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COMENTÁRIO CONTEXTUAL AO PARECER DO PROFESOR JOSÉ AFONSO DA SILVA A RESPEITO DO ARTIGO 4º., INCISO V E § 6º., DA LEI COMPLEMENTAR Nº. 80/1994, MODIFICADA PELA LEI COMPLEMENTAR Nº. 132/2009 Rogério Nunes de Oliveira ٭I PREMISSAS E CONCLUSÕES INICIAIS DO PARECER O Conselho Federal da OAB arquitetou ação direta de inconstitucionalidade (A- DI nº. 4636/DF, de 01.08.2011, Rel. Min. Gilmar Mendes) para ver fulminada a valia constitucional de parte do inciso V (com interpretação conforme, suprimindo-se da re- dação original o lexema “jurídicas”) e da totalidade do § 6º. da Lei Complementar nº. 80/1994, com alterações introduzidas pela Lei Complementar nº. 132/2009. A ação constitucional foi instruída com parecer encomendado ao festejado Pro- fessor José Afonso da Silva, e, em essência, reproduz as mesmas impressões herme- nêuticas e postulações teóricas reivindicadas pelo ilustre parecerista. Proponho-me a avaliar, contextual e criticamente, a opinião esboçada para embasar a arguição con- centrada de inconstitucionalidade, de modo a pluralizar o debate acerca da matéria e ofertar uma singela contribuição para melhor equacioná-la. Observe-se que o opinante, já nas primeiras linhas do parecer, estabeleceu li- minarmente duas premissas reputadas indispensáveis às conclusões que visou a al- cançar. Tais premissas, de que realmente dependem as inferências postuladas, são as seguintes: 1ª. premissa . A Defensoria Pública teria destinação específica e predetermina- da constitucionalmente, qual fosse a de prestar orientação jurídica e defesa judicial e extrajudicial aos “necessitados”, ex vi dos artigos 5º., inciso LXXIV, e 134 da Constitui- ção da República, de sorte que qualquer atribuição ou função que lhe fosse cometida “fora desse parâmetro” revelar-se-ia incompatível com sua missão constitucional. Isso, palavras do parecerista, seria dizer que “se não houvesse necessitados, também não haveria Defensorias Públicas”, donde ver-se que a primeira premissa é menos tautológica do que retórica. Afinal, ponderou Feu Rosa: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV)”, o que equivale a dizer: obrigação de prestar assistência jurídica gratuita ٭Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Relações Privadas e Constituição Federal. Especialista em Direito Civil-Constitucional e em Direito Processual Civil. Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da UNIFLU.

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COMENTÁRIO CONTEXTUAL AO PARECER DO PROFESOR JOSÉ AFONSO DA

SILVA A RESPEITO DO ARTIGO 4º., INCISO V E § 6º., DA LEI COMPLEMENTAR

Nº. 80/1994, MODIFICADA PELA LEI COMPLEMENTAR Nº. 132/2009

Rogério Nunes de Oliveira ٭

I – PREMISSAS E CONCLUSÕES INICIAIS DO PARECER

O Conselho Federal da OAB arquitetou ação direta de inconstitucionalidade (A-

DI nº. 4636/DF, de 01.08.2011, Rel. Min. Gilmar Mendes) para ver fulminada a valia

constitucional de parte do inciso V (com interpretação conforme, suprimindo-se da re-

dação original o lexema “jurídicas”) e da totalidade do § 6º. da Lei Complementar nº.

80/1994, com alterações introduzidas pela Lei Complementar nº. 132/2009.

A ação constitucional foi instruída com parecer encomendado ao festejado Pro-

fessor José Afonso da Silva, e, em essência, reproduz as mesmas impressões herme-

nêuticas e postulações teóricas reivindicadas pelo ilustre parecerista. Proponho-me a

avaliar, contextual e criticamente, a opinião esboçada para embasar a arguição con-

centrada de inconstitucionalidade, de modo a pluralizar o debate acerca da matéria e

ofertar uma singela contribuição para melhor equacioná-la.

Observe-se que o opinante, já nas primeiras linhas do parecer, estabeleceu li-

minarmente duas premissas reputadas indispensáveis às conclusões que visou a al-

cançar. Tais premissas, de que realmente dependem as inferências postuladas, são as

seguintes:

1ª. premissa. A Defensoria Pública teria destinação específica e predetermina-

da constitucionalmente, qual fosse a de prestar orientação jurídica e defesa judicial e

extrajudicial aos “necessitados”, ex vi dos artigos 5º., inciso LXXIV, e 134 da Constitui-

ção da República, de sorte que qualquer atribuição ou função que lhe fosse cometida

“fora desse parâmetro” revelar-se-ia incompatível com sua missão constitucional.

Isso, palavras do parecerista, seria dizer que “se não houvesse necessitados,

também não haveria Defensorias Públicas”, donde ver-se que a primeira premissa é

menos tautológica do que retórica. Afinal, ponderou Feu Rosa:

“O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV)”, o que equivale a dizer: obrigação de prestar assistência jurídica gratuita

٭ Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Relações Privadas e Constituição Federal.

Especialista em Direito Civil-Constitucional e em Direito Processual Civil. Professor de Direito Civil e de Direito Processual Civil da UNIFLU.

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integral a noventa e cinco por cento da população brasileira, pois se noventa por cento não têm recursos nem para a subsistência, os restantes cinco por cento não possuem recursos suficientes para promoverem ações judiciais.1

Nota-se, de pronto, que a primeira premissa não é tanto aquilo que devia, e que

se dispôs a ser (“algumas considerações, a título de premissa”) do que uma conclusão

predisposta, subjacente à superfície textual do parecer, que se pretende universalmen-

te aceita e de elementar e difuso conhecimento. Em outras palavras, supôs-se como

incontroversa uma asserção teórica polêmica e nada consensual, que tem susci-

tado diversas opiniões dissidentes.2 Tem-se, assim, que o preclaro parecerista

pressupôs como provado in limine algo de que deveria se desincumbir de demonstrar

para apoiar suas conclusões.

2ª. premissa. A proposição final, apresentada, por igual, “a título de premissa”,

proclama que “os Defensores Públicos são advogados”, e deveriam “ficar sob a disci-

plina da Advocacia estabelecida em seu Estatuto”, pois não seria dado a ninguém, “por

princípio, procurar em juízo sem a devida inscrição na Entidade da Advocacia”.

A última premissa, ao lado de lançar mão do mesmo expediente usado na pri-

meira – considerar aceita, “por princípio”, a tese que deveria ser provada para funda-

mentar as conclusões pretendidas – veiculou uma ilação fortemente extrema, capaz de

deflagrar um variado rosário de dúvidas.

Ora, se “os Defensores Públicos são advogados”, seria correto afirmar que: (a)

“os advogados são Defensores Públicos”? Em caso negativo, somente uma dedução

surpreender-se-ia compatível com a premissa: (b) “todos os Defensores Públicos são

advogados, mas nem todos os advogados são Defensores Públicos”. Na segunda al-

1 ROSA, Antônio José Miguel Feu. Curso de Direito Constitucional – Constituição de 1988, 1ª. Edição.

Rio de Janeiro: Didática Científica, 1990, p. 257. 2 Cf., por exemplo, entre muitos outros: SOUZA, Rogério de Oliveira. A Hipossuficiência. Texto disponi-

bilizado no Banco de Conhecimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em 18.07.2008 (www.tjrj.jus.br. Acesso em 18.02.2009); SILVA, Ticiano Alves e. Procedimento para a concessão do benefício da justiça gratuita às pessoas jurídicas com e sem fins lucrativos (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp. Acesso em 17.07.2009); GRINOVER, Ada Pellegrini. Acesso à Justiça e o Código de Defesa do Consumidor. O Processo em Evolução. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 116; SOARES, Fábio Costa. Acesso do Hipossuficiente à Justiça. A De-fensoria Pública e a Tutela dos Interesses Coletivos Lato Sensu dos Necessitados. Acesso à Justiça. Raphael Augusto Sofiati de Queiroz (organizador) et al... Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 69-107; GARCIA, José Augusto. Solidarismo Jurídico, Acesso à Justiça e Funções Atípicas da Defensoria Públi-ca: A aplicação do Método Instrumentalista na Busca de Um Perfil Institucional Adequado. Revista de Direito da Defensoria Pública. Rio de Janeiro, ano 15, nº. 19, 2004, p. 215-258; MUNIZ, Cibele C. Bal-dassa Muniz. Acesso à Justiça e Defensoria Pública. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Pau-lo: Revista dos Tribunais, ano 17, nº. 77, mar/abr. 2009, p. 331-341.

