provavelmente a resul

tados diferentes, pois os chamados clássicos da literatura brasileira,

como José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo

ou

Machado de

Assis, não são mais acolhidos no nível fundamental, mesmo na sétima

ou oitava séries, não porque devamos descartá-los da história da litera

tura, mas por se mostrarem leituras impróprias formação de leitores

jovens e crianças. Essa alteração afetou significativamente o mercado

editorial brasileiro, com conseqüências benéficas para o crescimento do

público da literatura infantil.

A segunda constatação indicava que os professores estavam desatua

lizados em termos de produção de livros para crianças. Não se pode

condená-los, porém: no começo dos anos 70, a literatura infantil bra

sileira apresentava visível estagnação, resultante dos problemas arrola

dos: repetição dos modelos criados, então com grande originalidade,

por Monteiro Lobato; visão conservadora do país; predominância de

perspectiva moralista

ou

pedagógica nos textos literários. Autores bas

tante populares ainda nos anos

70,

como a mencionada Maria José

Dupré ou o Vovô Felíci0

4

(provavelmente um dos maiores

best-sellers

do período), tinham público certo, valorizados por professores e,

quem sabe, escolhidos pelos alunos.

Esse quadro

se

alterou, de modo que, relativamente ao tópico em

questão, pesquisa similar encontraria resultados distintos. A literatura

infantil exibe

uma

fisionomia completamente diferente na atualidade,

porque não se submeteu aos paradigmas representados pelos escritores

que dominavam a cena literária no começo dos anos 70 e que vieram

a constituir as primeiras opções dos professores e estudantes.

A razão se deve a uma circunstância: os autores que começaram a se

destacar na mesma época não elegeram o caminho fácil de responde

rem

à

expectativas dos professores, oferecendo-se como alternativa às

obras adotadas

em

classe. Pelo contrário, trataram de contrariar o pa-

5

omo Por que Ler

a literatura

Infantil Brasileira

53

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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norama vigente em, pelo menos, três aspectos: por proporem uma lite

ratura de contestação, mesmo quando, durante

os

anos 70, o país pas

sava pelo pesado processo da repressão política; por preferirem dialo

gar diretamente com o leitor criança, seu destinatário por excelência;

por proporcionarem a ele formas novas de narrar e de lidar com a tra

dição, dentro

da

qual os adultos t inham feito sua formação.

Durante

os

anos 70, foi como

se

a literatura infantil brasileira co

meçasse a recontar a história, rejeitando o que a antecedeu e recusan

do mecanismos simplórios de inserção e aceitação social. Graças a essa

empreitada arriscada, ela ganhou, sem barganhar, espaço na escola e

junto

ao público. A recompensa foi seu crescimento qualitativo, que a

coloca

num

patamar invejável, mesmo se comparada ao que de me

lhor

se faz

para a criança

em

todo o planeta.

Um exemplo talvez seja suficiente para que se concorde com a afir

mação colocada

no

parágrafo anterior.

Em

1978, Ana Maria Machado, conhecida pelas crianças graças à

participação

na

revista

Recreio

e

à

publicação de obras como

Bento-que

bento

Frade Severino

Faz

Chover

e CU11 UpaCO

Papaco

lança

História

Meio

ao Contrário. O título da narrativa é desde logo, desafiador: his

tórias podem ir

numa

direção, digamos, direta

ou na

contramão, atro

pelando hábitos

ou

rotinas. Meio ao contrário soa esquisito, porque

não

se

compromete com um lado, nem com outro, contradizendo,

pois, qualquer uma das maneiras a que

se

está acostumado.

É

o que

faz

Ana Maria Machado:

em

vez de começar contando

uma

história pelo início, toma como ponto de partida a frase final da maio

ria dos contos de fadas: e viveram felizes para sempre .5 Depois é que

ela explica que viver feliz para sempre era um pouco excessivo, de

modo que se

faz

necessário expor o que foi acontecendo após

um

prín

cipe e uma princesa, apaixonados um pelo outro, casarem: tiveram

uma filha, educaram-na e prepararam-na para sucedê-los.

O sumário indica como a frase de abertura contraria o começo dos

contos de fadas, mas a seqüência retoma a continuidade da vida matri

monial. O mesmo se passa

na

sucessão do texto: o rei, acostumado a

dormir cedo, antes de o dia acabar, fica acordado até mais tarde e assis

te

à

chegada

da

noite. O fato, para ele incomum, é mal interpretado:

pensa que o dia fora roubado e

sai

à procura dos culpados.

Como

o

problema não se resolve, decide convocar o convencional herói busca

dor das histórias de fada: um príncipe que se encarregue de resolver o

problema; bem-sucedido, ganhará a princesa em casamento.

Outra

vez

a escritora segue o modelo do gênero, mas surpreende

quando apresenta as soluções: o príncipe não resolve nada, porque a

troca do dia pela noite faz parte do ciclo natural, e o rei, até então

alheado da realidade do reino, descobre que está na hora de conhecer

os

súditos e

os

problemas vigentes. Por sua vez a princesa não aceita a

escolha do noivo e sai a cuidar da vida, enquanto o príncipe percebe

que está interessado mesmo numa camponesa, e não na aristocrata que

lhe era oferecida. Acaba também seguindo seu destino, ao lado da

moça que ama.

Provavelmente teria sido mais fácil para Ana Maria Machado escre

ver uma história de fadas que acompanhasse as manhas do gênero.

Mas a solução de algibeira não lhe convinha, razão por que preferiu

inovar, buscando alternativas para a narrativa que são, ao mesmo

tempo, contestadoras e divertidas, agradando, pois, o leitor habituado

ao estilo dos contos de fadas. A contestação não fica evidente no resu-

54

omo Por

que

Ler

a

literatura Infantil

Brasileira

55

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mo formulado antes, mas está presente

na

história sob vários ângulos:

o denunciar o alheamento dos responsáveis pelo poder, que ignoram

o que se passa fora do palácio, seja o ritmo da natureza, sejam s neces

sidades da população; e o sugerir às pessoas, mesmo quando muito

jovens, como os leitores de História Meio

ao

Contrdrio seguirem o que

manda o coração

ou

a inteligência, não, porém, obrigações

ou

manda

dos vindos de fora.

Publicado numa época em que o Brasil ainda estava submetido

o

jugo de um governo ditatorial, História Meio

ao Contrdrio

dá um reca

do claro a crianças e adultos, estimulando a busca de uma existência

independente, do ponto de vista pessoal, e o desagrado perante

um

sis-

tema político autoritário e distanciado da população.

A obra de Ana Maria Machado sinalizava,

na

virada dos anos 70

para os anos 80, que a literatura infantil não apenas se insubordina

va contra o sistema vigente, fosse ele o literário, o político

ou

o eco

nômico. Revelava igualmente que era hora de se fazer

uma

nova his

tória, meio ao contrário , porque,

se

dava seguimento o que de

melhor a literatura infantil fornecera até então, tinha, na mesma

proporção, de procurar seu

rumo

e traçar os caminhos da estrada

que

se

abria à frente, conforme

uma

aventura inovadora e plena de

desafios.

otas

1 Cf. Mendes, Orlando e Morais, Ligia Mendes de. Seleta

Infontil

Rio de Janeiro: Gráfica

Editora Aurora, 1951.

2 Cf. Soares, Magda.

Comunicação e Expressão. Emino

da

Língua

Portuguesa no l Grau.

Cadernos da PUC RS23:

11-36, 1974.

3 Cf. Aguiar, Vera Teixeira de.

A

Literatura

Illfimtílllo Rio Cmnde

do Sul.

Correio

do

Povo.

Porto Alegre, 3. dez. 1977. Cad erno de Sábado. 8 (495): 7. Wagner, Elísia da Silva.

Literatura

Infontil na Sala de Aula. Letras de Hoje

36: 56-73, 1979.

4

Pseudônimo de Vicente Guimarães (1906-1981).

5

Machado, Ana Maria. História Meio ao

Contrdrio.

São Paulo: Ática, 1979. p. 4.

a litel atura Infantil Brasileira

51

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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REIS FADAS E SAPOS PARA

AS CRIANÇAS BRASILEIRAS

t ó r i a

Meio ao Contrdrio

apresenta novidades formais e narrat i

vas que surpreendem quem lê o livro. Por outro lado, lida com o que

existe de mais tradicional das narrativas para crianças, tais como reis,

príncipes, gigantes. Ficam faltando

as

fadas, mas o mundo encanta

do dos contos que

elas

denominam ali está. Escolhida para represen

tar o que de mais revolucionário acontecia na literatura brasileira para

crianças, pode dar a entender t ambém que não

se estava avançando,

e sim regredindo.

O processo, porém, é compreensível, pois foi como se a literatura

infantil precisasse retornar aos inícios - do conto de fadas, nascido na

Europa; dos Contos da

Carochinha

como os que Figueiredo Pimentel

narrou, nos primeiros anos da história do gênero no Brasil - , para

tomar o impulso necessário para cruzar fronteiras e impor novas regras

de criação e leitura de textos destinados à infância.

De fato, foi

isso

mesmo que aconteceu, pois, entre 1975 e 1985,

apareceram livros que

se

valem de personagens similares, como fadas,

bruxas, madrastas, príncipes e moças pobres, para discutir temas con

temporâneos que interessariam as crianças brasileiras, dentro e fora da

escola ou em família.

Destaque-se primeiramente Fada que Tinha

Idéias

de Fernanda

Lopes de Almeida, publicado em 1971. A protagonista da história é a

fada do título, Clara Luz, que, como toda menina criativa, não aceita

as

idéias prontas contidas no Livro das Fadas, a que deve obedecer. A

rebeldia

se

manifesta de modo simpático e conquista, de imediato, o

leitor, que, como ela, é levado a contradizer a autoridade e a questio

nar a tradição.

O que a garota do título deseja é dar vazão à inventividade e abrir

caminhos, graças à imaginação e ao gosto de viver. Sozinha

ou

contan

do com o apoio de outros, como o da professora de Horizontologia,

Clara Luz mostra-se independente e desafiadora, a ponto de ser cha

mada às falas pelas fadas que exercem o governo no mundo em que

vive As

últimas cenas do livro assemelham-se

aos

episódios de

Alice

no

País das Maravilhas

em que a menina inglesa

se

depara com a Rainha

de Copas, mandona e poderosa; como a precursora, Clara Luz não se

perturba, acabando por modificar importantes regras do sistema polí

tico em sua terra.

Fadas ocupando o título de narrativas brasileiras para crianças tor

nam-se mais freqüentes na passagem dos anos 70 para

os

anos 80:

Eliane Ganem publica Fada Desencantada 1975) e Bartolomeu

Como

e Por

que

ter

a

Literatura

Infantil Ilrasileira

9

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Campos Queirós, Onde Tem Bruxa

Tem

Fada (1979), dois exemplos

da tendência a recorrer ao tradicional imaginário da literatura infantil

para apresentar temas novos e inquietantes. O primeiro conta a traje

tória de uma fada que quer renunciar à condição dentro da qual nas

ceu: recusa a obrigação de fazer magias, ajudar

os

outros, defender

um

desvalido a quem protege.

Quer

mudar de vida e de profissão, o que

consegue graças

à decisão de

se

transferir para uma cidade moderna, o

Rio de Janeiro, e atuar da mesma maneira que as pessoas desprovidas

de poderes sobrenaturais.

Onde Tem Bruxa Tem Fada compartilha o cenário urbano viven

ciado pela protagonis ta de Fada Desencantada e como os anteriores,

atualiza espaço e personagens para exibir temas contemporâneos e

controversos. O texto, de linguagem lírica e metafórica, se comparado

com

os

anteriores, revela como o materialismo e o pragmatismo das

pessoas expulsam

as

fadas, ou entes imaginários similares, do mundo

moderno. É como se não houvesse mais lugar para figuras da imagi

nação, porque as pessoas preocupam-se unicamente em ganhar

dinheiro, mesmo que à custa dos ideais ou dos valores positivos que a

educação e a sociedade transmitem.

O Fantdstico

Mistério de

Feiurinha (1986), de Pedro Bandeira,

inverte

essa

equação, lidando com

os

mesmos termos. A protagonista

do título é a figura esquecida dos contos de fadas, que precisa ser

relembrada para não desaparecer.

Na

companhia das personagens tra

dicionais dos contos de fadas, como Branca de Neve ou Chapeuzinho

Vermelho, Feiurinha representa a memória do passado que, mesmo

filtrado pela desmitificação e atualização, igualmente presentes na nar-

rativa de Bandeira, precisa ser mantido, porque constitui a tradição e

a história a que pertence o leitor.

Escolhendo fadas para protagonizar as histórias, os autores mencio

nados conferem importante lugar para a personagem feminina, como

se

passa no já citado

História Meio

ao

Contrdrio

de Ana Maria Ma

chado. Essa opção indica que os textos são renovadores não apenas

porque temas e seres tradicionais da literatura infantil aparecem numa

condição diferente e transformadora, mas também porque

as

mudan

ças são lideradas por mulheres que, de

um

jeito ou de outro, se rebe

lam contra papéis previamente fixados, situações convenientes ou

deveres consolidados pelo tempo.

Às histórias de fadas protagonizadas por moças contrapõem-se as

narrativas em que

as

personagens predominantes são reis ou príncipes

ainda meninos ou já muito velhos. Pioneiro dessa tendência foi Eliar

do França, escritor e ilustrador que publicou, em 1974, O

Rei

de Quase-

tudo.

Este é o herói do livro, fábula que conta a história de um monar

ca que, tendo poder, nunca

se

contenta com suas posses, desejando

sempre mais. Acumula terras, dinheiro, os produtos da natureza, pla

netas e estrelas; mesmo assim, nunca se sente satisfeito, até descobrir

que a conseqüência de seus atos apenas gerara tristeza, feiúra e dor.

Devolve então o que conquistara aos donos, fossem pessoas

ou

a natu

reza, alcançando então a paz. Deixa, assim, de ser o rei de quase-

d

d

1

u o , para ter tu o .

Pode-se entender por que a narrativa traz marcas da fábula: a per

sonagem, que não tem nome, sendo apenas designada pela função

política, passa por uma lição de vida, transmitida por tabela ao leitor.

Além disso, o rei de quase-tudo pode representar várias pessoas, al-

I '

60

Como

e

Por

que

leI

a l i teratura Infantil

Brasileira

61

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cançando a generalidade prevista por aquele gênero literário. Corno é

um

rei , pode representar

as

figuras que detêm o poder e desejam

sempre mais; corno alcança riquezas e propriedades, pode simbolizar

o capitalismo, sistema econômico apoiado na acumulação de bens;

mas, como demonstra comportamento caprichoso, pode igualmente

se

confundir com a criança mal-educada, que não conhece limites

e,

de alguma maneira, precisa aprender a conviver com

os

outros.

Não

significa isso que o texto seja pedagógico

ou

educativo, conclu

são que

as

palavras anteriores poderiam sugerir.

Em

primeiro lugar,

porque o texto não conclui

por

urna afirmativa, ao modo da moral

da história , que induziria a interpretação e fecharia a narrativa

num

sentido único. Pelo contrário, desde a leitura inicial, O

Rei

de

Quase

tudo

propicia urna compreensão aberta; além disso, propõe urna expe

riência com a qual o leitor

se

identifica por já ter passado po r situação

semelhante.

Em

segundo lugar, porque a fábula não é

um

gênero edu

cativo, e sim literário, e

é eficaz quando tem meios de apresentar

temas que só

se

podem entender graças ao poder de simbolização do

texto. E,

se

o texto está apto a representar idéias de modo simbólico,

ele requer interpretação, vale dizer, participação do leitor, que o absor

ve conforme suas experiências, gostos e preferências.

Outros reis

se

seguiram a este, escolhidos para liderar narrativas

em

que pudessem exprimir

um

posicionamento diante do exercício do

poder e do modo como

um

sistema autoritário era exercido, quando

os militares ainda governavam o Brasil.

O mais popular desses membros da realeza deve ter sido O Reizinho

Mandão

(1978), de

Ruth

Rocha, escritora que, quando publicou

esse

livro, era já conhecida por obras marcantes como Marcelo Marmelo

Mttrtelo (1976). Tal

COino

Eliardo França que, em O

Rei

de

Qjtase-tudo

moderniza um gênero clássico, a fábula, para discutir

um

tema contem

porâneo,

Ruth

vale-se do estilo do cordel para narrar a trajetória do

menino nascido na corte, herdeiro do trono e autoritário, como todo

sujeitinho muito mal-educado que pensa ser o dono do mundo .2

O Reizinho

Mandão

não é, pois, contado, e sim cantado, e esta esco

lha é importante, porque, na abertura, o narrador chama a atenção para

as

condições - todas impossíveis, como nas

vezes

em que o atrás for

c I b h I d

a

ll'ente

,o

prego

01

marte o

ou

co ra usar c me o - que po

em

fazer um cantador se calar . O que está em jogo, pois, é a hipótese de

uma pessoa dar livre curso não apenas a seus pensamentos, mas tam

bém

à

possibilidade de exteriorizá-los verbalmente.

É

o que o herói do

título quer

fazer,

até conseguir, primeiramente, que o reino se torne

infeliz e amargurado, já que todos estão proibidos de falar.

Quando

quer reverter a situação, é tarde: acaba sendo alvo da reação da menina

que exprime contrariedade, gritando, para todos ouvirem, que nin

guém controla sua fala. A explosão de liberdade modifica a situação do

reino, que redescobre a voz e provoca a fuga do indesejado governante.

Ruth

Rocha vale-se de

uma

alegoria para representar o Brasil dos

anos 70, dominado

por um

regime autoritário que calava a oposição e

que buscava encontrar meios de expressão para furar o bloqueio da cen

sura e da repressão.

Não

quer dizer que o livro tenha ficado datado

ou

que, hoje, não tenha sentido, uma vez que a livre manifestação das

idéias e da arte está com freqüência sob a ameaça dos meios de contro

le,

não necessariamente

os

policiais:

os

controles po dem estar corpori

ficados no aumento do número de mecanismos de fiscalização, bem

como no seu aperfeiçoamento tecnológico. Além disso, crianças e adul-

i

62

Como e

j or

que ler

a Literatura Infantil Brasileira

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 32/93

tos

mandões

estão sempre presentes na vida cotidiana, e nunca é demais

lembrar que a submissão gera silêncio e infelicidade. Tais temas, encon

tráveis no livro de Ruth Rocha, comprovam que a autora, se não

se

calou na época

em

que lançou o livro, continua declarando, de modo

eloqüente, a inconformidade com

as

formas de dominação.

Na

esteira do sucesso de O

Reizinho Mandão Ruth

Rocha publicou,

em 1979, O

Rei que

não Sabia

de Nada

de teor igualmente alegórico.

Como

o título sugere, o governante de um país imaginário é iludido

pelos ministros, que apresentam a ele a imagem de

um

país progressis

ta, onde inexistem preocupações econômicas e sociais.

Quando

desco

bre a verdade, o rei não tem mais meios de mudar a situação e foge.

Alertado por

uma

menina, que não tem papas

na

língua, ele renuncia

ao poder e deixa a tarefa de solucionar os problemas para a população.

A alternativa democrática dá certo, garantindo a melhora geral.

O

Rei

que não Sabia de

Nada

dá continuidade a um dos temas de

O

Reizinho Mandão:

indicando que o governante desconhece

os

pro

blemas e dificuldades do povo, porque ninguém lhe confessa o que

acontece, a história chama a atenção para a necessidade de

se

expres

sar diante do poder.

Outra

vez

uma

menina, agora nomeada Cecília,

é a agente da transformação.

Sapo

Vira Rei

Vira Sapo

ouA Volta

do

Reizinho M andão

(I982) com

pleta a trilogia, desdobrando outra vertente sugerida pela narrativa-mãe

e que o subtítulo

da

obra revela.

De

novo, estamos perante

um

gover

nante caprichoso, mal-educado e autoritário, que quer impor a vonta

de sobre todos os

outros, até ser derrubado pelo povo e posto a correr.

A história, porém, não se limita a esse resumo, pois o título sugere

de antemão que

uma

narrativa tradicional vai ser desmentida, no caso,

a do príncipe sapo . A versão canônica desse conto centra-se no dile

ma

da princesa, que, após ter perdido uma bola de ouro

no

fundo de

um

lago, pedé auxílio a

um

repugnante anfíbio para recuperar o pre

cioso brinquedo. Ele aceita a tarefa em troca de

um

beijo, prometido

pela jovem; obrigada a cumprir a palavra, ela tem uma agradável sur

presa, pois, conforme o enredo dos Grimm, o animal metamorfoseia

se num

belo príncipe, seu futuro esposo.

Ruth

Rocha desconstrói a seqüência original desde o começo, que

abre com o aparecimento do animal, introduzido por versos que in

corporam o posicionamento bem-humorado e paródico do poema

modernista de Manuel Bandeira, Os Sapos :

Vinha o sapo pela estrada

Avançando

passo

a

passo.

Pula, pulando

seus

pulos,

Recitando no compasso:

- Meu pai foi rei

Foi, não

foi

Meu pai

foi

rei

Foi, não

foi 3

Dialogando com o poema de Bandeira, que assume atitude irreve

rente diante dos representantes da tradição e do conformismo,

Ruth

antecipa que a personagem não conta com sua simpatia. A suposição

se

confirma mais adiante, quando a autora

continuidade

à

intriga

original. Evitando encerrá-la logo após o conhecido desencantamento

do sapo e metamorfose

em

príncipe, ela relata o que acontece quando

64

Como e Por que L er

  I

Uter ltur l

Infant i l IIrasileim 65

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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o marido da princesa ascende ao trono e toma

as

rédeas do governo.

Os desmandos marcam sua administração, a ponto de gerar descon

tentamento e conseqüente perda do poder.

s

providências tomadas pela escritora, apoiando o texto não ape

nas

num

conto de

fadas

tradicional, mas também no projeto moder

nista, indicam que não cabe reduzir Sapo Vira Rei Vira Sapo a uma

continuação de O

Reizinho Mandão.

É como se ela mesma se apro

priasse de

seus

temas, estabelecesse os necessários cotejos - por exem

plo, o título aproxima a obra de textos anteriores, um deles sendo o

seu -, para contrariá-los. Eis por que a interlocução com o poema de

Manuel Bandeira se apresenta; com similar propósito, rechaça a con

clusão de O

Rei que

não

Sabia

de

Nada,

segundo representante da tri

logia, já mencionado. Nesse, o final acomoda conflitos e promete

feli-

cidade perene; em

Sapo

Vira Rei Vira Sapo, o parágrafo final, após

lembrar que a história

se

repete, / Como

se

fosse um gracejo , adver

te, como que convocando o leitor

à

permanente vigilância diante da

hipótese do retorno dos governantes opressivos e indesejados:

vai um

sapo na

estrada

Procurando seu

desejo:

Encontrar uma menina

Que queira lhe dar

um

beijo

...

O

Príncipe Sapo rendeu ainda outras

revisões

como a versão pro

posta por Cora Rónai, em

Sapomoifose,

o

Príncipe que

Coaxava

1983).

A narrativa não tem cunho político, nem propõe uma alegoria ou fábu

la como nos livros examinados. Porém alinha-se ao grupo aqui esbo-

çado por

se

tratar de

um

texto que questiona convenções e lugares

comuns, isto

é

o conformismo, presente também

nas

atitudes das per

sonagens coadjuvantes nos relatos de Ruth Rocha.

O

herói não é o príncipe que virou sapo, e sim o contrário: trans

formado em ser humano, o animal nunca

se

sente adequado ao papel

esperado dele, embora cumpra com denodo

as

tarefas que lhe

são

atri

buídas. o r é m ~

alcança a felicidade e a tranqüilidade quando retor

na

à

condição de sapo, ao final da intriga.

Sapomoifose

busca contrapor-se

à

noção de que

as

pessoas devem

procurar realizar expectativas da sociedade por causa de alguma razão

superior, e não em decorrência da vontade de fazê-lo. Nem todos que

rem ser príncipes, milionários, profissionais bem-sucedidos, pessoas

belas

ou

famosas - podem desejar ser apenas seres comuns, simples,

mal vestidos ou feios, conforme aponta Cora Rónai, participando de

modo original em

um

ciclo da literatura infantil nacional em que

velhos mitos e a nova sociedade brasileira

se

encontravam para ofere

cer

à

criança

um

melhor conhecimento de si mesma e do mundo que

a rodeava.

otas

1 França, Eliardo. O

Rei de

Quase-tudo. 7. ed. Rio de Janeiro: Orientação Cultural, 1983.

2 Rocha, Ruth. O Reizinho

Mandão.

Ilustrações de Walter Ono. 4. ed. São Paulo: Pioneira,

1984. p. 5.

3 Rocha, Ruth. Sapo Vira Rei Vira Sapo ou

Volta

do Reizinho Mandão. Ilustrações de Walter

Ono. 2. ed. São Paulo: Salamandra, 2003. s. p.

a

literatura nfimtil

Brasileira

6

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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GENTES E ICHOS

apos podem ser animais de estimação, porém, contam entre as

escolhas menos prováveis de crianças e adultos. Pior ocorre aos porcos,

cujos hábitos e aparência não ajudam a transformá-lo em seres predi

letos. Se os sapos, porém, serviram para protagonizar fábulas políticas

numa época de controle

da

expressão literária, um porco ajudou a

mudar radicalmente a representação

da

criança na literatura infantil

brasileira. Referimo-nos a

um

dos heróis de Angélica

em

que Porto, o

herói, luta para se aceitar como tal e encontrar seu lugar no mundo.

Livro lançado

em

1975 pela então pouco conhecida Lygia Bojunga,

Angélica e a obra que o precedeu, Os

Colegas

de 1972, constituíram

outros dos marcos das novas tendências assumidas pela narrativa

nacional que visava, primeiramente, aos pequenos leitores.

Um marco anterior, porém, precisa ser lembrado, não apenas porque

antecedeu cronologicamente as publicações de Lygia Bojunga, mas tam-

t

bérn porque sintetizou os rumos doravante adotados pela vertente a ser

agora analisada: trata-se de Flicts de Ziraldo, de 1969.

Quando publicou

Flicts

Ziraldo era já um nome conhecido do

público brasileiro. Criador da

Turma do Pererê, originalmente

uma

revista de quadrinhos, nos anos 60, encantou a meninada com humor ,

variedade de personagens e inventividade das histórias, todas de sua

lavra. O ponto de partida era

uma

personagem fortemente enraizada

no folclore brasileiro, o Saci Pererê, figura introduzida na literatura

por Monteiro Lobato, que,

em

1917, fez uma pesquisa entre os leito

res paulistas para verificar o que se sabia sobre aquele ente fantástico.

Lobato ainda não escrevia para crianças, quando promoveu o inqué

rito sobre o saci e publicou-o na gráfica do jornal O Estado de S. Paulo.

