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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 29/04/2012 ————————————————————————————————————————————— 1 Nº 15 Belo Monte e o progresso (CLÁUDIO REIS) TAL COMO o agronegócio se tornou uma poderosa máquina de acúmulo de capital em grandes extensões do País, as usinas, (em especial Belo Monte) se destacam como postos avançados da economia capitalista nacional Há várias décadas, o Estado brasileiro vem tentando implementar uma série de medidas voltadas para o "progresso" econômico e social do Norte do País. Inúmeros incentivos já foram criados para viabilizar, por exemplo, o povoamento do vasto território com indivíduos oriundos de outras localidades, especialmente do Sul. Diversas facilidades foram criadas para que a região recebesse os colonizadores, responsáveis por trazerem novas relações econômicas, culturais e sociais. Na década de 1950, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), propôs elaborar um planejamento em que a pecuária funcionaria como um complemento da vida agrícola que era, por sua vez, sinônimo da colonização. Da "conversão da população a novos hábitos e técnicas" dependiam os efeitos futuros e a permanência dos resultados desse Programa de Valorização Econômica. A intenção formulada era a de promover as imigrações e atrair novos habitantes não por meio do trabalho assalariado, mas da concessão de terras a serem pagas sem juros e a longo prazo. (Araújo, 1992). Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia » Criada em 1953 por Getúlio Vargas, a SPVEA objetivou promover o desenvolvimento da produção agropecuária da região Norte e a sua integração ao restante da economia nacional, já que esta parte do País se apresentava isolada e com pouca produtividade. Em 1966, no governo militar de Castelo Branco, a SPVEA foi substituída pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM). PAC » O Programa de Aceleração do Crescimento foi criado em 2007, pelo governo federal brasileiro, e incorpora uma série de políticas econômicas, planejadas e voltadas ao crescimento econômico do Brasil. Os investimentos estão direcionados para a infraestrutura do País, em áreas como saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, entre outras.

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COLETÂNEA DE TEXTOS INFORMATIVOS

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 29/04/2012

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Nº 15

Belo Monte e o progresso (CLÁUDIO REIS)

TAL COMO o agronegócio se tornou uma poderosa máquina de acúmulo de capital em grandes extensões do País, as usinas, (em especial Belo Monte) se destacam como postos avançados da economia capitalista nacional

Há várias décadas, o Estado brasileiro vem tentando implementar uma série de medidas voltadas para o "progresso" econômico e social do Norte do País. Inúmeros incentivos já foram criados para viabilizar, por exemplo, o povoamento do vasto território com indivíduos oriundos de outras localidades, especialmente do Sul. Diversas facilidades foram criadas para que a região recebesse os colonizadores, responsáveis por trazerem novas relações econômicas, culturais e sociais. Na década de 1950, a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), propôs elaborar um planejamento em que a pecuária funcionaria como um complemento da vida agrícola que era, por sua vez, sinônimo da colonização. Da "conversão da população a novos hábitos e técnicas" dependiam os efeitos futuros e a permanência dos resultados desse Programa de Valorização Econômica. A intenção formulada era a de promover as imigrações e atrair novos habitantes não por meio do trabalho assalariado, mas da concessão de terras a serem pagas sem juros e a longo prazo. (Araújo, 1992).

Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia » Criada em 1953 por Getúlio Vargas, a SPVEA objetivou promover o desenvolvimento da produção agropecuária da região Norte e a sua integração ao restante da economia nacional, já que esta parte do País se apresentava isolada e com pouca produtividade. Em 1966, no governo militar de Castelo Branco, a SPVEA foi substituída pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM).

PAC » O Programa de Aceleração do Crescimento foi criado em 2007, pelo governo federal brasileiro, e incorpora uma série de políticas econômicas, planejadas e voltadas ao crescimento econômico do Brasil. Os investimentos estão direcionados para a infraestrutura do País, em áreas como saneamento, habitação, transporte, energia e recursos hídricos, entre outras.

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Projeto de sociedade » A Teoria Populacional Malthusiana foi desenvolvida por Thomas Malthus, economista, estatístico, demógrafo e estudioso das Ciências Sociais, que publicou, em 1798, uma série de ideias alertando a importância do controle da natalidade, afirmando que o bem-estar populacional estaria intimamente relacionado com crescimento demográfico do planeta. Para ele, o crescimento desordenado acarretaria na falta de recursos alimentícios para a população gerando como consequência a fome.

Muitos outros exemplos poderiam ser ressaltados no sentido se comprovar as intenções históricas do Estado brasileiro em levar o "progresso" para aquela região. Já a partir das últimas décadas, esse "desenvolvimento" passou a ser pensado não apenas por meio da agricultura e/ou da pecuária, mas também pelas hidrelétricas. Nos últimos anos foram iniciadas as construções das usinas de Jirau e Santo Antônio, ambas no Rio Madeira, Estado de Rondônia. Inseridas no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), iniciado ainda no governo Lula, as duas construções foram, em grande medida, apoiadas na noção de "desenvolvimento regional" em que pese as críticas sobre os impactos à população local. Também inserida nesse programa, a usina de Belo Monte, do mesmo modo, busca dar uma pretensa resposta ao "atraso social", ao qual se encontra a região de sua abrangência. Em agosto de 2011, a presidente Dilma declarou: "Belo Monte será fundamental para o desenvolvimento da região e do País, e o reservatório não vai atingir nenhuma das dez terras indígenas da área. Os povos indígenas não serão removidos de suas aldeias" (Empresa Brasil de Comunicação, 2011). Essa questão da remoção dos povos indígenas é contrariada por inúmeras constatações. Uma delas é a de que os impactos das barragens, em muitos casos, obrigarão os indígenas a se retirarem forçosamente de suas aldeias.

Desde os primórdios da história do Brasil, as populações indígenas são alvos das ações do "civilizado"

De qualquer forma, ainda que essa seja uma situação bastante grave, outra reflexão deve ser aprofundada sobre tal cenário. Em outras palavras, deve-se, neste momento, pôr em discussão o próprio projeto de sociedade que está sendo executado com a construção dessas usinas no Norte do País. A visão de sociedade, através da qual se está concretizando esses grandes empreendimentos, não se diferencia, pelo menos no essencial, de leituras do passado, quando o que estava na ordem do dia era claramente "civilizar" a grande região amazônica. Essa é uma postura do Estado brasileiro que, independentemente dos seus governos do passado e do presente, coloca-se como predominante.

IDEALISMO POSITIVISTA

Desde os primórdios da história do Brasil, ainda no período colonial, as populações indígenas são alvos das ações do "civilizado", muito marcadamente, até o século XX, pelos representantes diretos do cristianismo. Desde a chegada dos jesuítas, no século XVI, os povos indígenas vêm se tornando objeto de conquista não apenas cultural, mas também social e política. Mesmo depois da independência em relação à Coroa Portuguesa, isto é, com a perspectiva do surgimento de um Estado brasileiro, os índios continuaram sendo tratados da mesma maneira.

A partir do início do século XX, grande parte das expedições rumo ao Norte tinha à frente os oficiais do exército brasileiro,

munidos de armas na mão e dos ideais positivistas, então vigentes

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Entre 1845 e o início do século XX, o indigenismo brasileiro viveu uma fase de total identificação com a missão católica. Amparado pela legislação vigente, o Estado dividia mais uma vez os encargos da administração da questão indígena com as ordens religiosas católicas. (Amoroso, 1998) Obviamente que esse processo vigora fortemente ainda nos dias atuais, mesmo apresentando algumas diferenças. De qualquer modo, deve-se chamar a atenção para o fato de que a partir do século XX, o domínio sobre a região Norte, consequentemente, sobre seus habitantes, em grande parte indígenas, passou a se fundamentar em uma outra dimensão: a Ciência. A partir do início do século XX, grande parte das expedições, rumo ao Norte tinha à frente não mais os padres, mas os oficiais do exército brasileiro. Militares percorreram milhares de quilômetros pelo interior do País não apenas com armas na mão, mas fundamentalmente com um pensamento inovador para época: o positivismo.

Positivismo » a grande expressão desse pensamento, certamente, foi Auguste Comte (1798-1857), teórico da "Lei dos

Três Estados" - definida a partir de estágios que evoluem de um ponto inferior, "estado teológico", passando pelo "estado metafísico", até chegar no "estado positivo" (lugar da ciência por essência).

Conhecido pelo lema "morrer se preciso for, matar nunca!", Marechal Cândido Rondon teve como tarefa percorrer as grandes extensões territoriais que ainda não possuíam uma comunicação com o restante do País. Assim, esteve à frente do processo de construção de linhas telegráficas que deveriam perpassar grande parte das atuais regiões Centro-Oeste e Norte. Em seu percurso rumo ao Norte, Rondon se deparou com inúmeras comunidades indígenas. No entanto, partindo de uma postura fundada no não extermínio dos índios, o militar buscou uma aproximação com os habitantes locais baseada no diálogo. Por esse motivo, é tido como um grande indigenista, afinal ele acabou demonstrando a possibilidade de um processo de aproximação sustentado no "respeito ao outro". Ainda que pese algumas leituras contrárias a essa, na qual Rondon foi inserido como um grande protetor dos índios, interessa agora ressaltar o seu perfil intelectual e moral.

Diante do posicionamento intelectual e moral positivista de Rondon, como podem ser entendidas as tradições culturais dos povos indígenas "encontrados"? Vistas como "inferiores"? Afinal, em qual "estado" tais povos se encontravam? De qualquer modo, a Ciência, além da Religião, tornou-se mais um filtro ocidental de compreensão dos indígenas. E este certamente será um olhar bastante presente em grande parte das intervenções do Estado sobre a região Norte, por todo o século XX.