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ternativa, os advogados desfrutariam de todas as funções e prerrogativas dos Defen-

sores Públicos, embora o contrário não fosse verdadeiro.3

A ilustração dessas alternativas, que se excluem mutuamente, é esta:

(a) (b)

advogados advogados

e OU

Defensores Públicos Defensores Públicos

A pressuposição de que “os Defensores Públicos são advogados” não toleraria

qualquer alternativa diferente, pois de duas uma: (a) “os advogados são Defensores

Públicos”, de forma que ambos seriam espécies do mesmo gênero; ou (b) “todos os

Defensores Público são advogados, mas nem todos os advogados são Defensores

Públicos”, hipótese em que estes seriam subespécies ou espécies de um gênero mais

amplo, munido de prerrogativas e funções caracteristicamente mais abrangentes.

A aceitação da última premissa predisposta, por razões mais lógicas do que

propriamente jurídicas, obrigaria a escolha de uma, e somente uma das alternativas:

(a) advogados e Defensores Públicos pertencem à mesma classe, e não há qualquer

diferença entre uns e outros; ou (b) os Defensores Públicos são espécies ou subespé-

cies contidas na classe continente dos advogados.

Não é ocioso relembrar que aquele que porventura sentir-se inclinado a perfilhar

integralmente e sem ressalvas a segunda premissa do parecer – “os Defensores Pú-

blicos são advogados” – não poderá joeirar simultaneamente as alternativas (a) e (b),

pois a escolha de uma implica logicamente a exclusão da outra.

As alternativas (a) e (b) podem ser falsas, mas ambas não podem ser verdadei-

ras. É que qualquer opção diferente elidiria a segunda premissa formulada pelo pare-

cer, e, de quebra, acarretaria resultados de plausibilidade rarefeita, quando não para-

3 Utilizo as designações “Defensores Públicos” e “advogados” com letras maiúsculas e minúsculas, res-

pectivamente, pelo fato de o parecer também tê-las utilizado assim.

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doxais, sintetizados na alternativa seguinte: (c) os “Defensores Públicos são ao mes-

mo tempo advogados e Defensores Públicos”. É o que ilustra o diagrama abaixo:

Defensores Públicos

e

advogados

Defensores Públicos

A tentativa de condensar as alternativas (a) e (b) causaria a desarrazoada con-

clusão (c), segundo a qual os Defensores Públicos seriam ao mesmo tempo gênero e

espécie, de que se seguiria uma indefensável violação aos princípios da identidade e

da não-contradição. Tenho para mim razões bastante convincentes para afirmar, de

antemão, que os Defensores Públicos, posto comunguem de funções e prerrogativas

assemelhadas às dos advogados, constituem gênero essencialmente distinto.

Mais à frente, em tópico próprio, demonstrarei o porquê dessa asserção, e em

que fundamentos ela se baseia. Interessa mais, neste passo, expor outra incorreção

de que padece a segunda e última premissa do parecer, apontada como crucial para

as conclusões que pretendeu alcançar.

Sem embargo das inevitáveis e tenebrosas consequências lógicas da radical

afirmação de que “os Defensores Púbicos são advogados”, a argumentação trançada

para sustentá-la não passa de uma petição de princípio, já que a conclusão reivindica-

da (“os Defensores Públicos são advogados”) foi utilizada como fundamento dela pró-

pria (“advogado é a pessoa que tem capacidade postulatória, em juízo” e “só o advo-

gado pode postular em juízo”).4

Em outras palavras, a dedução formulada tenta provar-se com um raciocínio

circular, que pretende validar-se apelando à mesma inferência deduzida, sem “nenhum

outro fundamento além da própria conclusão que dela se quis tirar e para a qual essa

4 COPI, Irving Marmer. COPI, Irving Marmer. Introdução à Lógica. Tradução de Álvaro Cabral. 2ª. Edi-

ção. São Paulo: Mester Jou, 1978, p. 84.

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premissa constituiria um elo indispensável para o raciocínio”.5 Em caso de dúvida, ou

de ceticismo, basta comparar o argumento apresentado no parecer com outro estrita-

mente similar, cujas premissas, todavia, sejam abertamente inaceitáveis. Por exemplo:

Os Defensores Públicos têm asas

Todos os que têm asas podem voar

Logo, os Defensores Públicos podem voar

Os Defensores Públicos têm capacidade postulatória

Todos os que têm capacidade postulatória são advogados

Logo, os Defensores são advogados

Não por menos o circulus in demonstrando6 é um recurso retórico utilíssimo, ao

qual, desde os primórdios da civilização, tem-se recorrido em debates judiciários e jul-

gamentos públicos. Górgias, em seu afamado Discurso de Helena, valeu-se de estra-

tagema similar no afã de provar, per fas et per nefas, a inocência da beldade grega:

Pois, ou por desígnio da Sorte, decisão dos deuses e decreto da Necessidade ela fez o que fez, ou foi por força raptada, ou então por discurso persuadida, ou por amor conquistada. Se foi pelo primeiro motivo, é digno de ser acusado o que a acusa; pois um divino propósito com humana providência é impossível impedir. Pois o natural não é o mais forte pelo mais fraco ser impedido, mas o mais fraco pelo mais forte ser governado e conduzido, o mais forte conduzir e o mais fraco seguir. Ora, deus é mais forte que homem, em força, em sabedoria e em outras coisas. Se por-tanto à Sorte e à divindade se deve atribuir a acusação, deve-se absorver da infâmia Helena.

Enfim, o fato é que são essas – e somente essas – as premissas que ofertam

subsídios teóricos ao parecer que serviu de motivo e pretexto para o ajuizamento da

ADI nº. 4636/DF, que visa à declaração de inconstitucionalidade de parte do inciso V e

da totalidade do § 6º., ambos do artigo 4ª. da Lei Complementar nº. 80/1994, com as

alterações introduzidas pela Lei Complementar nº. 132/2009.

5 PERELMAN. Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradu-

ção de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª. Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 127. 6 O qual, segundo Douglas Walton, é o raciocínio “que persegue o próprio rabo” (WALTON, Douglas N.

Lógica Informal. Tradução de Ana Lúcia R. Franco e Carlos A. L. Salum. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72).

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II – INCONSTITUCIONALIDADE CALCADA EM VIOLA-

ÇÃO REFLEXA DE NORMA INFRACONSTITUCIONAL?

É muito estranho, convenha-se, inquinar de inconstitucional uma norma por su-

pô-la em aparente contradição com outra norma de igual estatura infraconstitucional.

Mas, em essência, a fundação teórica da alardeada inconstitucionalidade do artigo 4º.,

inciso V e § 6º., da Lei Complementar nº. 80/1994 não remonta a outra coisa que não

à pretensa incompatibilidade desses dispositivos com a Lei nº. 8.906/1994, e, por via

reflexa, com os artigos 5º., inciso LXXIV, 133 e 134 da Constituição Federal, nos ter-

mos pontuados pelas premissas fixadas ab initio pelo parecer em comento.