Talvez já pensasse no assunto, mas somente em 1921 fez daquela per

sonagem folclórica um dos auxiliares de Pedrinho na busca da seqües

trada Narizinho,

em

O

Saci. Os

modernistas também valorizaram o

menino de uma perna só, capaz de proezas mágicas e dotado de uma

moral muito própria, nem sempre pautada pela decência e pelos bons

costumes. Cassiano Ricardo denomina artim

Pererê

o poema

em

que

o saci representa, como diz ele, as três raças de nossa formação inicial",

entendendo-o como "o Brasil-menino". Ziraldo estava, pois, bem

ancorado na trajetória modernista da cultura brasileira, quando trans

formou a personagem em herói de histórias em quadrinhos.

Por sua vez, ao eleger uma figura originária do folclore e da tradição

popular, conferiu teor nacionalista à sua criação, complementado pelas

outras criaturas pertencentes àTurma do Pererê: o jabuti Moacir, a onça

Galileu, o coelho Geraldinho, o tatu Pedro Vieira e o macaco Alan,

todos eles animais associados

à

natureza brasileira e

aos

valores prezados

6 omo e Por

que

L.er

69

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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I

I

I

pelos modernistas, como sugere, para citar um único exemplo, C/tm do

Jaboti título do livro de Mário de Andrade, um dos principais líderes do

movimento. Compõem o quadro de personagens outras personalidades

também fortemente vinculadas à tradição local, como o par de indiozi

nhos Tininim e Tuiuiú, além de Boneca de Piche.

Na década de 1960, a sociedade brasileira dividia-se: de um lado,

a influência dos meios de cultura de massa produzidos sobretudo

nos Estados Unidos, sendo os cartoons oriundos da Walt Disney

Co. um dos principais esteios da dominação cultural; de outro, a

aspiração

à

manifestação de uma arte autenticamente nacional, vol

tada

à

expressão dos problemas do país. Ziraldo opta por

um

cami

nho original e único: cria histórias em quadrinhos nos moldes da

indústria cultural mais avançada de então; confere-lhes, porém,

tom brasileiro, não apenas

por

força das personagens escolhidas,

mas também porque elas se movem num cenário reconhecido pelos

leitores, a Mata do Fundão, com características locais, sem deixar de

ser atual e divertido.

Flícts desvela outra faceta do artista, não o desenhista da

Turma

do

Pererê ou o chargista, que ocupava, entre

os

anos 60 e 70, as páginas

de revistas femininas como

Cláudia

ou

de jornais de contestação como

O

Pasquim

e sim o pintor. Flicts é primeiramente, um livro sobre as

cores, como destaca a abertura, em que o narrador refere-se à persona

lidade do Vermelho, do Amarelo e do Azul, designados com letras

maiúsculas, para afiançar que se trata de substantivos próprios, e não

de adjetivos. Mas Flicts é igualmente um texto sobre a exclusão, já que

o protagonista do título não encontra

um

lugar para ele: Não existe

no mundo nada que seja Flicts. 2

,t

A busca do herói nasce do desejo de preencher essa carência, que

significa descobrir que espaço lhe compete no universo. As várias ten

tativas são seguidas de negação, aumentando o isolamento da persona

gem, que, no texto, é representada tão-somente por um nome e uma

cor. Não há

seres

vivos em Flícts apenas cores e tons, combinando-se

e no entanto, recusando o protagonista, até

ele

sumir por completo.

O desaparecimento, porém, é relativo: o narrador denuncia, na pági

na final, que, sim, Flicts achou seu lugar, pois a Lua é flicts .

Ao concluir o relato, a cor sem dono transforma-se em adjetivo,

porque encontrou sítio apropriado. Deixa então de ser personagem,

para se converter em qualidade de

um

ser, alcançável se o vemos de

perto, como ocorre, segundo as palavras do narrador, aos astronautas.

É

o que soluciona o conflito proposto pela história, solução mágica

e

ao mesmo tempo, simbólica: o excluído acaba

se

revelando o conteú

do mais profundo e secreto das coisas, conteúdo vazio, porém, por

que compete ao leitor preenchê-lo com o sentido que lhe parecer

mais adequado.

Flícts tornou-se, assim, metáfora não apenas do excluído, mas do

reprimido que cada

um

deve aceitar, se quiser conviver melhor consi

go

mesmo. A riqueza das imagens tornou a narrativa paradigmática

das possibilidades de representar o mundo interior das criaturas de

modo compreensível, sem ser simplista. O sucesso de vendas, que se

verifica até hoje, evidencia como Ziraldo soube at ingir públicos de ida

des distintas e de vários períodos, no Brasil e no exterior.

A obra traz igualmente uma lição para quem desejar falar do mundo

interior de uma criança para um leitor de pouca idade: é preciso encon

trar formas de representação da intimidade, que

se

exteriorizem por

7

Como e Por que ler

a litemtum

Infantil

Brasileira

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meio de figuras de fácil tradução. Monteiro Lobato não

se

deparou

com essa questão, porque as personagens são seres resolvidos, não

vivem conflitos internos e agem sempre de modo decidido e direto. A

contribuição de Lygia Bojunga à história da literatura infantil brasilei

ra advém de ela ter alcançado apresentar, ao leitor, a criança por den

tro, levando adiante a proposta contida no Flicts de Ziraldo.

Lygia Bojunga estreou na literatura infantil em 1972 com Os

Cole-

gas obra que antecipa várias características do texto dessa autora que,

dez anos depois, viria a receber um prêmio literário consagrador, o

Hans Christian Andersen. Uma dessas características é a abertura, que

vai direto ao ponto, como no trecho reproduzido a seguir:

No

princípio eram

dois.

Tinham se

encontrado pela primeira vez

revirando a mesma lata de lixo.

- Esse osso que tem

aí é

meu

É

meu

-

Já disse que

é

meu

3

Vê-se aqui como o narrador não foge a

um

padrão da literatura

infantil, iniciando a narrativa por uma marca de tempo. Só que o "era

uma vez", que aponta para a atemporalidade do mito ou do conto de

fadas, converte-se em "no princípio", sinal de que uma história vai

começar no presente. Daí para a frente, o estilo só pode mudar radi

calmente: não há caracterização prévia das personagens, e ninguém

explica ao leitor que se trata de dois

cães.

o diálogo que encaminha

o destinatário para a compreensão do que se passa, exigindo dele, pois,

comprometimento com a leitura

e

ao mesmo tempo, maior liberda-

de de ação. O estilo implica agilidade por parte do narrador, rapidez

na comunicação e interação com o leitor, características que desenham

o relacionamento da escritora com a literatura infantil e com suas

expectativas perante o público.

Os dois cães da abertura da história não formam as figuras exclusi

vas da história. Aos poucos,

eles

encontram outros animais que, por

alguma razão, estão marginalizados ou sentem-se infelizes, vindo a agre

gar-se

ao

grupo de amigos, de que nasce

um

conjunto musical.

Eis

a

segunda característica de Os Colegas desenvolvida em outras narrativas

da escritora: as personagens, como Flicts, estão em busca de lugar na

sociedade, que resulta - e essa é a peculiaridade da temática de Lygia -

da descoberta da vocação artística. Os Colegas tais como seus precurso

res

de Bremen,

na

história dos irmãos Grimm, são cantores; Angélica,

do livro com esse título, faz teatro; Raquel, protagonista de

Bolsa

Amarela escreve; Maria, de Corda Bamba seguindo a carreira dos pais,

é equilibrista

num

circo. A arte

é

nesses livros, fator importante para a

liberação das personagens, escolha que

se

coaduna com o teor dos livros

onde as personagens aparecem, já que também eles provam-se inova

dores e inconformados com a tradição da literatura infantil.

Angélica que se segue a Os Colegas não narra apenas a história da

cegonha que

se

descobre artista, rompendo com os padrões predeter

minados esperáveis dela. Animal em princípio previsível e previamen

te destinado a preencher

um

papel no imaginário ocidental, a cegonha

é uma figura de quem não se esperam novidades ou questionamentos

sobre a função a desempenhar no conjunto do arranjo social. o que

Angélica rejeita, na busca da identidade. Contudo, ao lado dela, de

senvolve-se uma segunda personagem, o porco Porto, que aparece já

Como e Pot que Ler

a L.itet atul a Infantil

rasileira

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no primeiro capítulo e cuja história denota maior complexidade inte

rior: não se conforma com a aparência, a ponto de fugir de casa alte

rar o nome e tentar escapar a seu destino.

Sua trajetória corresponde à inversão desse projeto, pois ele tem de

trilhar o caminho de volta: ao contrário de Angélica, para o pequeno

porco, descobrir a identidade é aceitar-se como tal, e esse é um difícil

itinerário. Para tanto, a convivência com a cegonha rebelde é impor

tante, porque significa o encontro do amor e da autoconfiança. Ao

lado disso, Porto conhece seu pendor artístico, e a possibilidade de se

expressar por intermédio da criação dramática completa o processo de

liberação interior.

Bolsa

Amarela

de 1976, parece completar uma trilogia, porque

também narra o percurso de uma personagem na direção da segurança

pessoal e da criatividade. Contudo, processa-se uma alteração: Raquel

é uma menina, de modo que a criança passa a ser traduzida por uma

pessoa, e não mais por um animal, a simbolizar comportamentos ou

problemas íntimos. A mudança não tem apenas cunho externo, pois

representa outra forma de compreender o papel da literatura infantil e

ocorre

num

momento em que

os

escritores estão procurando alternati

vas eficazes para a consolidação da escrita para crianças.

Clarice Lispector, por exemplo, a quem se deve a projeção interna

cional do romance brasileiro nos anos 70, dedicou-se também à lite

ratura infantil e em

Vida

Íntima

de Laura

de 1974, vale-se de pro

cedimentos que a aproximam de Lygia Bojunga. A romancista lança

ra antes daquele livro, duas outras histórias - O Mistério do Coelho

Pensante em 1967, e Mulher que Matou

s Peixes

em 1968 - que,

conforme sugerem os respectivos títulos, tinham ligação com a litera-

 

tura policial, ainda quando são os dilemas da narradora adulta que

prevalecem, sobretudo no segundo texto.

Vida

Íntima de

Laura

e o livro subseqüente,

Quase de Verdade

de

.1978, portam características distintas, afinadas, por sua

vez

ao que

Lygia Bojunga vinha fazendo até então: as personagens principais são

animais domésticos - Laura é uma galinha, e Ulisses, de Quase

de

Ver-

dade um cachorro - que vivem dilemas interiores, conforme um pro

cesso de deslocamento de propriedades humanas para um bicho.

Edy Lima, que, nos anos 70 e 80, celebrizou as histórias protagoni

zadas por uma vaca voadora e a família com que o animal extraordi

nário vivia, deu continuidade ao pendor que a literatura infantil vinha

assumindo no período. É sob esse aspecto que se pode entender por

que

Bolsa

Amarela

altera os padrões vigentes e impõe outros modos

de trabalhar com livros para crianças.

Não

que crianças não pudessem ser personagens de livros para o

público infantil. Afinal, Monteiro Lobato tornou famosos

os

meninos

Pedrinho e Narizinho, ainda que eles disputem a primazia das narra

tivas com os bonecos, Emília e Visconde de Sabugosa. Mas Lobato

não introduz o leitor na intimidade daquelas figuras, a não ser para

entender suas idéias, como

faz

em

Memórias

de

Emília ou

em

Chave

do Tamanho.

Bolsa

Amarela comporta essa inovação: são as insegu

ranças e temores de Raquel que sobem para o primeiro plano, tradu

zidos por suas palavras

ou

pelos objetos que a menina, compulsiva

mente, carrega consigo, dentro da bolsa do título da obra.

É como se Lygia apontasse ser possível desvendar o universo inte

rior da criança, por esse ter um conteúdo próprio, com imagens e aspi

rações, impossíveis de serem simplesmente reduzidas a noções de psi-

  4

Como

e Por

que

le r

a

Literatura Infantil Brasileira

5

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cologia infantil ou de psicanálise. A via de criação inaugurada pela

escritora revelou-se fértil, vindo a ser enriquecida com a contribuição

de outras notáveis escritoras.

Ana Maria Machado, de História Meio ao Contrdrio lembrada antes,

é uma das responsáveis pelo aparecimento de personagens que se apro

ximam de Raquel por força de sua natureza e da temática desenvolvida

nos livros em que aparecem. Seguidamente essas personagens perten

cem ao sexo feminino, mas referir-nos-emos primeiro a

um

menino.

Trata-se de Lucas, o garoto que espiava para dentro , no livro

publicado em 1983. Embora acostumado a prestar a atenção em tudo,

ele prefere mesmo o mundo imaginário em que se isola, já que esse lhe

apresenta uma realidade muito melhor e superior: a rede onde se balan

ça transforma-se no barco que enfrenta

um

mar agitado ou perigosos

piratas; se fica junto à janela, pensa viajar em naves espaciais a distantes

galáxias, e assim sucessivamente. A fantasia suplanta a realidade, que

Lucas povoa com

um

amigo imaginário, Talento, com quem dialoga,

confessando o plano de converter-se em personagem de conto de fadas.

Mesmo imaginário, Talento não

se

submete

ao

programa bolado

por

Lucas e acaba conduzindo-o de volta à realidade, ajudando-o a

superar a solidão e a amadurecer. Por isso, quando o menino recebe

um

cãozinho, acaba dando-lhe o nome do amigo fantástico, como que

expressando o reconhecimento pela ajuda prestada.

O Menino que Espiava pra

Dentro

fala da criança urbana, que, em

bora apoiada pela família, carece de espaço para expandir a imagina

ção. Contudo, a narrativa não rejeita as soluções buscadas por Lucas,

já que correspondem a tentativas de ultrapassar etapas e aperfeiçoar-se.

Por isso, o amigo imaginário denomina-se Talento, sinalizando não

apenas a engenhosidade com que Lucas dá vazão a seu sonho e aos

modos de resolver problemas; indica também que o processo desen

volve-se de modo gradual, razão por que o protagonista decifra o

nome do companheiro de maneira diversa: para ele o amigo tá

lento ..

,4

isto é ele tem um ritmo demorado, sintoma do crescimen

to peculiar

à

personagem central.

Está em questão nesse livro, como em Bolsa

Amarela

de Lygia

Bojunga, a tradução do mundo interior de uma criança segundo um

procedimento narrativo que facilite a compreensão, pelo próprio lei

tor, daquilo que é representado. O escritor precisa mudar o registro,

sem cair em simplificações reducionistas, nem tender

à

transmissão

de lições, seja para a criança, seja para o adulto que igualmente conhe

cerá a história. O

Menino que Espiava

pra Dentro

lida com

esses

ingre

dientes e resolve-os muito bem: Lucas é ensimesmado e gosta de viver

aventuras fantásticas, e ninguém pode condená-lo por causa disso.

Quem lê a história, entende a trajetória vivida pela personagem, tra

jetória que ocorre apenas na intimidade do garoto; e identifica-se com

o herói, seja por experimentar comportamento similar, seja, quando

for o contrário, por conviver com alguém com

essas

características.

O Dia de

Ver

Meu Pai de Vivina de Assis Viana, trabalha com in

gredientes semelhantes, para abordar questões mais domésticas. Outra

vez a narrativa conta com

um

menino no papel de personagem prin

cipal, Fabiano, que narra em primeira pessoa, como faz Raquel em

Bolsa

Amarela. O tema da história talvez tenha perdido a contundên

cia com o passar do tempo: em 1977, quando apareceu a primeira edi

ção do texto, o divórcio ainda não constituía matéria do Código Civil

7 Como e Por

que Ler

iI

Literatura

Infant i l rasileira

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Brasileiro, e a separação dos casais era considerada um problema, com

conseqüências para a vida dos filhos e da família em geral.

Transcorridos 25 anos e consolidada a emenda constitucional que

aprovou a lei do divórcio, o assunto pode parecer ultrapassado

ou

ba

nal. Não, porém, o livro de Vivina de Assis Viana, porque, ao atribuir

o principal papel narrativo ao menino que percebe

os

sentimentos da

mãe, a situação da nova família do pai e a própria condição, a autora

faculta a imersão

no mundo

interior da personagem. O leitor acom

panha, pois, o amadurecimento da figura central, os percalços íntimos

e

sobretudo,

as

fragilidades. A exposição franca da alma do protago

nista faz com que a narrativa não perca vigor e atualidade, reforçando

o grupo de livros dedicados ao público infantil que não se preocupa

em

mascarar fatos da vida cotidiana, fornecendo ao leitor alternativas

de representação que coincidem com seu próprio mundo e atitudes, e

colaborando para a maturação dele.

Os livros relacionados até aqui podem sugerir que apenas persona

gens oriundos das camadas brancas e urbanas

podem

ocupar a posição

principal na narrativa. O urumim que Vírou Gigante de J oel Rufino

dos Santos, desmente essa impressão e representa

um

importante alar

gamento do tema.

O texto versa sobre a infância de T arumã, um índio que vive com

a tribo num cenário natural. Deste modo, a história de Joel Rufino

dos Santos rompe os limites da representação do mundo contíguo ao

do leitor, sugerindo elementos para

uma

ampliação das questões até

aqui descritas. A intriga, centralizada tão-somente no menino, desen

volve-se a partir do conflito decorrente das expectativas frustradas.

\

Almejando uma irmã,

Tarumã

é contrariado pelos pais; não desiste do

desejo, mas é obrigado a preenchê-lo por intermédio da fantasia:

o piá Tarumã queria que queria ter uma irmãzinha.

Mas não nascia. Ele pedia pro pai dele, pedia pra mãe. Até que desis

tiu.

Não

é bem que desistiu. Ele pegou a imaginar como seria a irmã

zinha que

ele

queria. Imaginou, imaginou, imaginou.

5

A imaginação ocupa, neste primeiro momento, o lugar do desejo

insatisfeito; porém, ao contrário do que ocorre ao Lucas que espiava

para dentro , T arumã se frustra, ao tentar converter a fantasia em rea

lidade. Não consegue convencer os amiguinhos de que a irmã existe,

pois eles descobrem a mentira do menino. Envergonhado, foge pelo

mundão afora, sem coragem de voltar (p. 20); chega junto ao mar

e sofre

uma

transformação:

Na beira-beira do mar, Tarumã deitou de costas. Esticou os pés, as

mãos, o pescoço. Virou

um

gigante.

Quando você chega no Rio de Janeiro, você não vê um gigante deita

do, não? Os pés são o Corcovado.

É

Tarumã. Bem em cima da cara

dele tem uma estrela. Mas não é estrela não, gente. O que Tarumã está

olhando é a irmãzinha dele.

6

Como

se

vê, neste segundo momento, a fantasia retoma, agora

reforçada: o menino se confunde

à

natureza onde residia, agiganta-se

e encontra a irmã com que sonhava. A metamorfose

em

gigante tem,

pois, sentido simbólico: a criança cresce e se engrandece, quando ruma

na direção da realização dos anseios interiores, independentemente da

18

Como

e

Por

lUe

Ler

a

Literaturél Infélntil

B r l ~ i i e i r a

19

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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colaboração dos demais - sejam outras crianças

ou

adultos compa

nheiros

ou

parentes.

Tal

como acontece a Lucas o socorro não pro

vém de fora mas da interioridade do menino que aprende a conviver

com os desejos mesmo quando insatisfeitos pelos outros.

Narrativas como Bolsa

Amarela

O

Menino que

Espiava

pra Den

tro ou

O

Curumim que Virou Gigante

preferem focar o

mundo

interior

da criança para dar vazão às fantasias compostas de vontades irrealiza

das reprimendas recebidas de fora e ânsia de liberação. Nenhuma delas

contraria o comportamento e

as

decisões das personagens mesmo

quando podem parecer escapistas conforme exemplifica a solução

encontrada

por

Tarumã. E todas julgam válido o

modo

como

os

pro

tagonistas encontram saídas - sejam

as

imaginárias como procedem

Lucas e o indiozinho sejam

as

artísticas experimentadas por Angélica

e Porto

-

porque resultam da int imidade dessas pessoas e não de

sugestões provindas de outros sejam

esses

grandes

ou

pequenos. Por

isso o final dos enredos coincide com um tipo de amadurecimento

simbolizado na obra de Joel Rufino dos Santos pela metamorfose do

garoto em gigante.

O trajeto que

se

desenha aqui começou com a referência a sapos e

a porcos passando depois a outros seres não humanos como Flicts

humanizados como a cegonha Angélica e os amigos do Pererê

ou

humanos propriamente ditos como os meninos e meninas citados an

tes. Há

os

domésticos e conhecidos como os cães de

Os

Colegas

ou

as galinhas de Vida Íntima de Laura mas

igualmente os selva

gens ou repulsivos. A protagonista de

Lúcia á Vou-Indo

uma peque

na

lesma

na

obra de Maria Heloísa Penteado pode pertencer

à

últi

ma espécie lembrada mas não

se

mostra menos interessante.

A lesma do título está ali porque o texto deseja focalizar determina

do comportamento

infantil

a lentidão própria

às

crianças com difi

culdades motoras. E pode fazê-lo de

modo

espontâneo porque ape

sar

da

desvantagem e da forma

do

animal o tema aparece segundo

uma

perspectiva favorável

à

protagonista apresentando a morosidade

como decorrência esperável de sua natureza física:

Lúcia Já-Vau-Indo não sabia andar depressa. De maneira nenhuma.

Andava devagar

falava

devagar chorava e ria devagarinho e pensava

mais devagar ainda. Muito natural pois

ela

era uma lesma?

A conversão do possível deficiente em herói sem considerar

suas

carac

terísticas como prejuíw comprova

ser

uma estratégia

eficaz

pois evita a dis-

criminação ou o descrédito da protagonista sem ter de contradizer

suas

qualidades específicas. Sob este aspecto Maria Heloísa Penteado aborda

um assunto complexo de modo simples usando a estratégia da fábula com

seu alto poder de sintetização para alcançar um resultado de alto

nível.

Dos animais

aos

humanos e retornando a

eles

a literatura infantil bra

sileira deu

um

grande passo ampliando

as

possibilidades de representa

ção do

mundo

interior da criança sem ter de renunciar à comunicabili

dade com o leitor

nem

ter de apelar ao socorro dos adultos

na

condição

de auxiliares mágicos

ou decifradores dos sentidos ocultos dos textos.

otas

Ricardo Cassiano. Martim Cererê. Rio de Janeiro: José Olympio 1972. p. 163.

2 Ziraldo. Flicts. 16. ed. São Paulo: Melhoramentos 1984. s. p.

3 Bojunga Lygia. Os

Colegas.

50. ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga 2004. p.

9.

80

Como e Por que t r

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4

Machado Ana Maria. O

Menino que

EspialJa

pra

Dentro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira

1983.

5 Santos Joel Rufino dos. O

urumim que

Virou Gigante. São Paulo: Ática 1980. p. 3 e 5

6

Id p

22-24.

7

Penteado Maria Heloísa.

Lúcia

d Vou-Indo. 4. ed. São Paulo: Ática 1980. s páginas não

trazem números.

.

G ROT S

QUE

MUD M

O MUNDO

Personagens

femininas no papel de figuras centrais não são novida

de na literatura infantil podendo-se até dizer que foi nos livros para

crianças que moças e mulheres alcançaram proeminência fama e po

pularidade. Uma das mais antigas é Chapeuzinho Vermelho que abre

os Contos id Mamãe

Gansa publicados em 1697 por Charles Perrault

na França. A mesma garota reaparece nos contos de fadas recolhidos

pelos irmãos Grimm que colocam ao lado de figuras originárias do

livro de Perrault - a Bela Adormecida do Bosque e Cinderela sendo

provavelmente as mais conhecidas - outras meninas que

se

tornaram

famosas como a Maria irmã de João e vencedora da Bruxa

que

almejava devorar a dupla.

No

Brasil foi Monteiro Lobato - de novo ele - quem conferiu pri

meiro plano a personagens femininas. Lúcia a Menina do Narizinho

82 Como POi que lei

a

Uteratura

Infantil

Brasileira

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Arrebitado, nomeou o livro de estréia do escritor paulista, em 1921;

mas foi Emília quem tomou conta da saga do sítio do Picapau Ama

relo, boneca que, de certo modo, virou gente, liderou aventuras por

todas

as

partes do

mundo

(veja-se Geografia de Dona

Benta

de 1937)

e varou o tempo, deslocando-se para a Antigüidade clássica com a

maior desfaçatez (vejam-se, neste caso, O Minotauro de 1939, e Os

Doze Trabalhos

de

Hércules de 1944).

Herdeira de Emília talvez tenha sido Clara Luz, a fada que tinha

idéias e comanda o livro com esse titulo. Outra figura feminina impor

tante, entre as que apareceram nas obras mencionadas em capítulos

anteriores, é a garota que desafia o reizinho mandão, no texto de Ruth

Rocha.

Mulheres fazendo história parecem não ser novidade, o que coloca

ria sob suspeita o tema doravante proposto. Há porém, uma diferen

ça nas tramas destacadas a seguir: as personagens femininas relaciona

das antes têm algumas particularidades que as tornam mágicas, como,

por exemplo, a Chapeuzinho que dialoga com o lobo, a Cinderela que

conta com a ajuda de uma Fada Madrinha, a Bela, que, embora tenha

permanecido dormindo por cem anos, não envelhece. A magia é igual

mente compartilhada por Clara Luz, fada de nascença; e o próprio

Lobato considerou Emília

uma

fada moderna , titulo de

uma

peque

na narrativa incluída no volume das

Histórias Diversas.

As jovens que, daqui para a frente, passam para o primeiro plano, não

têm qualquer atributo mágico, não dispõem de auxiliares capazes de

ações

sobrenaturais, e vivem a mesma realidade cotidiana e problemáti

ca experimentada pelo leitor. Seu mundo é digamos, normal , igual ao

nosso, em que

os

bichos não falanl, mortos não ressuscitam, príncipes

não aparecem subitamente para mudar o curso da existência.

No

entan

to, elas são insubmissas e ensinam amigos ou companheiros a atuar de

maneira diferente, encontrando, assim, alternativas de vida ou compor

tamento que podem torná-los mais felizes ou, pelo menos, mais cons

cientes do que acontece em volta de

si.

aul

da

Ferrugem zul de Ana Maria Machado, pode ser o primei

ro exemplo do grupo de obras a referir. Obra publicada em 1979, é

contemporânea de História Meio

ao

Contrdrio já mencionada; com

esta narrativa, compartilha um

fato de natureza sobrenatural, a saber,

o aparecimento das manchas azuis na pele de Raul, o protagonista do

entedo.

As

manchas têm, contudo, caráter alegórico, porque represen

tam a falta de ação do menino, quando se depara com uma injustiça

ou uma

atitude que não considera correta. Raul, da sua parte, não

reage, aceitando, de forma conformista e como

se

estivesse enferruja

do, o que vê a seu redor, embora fique incomodado com o que acon

tece consigo.

A primeira tentativa corresponde à busca de uma solução mágica

para

os

problemas que testemunha, decisão, de certo modo, coerente

com o universo da literatura infantil precedente ao lançamento do

livro. A conversa com o Preto Velho, porém, não o ajuda, ao contrá

rio do que se passa quando

se

depara com Estela, a menina que enfren

ta

os

garotos mais velhos na defesa de seus principios. A conversa com

a personagem feminina modifica o comportamento de Raul, que, em

situação similar, também trata de defender os mais fracos, ainda que

arriscando a pele. O resultado é o desaparecimento das manchas, re

sultado . que representa a recuperação da capacidade de protesto e

revolta, até então reprimida pelo herói.

