com as mÃos vazias · zequinha:me esfolei todo pra conseguir a macaxeira, pior é que mijo de...
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CENÁRIO
O palco deverá ser dividido em dois níveis. No primeiro: fachada de um casebre
rústico de pau-a-pique com um pequeno quintal na frente, casinhas mais ou menos
iguais são vistas um pouco mais à distância; no segundo: uma estrada de terra
seca e partida, com pés de caatinga, alguns cactos. Sala de uma casa menos
modesta, mas sem requintes. As cenas deverão ser alternadas com jogos de luz.
ATO ÚNICO
CENA I
PRIMEIRO NÍVEL
Uma moça de quinze anos, cantando um trecho de “Súplica Cearense”, de Catulo
da Paixão Cearense, enquanto estende alguns trapos no varal.
ZITA:
“...desculpe, eu pedi a toda hora pra chegar o inverno,
desculpe eu pedi para acabar com o inferno
que sempre queimou o meu Ceará...”
ZEQUINHA:(onze anos) Zita, num gosto dessa toada. É triste. Dá mais fome na gente.
ZITA: Pois gosto por demais. Se avexe não, eles voltam gorinha. Tu vai vê.
ZEQUINHA: Tem razão, vai ver seu Anastácio pegou eles na hora.(procurando alguma
coisa no quintal) Tem jeito não, morreu tombém.
ZITA: Tu vai ter que aguardar bom tempo pra fazer a surpresa pra mainha. Como todo
mundo. Há que se ter paciência.
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ZEQUINHA: Esperar o “Aquele lá” que só esvazia a bexiga lá no sul? Ele só mija lá, que
merda!
ZITA: Vige Maria, Zequinha, se mãe escuta isso te dá uma pisa daquelas.
ZEQUINHA:Me esfolei todo pra conseguir a macaxeira, pior é que mijo de gente não
adianta.
ZITA:Já te disse que mijo de gente só faz a plantinha secar, tu não se emenda.
Na porta do casebre aparece um menino de seis anos, ainda com ar sonolento.
CHICO:Zita, Zequinha, onde tá?
ZEQUINHA:Num chegaram ainda.
CHICO:Cadê?
ZEQUINHA:Oxente, peste, cadê quem?
ZITA:Chupa o dedo e volta a dormir.
CHICO:Cês comeram tudinho, foi? Inté o queijo de coalho?
ZEQUINHA: Zita, Chico já tá de bucho cheio. Pelo menos no sonho. Comeu inté queijo de
coalho.
ZITA:Deixe ele mangar, bichinho, liga não! Vem cá que Zita conta outra história, tu dorme
de novo. Zita já disse que eles voltam logo. É só inté terminar uma história, visse?
CHICO:(saindo do abraço e correndo pelo quintal)Dormir não mata fome. Sonho dá
mais vontade. História não mata fome. (cai exausto no chão) Fome...O bucho dói...A
perna dói...mãe...Ô, minha mãe, quero minha mainha.
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CENA II
SEGUNDO NÍVEL
Uma mulher de 30 anos anda rapidamente. Para e olha pra trás.
MADALENA: Anda mais depressa Tião, tamos quase chegando.
TIÃO:(treze anos, sentando no chão)Guento não mainha, as pernas não deixam.
Embora descansar um tiquinho, vamos?
MADALENA: E pensar que na tua idade já tava embuchada de Zita. Vê se te apruma,
oxente! E pensando em ser vaqueiro.
TIÃO: (fazendo um esforço, mas voltando a sentar)Zita tem razão, acho que ele não
me pega não. E querendo ser vaqueiro que nem seu Anacleto.
MADALENA: (ficando de cócoras)Escancha na mainha que com roupa suja é que ele
não te pega.
TIÃO: Não mainha, sou um cabra macho, vamos embora.
MADALENA: Ah, se eu pudesse botar minhas mãos calejadas naquele filho duma égua...
TIÃO: Ele volta, mainha, volta?
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MADALENA: Mulé é o diabo, quando um cabra pega chamego, num pensa em mais
nada, volta não.
TIÃO: A desgramada pegou mesmo painho. Sente falta dele mainha, sente?
MADALENA: É...Num sei o que sinto. Raiva, falta, sei lá, a fome entope os sentimentos e
atrapalha os pensamentos, filho!
TIÃO:Gostava de painho?
MADALENA: Me deixou só um taco da minha felicidade, que são vocês. A outra parte
levou com ele, o que por no fogo. Ficou só os braços cheinho de amor, mas as mãos
magoadas e vazias.
TIÃO: Nossa minha mãe, acho que a senhora gostava mesmo. Tá com os zoios raso
d’água. Num queria lhe avexar. Num chore, não, vá! Me perdoe!
MADALENA:Tião, assim tu me encabula, isso é assunto pra mulé, oxe!
TIÃO: A senhora só proseia com Zita. Só queria entender o que tá sentindo. Queria tanto
entender porque painho fez isso com a gente. Padre Osório diz que Deus sabe o que faz,
será mesmo, mainha? Pra quê gota fazer um cabra ruim que nem painho?
MADALENA:Deus sabe o que faz, Tião, se Ele não sabe, quem é de nós que vai saber?
Teu pai fez vocês, num foi bom?
TIÃO: Fazer deve de ter sido. Devia fazer e cuidar, num acha, mainha?
MADALENA: Sina Deus dá e a gente aceita.Tinha treze anos quando Januário se apeou
lá em casa e disse pro pai: gosto desta cabrita, sabe cozinhar? Pai respondeu: é tua
Januário, sabe inté costurar. E Januário: mas já é mulé feita? E pai todo prosa: leve que
eu garanto o teu rebanho.