Sinto-me embaraçado por dizer o óbvio, apesar de ver-me constrangido a fazê-

lo, doa em quem doer. Afinal, como ponderou Hubert Humphrey, “o direito a ser ouvido

não inclui o direito de ser levado a sério”. Desse modo, é ponto consensual, senão in-

tuitivo, que, na acepção material:

O fundamento dessa inconstitucionalidade está no fato de que do princípio da supremacia da constituição resulta o da compatibilidade vertical das normas da ordenação jurí-dica de um país, no sentido de que as normas de grau in-ferior somente valerão se forem compatíveis com as nor-mas de grau superior, que é a constituição.7

Dito de outro modo, “a ação direta de inconstitucionalidade não é instrumento

hábil para controlar a compatibilidade de atos normativos infralegais em relação à lei a

que se referem”,8 por tratar-se de “uma finalidade de legislador negativo do Supremo

Tribunal Federal, nunca de legislador positivo”.9 Em tais condições, a arguição de in-

constitucionalidade pressupõe ofensa direta ao texto constitucional, o que, no mais, e

de resto, é de uma obviedade pungente.

Muito bem. Os artigos da Lei Complementar nº. 80/1994 que o parecer reputa

padecentes do ranço de inconstitucionalidade são os seguintes:

Art. 4º. São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: (...) V – exercer, mediante o recebimento dos autos com vista, a ampla defesa e o contraditório em favor das pessoas na-turais e jurídicas, em processos administrativos e judiciais, perante todos os órgãos e em todas as instâncias, ordiná-

7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 16ª. Edição. São Paulo: Malheiros,

1998, p. 49. 8 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª. Edição. São Paulo: Atlas, 2002, p. 612.

9 Ibidem, p. 618.

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rias ou extraordinárias, utilizando todas as medidas capa-zes de propiciar a adequada e efetiva defesa de seus inte-resses; § 6º. A capacidade postulatória do Defensor Público de-corre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público.

E os dispositivos constitucionais que se crêem ofendidos são estes:

Art. 5º. (...) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orienta-ção jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessita-dos, na forma do art. 5º., LXXIV. § 1º. Lei Complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescre-verá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, median-te concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o e-xercício da advocacia fora das atribuições institucionais. § 2º. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º.

Nesse contexto, primeiramente, o opinante proclama convictamente que o inci-

so V do artigo 4ª. da Lei Complementar nº. 80/1994 “vai para além das funções consti-

tucionais da Defensoria Pública, havendo aí nítida inconstitucionalidade sem possibili-

dade de saneamento”, porquanto, palavras dele, “não é preciso muito esforço para

concluir que o conceito de pessoa necessitada só se aplica a pessoa natural, jamais a

pessoa jurídica” (SIC).

Consequentemente, “a amplitude como está formulado o dispositivo com certe-

za vai para além das balizas em que se situam as funções constitucionais das Defen-

sorias Públicas” (SIC), de sorte que “só as pessoas naturais necessitadas que com-

provarem insuficiência de recurso para pagar custas processuais e honorários advoca-

tícios, sem prejuízo do próprio sustento e do sustento de sua família, têm o direito à

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prestação dos serviços das Defensorias” (SIC), daí resultando maltrato aos artigos 5º.,

inciso LXXIV, e 134 da Lei Fundamental do Brasil.

Relativamente ao § 6º. da Lei Complementar nº. 80/1994, o parecer acentua

que “temos que partir daquela premissa posta no início deste parecer, ou seja, os De-

fensores Públicos são advogados e, como tal, ficam sujeitos à disciplina da Advocacia

em seu Estatuto” (SIC).

Mas, afinal, por que “os Defensores Públicos são advogados”? O parecer asse-

gura que “a resposta não requer grandes cogitações, porque basta dizer: o advogado

é a pessoa que tem capacidade postulatória em juízo”.

Assim, esse dispositivo da Lei Complementar nº. 80/1994 seria falto de valia

constitucional “porque ofende princípios universais do direito de postular em juízo,

princípio universal em dois sentidos: porque em todo o mundo é assim, e porque nin-

guém pode exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal sem inscri-

ção em sua entidade de classe”.

Não obstante a resoluta opinião esboçada no parecer, muito esforço e colossais

cogitações são necessárias para entender de que modo o inciso V e o § 6º. do artigo

4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 contrariam diretamente a Constituição Federal.

É que os artigos 5º., inciso LXXIV, 133 e 134 da Lei Fundamental não jungiram

o exercício válido e constitucionalmente autorizado das funções institucionais da De-

fensoria Pública exclusivamente à orientação e defesa das “pessoas naturais necessi-

tadas”. O que fez o texto constitucional foi garantir assistência jurídica integral e gratui-

ta aos que “comprovarem insuficiência de recursos”, e incumbir a Defensoria Pública

do múnus de orientar e defender os “necessitados”.

O que não requer esforço algum é perceber que a flexão “aos” – empregada na

redação do artigo 5º., inciso LXXIV, da Constituição Republicana – vale ali por “àque-

les” (contração da preposição “a” com o pronome demonstrativo neutro “o”), com cono-

tação semântica claramente associada ao pronome indefinido “todos”.

Bem pesado e bem medido, nenhum dos dispositivos constitucionais conjurados

restringe expressamente a execução das funções institucionais da Defensoria Pública

unicamente em prol dos interesses das “pessoas naturais necessitadas”, ilação igual-

mente desautorizada pela interpretação sistemática do texto magno.

O alicerce teórico em que se apóia a alardeada inconstitucionalidade do § 6º. do

artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 é ainda mais frágil, porquanto a matéria de

que se ocupa o texto legal questionado não entremostra, sequer por via reflexa, ofensa

alguma à Constituição Republicana.

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A fragilidade da tese apregoada deve-se ao fato de que – como não houvesse

princípio ou regra constitucional que condicionasse a inscrição dos Defensores Públi-

cos nas fileiras da OAB para a execução válida de suas funções – o parecer simples-

mente pressupôs e assumiu como aceita e comprovada uma premissa duvidosa, pou-

co plausível e de insinuante incoerência (“os Defensores Públicos são advogados”).

Mas é muito difícil entender por que, e à conta de que fundamentos, a afirmação

de que “os Defensores Públicos são advogados” é realmente aceitável, designada-

mente pelo fato de a Constituição da República dispensar a ambas as carreiras (ou

profissões) tratamentos normativos distintos, com encargos, funções e prerrogativas

dessemelhantes, proclamando a primeira “instituição essencial à função jurisdicional

do Estado”, e a última “indispensável à administração da justiça”. Assim, dado que a

proposição “os Defensores Públicos são advogados” não é axiomática, não se poderia

tê-la como evidente a priori, sem mais e maiores explicações acerca de seu conteúdo.

É claro que certas premissas dispensam explicações para a compreensão das

conclusões que delas se pretendem tirar, como “o sol é amarelo”, “o fogo é quente” e

“todo homem é mortal”. Porém, quando se cuida de proposições não evidentes, ou que

não desfrutem de aceitação universal, o proponente não pode negligenciar o ônus de

demonstrá-las e de definir com clareza os conceitos envolvidos em seu raciocínio.

O parecer em questão, não obstante, contentou-se em propor, “a título de pre-

missa”, e sem quaisquer explicações, ou “grandes cogitações”, que “os Defensores

são advogados”. Como a elaboração de semelhante explicação fosse algo demasia-

damente trabalhoso, é bem possível que a solução encontrada tenha sido dá-la como

provada in limine, apostando na credulidade passiva do leitor, embora seja mais pro-

vável e sensato acreditar que a premissa não tenha sido explicada pela excelente ra-

zão de não haver fundamentos plausíveis para fazê-lo.

Em tais condições, à míngua de esclarecimentos minimamente coerentes acer-

ca da correção e adequação da premissa “os Defensores Públicos são advogados”, as

quais, por igual, não decorrem expressa ou implicitamente da normativa estampada

nos artigos 133 e 134 da Constituição Federal, o que resta, na melhor das hipóteses, é

a arguição de inconstitucionalidade por aparente violação reflexa do texto constitu-

cional, e, na pior, a alegação de virtual incompatibilidade do artigo 4º., § 6º., da Lei

Complementar nº. 80/1994 com regras veiculadas por lei de estatura infraconstitu-

cional – mais precisamente com os artigos 1º., caput, e 3º., § 1º, do Estatuto da OAB.