84

Como e Por flue ter

a

literatura Infanti l rasileira

85

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Em Raul da

Fenugem

Azu o lugar de protagonista é preenchido

pelo menino indicado no título; mas Estela prefigura o tipo de perso

nagem que predominará em vários enredos da literatura infantil: ainda

que pequena e oriunda das classes populares, ela não se deixa dobrar,

manifestando indignação e autonomia quando ameaçada pela força

ou pelo poder. Torna-se paradigmática não apenas de uma atitude,

mas também de um período, pois, à época, o país tentava liberar-se da

ditadura imposta pelo golpe militar de 1964.

As

pessoas, após 15 anos

de repressão, oscilavam entre conformar-se ou declarar rebeldia; Raul

representa a passividade inicial; Estela, da sua parte, a importância de

soltar a voz e expressar insubmissão. A passagem de Raul, de uma

situação para outra, indica

um

caminho, a ser perseguido não apenas

pelos leitores de literatura infantil, mas também pela sociedade nacio

nal. Por esta razão, Estela simboliza não apenas uma criança que não

teme o enfrentamento dos mais fortes, mas o fato de que, mesmo apa

rentemente fraco - afinal, ela é

uma

menina pobre

-

o ser humano

tem condições de mudar o mundo em volta, desenferrujando os

músculos e encarando a poderosa engrenagem que o oprime.

isa ia isa

Bel

de 1982, apresenta outro desenvolvimento para

as

questões relacionadas a personagens femininas. A narrativa abre com a

descoberta, pela narradora, Bel de uma foto da bisavó, Beatriz, que

passa a carregar consigo. Menina independente e criativa, Bel relata

as

andanças pela escola, amizades e interesses pessoais. Após o encontro

do retrato e a incorporação desse objeto a seu cotidiano, a garota conta

igualmente

as

conversas com a Bisa Bia, interlocutora que passa a inter

vir em seu comportamento, chamando a atenção da narradora, que,

segundo ela deveria adotar atitudes mais compatíveis com a condição

feminina.

Do

diálogo entre a bisavó e a bisneta, nasce o cotejo entre

dois tempos e duas visões da mulher, a antiga e convencional, represen

tada por Bia, e a moderna e descontraída, encarnada por Bel.

A originalidade

da

obra nasce da introdução de uma terceira

perspectiva, a da Neta Beta, de quem Bel é bisavó. A voz do futu

ro é interpolada à narrativa, para dar conta das transformações que

afetam as concepções da mulher. Assim, nenhum ponto de vista -

seja o do passado, o do presente

ou

o do futuro - é definitivo, con

clusão a que chega Bel, após a experiência tridimensional do

tempo.

isa ia isa

el é o que se poderia chamar um livro feminista, não

apenas porque traduz o processo de independência da mulher ao lon

go da história, marchando do convencionalismo e obediência de Bia à

completa auronomia e autoconfiança de Beta. Mas também porque

elege um ângulo feminino para traduzir

essas

questões, revelando

como o processo de liberação nasce de dentro para fora, não por ensi

namento, mas enquanto resultado das experiências vividas. o que se

passa com Bel, a menina que se transforma internamente, sem deixar

de ser ela mesma, ou, em outras palavras, o que ela poderia ser, consi

derando as coordenadas de seu tempo.

Nos dois livros tratados até agora, a narração incorpora elementos

de certo modo sobrenaturais:

as

manchas de Raul podem ser alegóri

cas porque não resultam de

um

problema dermatológico; e Bel tem

acesso

às

vozes do passado e do futuro por efeito de propriedades

extraordinárias, não em razão da invenção de um sistema novo de

transmissão de ondas magnéticas. Por outro lado,

os

acontecimentos

extraordinários são vividos internamente, e não presenciados por tes-

  6

Como e Por que

ler

Literatura Infantil rasileira

7

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 44/93

tem unhas, de mod o que não contaminam o contexto externo onde

vivem

as

personagens.

Assim, Raul da Ferrugem Azule Bisa

Bia

Bisa Bel ficam

na

frontei

ra entre o gênero realista e a literatura fantástica, afastando-se, de

uma

parte, das obras citadas no começo deste livro, plenamente integradas

ao

mundo

da magia, mesmo quando não

se

confundem com o conto

de fadas, como é o caso dos livros de Montei ro Lobato. De outra

parte, porém, não coincidem com o verismo, que evita qualquer com

promisso com elementos de existência puramente imaginária. Nas

obras examinadas a seguir,

as

meninas que

as

protagonizam aparecem

em

obras de teor realista, o que confere novas características ao tema

proposto e oferece outros desafios ao escritor.

A primeira dessas meninas aparece

em

obra de Fernanda Lopes de

Almeida, a autora que introduziu aos leitores brasileiros A Fada

que Ti-

nhaldéias.

Em

Curiosidade Premiada

de 1978, o inconformismo pe

rante

as

convenções e

as

regras

fixas

é manifestado

por

Glorinha, a me

nina que não aceita respostas definitivas, indagando sempre"por quê?",

após cada afirmação das pessoas

ou

depois de cada ação que presencia.

Graças

ao

comportamento permanentemente questionado

r

a menina

provoca modificações nas atitudes dos adultos, que, como

os

conheci

dos de Raul o da "ferrugem azul", estavam imobilizados pela apatia e

a resignação.

A personagem principal de

na

Garganta

(1980), de Mirna

Pinsk:y participa desse grupo de garotas que reage a situações e proble

mas que prejudicam a existência dos indivíduos. Mas a au tora introduz

um

dado ainda ausente: Tânia, a figura central da narrativa, é negra,

representando, portanto, uma etnia que, até então, não tinha tido

oportunidade de protagonizar uma narrativa para crianças.

Não

que

pretos não tivessem aparecido em livros destinados ao público infantil;

porém,

em

posição preferentemente secundária, como

Tia

Nastácia, no

sítio do Picapau Amarelo,

ou

Estela, em Raul da

Ferrugem

Azul

Tânia representa, pois, importante mudança, mas não apenas por

causa da origem étnica, e sim por experimentar problemas com

os

quais qualquer leitor

se

identificaria. Preocupada com a aparência,

como ocorre a todo adolescente,

Tânia

sente-se infeliz; a família não

consegue transmitir-lhe a sensação de segurança de que careceria;

por

isso

precisa encontrar dentro de

si os

elementos necessários

ao

forta

lecimento do ego, que lhe facultam pronunciar a frase mais importan

te do livro, colocada ao final:

E pensou: puxa, como eu sou bonita

E disse alto:

_

Eu sou bonita Como eu sou bonita 1

Elegendo a representação de cunho realista, Eliane Ganem,

em

Coi-

sas

de Menino (1980), centraliza o enredo da narrativa na ação de Cla

rice, que, como

as

garotas citadas antes, não aceita

as

regras domésti

cas. O conflito familiar é apresentado de modo mais contundente

nesse livro, que documenta brigas entre irmãos e conflitos entre pais e

filhos. O cotidiano da classe média compõe o pano de fundo da intri

ga facultando

um

reconhecimento mais fácil do assunto de que

se

fala

e que, provavelmente, o leitor - criança ou adulto - experimenta.

Esse horizonte burguês é contraposto, na obra, a outro contexto fami

liar, o do grupo favelado a que pertence Nezinho, que

se

converte no

 

Como Por

que leI

a

Literatura

Infantil Brasileira

9

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pivete Olho de Boi e que Clarice conhece primeiro por acaso depois

porque deseja ajudar o menino. A atuação da garota tem pois um esco

po mais amplo porque ela deseja intervir não apenas nos comportamen

tos socialmente aceitos mas na organização

da

sociedade. Acaba fracas

sando porque agora não se trata apenas de mudar internamente como

ocorre a Tânia criação de Mima Pinsky; é preciso interferir no sistema

social econômico e ideológico que rege a vida nacional.

Fosse Clarice bem-sucedida o livro falsearia a realidade brasileira e

de certo modo ofenderia o bom senso do leitor. A opção pela escrita

realista impõe limites à criação literária; mas ao mesmo tempo pode

ampliar as dimensões do mundo oferecido ao conhecimento do desti

natário. O fato de que aumentou o número de Olhos de Boi na socie

dade comprova que Eliane

Ganem

estava

no

caminho certo:

as

Cla

rices se revoltam e tentam mudar; mas as fronteiras a ultrapassar são

mais rígidas que

as

convenções restando a conscientização do proble

ma bem como a denúncia e legando para o conjunto da sociedade o

convite

à

busca de soluções.

Da Clara Luz de Fernanda Lopes de Almeida a Clarice de Eliane

Ganem a literatura infantil brasileira viveu uma década de mudanças

lideradas

por

representantes do sexo feminino que reproduziam

no

âmbito

da

narrativa destinada a crianças e adolescentes o que se pas

sava na sociedade e na cultura.

Em

ambos os casos as mulheres reivin

dicavam reconhecimento e retribuíam com ações transformadoras. A

literatura infantil não apenas mostrou-se coerente com o que ocorria;

ela assumiu

em

certo sentido papel de vanguarda pois foi naquele

gênero de livros que apareceu o maior número de escritoras e de per

sonagens femininas no lugar de protagonistas.

Poder-se-ia dizer que

foi

uma revolução em dobro: a literatura se

modificou e isso ocorreu por força da liderança de meninas e moças.

Fadadas pela tradição a traduzir fragilidade e dependência

elas

come

çaram por romper esse padrão; e acabaram por introduzir outro para

digma na condição de porta-vozes da liberdade e da rebeldia mesmo

quando conscientes de que os limites acabariam por dobrar e vencer

algumas das iniciativas tal como acontece a Clarice

em

Coisas de

Menino O insucesso parcial não invalidou a luta determinando a

consolidação do tema e do tipo de personagem feminino de que fala

aqui até os dias de hoje.

Notas

1

Pinsky Mima.

ó

na Garganta

2.

ed. São Paulo: Brasiliense 1980. p. 66.

a

Literatura Infantil

Brasileira

91

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Dos

CONTOS TR DICION IS

O FOLCLORE

o

primeiros livros que, quando foram editados, destinavam-se

principalmente às crianças continham histórias recolhidas da tradição

oral e redigidas agora com o olho nas potencialidades do novo públi

co. Originalmente, narrativas como Chapeuzinho Vermelho

ou

João e Maria eram ouvidas por adultos, que as herdaram dos ante

passados, também maiores de idade. Desse tempo,

os

textos guardam

vários resíduos, tais como:

- a ambiência rural das histórias, pois quase todas as personagens

vivem

ou

pertencem

ao

campo;

- a alusão a animais, como o lobo, por exemplo, que deviam cau

sar medo nas populações que moravam em regiões isoladas, como

ocorre à mãe e à avó de Chapeuzinho;

- a ameaça da fome e da morte, como experimentam as duas crian

ças abandonadas pelos pais na floresta.

Dois outros componentes pertencem a esses relatos, conhecidos por

contos de fadas

Um

deles é a violência, pois, além dos perigos, que

nem sempre

se

concretizam (Chapeuzinho sobrevive ao lobo, e João e

Maria escapam da bruxa), presenciamos acontecimentos decorrentes

do uso da força, movidos seja por maldade, seja por necessidade de

sobrevivência. Envenenamentos, devoração de

seres

humanos por ani

mais, automutilação, dilaceramento de órgãos - eis algumas das ações

que encontramos em contos como Branca de Neve , Chapeuzinho

Vermelho , Cinderela e A Bela Adormecida , provavelmente as his

tórias mais conhecidas do gênero.

O outro fator advém da presença da magia, resultante da ação de

seres dotados de propriedades sobrenaturais, como fadas, bruxas, feiti

ceiros.

Nem

sempre o componente mágico coincide com uma perso

nagem; pode provir, por exemplo, do fato de animais falarem, como

em Chapeuzinho Vermelho , das metamorfoses experimentadas por

seres vivos, como em

O

Príncipe Sapo ,

ou

do ambiente fantástico

por onde circulam heróis e antagonistas, como o palácio encantado de

A Bela e a Fera .

Ambos os componentes, decisivos para a constituição do conto de

fadas, já foram objeto de contestação: a violência por se evidenciar ina

dequada para

os

leitores, supostamente ainda pouco habituados às

rudezas da existência humana; a magia, por parecer uma alternativa

compensatória

à

fragilidade e inferioridade dos heróis. Incapazes de

enfrentar perigos e desavenças, eles dispõem da alternativa de apelar

9

Como e

Por

que

ler

a Literatura Infantil Brasileira

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para a ajuda de auxiliares dotados de habilidades mágicas, safando-se,

assim, das piores encrencas.

Em nossos dias, esse posicionamento não é mais aceito, porque, se

é certo que a violência efetivamente se verifica nos contos, sabe-se que,

por outro lado, ela não atinge a personagem, que, de algum modo,

não apenas escapa do perigo, como acaba lucrando algo com isso: João

e Maria descobrem um tesouro, a Branca de Neve encontra o prínci

pe e assim por diante. Por sua

vez

a magia não produz dependência,

como se poderia pensar. Bruno Bettelheim, em Psicandlise do Conto

de

Fadas procurou deixar claro como o auxiliar mágico nunca perde

a função de coadjuvante, importando mesmo a transformação por que

passa o herói

na

direção da maturidade. Assim,

os

contos de fadas aca

bam

por

reforçar a auto-imagem do leitor, colaborando para seu cres

cimento interior e autonomia, o que justifica não apenas a populari

dade que detêm até nossos dias, como também a permanência das

figuras principais, convertidas, de certo modo, em simbolos de com

portamentos e idéias, ultrapassando, portanto, o âmbito primeiro den

tro do qual foram criados.

Não por outra razão a história da literatura infantil brasileira recor

reu

à

temática, figuras e processos do conto de fadas desde seus come

ços. Figueiredo Pimentel valeu-se de um acervo conhecido para pro

duzir compilações como Contos

da Carochinha

e

Histórias

da vozi-

nha

que se situam nas bases

da

trajetória

da

produção nacional volta

da à criança. Contudo, na seqüência,

os

escritores começaram a pes

quisar caminhos menos dependentes da tradição européia, como que

nacionalizando a vertente. Afinal, se esse veio se consolidou

na

Europa

graças ao olhar i r i g i ~ à matéria folclórica, os autores, com razão,

resolveram encaminhar a atenção para mesmo elemento, só que pri

vilegiando o que estava enraizado

em

nossa própria história.

Figueiredo Pimentel, ainda no século XIX, transpôs para coletâneas

aJgumas dessas narrativas. Em 1885, Silvio Romero, interessado em

valorizar o folclore nacional, publicara Contos Populares do Brasil anto

logia que reunia as várias expressões da tradição oral do pais.

Não

cons

tituia, por uma grande dificuldade, apropriar-se desse material e vertê

lo

para um tipo de linguagem adequado

aos

pequenos leitores.

Não

é contudo, Pimentel quem mais se apóia na pesquisa de Ro

mero, e sim Monteiro Lobato, cujas Histórias

de Tia

Nastdcia em

1937, estão profundamente calcadas nos

Contos Populares

do

Brasil

Curiosamente, porém, Lobato não é grande admirador de nosso fol

clore, posição que transfere aos habitantes do sitio do Picapau Ama

relo. Liderados por Emilia, todos eles declaram insatisfação perante a

ingenuidade

da

expressão popular, que consideram atrasada e carente

de imaginação.

Na época

em

que publicou o livro, provavelmente Lobato tinha

razão. O Brasil vivia um periodo de euforia nacionalista, estimulado

pelo Estado Novo, regime ditatorial imposto por Getúlio Vargas. O

governo incitava a propaganda de elementos nacionalistas do passado,

incluindo

ai

as criações populares, consideradas expressivas da brasili

dade. O procedimento, emanado do Estado, aproveitava

as

conquis

tas do Modernismo, que levara os artistas brasileiros a procurar ele

mentos em nossa cultura não (ou menos) contaminados pela influên

cia européia, para torcê-las a seu favor. Assim, o governo tornou-se um

importante fomentador da cultura, desde que ela se mantivesse sob

controle e ainda por cima, tomasse o partido de suas idéias.

94

Como e Por que le r

I literatUi il

Infantil Ilrasíleit <I 95

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Nem todas as obras de literatura infantil, que se valiam do folclore

ou de histórias originárias da tradição popular, caminhavam na dire

ção desejada pelo poder dominante. Porém, elas reproduziam uma

visão conservadora da cultura popular, mesmo quando os autores

tinham participado direta ou indiretamente do movimento modernis

ta, como se verifica em coletâneas como as deJosé Lins do Rego,

His-

tórias

da

Velha Totônia (1936), ou de Luís Jardim, O BoiArud 1940).

Lobato manifestou contrariedade em relação às orientações dadas à

representação do povo , criticando a leniência e benignidade com

que sua criatividade e personagens eram entendidos. Talvez Histórias

da

Tia

Nastdcia, encarado na perspectiva da correção política , im

portante

aos

olhos de hoje, pareça preconceituoso e cruel; mas, andan

do

na

contramão das idéias vigentes no final da conturbada década de

1930, talvez Lobato tenha-se arriscado mais e desafiado com mais

vigor o poder do Estado que seus confrades, ainda quando as persona

gens populares encontráveis nas obras

desses

pareçam ter sido objeto

de maior simpatia e consideração.

As

décadas subseqüentes não trouxeram contribuições dignas de

menção, exceto, é bom lembrar, as Histórias de

Alexandre,

já comen

tadas, de autoria de Graciliano Ramos.

Um

nome, porém, não pode

ser esquecido, Orígenes Lessa; contudo, as narrativas protagonizadas

pelo moleque

jabuti

(animal que veio a constituir um dos principais

ícones da modernidade cultural brasileira, como já

se

observou),

datam dos anos 70, aparecendo em contexto diferente daquele experi

mentado p or Monteiro Lobato, por exemplo.

O fato é que também no que diz respeito à tendência de que

se

fala

aqui, foi preciso aguardar a chegada da geração de 70. Grande parte

dos escritores orientou-se para a temática urbana, que toma feições

bem diferenciadas, seja por valorizar o mundo interior da criança, seja

por atribuir

opapel de protagonista a uma criança decidida, seja por

discutir problemas contemporâneos da sociedade nacional. Contudo,

o folclore se apresentou alternativa atraente, e alguns escritores soube

ram extrair o melhor das histórias originalmente transmitidas por in

termédio da oralidade, fertilizando o veio até então pouco explorado

na literatura infantil.

Cabe destacar primeiramente Joel Rufino dos Santos, que, com

História

de

Trancoso,

abriu, em 1983, a Coleção Curupira, cujo obje

tivo

foi

reunir histórias do fabulário popular brasileiro. Gonçalo Fer

nandes Trancoso (1515-1596) foi

um

escritor português que juntou,

em coleção famosa, narrativas lusitanas e ibéricas que circulavam oral

mente na Idade Média. A denominação, história de trancoso , supe

rou, porém, o autor da antologia, passando a designar contos de ima

ginação e exagero, em que o extraordinário sobrepuja o verídico ou o

verossímil; assim, com o passar do tempo, o substantivo próprio tor

nou-se substantivo comum.

Ao retomar o acervo de narrativas, J oel Rufino dos Santos não

se

contentou com a denominação em uso e anexou a ela um significado

a mais. Conforme define na última página do livro, T rancoso corres

ponde a

um

herói popular que

se

vinga dos ricos e poderosos através

da astúcia'? como que fazendo em parte o caminho de volta, pois o

substantivo comum torna-se, outra vez nome próprio.

A obra segue estrutura narrativa linear, contando como um fazen

deiro e um padre, depois de desdenharem a companhia e a ajuda do

matuto Trancoso, acabam enganados por ele que se adona do único

96

Como e Por que ler

pedaço de comida com que o grupo de andarilhos é contemplado.

a literatura Infantil Brasileira

97

livros, como

Festa no Céu

(1980), além

das

outras narrativas que com

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Reconhecem-se,

no

texto, elementos característicos do relato popular:

o herói é pobre e feio:

O

roceiro tinha

um

só dente na frente. E cara

de bobo'? conforme descreve o narrador, definição que não apenas

aponta, de imediato, para

um

tipo de representação das

classes

mais

humildes da população brasileira, como t ambé m para sua inferiorida

de e submissão. Por sua vez,

os

adversários, que hostilizam o roceiro,

são grandes e fortes, simbolizando

os

grupos elevados,

no

plano social

o

fazendeiro) e político

o

padre). Contudo, aquele, enganando-os de

mod o sutil e inteligente, vence

os

adversários, embora

esses se

julguem

superiores ao matuto. Assim, o menor acaba suplantando o aparente

ment e maior, valendo-se da astúcia e provando que, apesar da exterio

ridade à primeira vista rebaixante, está acima dos outros.

Como

é próprio ao relato de extração popular, História

de Trancoso

sugere que não

se

subestimem

os

pequenos, sejam pobres, homens do

campo

ou

crianças, figura que o roceiro igualmente metaforiza. Desse

modo, a narrativa, de

um

lado,

mantém

as características do gênero de

onde provêm, exibindo

as

oposições entre o pobre e o rico, e entre o

opressor e o oprimido, oposições que

se

resolvem quando o menor

derrota o maior; sob

esse

aspecto, ela

se

mostra fiel às origens.

De

ou

tro lado, ela transita com sucesso para a literatura infantil, porque pro

põe, como figura central, uma personagem fragilizada

por

sua condi

ção social, mas que, graças

às

qualidades intelectuais, pode ultrapassar

os

problemas, encontrando soluções adequadas para

eles.

História de

Trancoso

não é o único texto em que Joel Rufino dos

Santos transpôs a tradição popular brasileira para a literatura infantil.

Histórias bastante conhecidas foram igualmente assunto de

um dos

põem o ciclo da Coleção Curupira. O mérito está

em

não ceder ao

apelo de repetir experiências convencionais, mas corriqueiras,

nas

quais

um

narrador que representa o povo e mantém-se subalterno expõe

os

relatos a uma platéia constituída de representantes - crianças

ou

adul

tos - originários dos grupos dominantes.

Mesmo Mon teiro Lobato recorreu a

esse

expediente narrativo, que

assimila a inferioridade social do narrador à ingenuidade e simplicida

de das histórias. Joel Rufino inverte o modo de contar as histórias,

alcançando efeitos originais, de

um

lado, por não minimizar

as

perso

nagens e

os

temas das histórias, de outro, por modernizar a linguagem

e a maneira de transmiti-las.

Não

foi esse o único autor a resgatar a validade e riqueza do folclo

re

brasileiro. Hatoldo Bruno,

em

1979, publicou

O

Misterioso Rapto

de Flor-do-Sereno

história, narrada nos moldes da literatura de cordel

nordestina, do resgate da amada de

Grande, o herói que salva a

moça das garras do demônio.

Da

sua parte, Ricardo Azevedo, ao igual

mente

se

abeberar dos valores populares, propôs outro modo de lidar

com ele,

em Meu

Livro

de Folclore

(1997).

O termo folclore, de que

se

vem falando até aqui, pode ser enten

dido, de uma parte, como Conjunto de costumes, lendas, provérbios,

manifestações artísticas em geral, preservado, através da tradição oral,

por

um

povo , quanto como a ciência

das

tradições, dos usos e da arte

popular de

um

país

ou

região , conforme define o dicionário.

 

Presume,

por uma parte,

um

patrimônio popular já existente, veiculado sobretu

do pela forma oral, composto principalmente

por

contos, como se

enfatizou até agora, mas também

por

frases, canções, danças, atitudes;

  omoe Por que

ler

de outra parte, supõe a descrição desse material, responsabilidade assu

porém, que manifestações populares associadas a outras regiões geográ

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mida

por uma

ciência e pelos estudiosos que se dedicam a ela, como

fizeram, no Brasil, por exemplo, Mário de Andrade ou Luís da

Câmara Cascudo, modernistas que nunca deixaram de examinar com

carinho nossa cultura e tradições.

Ricardo Azevedo, ao propor o Meu Livro

de

Folclore coloca-se entre

essas duas opções: incorpora, na obra, a produção folclórica em todas

as suas perspectivas, a saber, contos, adivinhas, trovas, trava-línguas,

parlendas, ditados;

por

outro lado, sugere que o material colocado

no

texto corresponde à sua versão do folclore, vale dizer, a seu modo de

encarar a tradição popular. O resultado fica, por conseqüência, à meia

distância entre reprodução e criação, liberando o escritor, de um lado,

da exigência de novidade

ele

pode reproduzir frases feitas, sem ser

condenado por isso), de outro, do quesito observância rigorosa ao

original , condição imposta habitualmente aos pesquisadores

da

cul

tura do povo.

Meu

Livro

de Folclorepode ser valorizado por suas facetas: para o lei

tor que desejar buscar nele material folclórico autêntico e em estado

praticamente puro , encontra as frases feitas, os ditados populares, as

histórias várias

vezes

narradas por escritores de todo tipo, como a do

macaco e a velha, fábula clássica do imaginário nacional. Para quem

aspirar a

um

texto criativo, bem escrito e divertido, dirigir-se-á à adi

vinhas, aos contos variados, ao estilo empregado pelo narrador.

Na busca da tradução, para a literatura, da expressividade popular e

anônima, reproduzindo, de certo modo, o processo ocorrido na Eu

ropa, os livros para crianças enfatizaram contos, provérbios, adivinhas,

canções que jamais poderiam negar as raízes nacionais. Não quer dizer,

ficas oU outras etnias deixassem de ter lugar na literatura infantil pro

duzida em nosso país. Exemplar é o trabalho de Malba T ahan, pseudô

nimo do brasileiríssimo Júlio César de Mello e Souza (1895-1974),

res

ponsável por compilações de narrativas originárias da tradição oriental,

algumas extraídas dos contos das Mil e uma Noites outras não, como é

a provavelmente mais célebre obra sua, O Homem

que

Calculava de

1938. Seus livros ainda freqüentam, com sucesso, os catálogos das edi

toras nacionais, sobressaindo-se

Maktub

e

Lendas

do Céu

e

da Terra

publicados pela primeira

vez

em 1935.

Se, ao começar, este capítulo recapitulou o papel dos contos de

fadas na formação da literatura infantil européia, é preciso, ao termi

ná-lo, lembrar que aquele gênero passou

por

um

processo de renova

ção nas mãos de alguns escritores brasileiros. Chico Buarque de

Holanda fez sua

Chapeuzinho

Amarelo de 1979, desafiar o estereóti

po da menina medrosa, ao dessacralizar o lobo mau. Marina Cola

santi, com Uma Idéia Toda zul de 1979, e

Doze

Reis e a Moça

no

Labirinto do Vento de 1982, revolucionou a concepção sobre o conto

de fadas, sem deixar de ser fiel

às

características do gênero.