Novas perspectivas

Agora em 2012, será realizada no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável. Esse será um espaço de discussão entre os representantes dos mais diversos Estados do mundo. E, certamente, as mobilizações dos indivíduos, dos grupos e das classes sociais, contrários ao atual modo de produção, devem se fazer presentes justamente como forma de pressionar os governos mundiais. Além disso, é preciso difundir no interior da sociedade visões de mundo alternativas referentes a como

Com isso, falsas questões foram levantas por alguns setores da sociedade: "teremos alimentos e água potável para todos?" Tudo indica que essa é uma questão interessada justamente em confundir o olhar sobre a realidade. Perante o que já se construiu em termos de capacidade produtiva, muitas vezes a ferro e fogo, formular tal raciocínio, de cunho malthusiano, não se coloca como verdadeiro. O que é perfeitamente possível dentro dos marcos do capital é a existência de uma impensável velocidade na produção,

No século XVI, com a chegada dos jesuítas, os povos indígenas

se tornaram objeto de conquista não apenas cultural, mas também social e político dos colonizadores

O legado de Rondon partiu de uma postura fundada no não

extermínio dos índios, buscando uma aproximação com os habitantes locais baseada no diálogo. Por esse motivo, é tido como um grande indigenista

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produzir aquilo que é necessário à sobrevivência humana, levando em conta a não contaminação da água, do solo e do ar. No cenário atual, não parece viável continuar sustentando os anseios do mercado - caracterizado como a mais eficiente máquina de produzir lixo, seja ele qual for. Tudo aquilo já criado em termos de capacidade de produção, atualmente tem as condições objetivas de manter com dignidade os habitantes do planeta. Certamente Belo Monte não será construída para atender as necessidades reais dos indivíduos, mas sim para suprir uma demanda do espaço que forçosamente, arbitrariamente, monopolizou os meios indispensáveis para a sobrevivência humana: o mercado. Em 2011, o mundo alcançou o número de 7 bilhões de habitantes.

daquilo necessário para a vida humana, ao mesmo tempo em que aumenta o número de famintos pelo globo. Portanto, a construção de Belo Monte se insere num amplo movimento histórico-social que passa pela tradicional e longa dominação local e tem continuidade no mundializado contexto de exploração capitalista. E nesse quadro está desenhado que nos interesses dos povos da floresta estão representadas também, e diretamente, as necessidades de milhões em todo o mundo. Sua liberdade é a de muitos, sua dignidade também. O respeito à sua cultura e à sua sociedade é a garantia de que todos possam se expressar livremente. Do particular ao universal, aí está o entendimento do problema.

A partir do segundo governo Vargas (1951-1954), o processo de ocupação e colonização da região passa a ser fortemente pensado através do princípio do planejamento técnico e racional. Juscelino Kubitschek com seu Plano de Metas deu continuidade. O objetivo central do desenvolvimento, por meio do planejamento, era tirar o Brasil do seu atraso econômico e social crônico. Neste sentido, o planejamento, entendido como uma organização dos fatores de produção que deve ser direcionada por uma autoridade central, exige, primeiramente, a análise, a avaliação e o diagnóstico dos problemas a serem enfrentados. Em seguida, a formulação de objetivos e metas, prioritárias e/ou setoriais, tudo isso envolvido em uma concepção estratégica de desenvolvimento. Para tanto, a contribuição dos técnicos nas diversas áreas de conhecimento torna-se crucial. (Araújo, 1992)

O objetivo central do desenvolvimento, por meio do planejamento, era tirar o Brasil do seu atraso econômico e social crônico

Ao tomar posse em 1951, Vargas alerta sobre a importância em se superar "a etapa de pioneirismo, de desregramento". Era preciso "dominar o meio agressivo e nele estabelecer, firmemente, através da execução de uma política realística, sua definitiva integração aos quadros permanentes da civilização nacional". (Vargas, 1951, p. 173) Portanto, a racionalização das ações e o conhecimento técnico-científico começaram a interferir de maneira sistemática na vida dos índios do Norte brasileiro. Durante o Regime Militar (1964-1985), a perspectiva permanece. Segundo Araújo, o regime militar instaurado nos anos 1960 não representou uma ruptura tão radical no tratamento que a região vinha merecendo por parte do governo. O caráter autoritário desse regime redimensionou a capacidade de intervenção que vinha sendo desejada e pleiteada por técnicos e planejadores (e agora militares, em maior grau) que atribuíram à técnica e ao planejamento o estatuto de uma ciência capaz de, através de planos, fazer brotar uma ordem social, econômica e cultural previamente concebida. (Idem)

Ao tomar posse em 1951, Vargas investiu numa política de integração da civilização nacional, interferindo

de maneira sistemática na vida dos índios do Norte brasileiro.

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CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE? Todo esse processo que já percorre séculos na história brasileira, não pode ser esquecido quando se analisa a construção da usina de Belo Monte. E particularmente a partir do século XX, grande parte das ações tinha como objetivo expandir e aprofundar o desenvolvimento capitalista na região. De maneira geral, o movimento histórico de dominação sobre os povos da floresta, ainda nos dias atuais, legitima-se fortemente na tradição em compreender os habitantes da região como inferiores moralmente. Inferiorização que passa pelos aspectos religiosos, científicos, culturais, educacionais, sociais e econômicos. A diferença do PAC, criado pelo atual governo federal, em relação a outras ações estatais sobre a região, está no fato de que ele está inserido num contexto mais favorável materialmente para a consolidação do sistema capitalista em tal território. Atualmente, não é difícil perceber que os interesses econômicos das classes dominantes do País continuam sendo justificados e impostos na região a partir das velhas concepções assentadas na intolerância, no racismo e no sentimento de superioridade, em relação aos "bárbaros da floresta". Em setembro de 2009, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, afirmou que "forças demoníacas" estavam tentando impedir a construção da usina de Belo Monte, no Rio Xingu (Empresa Brasil de Comunicação, 2009). Portanto, o velho espírito do civilizado-colonizador continua a determinar as ações do Estado brasileiro sobre todos os habitantes da região - sempre representando os anseios dos grupos poderosos.

A partir do século XX, grande parte das ações tinha como objetivo expandir e aprofundar o desenvolvimento capitalista na região

Parte do discurso oficial, referente à importância da usina, fundamenta-se na lógica da necessidade de se avançar no desenvolvimento econômico.

Isso não só para a região afetada, mas para todo o restante do País que precisaria, neste sentido, cada vez mais de geração de energia. Com o forte auxílio do Estado sobre a Economia e sobre o mercado, indústrias passaram a produzir mais, gerando maior necessidade de empregos e, com este aumentando, ampliando o mercado de consumo. Esse seria o chamado "círculo virtuoso" do capitalismo. Para sustentá-lo, é necessário criar permanentemente os meios básicos de sua existência, como é o caso da geração de energia. Portanto, Belo Monte é uma construção que visa a atender esse contexto. E o processo de "integração" dos povos da floresta com a "civilização nacional" está impulsionado por tais interesses, agora, claramente econômicos.

OLHAR DISTANTE

Assim como em outros momentos a "integração" atendia aos interesses dos religiosos e dos cientistas, mais do que aos dos habitantes do Norte do País, agora, são os capitalistas os maiores interessados. Tal como o agronegócio se tornou uma poderosa máquina de acúmulo de capital em grandes extensões do País, as usinas, e Belo Monte se destaca, também podem ser vistas como postos avançados da economia capitalista nacional. Sílvio Coelho dos Santos e Aneliese Nacke, em 1988, situam ideologicamente o projeto de construções de usinas hidrelétricas na Amazônia, da seguinte forma: numa visão positivista, que tem permeado o pensamento militar brasileiro desde as últimas décadas do século passado, associada à aceitação da teoria do evolucionismo cultural unilinear, aos indígenas não resta outro destino senão a sua integração na sociedade nacional. Daí decorrem as noções de "integralidade" do território nacional e de Estado uninacional.A burocracia responsável pela execução da política indigenista oficial aceita sem discussões tais posicionamentos ideológicos, o que é também contestado pelo sistema jurídico existente no País. A missão, pois, deste aparato é eminentemente civilizatória. É a missão de transformar índios em não-índios. Ou seja, o objetivo é a homogeneização de todos os contingentes indígenas que sobrevivem no território brasileiro por meio da sua diluição na sociedade nacional. Isto nega por inteiro o direito à diferença. (Santos; Nacke, 1988).

Chico Mendes » Francisco Alves Mendes Filho nasceu em Xapuri, no Acre, em 15 de dezembro de 1944 e foi assassinado nesta mesma cidade em 22 de dezembro de 1988. Chico Mendes ficou conhecido por sua luta em defesa da floresta amazônica. Foi seringueiro, sindicalista e ativista ambiental.

Portanto, esse processo, como os demais, não parece atender os interesses dos índios, dos ribeirinhos e das populações que vivem próximas aos rios da região. Dentro desse contexto, porém, deve-se perguntar se é legítimo que também o restante da população fique refém dos interesses do mercado e do capital? Num certo sentido, a resposta tende a

O movimento histórico de dominação sobre os povos da floresta, ainda nos dias atuais, os

entende como seres inferiores. O PAC, programa do governo petista, não é diferente e está inserido num contexto de consolidação do sistema capitalista em tal território

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ser negativa. Assim, tanto os povos da floresta, quanto milhões que compõem os "povos da cidade", sofrem, cada qual à sua maneira, as consequências trágicas de tal desenvolvimento.

Parte do discurso oficial ainda se fundamenta na lógica da necessidade de se avançar no desenvolvimento econômico

O fato é que mais uma vez os índios e toda a população, especificamente da região afetada pela usina de Belo Monte, continuam sendo vistos de cima, do avião. Mesmo com o surgimento do movimento dos seringueiros, liderados por Chico Mendes , na década de 1980, um dos mais fortes politicamente, a Amazônia continuou sendo vista como um território sem seres humanos. Nas palavras de Mauro Almeida, "os seringueiros amazônicos eram invisíveis no cenário nacional nos anos 1970. Começaram a se articular como um movimento agrário no início dos anos 1980 e na década seguinte conseguiram reconhecimento nacional, obtendo a implantação das primeiras reservas extrativas após o assassinato de Chico Mendes. Assim, em vinte anos, os camponeses da floresta passaram da invisibilidade à posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular." (Almeida, 2004)

É fato que em um país rico em extensão territorial, o agronegócio tenha se tornado uma poderosa máquina de acúmulo de capital, as usinas que o governo pretende construir também podem ser vistas como postos avançados da economia capitalista nacional

Todavia, mesmo demonstrando que são possuidores de cultura, de organização social, de política e de relações econômicas próprias, esses povos continuam sendo ignorados pelo Estado. Continuam sendo representados por quem não os conhecem verdadeiramente. Continuam sendo alvos de um discurso, vinculado aos grandes interesses econômicos, a partir do qual se diz que serão gerados milhares de empregos justamente para se criar tal necessidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Mauro. Direitos à floresta e ambientalismo: seringueiros e suas lutas, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Vol.19, no.55, Junho de 2004. AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito - Catequese e educação para índios nos aldeamentos capuchinhos, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Número 37, ano 13, Junho de 1998. ARAÚJO, Maria Celina de. Amazônia e desenvolvimento à luz das políticas governamentais: a experiência dos anos 50, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Número 19, ano 7, junho de 1992. CAMARGO, José Godoy; LIMA, Fabrício F. de. O positivismo e a geografia em Rondon, Revista Estudos Geográficos, Rio Claro, janeiro-junho de 2005.