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TIÃO:Foi só?! Então, Zita tá no caritó. Já tem quinze.
MADALENA:Mas um dia há de chegar um cabra muito do porreta, que vai se engraçar e
vai me pedir ela. E vou perguntar: tu quer, filha? E serão felizes. Mas só se ela quiser.
TIÃO:Sei não, de repente, outro Januário, melhor ficar como tá.
MADALENA: Deus disse, Tião, respeitai pai e mãe...Não tenho o sangue dele, tu tem,
respeite que de qualquer jeito continua sendo teu pai.
TIÃO:Mas, painho não respeitou a gente, nem...Seu Anastácio. Já pensou, se ele sabe
que painho...Às vezes, não alcanço as coisas que Deus quer dizer.
MADALENA:(benzendo-se)Danou-se cabra, se aquiete, se o homem sabe disso, tamos
desgraçados. Boca lacrada, visse?
TIÃO:Não mainha, Deus me livre e guarde! Boca tapada e mão entrelaçada pedindo
proteção.
MADALENA:(desfiando um pequeno rosário) Ave Maria, cheia de graça...Aquele filho
de uma quenga parideira...Raparigueiro...Perdão, Senhora...Prometo que não vou mais
ter raiva dele, se fizer seu Anastácio pegar a gente.
TIÃO: Bendita sois Vós...Prometo que nunca mais duvido de Deus...
MADALENA:Assim como a Senhora sofreu pelo seu Filho...Eu aguento a dor do bucho,
eles não...Ajuda!
TIÃO:Senhora mãe de Jesus...Ajuda! Prometo que rezo todo dia e não arengo mais com
Zita...É pelos meninos...Eu sou grande, guento tudo.
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MADALENA: Prometo que no dia de missa vou até à Capela de joelhos, vige vai ser de
lascar, mas fazei também com que seu Anastácio não saiba que...
TIÃO:Ave Maria, mainha, nem pense numa desgraceira dessas. (puxando a saia da
mãe) Mainha, a senhora já pensou se tudo der certo?
MADALENA:Já pensou, Tião? Por nosso Padim Pade Ciço, juro que mando dizer uma
missa quando Padre Osório vier na Capela do Sítio.
TIÃO:Missa não mainha, que isso lá é coisa pouca pra agrado de Santo. Mande dizer
uma novena que assim a gente garante o sucesso da empreitada.
MADALENA:Tem razão, Tião, tu realmente é um cabra da peste de macho.
TIÃO:Pois é, a senhora acha que tinha precisão de Zita vir? Ela tem que cuidar é dos
meninos.
MADALENA: Tô inté vendo a cara dela quando a gente chegar com as mãos cheias das
coisas.
TIÃO:As mãos não. A gente passa lá na venda do seu Anastácio e, por conta; vai voltar
ouvindo o cantar do carro de boi alugado, trazendo feijão-de-corda; macaxeira; farinha;
carne-seca, inté um taco de queijo de coalho que o Chico tanto adora.
MADALENA: Oxe, me deu inté uma dor no peito, parece que meu corpo todo é um bucho
só. E a alegria dos meninos, então? Já tô vendo Zita correndo botar lenha no fogão,
tombém cantando que nem o carro de boi.
TIÃO:Tombém me dói o bucho, mainha, tombém! Me deu inté uma secura nos beiços.
Mas falta pouco, olhe lá!
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CENA III
PRIMEIRO NÍVEL
No quintal, encontram-se Zequinha e Chico que choraminga baixinho.
ZEQUINHA:Chora não, Chico, Zita volta já. Com as mãos cheinha das coisas. É só
esperar e tu vai ver.
CHICO:Foram tudo embora: painho, mainha, Tião e Zita. Painho é merda, mainha é
merda, Tião é merda. Agora minha Zita tombém é merda. Merda, merda, Zita é merda.
ZEQUINHA:Já disse que mainha não foi embora, foi painho que foi. Aquele cabra safado.
ZITA: (cansada)Soltei um montão de palavrório em riba daquela excomungada. Ficou me
olhando com a cara amassada enfiada na manga do vestido e, disse que não tem
nadinha em casa não. Nem dona Bia, dona Geralda.Ninguém tem nada não. Seu
Anastácio num pagou ainda não. E tive que esconder que painho é o culpado dele não...
ZEQUINHA: Irmã de minh’alma, Deus nos livre! Nem disso painho livrou a gente... Mas
nem um tiquinho de rapadura pra fazer uma garapa pro bichinho?
ZITA: Disse praquela rapariga que quando mãe voltar com as mãos cheias das coisas,
num vamos emprestar um nada pra ela. Empinei a bunda e virei a cara, filha duma égua!
ZEQUINHA: Fez muito bem feito. Eu tinha era metido um bofetão nas ventas dela. Nunca
engoli aquela historinha que o Mijão ensinou: dar o outro lado pra bater, que merda! A
gente tem é que aprender a dar o rabo como resposta pra essa gota serena de vida.
CHICO: (desesperado)Merda, merda, merda. Zita é uma merda.
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ZEQUINHA:(dando um safanão em Chico)Cala a boca, peste! Mas, dona Joaninha é
madrinha dele. Mainha disse que madrinha é igual que nem mãe.
ZITA:Viu, Zita voltou. Zita não é merda, né, meu xodó? Esqueceu que mainha tombém
não tinha nadica pra ele?
ZEQUINHA:Danou-se! E mainha disse que só posso ir pra Sumpaulo com 12, que nunca
chega. Careço ver de perto porque gota Ele mija tanto praquelas bandas. Terra
abençoada.
ZITA:Tu vai mesmo?