Antes de examinar uma das narrativas de Uma

Idéia

Toda

zul

cabe

diferenciar os livros de Marina Colasanti dos que foram mencionados

antes, escritos por Fernanda Lopes de Almeida, Ana Maria Machado,

Ruth Rocha e Cora Rónai. Estes foram elaborados a partir do mode

lo tradicional do conto de fadas, com o intui to de, valendo-se de uma

estrutura e personagens conhecidos, desmitificar modelos convencio

nais de comportamento e discutir temas políticos candentes e atuais,

num

período em que estavam em conflito a repressão oriunda do

sis-

1

Como e Por que Ler

tema governamental e a aspiração à liberdade e liberação por parte dos

a Literatura Infantil

IIrasileira

1 1

quer compensar a solidão da menina com presentes e riquezas. A garo

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membros da sociedade brasileira, representada, nos livros destinados à

infância,

por

crianças, principalmente. Marina Colasanti lida com o

conto de fadas em outra direção: adota as personagens tradicionais,

como reis, princesas, fadas, animais dotados de propriedades mágicas,

para extrair delas situações novas, que traduzam o mundo interior e os

desejos profundos dos seres humanos.

A Primeira Só , de Uma Idéia Toda

Azul

pode ilustrar o procedi

mento peculiar

à

escritora. O conto narra a história de uma princesa,

filha única de

um

rei que tudo faz para satisfazer suas vontades. De

sejosa de

uma

amiga, a menina ganha do pai

um

espelho onde encon

tra a companhia almejada. A imagem duplica a princesa, que, assim,

não

se

queixa mais da solidão. A alegria volta

à

casa real, até que o

espelho quebra; à beira de nova crise nervosa, a menina reencontra a

amiga multiplicada nos inúmeros cacos em que o vidro se estilhaçara.

De

novo, a princesa se satisfaz, mas

por

pouco tempo: descobrindo

que pode quebrar os pedaços em fragmentos menores, aumentando,

de cada vez o número de companheiras iguais, ela

se

põe frenetica

mente a esmigalhar

os

cacos, até nada mais restar, e ela deparar-se ou

tra vez com a solidão.

Rei e princesa pertencem ao universo do conto de fadas, embora,

nessa história, não apareçam figuras dotadas de propriedades extraor

dinárias,

nem

eventos maravilhosos, o que ocorre em Além do Basti

dor , outro conto de

Uma

Idéia Toda

AzuL

A ambiência, porém, absor

ve a magia própria ao gênero, conferindo a necessária verossimilhança

ao enredo. Por isso, o leitor aceita com facilidade a situação inusitada

da criança - filha única e caprichosa - e a preocupação paterna, que

ta, porém, só deseja encontrar a si mesma, sem

se

dar conta que a iden

tidade não

se

encontra na imagem espelhada, e sim na ruptura com o

narcisismo dentro do qual vive e que é estimulado pela família, repre

sentada pelo pai dadivoso.

Da

circunstância de que a busca fracassa,

resulta a falta de

happy end

na narrativa.

Recorrendo ao universo do conto de fadas, Marina Colasanti pode

contrariar a tendência ao conformismo que marca o gênero tradicio

nal. Renova-o, pois, ao mesmo tempo preservando conquistas obtidas

por

esse

tipo de história, assegurando, dessa maneira, lugar na trajetó

ria da literatura infantil nacional.

otas

Cf. Bettheim, Bruno.

A Psicanálise

dos Contos

de Fadas

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

2 Santos, Joel Rufino dos.

Rist6ria de Trancoso

11

José Flávio

de

Carvalho. São Paulo: Ática,

1983.

3 Id

p. 9.

4

Houaiss, Antônio e Villar, Mauro Salles. Dicionário

Rouaiss

da

Lingua

Portuguesa Rio de

Janeiro: Objetiva,

2001.

a Literatura Inhmti l rasileira

103

ao texto, mas importantes para o livro enquanto produto final desti

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ENINOS DE RU

o

enino e o Pinto

o

Menino

de Wander Piroli, provocou em

1975, ano em que foi publicado, celeuma até então rara

na

critica lite

rária nacional. O autor pertencia à geração dos contistas mineiros que

renovavam a ficção brasileira, ao lado de Luís Vilela, Elias José e Ro

berto

Drummond entre outros. Por sua vez a obra era lançada pela

Comunicação, de Belo Horizonte, cujo proprietário, André Carvalho,

alinhava-se

ao

grupo de escritores e intelectuais que compunha a linha

de frente do projeto de mudança e atualização da nossa literatura. Não

surpreendia o fato de a proposta de vanguarda

se

estender

à

literatura

infantil, cujo mercado consumidor crescia, mas que apresentava, aos

novos leitores, obras provenientes de décadas anteriores

ou

então com

prometida com uma ideologia passadista e conservadora.

A discussão motivada pela obra de Wander Piroli não ficou sem

frutos; e teve suas causas, duas delas decorrentes de questões externas

nado

ao

público leitor.

Uma

delas relacionou-se

ao

título, ambíguo,

porque indiretamente alude à genitália da personagem principal da

narrativa. A segunda decorreu do desenho da capa da frente, que refor

ça a impressão de que o pinto do título é efetivamente o órgão re

produtor do protagonista. A quarta capa desfaz, de certo modo, o

impacto inicial, mas não in teiramente.

Com

o texto de Wander Piroli,

a literatura infantil parecia romper fronteiras, e as hostes mais tradicio

nais não aceitaram com facilidade a proposta formulada pelo editor e

pelo escritor, procedentes, ambos, de Minas Gerais.

Lida atualmente, a narrativa de

Wander

Piroli declara que veio

para ficar, pois oferece a comovente história do menino que, tendo

recebido

um

inusitado presente da professora - o pinto do título da

obra - não tem condições de manter o pequeno animal no aparta

mento onde mora. O relato é simples e linear, evidenciando

os

pro

blemas domésticos experimentados pela classe média brasileira, com

primida num pequeno imóvel, com falta de dinheiro e excesso de tra

balho. Mas o texto não se limita a fotografar o cotidiano da popula

ção brasileira residente nos grandes centros urbanos; ele traduz a pers

pectiva com que a criança percebe o aperto dos pais, a boa intenção

da professora, a fragilidade de sua condição pessoal, razão

por

que

pode ser entendida e admirada por pequenos leitores.

A singularidade da obra consiste, por

um

lado, no registro escolhi

do, objetivo e direto, como é próprio

à

literatura de pendor verista.

Não há lugar para soluções mágicas

ou

grandes viradas, que resolvam

os

problemas das personagens: o pinto não sobrevive, e o protagonis

ta precisa aceitar a perda. Mas a novidade advém igualmente da habi-

1 4

Como e Por que

ler

lidade de expressar o universo das figuras fictícias por meio da percep

a l i teratura Infantil Brasileira

1 5

vista desloca-se do menino para o adulto que não pode legar ao filho

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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ção do menino fazendo-o o porta-voz não apenas de sua fragilidade

pessoal mas do grupo social a que pertence. Por efeito de

um

proces

so de transferência o garoto possibilita a representação e compreensão

dos problemas discutidos

no

enredo de modo que o texto se adequa

a todo tipo de leitor seja

os

que pertencem à faixa etária considerada

infantil como previsto pelo editor do livro seja o público de qualquer

idade ou procedência.

A minimização da representação - a personagem de menor idade

exprime o drama por que os adultos também passam - não diminui a

obra mas a engrandece. E alcança um resultado suplementar: o pinto

o mais frágil dos seres que aparecem na obra simboliza o conjunto

pois sua delicadeza física sintetiza a precária situação de todos no livro.

Não

espanta que O Menino

e

Pinto do Menino tenha agradado a

uns e desagradado a outros pois tal como obras anteriormente desta

cadas de Ana Maria Machado Ruth Rocha e Lygia Bojunga corres

pondeu a um caminho sem volta.

Esse

alargou-se e assumiu a dimen

são de uma estrada trilhada por escritores que a povoaram com obras

importantes e atuais.

Wander Piroli ele mesmo publicou em 1976 Os Rios

Morrem

de

Sede curta narrativa que dá conta de uma pescaria frustrada. Pai e filho

são

agora companheiros mas o resultado da aventura não é melhor por

que a poluição

das

águas afastou os

peixes

dos

rios

e afetou as fontes natu

rais impedindo às personagens reviverem bons momentos da infância do

mais velho e na atualidade reforçar

os

laços de afeto e camaradagem.

De novo os problemas sociais intensificados pela devastação do

meio ambiente embasam o andamento do enredo. Porém olponto de

as alegrias que experimentou com a família. Como em O enino e o

Pinto

do

Menino o final não é feliz nem a narrativa tranqüilizadora.

Eis

outro elemento inovador importado para a literatura infantil por

Wander Piroli: as intrigas não apresentam soluções apenas diagnósti

cos dos fatos que transtornam a vida cotidiana da classe média brasi

leira. O leitor pode aceitar e incorporar o conhecimento adquirido a

seu repertório de saberes mas também ser convidado a algum tipo de

ação que transcenda o imobilismo a que são jogadas as

personagens

que protagonizam as histórias de Piroli.

As figuras que dominam a cena nos dois textos citados pertencem

aos grupos urbanos deslocando-se da moradia para o trabalho no

caso dos adultos

ou

para a escola como ocorre

às

crianças.

Os Rios

Morrem

de

Sede int roduz o espaço do lazer mas o malogro da expedi

ção programada pelo pai sugere as limitações

físicas

e pecuniárias da

classe social a que se vinculam

os

atores da narrativa. Oscilando entre

a família o colégio e o serviço as personagens dispõem de todo mo

do de casa para morar unem-se pelo afeto e projetam ainda que pre

cariamente um futuro qualquer.

Pivete

de Henry Corrêa de Araújo publicado no mesmo periodo e

também pela editora Comunicação de Belo Horizonte avança um

passo na escala social introduzindo personagens originárias dos segmen

tos mais despossuídos. Datado de 1977 não

foi

o primeiro a introduzir

o menino de rua na condição de protagonista precedendo-o Lando das

Ruas

de Carlos de Marigny de 1975. Mas atesta tal como a novela de

Marigny o foco inovador: a literatura infantil não mais se conforma

com figuras convencionais pertencentes

aos

setores dominantes da

1 6

Como e Por que ler

sociedade, habitantes do campo ou da cidade. Nem com a perspectiva

a Literaturil Infantil Brasileira 1 1

e inevitável opção que lhe resta. Não há recuperação, mesmo quando

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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paternalista que faz dos meninos abandonados candidatos passivos

à

benevolência dos ricos, dos adultos ou dos bem-intencionados.

Menores desamparados fizeram, por largo tempo, a alegria de folhe

tins e de romances para adultos ou para jovens. Charles Dickens cele

brizou

Oliver

Twist

1838), o órfão maltratado que, depois de muitas

desventuras, descobre seu lar e a riqueza. No cinema, Charles Chaplin,

em 1921, eternizou a imagem em O Garoto o menino sem família que,

protegido pelo vagabundo Carlitos, acaba reencontrando seu lugar na

sociedade. tema se revela fértil e atraente, mas raramente escapa

à

solução milagrosa que recoloca a criança perdida no rumo da boa con

duta e da vida aprazível, após percalços e desenganos. Exemplo de seu

desdobramento na literatura infantil é o Pinóquio 1883), de Carlo

Collodi, relato da trajetória do boneco de madeira seduzido pela vida

fora da família que recupera a felicidade e se humaniza, quando aceita

a opção doméstica oferecida pelo pai simbólico, o marceneiro Gepeto.

Lando das Ruas representa uma primeira tomada de posição frente

ao tema: o jovem do título não tem família e precisa sobreviver, con

tando apenas com o próprio esforço. Mas não sai do bom caminho,

tratando o enredo do acerto das decisões do protagonista, que não

apenas soluciona o roubo que testemunha, como

se

converte em herói

para os companheiros com que convive.

Pivete é mais radical e menos reconfortante, pois o garoto do títu

lo, menino de rua, adota o lado da transgressão, não acreditando na

hipótese de progredir ou melhorar, se se mantiver junto à família ou

residindo na favela onde nasceu. Sozinho ou com a cumplicidade dos

parceiros, trombadinhas como

ele

sabe que a marginalidade é a única

tenta largar o mundo do crime; acaba retornando às ruas e levando

avante a trajetória da contravenção, cujo resultado nunca coincidirá

com a reintegração

à

sociedade, o reencontro da família ou a riqueza

legalmente consentida.

Pivete

declara-se

um

livro amargo, que complementa o malogro

interior experimentado pelas personagens de O

Menino

o Pinto

do

Menino

e de

Os

Rios Morrem de

Sede

com o fracasso dos programas

de regeneração ou readmissão propostos pela sociedade brasileira. Não

há o que prometer para Pivete e seu grupo, além da revolta interna e

a rejeição externa, simbolizada pelo linchamento que sacrifica Dispa

rada, um dos companheiros do protagonista. História sem heróis, Pi-

vete

estende ao máximo as possibilidades de representação dos proble

mas sociais e econômicos pela literatura infantil; depois dele,

a

busca de solução adotada por personagens oriundos de outros segmen

tos sociais, de que são exemplo

as

meninas figurantes em narrativas

examinadas em capítulos anteriores.

O livro de Sérgio Capparelli, Os Meninos da Rua da Praia de 1979,

alinha-se ao grupo cujo perfil se desenha aqui. Tal como em Pivete

um núcleo de garotos protagoniza a trama, mas, no texto de Cappa

relli, eles têm

uma

profissão: são jornaleiros, o que significa inserção

no mundo do trabalho e expectativa de aceitação pela sociedade. O

universo da marginalidade ronda

os

garotos, sintetizada nas persona

gens que se aproximam dele, como a mulher sem-terra que vem à

cidade, por falta de

um

lugar na região onde nasceu.

Por intermédio dos contatos com outras pessoas e situações, os garo

tos alargam a compreensão do mundo circundante, possibilidade com-

1 8

omo

Por que Ler

plementada pela estratégia narrativa empregada pelo escritor: ele intro

a l i teratura Infantil

Brasileira

1 9

De

um lado

ao

conformismo decorrente da impossibilidade de

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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duz uma personagem externa aos acontecimentos a tartaruguinha mas

que os testemunha e analisa. Os comentários são internos pensamen

tos expressos pelo animal e que o narrador transmite ao leitor.

Por intermédio do recurso adotado Sérgio Capparelli estabelece

um

pacto com o leitor diverso daquele proposto por autores como

Wander Piroli e Henry Corrêa de Araújo. Nesses o conflito oferece

se

como

uma

fratura exposta deixando a critério do leitor a com

preensão dos eventos. Cabe

ao

destinatário levar adiante a interpreta

ção dos fatos o que garante o efeito elucidado r e emancipador da

obra; por outro lado como não há saída para

os

problemas vividos

pelas personagens evidencia-se a impossibilidade de mudança. O in

sucesso das personagens pode coincidir com a frustração do leitor

e

se

for o caso com a imobilidade outra faceta do conformismo.

Capparelli alarga

as

possibilidades de compreensão dos aconteci

mentos pois interpola comentários esclarecedores ainda que

eles

pro

cedam das personagens que estão aprendendo a conhecer o mundo.

Contudo para chegar a esse resultado precisou incluir no enredo a

tartaruguinha figura pertencente

ao

reino animal dotada porém de

pensamento e razão. O testemunho e o raciocínio ainda que acessíveis

tão-somente

ao

leitor por intermédio da fala do narrador garantindo

a verossimilhança do enredo facultam o esclarecimento dos fatos; por

outro lado

ao fazê-lo o autor rompe o pacto de fidelidade ao verismo

a que induzia sua opção ficcional.

Henry

Corrêa de Araújo e Sérgio Capparelli correspondem pois

aos

pontos extremos a que pode conduzir a tendência inaugurada por

Wander Piroli com O Menino o

Pinto

do

Menino:

alterar a situação adversa das personagens. Essa alternativa abriga um

componente contraditório pois se se rende à resignação do ponto de

vista ideológico lembra que seus praticantes escritores como Wander

Piroli e

Henry

Corrêa de Araújo abriram caminho inovador e radical

na literatura infantil brasileira contestando e rejeitando a trajetória

até então fértil que conferiu aos menores abandonados a oportunida

de de encontrarem um lar e

se

reintegrarem à sociedade a exemplo

na Europa dos heróis de Charles Dickens e Carlo Collodi respectiva

mente Oliver Twist e Pinóquio.

_

De

outro ao alargamento pelo leitor

do

conhecimento de situa-

ções que ele porventura não experimenta por pertencer a outra cama

da social via de regra mais bem aquinhoada financeiramente. Con

tudo a ampliação dos horizontes

se faz

à custa do abandono parcial da

proposta de narrativa verista e a reintrodução de recursos narrativos

filiados

ao

universo da fantasia e da imaginação como é o animal dota

do de raciocínio e opinião no

caso

de

Os

Meninos

da

Rua

da Praia

Desde 1975 a narrativa para crianças vem ensaiando a ruptu ra com

os limites da representação verista desafio permanente porque envol

ve

não apenas as expectativas do público e das instituições literárias

mas igualmente

as

possibilidades de adequação do tema

às

disposições

do leitor ainda criança

ou

adolescente. A experiência bem-sucedida

mesmo quando expondo

os

limites da representação deu margem ao

aparecimento de novos gêneros literários colocou heróis mirins na

posição de protagonistas e direcionou a literatura para horizontes mais

amplos como o da narrativa policial e de investigação como se verá a

segUIr.

a

Literatura

Infantil Elrasileira

111

o

gênero policial não apresenta facilidades, mesmo quando

se

trata

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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DETETIVES MIRINS

Qa n d publicou a primeira edição de

O G2nio

do Crime o autor

do livro, João Carlos Marinho, informou, após o título e entre parên

teses, que

se

tratava de uma história em São Paulo .

Em

1969, histó

rias escritas para crianças que se passassem na capital paulista eram

muito raras, pois, ainda sob a sombra de Monteiro Lobato, os escrito

res

enviavam

s

personagens para sítios, terras distantes e tempos pas

sados, dificilmente escolhendo

s

grandes cidades e a atualidade para

sediarem a ação das narrativas e demarcarem a época

em

que ocorriam.

Não foi apenas esse o aspecto renovador do livro, mesmo porque a

cidade aparece de modo ainda fugaz na obra, ao contrário do que

ocorre nos textos subseqüentes de Marinho, como O

Caneco

de Prata

(1971) e O

Livro da Berenice

(1984). A inovação relaciona-se

à

esco

lha do gênero a que pertence, a narrativa policial, envolvendo a reso

lução de

um

mistério e a descoberta de

um

criminoso.

de ficção para crianças, pois é preciso seguir, de

um

lado, algumas regras

próprias o modelo literário escolhido, de outro, garantir o interesse

específico do destinatário da

f ix

etária a que o livro

se

dirige.

Um

dos

princípios básicos da literatura policial é a consumação do crime já nas

primeiras páginas, que,

no

caso

da

narrativa dirigida

à

infância, precisa

se

relacionar a

um

assunto conhecido pelo leitor e que o atraia.

Marinho resolve a questão com maestria em O

Gênio do Crime.

logo

no capítulo de abertura, o narrador enfatiza que

uma

mania tomara

conta da criançada paulista: o concurso das figurinhas de futebol ,

que conquistara

os

meninos, levando-os a completar

os

álbuns a serem

trocados por

um

jogo de camisetas do clube predileto do coleciona

dor.

O assunto, próprio

à

faixa etária visada pelo livro, captura de ime

diato a atenção, alimentada pelo acontecimento seguinte: os vencedo

res

não recebem o prêmio, porque o fabricante das figurinhas não

conta dos pedidos; revoltados,

os

torcedores mirins depredam a fábri

ca promotora do concurso.

Logo

se

descobre a causa do problema:

s

figurinhas estavam sendo

clonadas por meliantes, que, de modo clandestino, vendiam-nas dire

tamente aos colecionadores. Os álbuns eram aprontados, e a dívida

cobrada ao Sr. Tomé, dono

da

fábrica e promotor do concurso. Cri

me, mistério e necessidade de investigação armam-se

em

poucas pági

nas, e o leitor está fisgado, até porque o assunto, envolvendo

s

figuri

nhas e futebol, pertence a seu universo de experiências e granjeia ime

diata simpatia.

A segunda regra peculiar

à

história policial relaciona-se

à

investiga

ção, conduzida

por um

detetive habilitado. Cabe, também no que diz

112

omo

Por quo Lor

respeito a

esse

critério, escolher um sujeito relacionado ao mundo do

a Literatura Infantil Brasileira

113

lectuais, capacitando-os à participação na intriga c resolução dos pro

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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leitor, o que significa atribuir o papel a uma criança ou, no máximo, a

um

adolescente. Resolver

esse

problema requer alguma cautela, pois

detetives mirins apresentam limitações de toda ordem, a começar pelas

de natureza jurídica, já que a legislação protege a infância. Mais impo

sitiva é a limitação de ordem narrativa, pois o autor não pode perder de

vista a verossimilhança: meninos e meninas dispõem de poucos recur

sos materiais e flsicos para enfrentarem inimigos que, por serem crimi

nosos, não precisam respeitar normas éticas, técnicas

ou

legais.

Em

O Gênio

do

Crime Marinho encontra algumas boas soluções,

começando pelo motivo pelo qual Edmundo,

um

dos meninos que

conduzem a investigação, é procurado pelo Sr. Tomé: ele evitara que

os rebeldes dessem fim à fábrica de camisetas. Estava, pois, familiari

zado com o problema e sua origem, o mesmo interesse que o levara a

colecionar

as

figurinhas e a desejar o conjunto de camisetas de futebol

a que tinha direito o premiado. Edmundo porém, não age sozinho,

nem

comanda

as

diligências que levam à identificação do mandante

do crime. Introduzem-se outras personagens que acabam

por

tomar

conta do enredo nesse livro e nos que

se

seguem: o gordo Bolacha e a

pequena Berenice.

A Bolacha e Berenice compete a pesquisa intelectual, pois

eles

não

se

envolvem propriamente no movimento de busca, ação desempe

nhada pelo diligente

Edmundo

e o amigo Pituca. Bolacha, gordo e

comilão, prefere pensar a agir, e só atua quando se infiltra

na

escola

onde são transmitidas

as

encomendas de figurinhas aos bandidos. Lá

conhece Berenice, cuja inteligência se

evidencia desde a primeira par

ticipação na trama. Assim, a dupla logo

se

identifica pelos dotes inte-

blemas mais importantes.

Raramente saindo do quarto e nunca deixando para trás

uma

refei

ção, o gordo corresponde ao tipo de detetive que deslinda o crime gra

ças ao raciocínio. O modelo é Nero Wolf, protagonista das histórias

assinadas pelo norte-americano Rex Stout, que, a partir das informa

ções transmitidas pelo assistente, Archie Goodwin, não precisa aban

donar o escritório para resolver

os

mistérios mais intrincados. O gordo

não chega a

esse

ponto, mas prefere recorrer à inteligência, não

às

per

nas, pois, para isso, dispõe de

Edmundo

e Pituca.

A fórmula, contudo , não basta para conferir densidade e verossimi

lhança à história, razão

por

que

se

incorpora Berenice, que, relativa

mente ao emprego da inteligência, duplica o papel do gordo, acrescen

tando, da sua parte, a agilidade flsica que o outro não tem. Em O

Gênio do Crime o grupo de detetives conta com

um

último auxiliar,

Mister

John

Smith Peter Tony, o escocês importado pelo gerente do

Sr.

Tomé

e auto designado detetive invicto, por ser invariavelmente

bem-sucedido quando da descoberta e identificação de criminosos.

A presença dessa personagem completa o processo de estruturação

da narrativa policial. Integrando

um

adulto, o autor fortalece a verossi

milhança, pois a clonagem das figurinhas é contravenção a ser comba

tida com recursos mais consistentes que a disposição de ajudar mani

festada pelas crianças; contudo,

se

Mister J

ohn

descobrisse

os

bandidos

e sozinho, prendesse a quadrilha, a história perderia interesse. Por isso,

ele corresponde, ao mesmo tempo, a

um

auxiliar e a

um

contraponto,

valorizando a ação investigativa dos garotos, fato que o escocês reconhe

ce ao final, ao abrir mão do cognome detetive invicto , até então uti-

114

omo

o Por quo Ler

lizado junto

aos

clientes. Além disso, Smith garante o lado cômico da

a Literatura Infantil Brasileira

me

que estimulou a construção de estádios de futebol em todas

as

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narrativa, expressando-se em português macarrônico e valendo-se de

estratégias extravagantes quando da perseguição dos bandidos.

Publicado em 1969, O

Gênio

do Crime inaugura a trajetória

do

grupo de meninos e meninas paulistas que não apenas resolvem mis

térios insolúveis pelos adultos, como

se

mostram independentes e

decididos. Com o livro, João Carlos Marinho abriu

um

veio

na

litera

tura infantil brasileira, optando por um gênero até então pouco fre

qüentado por nossos escritores. Contudo, o escritor não se acomodou,

e

na seqüência, optou por continuar inovando, de que resultou

O

Caneco

de

Prata de

1971.

O ano

em

que o livro foi publicado sugere algo sobre o tema: em

1970,

o Brasil vencera a copa do

mundo

de futebol, conquistando o

tricampeonato e trazendo para o país a Taça Jules Rimet. A bem

sucedida campanha esportiva estimulara disposição nacionalista entre

a população, sufocada pelo regime militar e sem chance de expressão

O governo aproveitou a ocasião, transformando o sentimen

popular

em

propaganda ideológica. O otimismo parecia tomar

de todos, como

se

pudesse compensar a repressão policial, in

c,-, , U. ' '-<lUd desde 1969, com a concretização do prometido milagre

Os

slogans se

repetiam: Brasil, ame-o

ou

deixe-o era um deles,

U ~ ~ U l l l U , U

que as pessoas que precisaram

se

exilar no exterior eram

patriotas que

os

que ficaram e sobretudo, os que aderiram ao

Dom e Ravel cantavam Eu te amo, meu Brasil, eu te amo ,

a multidão a esquecer a falta de liberdade e o recrudescimen

da tortura. O futebol vitorioso de 1970

foi

uma das armas do regi-

 

capitais do país e converteu o campeonato nacional em principal atra

ção da cultura nacional.

Ao redigir O Caneco

de

Prata Marinho não desafiava a ditadura

diretamente. Soube, porém, utilizar seus principais símbolos para des

mitificar

os

intuitos que

os

recobriam.

O enredo gira em torno da disputa entre duas

escolas

a Três Ban

deiras, freqüentada por Bolacha e sua turma, e a Garibaldi do Cam

buci, pela conquista da taça de campeão do torneio de futebol interco

legial.

Comandada pelo professor Giovanni, a Garibaldi do Cambuci,

vitoriosa nos últimos sete campeonatos, parece imbatível; deve, porém,

a invencibilidade

à

dedicação total ao esporte, conforme declara o trei

nador, assim que é publicada a tabela dos jogos:

De hoje em diante

não se faz mais nada. Só futebol. 2

Da sua parte, o grupo adversário não está disposto a ser derrotado,

e outra

vez

é o gordo que soluciona o problema. Tal como no livro

anterior, atua desde a poltrona de casa: de posse de um supercompu

tador, comanda

à

distância a vitória de seu time, compensando por

meio da tecnologia a fraqueza dos jogadores, debilitados por força da

ação malévola do professor Giovanni, que desejava vencer a qualquer

preço.