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EMPRESA BRASIL DE CO MUNICAÇÃO. Para Lobão, "forças demoníacas" tentam atrasar construção de Belo Monte, 29/09/2009.h ttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2009-09-29/para-lobao-forcas-demoniacas-tentamatrasar-construcao-de-belo-monte ______. Em coluna semanal, Dilma ressalta que Belo Monte não atingirá terras indígenas, 09/08/2011.h ttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-08-09/emcoluna-semanal-dilma-ressalta-que-belo-monte-naoatingira-terras-indigenas SANTOS, Sílvio Coelho dos; NAC KE, Aneliese. Povos indígenas e desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia, Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, Número 8, Vol. 3, outubro de 1988. VARGAS , Getúlio, Mensagem ao Congresso Nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1951.

CLÁUDIO REIS é doutor em Ciências Sociais pelo IFCH/Unicamp, professor adjunto da Faculdade de Ciências Humanas /

Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD. E-mail: [email protected]. Revista SOCIOLOGIA, Maio de 2012.

Metas para o desenvolvimento sustentável (ODED GRAJEW)

O ATUAL modelo de desenvolvimento tem se mostrado totalmente insustentável. Estamos esgotando os recursos naturais (já extraímos do planeta 50% a mais do que ele á capaz de repor), matando nossos rios e mares, poluindo o ar, estrangulando as vias de circulação, baixando a qualidade de vida nas cidades e aumentando a desigualdade social mundial.

A maioria dos cientistas e as evidências nos alertam que o aquecimento do planeta e as mudanças climáticas consequentes são uma real ameaça à sobrevivência da espécie humana. Este modelo insustentável de desenvolvimento foi uma escolha de governos e sociedade que privilegiou o estabelecimento de indicadores econômicos e de metas de crescimento para a economia.

A avaliação de governos e países é feita prioritariamente pela variação do PIB, os números da bolsa e das moedas são anunciados a cada meia hora pelas rádios e TVs e a cada minuto pela internet. Na contabilidade que acompanha o crescimento econômico, não medimos, por exemplo, a diminuição e o esgotamento do patrimônio ambiental que alimenta nossa vida. Temos de definir um conjunto de indicadores baseados em outros princípios e valores que nos permitam ter a visão de um novo modelo de desenvolvimento e estabelecer metas que nos conduzam na direção de uma sociedade justa e sustentável. A escolha dos indicadores é fundamental, pois só podemos agir de forma consequente e cuidar daquilo que podemos conhecer e medir, até para agir preventivamente.

Uma série de iniciativas pode fazer do Brasil exemplo no estabelecimento de novos indicadores e metas para o desenvolvimento sustentável. A Rede Nossa São Paulo criou o Irbem (Indicadores de Referência para o Bem Estar nos Municípios), um conjunto de indicadores de percepção que acompanha a qualidade de vida nos municípios. Foi também em São Paulo que foi introduzida, na lei orgânica do município, a obrigatoriedade de todo prefeito apresentar um plano de metas para a sua gestão que contenha todas as promessas de campanha.

Todas as metas devem contemplar o desenvolvimento sustentável da cidade. Outras 27 cidades seguiram o exemplo e introduziram a mesma legislação, entre elas mais recentemente Rio e Belo Horizonte. No final do ano passado, uma série de organizações lançou o programa Cidades Sustentáveis, que visa comprometer candidatos e futuros prefeitos a estabelecer um plano de metas baseado em um conjunto de indicadores prioritários para a sustentabilidade urbana.

Está em tramitação no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional (PEC 52/2011) apresentada pela sociedade civil que compromete presidentes, governadores e prefeitos em todo o Brasil a apresentar um plano de metas para o desenvolvimento sustentável. Ao aprovar essa emenda, se possível até a Rio+20, o Congresso Nacional terá dado uma enorme contribuição para o desenvolvimento sustentável do país. Maiores informações sobre essas iniciativas estão no site www.nossasaopaulo.org.br. A escolha de indicadores e de metas a serem alcançadas é uma escolha política. É a escolha do modelo de desenvolvimento e da sociedade que queremos.

Para termos um desenvolvimento sustentável, que tenha como fundamento a construção de uma sociedade justa e que assegure qualidade de vida para todos, para a atual e as futuras gerações, é fundamental repensarmos nossas prioridades e redirecionarmos nossos olhares. Depende de todos nós e de cada um.

ODED GRAJEW, 67, empresário, é coordenador-geral da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo e presidente emérito do Instituto Ethos. É idealizador do Fórum Social Mundial e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES).

Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Enriqueça suas mudanças (GUSTAVO CERBASI)

TODA GRANDE mudança na vida ou na rotina é uma oportunidade de acertar o que está em desequilíbrio, incluindo nossas finanças. Quem está para casar, para ter filhos, para se aposentar, para receber uma promoção ou para começar ou para terminar uma pós-graduação tem escolhas importantes a fazer. O ideal é aproveitar esse momento de quebra da zona de conforto para refletir sobre a qualidade das escolhas que pesam no bolso.

Um erro frequente é reorganizar a vida começando pelos maiores itens do orçamento. Por exemplo, quem quer sair da casa dos pais ou mudar de cidade tende a se preocupar, primeiramente, com a nova moradia, estimulando-se a sondar a região em que deseja viver para encontrar um teto que caiba no bolso.

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Nessa etapa das primeiras escolhas, o erro está em não ter planos claramente definidos para os menores gastos. Corre-se o risco de optar por uma moradia maior do que o bolso comporta, pois um orçamento incompleto aparentemente viabiliza a escolha. Em razão disso, passa a ser alto o risco de não sobrar dinheiro para a desejável poupança e o lazer.

O correto seria inverter a ordem das escolhas. O primeiro compromisso que se deve assumir é com um objetivo de valor a ser poupado. Quanto? Depende de sua satisfação com a carreira e com seu momento presente. Quem está feliz com o trabalho, com a vida pessoal e social, com a renda e com o padrão de vida deve passar a poupar o mínimo necessário para dar sustentabilidade a esse estilo de vida satisfatório. Talvez 5% a 10% da renda mensal seja uma meta razoável, caso o poupador tenha planos de ainda trabalhar mais 40 anos pela frente.

Já quem tem consciência de que está vivendo uma rotina estressante, sem tempo para si e para a família, sem prazer no trabalho e com poucas perspectivas de mudanças no curto prazo, deve apertar o cinto e poupar mais. Quanto mais insatisfatória for sua vida presente, maior deve ser o sacrifício para acumular reservas financeiras. Elas serão a fonte de estabilidade para encarar a mudança de uma estabilidade infeliz para uma nova fase inspiradora. Perceba: o que nos prende a uma rotina insatisfatória é o medo de uma mudança não dar certo e perdermos nossa segura condição previsível, por pior que seja.

Definida sua meta de poupança mensal, o próximo passo é definir a verba para assegurar qualidade de vida desejável. Pergunte-se: o que você desejará fazer regularmente para se manter saudável e motivado? Quanto lhe custará, por mês, sair da rotina, cultivar hábitos saudáveis, rever amigos e parentes, enfim, cuidar de você mesmo? Ao definir essa verba, você certamente estará vivendo um presente mais rico. Somente depois de assegurar verbas para seu futuro e para esse presente mais rico é que se deve cogitar as escolhas que moldarão seu custo de vida. Moradia, carro, plano de saúde e status do vestuário devem ser consequência da vida bem vivida, e não obstáculos a sua segurança e ao bem viver.

Obviamente, ao seguir essa sequência de escolhas e optar por uma vida mais simples, estaremos abrindo mão do conforto maior que teríamos ao adquirir uma casa mais espaçosa ou um carro mais equipado. Porém, essa perda de conforto é amenizada pela maior verba disponibilizada para o consumo do lazer e bem-estar. O que é melhor: a rotina de um apartamento espaçoso ou a quebra de rotina de uma verba para o lazer que pode ter diferentes usos a cada mês -de jantares a viagens de circuitos culturais a reuniões de amigos?

Há ainda uma vantagem adicional ao tratar a quebra de rotina como um compromisso sério no orçamento familiar. Gastos com lazer são tipicamente gastos variáveis, diferentemente dos gastos fixos que caracterizam o custeio de moradia, de transporte, de educação, de alimentação e de saúde.

Quando surge um imprevisto, passeios e festas podem ser adiados, mas gastos fixos não. Quando podemos optar pela substituição de gastos, imprevistos são contornados com mais facilidade, sem que recorramos a dívidas. Enfim, aqueles que cuidam melhor de si também têm menor chance de ter problemas! Vai esperar mais para ajustar sua vida?

GUSTAVO CERBASI é autor de "Casais Inteligentes Enriquecem Juntos" (ed. Gente) e "Como Organizar sua Vida Financeira" (Elsevier Campus). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A inveja das moscas (LUIZ FELIPE PONDÉ)

SOU UMA personalidade atormentada e dada a arroubos. Noites insones me levam a terras distantes onde nossos ancestrais vagam arrancando a vida e seu sentido das pedras. Com o passar dos anos, cada vez mais me encanta a luta desses nossos patriarcas perseguidos pelos elementos naturais, por seus próprios demônios e por deuses de olhos vermelhos cheios de sangue e dentes afiados.