ZEQUINHA:Zita, nem mesmo o Mijão em pessoa vai me impedir. Disse isso pra mainha. ZITA: Acha mesmo que ela vai deixar? ZEQUINHA: E quem é que tá pedindo permissão? Só respeito meu querer.
CHICO: (batendo no irmão)Zequinha, olha o pecado! Tu compra um confeite pra mim,
Zequinha?Juro que nunca mais chamo tu de merda, compra?
ZEQUINHA:Oxente, num acabou de me bater? Mas compro um montão. Um vestido de
chita pra Zita, uma bota com espora pro Tião...Diacho, Tião pode e não quer ir.
ZITA:Tião não larga mainha não, ele agora é o homem da casa. Num pode...
CHICO:Por que painho pode?
ZITA:Tu num ia entender; tu é só um nenê, num precisa entender, mas é meu zamô.
CHICO: E tu é minha Zita. Tu nunca vai pra Sumpaulo, vai?
ZITA:E se for? Compro um montão de confeite, só pra tu.
CHICO:Num gosto tanto assim de confeite...
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ZEQUINHA:Arrumo trabalho, alugo uma casa e levo todo mundo pra lá.
ZITA:Vige Maria, um vestido de chita! Fita e brilhantina pro cabelo tombém, Zequinha?
ZEQUINHA:E compro tinta pra tu mais mainha passar nas unhas. Vão brilhar que nem a
estrela do meio-dia.
CHICO:Pra mainha, tu compra tombém outro painho, compra?
ZITA:Oxente, nenê, pra que serventia vai ter outro painho?
ZEQUINHA:Só tu mesmo pra me fazer rir numa hora dessas. Se vê logo que tu num
passa de um bruguelo!(1) Pra mainha, eu compro tombém um rosário novo, uma máquina
de costura e um véu que nem os das moças de seu Anastácio.
ZITA:Coitadinha de mainha, Zequinha, que será que a coitada tá fazendo essa hora?
Cozinhando? Esfregando o chão? Capinando?
ZEQUINHA:Já tô inté vendo ela toda orgulhosa no dia de procissão com o véu e o
rosário. Tadinha, será que já tá na lida?
ZITA:Eu é que devia ter ido com Tião, sou mais moderna(2)! Já tá tão calejada da lida!
Além da vergonha de ter sido abandonada com quatro filhos, ainda ter que se sujeitar a
buscar guarida justamente com seu Anastácio.
ZEQUINHA:Tão cansada, tão mirradinha! Tenho tanta pena de mainha, Zita. Aquele filho
de uma rapariga de painho, inda me paga. Não acredito que o Mijão sabe escrever, como
diz Padre Osório, se sabe por que diacho num escreve logo certo? Vou pra Sumpaulo,
vou aprender a escrever e vão ver. Vai ser a escrita mais certa do mundo. E inda vou
tocar viola, oxe!
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ZITA:Oxe, tu vai ser o maior cantador do mundo! Já tô inté vendo, com um Crucifixo de
ouro pendendo no peito e uma viola brilhando que nem a brilhantina dos cabelos.
CHICO: (chupando o dedo polegar) Zequinha, tu compra tombém uma viola pra mim,
compra?
ZITA:Oxente, nenê, uma viola?
ZEQUINHA: E tu vai chupar uma viola? Bacorinho(3) chupa dedo e confeite que nem tu.
CHICO:Quando for grande vou pra Sumpaulo tocar viola tombém.
ZEQUINHA:Mas...
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ZITA:Psssiiuu! Graças a Deus, pelo menos dormindo o tempo passa pra ele. Pobrinho,
tão pequeno...
ZEQUINHA: E dizem que o Mijão olha pras criancinhas. Quando tiver missa na Capela
vou é dizer uns desaforos bem lá – dentro da casa Dele. E inda vou mijar na batina do
Padre Osório, aquele mentiroso.
ZITA:Oxente, pare de arengar tanto com Deus. Vamos papear sobre teus sonhos, vamos.
ZEQUINHA:É...Inté que o estrondo do estrombo(4) seja mais alto e acorde a gente. Deus,
padre, pai. Tudo farinha do mesmo saco.
ZITA:Nem todos devem ser assim, Zequinha. Existe gente de toda qualidade e, mainha
diz que a gente tem que respeitar pai e mãe. Por isso é melhor aceitar o que painho fez.
Se pelo menos a gente conseguisse sonhar dormindo que nem Chico.
ZEQUINHA:Isso é doidice de mainha, a gente tem que respeitar quem respeita a gente.
Embora vadiar no nosso sonho que isso ninguém tira. Ah, já ia me esquecendo...Um
radinho de pilha e uma televisão.
ZITA:Endoidou de vez?! Tudo isso? Desse jeito num vai sobrar pra viola do Chico. Nosso
Senhor Jesus Cristo, temos que rezar pra que seu Anastácio não saiba que ele é nosso
pai, senão mainha tá perdida.
ZEQUINHA:Vige, nem pense nisso. Pensar pequeno, tudo se amiúda. Penso logo grande
pro tombo rachar o quengo. Tive uma luz, volto gorinha.
ZITA:Onde tu vai? (Zequinha sai em disparada)
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CENA IV
SEGUNDO NÍVEL
Uma pequena sala aparentando um escritório. O único ornamento é um quadro de
um homem sisudo com um sorriso forçado na parede, numa mesa pequena se
encontram alguns papéis, uma máquina de escrever manual, uma pequena máquina
de calcular também manual. Ambos estão de pé com os olhos assustados,
observando o retrato.
TIÃO:Vige, mainha, se ele rindo tem essa cara, como será quando tá brabo?
MADALENA:Sei não, Tião, acho melhor tu esperar lá fora. Aproveite pra descansar
sentado lá no batente, quando tudo tiver acertado eu te chamo.