O enredo, aqui simplificado, indica de antemão a intenção desesta

bilizadora do livro: Giovanni transforma

os

estudantes em máquinas

de jogar futebol, enquanto que

os

atletas do time da Três Bandeiras

são

desnutridos e intelectuais, primeiros da

classe

pernetas, enfim .3

O grupo do Garibaldi de Cambuci é formado de vencedores, porque

o treinador é fanático, conforme sugere o diálogo de Giovanni com a

116

Como e

Por

que

ler

esposa, Filomena, cuja atitude espelha o comportamento da socieda

a Uteratura Infantil

IIrasileira

evento culminante, o jogo entre

as

equipes das duas escolas, em que os

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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de brasileira no começo dos anos 70, entorpecida pelo nacionalismo

ferrenho imposto pelo governo. A derrota, ao final, quando o cora

ção dele [Giovanni] estourou de raiva de perder ,4 processo que se

reproduz na imagem de

uma

bomba explodindo, revela o desejo de

alterar essa mentalidade, apontando a megalomania de que

se

nutre.

Outros aspectos caracterizam a proposta revolucionária contida em

O Caneco de Prata O mais evidente diz respeito à diagramação, que

alterna o texto impresso com imagens próprias

às

revistas em quadri

nhos, como o desenho, citado no parágrafo anterior, da explosão do

coração do professor Giovanni. Os recursos visuais estendem-se ao uso

das letras

em

caixa alta, para enfatizar afirmações ou situações das per

sonagens, assim como a distribuição gráfica busca reproduzir a dispo

sição dos jogadores em campo.

Contudo, o elemento mais desafiador das disponibilidades do leitor

decorre da inserção de situações surrealistas na narrativa. Elas aparecem

desde a primeira página, quando Berenice e o gordo atraem a atenção

de um marciano, piloto de um disco voador, oferecendo-lhe um prato

de morango com chantílly Situações como essas se sucedem nas pági

nas subseqüentes: no gabinete de seu psicanalista, o gordo, sentindo

uma

angústia muito profunda'',5 transforma-se

num

gato;

uma

aranha

estroboscópica aparece na narrativa tão-somente para comer um mos

quito;6 um leopardo verde devora um prefeito

e,

impregnado do ácido

ribonude ico da vítima, não consegue parar de fazer discurso?

As

inserções de non sense narrativo não perturbam o andamento

da

narrativa, mas conferem sentido lúdico aos acontecimentos e

às

perso

nagens, tornando aceitável tudo o que for apresentado, tal como o

,

,

gols

se

sucedem, as personagens, sob o efeito do equipamento moni

torado pelo gordo, agem como bonecos, a torcida, formada por tre

zentas mil pessoas que ocupam o Maracanã, enlouquece. Embora a

ação transcorra no presente e

em

cenários conhecidos, como a cidade

de São Paulo, o texto

se

aproxima da literatura fantástica, impregnado de

atos prodigiosos e de magia.

Uma obra dirigida à infância não recusa a presença de eventos

extraordinários, de que se alimenta, por exemplo, o conto de fadas,

um de seus gêneros mais característicos. João Carlos Marinho não ino

varia, se tivesse se limitado a enxertar na intriga personagens dotados

de propriedades sobrenaturais, que alteram os acontecimentos, favore

cendo ou não o protagonista. A originalidade decorre, primeiramen

te, de que

as

ações que poderiam ser consideradas maravilhosas advêm

do uso da tecnologia, fazendo a máquina o papel do auxiliar mágico

as fadas,

por

exemplo)

comum

às narrativas tradicionais. A máquina,

por sua

vez,

é manipulada pelas crianças mais sabidas, como, de novo,

Bolacha e Berenice, qualificando a autonomia de suas atividades e

auto-suficiência de seu desempenho. Dominando mecanismos que

poderiam submeter os indivíduos, os dois heróis patenteiam superio

ridade e capacidade de

se

alçar acima dos adversários.

A originalidade decorre ainda de um segundo aspecto: a perspecti

va carnavalizada com que acontecimentos e pessoas são apresentados.

A fantasia, aqui, não significa apenas recurso ao maravilhoso, como

ocorre na ficção latino-americana na mesma época, de que são exem

plos os romances de Gabriel García Márquez

8

e Juan Rulfo, publica

dos e difundidos neste período, abrigados sob o rótulo de Realismo

118

Como

e Por que ler

Mágico. A fantasia é igualmente a máscara que recobre

as

personagens,

conferindo-lhes faceta caricata, como acontece ao professor Giovanni,

a

litemtura

Infantil Brasileira

119

mesmo os vilões sobre os quais a turma do gordo triunfou. Em O Livro

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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treinador e comedor compulsivo de macarrão,

ou

ao pai do gordo,

consumidor obcecado por dispositivos eletrônicos.

O

Caneco

de

Prata

mistura elementos díspares

numa

narrativa única

e bem-humorada, que se destacou pelo teor experimental. João Carlos

Marinho parecia ter chegado a

um

extremo de onde não

se

retornava.

Mas o escritor não esmoreceu: retomou

as

personagens e continuou

oferecendo livros instigantes e inovadores ao leitor brasileiro.

Soube esperar

um

tempo, porém.

Sangue

Fresco em que reaparece

a turma do gordo, foi publicado em 1982, sendo que

no

intervalo

os

dois livros anteriores, O

Gênio

do Crime e O

Caneco de Prata

foram

se

popularizando entre o público brasileiro.

Quando Sangue Fresco

foi

publicado, autor e personagens já estavam consagrados e eram aguar

dados

por

seus apreciadores.

Sangue Fresco revela que João Carlos Marinho extraiu de Monteiro

Lobato algumas boas lições. Admi rador do criador do sítio do Picapau

Amarelo, o escritor dedicou-lhe,

em

1977,

um

ensaio

em

que subli

nha as qualidades da sua prosa.

9

Entre essas está a de aproveitar o

núcleo de personagens das obras anteriores, pois pou pa o aut or de pro

por novas figuras ao leitor.

Como

esse já está conquistado por

um

grupo de crianças cativantes, o melhor é inventar novos enredos para

os

mesmos atores: o reconhecimento acontece de imediato, se ele já foi

apresentado às tramas anteriores; caso contrário, interessar-se-á

por

chegar a

elas

ampliando o círculo de divulgação de

uma

obra.

Marinho adota a técnica com intensidade: a cada novo livro, aumen

ta o número de personagens, pois retornam quase todos

os

anteriores,

da Berenice

na seqüência de

Sangue Fresco

até o filho do cambista que

vendia figurinhas falsificadas, em O

Gênio

do

Crime

comparece ao ani

versário da menina; o narrador complementa: Ship O Connors e o

anão Gênio do Crime tiveram licença para sair da cadeia e ir à festa. lo

Graças ao expediente, intensifica-se a tendência à carnavalização, pró

pria à escrita de João Carlos Marinho, pois as personagens constituem

um grande bloco de companheiros que não perdem a oportunidade de

protagonizar

as

situações mais extravagantes.

Sangue Fresco

lida com

uma

dessas situações ao mesmo tempo ve

rossímeis e exageradas, peculiares à ficção de Marinho. A ação, inicia

da em São Paulo, concentra-se

na

Amazônia, onde

um

médico mal

intencionado, Ship O Connors, reúne crianças seqüestradas, transfor

madas em doadoras de sangue, sendo o precioso líquido vendido a

consumidores ricos e doentes, que requerem transfusão e cura.

A trama parte, pois, de

um

dado simultaneamente realista e simbó

lico. O sangue é matéria cobiçada, mas não pode ser comercializada, a

não ser pela via da contravenção, como

faz

Ship O'Connors; e crianças

não podem ser doadoras,

por

motivos éticos e físicos, contrariados tam

bém pelo inescrupuloso vilão. O ângulo simbólico advém do conflito

criado: a juventude brasileira está sendo sugada em nome do lucro a ser

obtido junto a clientes poderosos; e a extração se faz num espaço signi

ficativo, a selva amazônica, pulmão do Ocidente, que purifica o ar do

planeta, mas que vem sendo dilapidada por malfeitores tão carentes de

senso moral como o cientista norte-americano do livro.

Ship O'Connors, porém, comete

um

erro: seqüestra o gordo, que

não

se

conforma com o encarceramento, por mais confortável que seja

 12,0

omo

Por que Ler

a vida no local escolhido para acolher as crianças. Ao lado dos compa

a

literatura

Infantil rasileira

Tem razão falou Edmundo. Diário de jovenzinho é pior que pur

gante. Bó

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nheiros, fura o cerco e adentra a selva, na busca de salvação. O suces

so

deve-se, ou tra vez, ao uso da inteligência, que não pode mais depen

der das engenhocas eletrônicas disponíveis em obras anteriores. Bo

lacha mostra a que veio, liderando a expedição que, se passa trabalho,

não apenas alcança seu objetivo, como ainda liberta os demais prisio

neiros de O Connors .

Menos detetive e mais aventureiro, Bolacha é o herói de

Sangue

Fresco; mas, em O Livro da

Berenice

perde a posição para a moça, per

mitindo que a literatura infantil avance na direção da narrativa meta

lingüística, outro procedimento que remonta a Monteiro Lobato,

mas que assume coloração especial nas mãos de João Carlos Marinho.

No

texto, a menina do título resolve escrever

um

livro,

à

moda de

Emília, que, em 1936, decide redigir suas memórias. Em Sangue Fres-

co

a garota já expusera o desejo de ser ficcionista, mas a intenção é

interrompida; a obra seguinte apresenta a resolução de Berenice nas

primeiras páginas.

O capítulo terceiro relata o projeto da namorada do Bolacha, acom

panhado da discussão sobre as possibilidades de uma criança ter sufi

ciente autonomia para ser autora de uma boa obra literária.

É

a turma

do Bolacha que leva adiante o debate, mas o linguajar é adulto e com

penetrado:

- Nenhum livro de criança de dez ou quatorze

anos

conseguiu nada

em

literatura -

falou

Hugo Ciência. - Teve aí umas memórias, tipo

diário,

um vomitório

da alma, dumas

menininhas,

mas

literatura

nunca.

_ Falta experiência, falta leitura, falta distanciamento - explicou Hugo

Ciência.

(

..

)

S

· . . f -I B . 11

-

erei

a pnmeira -

alOU

ereOlce.

Quem leu Memórias

de mília

reconhece na

fala

de Berenice simi

lar determinação. Outro traço é compartilhado pelas duas: a menina

paulista dita o texto a Edmundo, que o transcreve na máquina de

escrever. Nesse quesito, contudo, Marinho acrescenta outros elemen

tos à intriga, discutindo, no Capítulo 5, o processo de produção indus

trial de uma obra impressa. Assim, um tanto

à

maneira de Paulo

Honório, personagem de Graciliano Ramos, na abertura do romance

São

Bernardo

(1934), as tarefas

são

divididas, competindo o desenho

da capa e

as

ilustrações a Mariazinha, uma

das

amigas da autora e

membro da turma do gordo.

O Livro da Berenice transforma-se em obra que discute a própria

natureza, pois a trama depende não apenas do desdobramento do

projeto de Berenice, mas também do intento do arquicriminoso

Papoulos Scripopulos, que deseja roubar o texto redigido pela garo

ta, publicá-lo

em

seu nome, ganhar muito dinheiro com a renda dos

direitos autorais e,

ser premiado internacionalmente. O plano do

facínora fracassa, enquanto Berenice termina sua obra, edita-a e

lança-a numa livraria. Marinho acaba por circunscrever o processo

empresarial completo, que começa pela intenção do autor e conclui

quando a obra é vendida, para gerar rendimentos para o escritor, o

editor e o livreiro.

  22

Como e Por que ler

escritor, porém, não tem ilusões a respeito das chances de a lite

ratura fazer alguém enriquecer. Embora Papoulos Scripopulos acredi

a literatura Infantil Brasileira

No

caso da turma do gordo, não

se

trata apenas de não existirem pro

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te ser possível

um

autor ganhar mu ito dinheiro com a venda de livros,

Berenice, que representa a categoria dos escritores, tem dificuldades

para encontrar editor; quando consegue publicar a obra e lançá-la em

tarde de autógrafos programada

em

encantadora livraria da cidade,

recebe apenas

os

amigos, não obtendo maior repercussão. Em Berenice

Detetive 1987), texto subseqüente de João Carlos Marinho, reapare

ce a questão relativa à pouca rentabilidade gerada pela comercialização

de livros: a menina comenta ter vendido unicamente trinta exempla

res; e as crianças estranham quando, investigando o assassinato da es

critora Rosinha, matéria do enredo, descobrem a conta bancária da

morta, engordada não pela literatura, mas pela contravenção.

O conjunto de obras protagonizadas pelo gordo Bolacha e a turma,

inaugurado com O Gênio do Crime em 1969, e que se estende até os

anos 90, propõe um paradigma para a literatura infantil brasileira que

encontra eco

em

outros escritores. A

esse

padrão pertencem as seguin

tes características:

-

as

personagens são crianças ou jovens bastante inteligentes;

- o grupo é misto e une-se

por

laços de amizade;

- cada

um

dos participantes exibe

uma

qualidade

ou

atributo que

o particulariza;

- dificilmente as personagens sofrem problemas econômicos;

- o grupo encarrega-se de denunciar alguma ação criminosa nem

sempre percebida pelos adultos ou pela polícia; a ação criminosa atin

ge-os particularmente, fato de que nasce a determinação por solucio

nar o problema.

blemas econômicos: o pai do Bolacha é bastante rico, tem mordomo, a

residência é luxuosa, e

os

automóveis

são caros.

A riqueza é ostensiva em

seu caso como se o autor estivesse fazendo blague da burguesia endinhei

rada brasileira. Cabe lembrar ainda, a propósito do paradigma que

os

livros vão esboçando, que

as

meninas têm

um

papel importante na

trama, a ponto de Berenice acabar por aparecer no título das mais recen

tes. A presença feminina em enredos pertencentes ao gênero policial não

deixa de apontar a crescente participação da mulher na sociedade e na

constituição do público leitor, que irá preferir obras que oferecem

padrões fáceis de identificação, representados aqui pelas garotas detetives.

Marcos Rey é

um

dos adeptos do paradigma proposto. Escritor que

começou a carreira de ficcionista na década de 1950, ele conheceu o

êxito literário com obras audaciosas, como Café

na

Cama O Enterro

da

Cafetina

e

Memórias

de

um Gigolô

que desafiam o

pudor

e o reca

to dos leitores brasileiros. A partir dos anos

80,

dedicou-se igualmen

te à literatura infantil, publicando O Mistério

do

Cinco Estrelas 1981),

que se inscreve com facilidade no gênero literário conhecido como

romance policial.

A narrativa não é caudatária dos livros de João Carlos Marinho, mas

acompanha o paradigma citado: o crime, que

se

passa

num

luxuoso

hotel paulista, é desvendado por Leo e sua turma, de que participam

Gino e Ângela. O Rapto do Garoto de Ouro na seqüência, confirma a

tendência: o enredo conta o criminoso seqüestro de que é alvo o cantor

de sucesso Alfredo, amigo dos heróis detetives. Os jovens decidem cola

borar com a investigação, desenvolvida graças à ação de Léo e Ângela,

por quem o rapaz nutre silenciosa paixão, e

à

inteligência de Gino.

 124

Como e Por que ler

Gino

faz

o papel do gordo nas tramas de Marcos Rey: impossibili

tado de andar e movimentando-se

numa

cadeira de rodas, o garoto

a

l i teratura

Infantil rasileira

os Karas devem desvendar o que está provocando o desaparecimento

de estudantes em várias das escolas da cidade.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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decifra os mistérios graças às informações trazidas de fora e ao raciocí

nio. E assim como o gordo de, sobretudo, O Gênio do Crime aproxi

ma-se de Nero Wolf, personagem de Rex Stout, Gino aparenta-se a

Robert lronsine, o detetive paraplégico de prestigiado seriado de tele

visão nos anos 60.

O mundo retratado por Rey apresenta, porém, outro recorte social,

pois

as

personagens pertencem à

classe

média paulista, jovens como

Léo precisam trabalhar, o dinheiro falta no final do mês. As possibili

dades de ascensão estreitam-se, razão por que o sucesso de Alfredo, o

garoto de ouro raptado, é celebrado pelos amigos e cobiçado pelos ini

migos. O encolhimento das hipóteses de mudar de vida por parte das

figuras humanas em cena

faz

com que

as

narrativas elejam perspectiva

mais realista para o desenvolvimento das tramas.

Pedro Bandeira, em Droga da Obediência participa do time de

escritores que prefere o paradigma da narrativa policial, somando no

vos dados à sua configuração. A novela inaugura a série de aventuras

vividas por um grupo de jovens estudantes, os Karas, assim denomi

nados por contrariarem

os

coroas e os caretas . A equipe compõe

se

originalmente de três rapazes - Miguel, o líder, Crânio, o cérebro,

e Calú, o ator - e uma moça, Magrí, ágil e desenvolta como uma

ginasta olímpica. Mas, já nos capítulos iniciais, adota-se novo mem

bro, Chumbinho , que, aparentemente sem nenhum atributo especial,

acaba por descobrir o caminho para a solução do mistério.

Droga da Obediência desenvolve-se de modo rápido e expedito,

porque o narrador abre a história antecipando o problema a resolver:

A abertura traz elementos conhecidos desde O Gênio do Crime. o

mistério relaciona-se ao universo das personagens, pois é o sumiço de

um

dos colegas que alerta Miguel para o problema; como os heróis são

jovens e não investigadores profissionais, precisam agir coletivamente,

para compensar

as

insuficiências individuais. Bandeira acrescenta al

guns ingredientes à receita: à carência pessoal, contrapõe-se a habilida

de de que cada

uma

das personagens é dotada, como a liderança de

Miguel ou a inteligência de Crânio. A este compete o papel antes exer

cido pelo gordo ou por Gino, resolvendo enigmas por raciocínios;

porém, não incorpora a imobilidade dos antecessores, podendo parti

cipar dos acontecimentos ao lado dos amigos, embora prefira ficar em

casa pensando.

Outro ingrediente incorporado por Bandeira é sugerido pelo título

do livro, que contesta a noção de que garotos insubmissos devam ser

amansados por efeito de alguma poção especial. Miguel e seu time des

mantelam a quadrilha que, comandada pelo

Doutor

Q L, tinha delí

rios de dominar o

mundo

graças

ao

efeito da droga química testada

nos jovens. Tal qual as personagens, o autor também torce a favor da

rebeldia, mas sabe que a contestação está permanentemente ameaçada

pelos detentores do poder. O final é altamente expressivo, pois, embo

ra o problema tenha sido solucionado, a droga da obediência não desa

parece, sendo até louvada por aqueles que esperam chegar ao contro

le dos comportamentos sociais indesejados.

É sintomático que, no livro, o professor Cardoso encubra o malva

do Doutor Q

L

diretor do Colégio Elite, onde estudam os Karas, e

  omoe Por que

Ler

seja responsável por um projeto revolucionário de ensino, em que pri

mam o diálogo e a co-participação dos alunos. A fachada é contudo,

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desmascarada por Miguel que, além de liderar os I<aras preside o grê

mio de estudantes. Seja no papel de diretor da escola, seja na pele do

Doutor Q

L Cardoso tem

um

plano para a elite, a de reprimi-la e

submetê-la.

Os

I<aras

representam outra faceta da elite, não a do

dinheiro

ou

do poder, mas a da ética e da inteligência, que prevalece

- só

em

parte, porém - ao final. O livro, discutindo as alternativas

com que a sociedade lida com os jovens, abre-se para a interpretação

que

se

estende para além da trama policial, ampliando seu horizonte.

O gênero policial, que nasceu para divertir crianças e adolescentes,

leva-os igualmente a refletir sobre sua condição e posição na sociedade,

proporcionando leitura agradável, mas também conhecimento e

reflexão.

otas

I

Silva, J.

C

Marinho. O Gênio do

Crime

Uma história em São Paulo . 18. ed. Rio de

Janeiro: Ouro, s. d. p. 9.

Silva, João Carlos Marinho. O Caneco de Prata. 5. ed. São Paulo: Obelisco, s. d. p. 10.

3Id p. 86

4Id

p.

104.

5 Id. p. 3.

6Id p. 20.

7 Id.

p. 29.

8

Vale lembrar que,

em

O

Outono

do Patliarca de 1975, García Marques satiriza a tendência dos

ditadores a ocuparem o povo com futebol, construindo estádios em todos os recantos do pais.

9

Cf. Silva João Carlos Marinho.

Conversando

de Monteiro

Lobato.

São Paulo: Obelisco, 1977.

10

Marinho João

Carlos. O

Livro da Berenice.

5. ed. São Paulo: Global, 1993. p. 70.

llId p. 15-16.

E

PARA A POESIA,

NÃO VAI NADA 1

A

oesia esteve presente desde o começo d a literatura infantil bra

sileira, tendo sido Olavo Bilac

um

de seus principais expoentes, no iní

cio do século

XX.

A seu Poesias Infantis de 1904, seguiu-se Alma

Infantil

de 1912, escrito por Francisca Júlia que, como Bilac, acom

panhava a estética parnasiana, pouco afeita ao gosto da criança. Talvez

essa razão explique por que a maioria dos livros de versos dedicados

ao

público infantil tenha aparecido

na

segunda metade daquele século,

quando o Parnasianismo havia sido plenamente suplantado pelo pro

grama modernista, lançado a partir da década de 1920.

Uma

breve relação cronológica evidencia como o gênero poético,

quando dedicado a crianças, floresceu nas últimas décadas, quando

técnicas e princípios de criação artística adotavam parâmetros

maiS

livres e libertários:

  I

28

Como e Por que ler

1943

O

Menino

Poeta

Henriqueta Lisboa

1962

A

Televisão

da

Bicharadll

Sidônio Muralha

1964

Ou Isto 11

Aquilo

Cecília Meireles

a literatura Infantil Brasileira

129

c

a cronologia não apenas avança no tempo mas revela determina

da concentração nos últimos vinte anos quando foi lançada muito

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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1968 Pé

de Pilão

Mário

Quintana

1974

A

Arca

de

Noé

Vinicius de Moraes

1976

A

Dança dos Picapaus

Sidônio Muralha

1983

Boi da Cara

Preta

Sergio Capparelli

1984

O

Menino Rio

Carlos Nejar

Classificados

Poéticos

Roseana Murray

É

Isso

Ali José Paulo Paes

1986 Um Rei

e seu Cavalo de Pau Elias José

1987

Lua

no

Brejo

Elias José

1989

Olha

o Bicho José Paulo Paes

1990

Poemas para Brincar José Paulo Paes

1993

Lécom

Cré José Paulo Paes

1996

Ciberpoemas e uma

Fdbula Virtual

Sérgio Capparelli

1997

Um Passarinho me Contou José Paulo Paes

1997

Viva

a

Poesia Viva Ulisses Tavares

1998

Receita de Olhar Roseana Murray

2000 Um Gato Chamado Gatinho

Ferreira Gullar

2001

O

Fazedor

de Amanhecer

Manoel de Barros

A relação permite algumas conclusões iniciais:

a quase todos os poetas modernos brasileiros escreveram para

crianças seguindo de certo modo a lição de Olavo Bilac no começo

do século XX. Estão aí citados Vinicius de Moraes Cecília Meireles e

Mário Quintana pertencentes à chamada Geração de 30 assim como

os concretistas José Paulo Paes e Ferreira Gullar ou Manoel de Barros

um

dos mais importantes poetas nacionais nesse começo de milênio;

b

por outro lado enquanto

os

poetas digamos canônicos publi

caram apenas

um ou

dois livros dedicados exclusivamente ao leitor

infantil outros como Sérgio Capparelli Roseana Murray ou Elias

José autores também de ficção dirigida à criança profissionalizam-se

no gênero variando temas formas e formatos mas não o público

visado;

mais da metade de toda a produção em versos para crianças no Brasil.

Poder-se-ia arriscar uma afirmação: depois de 1980 descobriu-se a

poesia para crianças.

Não

que ela faltasse antes: o já citado Olavo Bilac

é autor de

um

dos mais antigos livros que o gênero conheceu

em

nosso

país. Mas talvez por causa do próprio Bilac certas características se

impuseram - como a temática de orientação cívica - e determinados

objetivos predominaram - como a adequação dos textos a intuitos di

dáticos - que afastaram os criadores mais ousados mesmo os que

estavam acostumados a escrever para crianças fazendo com que a poe

sia demorasse a se sobressair entre nós.

Poemas

para Brincar

de José Paulo Paes talvez seja o texto que me

lhor esclarece o que significa escrever versos para crianças e esperar que

o leitor aprecie pois o escritor estabelece

uma

conexão entre brincar e

escrever.

1

O conceito que formula destaca o ângulo lúdico presente

em todo o poema não apenas naquele dirigido à criança; mas as com

parações propostas referem-se ao universo infantil pois são os

pequenos que brincam com bola papagaio

ou

pião sugerindo que a

diversão e o jogo se evidenciam melhor em textos orientados para eles.

O autor exercita-se na brincadeira que no caso aparece por meio da

repetição das consoantes bilabiais oclusivas - o b e o p - de brincar

bola papagaio e pião. Como o poeta está fazendo poesia ao falar dela

emprega conscientemente os recursos que reconhece como próprios

ao gênero em que se exprime.

A valorização do lado lúdico da linguagem propiciou a expansão da

poesia endereçada

à

infância a partir dos anos 80. Introduzindo nos

130

Como e Por

que

Ler

versos e nas estrofes, a perspectiva da diversão, do jogo e da brincadei

ra, o gênero poético pôde se livrar dos problemas que experimentou

Literatura Infantil

rasileira

Os adultos aparecem pouco

e,

quando o fazem, são representados

sobretudo por velhos. As duas velhinhas , Mariana e Marina, des

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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principalmente na primeira metade do século

XX.

O elenco de auto

res diversificou-se, e várias possibilidades expressivas apareceram, ex-

postos nos textos relacionados no começo, em ordem cronológica, e

passaram a constituir

as

características mais importantes da poesia di

recionada prioritariamente

ao

público formado por meninos e meni

nas brasileiras.

Destaque-se primeiramente o tipo de indivíduo que predomina

nos poemas para a infância. Como seria de se supor, são mais assí

duas

as

próprias crianças, cuja faixa etária oscila entre o recém-nas

cido e o pré-adolescente. Henriqueta Lisboa dedica ao primeiro a

Cantiga de Neném , que vai dormir / sob a carícia da lua / neste

bercinho de

nuvens'?

enquanto Vinicius de Moraes elege o peque

no infante , em O Poeta Aprendiz ,

que

anos tinha dez .