Construímos sonhos de autorrealização profissional, afetiva e material. A expectativa com nossa própria grandeza ocupa grande parte de nossos devaneios. O sentimento da fragilidade do mundo sempre me perseguiu desde a infância. Se os psicanalistas estiverem certos, e tudo que é primitivo é indelével, esse sentimento constitui minha substância mais íntima. Que inveja eu tenho das moscas! Livres, voando pelo mundo, sem saber de si mesmas. Li nas últimas férias a coletânea de ensaios "The Best American Essays of the Century", editada por Joyce Carol Oates e Robert Atwan, Houghton Mifflin Company, Boston. Destaco dois ensaios: "The Crack-Up" (a rachadura), de F. Scott Fitzgerald, de 1936 e "The Old Stone House" (a velha casa de pedra) de Edmund Wilson, de 1933.

Edmund Wilson foi, segundo Paulo Francis, o último grande crítico literário de uma tradição na qual o crítico não se escondia atrás de algum teórico, tipo Blanchot ou Derrida, para repetir o que todo mundo diz e com isso não correr riscos. Wilson enfrentava o autor cara a cara, dizendo o que pensava dele, sem se preocupar com o que a "indústria da crítica acadêmica" diria. A coragem nunca foi um valor na academia, Francis tinha razão.

Nesse ensaio, Wilson fala de uma casa de pedra na qual sua família viveu por muitos anos. Sua família era do tipo de família que aqui chamaríamos de quatrocentona falida. Mãe fria, pai, homem letrado e melancólico, ele, Wilson, parecido com seu pai, e também um bêbado. Estou convencido de que pessoas sem algum vício terrível permanecem em alguma forma de infância moral. Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral. Pessoas sem vícios falando sobre moral é como virgens dando aula de sexo.

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Wilson, entre outros parentes, fala de uma tia, infeliz no casamento, obrigada a ser uma mulher normal quando na realidade era uma filósofa schopenhauriana amadora. Segundo ele, ela enfrentou virtuosamente seu fardo criando um sistema filosófico pessoal pessimista e, quando ficou viúva, se mudou para Nova York e gastou seus últimos dias indo a livrarias e vendo teatro. Quando ainda casada, sua tia lia à noite, sobre o fogão, sozinha, em seu único momento de paz.

F. Scott Fitzgerald, autor de "O Grande Gatsby", nesse ensaio descreve a sua maior crise existencial (a rachadura que dá título ao ensaio), que o acometeu por volta dos 50 anos. Escritor famoso, Fitzgerald afirma: "Identifiquei-me com meus próprios objetos de horror e compaixão" e "passei a ter uma atitude trágica em relação à tragédia e melancólica em relação à melancolia". Em síntese, foi inundado por seus próprios objetos literários e se tornou, ele mesmo, um deles. O efeito foi devastador e libertador.

Na abertura, ele define o que entende por uma pessoa inteligente: conseguir viver com duas ideias opostas sobre a vida e não desistir de nenhuma delas. E exemplifica: saber que não há esperança para nós e ainda assim viver buscando provar o contrário. O resultado seria uma vida combativa em nome da esperança. Uma vida pautada pelo controle de si mesmo e do mundo a sua volta. Ao final do ensaio, ele volta a definir, agora, o que é, após sua rachadura, o estado natural de um adulto que tem consciência e sensibilidade: infelicidade qualificada (e não banal).

Uma condição com a qual convivemos, mas que ao assumi-la, uma espécie de libertação acontece: em suas palavras, não mais desejar ser um homem bom, não mais ser simpático com o marido de sua prima, nem responder a cartas de escritores jovens medíocres que não deveriam aborrecer os outros. Ser apenas um escritor e não querer agradar a ninguém, nem a si mesmo.

[email protected]. Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Será mesmo a perda da identidade? (CARLOS MESSA)

Definitivamente o casamento mudou. A forma de encarar essa relação e, principalmente, as cláusulas desse pacto foram alteradas de maneira inexorável

NAS GRANDES metrópoles já está estabelecido o novo formato do casamento que até há pouco era referido como ―test-drive‖, uma forma de falar brincando para dissimular algum constrangimento quanto ao ―morar juntos‖. O ―test-drive― tomou o lugar do antigo (e ultrapassado) noivado, mas difere dele, de maneira significativa. Nas pequenas cidades isso ainda não acontece com muita facilidade, mas acontece, demonstrando que é essa a direção do movimento social.

O ―morar juntos‖ se apoiou inicialmente como justificativa racional, e, portanto, consciente, de que se obteria com isso um

teste que comprovaria ou não que essa relação ―daria certo‖. Caso se obtivesse resultados indicativos de que o relacionamento estava ―dando certo‖, então se poderia casar(!). O que observamos é que não é dessa forma que as coisas ocorrem porque formar um par não é uma definição (apenas) racional, mas principalmente emocional com seus inúmeros fatores inconscientes e, racionalmente, o ―test-drive‖ é falho por diversas razões, entre elas: não estabelecer um prazo para o teste, o que significa que ele pode nunca terminar; se as coisas estão ―dando certo‖, surge a questão: para que mudar?; se as coisas não estão ―dando certo‖... faz parte do teste – vamos ―testar‖ mais um pouco!; não são fixados parâmetros de avaliação do teste: O que é ―dar certo‖ em um relacionamento?; se a relação está em teste, ―devemos deixar que ela flua naturalmente‖ - não há esforço consciente para fazê-la ―dar certo‖.

O ―test-drive‖ também pode agregar à relação alguns fatores prejudiciais como, por exemplo: a certeza de um menor engajamento nesse compromisso, o que resulta em um menor esforço construtivo; a identidade de cada um dos componentes do casal em tese não é alterada (dependendo da maturidade emocional de cada um); abre-se espaço para o distanciamento de objetivos como a intensificação dos laços (formalização, filhos, etc.) por um dos pares e o outro permanece com a ideia de apenas ―um relacionamento‖; não se abdica de nada ―pelo‖ relacionamento; não apostamos nele!

O CASAMENTO NOS OBRIGA(VA) A “CRESCER” E, ASSIM, LEVAVA AO CRESCIMENTO DA INDIVIDUALIDADE,

NO MÍNIMO PORQUE UMA RELAÇÃO TÃO INTENSA EXIGIA MUDANÇAS: MAIOR FLEXIBILIDADE E PERCEPÇÃO DO “OUTRO”

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Por tudo isso é que, mesmo que admitamos que um período de teste possa ser positivo, muitos fatores negativos e prejudiciais são agregados, fazendo com que, efetivamente, estejamos apenas criando etapas para adiar algo assustador: formar um par e assumir uma nova identidade que nos transformará de maneira irreversível.

Casar é um processo de transformação e não apenas uma mudança de ―status‖ social. Ele altera o nosso modo de ser e é por isso que dizemos: ―sou solteiro, sou casado‖ e não ―estou solteiro, estou casado‖. Casando nos tornamos um par e, com isso, passamos a ser relativos à outra pessoa: ―o João da Maria, a Vera do André‖. O casal, mesmo antes de ter filhos, passa a ser uma família!

Mesmo com a separação não voltamos a ser ―solteiros‖ e sim passamos a ser descasados. O casamento faz parte, também, do processo de ampliação de nossa individualidade, ao contrário do julgamento de que o casamento é limitador (visão individualista). O casamento nos obriga a ―crescer‖ e, assim, leva ao crescimento da individualidade, no mínimo porque uma relação tão intensa exige mudanças: maior flexibilidade, percepção do ―outro‖ ou mesmo a definição de uma tendência preexistente ao autoritarismo, dependência, autocomiseração, etc.

A quem já foi casado não é fácil namorar. Quem já passou por esta experiência pode ter sim prazer ao namorar, mas não em apenas namorar. Montar uma família era considerado obrigatório na vida de um indivíduo nos últimos séculos e deixou de sê-lo nas últimas três décadas, ao menos ao que nos permite a consciência. Porém, ainda hoje encontramos homens que visam relacionamentos com mulheres que não se tornem dependentes financeiramente e mulheres que lutam com sentimentos ambivalentes em relação a ter filhos e dedicar- se à carreira profissional.

Em função disso, ―casar‖ tornou-se mais assustador do que já era. Olhando de fora, no entanto, parece mesmo engraçado que essa união formal seja negada, mas toda sua forma e estrutura seja reproduzida no ―morar juntos‖, inclusive com a natural (e frequentemente imprevista) vinda de filhos.

A ambiguidade, no entanto, continua presente e lutamos racionalmente para defender a ideia de que precisamos ―de nosso espaço‖ e de ―vida autônoma‖ ou ―independente‖. O casal, hoje, acostumou-se a olhar para a perda e não para o ganho. Confundimos nossas necessidades e a forma cíclica como nossas emoções têm existência, com a manutenção de uma suposta independência que nos remete à antiga identidade (de solteiros).

Será que um dia, mais tarde do que ocorria anteriormente, nos daremos conta de que nos falta algo? Que essa nossa identidade, que tanto defendemos, é apenas uma etapa de nosso desenvolvimento e a permanência nela nos torna estéreis? Sim, essa consciência acontece mais cedo ou mais tarde e é quando ela chega que começamos a assumir nossa família.

CARLOS MESSA é psicólogo psicoterapeuta de casais. Autor do livro O Poder dos Pais no Desenvolvimento Emocional e Cognitivo

dos Filhos. www.vinculum.com.br e [email protected]. Revista PSIQUE, Maio de 2012.

Desinteresse dos jovens por carros preocupa montadora (MARIA FERNANDA CAVALCANTI)

Novas pesquisas revelam: geração entre 18 e 24 anos já não se encanta com mercadoria-símbolo do capitalismo - e valoriza, em contrapartida, justiça social, ambiente, compartilhamento e comunicação horizontal

UM RECENTE artigo do The New York Times, da jornalista Amy Chozick, é mais uma prova de que os jovens mudaram. A geração entre 18 e 24 anos está se importando mais com os outros e com o mundo em que vivem, superando antigos valores e necessidades de consumo que já não os convencem e, muito menos, os satisfazem. Uma dessas mudanças importantes está no modo com que os jovens se relacionam com a mobilidade. Há poucas décadas, o carro representava o ideal de

liberdade para muitas gerações. Hoje, com ruas congestionadas, doenças respiratórias e falta de espaço para as pessoas nas cidades, os jovens se deram conta de que isso não tem nada a ver com ser livre, e passaram a valorizar meios de transporte mais limpos e acessíveis, como bicicleta, ônibus e trajetos a pé. Além do mais, ―hoje Facebook, Twitter e mensagens de texto permitem que os adolescentes e jovens de 20 e poucos anos se conectem sem rodas. O preço alto da gasolina e as preocupações ambientais não ajudam em nada‖, diz o artigo.