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III – PESSOA JURÍDICA NÃO É PESSOA?

Julgo ter ficado bastante claro no tópico anterior que o artigo 5º., inciso LXXIV,

da Constituição Federal, ao estatuir o dever estatal de prestar assistência jurídica inte-

gral aos hipossuficientes, não toldou o exercício do correspectivo direito exclusivamen-

te pelas “pessoas naturais necessitadas”.

Todavia, a despeito da clareza do texto constitucional, o parecer inferiu que “o

conceito de pessoa necessitada só se aplica a pessoa natural, jamais a pessoa jurídi-

ca”. Assim, como se vê, a inconstitucionalidade apontada basear-se-ia em uma inter-

polação hermenêutica, refratária ao conteúdo normativo do caput do artigo 5º. da Lei

Fundamental, e cuja aceitação solaparia, numa só tacada, a eficácia de dezenas de

direitos e garantias fundamentais, particularmente daqueles de que cuidam os incisos

XXXV, LIV e LV.

A ordem jurídico-constitucional brasileira, ao menos por ora, não se compraz

com as franquias interpretativas que campeiam em alguns círculos teóricos de análise

textual da Europa Ocidental, os quais, a título de “desconstrução” ou “relativismo”, afi-

ançam liberdade absoluta para o intérprete atribuir todo e qualquer significado aos tex-

tos que tem à vista, mesmo que contrário ao próprio fio textual de que é retirado.

Como enfatizou Umberto Eco, “entre a intenção inacessível do autor e a inten-

ção discutível do leitor está a intenção transparente do texto, que invalida uma inter-

pretação insustentável”,10 o que significa dizer que o intérprete não pode, sponte sua,

conferir a uma norma jurídica um sentido incompatível ou desautorizado por seu plano

textual, tampouco decretar, de modo aleatório, o significado hermenêutico que afigu-

rar-se mais conveniente e oportuno a seus propósitos. Quer dizer:

Nunca é demais repetir que há limites no processo her-menêutico. Ao contrário do que pensam alguns doutrina-dores, o processo de atribuição de sentido não é arbitrário, “segundo as íntimas convicções do intérprete”. Que norma e texto são coisas diferentes, não é novidade. Mas isto nem de longe pode significar que o intérprete esteja auto-rizado a atribuir sentidos arbitrariamente, sob os ventos do pragmatismo ou de eventuais “sentimentos do justo”. Nun-ca é demais trazer a lição de Gadamer: se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto lhe diga algo. O problema é que, às vezes, os textos jurídicos nos dizem coisas das quais não gostamos.11

10

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução de Mônica Stahel. 2ª. Edição. São Pau-lo: Martins Fortes, 2005, p. 93. 11

STRECK, Lenio Luiz. A concepção cênica da sala de audiência e o problema dos paradoxos. Extraído do site www.amperj.org.br. 2007.

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11

É inviável assentir com a opinião de inconstitucionalidade de uma norma que

não conflagra, sequer reflexamente, o texto constitucional, sobretudo quando a tese

apregoada contrasta abertamente com os objetivos e valores que integram o conteúdo

normativo do próprio dispositivo que se reputa maltratado. Afinal, é ponto de consenso

doutrinário que o artigo 5º., inciso LXXIV, da Constituição Federal assegura o exercício

do direito fundamental á assistência jurídica gratuita tanto pelas “pessoas naturais ne-

cessitadas” quanto pelas pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins econô-

micos,12 enquadráveis no conceito de hipossuficiência:

É preciso que o interessado esteja numa situação econô-mica que não lhe permita custear o processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Não é preciso que as duas circunstâncias se cumulem; logo, o fato de a pessoa jurídica não ter família não impede que ela fique em difi-culdades para prover à sua própria manutenção, e em tais condições não vejo nenhum obstáculo a que ela requeira e que se lhe conceda o benefício da gratuidade.13 As pessoas jurídicas de direito privado são entes coletivos constituídos voluntariamente por pessoas físicas, com o objetivo de obter determinados resultados na ordem eco-nômica, cultural, esportiva, religiosa etc. e, como tais, são projeções dos próprios sujeitos que as compõem. Os su-cessos ou fracassos ocorrentes na vida desses entes co-letivos repercutem econômica, social ou moralmente na vida dos sócios ou associados. Por isso, fechar as portas da Justiça a elas significaria, em ultima ratio, fechá-la a seus próprios integrantes.14

O assunto, por igual, já foi pacificado pelos tribunais superiores, cujos preceden-

tes admitem a outorga do direito à gratuidade de justiça e a prestação de assistência

jurídica gratuita às pessoas jurídicas de direito privado, contanto que provada a falta

de recursos para o custeio da demanda,15 caracterizada por uma “situação inviabiliza-

12

Augusto Tavares Rosa Marcacini, diferentemente, considera que o direito à gratuidade de justiça só é deferível às pessoas jurídicas sem fins lucrativos (MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 89-90). 13

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica. Revista de Direito da Defensoria Pública, nº. 5, 1991, 122-137. 14

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Volume II. 3ª. Edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 677. 15

Nesse sentido: STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Raul Araújo Filho – REsp. nº. 1.064.269/RS, julg. em 19.08.2010 e publ. em 22.09.2010; STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Fernando Gonçal-ves – AgRg no Ag nº. 945153/SP, julg. em 04.11.2008 e publ. em 17.11.2008; e STJ – Ac. unân. da 3ª. Turma – Rel. Min. Massami Uyeda – AgRg no REsp. nº. 1043790/SP, julg. em 02.10.2008 e publ. em 15.10.2008; STJ – Ac. unân. da 4ª. Turma – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – REsp. nº. 258174/RJ, publ. em 25.09.200; TJ-DF – Ac. unân. da 1ª. Turma Cív. – Rel. Des. Vera Andrighi, Ap. Cív. nº. 20070310391248, julg. em 21.01.2009 e publ. em 09.02.2009; TJ-MG – Rel. Des. Afrânio Vilela, Agr. nº. 1.0702.07.406131/9/001(1), julg. em 05.09.2008 e publ. em 15.10.2008; TJ-MG – Rel. Batista de Abreu, Agr. nº. 1.0024.06.305651-9/002(1), julg. em 12.11.2008 e publ. em 05.12.2008; e Súmula nº. 121 do

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12

dora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo”,16 ou seja, que acarrete

a “impossibilidade de custear as despesas inerentes ao exercício da jurisdição”.17

Porém, admitida essa extremada interpretação do texto constitucional – de que

resultaria a impossibilidade de as pessoas jurídicas exercerem o direito fundamental à

assistência jurídica gratuita, ou, em todo caso, de que não seria incumbência da De-

fensoria Pública prestá-lo –, chegar-se-ia a conclusões aterradoras, senão paradoxais,

e de todo modo inaceitáveis. Por exemplo:

(a) as pessoas jurídicas de direito privado “necessitadas” que fi-

gurassem como rés em processos criminais seriam obrigadas a

contratar advogados para o patrocínio de suas defesas

(b) a restrição imposta pelo texto constitucional não se estenderia

aos entes coletivos desprovidos de personalidade jurídica – espó-

lios, condomínios ou sociedades de fato, por exemplo –, os quais

teriam intocados os direitos à assistência jurídica gratuita e à de-

fesa e orientação prestadas pela Defensoria Pública

(c) as pessoas jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucra-

tivos, “necessitadas” ou não, chamadas ao processo por edital ou

com hora certa,18 não fariam jus à nomeação de curador especial

(função que toca à Defensoria Pública desempenhar),19 eis que

“só as pessoas naturais necessitadas que comprovarem insufici-

ência de recurso para pagar custas processuais e honorários ad-

vocatícios, sem prejuízo do próprio sustento e do sustento de sua

família, têm o direito à prestação dos serviços das Defensorias”

TJ-RJ (“A gratuidade de justiça a pessoa jurídica não filantrópica somente será deferida em casos ex-cepcionais, diante da comprovada impossibilidade do pagamento das despesas processuais”). 16

STF – Pleno – Rel. Min. Marco Aurélio, Rcl-AI-ED nº. 1905/SP, julg. em 15.08.2002 e publ. em 20.09.2002. 17

STF – Ac. unân. da 2ª. Turma – Rel. Min. Gilmar Mendes, AI-ED nº. 646099/RJ, julg. em 11.03.2008 e publ. em 18.04.2008. 18

Artigo 9º., inciso II, do Código de Processo Civil. 19

Curiosamente o inciso XVI do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994 não foi acusado de inconsti-tucional, muito embora preveja a atuação da Defensoria Pública no exercício da curadoria especial nos casos previstos em lei, na qual se inclui, evidentemente, a defesa, por meio de substituição processual, das pessoas jurídicas chamadas fictamente ao processo.