TIÃO:Será que eles arranjam um copo d’água?
MADALENA: Num peça nada, visse? Já viemos pedir trabalho. Chega.
TIÃO:Mainha, num quer mesmo que fique mais a senhora?
MADALENA:Num se aperreie, visse bichinho, que fico com Nossa Senhora mais o Filho
dela.
ANASTÁCIO: (olhando-a de cima a baixo) Quer falar comigo?
MADALENA:Eu...Tião...Nós...Quer dizer...Tião mais eu...
ANASTÁCIO: (continuando a olhar os papéis)Desembucha peste, é gaga?!
MADALENA:Não, coroné, é que num vi o sinhozinho entrar. E agora na sua frente me
deu uma gastura.
ANASTÁCIO:Hum, agora já viu. Que quer?
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MADALENA:Sinhozinho, apenas um trabalho pra mim. E se der, pro meu Tião.
ANASTÁCIO:Quantos anos tem?
MADALENA:Trinta anos, sim sinhô; sei que tô magra, mas tenho disposição pra qualquer
trabalho. Lavo, passo, cozinho e, um montão de coisas que num lembro agora não, sinhô!
ANASTÁCIO:Tô perguntando o filho.
MADALENA:Tião tem treze, é homem feito, sabe manejar uma enxada muito bem.
ANASTÁCIO:Num dá pro trabalho. O governo num deixa mais pegar frangotes.
MADALENA:Mas, sinhozinho, só existe seu Sítio por aqui, onde o menino vai trabalhar?
ANASTÁCIO:Discuta isso com Brasília, oxente!
MADALENA:Num conheço nenhuma Brasília, não sinhô!
ANASTÁCIO:(levantando-se impaciente)Vire-se!
MADALENA:Acuma?!
ANASTÁCIO:(fazendo o movimento de giro com as mãos)Dê uma volta, já disse que
não tenho o dia inteiro, que gota!
MADALENA: (falando rápido)Já disse que tô um bocadinho magra, sinhozinho, mas
disposição pro trabalho é lá coisa que nunca me faltou. Juro por tudo o que é mais
sagrado.
ANASTÁCIO:Oxente, já vi que gaga tu num é. Tem marido? Quantos buchos?
MADALENA:Tenho quatro filhos. Ah, se quiser, sei inté costurar...
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ANASTÁCIO:Hum, quatro buchos, acho que tu num dá pro trabalho não. Anacleto me
paga. Me fazer perder tempo. Vive mais teu cabra?
MADALENA:Vivo não, sinhozinho.
ANASTÁCIO:Morreu?
MADALENA:Foi embora.
ANASTÁCIO:Então, tu não dá pro trabalho mesmo.
MADALENA:(com lágrimas nos olhos)Coroné, por caridade, em casa num tem nada
pros bichinhos; juro que posso capinar por quatro de seus pião e, limpo suas botas e...Se
pegar o Tião, neste cafundó do mundo, cumé que o governo vai saber?Nós num fala nada
pra ninguém. Ah! Sei inté costurar e...
ANASTÁCIO: (saindo)Que merda, já disse isso, estrupício! E também já disse que não
quero encrenca com Brasília e se teu homem foi embora, boa coisa tu não dá,
depois...Quatro bucho, tá estragada demais, já disse. (virando-se pra ela) A não ser que
tu tenha uma cabrita. Tem?
MADALENA:Zita?!
ANASTÁCIO:É calunga, tua Zita?
MADALENA:Calunga?! É mais que isso, sinhozinho, é faceira, parece inté uma fulô. Faz
de um tudo que ensinei.
ANASTÁCIO:Sei...Sabe inté costurar.
MADALENA: Lá isso sabe mesmo. Cabrita danada tá ali.
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ANASTÁCIO:Mas, se tu tem trinta, quantos anos ela tem? Não quero problemas. Esses
desocupados de Brasília agora resolveram olhar pras bandas da gente, só pra bisbilhotar.
Proteção ao menor, que merda! Aporrinhação pra riba de quem quer agir direito.
MADALENA:Menina obediente tá ali. Zita jamais ia lhe dar qualquer aperreio, lá isso é
certo. Ensinei a respeitar os mais velhos, sim sinhô!
ANASTÁCIO: (impaciente) Sim, mas quantos anos?
MADALENA: Já é moça feita, sim sinhô, tem quinze.
ANASTÁCIO:Hum, acho que os homens iam gostar. Já conheceu algum homem?
MADALENA: (sem entender)Oxente, coroné, já disse: tenho trinta anos, quatro filho e
cumé que não havera de conhecer homem?
ANASTÁCIO:Mas que gota, mulé, tua Zita. Já conheceu homem?
MADALENA:Quem?! Zita?!
ANASTÁCIO:Sim, num é dela que tamos falando? É...Menina moça ainda?
MADALENA:Ainda?! Mas...por mode quê?! O sinhô me desculpe, mas num atinei pra sua
pergunta, não.
ANASTÁCIO: Anacleto me paga. Tu parece uma songa monga, mulé! Tô falando de Zita,
quero saber se é menina moça ou mulé feita, entendesse?
MADALENA: Mas, Sinhozinho...
ANASTÁCIO: Preciso de mulé pros meus pião, visse? Maricota tá com falta de sangue
novo. Só duas não dá. Tua Zita precisa trabalhar, uma mão lava a outra, oxente!
MADALENA:Minha Zita pros seus pião?!
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ANASTÁCIO:É mouca, peste? Os solteiros tão ariscos, falta de vadiagem. Se resolvo
esse problema é colheita salva. Tiro do salário deles pra pagar tua cabrita, inda vão me
achar o melhor patrão do mundo.