Para entender esse movimento, o texto conta que a GM, uma das principais montadoras de automóvel do mundo, pediu ajuda à MTV Scratch, braço de pesquisa e relacionamento com jovens da emissora norte-americana. A ideia é desenvolver estratégias adaptadas à realidade dos carros e focadas no público jovem para reconquistar prestígio com o pessoal de 20 e poucos anos – público que tem poder de compra calculado em 170 bilhões de dólares, segundo a empresa de pesquisa de mercado comScore.

Porém, a situação não parece ser reversível. ―Em uma pesquisa realizada com 3 mil consumidores nascidos entre 1981 e 2000 – geração chamada de millennials – a Scratch perguntou quais eram as suas 31 marcas preferidas. Nenhuma marca

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de carro ficou entre as top 10, ficando bem abaixo de empresas como Google e Nike‖, diz o artigo. Além disso, 46% dos motoristas de 18 a 24 anos declararam que preferem acesso a Internet a ter um carro, segundo dados da agência Gartner, também citados no texto do NY Times.

O que parece é que os interesses e as preocupações mudaram e as agência de publicidade estão correndo para entendê-los e moldá-los, mais uma vez. Só que, agora, com o poder da informação na ponta dos dedos e o movimento da mudança nos próprios pés fica bem mais difícil acreditar que a nossa liberdade dependa de uma caixa metálica que desagrega e polui a nossa cidade.

Jovens brasileiros preferem transporte público de qualidade

Essa tendência de não-valorização do carro já foi apontada também pelos nossos jovens aqui no Brasil. A pesquisa O Sonho Brasileiro, produzida pela agência de pesquisa Box1824, questionou milhares de millenials sobre sua relação com o país e o que esperavam para o futuro. As respostas, que podem ser acessadas na íntegra no site, mostram entusiasmo e vontade de transformação, especialmente, frente aos desafios sociais e urbanos como falta de educação e integração.

A problemática do transporte público se repete nos comentários dos internautas no site da pesquisa, que mantém o espaço virtual aberto para todos que quiserem deixar sua contribuição de desejo de mudança para o local em que vivem. A maioria das pessoas que opina enxerga o carro como um vilão que polui e tira espaço da cidade e acredita que a solução está em investimento em transporte público de qualidade. Esse é o desejo dos jovens brasileiros que também já mudaram e agora estão sonhando, mas de olhos bem abertos para cuidar do mundo em que vivem.

MARIA FERNANDA CAVALCANTI é jornalista e escreve semanalmente para o site Mobilize. Disponível em:

http://www.mobilize.org.br/noticias/1838/desinteresse-dos-jovens-por-carros-preocupa-montadora.html. Mobilize, Abril de 2012.

A Indústria do Bem e suas lavanderias de imagem (MALU FONTES)

APESAR DE a crise econômica que desde 2009 vem chacoalhando o mundo, inclusive o mundo dos muito ricos, ter abalado um tantinho o chão das grandes corporações de capital nacional e multinacional, ainda são elas que dão as cartas (e as caras) da economia globalizada. Não há Estado topetudo que tenha poder para enfrentar o poder e o capital das grandes empresas, exceto nas ditaduras, onde as duas coisas se misturam e viram uma só. Para traduzir o poderio inabalável das grandes corporações há dois documentários mais que ilustrativos: Inside Job e The Corporation, ambos lançados no Brasil, o primeiro de 2010 e o segundo de 2003.

Mas este não é um texto sobre as grandes corporações e suas formas tentaculares de agir nos mercados do mundo. É sobre a publicidade veiculada por grandes empresas para lavar suas imagens para lá de duvidosas diante do público consumidor. E nesse aspecto as grandes multinacionais e as medianas paroquiais rezam pelas mesmas cartilhas de comunicação institucional. Todas exibem em suas peças publicitárias televisivas recados primorosos para o público avisando o quanto são boazinhas magnânimas e o quanto investem para proteger os pobres e desvalidos de conta corrente.

LIVROS POR METRO - Para ficar nos arredores da vizinhança, as emissoras locais estão atualmente exibindo duas campanhas publicitárias que são um primor de ironia quanto aos méritos das empresas às quais se referem: a de uma indústria química sediada numa das praias mais valorizadas do litoral norte de Salvador (localizada na própria praia, literalmente) e a de uma empresa de construção e incorporação de apartamentos voltados para a classe média que se quer alta. Há vários outros cases, mas, para a exigüidade do espaço, estes são suficientes para ilustrar o quanto em tempos nos quais se tornou obrigatório falar de responsabilidade social, sustentabilidade e coisas que tais, contratar um bom cérebro publicitário e adotar uma causa bonita já é coisa suficiente para ficar bem na fita.

No caso da indústria química, escolheram uma menina certamente moradora das imediações da fábrica, tida e havida no passado e no presente como causadora de danos bravos ao meio ambiente local (há coisa mais pornográfica em termos ambientais que uma indústria química numa praia?) e mandaram avisar na televisão que está feliz da vida porque já leu dezenas e dezenas de livros e vai chegar a 200. Primeiro que, se a coisa tivesse mesmo compromisso com o incentivo à leitura não seria mais recomendável que a garota testemunhasse sobre o que encontrou nos livros, a aventura, a subjetividade, o alargamento do mundo, a obra de um Lobato, de um Júlio Verne, etc.

Falar que a meta é passar de 60 para 200 parece coisa de novela, onde os livros são de mentira e são comprados por metro, como anunciou sem pudor a personagem Carminha, de Avenida Brasil, esta semana. Apontado para a estante da casa, puxou uma coisa parecida com três volumes de uma enciclopédia e retirou da estante uma moldura preta de madeira oca, pintada para fazer parecer lombadas. Sim, livro e leitura remetem a qualidades e não a quantidades. Mas o recado está dado e assim fica: a empresa espalha componentes químicos mar e natureza adentro e a menina dos cachinhos é convocada para anunciar à Bahia que essa mesma empresa é uma fofa e que de tão bondosa lhe proporcionou a leitura de uns quantos livros na biblioteca montada para fazer as vezes de lavanderia da imagem. O anúncio na TV coroa o recado.

CONVULSÃO - Já a construtora e incorporada exibe uma campanha para vender seus apartamentos que é um clássico no setor imobiliário, repetida em 11 a cada 10 lançamentos de condomínios de luxo. Onde havia antes um restinho de mata

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virgem intocada, incluindo fauna e flora, claro, passa-se um trator, mata-se tudo o quanto é bicho, espalha-se escorpião (aparentemente desdentado) até para a casa do prefeito e no local são construídos trocentas torres apartamentos ou centenas de casas de alto padrão. Sim, a floresta TEVE que ser removida para dar lugar ao empreendimento, mas o que diz o anúncio publicitário para os compradores: venha morar em um lugar onde a natureza está preservada.

E, de novo, para todos ficarem bem na fita, os mais pobrinhos das imediações, se crianças, ganham uma brinquedoteca para a comunidade; se mais maduros, com sorte, garantem um emprego de doméstica, jardineiro, etc. E todos, no mundo surreal da indústria da promoção do bem dos pobres e com suas imagens devidamente lavadas, serão felizes para sempre. Mas só nas campanhas publicitárias da TV. Fora da tela, a convulsão social urra.

MALU FONTES é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 29 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA; [email protected]

Após 10 anos, metade do elenco de "Cidade de Deus" desistiu de atuar

MATHEUS MAGENTA - ENVIADO ESPECIAL AO RIO

AO LONGO dos dez anos que sucederam sua pré-estreia no Festival de Cannes, o filme "Cidade de Deus" viu sua estética reverberar no cinema brasileiro em obras como "Tropa de Elite" e seu elenco de jovens atores se dividir entre o sucesso, o ostracismo e a marginalidade.

Um deles, que fez parte do criminoso Trio Ternura no filme como o personagem Alicate, se envolveu com drogas e hoje está desaparecido. "Ele saiu da ficção para a realidade. Virou traficante e hoje está desaparecido. O menino tinha arte, mas ele não soube administrar a potência do sucesso que o filme teve."

O relato acima sobre o destino incerto de Jefechander Suplino foi feito à Folha pelo cineasta Luciano Vidigal. Ao lado de Cavi Borges, ele filma um documentário para mostrar o destino dos atores dez anos após a primeira exibição do longa de Fernando Meirelles, em maio de 2002. "Uns souberam aproveitar as oportunidades, outros viram que não tinham jeito para a coisa e seguiram outras carreiras. E há aqueles que se descobriram atores ou se deslumbraram, se beneficiaram na época, mas depois perderam o rumo", relatou Borges.

O documentário mostrará o destino de quase 30 atores. Metade continua atuando, quatro se envolveram com crimes e drogas e o restante desistiu ou não conseguiu seguir a carreira artística. Com dificuldades financeiras para concluir o documentário, eles correm contra o tempo para não perder a efeméride de dez anos e conseguir participar do Festival do Rio, em setembro.

Felipe Paulino, hoje com 18 anos, atuou em uma das cenas mais polêmicas do longa. Seu personagem leva de Zé Pequeno (Leandro Firmino) um tiro no pé. Após o filme, enfrentou problemas familiares na administração de sua carreira de ator mirim. Hoje, é menor aprendiz em um hotel do Rio. "Eu ainda tenho o sonho de ser ator", afirmou. Já o colega de cena hoje se sustenta com os cachês de ator.

Firmino atuou em séries como "A Diarista" (Globo), e filmes como o inédito "Totalmente Inocentes", de Rodrigo Bittencourt, paródia do gênero "favela movie", consagrado com "Cidade de Deus". Apesar do pequeno papel que teve no longa, Thiago Martins desponta hoje como um dos galãs da novela das 21h, "Avenida Brasil" (Globo). Preocupados com o

destino dos atores após o filme, Meirelles e a codiretora Kátia Lund ajudaram a transformar a oficina de interpretação criada para os quase 200 jovens pré-selecionados para a produção em um projeto social com uma produtora e uma escola de cinema. Chamado hoje de Cinema Nosso, o projeto é presidido por um dos atores do filme, Luis Carlos Nascimento.