3

Cecília

Meireles coloca meninas, como Laura e Carolina, Dulce e Olga, a

protagonizarem os versos, mas, como nos casos anteriores, a apresen

tação é feita

em

terceira pessoa, pois raramente o texto elege o

ponto

de vista interior.

Henriqueta Lisboa, porém, contraria a regra em Consciência , em

que

uma

narradora fala de

si

em primeira pessoa e

na

atualidade:

Ho-

je completei sete anos , diz, para confessar pequenos pecados e afirmar

sua personalidade:

Fazer p ~ c d o é feio.

Não quero

fazer pecado,

juro.

Mas

se

eu quiser, eu

faço.4

pontam no poema de Cecília Meireles, de Ou

Isto ou

Aquilo onde se

encontra também A avó do meninó [sic] a que vive só , a não ser

quando recebe a visita do neto Ricardó , para jogar dominó.

5

Ma

noel de Barros dedica

um

poema ao avô, que experimenta solidão

similar, compensada pela companhia dos seres da natureza. Nos ver

sos de Barros, o isolamento é vivido de modo simultaneamente épico

e melancólico:

Meu avô dava

grandeza ao

abandono.

Era com ele que vinham os ventos conversar

Tenho

certeza

que o meu

avô

enriquecia

a

palavra

abandono.

Ele ampliava a solidão dessa palavra.

6

Se o universo de representação humana parece bastante limitado,

pois faltam a vida cotidiana, o mundo do trabalho

ou

os conflitos

internos, estão presentes, e com grande assiduidade, os elementos da

natureza.

Os

versos de Manoel de Barros antecipam

essa

propensão,

ao falarem do velho que, no quintal, conversa com

as

pombas e

os

gatos. Na maioria dos textos, por sua vez, predominam estrofes que se

referem diretamente

aos

animais, de preferência

os

domésticos.

Como se

observou antes, bichos são apropriados à literatura infan

til, porque, a part ir de algumas de suas características, possibilitam sim

bolizar a própria criança. O animal, enquanto personagem, remonta às

primeiras obras do Ocidente, como a Batracomiomaquia paródia da

  32

omo

e

Por que

ler

epopéia de Homero, ou as comédias do dramaturgo grego ArIstófanes.

A fábula, na Antigüidade, e as sátiras zoomórficas da Idade Média, de

a litereltura Infelntil Brasileira

a exploração do lado cômico das situações, favorecendo o ludismo espe

rado da poesia para crianças.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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que é exemplo o

Livro cú ts

Bestas de Raimundo Lúlio, poeta catalão do

século XIII, ajudaram a consolidar a hipótese que àqueles seres pode ser

conferido status artístico, aparecendo em obras de todo o tipo.

Nas narrativas destinadas à criança, eles respondem a uma série de

intuitos: podem sintetizar o mundo interior da criança, como em

Vida

Íntima de Laura de Clarice Lispector, substituí-la, como em Os

Colegas ou Angélica de Lygia Bojunga, ou alegorizar, em decorrência da

forma física ou atuação, virtudes ou comportamentos dos homens,

como nas fábulas, de Esopo a La Fontaine e Monteiro Lobato.

Presentes também nos poemas orientados para o público infantil,

os animais correspondem, em primeiro lugar, ao esforço de aproxi

mar leitor e tema do texto. Por isso, predominam bichos domésticos,

como cães e gatos, embora nem todos, como os bastante citados

patos, participem usualmente da experiência da garotada de hoje, que

vive nos grandes centros urbanos, de preferência em apartamentos ou

condomínios.

Patos, porém, são assíduos, porque contam com um precursor ilus

tre, o protagonista do conto de Hans Christian Andersen, portanto,

vinculam-se ao acervo e à tradição da literatura infantil. Além disso, a

palavra, em português, é facilmente assimilável por qualquer ouvinte

ou leitor, outro fator que carreia para dentro da poesia ainda outros

bichos, tais como tatus ou pica-paus. Os animais, cujos formatos po

dem ser estranhos, como girafas, apresentar peculiaridades físicas como

zebras, mimetizar atitudes das pessoas, como macacos, ainda facultam

Os títulos de muitos dos livros em versos antecipam a incorpora

ção de componentes da fauna à literatura: Televisão da Bicharada

Arca de

Noé Dança dos Picapaus Boi

da Cara

Preta

Olha o

Bicho Um Passarinho me

Contou

-

eis

uma

quantidade respeitável

de obras a ilustrar as observações anteriores.

Em

grande parte delas,

os animais suscitam o tema das estrofes;

num

deles em particular, Pé

de Pilão de Mário Quintana, um pato é guindado à condição de

herói de uma narrativa.

Este não constitui o único aspecto que particulariza a obra do poeta

sulino.

de

Pilão

relata uma história que traz vários atributos do

conto de fadas, pois o protagonista, no começo o pato que quer ser fo

tografado de sapato novo, revela-se ao final o menino Matias, até en

tão enfeitiçado por

uma

bruxa malvada e metamorfoseado em bicho.

Nossa Senhora desencanta o pequeno animal e garante a reconciliação

das personagens, favorecendo o final feliz.

O mérito do poema não

se

situa, porém, na história relatada, mas

na observação de situações insólitas, decorrentes da mistura entre fatos

próprios ao cotidiano dos seres humanos e o comportamento ou a rea

ção dos animais.

Os

versos de abertura, por exemplo, referem-se a

um

pato tirando retrato, porque calça sapatos novos; e a confusão se arma,

quando o passarinho da câmera fotográfica foge para fora da máqui

na, provocando uma briga que suscita a presença da polícia. A ação

avança com rapidez, sendo a agilidade narrativa reforçada pelo proce

dimento poético escolhido pelo autor, que se vale de estrofes de dois

versos, em redondilha maior e rimados entre si; o acento final recai

 

134

Como

e Por

que

Ler

sobre

as

palavras paroxítonas ou oxítonas, opção que facilita a dicção

do texto e acelera o relato:

a

Uteratura Infantil ilrasileira

135

librando, também, situações conhecidas e próprias ao cotidiano infan

til com o insólito e cômico:

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o

pato ganhou sapato,

Foi logo tirar retrato.

o

macaco retratista

Era mesmo um grande artista.

7

Os patos, porém, podem suscitar também a percepção lírica com

que os enxerga Henriqueta Lisboa, percepção acentuada pelo empre

go das sílabas longas e dos sons nasais, capazes de mimetizar o deslo

camento das aves no céu ou nas águas:

Chegam de manso, de manso,

finos pescoços esticam,

deslizando, deslizando, ferem o espaço com o bico,

deslizando

na superfície de vidro.

8

Sidônio Muralha, em "Alegria", emprega outro tipo de registro,

próximo da oralidade, graças aos versos de, no máximo, cinco sílabas,

às rimas e

ao

uso do diminutivo:

o

patinho

amarelo

saiu do ovo

de manhã cedinho.

9

Sérgio Capparelli, valendo-se das imagens sonoras e visuais suscita

das pelo mesmo ser, enfatiza o lado lúdico, à moda de Quintana, equi-

A patota

do pato

quis fazer

de pato

o ganso.

o

ganso

que era manco

mas pateta

não era

deu no pé

de bicicleta.

1

Os trechos citados são expressivos da variedade e riqueza que pode

alcançar a exploração de

um

único motivo, quando são mestres da

poesia que o manejam. Mas os poetas brasileiros sabem igualmente

lidar com temas mais abstratos, traduzindo-os por intermédio de re

cursos visuais, de modo a facultar o entendimento pelo leitor. Hen-

riqueta Lisboa, em O Tempo é um Fio", aborda questão de teor filo

sófico, valendo-se da imagem da teia e do tecido para aconselhar o lei

tor a tirar o melhor proveito da existência:

o tempo é um fio

Tecei Tecei

Rendas de bilro

com gentileza.

 

136

Com mais empenho,

franças espessas.

Malhas e redes

Conto e Por que

ler

a

Literatura nfantil

IlI'asileir 131

mostrarem adequados à memorização e à repetição, imprimindo-se

nas lembranças agradáveis do leitor.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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com mais astúcia.

Cecília Meireles, por sua

vez,

refere-se à efemeridade das coisas, em

decorrência da mudança permanente dos seres. Mas traduz a idéia por

meio de uma imagem, o vestido de Laura, cujo tecido, bordado de flo

res, aves e estrelas, se esvairá a nossos olhos, se não formos depressa .

Como tudo que é passageiro, o vestido, embora todo bordado e flo

rido ,12

acaba-se rapidamente.

De

mais difícil abordagem, em poemas para crianças, é o tema da

morte, ao qual Cecília Meireles dedica

Uma

Flor Quebrada . Quatro

estrofes tratam da flor amarela , resultante do trabalho penoso da

raiz, escrava e descabelada negrinha que trabalhava para a outra.

Bela, a flor é pedida em casamento pelo vento, que, porém, provoca o

fim da pretendida parceira: era

um

vento tão forte / que em vez de

amor trouxe morte / à airosa flor tão leve .

13

A imagem, sutil e delica

da, encobre a questão da perda e oportuniza

à

criança a reflexão sobre

a fragilidade da vida e os perigos que envolvem a existência.

Nesses poemas, o humor é substituído pela reflexão, e o ludismo

cede lugar à seriedade. Por sua

vez, os

recursos desencadeadores do

humor e da comi cidade não decorrem apenas da ênfase conferida ao

ângulo engraçado das personagens, de que são exemplos os patos cita

dos antes. A labilidade da língua portuguesa oportuniza a incorpora

ção de inúmeros recursos sonoros, propícios à expressão que provoca

a graça, o riso

ou

a piada, além de

se

aproximarem da oralidade e

se

Uma das possibilidades de aproveitamento dos recursos sonoros

aparece no poema

As

Abelhas , de Vinicius de Moraes, em que o

autor

se

vale da repetição

das

vogais, alongando a sílaba, para lembrar

ao leitor os sons que deve repetir, favorecendo o efeito cômico.

14

A

reiteração, por sete vezes, da mesma vogal sugere que o texto deva ser

lido coletivamente, como agem, da sua parte, as próprias abelhas.

Essas como que

se

manifestam na estrofe seguinte, quando a sonori

dade peculiar produzida por elas determina a escolha das palavras,

começadas pela consoante fricativa dental sonora

z.

Cecília Meireles explora outro tipo de recurso sonoro peculiar à

poesia: a aliteração, vale dizer, a repetição de fonemas sobretudo no

início dos vocábulos. Procedimento difundido, no Brasil, desde os

tempos da escola simbolista, no final do século XIX, a aliteração veio

a ser encampada pela poesia para crianças. Em Colar de Carolina , é

a repetição da consoante oclusiva velar surda

k

presente em quase

todas

as

palavras dos versos, que sustenta a figura de estilo, como se

verifica em versos como: o colar de Carolina, / colore o colo de cal, /

torna corada a menina .

5

Moda da Menina Trombuda cede a vez à consoante oclusiva bila

bial sonora

m

que aparece nos substantivos, adjetivos e verbos: É a

moda / da menina muda / que muda / de modos / e já não é trombu-

d

16 C ' . d l' 'b' l'd

.

orno a autora recorre a nma, os

versos

up lcam

as pOSSl

1 1 a-

des sonoras; mas não

se

confundem com a música - como ocorre nos

poemas de Vinicius de Moraes - porque os vocábulos, ainda que sejam

Como e Por que ler

de apenas duas sílabas, empregam, na sílaba átona,

um

fonema duro, a

consoante oclusiva dental sonora

d

que dificulta a dicção e a entonação.

a

Literatura

Infantil rasileira

como o dia

- de cristal.

20

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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A mescla de sonoridade e musicalidade aparece em outros dois poe

mas de Cecília Meireles, A Chácara do Chico Bolacha e Procissão.

de Pelúcia .

No

primeiro, a aliteração deve-se à adoção da fricativa

palatal surda

x

que aparece

no

início, no meio e

no

final das palavras:

Dizem que a chácara do Chico / só tem mesmo chuchu / e

um

ca

chorrinho coxo / que

se

chama Caxambu. 17

Em

Procissão de Pelú

cia , a aliteração depende do aproveitamento de duas consoantes em

constante oposição: de

um

lado, a oclusiva bilabial surda

p;

de outro, a

fricativa alveolar surda s. A oclusiva, produto do fechamento dos lábios,

supõe, por natureza, a dificuldade de dicção, enquanto que a fricativa,

por ser sibilante, facilita a passagem do

ar. Da

oscilação, emerge a musi

calidade dos versos, que, do ponto de vista fônico, reproduzem o cicio

e a solenidade da procissão descrita pelas estrofes: Há

uma

procissão /

que passa / que passa na praça / só com preces de pelúcia ..

18

Quando

o jogo sonoro é travado entre

as

consoantes oclusivas, o

texto incorpora características do trava-língua, o gênero que

se

define

pela habilidade de dizer, com clareza e rapidez, versos ou frases com

grande concentração de sílabas difíceis de pronunciar, ou

de sílabas

formadas com

os

mesmos sons, mas em ordem diferente

19 Hen-

riqueta Lisboa, em Caixinha de Música , vale-se do recurso na pri

meira estrofe do texto:

Pipa pinga

pinto pia

Chuva clara

Sérgio Capparelli emprega a mesma sugestão para extrair dela todas

as

potencialidades fônicas,

em

Pintando o Sete :

Um

pinguço pega o pito

e pita debaixo da pita.

A pita, com muita pinta,

pinta uma dúzia de pintos,

com pingos pretos de tinta.

- Pita pinto pinga pita

pia pintos pingos pingam

pia pia pinto pinto pinto

pinga pito pinto pinga

pingo pinga pin ta pia.

21

Em

O

Barbeiro e o Babeiro , o autor explora

os

recursos sonoros

da consoante bilabial sonora

b

somando-os

às

possibilidades cômicas

resultantes da confusão do sentido das palavras que utiliza,

por

exem

plo, n a primeira estrofe:

o

barbeiro comprou um babeiro

para a baba de seu filho:

- Baba agora, bebê babão,

de babeiro, babar é bom.

 

Nos poemas citados, de autoria de Cecília Meireles, Henriqueta

Lisboa

ou

Sérgio Capparelli, verifica-se a exuberância com que as po-

140 Como e Por que l r

tencialidades acústicas da língua portuguesa são trabalhadas. Levam

nas a seus limites, a ponto de poderem prescindir da rima, outro dos

a literatura Infantil BmsileÍl'a

Uma pequena manivela para pegar no sono.

Um fazedor de amanhecer

para usamento de poetas

141

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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recursos próprios à poesia e associados à sonoridade. E, em alguns

casos, aproximam-se do non

sense

abrindo novos espaços à imaginação.

Eis outra faceta da poesia destinada

às

crianças: o autor pode esten

der ao máximo a criatividade,

propondo

situações fantásticas

ou

inve

rossímeis, aceitáveis, porém, graças ao intuito de divertir o leitor.

Paradigmático é o conhecido poema de Vinicius de Moraes, A Casa ,

que encanta ao lidar com a descrição do lugar que não tinha teto/não

tinha nada . 23

Ao potencializar a fantasia

na

direção do absurdo, o

poema

torna

se surrealista e mágico, como nos versos de Sérgio Capparelli, que con

cebe a seguinte situação

em

Guaraná

com

Canudinho :

Uma vaca entrou num bar

E pediu um guaraná.

24

Manoel de Barros, em O Fazedor de Amanhecer , atribui a um

inventor a capacidade de criar engenhocas estranhas

e

como ele diz,

imprestáveis; dentre elas, salienta-se a que utiliza o poeta, justificando

o teor surrealista dos versos até aqui citados e adotados

também por

aquele autor:

Sou leso em tratagens com máquinas.

Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.

Em toda a minha vida só engenhei 3 máquinas

Como sejam:

E um platinado

de

mandioca para o fordeco de meu irmão.

25

No entanto, os poetas que escrevem para crianças não precisam

necessariamente fazer o amanhecer; eles podem também se apropriar

das formas populares, conhecidas do público, ajudando a conservá-las

e

ao mesmo tempo, inovando-as. O recurso ao trava-língua lembra

como é possível incorporar uma forma tradicional e adicionar-lhe con

teúdo, significado ou procedimentos originais. O mesmo se passa com

as adivinhas, como pratica José Paulo Paes,

em

é com ré (1993), e

as parlendas, recicladas por escritores como Elias José, em História

Embrulhada

Atirei o pau

no gato-tô

mas acertei no pé

do pato-tôo

Dona Chica-ca

admirou-se-se

do berrô, do berrô

que o pato deu.

Ouvindo de Dona Chica

a risada-da

o pato ficou pirado-dô

e atacou Dona Chica

de bicada-da.

26

142 Como e 1'01' que ler

Os leitores brasileiros de todas as idades conhecem a canção infan

til Atirei

um

Pau no Gato , de.,fí:Í.odo que aceitam facilmente os ver

a Literatura Infantil I Irasileira

143

Notas

1 Paes, José Paulo. Poemas

para Brincai:

São Paulo: Ática, 1990.

2

Lisboa, Henriqueta. O

Menino

Poeta Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. p. 7.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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sos iniciais do poema de Elias José. A partir desse ponto,

ele

propõe

variações, aceitáveis, primeiramente, porque não altera o pendor do

texto original, com o jogo de repetições da última sílaba, depois, por

que não perde de vista a comicidade resultante da confusão gerada e

antecipada pelo título do texto.

Roda , de José Paulo Paes, por sua vez, l11corpora Ciranda

Cirandinha à estrofes, obtendo resultado inovador, fruto da retoma

da dos vocábulos com sentido novo e do desenvolvimento da pers

pectiva surrealista, já mencionada a propósito de poemas antes exami

nados. Assim, a ciranda se desdobra no ciro que não anda e a

. I . d fu I

eIa-vo ta torna-se tanto a meIa que po e rar, quanto a vo ta

sem meia ou sapato dos últimos versos.

27

Ciranda Cirandinha é provavelmente a cantiga de roda mais po

pular do Brasil, tendo possibilitado variações e incorporações que

se

estendem da música erudita

à

popular, da literatura aos meios de

comunicação de massa, do brinquedo à reflexão filosófica. José Paulo

Paes, nas estrofes, respeita a tradição e tira partido da ambigüidade das

palavras, da possibilidade de desmembrá-las, criando novas significa

ções, da sonoridade das rimas provocadas pelas palavras paroxítonas e

da inventividade da situação surrealista em que coloca os praticantes

da ciranda em versos.

Nada melhor que a mescla de procedimentos utilizada por José

Paulo Paes para concluir o panorama de alternativas que se

abrem a todos que quiserem se expressar

em

versos para a infân

cia brasileira.

Moraes, Vinicius de. O Poeta

Aprendiz

São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 48.

4

Lisboa, Henriqueta.

Op

ito

p.

13.

5 Meireles, Cecília.

Ou

Isto ou

Aquilo

3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

p.22.

6 Barros, Manoel de. O

Fazedor

de Amanhem: Rio de Janeiro: Salamandra, 2001.

s.

p.

7

Quinrana, Mário.

de Pilão 5. ed. Porto Alegre: L PM, 1980. p. 7.

8

Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 11.

9

Muralha, Sidónio.

A Televisão da Bicharada

São Paulo: Global Editora,

12

ed., 2003.

10

Capparelli, Sérgio.

Boi da Cara Preta

Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 10.

11 Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 35.

12

Meireles, Cecília.

Op

ito p. 14.

3Id p. 79.

14 Cf. Moraes, Vinicius de. A Arca de Noé Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

15 Meireles, Cecília. Op ito p. 11.

6Id p. 12.

7 Id p.

21.

18 d p. 65.

9

Diciondrio

Houaiss

de

Língua

Portuguesa

20

Lisboa, Henriqueta. Op ito p. 6.

21

Capparelli, Sérgio.

Op

ito p. 7.

22

Id p.

18.

23 Moraes, Vinicius de. Op ito p. 219.

24 Capparelli, Sérgio. Op ito p. 28.

25 Barros, Manoel de. Op ito S. p.

26 José, Elias.

Lua

no Brejo Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. p. 11.

27

Paes, José Paulo.

Um

Passarinho

me

Contou

5. ed. São Paulo: Ática, 1998.

a Uteratura Infantil rasileira

145

tas em princípio para o palco, isto é que não resultem do ajuste de

uma

trama conhecida

às

disponibilidades dos atores e

às

condições do

fazer dramático.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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í

YES NÓS TEMOS TE TRO

F

zer teatro para crianças pode ser fácil

e

ao mesmo tempo, difícil.

É

comum aos grupos de teatreiros apresentarem no palco narrativas

conhecidas do público, por pertencerem à tradição da literatura infan

til, como contos de fadas,

ou ao

folclore nacional. A história do maca

co que roubava bananas no quintal de uma velha e que fica preso

numa

boneca de piche, por exemplo, já foi encenada várias

vezes

algu

mas delas sendo identificada a autoria, como na versão assinada por

Ivo Bender, outras resultando do t rabalho da equipe responsável pela

montagem do texto.

Boa parte das histórias endereçadas à infância pode ser adaptada

para o tablado, pois

se

baseia

na

ação de

um

herói imediatamente reco

nhecível. Assim, os encenadores dispõem de um acervo duradouro de

temas e enredos, garant indo a contínua produção teatral. A facilidade

tem conseqüências: é relativamente pequeno o número de obras escri-

Resulta da peculiaridade do teatro dirigido a crianças uma situação

muito própria: enquanto atividade, ele se mantém vivo e ininterrupto;

que o público

é

na

maioria dos casos, local, porque

as

representa

ções de textos destinados à infância raramente migram de uma cidade

para outra, muito menos

se

deslocam para regiões distintas daquelas

onde foram realizados os espetáculos dramáticos. Esses

se

caracterizam

pela individualidade

e

de certo modo, pela irrepetibilidade, podendo

ser considerados únicos, embora múltiplos, porque aparecem na maio

ria dos centros urbanos brasileiros.

Por outro lado, se entendemos o teatro desde a perspectiva dos

textos originais criados por artistas brasileiros, deparamo-nos

com

uma

produção não

muito

numerosa.

Não por eles

não terem sido

escritos, mas porque nem todos chegam a ser publicados. Os que

passaram pela imprensa e transformaram-se em livros, porém, bas

tam para garantir

que

dispomos de uma tradição de textos dramá

ticos dirigidos ao público mirim, o qual, graças à freqüência aos

espetáculos, vai-se constituindo espectador e participante da ação

teatral.

Não

seria exagerado afirmar que, se a narrativa para crianças con

tou

com

um

Monteiro Lobato para dar início a

uma

produção inde

pendente destinada à infância brasileira, o gênero dramático dispôs de

artista equivalente - Maria Clara Machado. Os dois autores, contudo,

não atuaram na mesma época, pois, no Brasil, o Modernismo chegou

tarde

ao

teatro.

146

Como e Por que ler

o fato histórico é consensual: em 1922, com a Semana de Arte

Moderna, o país afinava-se às tendências de vanguarda que experi

mentava a arte na Europa e em várias partes da América. Monteiro

a Uteratura Infantil Ilrasilei, a

ças

e jovens tenha-se desenvolvido apenas a partir da década seguinte,

quando Maria Clara Machado (1921-1981) encenou suas primeiras

p r o d u ç õ e s ~

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Lobato não participou do movimento modernista, nem aceitou

al-

guns de seus resultados, como a pintura expressionista de Anita Mal-

\

fatti. Porém, mesmo na

c o n t r n i ~ o

do grupo paulista, Lobato adotou

técnicas, estratégias e pressupostos da modernidade, de que é sintoma

o estilo coloquial dos textos, a apropriação de registros da indústria

cultural, a discussão de questões sociais e políticas em obras de ficção.

Foi igualmente um homem de ação, industrial e batalhador pela

modernização das relações entre escritor e público, bem como entre

escritor e editor. Assim, podemos alinhá-lo ao Modernismo, aceitan

do que a proposta é controversa e que isso não significa transformá-lo

em parceiro ou partidário de intelectuais e poetas como Mário de

Andrade e Oswald de Andrade.

O fato é que, na década de 20, quando começa a redigir os primei

ros livros destinados aos pequenos leitores, inaugurando a série com

Menina do Narizinho

Arrebitado

Monteiro Lobato está acompa

nhando o processo de modernização por que passa a literatura brasi

leira na época.

O teatro recebeu pouca atenção durante a Semana de Arte Mo

derna, ao contrário da poesia, música e pintura, as artes que mais atraí

ram o interesse de criadores e público. Oswald de Andrade é autor de

algumas obras destinadas à encenação, como O Rei da Vela (1937), mas

é Nelson Rodrigues que, entre

1943

e

1944,

revoluciona a cena brasi

leira, graças

a

Vestido de

Noiva drama dirigido por Zbigniew Ziem

binski. Não espanta, pois, que o teatro cujo público previsível são crian-

Ela é autora de um grande número de peças, tendo produzido a pri

meira, O Rapto das Cebolinhas em 1954. A consagração acontece logo

em seguida, decorrente da apresentação, em 1955, de

Pluft o

Fantas-

minha. Também suas, e datadas da década de

1950, são Bruxinha

que Era

Boa

O Cavalinho

zul

e

Menina e o Vento.

ação de Pluft o

Fantasminha

concentra-se

num

único cenário, a

casa mal-assombrada habitada pelo herói, a mãe, uma viúva saudosa do

marido, e

um

tio, Gerúndio, sempre com sono e que dorme no baú

ambicionado pelo vilão. intriga acompanha, pois, as noções básicas

do teatro: há unidade de espaço, de tempo, pois os acontecimentos

limitam-se a uma noite, e de ação. Durante

esse

período, a menina

Maribel é seqüestrada pelo pirata Perna de Pau, que deseja encontrar o

tesouro escondido na

casa

pertencente ao avô da garota, o Capitão

Bonança. Três marinheiros amigos de Maribel tentam ajudá-la, mas

quem a salva dos perigos e resolve o problema é a criatura indicada no

título.

Pluft é um sujeito bastante peculiar: não é humano, pois nasceu

fantasma, mas

se

comporta como pessoa; pertencente a uma espécie

conhecida por assustar e assombrar, tem medo de gente ; ocupando

o papel de protagonista, mostra-se seguidamente tímido e inseguro.

É

induzido pela mãe a

se

corrigir e a mudar; mas somente a necessidade

de enfrentar o perigo, a aliança com a menina, representante do grupo

humano, e o sentimento de que tem condições de triunfar garantem

sua afirmação pessoal e o final feliz

Como e 1 01

que

l r

Pluft

O

Fantasminha

revela, pois, muitos dos medos infantis e

os

modos de vencê-los. A superação das lacunas pessoais depende da ini

ciativa do herói, que, s i m b o l i c a m e n t ~ \ passa por um ritual de inicia

a

Uteratura Infantil Brasileira

149

A comi cidade aparece de várias maneiras: o sono de Gerúndio

constitui uma de suas manifestações, complementadas pelas reações

da mãe dePluft cujas conversas telefônicas com a prima Bolha

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ção, conforme o qual o ser medroso e ~ r e n t e de proteção transforma

se numa figura confiante e amistosa. Não por outra razão a mãe de

Pluft,

ao

incentivá-lo a participar da ação de salvamento de Maribel,

insiste para que o filho se revele

um

fantasma de verdade , de quem

o pai

se

orgulharia.

