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Colóquio “Regime Disciplinar dos Trabalhadores da
Administração Pública”
Ex.mo Senhor Diretor Geral da Administração da Justiça, Dr.
Luis Freitas,
Ex.ma Senhora Vice-Presidente do COJ, Dra. Rute Saraiva
Ex.mo Senhor Conselheiro Dr. Carlos Carvalho,
Ex.mo Senhor Desembargador Dr. Vitor Ribeiro
Ex.mos Senhores Oradores,
Demais Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Quero, antes de mais, agradecer o amável convite que me foi
dirigido pelo Conselho dos Oficiais de Justiça, na pessoa do Senhor
Presidente, Dr. Luis Freitas, no sentido de participar na abertura
deste Colóquio, dedicado ao “Direito Disciplinar Público ”.
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Permitam-me também deixar aqui uma palavra especial de apreço
e de reconhecimento ao COJ, à sua Vice-Presidente Dra. Rute
Saraiva e à DGAJ por trazerem à reflexão, uma temática tão atual
e com tanta importância prática.
De facto, a matéria da Responsabilidade Disciplinar reveste-se de
uma enorme relevância sob um triplo ponto de vista:
Desde logo, do ponto de vista do funcionamento das
Organizações.
Com efeito, dado que o êxito e a imagem de qualquer organização
dependem do brio e do caráter dos membros que a integram, o
instituto da responsabilidade disciplinar assume-se como uma
ferramenta indispensável para garantir o seu bom funcionamento,
permitindo corrigir, reprimir e, no limite, afastar aqueles que
comprometem este objetivo.
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Não admira, por isso, que, nos dias de hoje, o Direito Disciplinar
se apresente como uma realidade jurídica transversal a todas as
áreas da sociedade, desde o setor público ao privado, desde a
magistratura às profissões liberais, desde os militares aos alunos do
ensino básico e secundário.
Em segundo lugar, do ponto de vista dos direitos fundamentais.
Na verdade, face à gravidade das sanções suscetíveis de serem
aplicadas em sede de poder disciplinar − e que podem mesmo
traduzir-se na amputação de direitos fundamentais como o direito
ao livre exercício da profissão −, a Responsabilidade Disciplinar
assume-se como um tema particularmente delicado, sobre o qual se
projetam, com especial intensidade, diversos princípios
constitucionais.
Assim sendo, e tendo em conta a natureza dos interesses em jogo,
exige-se, desde logo, da parte do Legislador um especial cuidado
na conformação dos regimes que enquadram o exercício do poder
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disciplinar, de modo a incorporarem as exigências e as garantias
que a Lei Fundamental estabelece neste domínio.
Pelas mesmas razões, exige-se também da parte das Instituições um
especial rigor na condução dos procedimentos disciplinares, em
especial no que toca ao cumprimento das formalidades essenciais
à defesa do arguido e, se for o caso, na demonstração do
preenchimento dos requisitos de que depende a aplicação das
sanções.
Finalmente, do ponto de vista do funcionamento dos tribunais,
e em especial dos tribunais administrativos.
É que, conforme ficou bem evidenciado no Estudo realizado pelo
OBSERVATÓRIO PERMANENTE DA JUSTIÇA DO CENTRO DE
ESTUDOS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, o Contencioso
do Emprego Público – que, como se sabe, tem a sua origem, muitas
vezes, na impugnação de sanções disciplinares − é justamente a
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matéria que mais ocupa os tribunais administrativos de primeira
instância.
A este respeito, permitam-me aqui assinalar que, com vista à
racionalização do funcionamento dos tribunais desta jurisdição, o
Governo, no âmbito da Proposta de Lei tendente à revisão do
ETAF, propôs a criação de “juízos administrativos sociais”, ou
seja, instâncias jurisdicionais especializadas em litígios emergentes
do vínculo de emprego público.
Trata-se aqui de uma opção que era fortemente aconselhada, não
apenas pelo elevadíssimo volume processual existente nesta área,
mas também pela especial complexidade que caracteriza estes
litígios.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
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Temos assistido, nas últimas décadas, a um aprofundamento do
estudo das questões ligadas ao Direito Disciplinar, tanto na sua
dimensão substantiva como na sua vertente processual.
Esta reflexão permitiu evidenciar as especificidades deste Ramo do
Direito, conduzindo a uma progressiva autonomização do Direito
Disciplinar face aos quadros do Direito Penal.
Esta especificidade manifesta-se, desde logo, no princípio da
atipicidade das infrações disciplinares.
De facto, contrariamente ao Direito Penal, o Direito Disciplinar não
foi construído em torno da exigência de tipificação densificada e
exaustiva das condutas que podem ser qualificadas como “infração
disciplinar “.
Com efeito, no âmbito do Direito Disciplinar, o ilícito decorre mais
da violação de um dever e menos da adoção de uma conduta
descrita na lei.
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De qualquer forma, é importante realçar que este processo de
autonomização tem vindo a ser acompanhado e contrabalançado
pelo progressivo alargamento das garantias do Direito Penal ao
Direito Disciplinar.
Como marco histórico desta evolução, podemos destacar o acórdão
proferido pelo TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM no
âmbito do caso “König” de 28 de junho de 1978.
Aí se afirmou que a sanção disciplinar de inibição do exercício da
profissão de médico estava sujeita às garantias jurisdicionais e
processuais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem − que consagra, como se sabe, o “Direito a um Processo
Equitativo”.