Douglas Silva (à esq.), o Dadinho, atuou na série de TV "Cidade dos Homens" e hoje participa do programa "Esquenta", de Regina Casée; Darlan Cunha (à dir.), interpretou o Laranjinha

ESTIGMA

Baseado no livro homônimo de Paulo Lins - que levou 15 anos até lançar outra obra, o filme retrata a comunidade carioca desde a criação nos anos 1960 até os anos 1980, durante uma guerra entre as gangues de Zé Pequeno e Mané Galinha (Seu Jorge).

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O local tem hoje 36 mil habitantes, segundo o IBGE. Parte deles diz que, após o filme, ficou estigmatizada em outras regiões do Rio. "No filme, 99% das pessoas eram criminosas. Na época, quem dizia que era da Cidade de Deus não conseguia emprego. Hoje ainda há preconceito", disse o morador Roberto de Carvalho, 55.

"O problema é a generalização. Não se pode dizer que todo jovem de cor que mora nesses locais é violento", diz a antropóloga Alba Zaluar, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. "Qual favela não é estigmatizada?", rebate Lins. Para ele, o livro e o filme foram essenciais para atrair investimentos públicos para o local.

Folha de São Paulo, Abril de 2012.

A rosa da sabedoria (KARINE PANSA)

EREVAN, sede do governo e maior município da Armênia, assumiu oficialmente ontem, 23 de abril, a condição de capital mundial do livro de 2012, sucedendo Buenos Aires. Nessa data, transcorre o Dia Mundial do Livro e dos Direitos do Autor, instituído em 1995 e comemorado desde 1996 pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que a cada ano outorga o título a uma cidade.

Para os brasileiros, principalmente os paulistanos, a comemoração em 2012 é tão especial quanto para o povo armênio, pois teremos a 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, o grande momento da leitura em nosso país. O evento contribuirá para que o acesso ao livro continue crescendo, conforme tendência revelada na última edição da Pesquisa sobre Produção e Vendas do Mercado Editorial Brasileiro: expansão, entre 2009 e 2010, de 8,3% do número de exemplares comercializados, considerando-se apenas o movimento em livrarias, internet e porta a porta, dentre outros canais, excluindo compras governamentais e de entidades sociais.

Por outro lado, o faturamento relativo a esse recorte mercadológico da comercialização sofreu um decréscimo real de 2,24% (já descontada a inflação). Isso significa que o preço médio do livro diminuiu 4,42% em 2010. Entre 2008 e 2009, a pesquisa anual da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel), realizada pela Fipe, já havia registrado redução de 3,52% nos preços. Os números evidenciam que a atividade do setor editorial transcende em muito ao universo dos negócios. Não basta produzir e vender livros. É preciso viabilizar a multiplicação do acesso à leitura.

Ler deve ser um direito inerente à cidadania e uma ferramenta de disseminação da cultura, do aperfeiçoamento da educação e da garantia de independência. Com certeza, a Bienal Internacional do Livro de São Paulo contribui muito para o sucesso dessa meta, dada a sua dimensão, alcance, atratividade de novos leitores e capacidade de despertar o gosto pelas letras em milhares de crianças, jovens e adultos. Por essa razão, o evento é uma das mais relevantes ações da Câmara Brasileira do Livro (CBL) no exercício de seu compromisso de viabilizar a democratização da leitura. Essa é uma responsabilidade que o setor privado, por meio de suas entidades de classe, tem de compartilhar com o poder público.

Portanto, há este ano, no Brasil, um caráter ímpar para o Dia Mundial do Livro, que enaltece a imortalidade de Cervantes e Shakespeare, falecidos em 23 de abril de 1616, e celebra o nascimento de autores como Maurice Druon, K. Laxness, Vladimir Nabokov, Josep Pla e Manuel Mejía Vallejo.

Além da vida e obra desses grandes nomes da literatura, outra ideia inspiradora da Unesco para instituir a data advém da tradição catalã, na Espanha, de, também nesse dia, dar uma rosa a quem compra um livro. É a rosa da sabedoria, da liberdade e do desenvolvimento.

KARINE PANSA, 35, empresária do setor editorial, é presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). Folha de São Paulo, Abril de 2012.

Lancheiras amorosas, por favor (ROSELY SAYÃO)

EU ESTAVA fazendo compras em um supermercado quando uma consumidora chamou minha atenção. Era uma jovem mulher acompanhada de sua filha de mais ou menos cinco anos. O que despertou meu interesse foi o fato de a mãe dialogar com a filha o tempo todo. Falavam sobre as compras, a filha fazia perguntas e a mãe respondia de bom grado e com uma linguagem bem adequada para a criança. Todas as respostas fornecidas pela mãe continham informações corretas, mas eram adaptadas ao universo da criança dessa idade.

Não é mais tão comum assim vermos pais e filhos conversarem quando fazem um passeio juntos ou compras, como era o caso. Quase toda a comunicação que vejo nessas situações se restringe a ordens, proibições, reclamações e pedidos. A partir daquele momento eu me esqueci da tarefa que precisava realizar e passei a acompanhar tanto as compras quanto os diálogos travados entre mãe e filha.

Com toda a atenção voltada para as duas, notei que a cada alimento comprado a mãe repetia a mesma frase: "Esse vamos levar porque é saudável". Como a garota não perguntou o significado dessa palavra, presumi que "saudável" já fazia parte de seu cotidiano. Meu passeio estava delicioso, mas chegou um momento em que ele se transformou em uma maravilha. Foi quando a garota pediu à mãe que ela comprasse um pacote de biscoitos - o que foi de pronto negado.

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Sem expressar nenhuma reação mais forte perante uma vontade sua que não seria satisfeita, a menina perguntou: "Esse nós não vamos comprar porque ele é doente?". Pronto: depois de ouvir isso eu já podia seguir com minhas compras, e fiz isso. Mas é claro que a cena que eu testemunhara me faria pensar. Lembrei-me logo de uma notícia que lera no mesmo dia segundo a qual quase metade da população brasileira apresenta excesso de peso. Essa notícia, fruto de uma pesquisa realizada no país todo, teve grande repercussão e muitos especialistas -médicos e nutricionistas, em especial- foram convocados a opinar e a orientar a população a respeito da boa alimentação, ou melhor, da alimentação saudável.

Dias depois, recebi a mensagem de uma leitora que, preocupada com a obesidade infantil, me perguntava se não seria interessante que as escolas adotassem em sua prática uma disciplina chamada educação alimentar. Qual educação alimentar temos praticado com as crianças e os jovens? A educação do chamado "fast food", ou seja, refeições rápidas, compradas prontas ou ingeridas em lanchonetes, por exemplo. Observar as lancheiras das crianças nas escolas nos permite essa constatação: algumas levam lanches caseiros, mas uma grande parte leva merendas industrializadas. Ou "doentes", como diria a garota de cinco anos que encontrei no supermercado.

Creio que todos que têm filhos devem se lembrar de uma refeição simples, mas muito gostosa, feita por mãe, avó, tia, pai ou todos juntos. Não era preciso ter preocupação se o alimento era ou não saudável: o fato de a refeição ter sido feita em casa, com afeto, já era um sinal de que só poderia fazer bem. Fazia. E, além de tudo, era muito gostosa. Mas parece que o estilo de vida que adotamos não mais comporta mãe fazendo comida para os filhos, lanche para levar à escola, bolo para a festa de aniversário etc. Se há quem faça, por que deveríamos fazer?

O resultado disso é que quem responde pela tal da educação alimentar dos mais novos é o mercado do consumo. O excesso de peso, inclusive de crianças, é fruto desse fato. Poderíamos fazer uma campanha pela alimentação gostosa, em todos os sentidos. Lancheiras amorosas, por favor! As crianças agradecem.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha). Folha de São Paulo, abril de 2012.

Os dois Supremos (IVES GANDRA DA SILVA MARTINS)

UM DOS mais importantes pilares da atual Constituição foi a conformação de um notável equilíbrio de poderes, com mecanismos para evitar invasão de competências. O Supremo Tribunal foi guindado expressamente a "guardião da Constituição" (artigo 102), com integrantes escolhidos por um homem só (artigo 101, § único), o presidente da República, que é eleito pelo povo (artigo 77), assim como os integrantes do Senado e da Câmara (artigos 45 e 46).

O Congresso Nacional tem poderes para anular quaisquer decisões do Executivo ou do Judiciário que invadam a sua função legislativa (artigo 49, inciso XI), podendo socorrer-se das Forças Armadas para mantê-la (artigo 142), em caso de conflito. Há, pois, todo um arsenal jurídico para assegurar a democracia no nosso país. Ora, a Suprema Corte brasileira, constituída no passado e no presente por ínclitos juristas, parece hoje exercer um protagonismo político, que entendo contrariar a nossa Lei Suprema. Assim é que, a partir dos nove anos da gestão Lula e Dilma, o Pretório Excelso passou a gerar normas.

Para citar apenas alguns casos: empossar candidato derrotado -e não eleito direta ou indiretamente- quando de cassação de governantes estaduais (artigo 81 da Constituição); a fidelidade partidária, que os constituintes colocaram como faculdade dos partidos (artigo 17, § 1º); o aviso prévio (artigo 7º, inciso XXII); a relação entre homossexuais (artigo 226, § 3º); e o aborto dos anencéfalos (artigo 128 do Código Penal). Tem-se, pois, duas posturas julgadoras drasticamente opostas: a dos magistrados de antanho, que nunca legislavam, e a dos atuais, que legislam.

Sustentam alguns constitucionalistas que vivemos a era do neoconstitucionalismo, que comportaria tal visão mais abrangente de judicialização da política. Como velho advogado e professor de direito constitucional, tenho receio dos avanços de um poder técnico sobre um poder político, principalmente quando a própria Constituição o impede (artigo 103, § 2º). Nem se argumente que ação de descumprimento de preceito fundamental - de cuja redação do anteprojeto participei, ao lado de Celso Bastos, Gilmar Mendes, Arnoldo Wald e Oscar Corrêa- autorizaria tal invasão de competência, visto que essa ação objetiva apenas suprir hipóteses não cobertas pelas demais ações de controle concentrado.