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13

A lista de problemas não é taxativa, embora se afigure suficiente para divisar

que a inconstitucionalidade que se quer ver reconhecida, ao lado de não transparecer

de ofensa direta ou indireta ao texto constitucional, significaria, em última análise, um

temerário retrocesso hermenêutico e uma autêntica captio diminutis no plano de efeti-

vidade dos direitos fundamentais.

Custa, e muito, acreditar que, caso chancelado o impedimento constitucional da

prestação do direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita às pessoas

jurídicas pela Defensoria Pública, a digna e altaneira Ordem dos Advogados do Brasil

empunhará a bandeira de defesa da cidadania e do texto constitucional20 para desin-

cumbir-se graciosamente desse ônus, por mera liberalidade e sincero desinteresse,

notadamente nos casos de intervenção obrigatória da curadoria especial.

IV – ADVOGADOS QUE POR DISPOSIÇÃO CONSTITU-

CIONAL EXPRESSA SÃO PROIBIDOS DE ADVOGAR?

Como enfatizado nos parágrafos precedentes, o parecer que acusou a inconsti-

tucionalidade do artigo 4º., § 6º., da Lei Complementar nº/ 80/1994, introduzido pela

Lei Complementar nº. 132/2009, simplesmente se esquivou do ônus de demonstrar ou

de esclarecer previamente as fianças teóricas que dariam garantia à premissa de que

“os Defensores Públicos são advogados”. Presumo que a rarefeita plausibilidade de tal

proposição tenha sido suficientemente demonstrada acima. Mesmo assim, por cautela,

julgo de bom tom assomar outros comentários ao assunto.

Em termos estritamente jurídicos, a primeira objeção que, à vista desarmada,

sobrepõe-se a essa premissa é que o § 1º. do artigo 134 proibiu os Defensores Públi-

cos de exercerem a advocacia privada. A par dessa categórica interdição veiculada

pelo texto constitucional, aguça a curiosidade saber por quais motivos os Defensores

Públicos devem dispor de inscrição “em sua entidade de classe”, apesar de proibidos

de “exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”.

Ademais, o Título IV, Capítulo IV, Seção III, da Lei Fundamental, trata da “AD-

VOCACIA E DA DEFENSORIA PÚBLICA”, de maneira que, se a ratio legis do texto

constitucional fosse mesmo compatível com a asserção de que “os Defensores Públi-

cos são advogados”, não teria sentido algum escalonar normas diferentes para a dis-

ciplina de duas “profissões”, ou instituições, idênticas.

20

Artigo 44, inciso I, da Lei nº. 8.906/1994.

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14

É verdade consabida que as leis não contêm preceitos inúteis, máxima que, por

razões mais do que evidentes, também é aplicável à lei constitucional,21 tornando ine-

vitável concluir, ainda que a contragosto de muitos, que a Constituição da República,

ela mesma, não se compadece com a proposição de que “os Defensores Públicos são

advogados”. Dizer o contrário importaria submeter o texto magno a glosas e interpola-

ções que, por si sós, seriam ilegítimas, máxime numa invulgar hipótese de arguição de

inconstitucionalidade calcada na violação de lei de envergadura infraconstitucional.

Também não convence o teorema de que os Defensores Públicos, posto que

não exerçam advocacia privada, devam ser considerados integrantes da Advocacia

Pública. É que o artigo 132 da Constituição Republicana – encartado na Seção II, Ca-

pítulo IV, Título IV – estipula categoricamente que a Advocacia Pública é composta

exclusivamente pela Advocacia-Geral da União, Procuradorias dos Estados e do Distri-

to Federal e Procuradorias dos Municípios, donde inferir-se que os Defensores Públi-

cos também não exercem advocacia pública,

Pelo fato de os Defensores Públicos não se dedicarem a atividades típicas da

advocacia privada, nem da advocacia pública, os princípios da economia e da simplici-

dade22 recomendam, a esta altura, que se veja aquilo que já se afigurava desconcer-

tantemente óbvio: os Defensores Públicos são Defensores Públicos, como resulta

da interpretação dos artigos 132 usque 135 da Lei Fundamental.

Nada obstante, o parecer teima em apregoar que “os Defensores Públicos são

advogados e, como tal, ficam sujeitos à disciplina da Advocacia em seu Estatuto”

(SIC), assegurando que “o dispositivo legal que confere o direito aos Defensores Pú-

blicos de postular em juízo, só com a simples nomeação par ao cargo e sem inscrição

na entidade de classe, é inconstitucional, porque ofende princípios universais do direito

de postular em juízo”.

De toda sorte, as no que consistiriam os tais “princípios universais”, que, ofendi-

dos, causariam ofensa indireta à Constituição Federal? A resposta, segundo o parecer,

seria esta: “princípio universal em dois sentidos: porque em todo o mundo é assim, e

porque ninguém pode exercer uma profissão ainda impropriamente chamada liberal

sem inscrição em sua entidade de classe. Mas é inconstitucional, porque só o advoga-

21

Celso Ribeiro Bastos adverte que “de outra parte figura o postulado segundo o qual, sempre que pos-sível, deverá o dispositivo constitucional ser interpretado num sentido que lhe atribua maior eficácia. O que efetivamente significa esse axioma é o banimento da idéia de que um artigo ou parte dele possa ser considerado sem efeito algum, o que equivaleria a desconsiderá-lo mesmo” (BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 63), ou seja, “todas as normas constitucionais desempenham uma função útil no ordenamen-to, sendo vedada a interpretação que lhe suprima ou diminua a finalidade” (MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 45). 22

Sintetizados na fórmula da navalha de Occam: non sunt multiplicanda entia praeter necessitatem.

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do, ou seja, só a pessoa inscrita na Ordem dos Advogados, pode postular em juízo

nos termos do art. 133 da Constituição.”

Cumpre-me advertir, antes do mais, que não disponho de conhecimento sufici-

ente para aquilatar a veracidade da ilação de que a inscrição em entidades de classe é

uma exigência corrente “em todo mundo”. Tudo que posso dizer é que aqui, entre nós

brasileiros, o exercício de trabalho, ofício e profissão é livre, e que nenhum trabalhador

ou profissional (liberal ou não) é obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado. É o que se

vê estampado, às escâncaras, na Lei Fundamental do Brasil:

Art. 5º. (...) XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas às qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado; (...)

Porém, para chegar tão longe, seria preciso consentir com a proposição de que

os Defensores Públicos exercem “uma profissão ainda impropriamente chamada libe-

ral”, conquanto não seja viável, sequer por hipótese, aceitá-la ou tê-la com plausível.

É porque a Defensoria Púbica é instituição permanente que integra, com auto-

nomia funcional e administrativa, no âmbito estadual e distrital, o Poder Executivo, or-

ganizada em cargos de carreira providos por concurso público de provas e títulos,23 de

forma que – por meio de interpretação a contrario sensu do argumento invocado – os

Defensores Públicos não precisam de “inscrição em sua entidade de classe”, por não

exercerem “uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”.