MADALENA:(jogando no chão o rosário) Coroné, o sinhô num tem três cabritas?!
ANASTÁCIO:Três formosuras, guardo que nem um cão. Já percebi os olhos dos homens
pra riba delas. Por isso meu zelo.
MADALENA:(gritando)Não, sinhozinho, tô falando das cabritas bicho. Não ia desejar
uma coisa dessa pra suas donzelas, coroné. As coitadinhas num tem culpa de ter um
jumento como pai.
ANASTÁCIO:Fora! Sua quenga! Nem pra isso tua filha me serve, desgramada.
MADALENA:(pegando o rosário do chão) Por que não mandou sua mulé se deitar com
seus pião? Num fugia com outro cabra e inda economizava os tostão, seu corno! (sai)
TIÃO:Esse filho duma égua lhe bateu, foi? Meto-lhe uma peixeira no bucho.
MADALENA:Foi o filho duma égua do teu pai que me deu mais um tabefe na cara,
aquele desinfeliz. Aquele peste é que merece uma boa peixeirada.
TIÃO: Então seu Anastácio sabia que painho fugiu tombém com a mulé dele, foi?
MADALENA: A única coisa que fez de bom na merda da vida além de vocês, foi ter
fugido com a mulé e mais o dinheiro todinho da última safra desse safado. Lazarento!
TIÃO:É...Bem feito! Cabra macho. Fugiu com a safra mais a mulé. E agora, mainha?
MADALENA:(estraçalhando o rosário) Eles me pagam. Padre Osório mais Jesus mais
Nossa Senhora mais Padim Ciço e inté Deus!
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TIÃO: Mainha?! Esqueceu que é filha Dele?
MADALENA:Ele que esqueceu, Tião. Pecado é num ter o que dar procês comer, isso sim
é pecado. Quero que vão todos pros quintos dos infernos. E nem tive o gostinho de enfiar
goela abaixo daquele merda que foi teu pai...
TIÃO: (admirado)Então ele num sabe? Por mode quê, então, aquela zoada toda?
MADALENA: Tu é muito novo pra enxada...Eu, estragada pra peãosada. Zita era a
medida certa.
CENA V
PRIMEIRO NÍVEL
Zita sai do casebre e dá de encontro com Zequinha que chega triste.
ZITA:Por onde tu andou? Por que esse queixo enfiado no peito, homem de Deus! Tu
chorou?
ZEQUINHA: (cabisbaixo)Me deixa!
ZITA:Zequinha, que foi? Tu andou chorando?
ZEQUINHA:E lá sou homem de choradeira. A poeira me queimou os zoio.
ZITA:Conte o que sucedeu, homem! Fosse onde? Nunca vejo tu chorar.
ZEQUINHA:Homem...Quem dera! Sou é um frouxo de um moleque que nem consegue
ficar em dois pés. Sou mais é um jegue, tenho mesmo é que tá de quatro, com a cara no
chão. Chão cortado com a língua quente do calor dos infernos.
ZITA:Assim tu me aperreia, fale homem de Deus, que foi?
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ZEQUINHA:Vi seu Quinzinho passando com um pacote nas mãos. Só podia ser comida.
Esperei uns minutos, tentei pular o monturo por duas vezes, mas as pernas faltava na
hora do salto. Fraqueza da gota!
ZITA: Zequinha do céu, tu ia roubar? Assim tu me mata de vergonha.
ZEQUINHA:Quem vai te matar é a fome.
ZITA:Tu sabe que mainha já disse que sou aqui em casa que nem seu Anacleto é pro seu
Anastácio. Me arrespeite!
ZEQUINHA:Tu pensa que é o quê? Braço direito de mainha? Que nem seu Anacleto é
pro seu Anastácio? Tu tentou e voltou com as mãos vazias. Tu é mais uma mão vazia de
mainha. Isso que tu é. Só porque te deu seu nome...
ZITA:(dando uma tapa no rosto do irmão)Isso é pra tu nunca mais bulir no que é dos
outros. E mainha já contou essa história do nome mais de mil vez.
ZEQUINHA:(com o olhar duro) Num consegui nem pular o muro. Na horinha agá, o chão
sumiu e quando olhei pra trás só senti o bafo do seu Quinzinho no meu cangote.
ZITA:Vige Maria, o cabra ainda te levantou pelo cangote, foi? Mainha te mata.
ZEQUINHA:Zita, ia só pegar um tiquinho de alguma coisa, qualquer coisa...Inté um
bocadinho de açúcar pra uma garapa.ZITA:Por que num pedisse?
ZEQUINHA:Tu ainda não aprendeu que quem tem, esconde a sete chaves? Nunca
pensei que 12 fosse demorar tanto, pelo menos o lixo de Sumpaulo deve de ser rico.
ZITA: Perdão Zequinha pela tapa, mas é melhor pedir do que pegar dos outros. Quando
tiver missa na Capela, vai ter que pagar penitência. Padre Osório vai te comer vivo. Bote
joelho em cima de milho nisso. Tu vai se lascar!
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ZEQUINHA:No caminho de ida, contei tudo pro Mijão sulista. Falei direto com Ele. Disse
inté que ia ser só o açúcar. Pecado barato. Cadê que me escutou? E tu acha que tô
ligando prum padreco que nem o boiola do Padre Osório?
ZITA: E como é que tu quer que Deus te escute se tu só trata Ele de mijão?
ZEQUINHA:Além de Mijão sulista é Porco nortista, só faz limpeza por lá. Visse a sujeira
dessa terra seca? É pó que suja inté nossos miolos, fazendo a gente falar besteira.
ZITA:Limpeza?!
ZEQUINHA: Tu tá escutando algum trovão? Tá ouvindo o tal Deus arrastar os móveis, tá?