Meu receio é que, por força dos instrumentos constitucionais de preservação dos poderes, numa eventual decisão normativa do STF de caráter político nacional, possa haver conflito que justifique a sua anulação pelo Congresso (artigo 43, inciso XI), o que poderia provocar indiscutível fragilização do regime democrático no país. É sobre tais preocupações que eu gostaria que magistrados e parlamentares se debruçassem para refletir.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 77, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio. Folha de

São Paulo, abril de 2012.

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Como manter sua alma inovadora (JULIO VASCONCELLOS)

NA SEMANA passada, fiz palestra em uma conferência em Kellogg, um dos programas de MBA mais bem conceituados dos Estados Unidos. Uma das perguntas da plateia foi que uma empresa pode se manter sempre inovando. Minha resposta foi simples: não existe uma resposta. Poderia ter repetido tudo aquilo que já foi dito 10 mil vezes sobre o dilema do inovador, sobre modelos de criatividade ou sobre muitos outros conselhos clichês. Mas decidi falar o que realmente penso: quanto maior a sua empresa se torna, mais difícil é manter aquela vantagem inovadora que você tinha quando eram duas pessoas trabalhando em uma garagem.

Acredito que exista uma série de coisas que você pode fazer para tentar ajudar, o máximo possível, aquela alma inovadora a sobreviver dentro da sua empresa. É triste, mas no final acredito que aquela alma inovadora morre. Pode ser em 5, 10 ou até 30 anos, mas inevitavelmente ela acaba desaparecendo. Essa é a realidade quanto mais cedo você a encarar, mais chance terá de sobreviver. O primeiro passo é instituir três simples práticas que deverão ajudar sua empresa a manter o espírito inovador por mais algumas décadas (ou até alguém esquecer de continuar estimulando essas práticas).

Tudo começa com um bom entendimento do que está acontecendo de novo no mercado. Não basta ler no jornal uma coluna sobre inovação - é importante chegar o mais próximo das trincheiras para ver o que a mais nova leva de empreendedores está imaginando. No caso da nossa empresa, patrocinamos algumas incubadoras e aceleradoras e participamos de outras como mentores ou jurados. Com isso, conseguimos ver de perto as maiores novidades do mercado e também cultivar um relacionamento com as novas gerações de inovadores. Isso leva não só a um aprendizado como também pode abrir as portas para uma contratação estratégica, uma aquisição ou parceria estratégica.

Em paralelo, é importante cultivar um ambiente dentro da empresa que estimule a criatividade e a inovação. O essencial é fomentar uma cultura em que errar faz parte do cotidiano, em que todo erro é visto como uma oportunidade de aprendizado. Seus colaboradores têm de ter a confiança de experimentar coisas novas e métodos diferentes, sem medo de serem punidos por escolhas ambiciosas e ousadas.

O último pilar é uma questão organizacional: proteger os inovadores. Para empresas grandes funcionarem bem, é necessário ter processos bem definidos e azeitados. Infelizmente, bons processos geram um grau de inflexibilidade que facilmente sufocam qualquer projeto "fora da caixa". Por isso, é importante simular um ambiente de startup -grupos pequenos e autônomos de pessoas com espírito empreendedor, que conseguem avançar com rapidez e sem grandes distrações da empresa que os engloba.

O grupo de pesquisa Xerox Parc gerou grandes descobertas nos anos 1970 e 1980 por ter essa autonomia dentro da gigante Xerox. Hoje, vemos projetos com potencial transformador, como os óculos de realidade aumentada do Google, saindo do Google X, um grupo de projetos especiais liderado por Sergey Brin. Embora existam alguns "ingredientes de inovação" como esses, vale a pena lembrar que não importa o quão inovadora a sua empresa consegue ser, sempre virá uma startup desconhecida capaz de desenvolver uma solução melhor.

Aceitando essa realidade, você pode se preparar para inovar por uma das formas mais eficazes que existem -aquisições e fusões. Existe um longo histórico de empresas inovando por meio da aquisição de equipes e de tecnologias. A compra do Instagram pelo Facebook é um exemplo. Acho que, se Zuckerberg não enxergasse no Instagram um produto com o potencial de ameaçar a liderança do Facebook como ferramenta social, ele não teria gastado milhões por uma empresa ainda em sua infância.

Ao comprar o Instagram, Zuckerberg mostrou maturidade e humildade ao reconhecer que a maior ameaça à liderança de uma grande empresa inovadora não são os gigantes da indústria, mas, sim, produtos desenvolvidos por dois jovens trabalhando com garra e paixão.

JULIO VASCONCELLOS, 31, economista, é fundador e presidente-executivo do site de compras coletivas Peixe Urbano. Escreve

às quintas-feiras, a cada quatro semanas, nesta coluna. [email protected]. Folha de São Paulo, abril de 2012.

Delírio e mau caráter (CONTARDO CALLIGARIS)

1) CONTINUO pensando em Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, o canibal do agreste. Ele tem uma visão do mundo que justifica sua vida e seus atos. Com suas duas companheiras, ele era encarregado de uma missão divina: devia encontrar mulheres perdidas e purificá-las. Essa purificação passava pelo assassinato e pela ingestão da carne das escolhidas. A visão e a missão de Jorge eram delirantes, mas o que é um delírio? O senso comum e a psicopatologia concordam: delírio é uma convicção inquestionável, incorrigível e muito pouco plausível.

Além disso, um delírio não é apenas um exercício de fantasia, ele preenche a função (crucial) de dar sentido à existência do indivíduo que delira. São poucas as pessoas saudáveis a ponto de conseguir viver sem se atormentar com a necessidade de resolver, como se diz, o enigma da vida. Ou seja, são poucas as pessoas para quem a experiência concreta se justifica por si só, pela alegria de viver. A maioria precisa recorrer a crenças que digam por que e para o que estamos aqui.

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Ora, as crenças que explicam nossa razão de estar no mundo são todas inverossímeis. Claro, a "missão" canibalesca de Jorge nos parece mais estranha do que a crença de um cristão, mas isso pouco tem a ver com a verossimilhança. Como dizer o que é mais provável, que o filho de Deus tenha sido crucificado para nos redimir ou que Deus nos encoraje a redimir os pecadores filtrando-os pela nossa digestão? No fundo, a grande diferença é que as ideias de Jorge são só dele e de suas duas cúmplices, enquanto as ideias de um cristão são compartilhadas por 2 bilhões de pessoas. Por mais que seja pouco plausível, uma crença cessa de ser delírio quando ela se socializa.

A definição de delírio (no "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais", DSM-IV) diz que uma pessoa não pode ser diagnosticada como delirante se sua crença é "normalmente aceita por outros membros da cultura ou da subcultura dessa pessoa" -"um artigo de fé religiosa" não pode ser um delírio. Síntese paradoxal: uma religião individual é um delírio, e um delírio coletivo deixa de ser delírio e se torna uma religião.

É um pouco frustrante dispor só de critérios quantitativos para decidir o que é delirante. Mas talvez a capacidade de compartilhar uma crença com outros já seja o sinal de uma certa "normalidade".

2) Jorge e suas companheiras são loucos e delirantes. Será que a loucura e o delírio dispensam qualquer juízo moral? Será que, moralmente, todo delírio se vale? Não estou convencido disso. Entendo que a urgência de dar sentido à vida leve alguém a escolher uma religião ou, se ele não conseguir, a elaborar um delírio próprio. Mas cada um é responsável pela qualidade da religião que escolhe ou do delírio que ele elabora.

Comparemos religiões. Posso acreditar que Deus me reconhecerá como seu filho à condição que eu leve uma vida ilibada e, a cada noite, eu me açoite, no silêncio do meu quarto. Ou, então, posso acreditar que ele me reconhecerá como filho à condição que eu desmascare, prenda e execute os pecadores, mundo afora. Comparemos delírios. Posso acreditar que Deus quer que eu mude de sexo. Ou posso acreditar que Deus me encarregou de andar com pinças e bisturi no bolso, para mudar o sexo dos outros.

Conclusão: uma religião ou um delírio segundo os quais os outros deveriam pagar para que MEU mundo faça sentido são, no mínimo, provas de mau caráter.

3) Dúvida diagnóstica. Os canibais do agreste chamaram a atenção da polícia quando usaram o cartão de crédito de uma das vítimas. Isso era também parte do "ritual de purificação"? Consideremos ainda uma frase do memorial de Jorge, descrevendo o fim da primeira das três vítimas: "Eu, Bel e Jéssica nos alimentamos com a carne do mal, como se fosse um ritual de purificação, e o resto eu enterro no nosso quintal, cada parte em um lugar diferente".

Em tese, um delírio diria que aquilo ERA, sem sombra de dúvida, o ritual de purificação - nada de "como se fosse". Se o tribunal me consultasse como perito, talvez eu alegasse o estelionato e essa frase para afirmar que Jorge não é um louco, mas um perverso, que manipulou duas abobadas e deixou alguns escritos, tudo com a intenção de urdir crimes sinistros e de ser reconhecido (e assim "desculpado") como louco.

[email protected]. Folha de São Paulo, abril de 2012.

Opinião pública, o que é? (MINO CARTA)

Confusões. O Estadão acredita que seu sonho de vê-los brigar é verdade. Foto: Pedro Ladeira/Frame/Ag. O Globo

PERGUNTO aos meus reflexivos botões qual seria no Brasil o significado de opinião pública. Logo garantem que não se chama Merval Pereira, ou Dora Kramer, ou Miriam Leitão. Etc. etc. São inúmeros os jornalistas nativos que falam em nome dela, a qual, no entanto, não deixa de ser misteriosa entidade, ou nem tão misteriosa, segundo os botões. A questão se reveste de extraordinária complexidade. Até que ponto é pública a opinião de quem lê os editorialões, ou confia nas elucubrações de Veja? Digo, algo representativo do pensamento médio da nação em peso? Ocorre-me recordar Edmar Bacha, quando definia o País - como Belíndia, pouco de Bélgica, muito de Índia. À época, houve quem louvasse a inteligência do economista. Ao revisitá-la hoje, sinto a definição equivocada. Os nossos privilegiados não se parecem com a maioria dos cidadãos belgas. A Bélgica vale-se da presença de uma burguesia autêntica, culta e naturalmente refinada. Trata-se de tetranetos da Revolução Francesa. Só para ser entendido pelos frequentadores do Shopping Cidade Jardim em São Paulo: não costumam levar garrafas de vinho célebre aos

restaurantes, acondicionadas em bolsas de couro relampejante, para ter certeza de uma noite feliz. Até ontem, antes do jantar encharcavam-se em uísque.