A intriga remonta, pois, a um tema de origem mítica, que, na

passagem da religião para a literatura e a arte, fecundaram a poesia,

o drama e as histórias populares, de que são exemplos os contos de

fadas. Maria Clara Machado,

ao

compor a narrativa básica de

Pluft

o antasminha retoma, pois, às origens do teatro e da literatura

infantil, coerente com os gêneros a que filia a obra. Ao mesmo

tempo, confere-lhe teor próprio e original, não apenas por combi

ná-los num único texto, mas por avizinhá-los da criança contempo

rânea. A aproximação decorre da apropriação dos elementos pecu

liares ao mundo da magia, representado pelo pequeno fantasma

protagonista da intriga e, ao mesmo tempo, pertencente ao univer

so imaginário da criança moderna, que transfere para seres sobrena

turais como ele

os

temores e a vontade de suplantar receios que a

intimidam.

A peça, trabalhando com questões pertinentes ao universo infantil,

não constitui, porém, manual de psicologia ou de tratamento de defi

ciências individuais. Preocupa-se em primeiro plano com o andamen

to e a eficácia da ação, traduzidos por meio de

um

conflito e os modos

de superação, marcados sobretudo pelo apelo ao humor e ao riso.

D'Água atrasam o desenvolvimento da ação e aumentam a

n s i e d ~

de e o suspense do público. Os sustos que experimentam

as

diversas

personagens, seja

os

do herói, seja

os

dos três marinheiros que ten

tam auxiliar Maribel, seja os do adversário Perna de Pau, completam

a idéia de tornar a peça atraente para o auditório, além de colaborar

com o propósito de dominar o medo pela exposição de seu lado

cômico. Importam também para motivar o riso e a diversão algumas

alusões que podem não ser compreendidas por todos, mas que per

manecem nas

falas

da personagens esperando quem

as

entenda; é o

caso da menção ao pai de Pluft, que fora o fantasma da ópera e que

se orgulharia do rebento, se tivesse tido a oportunidade de ver o filho

em ação. Fantasmas supostamente não morrem, e também

essa

situação absurda é razão para que a intriga não perca em graça e

divertimento.

Maria Clara Machado estabeleceu importantes paradigmas para o

fortalecimento de uma dramaturgia nacional dirigida à infância brasi

leira. Os enredos privilegiam personagens crianças no papel de prota

gonistas e valorizam a trama, baseada

num

conflito solucionado por

efeito do engenho das personagens, que, graças às iniciativas tomadas,

amadurecem e contribuem para a sociedade a que pertencem. A noção

de espetáculo que adotou apóia-se no desdobramento da ação, conforr-

me a lição do gênero,

mas

não abre mão do humor, ponto de partida

para o envolvimento do espectador, que se delícia com o non sense de

algumas figuras e compartilha as soluções propostas.

15

Como e Por que

ter

Os assuntos propostos pela dramaturga variaram bastante, destacan

do-se as tramas inventadas por ela como é o caso de Plufi sua criatura

mais conhecida. Valeu-se também de personagens oriundos da tradição

a

Uteratura

Infantil

I' rasileira

A intriga, calcada na trajetória dos músicos de Bremen, destaca a

importância da solidariedade, da amizade e da resistência. Os animais

que protagonizam o enredo, fadados à destruição, unem-se para, pri

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popular, como bruxas e dragões, e adaptou para a cena histórias de fadas

de extração européia. Tal como Monteiro Lobato

fez

no âmbito da

fic-

ção, mostrou que todos

os

temas podem ser encenados e apreciados pelo

público infantil, desde que não se perca a perspectiva da audiência,

amante da diversão e capaz de identificar-se com as figuras apresentadas.

Os sucessores de Maria Clara Machado não perderam de vista as

propostas da dramaturga; ao mesmo tempo, trataram de integrar a elas

sua contribuição pessoal. Exemplo disso é o espetáculo provavelmen

te mais popular da década de 1970:

Os

Saltimbancos de Chico Buarque

de Holanda.

O músico e letrista brasileiro era já bastante conhecido, quando, em

1977, traduziu o texto de Sérgio Bardotti, baseado

numa

das histórias

dos Irmãos Grimm, a dos músicos de Bremen. O fato de que a auto

ria do original pertence a um escritor italiano pode colocar em dúvida

a relação de

Os

Saltimbancos com a literatura dramática nacional.

Contudo, Bardotti,

ele

mesmo, apoiou-se numa narrativa que remon

ta à coletânea dos Grimm, que, da sua parte, recolheram-na da tradi

ção popular do centro da Europa.

Os

Saltimbancos

sintetiza,

na

sua

composição, a máxima de Lavoisier, citada no começo desta obra,

colocando sob suspeita a noção de originalidade e de propriedade. Se

Chico Buarque de Holanda não inventou a obra,

ele

a incorporou ao

cenário brasileiro, respondendo a questões experimentadas nos anos

70, e suscitando uma tradição e

um

impacto que perduraram por

muito tempo.

meiramente, manterem-se vivos, depois, para não cederem

ao

poder,

enfim, para derrubá-lo. Encenado pela primeira vez à época em que o

regime militar vigorava e ainda vitimava a população brasileira, repre

sentou a expressão da discordância e da necessidade de união, para

combater a violência e a opressão, matéria de uma das canções inter

pretadas pelo grupo central de personagens.

Os Saltimbancos não perdeu a atualidade com o passar do tempo,

haja vista

as

sucessivas encenações até os dias de hoje e a permanência

da popularidade da maioria das canções. Enquanto teatro, explora

possibilidades que ajudaram a dramaturgia brasileira endereçada a

crianças a crescer e consolidar-se. Patenteia, primeiramente, a valida

de de se lidar com temas conhecidos pelos espectadores, que, assim,

acompanham a história com mais facilidade. Insere a música ao espe

táculo, valorizando recursos cênicos originários de outras expressões

artísticas.

Por último, frise-se que introduz figuras de animais na condição de

personagens principais, agindo e manifestando-se como seres h u m ~

nos. O processo, usual na ficção e na poesia, como se explanou antes,

apresenta maior dificuldade quando transposto para o palco, porque

supõe dos atores a ambigüidade de parecerem bichos e expressarem-se

como homens. Plufi Fantasminha de Maria Clara Machado, ante

cipava essa dificuldade, pois o protagonista não pertence à raça huma

na, mas não pode se afastar d ~ m i s dela, para ser entendido pela au

diência e provocar a identificação entre a personagem e o público.

  52

Como

e

Por

que

le r

Os

Saltimbancos lida com questão similar e prova que a dramaturgia

endereçada

à

infância precisa supor tanto textos divertidos e verossímeis,

quanto diretores, encenadores e atores capazes de lidar com a duplicida

a

literatura

Infantil B rasileira

53

uma mulher, o segundo, a luta entre uma mãe e o seqüestrador da filha,

o terceiro, o permanente conflito entre o cachorro, o gato e o rato, o

último, o combate entre Lampião e os demônios.

As

pelejas,

por

sua

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de própria do gênero, que,

se

começa com

um

texto, revela eficácia por

intermédio do espetáculo público, e não por meio da leitura.

A peça de Chico Buarque de Holanda aparece no cruzamento de

duas tendências que, doravante, trilham caminhos próprios.

Uma

delas

caracteriza-se pela ênfase na temática contestadora, de que é exemplo

As Cartas não Mentem Jamais , de Ana Maria Machado, publicada

no volume Hoje Tem Espetáculo de 1984. A outra apóia a construção

dos enredos na exploração de histórias populares, pertencentes

ao

fabu

lário nacional, como

faz

Ivo Bender

na

trilogia O Macaco

e a Velha

de

1978, e Raimundo Matos Leão,

em

Quem

Conta um

Conto umenta

um Ponto

de 2003.

O t ítulo desse último trabalho, apropriando-se de um dito popular,

sugere que a base

da

ação são

as

histórias folclóricas, exibidas

à moda

das feiras populares, com o cantador tomando a palavra e declaman

do versos. Assim, embora

as

falas

sejam ditas e não entoadas, como

na

música, a poesia está presente, como

no

anúncio do locutor:

Sou cantador de muita prosa,

faço verso e

reverso.

Conto um conto, aumento um ponto.

l

Tal como nos exemplos anteriores, o espetáculo inclui boas doses de

humor, decorrentes da colagem de episódios que compõem a obra,

todos de extração popular. O primeiro narra a rixa entre

um

macaco e

vez, contêm importante peculiaridade:

os

que parecem mais fracos ven

cem os mais fortes, graças

à

astúcia ou

à

agilidade, permitindo que o

espectador tome o part ido daqueles que, de certo modo, representam a

situação

da

criança, seguidamente o ser mais frágil na cadeia do poder.

No

meio do caminho, sem

se

preocupar, de

um

lado, com o tema,

nem, de outro, buscar apoio na tradição popular, está Sylvia Orthof,

que depende sobretudo da capacidade de invenção, como exemplifica

Eu Chova tu Chaves

ele

Chove um

de seus primeiros textos para tea

tro, premiado

em 1976 em

concurso realizado

no

Paraná. Seu propó

sito desafiador patenteia-se desde o título, que conjuga o verbo chover

em

primeira, segunda e terceira pessoa, quando, na gramática, é con

siderado forma impessoal.

Por sua vez, lidando com seres do mundo

aquático, a maioria deles inanimados, como o Chuveiro

ou

a

Nuvem

a autora desafia

os

limites

da

imaginação.

Não perde, contudo, o

fio

da meada, pois une

as

situações absurdas

decorrentes da

~ t u r e z

das personagens

(a

tromba-d'água que aparece

sob a forma do Príncipe Elefântico) a uma narrativa dotada de princí

pio, meio e fim. Tal como em

Pluft o Fantasminha

de Maria Clara

Machado, Pingo, o protagonista, é encarregado de uma tarefa, cujo

cumprimento provoca transformações no

mundo

representado. Tal

como nas histórias de Chico Buarque de Holanda e Raimundo Matos

Leão, a personagem mais frágil deve suplantar obstáculos e afirmar-se

perante

os

demais.

Como

parece ser próprio do teatro destinado

à

infân

cia, haja vista o conjunto examinado de obras, o ludismo e o

humor

154

Como

e

Por que lei

constituem fatores fundamentais para conquistar o interesse do público,

freqüentemente levado a participar das cenas com que a ação conclui.

Na

peça de Sylvia Orthof, o humor

s s º ç i a ~ s e

ao absurdo e sobretu

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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do,

às

metamorfoses experimentadas pelos figurantes, produzidas mui

tas vezes pelo processo de associação de idéias. Por isso a mencionada

tromba-d água pode

se

transformar no Elefante, e o Chuveiro dar

ordens ao Pingo, seu subalterno e herói da trama. O non

sense

por sua

vez não rompe com o universo infantil, pois, partindo dos elementos

do cotidiano, recorre ao imaginário na forma como atua a criança, capaz

de conferir vida a seres inanimados, quando deseja brincar e

se

divertir.

De Maria Clara Machado a Sylvia Orthof, a dramaturgia infantil

construiu

uma

trajetória e mostrou a encenadores, atores e diretores os

caminhos possíveis para encantar, e ao mesmo tempo formar, o públi

co constituído de crianças.

Uma

trama, marcada por problema e solu

ção, constitui requisito indispensável; entre

os

dois pontos, cumpre

incluir personagens que suscitem a identificação e o apoio do público,

provoquem o riso e envolvam os espectadores.

Os autores vocacionados para o teatro souberam realizar a tarefa e

assim, conferiram consistência à tradição dramática destinada à infân

cia brasileira.

otas

Leão Raimundo Matos.

Q}lem

Conta

um Conto umenta um

Ponto

2

ed,

São

Paulo:

Saraiva, 2003,

4

o

~ a n d o

lançou

Flicts

em 1969, Ziraldo talvez não previsse a

revolução que provocava na ilustração de livros infantis brasileiros.

Naquela obra, as imagens, não figurativas, não correspondem a um

ornamento do texto, complementando as informações escritas; pelo

contrário, as cores é que falam, compet indo à expressão verbal esclare

.cer o assunto e explicar o conflito, vivenciado pelo herói, ele mesmo

um

pigmento que não encontra lugar no universo dos tons pictóricos.

Flicts

não seria

um

livro sem

as

imagens que o compõem, efeito da

inspiração artística que levou Ziraldo a produzi-lo. Esse, porém, não

restringiu a criatividade apenas à obra em questão. O

Menino

Malu-

quinho

de 1980, acrescenta mais um sucesso àcarreira do aut or e pro

põe outra modalidade de formulação revolucionária.

Entendido da perspectiva da ilustração, O Menino

Maluquinho

não

parece tão inovador, pois Ziraldo emprega seu traço característico em

  56

Como

e

Por

que

ler

figura desenhada em preto, sobre o fundo branco onde coloca o texto.

O livro, porém, não conta

uma

história, embora

se

apóie sobre a tra

jetória de

uma

personagem que

se

tornou paradigmática e bastante

a

l i teratura Infantil Brasileira

57

um

e outro banho, mostram-se cenas internas - um dormitório,

uma

sala de jantar,

um

vestíbulo - e externas, como a rua ou a praia. O mo

vimento depehde, de um lado, da mudança das páginas, pois os am

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popular, haja vista o êxito do livro, das histórias em quadrinho prota

gonizadas pelo garoto e enfim, do filme dedicado a ele.

O

Menino

Maluquinho constrói-se, pois, a partir do ângulo da ima

gem figurativa do herói, estando cada página dedicada a

um

recorte de

seu cotidiano. A proposta, hoje aparentemente óbvia, dada a grande

difusão e aceitação da obra, era inusitada quando do lançamento do

livro, colocando seu criador na vanguarda de nossa melhor literatura

infantil. Ziraldo não se limitou a publicar

os

títulos até agora menciona

dos, contribuindo ainda com obras do porte de

O Planeta Lilás 1979),

Bela Borboleta

1980)

ou

O Bichinho

da Maçã

1982), atuando como

escritor e ilustrador, sempre de modo inventivo e bem-humorado.

Não apenas Ziraldo conferiu status artístico à ilustração, entenden

do-a como

uma

linguagem auto-suficiente, ainda que vinculada

ao

universo da literatura infantil, por aparecer em materiais impressos,

como livros, e não em pinturas

ou

outra categoria de arte visual. Com

efeito, a ilustração, nesses casos, substitui a linguagem verbal, o texto,

mas não

os

elementos próprios literatura, como a narrativa, a opção

por personagens humanos

ou

humanizados, a adoção de

um

ponto de

vista.

Ida

e Volta

1976), de Juarez Machado, exemplifica

as

proprie

dades da ilustração em livros para crianças, constituindo-se ao mesmo

tempo em obra modelar do gênero.

O livro é formado por 32 páginas e capas, estando representada

uma

figura diferente em cada

uma

delas. Cada quadro apresenta

um

cenário estático, sendo o primeiro e o último deles um banheiro; entre

bientes são substituídos, para sugerir o deslocamento no espaço.

De

outro, decorre

na

inserção, a cada página, de marcas de pés, descalços,

depois calçados

e

de novo, descalços.

Nenhuma

palavra explica o texto, embora apareça o anúncio de

um

circo, por exemplo. A narrativa, porém, não fica excluída, porque

as

marcas dos pés vão contando a história que se segue a cada página,

além de introduzirem um sujeito humano, responsável pelos passos

que deixam sinais visíveis ao leitor. Este pode traduzir o enredo em

palavras, completando com a linguagem verbal o que

as

imagens suge

riram. Estas falam, mas a expressão é quase que unicamente visual. O

que impede que o produto seja inteiramente visual é a necessidade de

adotar

um

título -

Ida e Volta -

sugestivo, ele mesmo, do assunto da

obra e de que nenhum livro pode prescindir.

Eis por que Ida

e Volta

é criação inovadora e sugestiva, comprome

tida, porém, com o gênero de que

faz

parte. Proporciona caminhos

possíveis não apenas para o leitor ainda não alfabetizado, pois a busca

do entendimento da ação por intermédio das figuras pictóricas envol

ve

todo e qualquer interessado na obra. E oferece alternativas também

para

os

autores que acreditam que a comunicação se engrandece,

quando recorre

à

possibilidades da imagem. Angela Lago é

uma

das

autoras mais fecundas no que diz respeito ao acatamento da proposta

de Juarez Machado.

Os primeiros livros,

Sangue de Barata

1980) e Uni

Duni e Tê

1982), introduzem a autora, responsável pela narrativa e pela ilustra-

153

Como

e

Por que

Ler

ção, Em ambos, a ilustração está, como

é

usual em livros para crian

ças

a serviço do texto, que, da sua parte, paga

uma

siívida

à

tradição

popular, sobretudo

às

frases feitas e

às

parlendas, éomo exemplificam

a

l i teratura Infantil

I'lt'asileira 159

conteúdo importado de sua existência e a novidade decorrente da

fic-

ção narrativa.

Como

a experiência extraliterária provém da brincadei

ra o elemento lúdico migra para a obra lida, que

se

apresenta enquan

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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os títulos das obras. O segundo livro, confirmando o nome, utiliza, na

página inicial, o quarteto de versos bastante freqüente nas brincadei

ras

de crianças:

Uni duni e tê

salamê mingüê

um sorvete colorê

uni duni e tê.

1

As

parlendas aparecem em outros momentos, como em:

Dizei, senhora viúva,

com quem quereis se casar.

Se é

com o filho do conde,

ou

se

é com o senhor general.

A obra, contudo,

se

soma a

essas

cantigas,

os

versos de

O

Cravo e

a Rosa , D. Xica , Samba Lelê , não constitui uma coletânea da tra

dição popular: é produto da criatividade da escritora, que amarra o

material de extração folclórico a uma seqüência narrativa de desenvol

vimento lógico e fundamentado nos princípios da intriga policial, com

início, meio e fim. A peculiaridade de trama decorre, assim, da cir

cunstância de o livro estabelecer o diálogo entre

um

conhecimento

adquirido fora da literatura e uma experiência nova, propiciada pela

história contada, facultando ao leitor vivenciar simultaneamente um

to jogo e divertimento.

Em Uni

uni

e

Tê o texto predomina sobre a ilustração, que, por

sua vez não pode ser julgada meramente decorativa. Os desenhos, a

bico-de-pena, tendem ao surrealismo, endossando e sublinhando o

non sense

que funda

as

letras das cantigas e parlendas, de modo que

interage de modo harmônico com a história.

utra Vez

de 1984,

que, contudo, revela a ruptura da autora com o discursivo da lingua

gem verbal.

Como Ida e

Volta

de Juarez Machado, a exclusividade conferida à

ilustração não afasta a obra do campo da literatura. A adoção de um

título, o modelo de diagramação, que aponta para a preferência pelo

livro enquanto produto destinado a divulgar a criação da escritora, a

opção pela seqüência narrativa reforça a noção de que a literatura in

fantil foi o gênero escolhido e aprovado por Angela Lago. Mas a ima

gem

se

sobrepõe à palavra a cada página de

utra

Vez.

A narração propõe, de certo modo,

uma

releitura do livro de Juarez

Machado, cujos títulos remetem, ambos, para a circularidade da ação.

Aliás,

utra

Vez enquanto título, pode significar também a confissão

de dívida para com a criação de Machado, já que indica indiretamen

te que volta àquela obra, a quem visita de novo.

As

semelhanças devem-se também à construção do enredo, pois

ambas

as

histórias encetam por um trajeto que conclui quando

as

per

sonagens

ou as

situações retornam

ao

começo. O leitor, acompanhan

do a seqüência com o virar das páginas, é convidado a voltar ao prin-

160

Como

e

Por que

ler

dpio, revendo as figuras e acrescentando outros sentidos

à

interpreta

ção inicial dos eventos.

Chiquita

Bacana

e

as Outras PequetitaJ; de 1986, retoma experiên

a

l i teratura

Infantil

Bt'asileira

161

resposta

às

descobertas da psicanálise, ciência que privilegiou

as

mani

festações do inconsciente, dentre essas especialmente o sonho. A lin

guagem do sonho, primariamente simbólica, encontrou terreno fértil

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cias narrativas e pictóricas alcançadas em Outra Vez mas, ao mesmo

tempo, libera Angela Lago da dívida para com os bons resultados

alcançados por Juarez Machado e reiterados naquele livro.

Chiquita

Bacana

constitui-se de dois movimentos diferentes, decorrente, o pri

meiro, do texto, e o segundo, das imagens.

O texto organiza-se em quintilhas rimadas, que narram, na perspec

tiva de uma primeira pessoa, o aparecimento das cinco pequetitas ,

comandadas por Chiquita e provenientes da Martinica. As visitantes

noturnas são surpreendidas pela narradora, que procura aprisioná-las;

pensa ter conseguido, mas acaba cedendo liberdade às invasoras, que

desaparecem

na

noite.

No

dia seguinte, o quarto onde elas haviam

aparecido está desarrumado, e os pais atribuem à desordem à menina

que conta a história.

As figuras, da sua parte, não replicam o texto, e sim relatam uma ação

paralela, pois expõem cenas do dormitório da narradora, vistas de cima,

como se um ente superior acompanhasse as reações da criança amedron

tada. A adoção dessa perspectiva torna a narrativa cinematográfica,

como se uma câmara aérea acompanhasse os atos das personagens.

A descrição acima não esgota os recursos pictográficos aproveitados

pela autora. Primeiramente, cabe ressaltar que

as

imagens, mais do que

em

Uni uni e

Tê incorporam componentes surrealistas, como

se

veri

na pintura de espanhol Salvador Dali ou do alemão M. C. Escher,

padrões geométricos desafiam a lógica e o racionalismo. O Sur

' '-CUh''' como se sabe, expandiu-se na pintura e na poesia enquan to

nas artes plásticas, que, assim, romperam com os limites da representa

ção e procuraram exteriorizar imagens produzidas pelo psiquismo

humano, de

modo

independente da coerência, verossimilhança ou

racionalidade.

O mundo dos sonhos aparece na narrativa de Angela Lago, traduzido,

de um lado, pelas visões oníricas sugeridas pelo estilo surrealista, de outro,

pela situação da personagem, amedrontada, que expõe temores por meio

das figuras que povoam seu imaginário e que, na sua concepção, apare

cem de modo inusitado à noite. O ângulo com que o tema é traduzido,

por sua

vez

não enfatiza o medo, e sim o humor, graças às rimas e ao pro

cesso de associação de palavras com que o texto é construído:

Uma noite, lua

cheia

Taquetaque sapateia

e Tiquetique saltita,

Chiquita saracoteia

e subtrai minha fita.

Mas enquanto

as

capetas

pipocavam em piruetas,

preparei a arapuca,

com chicletes e chupetas,

e biscoitos de araruta.

2

O temor expressado pela narradora é contrabalançado pela comici

dade, abrandando a atmosfera experimentada pela personagem. O

162

Como

e

Por que ler

humor

consti tui assim outro dos fatores de distanciamento do leitor

perante o texto complementando o artifício representado pela focali

zação da cena exibida de cima como se observou antes.

a

Literatura Infantil Brasileira

163

rado e o vendedor pobre seja por colocá-la num espaço caracterizado

pela agitação o movimento intenso e o risco permanente. A esquina é

igualmente significativa enquanto cenário da ação por traduzir a

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Um

último processo pode ser ainda mencionado relativo ao esta

belecimento de uma distância entre o que é exposto em

Chiquita

Bacana e as

Outras

Pequetitas

e a atitude do leitor.

Como

se constata

nas páginas iniciais o texto formado pelas quintilhas aparece dentro

do desenho de um livro; depois são folhas soltas e espalhadas pelas

peças da casa que reproduzem estrofes. Assim a linguagem verbal está

integrada a

um

objeto visual que compõe o cenário transformando-se

em parte da ilustração. Além disso

ele

sugere que há por trás das pági

nas reproduzidas contendo

os

versos um enunciador sobrepondo-se

à personagem narradora.

O efeito duplica a narração pois à personagem que conta seus

medos e o confronto com

as

invasoras comandadas po r Chiquita Ba

cana soma-se

um

sujeito que lê o livro materializado pelas ilustrações.

Resulta um paulatino descolamento do leitor em relação à narradora

original facultando que aquele usufrua livremente as cenas cômicas

proporcionadas pela obra.

Angela Lago exercita a inventividade ainda em outro livro Cena

de

Rua,

de 1994. Essa é uma obra dominada exclusivamente pela imagem

que narra o cotidiano de

um

menino de rua vendedor de frutas em

esquina movimentada. O resumo sugere de imediato a passagem para

um tema de orientação

social .

pois o herói é a criança trabalhadora que

enfrenta

os

perigos do trânsito e o mau humor dos possíveis clientes.

A violência exercida sobre a criança esboça-se desde a primeira ima

gem seja por contrapor o adulto e a criança o comprador endinhei-

encruzilhada vivenciada pelo herói que da sua parte não dispõe de

muitas escolhas haja vista a última página e imagem da narrativa que

repete a primeira. Cena

de Rua

retoma o processo narrativo de

Outra

Vez,

mas a circularidade expressa no caso que à personagem faltam

alternativas de mudança

ou

melhoria.

Não

apenas Angela Lago dedicou-se nos últimos vinte anos a fazer

falar a ilustração. Elvira Vigna deu mostras de criatividade

na

série de

histórias que narram as aventuras de Asdrúbal o terrível. Em Viviam

como

Gato

e Cachorro,

de 1979 a autora vale-se da tradicional dispu

ta entre

os

animais para manifestar

os

conflitos perenes entre

os

seres

humanos dentro e fora da família.

Eva Furnari por sua

vez

enfatizou preliminarmente a narrativa em

quadrinhos protagonizadas pela bruxinha misto de feiticeira e crian

ça travessa que lidera histórias originais e divertidas.

Bruxinha tra-

palhac ., de 1982 inaugura a série a que se seguiram livros entre 1983

(A

Bruxinha Encantadora e seu

Secreto

dmirador Gregório)

e 1997

(Bruxinha e as Maldades da

Sorumbática).

A ilustração é parte constituinte das publicações endereçadas

às

crianças. Nos exemplos citados ela suplanta essa condição apresen

tando-se como a matéria principal do livro a que se subordinam a

palavra e a temática. A produção brasileira representada por artistas

como Ziraldo Juarez Machado Angela Lago Elvira Vigna e Eva

Furnari chegou a um nível de excelência que a faz merecedora de toda

a consideração.

  64

Como

e POi

que

l r

Notas

1 Lago Angela. Uni

uni

e Tê 7. ed. Belo Horizonte: Comunicação s. d. s. p.

2 Lago Angela. hiquita Bacana

as

Outras Pequetitas Belo Horizonte:

Lê,

1986. s. p.

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PARA ONDE

VAMOS

m 1982 Ricardo Azevedo publ icou instigante livro desde o pro

jeto editorial pois a primeira página traz o algarismo 30 daí para a

frente decrescendo a numeração até chegar à primeira. A proposta é

igualmente singular: as frases de abertura reproduzem-se no fim só

que dentro do desenho das folhas de um livro duplicando o processo

da leitura.