ZITA:Disse isso pro Chico só pro bichinho não se assustar com o trovão.E isso foi há
tanto tempo.
ZEQUINHA:Tempo demais, Zita, tempo demais. Num me alembro nem do último pé de
macaxeira que plantei e vi nascer. Acho que tinha uns seis aniversário.
ZITA:Ave, tu inté já parece um cantador. Falou danado de bonito, oxente! Tô orgulhosa.
ZEQUINHA:É a palavra mais linda que já ouvi...(enchendo a boca) A-ni-ver-sá-rio! Num
vejo a hora de aprender a desenhar ela no papel. Me lembra o dia que painho me levou
na casa da Maricota e ela disse: “Entre! Hoje faço aniversário.” Comi o taco de bolo e
fiquei chupando os dedos. E rimando aniversário com desejo guardado num armário.
ZITA:Tu fala cada doideira. E tá se esquecendo que mainha te deu uma pisa que marcou
teu corpo todo? Onde já se viu, ir em casa de mulé dama mais painho.
ZEQUINHA:Já tinha comido o relicário!
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ZITA:Zequinha, tu pensa tão bonito, mas falando em comida, cadê eles que num voltam?
Daqui a pouco o Chico acorda e vai ser aquele chororô dos diabo. Aí nem teu pensar
formoso vai encontrar rima pra zoeira.
ZEQUINHA:Acorda...ou volta do desmaio?
ZITA:Já sei!É isso! Passaram na venda.Painho disse que seu Anacleto anota num
caderno e o povo compra por conta.
ZEQUINHA:E o povo tá sempre devendo e nunca vê tostão. Em Sumpaulo, vou é
comprar em supi...como é (pensando) Supi...Zita, cumé mesmo o nome daquela venda
que Mundinho falou?
ZITA:Sei lá, Mundinho voltou de lá todo pabo.(5) Tudo é grande! Tem mais carro que
gente. Uma casa em cima da outra. Ô mentira! Nem nas histórias pro Chico minto tanto.
ZEQUINHA:Eita, gota!Pega a comida na venda e não paga. Ô, meu Pai, nem se carece
ensaiar tanto pulo.
ZITA:Tu num entendeu. Paga na saída. Se sai sem pagar, tu é preso, visse?
ZEQUINHA:Falei pro seu Quinzinho: me manda pra cadeia? Me deu foi um tabefe. Nem
cadeia. Merda, pelo menos lá se come.
ZITA:Te quieta, Zequinha, te dou outra tapa se não limpar esse pensar. Preso tu num vai
à lugar nenhum. Livre tu pode ir onde teus pés levar. Já te esquecesse de Sumpaulo?
ZEQUINHA:Sumpaulo! Que belezura! Casa em cima de casa. Por isso, Ele mija tanto por
lá. A reza chega logo. As casas quase que furam o céu.
ZITA:Mainha disse que Deus ouve de qualquer lugar. Somos todos filhos Dele.
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ZEQUINHA:Sei não...sei não! Então, acho que fui adotado. Historinha pra bruguelo
dormir. Mundinho disse que trabalhou num buraco onde passa um trem embaixo das
casas. Tu já assuntou?
ZITA:Mais uma mentira do cão. Cumé que esse monte de casa não cai?
ZEQUINHA:Por isso deve ter tanto trabalho. Cai casa, faz casa. Casa cai, outra tem que
fazer. Careço fazer doze logo pra ver isso de perto.
ZITA:E eles, Zequinha? Tô que num me guento de aflição. Só escuto o ronco do bucho.
ZEQUINHA: Devem tá na venda que marcam no papel pra gente pagar a vida inteira.
Sem ver tostão!
CENA VI
SEGUNDO NÍVEL
Madalena chora sentada no chão, com Tião deitado no seu colo.
TIÃO:(acarinhando a mãe)Chore mais não, mainha, isso me corta o coração. Dói fundo!
Chore não, visse?
MADALENA:(levantando-se rápida) Tô chorando por todos nós, Tião. Mais por Zita,
pobre filha!
TIÃO: Zita, sempre Zita! Só porque é mulé e porque tem seu nome.
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5)-MENTIROSO, ORGULHOSO: corruptela de pábula, idem (Aurélio)
MADALENA:Oxente, Tião, mainha padece por todos. Pelos meus e pelos outros que
sofrem nesse chão seco. E já contei procês essa história do nome. Não me aperreie mais.
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TIÃO:Mas, mais por Zita! (passando a mão no chão) Como me dói ver esse chão todo
partido. Sinto como se a terra gemesse de tanta dor.
MADALENA: (secando os olhos com a barra da saia e fazendo o sinal da Cruz)Não,
meu Deus, isso não! Minha Zita não! Vamos embora embora, que ainda tem chão.
TIÃO:Ô, minha mãe, embora descansar mais um tiquinho, num guento. A moleira tá
quente que nem brasa. Deixa o sol baixar um pouquinho, aí nós volta. (faz um
movimento com o braço colocando a mão em cima da cabeça, deixando entrever o
cós do short surrado)
MADALENA: Que é que tu tem escondido aí?
TIÃO: (afastando-se pálido)Nada não, mainha!
MADALENA:Tião, onde arrumasse isso? (olhando penalizada duas cascas de banana
já escurecidas pelo contato com o corpo)
TIÃO:As moças jogaram pela janela, minha mãe, juro, não pedi nem roubei. Só esperei
elas sair de lá. É pros meninos, assim nós num volta com as mãos vazias.
MADALENA: (beijando o filho no rosto)Tião, vai só, tu sabe voltar sozinho, num sabe?
TIÃO:Oxente, mainha vai embora que nem painho?