Aliás, por ocasião do julgamento da ADI nº. 3.043-4/MG, o Supremo Tribunal

Federal declarou que a Constituição Federal repudia “o desempenho, pelos membros

da Defensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada”. Confira-se:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 137 DA LEI COMPLEMENTAR N. 65, DE 16 DE JANEIRO DE 2003, DO ESTADO DE MINAS GERAIS. DEFENSOR PÚBLICO. EXERCÍCIO DA ADVOCACIA À MARGEM DAS ATRIBUIÇÕES INSTITUCIONAIS. INCONSTITU-CIONALIDADE. VIOLAÇÃO DO ART. 134 DA CONSTITU-IÇÃO DO BRASIL. 1. O § 1o do artigo 134 da Constituição do Brasil repudia o desempenho, pelos membros da Defensoria Pública, de atividades próprias da advocacia privada. Improcede o ar-gumento de que o exercício da advocacia pelos Defenso-

23

Artigo 134, caput e § 1º. da Constituição Federal.

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16

res Públicos somente seria vedado após a fixação dos subsídios aplicáveis às carreiras típicas de Estado. 2. Os §§ 1o e 2o do artigo 134 da Constituição do Brasil veiculam regras atinentes à estruturação das defensorias públicas, que o legislador ordinário não pode ignorar. 3. Pedido julgado procedente para declarar a inconstitu-cionalidade do artigo 137 da Lei Complementar n. 65, do Estado de Minas Gerais.24

Durante a sessão plenária de julgamento, a Corte Suprema acentuou:

O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – Impressiona-me, tam-bém, a par dos fundamentos do voto do eminente Relator, o fato de que essa proibição aos defensores públicos para o exercício da advocacia também figura do Ato das Dispo-sições Constitucionais Transitórias. É interessante: o ADCT, ao dispor sobre a Defensoria, insiste nas proibi-ções. E entre as proibições do art. 134 da Constituição Federal está o exercício da advocacia. É o art. 22. (...) O Sr. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE (Presidente) – Os ex-defensores aqui não conseguiram aquele acordo do Ministério Público na Constituição: a possibilidade de tro-car as garantias pelas vedações. O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – Entre as vedações es-tá o exercício da advocacia. O Sr. Ministro MARCO AURÉLIO – Mesmo assim, não é? O Sr. Ministro GILMAR MENDES – Pois é. O Sr. Ministro CARLOS BRITTO – O que reforça o voto do eminente Relator.

Os caracteres e feições típicas da Defensoria Pública, que a tornam inassimilá-

vel às classes da advocacia pública e da advocacia privada, foram realçados pelo pre-

claro Ministro Carlos Ayres Britto no alentado voto proferido no julgamento da ADI nº.

3.643-2/RJ, designadamente nos trechos citados abaixo:

É que as defensorias públicas, se não são órgãos do Po-

der Judiciário, são, no entanto, aparelhos genuinamente

estatais ou de existência necessária. Mais que isso, uni-

dades de serviço que se inscrevem no rol daquelas que

desempenham função essencial à jurisdição (art. 134 e in-

ciso LXXIV do art. 5º da CF/88). Mas função essencial à

jurisdição, acresça-se, do ângulo da assistência às pesso-

as carentes de possibilidades materiais para a contratação

de advogados. Logo, são elas, as defensorias públicas,

24

STF – Pleno – Rel. Min. Eros Grau, ADI nº. 3.043/MG, julg. em 26.04.2006.

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que verdadeiramente democratizam o acesso às instân-

cias judiciárias, efetivando o valor constitucional da uni-

versalização da justiça (inciso XXXV do art. 5º da CF/88).

(...) A jurisdição e os órgãos que lhe são essenciais a se

imbricar, portanto, sem que se possa dizer onde começa

uma e terminam os outros. De sorte que, bem aparelhar

as defensorias públicas é servir, sim, ao desígnio constitu-

cional de universalizar e aperfeiçoar a própria jurisdição

como atividade básica do Estado e função específica do

Poder Judiciário.25

O Ministro Ricardo Lewandowski, na mesma oportunidade, assinalou que:

Sua Excelência, o Relator observou de forma bem perti-nente – eu estava consultando a Constituição – que há uma diferença muito interessante entre o que diz o artigo 134 e o 133 da Carta Magna. O artigo 134 diz: “A Defen-soria Pública é” – ou constitui – “instituição essencial à função jurisdicional” (...) Portanto integra-se ao aparato da prestação jurisdicional, sendo quase um órgão do Poder Judiciário. Não avanço tanto, mas integra, sem dúvida ne-nhuma, esse aparato. E o artigo 133, quando fala do ad-vogado, não usa essa expressão, mas diz: “O advogado é indispensável à administração da justiça” (...) Embora ele faça parte do tripé, no qual se assenta a prestação jurisdi-cional, ele se aparta um pouco desta categoria especial, desse status especial que se dá à Defensoria Pública.

Em tais condições, e sem embargos das considerações já expendidas, é certo

que os precedentes do Excelso Pretório descredenciam o teorema jurídico arquitetado

no parecer em análise, razão por que é forçoso repetir: os Defensores Públicos não

são advogados, mas Defensores Públicos.

V – “SÓ O ADVOGADO PODE POSTULAR EM JUÍZO”?

Não gostaria de incorrer no erro em que acredito tenha incorrido o parecer comenta-

do, razão pela qual julgo necessário explicar mais detidamente a conclusão de que “os De-

fensores Públicos não são advogados, mas Defensores Públicos”, de que modo ela se im-

põe, e quais as normas e princípios que lhe dão solidez. É suficiente, para tanto, enfrentar a

asserção de que “a Constituição não disse que a pessoa titular de um diploma de direito é

indispensável à administração da justiça. Disse que o advogado é que é indispensável à

administração da justiça e isto significa: só o advogado pode postular em juízo”.

25

STF – Pleno – Rel. Min. Carlos Ayres Brito, ADI nº. 3.643/RJ, julg. em 08.11.2006 e publ. em 12.02.2007.

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Em outras palavras, se “Defensores Públicos são Defensores Públicos”, a questão

diz com aquilatar a correção da tese de que “sem inscrição na Ordem dos Advogados do

Brasil, nenhuma pessoa, só por ser formada em direito, tem legitimidade para o exercício

do ius postulandi“. E essa proposição teórica estará correta se, e somente se: (a) todos

os que postularem em juízo dispuserem de inscrição na OAB; (b) não houver qualquer

instituição ou pessoa que exerça o ius postulandi sem estar inscrito na OAB.

Penso que a solução do problema não esteja em decidir “quem é um advogado”,

mas em saber no que consiste “advogar”. Diogo Figueiredo Moreira Neto responderia que

o exercício da advocacia, quer dizer, o ato de advogar, é uma prerrogativa ínsita às “insti-

tuições de provedoria de justiça”, que atuam a serviço dos valores cívicos da nação, seja

diretamente (advocacia privada e advocacia dos necessitados), seja indiretamente (Minis-

tério Público e advocacia pública):

Esse complexo de advocacias, as funções essenciais à jus-tiça, atuando como órgãos técnicos, no interesse direto ou indireto da cidadania, é que garante, em última análise, a provocação dos órgãos de atuação legislativa, administrativa e jurisdicional do Estado para as providências de suas res-pectivas competências. (...) Advogar, ou seja, falar ao lado, ou melhor, falar em lugar de alguém, é a substituição da voz do leigo pela do técnico na sustentação de interesses juridi-camente protegidos, é função de provedoria de justiça nas relações humanas, segundo os padrões adotados na ordem jurídica. Os interesses, em geral, de pessoas físicas e jurídi-cas, podem ser providos por advogados privados, sob re-gime contratual civil ou trabalhista (art. 135, CF). Os interes-ses da sociedade, como um todo, ou de certos segmentos, notadamente os difusos e os legalmente indisponíveis, inclu-sive o interesse geral na zeladoria da ordem jurídica, devem ser providos pelo Ministério Público, sob regime estatutário (arts. 127 a 130, CF).26

O ato ou efeito de “advogar” é a “função de orientar e patrocinar aqueles que têm

direitos ou interesses jurídicos a pleitear ou defender em juízo”,27 donde concluir-se que a

“devida inscrição na Entidade da Advocacia” não é requisito sine qua non para o exercício

legítimo do ius postulandi. Afinal, os integrantes do Ministério Público, também eles, exer-

cem a advocacia, por se qualificarem na definição de “pessoa que tem capacidade postu-

latória, em Juízo”, vale dizer, de “profissional habilitado para o exercício do ius postulandi”,

apesar de não disporem de “inscrição na Entidade da Advocacia”, assunto que, por sinal,

não desperta controvérsias, como demonstram as opiniões correntes da literatura jurídica:

26

MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. A Defensoria Pública na Construção do Estado de Justiça. Re-vista de Direito da Defensoria Pública. Rio de Janeiro, ano 6, nº. 7, 1995, p. 15-41. 27

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil.Vol. I. 16ª. Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 167.