Conforme o processo o que se lê ao final ainda que coincida com

o começo pertence agora ao livro que o protagonista redigiu. Como

porém segundo a numeração trata-se da página de abertura o leitor

se

depara com um movimento circular que o impede de decidir

se

está lidando com o livro original ou com o que o escritor-protagonis-

ta escreveu.

o modo como o escritor-protagonista chega à redação do texto é

igualmente desafiador.

No

princípio

ele

se encontra sem inspiração

 166

Como

e

Por

que

Ler

como ocorrerá, alguns anos depois, ao narrador de O

Fantdstico

Mis-

tério

de

Feiurinha de Pedro Bandeira, mencionado antes. Resolve, de

toda maneira, dar partida à elaboração da narrativa, apelando para per

sonagens e situações conhecidas, como são os patinhos, na primeira

a

Literatura

Infanti l

rasileira

161

nos ültimos anos. Assim, explicita a direção tomada pela ficção e poe

sia endereçada à criança, indicando que rumos toma no presente

e,

provavelmente, assumirá em futuro próximo.

Amigos

Secretos

de Ana Maria Machado, aponta que caminho vem

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tentativa,

ou

Chapeuzinho Vermelho, na segunda. Um fato então o

surpreende: as figuras criadas por ele saltam para fora da história e

queixam-se do destino que lhes é conferido, de preferência invariável.

À dificuldades de criação somam-se

os

problemas experimentados

com a revolta das personagens, que requerem tratamento inovador por

parte do artista. Quando ele, enfim, consegue liberar a inventividade,

escolhe escrever o que lhe aconteceu, razão por que a história conclui

por uma retomada no princípio, ainda que o leitor possa hesitar dian

te do fato de ter de definir onde mesmo a narração começa.

A resolução do escritor-protagonista vem acompanhada de uma refle

xão, que o leva a perguntar: Quem sabe não fosse hora de parar, mudar

um

pouco de assunto." A seguir, formula

um

programa de ação:

Quero escrever o que me der na telha, mas sem esquecer o lugar onde

estou, as pessoas daqui, a

vida

que a gente

leva,

.. Vou olhar um pouco,

inventar um pouco, lembrar um pouco, fazer uma misturada daquelas

e pronto .. Tem muito pano pra manga .. É assunto a dar com

pau

2

O programa de ação do homem no sótão" não esclarece apenas o

projeto da personagem, podendo ser aplicado à literatura infantil bra

sileira das últimas décadas. Não somente

isso:

pode-se afirmar que ele

emoldura a produção mais recente, que abrange tanto

os

autores que

estrearam entre as décadas de 1970 e 1980, quanto

os

que apareceram

sendo

esse.

A narrativa, publicada

em

1996, centra-se

num

grupo de

meninos que, por força de eventos fantásticos, vem a conviver com as

personagens do sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. For

ma-se uma imbatível equipe de companheiros, pois, além de figuras

produzidas pela imaginação do escritor brasileiro, somam-se as que ele

inseriu nas terras de Dona Benta, como Peter Pan, ou verteu para a

língua portuguesa, como

Tom

Sawyer, aliados para ajudar o necessi

tado Durval.

A obra, de certo modo, carnavaliza o processo utilizado por Lobato

na composição dos textos, pois, ao congregar,

num

único espaço, per

sonagens da literatura brasileira e estrangeira, criações importadas,

próprias e de outros autores, Ana Maria Machado duplica e, ao mes

mo tempo, revela o modo como

os

escritores trabalham. A criativida

de joga com o conhecido, para formular o desconhecido, numa ação

permanente e contraditória de espelhamento e invenção. Tal como na

obra de Ricardo Azevedo, a autora não reproduz o já feito, mas utili

za-o para implantar sobre ele a novidade.

O

déjà

vu no caso de migos Secretos inscreve-se sobre a obra de

Monteiro Lobato, que, da sua parte, tinha procedido dessa maneira a

partir da literatura estrangeira, sobretudo européia. Agora, é ele quem

fornece

os

padrões a serem incorporados pelos autores nacionais, ofe

recendo-se como modelo e espaço de intertextualidade. O espelho uti

lizado para os novos autores

se

mirarem não mais provém de fora, mas

  68

Como

e

Por

que

ler

de dentro de nossa tradição, aparecendo o criador de Narizinho e

Emília como o clássico a reverenciar

e

ao mesmo tempo, transgredir.

Eis o fato revelado r da maturidade da literatura brasileira destinada

às

crianças, fato que não

se

restringe ao texto de Ana Maria Machado.

a

Literatura Infantil Brasileira

69

no título, tem como assunto o caso do livro , única vez em que

as

duas, até então sempre divergentes, chegaram a um acordo .3 O li

vro, matéria da discussão das duas, é a obra em que cada uma encon

tra a história de que gosta: Manuela,

as

narrativas românticas com

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Em

1997, Luciana Sandroni publicou

Minhas

Memórias

de Lobato

biografia do autor escrita por duas de suas criaturas, Emília e o Vis

conde, conforme uma inovadora técnica de produção.

Em

vez de o

autor discorrer sobre

as

personagens, são

elas

que contam a história de

seu criador.

Não

apenas

isso:

o modo de redação apóia-se sobre

um

livro do próprio Lobato, Memórias

de Emília

em que a boneca pro

põe relembrar suas principais aventuras. Só que ela não escreve o texto,

transferindo a tarefa ao Visconde, que resmunga e protesta, mas dá

conta do trabalho.

inhas

Memórias de Lobato

joga com estratégia similar: a boneca

aceita fazer o serviço, mas delega-o ao Visconde, fator que garante à

obra

uma

dinâmica própria, apoiada sobre o diálogo: de

um

lado,

entre

as

personagens responsáveis pela feitura da biografia; de outro,

com o paradigma representado pelo escritor paulista, imitado

na

esco

lha do gênero memorialista, mas, ao mesmo tempo, negado, porque

ele

passa da condição de criador para a de criatura.

O procedimento é próprio de

um

gênero literário, a paródia, a quem

compete garantir a dinamicidade da literatura, capaz de propor a novida

de sem abolir a tradição, mas não deixando de simultaneamente, violá

la a cada passo. Eis o que pode ser considerado o estágio atual da litera

tura infantil brasileira, revelando-se ainda em outros textos e autores.

O primeiro a ser lembrado é Manuela

eFloriana

de Luciana San

droni, publicado

em

1997. Protagonizado pelas heroínas designadas

final

feliz;

Floriana,

as

tramas de ação e suspense que provocam medo

no leitor. O acordo a que chegam é o de que elas viveram

felizes

lendo histórias para sempre , encontrando

na

literatura a realização

das aspirações enquanto leitoras, base da harmonia e da amizade.

Os modelos de narrativas preferidos pelas duas personagens dife

rem, mas ambos decorrem de

uma

tradição conhecida: no de

Manuela, estão presentes Chapeuzinho Vermelho e príncipes encan

tados, enquanto o de Floriana conta com dragões famintos e perigo

sos

que atacam a população de uma desprotegida aldeia.

Como

nos

casos mencionados, elas apresentam

um

imaginário povoado de figu

ras e situações decorrentes de um conhecimento da literatura, mesmo

quando caracterizadas, como acontece no enredo de Luciana Sandro

ni, como não alfabetizadas.

O fato de as personagens ainda não saberem decifrar as palavras

impressas no livro não impede que pertençam ao

mundo

da leitura,

configurado aqui pelo fato de Manuela aparecer com

um

livro e pôr

se

a tentar adivinhar o que está ali escrito. Essa é a condição da crian

ça contemporânea, imersa desde cedo no universo da leitura, a que

chega por força das narrativas e canções que ouve, do cenário urbano

em que habita, dos meios de comunicação de massa que povoam seu

cotidiano.

Manuela

e

Floriana sugere como essa criança relaciona-se com seu

universo, que,

por um

lado, absorve, e a que, por outro, reage, não de

11

Como

e

Por

ql le

Ler

modo passivo, e sim participante, elaborando o imaginário'que espe-

ra reencontrar

na

obra publicada. Por

isso as

duas personagens desco

brem, cada uma e

num

mesmo livro, sua história pessoal, constituída

em parte da tradição recebida, em parte da contribuição eminente

a

Literatura

Infantil

BrasileÍl a

111

também ele a partir da proposta do mencionado Juarez Machado em

da e Volta:

a figura colocada na última página remete à da primeira,

sugerindo uma leitura circular e de certo modo, continuada da mes

ma

obra.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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mente individual e intransferível, o que não significa que não pode ser

comunicada e discutida, como elas fazem.

Leo

Cunha, em Joselito

e

seu

Esporte Favorito

assinala também

como a criatividade do autor está formada tanto pela incorporação de

um padrão consolidado pela literatura, quanto, a partir daí, pela cria

ção de uma linguagem revolucionária. O livro elege como interlocu

tora a obra de Sílvia Orthof, transformada em referência dos poemas

protagonizados por Joselito, o admirador da autora e que a busca ao

longo do texto, para conseguir uma dedicatória.

Os poemas, por sua

vez

intertextualizam textos de Sílvia de que são

exemplos versos como: Se a cortina fosse mãe, /

se

amarrava no meni

no. / Se o relógio fosse mãe, / cantava mais do que um sino. E reite

ram o estilo resultante do

non sense

marca registrada daquela escritora,

como em: Sílvia gritou de repente / e deu uma cambalhota / pra trás

e outra pra frente ,5 amplificando o significado da homenagem presta

da à sua criatividade. Nem por isso deixam de ser igualmente inventi

vos e engraçados à sua própria maneira, como se espera de uma obra

desafiante e inovadora.

Se

Luciana Sandroni e Leo

Cunha

elucidam o modo como, em

nossos dias, se processa a renovação e a expansão da literatura infantil

brasileira no âmbito da narrativa e da poesia, Roger Mello dá conti

nuidade às experiências com o uso da ilustração na condição de mate

rial principal do relato. O Próximo Dinossauro de 1994, constrói-se,

O autor, porém, introduz duas importantes modificações, sinto

máticas dos novos tempos: a bola vermelha da primeira página, com

que jogam os dinossauros, está na mão do menino que, na última

página, visita um museu de história natural. Assim, se

se

repete uma

imagem, não se estabelece

uma

circularidade reiterativa, ou seja, ao

se retomar o começo, não

se

mais a mesma história. Os dinossau

ros passam a ser entendidos como fruto da imaginação do garoto,

presente no museu, que,

ao

invés de parecer o espectador de

um

pas

sado ossificado, mostra-se criativo e pron to a dar respostas inéditas a

velhas questões.

Não

por

acaso as figuras representadas são dinossauros, represen

tantes contumazes de um tempo perdido e irrecuperável, talvez por

que indesejado

na

atualidade. Pela mesma razão, o menino encon

tra-se

num

museu, espaço destinado a preservar o que já não se vive

mais. Diante de tais seres e cenário, ele não reage de modo reveren

te, mas invoca a imaginação, atitude que simboliza a do escritor bra

sileiro que dialoga

com

a infância de nosso país. Tal como a perso

nagem de Roger Mello, nossos autores apresentam-se como inova

dores diante de uma tradição sólida que, se lhe oferece modelos,

pede igualmente para ser permanentemente desconstruída e recons

truída, conforme

um esforço que justifica a leitura deles por todos,

hoje e sempre.

Como

e

Por

que

ler

Notas

1 Azevedo, Ricardo. Um Homem no

S6tão

São Paulo: Melhoramentos, 1982. p. 2. Trata-se

da penúltima página do livro, cuja numeração, como se observou, está invertida.

Id p. 1.

3 Sandroni, Luciana. Manuela e

Floriana

Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 8.

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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4

Id

p. 22.

5 Cunha, Leo.

Joselito

e

seu Esporte Favorito

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. s. p.

ÍNDICE EAUTORES CITADOS

A

Affonso Romano de Sant Anna, 11

Afonso Celso, 48

Alexandre Dumas,

10

Ana Maria Machado, 52-4, 59,

74 83 99 104 152 167-8

André Carvalho, 102

Angela Lago, 157, 159-63

Aristófanes, 132

Bartolomeu Campos Queirós,

57-8

Carl Jansen, 17-19

Carlo Collodi, 106, 109

Carlos de Marigny, 105

Carlos Drummond de Andrade,

11, 16

Carlos Nejar, 128

Casimira de Abreu, 48

Cassiano Ricardo, 67

Cecília Meireles,

9

128, 130-1,

136-9

Charles Dickens, 106, 109

Charles Kingsley,

10

Charles Perrault, 17 81

Chico Buarque de Holanda, 99,

150, 152-3

Clarice Lispector, 72, 132

Cora Ronái, 64-5, 99

D

Daniel Defoe, 11, 16-17

E

Edy Lima, 73

Eliane Ganem, 57, 87-8

Eliardo França, 59,

61

Elias José, 102, 128, 141-2

Elvira Vigna, 163

Erico Verissimo, 10-11 38 41-

3 50

Esopo, 132

Eva Furnari, 163

114

Fernanda Lopes de Almeida 57

86 88 99

Ferreira Gullar 128

Figueiredo Pimentel 17-19 40

Como

e

Por que

ler

Jerônimo Monteiro 43

João Câncio 10

João Carlos Marinho 110-2

114-5 117-21 123

João Ubaldo Ribeiro 10

a

l i teratura

Infantil Brasileira

Marcos

Rey

123-4

Maria Clara Machado 145 147-

51 153-4

Maria Heloísa Penteado 78-9

Maria José Dupré 43 50- 1

Roberto Drummond 102

Roger Mello 170-1

Roseana Murray 128

115

Ruth Rocha 60-3 65 82 99 104

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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56 93

Francisca J úlia 127

Francisco Marins 43

Gabriel García Márquez 117

Godofredo Rangel 34

Gonçalo Fernandes Trancoso

95

Gonçalves Dias 48

Graciliano Ramos 38-41 43

94

121

Grimm irmãos 17 63 71 81 150

H

Hans Christian Andersen 132

Haroldo Bruno 97

Henrique ta Lisboa 128-9

133-5 138-9

Henry Corrêa de Araújo 105

108-9

Homero 132

I

Ivo Bender 144 152

Joaquim Manuel de Macedo 50

Joel Rufino dos Santos 76 95-7

Jonathan Swift 11 16-17

Jorge Amado 11 16

José de Alencar 50

José Lins do Rego 94

José Paulo Paes 128-9 141-2

Juan Rulfo 117

Juarez Machado 156-7 159-60

163 171

Júlio César

de

Mello e Souza 99

Júlio Verne 11

L

Leo Cunha 170

Luciana Sandroni 168-70

Luís da Câmara Cascudo 98

Luís Jardim 94

Luís Vilela 102

Luiz Gama 10

Lygia Bojunga 66 70-1 73 75

104 132

M

Machado de

Assis

27 50-1

]

Malba T ahan 99

Jacob Grimm v r Grimm irmãos Manoel de Barros 128 131 140

Jean de La Fontaine 132 Manuel Bandeira

10 63

Marina Colasanti 99-101

Mário de Andrade 68 98 146

Mário Quintana 128 133-4

Mirna Pinsky 86 88

Moacyr Scliar 9 11 35 37

Monteiro Lobato 19 21-32

N

34-6 41 43-45 50-1 67

70 73 81-2 86 93-4 97

110 118 120 132 145-6

150 167-8

Nelson Rodrigues 146

o

Olavo Bilac 18-19 48 127-9

Orígenes Lessa 94

Oswald de Andrade 146

p

Padre Zacarias 10

Pedro Bandeira 58-9 124-5

166

R

Raimundo Lúlio 132

Raimundo Matos Leão 152-3

Ricardo Azevedo 97 165 167

S

Sérgio Bardotti 150

Sérgio Capparelli 107-8 128

133-4 139 140

Sidônio Muralha 128 133-4

Sylvia Orthof 153-4 170

Silvio Romero

93

U

Ulisses Tavares 128

v

Vicente Guimarães verVovô

Felício

Vinicius de Moraes 128-9 137

140

Viriato Corre

a

10-11 35-7 43

Vivina de

Assis

Viana 75-6

Vovô Felício 51

W

Wander Piroli 102-5 108-9

Wilhelm Grimm v r Grimm

irmãos

Z

Ziraldo 67 69-70 155-6 163

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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ÍNDI E DE OBRAS E POEMAS CITADOS

A

Abelhas,

As ,

137

Alegria , 134

Alice no Pais das Maravilhas, 10,

57

Alma Infontil 127

Amigos

Secretos

167

Angélica

66, 71,

132

Angústia

38

Arca de

Noé 128, 133

Aritmética da Emília 33

Aventuras

de

Tibicuera As 10,42

Aventuras do Avião

Vermelho

42

Aventuras do

Celebérrimo

Barão

Münchausen 17

Bandeira das Esmeraldas 35

Barbeiro e o Babeiro,

0 ,139

Batracomiomaquia

131

Bela

Adormecida A 16, 91

Bela

Borboleta A 156

Bela

e a

Fera

A 91

Bento-que-bento É

o Frade

52

Berenice Detetive 122

Bichinho

da Maçã 0

156

Bisa Bia Bisa Bel 84-6

Boi

Arud

0 94

Boi da Cara Preta 128, 133

Bolsa Amarela A 71-3, 75, 78

Boneca, A , 19

Branca

de

Neve

91

Bruxinha Atrapalhada A

163

Bruxinha e as

Maldades

de

Sorumbdtica 163

Bruxinha

Encantadora

e

Seu Secreto Admirador

Gregório A

163

Bruxinha

que Era

Boa A 147

Burro, o Menino e o Estado

Novo,

O

C

Caçada

da

Onça

A

25

Caçadas de

Pedrinho As 24-5, 30

Café

na Cama 123

Caixinha de Música , 138

Caminhos Cruzados 41

118

Caneco

de

Prata 0

110, 114-6,

118

Cantiga de Neném , 130

Cartas não

Mentem

Jamais As

152

Como

e

Por

que

Ler

D

D.

Quixote

das Crianças

22 32

D. Quixote

de la

Mancha 17

Dança

dos

Picapaus

128, 133

a

Literatura

Infantil

rasileira

Geografia

de

Dona

Benta 33, 82

Guaraná com Canudinho , 140

H

L

Lando

das

Ruas

105-6

com

Cré

128

Lendas do Céu

e

da Terra

99

Livro

das Bestas

132

119

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Casa, A , 140

Cavalinho

AzulO

147

Cazuza 10 35-7

Cena de

Rua

162-3

Chácara do Chico Bolacha,

A ,

138

Chapeuzinho Amarelo 99

Chapeuzinho Vermelho

16, 90-1

Chave do

Tamanho A 27-30

32, 73

Chiquita Bacana e

Outras

Histórias 160, 162

Cidade Perdida A 43

Cidades Mortas 27

Cinderela 91

Clan

do

Jaboti 68

Classificados

Poéticos 128

Coisas

de Menino

87, 89

Colar de Carolina , 137

Colegas

Os 66, 70-1, 78, 132

Contos d Carochinha

40, 56, 92

Contos da Mamãe Ganso 81

Contos

Populares do

Brasil

93

Corda Bamba

71

Curiosidade Premiada A 86

Currupaco

Papaco 52

Curumim

que Vírou

Gigante

76, 78

Descoberta

do

Brasil A

35

Dia

de

Ver Meu

Pai

0, 75

Doze

Trabalhos

de

Hércules

Os

24 44 82

Droga da Obediência

A 124

E

É

Isso

Ali 128

Enterro

da

Cafetina

0 123

Eu Chovo tu

Choves

ele Chove

153

F

Fada Desencantada A

57-8

Fada que Tinha

Idéias

A

57, 86

Fantdstico

Mistério

de

Feiurinha

0 58 166

Fazedor de Amanhecer, O

(poema), 140

Fazedor

de

Amanhecer

0 128

Festa no

Céu

A

97

Flicts

67-70, 155

Flor Quebrada, Uma , 136

G

Gato Chamado Gatinho

Um

128

Gênio do Crime

0

110-4,

118-9, 122, 124-5

História

de Trancoso

95-6

História

do

Brasil para

Crianças

35

História do Mundo para

Crianças

33

História Embrulhada

141

História Meio ao

Contrdrio

52

54 56 59 74

Histórias

d

Avozinha 92

Histórias da Tia Nastdcia

22, 32,

41 93-4

Histórias

da Velha Totônia

94

Histórias

de

Alexandre

40-1, 94

Histórias de

um

Quebra Nozes

1

Histórias Diversas 82

Hoje Tem

Espetdculo

152

Homem que Calculava 0,

99

I

Ida e

Volta 156-7, 171

Idéia

Toda Azul Uma 99-100

]

João

e Maria

16 90-1

João Felpudo 10

Joselito

e seu Esporte Favorito 170

Livro

de

Berenice 0 110, 119-21

Lua

no

Brejo 128

Lúcia-Jd-Vou-Indo 78

M

Macaco

e a Velha 142

Maktub 99

Manuela eFloriana 168-9

Marcelo Marmelo Martelo 60

Martim

Pererê

67

Memórias

de

Emilia

25, 36, 73,

121, 168

Memórias

de

um

Gigolô 123

Menina do Narizinho

Arrebitado A

ver

Reinações de

Narizinho

Menina e o

Vento

A 147

Menino e o Pinto

do

Menino

0

102, 105, 107-8

Menino Maluquinho

0 155-6

Menino

Poeta

0

128

Menino

que

Espiava para Dentro

74-5 78

Menino

Rio

0

128

Meninos

da

Rua

da Praia Os

107, 109

Meu Livro

de Folclore 97-8

Meu Torrão

35

um

Mil e Uma

Noites,

99

Minhas Memórias de Lobato,

168

Minotauro, 0, 22, 32, 82

Mistério

do

Cinco

Estrelas,

123

Como

e

Por

que

le r

Pinóquio,

106

Pintando o Sete , 139

Pivete,

105-7

Planeta

Lilds,

O, 156

Pluft, o Fantasminha, 147, 148,

Reinações de Narizinho, 22-4, 29,

146

Reizinho Mandão, 0,60-2,64

Resto

é

Silêncio,

0

41

Rios Morrem de Sede, Os,

Tempo

é

um Fio, 0 ,135

Terra dos Meninos Pelados,

A,

38-9

Três Meses no Século,

81, 43

181

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

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Mistério do

Coelho

Pensante, 72

Misterioso

Rapto

de

Flor-do-Sereno,

97

Moda da Menina Trombuda ,

137

Mulher que Matou

os

Peixes, A,

72

N

Nenês D Agua, Os, 9-10

na Garganta,

86

o

Olha o Bicho, 128, 133

Oliver Twist, 106

Onde

Tem

Bruxa, Tem Fada,

58

Ou Isto ou Aquilo, 128, 131

Outra

Vez s Três

Porquinhos,

42

Outra Vez, 159-60, 163

p

Passarinho

me Contou,

Um, 128,

133

Pátria, A , 18

de

Pilão,

128, 133

Pequena História da República,

39-40

Peter Pan, 22, 32

150-1, 153

Poço do Visconde, 0, 27

Poemas para Brincar, 128

Poesias

Infontis,

127

Poeta Aprendiz, O , 130

Príncipe

Sapo,

91

Procissão de Pelúcia ,

138

Próximo Dinossauro,

0,

170

Psicandlise

dos Contos de

Fada, A,

92

Q

Quase

de

Verdade,

73

Quem Conta

um Conto

Aumenta

um Ponto,

152

R

Rapto das Cebolinhas, 0, 147

Rapto do Garoto de Ouro, 123

Raul

da Ferrugem

zul

83-4,

86-7

Receita

de

Olhar,

128

Reforma

da Natureza,

A,

25

Rei

da Vela, 0, 146

Rei

de

Quase-tudo, 0, 59-61

Rei

e

seu Cavalo de Pau, Um,

128

Rei que não Sabia de

Nada, 62, 64

104-5, 107

Robinson

Crusoé,

11, 16-17

Roda, 142

Rosamaria no Castelo Encantado,

42

Rute e

Alberto,

9

S

Saci, 0,27,67

Saltimbancos, Os, 150-1

Sangue

de

Barata, 157

Sangue Fresco, 118-20

São

Bernardo, 38,

121

Sapo Vira Rei

Vira

Sapo, 62, 64

Sapomorflse, o Príncipe que

Coaxava, 64-5

Sapos, Os ,

63

Serões

de Dona Benta, 33

Severino Faz Chover, 52

Simplício Olha pro Ar,

10

Sítio do PicapauAmarelo, 0,29

T

Televisão da Bicharada, A, 128,

133

Tempo e o Vento,

0

41

33

Ciberpoemas e uma Fdbula

Virtual,128

U

Uni Duni e Te, 157, 159-60

Urso com Música na Barriga, 0

42

Urupês, 30

V

Vestido

de

Noiva,

146

Viagem à

Aurora

do

Mundo, 42

Viagem

à

Roda

do

Mundo numa

Casquinha de Noz, 10

Viagem

ao

Céu, 25-6

Viagens de Gultiver, 11, 16-17

Vida

de

Joana D

Are, A

42

Vida

do

Elefante Basílio, A, 42

Vida

Íntima

de

Laura,

A, 72-3,

78,132

Vidas Secas, 39

Viva a Poesia

Viva,

128

Viviam como Gato e Cachorro,

163

Volta

do Reizinho

Mandão, A, 62

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 92/93

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Disque-Obj etiva: 0800- 224466 ligação gratuita)

m

em ,

Zilberman l i e n i o u ~ s e

em

Letras pela

UFRGS

d l l t o r o u ~ s e em Romanística pela

Universidade de Heidelberg,

na

Alemanha,

fez pós-doutorado em Rhode

Island,

nos

7/26/2019 Como e Por Que Ler a Literatura Infantil Brasileira

http://slidepdf.com/reader/full/como-e-por-que-ler-a-literatura-infantil-brasileira 93/93

Impressão e Acabamento;

Estados

Unidos. Professora

de Teoria da

Literatura

e

Literatura Brasileira,

na

PUC/RS

Regina

Zilberman

é

hoje

uma das

maiores

especialistas

em

literatura infanto-juvenil.

Possui mais de 20 livros publicados

e

premiados

na

área pedagógica.

Atualmente coordena também

o

curso de

Pós-Graduação

em Letras

e o

Centro

de Pesquisas Literárias da PUC/RS.

Este

é o

quarto

volume da

coleção Como

e

Por que

Ler .

Os dois primeiros

Como

e

Por

que

Ler

os Clássicos Universais desde Cedo ,

de Ana Maria Machado,

e

Como

e

Por que

Ler

a

Poesia Brasileira do

Século

XX ,

de

Italo

Moriconi

receberam

em

2002

o

prêmio

altamente recomendável pela FNLlJ na

.

categoria

livro

teórico. Em 2003, o

livro

de

Ana

Maria

Machado ganhou

o

prêmio

Cecília

Meireles da FNLlJ.

O

erceiro volume Como

e

Por que Ler

o

Romance

Brasileiro ,

lançado

em

2004,

é

da conceituada professora

e

escritora Marisa

Lajolo.