MADALENA: Nem que Deus em pessoa me obrigue. Mainha vai num pé e volta noutro
com as mãos cheias das coisas, nem que tenha que passar por cima do próprio Deus.
TIÃO:Que é que digo pros meninos?
MADALENA: Que mainha cansou e agora vai negociar com o diabo. Depois pago minha
dívida com Deus! (anda com a cabeça baixa para o lado oposto ao de Tião)
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CENA VII
PRIMEIRO NÍVEL
O mesmo casebre, sem as roupas penduradas do começo, com um banco de
madeira rústico e uma cortina com fitas coloridas enfeitando a soleira da porta.
MADALENA:Ô de casa!(silêncio)ô de casa!(bate palmas)Me adesculpe, tem alguém aí?
MULHER:(seminua)Mas que gota é isso aqui? Que quer, desgramada! Só vivo
despachando pedinte.
MADALENA:Me adesculpe, dona...Mas bati e ninguém atendeu.
HOMEM: (vestindo a camisa)Tu num disse que ninguém ia chegar, cadela!
MADALENA: (virando as costas)Me adesculpe, meu sinhô!
HOMEM: (empurrando Madalena)Sai pra lá peste!
MULHER:Ei, e o dinheiro?
HOMEM:Me faz uma desfeita dessas e ainda quer dinheiro? Ah, se o coroné sabe duma
coisa dessa!
MULHER: Visse o que tu fez? Maricota me esgoela. Que merda de vida!
MADALENA:A senhora é...Dona Maricota, é?
MULHER:Foi na venda, volta logo.
MADALENA:Graças a Deus! Me adesculpe, inté! (voltando) Não. Aqueles desgramados
em cima de minha Zita, não. Nunca! Com as mãos vazias, não!
MULHER:É abilolada? Eita gota serena!
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MADALENA:A senhora acha que dona Maricota demora muito, acha?
MULHER: Dona?! Deus me valha! Oi ela lá, vai me matar quando souber que o cabra
num pagou na hora, culpa tua peste!
MARICOTA:Deus, mais uma pedinte? Tenho nada não, essa menina. Passe outra hora.
MADALENA:Dona Maricota, preciso que me ajude, tenho nada em casa não, por Nosso
Senhor Jesus Cristo, me ajude, mais ainda por Zita! Quero outra sorte pra bichinha!
MULHER: (gargalhando)Oxe, abilolou de vez. Deus me valha!
MADALENA:Dona Maricota, num posso voltar pra casa com as mãos vazias, meus
bichinhos tão esperando com fome, eu... Se tivesse lágrima chorava, mas inté isso secou!
MULHER: Cruz credo, com essa quentura toda, a lesa tá com os miolos mole!
MARICOTA: Sente aqui. Ô essa menina, traz uma caneca d’água.
MULHER:A desgramada me fez perder o pagamento, visse?
MARICOTA:Já sei, encontrei o cabra no caminho. Depois paga.
MADALENA: Me adesculpe, dona Maricota, inda fiz perder freguês.
MARICOTA:Eles voltam, pois num tem outro chiqueiro pra onde se lambuzar.
MULHER:Mas se fartam e sempre pulam fora do monturo, antes de botar as mãos nos
bolsos imundos.
MADALENA:Acho que lhe dei mesmo um baita dum prejuízo, Dona. Num tive intenção.
MARICOTA:Dona?! Sabe o que sou?
MADALENA:Sei sim, senhora. É uma pobre castigada pela sina que nem eu.
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MARICOTA: E mesmo sabendo quem sou, quer de mim o quê?! Tome. (dá um pão)
MADALENA: (surpresa)Oxe, carece não senhora. A água já bastou.
MARICOTA:Tome mulé, tu tá tesa de tanta fome.
MADALENA:(guardando numa sacola)Deus lhe abençoe, Dona. Ele há de lhe alumiar
mais que esse sol com que castiga nós.
MARICOTA: Amém. Oxente, num vai comer?
MULHER:Não disse que é troncha?
MADALENA:Sou não, o pão é pros meninos. Deus lhe pague!
MARICOTA:Ah, vai com Deus, então!
MADALENA: Deus me deu uma provação, deve saber o que faz. Num tenho nada de
meu; só este peito tísico e magro pra me sujeitar a qualquer prova, mas nunca hei de
deixar meus filhos ao léu. Num quero roubar, nem matar, por favor, me ajude!
MULHER:Como?! Também vivemos como todos, numa miséria de vida.
MADALENA:Quero trabalhar pra senhora.
MARICOTA: Como mulé dama?!
MADALENA:Vejo outro jeito não! Os meninos...
MARICOTA:Num carece nem dizer, se tu tá assim...E teu homem? Morreu?
MADALENA: (firme)Morreu. E, sei que boa coisa não dou; tô só o caco, mas se me der o
trabalho; arranjo bofe pra aguentar; faço das tripas coração; mas, pelo amor de Deus, me
deixe ficar. A sorte de meus meninos é que nunca hei de mudar. Hão de ser gente!
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MARICOTA:Tu é danada de valente, mulé! Tem que ter tutano pra coisa.
MULHER:Oxe, deve ter outra saída, já pensou em...Procurou o coroné?
MADALENA:Não me quis nem pro seu ofício! Num quis meu Tião, que posso fazer? Só
quer minha Zita de quinze pros pião dele.
MARICOTA: (cuspindo no chão)Aquele peste! Cumé teu nome?
MADALENA:Anezita...Madalena! Madalena...Anezita! Tanto faz. Boa coisa eu num dou,
sinhá, mas se me deixar ficar, posso tentar.
MULHER:Vige, Maricota, com essa quentura toda a lesa tá mesmo com os miolos
mole...É Anezita ou Madalena?