Na sequência desta evolução, é hoje indiscutível que o Direito
Disciplinar não pode ser compreendido à margem dos princípios e
das regras nucleares do Processo Penal – designadamente, do
direito à assistência por um defensor, do princípio do contraditório,
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do direito de consulta do processo e, obviamente, do direito de não
ter que provar a sua inocência...
É isto que resulta também da nossa Constituição.
Com efeito, a Lei Fundamental, no seu artigo 32.º, n.º 10, manda
expressamente aplicar aos Processos Sancionatórios duas das
garantias mais importantes consagradas no âmbito do Processo
Penal: os direitos de audiência e de defesa do arguido.
É por isso que, como refere a Professora ANA FERNANDA NEVES
numa expressão feliz:
“As garantias do processo penal surgirão como o magma das
garantias de um processo sancionatório público”.
A este respeito, é importante salientar que a nossa Constituição
dedica uma especial atenção ao Direito Disciplinar, reconhecendo
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a sua autonomia, a sua diversidade institucional e a pluralidade de
competências sancionatórias que o caracterizam.
Demonstra-o, desde logo, o facto de a “definição do regime geral
de punição das infrações disciplinares” estar expressamente
incluída na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República, por força da alínea d) do n.º 1 do artigo
165.º.
Por outro lado, percorrendo o texto constitucional, encontramos
referências ao regime disciplinar próprio dos Deputados, dos
Juízes, dos Magistrados do Ministério Público, dos Militares, e da
Função Pública.
Por outras palavras: a Constituição, depois de consagrar a
autonomia do Direito Disciplinar face ao Direito Penal, reconhece
a existência de vários Direitos Disciplinares, cada um deles dotado
de traços específicos que reclamam soluções próprias.
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Particularmente interessante, é o exercício de funções disciplinares
por parte do Conselho dos Oficiais de Justiça.
No n.º3 do artigo 218.º da CRP consagra-se que «A lei poderá
prever que do Conselho Superior de Magistratura façam parte
funcionários de justiça, eleitos pelos seus pares, com intervenção
restrita à discussão e votação das matérias relativas à apreciação
do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre
os funcionários de justiça».
Resulta diretamente desta norma da CRP, que os funcionários de
justiça podem também compartilhar do regime de autonomia dos
juízes, cabendo ao CSM a apreciação do respetivo mérito
profissional e o exercício do poder disciplinar, o que não significa
o reconhecimento de uma reserva exclusiva ao Conselho Superior
da Magistratura do exercício do poder disciplinar sobre os oficiais
de justiça, nem a proibição de conferir tal competência em especial
ao Conselho dos Oficiais de Justiça.
Daí que, na sequência do Acórdão n.º 73/2002 do Tribunal
Constitucional, proferido nos termos previstos no n.º 3 do art.º
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281.º da CRP, que julgou inconstitucionais as normas do Estatuto
dos Oficiais de Justiça que atribuíam essa competência em
exclusivo aos COJ, por considerar não ser constitucionalmente
admissível que a lei ordinária exclua de todo a competência do
Conselho Superior da Magistratura para se pronunciar sobre tais
matérias., o legislador ordinário, por meio do Decreto-Lei n.º
96/2002, pese embora tenha continuado a atribuir competência
disciplinar sobre os funcionários de justiça ao Conselho dos
Oficiais de Justiça (artigo 98º), passou a prever a possibilidade de
recurso para o Conselho Superior da Magistratura das suas decisões
proferidas no âmbito dessa competência, conforme resulta do nº 2
do artigo 118º do EFJ.
Para além disso, veio conferir ao Conselho Superior da
Magistratura o poder de instaurar (alínea d) do nº 1 do artigo 94º)
e de avocar processos disciplinares (nº 2 do artigo 111º), bem como
o de revogar as deliberações do Conselho dos Oficiais de Justiça
proferidas em matéria disciplinar (mesmo nº 2 do artigo 111º).
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É entendimento do TC que a consideração conjunta destas
diferentes alterações permite concluir que a última palavra em
matéria disciplinar, no que respeita aos funcionários de justiça,
cabe ao Conselho Superior da Magistratura, não sendo possível
continuar a entender que as normas que atribuem competência em
matéria disciplinar ao Conselho dos Oficiais de Justiça, neste
contexto, infringem o disposto no nº 3 do artigo 118º da
Constituição.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Nos tempos mais recentes, os temas ligados ao Direito Disciplinar,
em especial ao Direito Disciplinar da Função Pública, têm vindo a
suscitar um especial interesse por parte da doutrina.
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Neste sentido, tem vindo a ser discutida a compatibilidade do
princípio da presunção de inocência com os preceitos legais que
consagram a executoriedade imediata das sanções disciplinares e o
efeito não suspensivo das competentes ações de impugnação.
Com efeito, segundo alguns Autores, o princípio da presunção de
inocência só será salvaguardado quando for alterado o modelo
atualmente desenhado na Lei, ou seja, quando tiver de ser a
Administração a recorrer aos tribunais para acionar os efeitos da
pena disciplinar aplicada…
De igual modo, alguma doutrina tem vindo a propor uma nova
visão sobre o alcance do princípio do acusatório no âmbito do
processo disciplinar público, sustentando que a fase instrutória
deveria ser atribuída uma entidade exterior à Administração
Pública, o que promoveria uma maior imparcialidade e
independência na condução daqueles processos…
Minhas Senhoras e meus Senhores,
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Despeço-me agora, com a certeza de que estas e muitas outras
questões candentes do Direito Disciplinar serão objeto de análise e
de discussão por este ilustre Painel de Oradores e com convicção
de que deste Colóquio surgirão valiosas propostas de ação para o
Futuro!
Muito obrigada!