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19

Conforme o caso, o Ministério Público assume no processo a tutela do direito objetivo ou a defesa de uma pessoa; com base nessa distinção é que se pode fazer uma classificação cientificamente correta das funções dos promotores e cura-dores do processo. Ele defende alguma pessoa em juízo (li-gado, portanto, a um dos interesses substanciais em causa e atuando parcialmente em seu favor): a) como parte principal (autor, réu, substituto processual); b) como assistente.28 O Ministério Público atua como procurador judicial do litigan-te, como acontece nas ações de acidente do trabalho, em que o órgão funciona como assistente judiciário do trabalha-dor, e na ação de execução civil da sentença condenatória penal, em que ele pode representar a vítima na demanda de ressarcimento de dano.29 Também possuem capacidade postulatória aqueles que e-

xercem funções análogas à de advogado, mas apenas

quando no exercício de tais funções. Assim, por exemplo,

um promotor de justiça tem capacidade postulatória, poden-

do, por exemplo, dirigir ao Estado-juiz uma petição inicial de

“ação civil pública”.30

Vistas essas coisas, tem-se que a proposição de que “sem inscrição na Ordem

dos Advogados do Brasil, nenhuma pessoa, só por ser formada em direito, tem legitimi-

dade para o exercício do ius postulandi“ não constitui regra absoluta, tampouco deriva de

“princípios universais do direito de postular em juízo”.

Do contrário – admitido o caráter geral e absoluto da tese reivindicada – seria for-

çoso concluir que os membros do Ministério Público igualmente deveriam filiar-se à OAB,

de vez que “ninguém pode, por princípio, procurar em juízo sem a devida inscrição na En-

tidade da Advocacia”. Ora, se é, ou se deveria ser assim, por que os Defensores Públicos

estariam sujeitos ao ônus de se inscreverem na OAB, ao passo que os integrantes dos

Ministérios Públicos, similarmente proibidos de exercer a advocacia privada,31 ficariam

isentados de observar a mesma regra para o exercício válido do ius postulandi?

A resposta a essa questão – bem como à premissa de que “os Defensores Públi-

cos não são advogados, mas Defensores Públicos” – consiste no fato de a proposição “os

Defensores Públicos são advogados” não ser inteiramente equivocada, senão quando

assumida de forma geral, sem distinguir as peculiaridades e dessemelhanças das Defen-

28

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teo-ria Geral do Processo. 13ª. edição. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 301-302. 29

SILVA, Ovídio A. Batista da; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo civil. 2ª. Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 144. 30

CÂMARA, Alexandre Freitas. Op. cit., p. 243. 31

V. artigo 128, § 5º., inciso II, alínea “b”, da Constituição Federal.

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20

sorias Públicas em relação às carreiras propriamente definidas pela Carta Política como

investidas de funções típicas da advocacia, pública ou privada.

Uma ilação referente às características de casos particulares não deve (e não po-

de) ser transposta abruptamente para a condição de regra geral sem levar em conta ou-

tros casos cujas singularidades e diferenças excluem a extensão generalizada daquilo

que se quer estabelecer como padrão normativo.32 Em certas situações, raciocínios fun-

dados em premissas tiradas de inferências indutivas – que visem a incluir ou excluir espé-

cies em gêneros ou classes – levam a conclusões com que poucos concordariam:

As aves caracterizam-se como animais com habilidade para voar

Os pingüins são aves

Logo, os pingüins são animais que têm habilidade para voar

As aves caracterizam-se como animais com habilidade para voar

Os morcegos não são aves

Logo, os morcegos não têm habilidade de voar

Todos os peixes nadam

As baleias nadam

Logo, as baleias são peixes

Em tais condições, a prévia inscrição nas fileiras da OAB não é, e jamais foi re-

quisito inalienável e indisponível para o cometimento de capacidade postulatória, pois,

de outro modo, todos aqueles incumbidos da execução de funções afetas ao ius postu-

landi deveriam submeter-se a igual e necessária providência, consubstanciada na “de-

vida inscrição na Entidade da Advocacia”. Afinal, diria Aristóteles, “se de duas coisas

semelhantes uma é possível, então a outra também o é. Se o mais difícil de duas coi-

sas é possível, então o mais fácil também o é”.33

Por conseguinte, vê-se que o ato de advogar, ou de “procurar em juízo”, não

constitui prerrogativa exclusiva da “pessoa formada em direito inscrita na Ordem dos

Advogados do Brasil”, porquanto a Constituição Republicana outorgou a outras institu-

ições – que não se enquadram nos conceitos de advocacia pública ou privada – capa-

32

Caso exemplar do erro argumentativo da composição, isto é, da atribuição generalizada dos predica-dos de uma ou de alguma das espécies a todos os integrantes da classe (V. WALTON, Douglas. Op. cit.. p. 179-186 e PERELMAN. Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Op. cit,p. 262-274). 33

ARISTÓTELES. Retórica. Livro II, cap. 19.

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cidade postulatória plena e legítima para se desincumbirem de suas funções indepen-

dentemente de filiação prévia ou subseqüente nos quadros da OAB. Nesse sentido, a

propósito, a ponderação do Ministro Carlos Brito no voto que proferiu quando do jul-

gamento da ADI nº. 2.581/SP:

Porém, ocorre-me que a Constituição tem outras razões, tem outras lógicas. E, quando a Constituição separa, destaca, i-sola uma instituição, é para prestigiá-la, assim como a Or-dem dos Advogados do Brasil, os advogados em geral, as universidades, os sindicatos, os partidos políticos, as Procu-radorias de Estado. A Constituição não isola uma instituição senão para conferir a ela um “status”, uma dignidade maior. É o modo pelo qual a Constituição revela o seu especial a-preço por essa instituição. E essas instituições, das quais o Poder Judiciário faz parte e o Ministério Público também, re-fogem do âmbito, estão excluídas do âmbito de incidência chapado, imediata, clara do processo legislativo. Elas obe-decem a regras próprias.34

A questão que se põe em discussão, assim, depende mais de bom senso do

que de critérios de interpretação jurídica ou do apelo extremo a “princípios universais”,

pois como os Defensores Públicos não exercem advocacia pública ou privada, a única

explicação plausível é ver que o ius postulandi de que desfrutam não está condiciona-

do à “devida inscrição na Entidade da Advocacia”, senão à fonte derivada de manda-

mento constitucional expresso,35 designadamente à norma do § 6º. do artigo 4º. da Lei

Complementar nº. 80/1994, que dispensa a “inscrição na Entidade da Advocacia”.

VI – OS DEFENSORES PÚBLICOS SÃO DEFENSORES

PÚBLICOS E, COMO TAIS, SE SUBMETEM A REGIME

JURÍDICO PRÓPRIO

Tenho para mim, a par de todo o exposto, ser lícito afirmar que “os Defensores Pú-

blicos são Defensores Públicos”, sem o risco de ser acusado de reivindicar proposições

desprovidas de explicações e de invocar conceitos faltos de prévia definição. As nada

desprezíveis diferenças entre as instituições (Defensorias Públicas e Ordem dos Advoga-

dos do Brasil) e as dessemelhanças entre as funções de seus integrantes (Defensores

Públicos e Advogados) são tais e tantas que não é possível falar, sequer como figura de

retórica, que “os Defensores Públicos são advogados”.