MARICOTA:Cala a boca, essa menina, por mode quê pisar na pobre? Fale!
MADALENA:Isso é arenga antiga. Painho queria Anezita que é nome de voinha...Mainha,
Madalena que é nome de Santa. Atendo pelos dois. Prefiro Madalena. Botei Anezita na
filha, pensando em sorte melhor.
MARICOTA:Tu acha mesmo que tem bofe pra aguentar?
MADALENA:Arrumo, sinhá, se me arrumar o serviço, arrumo inté um milhão de bofe.
Mas a sorte dos meus bichinhos há de ser muito melhor.
MULHER:Madalena...Que sina! Ela não tem mais nada de seu. Deixe ficar.
MARICOTA:Madalena, num carece pisar na tua honra, essa menina. Tu é mulher direita,
é mãe de família, fique! Tu faz os serviços da casa que assim me sobra tempo pra cuidar
melhor dos negócios. O pouco nos arreparte.
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MADALENA: (beijando a mão de Maricota)Deus lhe abençoe e guarde no seu Reino!
(olhando para a Mulher) Pra senhora tombém. E ai de quem na minha frente falar mal de
mulé dama. Têm em mim um cão de guarda.
CENA VIII
SEGUNDO NÍVEL
Os quatro irmãos estão sentados no mesmo lugar onde anteriormente estiveram
Tião e Madalena. É início do entardecer.
TIÃO:Foi aqui.
ZITA:Mas pra que lado mainha foi?
ZEQUINHA:Inda acho que tu tinha que ir junto, cabra.
CHICO:Cadê mainha? Tu disse que ela ficou aqui.
ZITA:Mainha não conhece as redondezas, deve ter se perdido. Depois com essa secura
toda, tudo parece tão igual.
ZEQUINHA:Tião, será que voltou pra casa do seu Anastácio? Tem certeza que tava no
juízo certo?
TIÃO:Já disse que mãe arengou feio com ele, foi coisa do capeta, tava braba! Nunca ia
de voltar. Tava muito da macha. Xingou inté Deus!
ZEQUINHA:Então a coisa foi mesmo preta. Mainha nunca ia xingar o Mijão, nunca!
CHICO: (puxando a saia de Zita)Zita, mainha foi embora mais painho, foi?
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ZITA:Não, meu xodó. Mainha vem já.
TIÃO: (dando um safanão em Chico)Disse pra deixar esse bruguelo em casa.
CHICO:(chorando)Todo mundo vai embora, todo mundo mente pra mim. Tu disse que
mainha tava aqui e não tá. Quero minha mãe!
ZITA: (dando um safanão em Zequinha) Cala a boca bubônica(6)! Ao invés de ajudar,
inda atrapalha. A gente não carece de mais choradeira. Se mainha xingou inté Deus, deve
tá carecendo e muito da gente. Se tu deixou ela aqui, Tião, por aqui tem que passar.
Temos que ficar juntos e arrumar paciência pra esperar.
ZEQUINHA:Mais ainda?! De onde?!
TIÃO:Nem do coração. Do jeito que as tripas tão vazias não temos nem mais coração.
ZEQUINHA: E coração tem tripas?
TIÃO: Sei lá. Se tem, o nosso tá vazio e a gente vai...Acho que morrer.
CHICO: Então eu vou morrer?
(6) - Quando se quer dar ênfase ao xingamento, diz-se apenas bubônica, referindo-
se à epidemia do começo do século vinte. (Aurélio B. Holanda)
ZITA: Calem a boca! Vocês são duas bestas mesmo. Um se virar vaqueiro vai ser
chifrado na primeira investida de uma vaca. O outro se for pra Sumpaulo, vai ser
atropelado por um carro. (limpa a garganta e começa a cantar)
“Oh, Deus, perdoa esse pobre coitado,
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que de joelhos rezou um bocado,
pedindo pra chuva cair sem parar”
No fundo da plateia, outra voz responde:
“Oh, Deus, será que o Senhor se zangou,
e só por isso o sol se arretirou,
fazendo cair toda chuva que há”
A música continua a tocar, baixinho.
ZITA, TIÃO e CHICO: (correndo ao encontro da mãe) Mainha?!
MADALENA:Com o coração e as mãos cheias.
ZITA:A senhora vale mais do que vinte painho.
TIÃO: Mais do que mil Anacleto.
CHICO:Mais que um montão de confeite.
MADALENA:Januário, filho de uma quenga, taqui o meu outro taco de felicidade, nem eu
nem meus filhos carecemos de tua caridade. (abraçando Zequinha que fica à parte) E
tu, meu Zequinha, o que sou pra tu, nadinha?
ZEQUINHA: (com um sorriso triste) A senhora é tanta coisa que num sei dizer não. O
que vou fazer pela senhora é que tô matutando. São tanto pensar, tanta coisa, tanta
vontade, tanto querença, mainha! Sei não, o que a senhora é pra mim,mainha!
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MADALENA:(olhando, desafiadoramente, para o céu)Nem Tu Deus, ia me impedir de
ter essa alegria. Nem Tu!
A música sobe no trecho:
“...desculpe, eu pedi a toda hora pra chegar o inverno,
desculpe eu pedi para acabar com o inferno,
que sempre queimou o meu Ceará...”
FIM.
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(1)-CRIANÇA: Vocábulo usado por nossa informante que é oriunda do sertão
paraibano. Holanda, Aurélio B. de, dicionário.
(2)-MOÇA, JOVEM.
(3)-CRIANÇA OU BEBÊ: provém de bácoro, i.é., leitão pequeno, usado
carinhosamente. Holanda, Aurélio B. de, Dicionário.
(4)-Corruptela de estômago, idem (Aurélio)