34

Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Britto na ADI nº. 2.581-SP (STF – Pleno – Rel. para o acór-dão Min. Marco Aurélio, julg. em 18.08.2007). 35

Artigo 134, § 1º., da Constituição Federal.

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E, pois, se o exercício constitucionalmente autorizado de suas funções não é con-

dicionado à inscrição nos quadros da OAB, os Defensores Públicos, por evidente, igual-

mente não se sujeitam às normas disciplinares tipicamente inerentes à carreira da advo-

cacia, e muito menos, por razões ainda mais fortes e intuitivas, ao poder de polícia con-

substanciado na assim chamada “fiscalização ético-disciplinar”.

Ao que parece, a extrapolação ao absurdo do raciocínio em que se equilibra a pre-

tendida “fiscalização ético-disciplinar” implicaria dizer que os Defensores Públicos sujeitar-

se-iam a ônus redobrados (poder de polícia da OAB, fiscalização concomitante das cor-

regedorias-gerais e das ouvidorias e pagamento de anuidades), recolhendo, todavia, bô-

nus partidos.36 Isto é: os Defensores Públicos ficariam submetidos aos deveres impostos

pela Lei nº. 8.906/1994, posto que privados das vantagens asseguradas pelo mesmo di-

ploma legal aos integrantes de “uma profissão ainda impropriamente chamada liberal”.

Tudo isso porque – embora os Defensores Públicos não sejam advogados, nem

públicos, nem privados – os artigos 1º. e 3º. do Estatuto da OAB prevêem que a postula-

ção perante qualquer órgão do Poder Judiciário e dos Juizados Especiais constituem “ati-

vidades privativas da advocacia” e que os integrantes das Defensorias Públicas exercem

“atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei”.

Há, todavia, duas razões fortíssimas para concluir que as disposições normati-

vas da Lei nº. 8.906 não são aplicáveis às Defensorias Públicas e aos seus respectivos

seus órgãos de execução, os Defensores Públicos.

Primeiramente porque o § 1º. do artigo 134 da Constituição Federal reservou à lei

complementar a incumbência da organização e prescrição, no âmbito dos Estados e do

Distrito Federal, de normas gerais relativas às Defensorias Públicas. Daí inferir-se que

nenhuma lei ordinária poderia estabelecer diretrizes acerca da organização e/ou ditar

normas gerais sobre a atuação das Defensorias Públicas.

Não se afigura difícil, nem demanda “grandes cogitações”, reconhecer que uma

matéria cuja disciplina a Lei Fundamental reservou à lei complementar não pode ser regu-

lada, revogada ou acrescida por lei ordinária, como observou Celso Ribeiro Bastos:

Entendemos, pois, por lei complementar a espécie normativa autônoma, expressamente prevista no inc. II do art. 59 da Constituição Federal, que versa sobre matéria subtraída ao

36

É porque, ao lado da proibição categórica do exercício da advocacia privada (artigo 134, § 1º., da Constituição Federal), os Defensores Públicos igualmente são proibidos de praticar, em juízo ou fora dele, atos colidentes com as funções de seu cargo, receber, a qualquer título ou pretexto, honorários, vantagens ou custas em razão de suas atribuições, e exercer atividades empresariais e político-partidárias quando em atuação na Justiça Eleitoral (artigo 130, incisos II-V, da Lei Complementar nº. 80/1994).

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campo de atuação das demais espécies normativas do nos-so direito positivo, demandando, para a sua aprovação, um quorum especial de maioria absoluta dos votos dos mem-bros das duas Casas de que se compõe o Congresso Na-cional. A lei complementar tem, por conseguinte, matéria própria – o que significa que recebe tratamento normativo um campo determinado de atuação da ordem jurídica e só dentre deste ela é validamente exercitável –, matéria essa perfeitamente cindível ou separável da versada pelas demais normações, principalmente pela legislação ordinária.37

Manoel Gonçalves Ferreira Filho diria que essas restrições impostas à lei ordinária

decorreriam menos da reserva legislativa da matéria, afeta a lei complementar, do que à

própria preponderância hierárquica desta relativamente àquela:

É de sustentar-se, portanto, que a lei complementar é um tertium genus interposto, na hierarquia dos atos normativos, entre a lei ordinária (e os atos que têm a mesma força que esta – a lei delegada e o decreto-lei) e a Constituição (e suas emendas). Não é só, porém, o argumento de autoridade que apóia essa tese; a própria lógica o faz. A lei complementar só pode ser aprovada por maioria qualificada, a maioria absolu-ta, para que não seja, nunca, o fruto da vontade de uma mi-noria ocasionalmente em condições de fazer prevalecer sua voz. Essa maioria é assim um sinal certo da maior pondera-ção que o constituinte quis ver associada ao seu estabeleci-mento. Paralelamente, deve-se convir, não quis o constituin-te deixar ao sabor de uma decisão ocasional a desconstitui-ção daquilo para cujo estabelecimento exigiu ponderação especial. Aliás, é princípio geral de Direito que, ordinariamen-te, um ato só possa ser desfeito por outro que tenha obede-cido à mesma forma.38

Aos meus olhos, porém, não é preciso avançar tanto, até porque a precedência

hierárquica das leis complementares sobre as leis ordinárias é assunto controverso e pre-

nhe de polêmicas. Basta ver que a questão refere-se à aparente antinomia entre uma lei

especial e posterior gerada por sua desarmonia com lei geral e anterior, de maneira que

os critérios da especialidade e cronológico são suficientes para resolver a questão.

Ora, a argüição de inconstitucionalidade retira sua força da alardeada incompatibi-

lidade do § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994, introduzido pela Lei Com-

plementar nº. 132/2009, com os artigos 1º. e 3º. da Lei nº. 8.906/1994. Assim, como as

alterações da Lei Complementar nº. 80/1994 são posteriores à entrada em vigor do Esta-

37

BASTOS, Celso Ribeiro. Op. cit., p. 359. 38

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 3ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 236-237.

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tuto da OAB (Lei nº. 8.906/1994), é forçoso concluir que todas as normas precedentes

incompatíveis com as disposições normativas subsequentes foram derrogadas.39

Ao demais, haja vista que a lei especial prepondera sobre a lei geral,40 também

seria impossível concluir outra coisa senão que a Lei Complementar nº. 80/1994 – lei es-

pecial de organização das Defensorias Públicas – não poderia ser sobrepujada pelas dis-

posições de índole geral aplicáveis unicamente àqueles que exercem atividades típicas

das carreiras da advocacia pública e privada.

Aliás, bem ao contrário, o que ostenta claros indícios de inconstitucionalidade, cre-

denciando-se a futura e oportuna argüição em sede própria, são os dispositivos do artigo

1º., caput, e 3º., caput e § 1º., da Lei nº. 8.906/1994, tanto do ponto de vista formal quanto

material, por ofenderem diretamente o artigo 134, caput e § 1º, da Lei Fundamental.

VI – CONCLUSÃO

No que pesem a habitual erudição e a incontrastável argúcia retórica do subscri-

tor do parecer em que se embasou a ADI nº. 4636-DF, assestada pelo Conselho Fede-

ral da Ordem dos Advogados do Brasil, os dispositivos legais acusados de inconstitu-

cionalidade (inciso V e § 6º. do artigo 4º. da Lei Complementar nº. 80/1994) não violam

ou toldam, direta ou indiretamente, o texto constitucional, consoante enfatizado à e-

xaustão nos parágrafos precedentes, cujas conclusões ficam aqui reiteradas.

39

E nem se diga que a obrigatoriedade de inscrição na OAB teria previsão no artigo 26 da Lei Comple-mentar nº. 80/1994, pois, igualmente pelo critério cronológico para a solução de conflito interno de nor-mas, não há duvidas de que esse dispositivo foi derrogado pela Lei Complementar nº. 132/2009. 40

Princípio há muito consagrado entre nós, sintetizado no brocardolLex especialis derrogat Lex generalis.