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Em contrapartida, a minoria indiana, sabe das coisas e leu os livros. Já a maioria, só se parece com a nossa apenas em certos índices de pobreza, relativa ou absoluta. No mais, é infelicitada por conflitos, até hoje insanáveis, étnicos e religiosos. Nada de Bélgica, tampouco de Índia. Nem por isso, a diferença, ainda brutal, existe entre brasileiros ricos e pobres, embora desde o governo Lula tenha aumentado o número de remediados.

O Brasil figura entre os primeiros na classificação da má distribuição de renda, pecha mundial. Na semana passada, CartaCapital publicou ampla reportagem de capa sobre vários índices do nosso atraso, a mostrar que crescimento não é desenvolvimento. De fato, o Brasil sempre teve largas condições de ser um paraíso terrestre, como vaticinava Americo Vespucci, e não foi porque faltou o comando de quem quisesse e soubesse chegar lá. Sobrou espaço para os predadores, ou seja, aqueles que, como dizia Raymundo Faoro, querem ―um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem povo‖.

A opinião pública que os Mervais, Doras e Mirians da vida acreditam personificar, é no máximo, na melhor das hipóteses para eles, a dos seus leitores. Há outra, necessariamente, daqueles que não se abeberam a essas fontes, e muitos sequer têm acesso à escrita. Votam, contudo, e são convocados pelas pesquisas de opinião. À pressão midiática, que ignoram por completo, preferem optar por Lula e Dilma Rousseff. Temos de levar a sério esta específica e majoritária opinião pública claramente expressa e, em termos práticos, mais determinante que a outra.

A opinião pública que a mídia nativa pretende personificar já condenou o chamado mensalão e decidiu os destinos da CPI do Cachoeira. A opinião pública da maioria está noutra. O resultado do confronto há de ser procurado nas pesquisas e nas eleições, é o que soletram meus botões. Eles são exigentes e me forçam a um exame de consciência. Por que as circunstâncias me levam à referência frequente a mídia nativa? Acontece que a mídia é, sim, personificação da minoria. Aquela do deixa como está para ver como fica.

A mesma que conspirou contra Getúlio democraticamente eleito e contra a eleição de Juscelino. Ou que apoiou Jânio Quadros em 1960, tentou evitar Jango Goulart depois da renúncia e enfim implorou o golpe perpetrado pelos gendarmes fardados em 1964, e o golpe dentro do golpe em 1968. A mesma que desrespeitou o anseio popular por eleições diretas em 1984 e engendrou uma dita redemocratização, de todo patética, em 1985, e hoje ainda dá uma de galo no papel impresso e no vídeo. Será que a rapaziada se dá conta do que está a acontecer de verdade?

A mídia nativa, é fácil demonstrar, na sua certeza de representar a opinião pública do País todo pratica aquilo que definiria como jornalismo onírico. Neste mister, o Estadão de quinta 26 supera-se. Estampa na primeira página que a presidenta Dilma mente ao afirmar, ao cabo de um longo encontro com Lula em Brasília, a ausência de diferenças entre ela e seu mentor. A presidenta responde obviamente a uma pergunta e diz: ―Não há diferenças entre nós e nunca haverá‖. Então por que perguntam se estão certos de que seu sonho é a própria verdade?

MINO CARTA é o diretor de redação da CARTA CAPITAL. CARTA CAPITAL, Abril de 2012.

O feminino pelo viés da música (CAROLINA DESOTI)

Por meio das canções, Mulheres de Atenas e Tá na minha hora, é possível fazer um resgate histórico sobre a posição feminina na história e a tentativa de emancipação nos dias atuais

Em oposição ao conhecimento mitológico, o pensamento filosófico surge em Atenas, no Período Clássico, contexto este extremamente masculinizado. Em Atenas, por volta do século V a.C., o cidadão participa da vida pública enquanto a participação feminina fica restrita às atividades do oikos¹. Tendo em vista que a Filosofia se dá na praça pública – na Ágora – e que esse espaço é restrito à participação masculina, é possível inferir que, dentro deste contexto, o homem tem vantagem em desenvolver suas habilidades racionais. Não é da alçada masculina se deter às atividades domésticas e, desse modo, dedica- se à Filosofia enquanto a mulher fica restrita aos afazeres cotidianos. Existem poucos relatos sobre a participação feminina nos pilares da Filosofia. Um dos poucos pode ser encontrado na obra O Banquete, de Platão, mais especificamente no discurso sobre o amor feito por Sócrates: ―O discurso que sobre o amor eu ouvi um dia, de uma mulher de Mantineia. Diotima, que nesse assunto era entendida e em muitos outros [...] O discurso então que me fez aquela mulher eu tentarei repetir-vos.‖² Em seu discurso sobre o amor, Sócrates cita o diálogo que teve com Diotima, diálogo este que fundamentou posteriormente o conceito de amor platônico. A partir do aludido contexto histórico dos atenienses, surge certa desconfiança sobre a real existência do diálogo entre Diotima e Sócrates. É o que observamos na nota de tradução presente em O Banquete, feita por José Cavalcante de Souza: ―É estranho que uma sacerdotisa use o método de explicação dos sofistas do século V, por meio de perguntas forjadas por ela

mesma. Esse parece um dos mais fortes indícios de que o fato contado por Sócrates é fictício, sobretudo se se considera a exata correspondência dos diálogos Sócrates – Agatão, Diotima – Sócrates‖.3

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Chico Buarque tem um amplo repertório com o eu-feminino em suas obras. Mas esse

movimento foi intensificado por ele em 1970, quando os padrões vigentes sobre o gênero estavam em contestação

MULHERES DE ATENAS

Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Vivem pros seus maridos

Orgulho e raça de Atenas Quando amadas, se perfumam Se banham com leite, se arrumam

Suas melenas Quando fustigadas não choram Se ajoelham, pedem imploram Mais duras penas; cadenas

Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos

Poder e força de Atenas Quando eles embarcam soldados Elas tecem longos bordados

Mil quarentenas E quando eles voltam, sedentos Querem arrancar, violentos

Carícias plenas, obscenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas

Despem-se pros maridos Bravos guerreiros de Atenas Quando eles se entopem de vinho

Costumam buscar um carinho De outras falenas

Mas no fim da noite, aos pedaços Quase sempre voltam pros braços

De suas pequenas, Helenas Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas: Geram pros seus maridos,

Os novos filhos de Atenas. Elas não têm gosto ou vontade, Nem defeito, nem qualidade;

Têm medo apenas. Não tem sonhos, só tem presságios. O seu homem, mares, naufrágios...

Lindas sirenas, morenas. Mirem-se no exemplo Daquelas mulheres de Atenas

Temem por seus maridos Heróis e amantes de Atenas As jovens viúvas marcadas

E as gestantes abandonadas Não fazem cenas Vestem-se de negro, se encolhem

Se conformam e se recolhem Às suas novenas Serenas Mirem-se no exemplo

Daquelas mulheres de Atenas Secam por seus maridos Orgulho e raça de Atenas

(Chico Buarque e Augusto Boal)

Por um lado, a sacerdotisa de Mantineia obteve certo destaque, pois, de acordo com Sócrates, foi capaz de protagonizar o discurso sobre um tema tão profundo quanto o amor. Por outro lado, gerou a dúvida sobre sua efetiva participação na construção do conceito de amor platônico, por em geral as mulheres atenienses não frequentarem o espaço público – e, consequentemente, permanecerem privadas do saber filosófico. Não cabe aqui uma discussão esmiuçada sobre a veracidade da participação de Diotima no desenvolvimento do diálogo socrático. Interessa-nos evidenciar a carência de participação feminina no contexto da Grécia Antiga e levantar uma questão: Será que de certa forma tal espectro do feminino se faz presente ainda hoje?

Para abordagem de tal hipótese, será de grande valia a música Mulheres de Atenas, de autoria de Chico Buarque e de Augusto Boal. A música retrata a condição da mulher ateniense durante o Período Clássico utilizando elementos da mitologia grega contidos nos poemas épicos Ilíada e Odisseia, ambos atribuídos a Homero. Com toques de ironia, a música relata a postura feminina de modo atemporal provocando mulheres da década 19704 a refletir sobre o que difere a postura feminina de sua época com a postura das atenienses do século de Péricles5.

CASAMENTO E SUBMISSÃO

Mulheres de Atenas remete à figura feminina restrita aos afazeres domésticos e à mercê das vontades dos seus maridos. Subordinadas a eles, as mulheres vivem em função de agradá-los como se não estivessem integradas ao universo circundante, como se não fossem dotadas de um aparato mental próprio. Quando solteiras, permaneciam confinadas ao gineceu6 e sua participação nas atividades da pólis se limitavam em homenagear os deuses. Depois de casadas, continuavam confinadas ao gineceu; a alteração, com o matrimônio, é que as mulheres ampliavam sua atuação, pois precisavam gerar descendentes. O casamento na Grécia Antiga era uma espécie de negócio que visava à ampliação das propriedades; portanto, em geral, eram arranjados.

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Era comum entre as mulheres de Atenas pouco desfrutarem da companhia de seus maridos. Estes, ou preferiam se entreter com as heteras7, ou com outros homens. Há uma diferença fundamental no que se refere à sexualidade entre a Cultura grega datada antes de Cristo e a postura sexual pautada a partir do Cristianismo. Na Grécia, não havia a distinção entre homo e heterossexual. A relação sexual entre homens era frequentemente praticada e socialmente aceita8; Muitas vezes estava associada ao aprendizado, pois era realizada entre mestres e discípulos, e, de acordo com o discurso de Aristófanes em O Banquete, o amor entre homens era o mais sublime: ―E todos os que são cortes de um macho perseguem o

macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajosos. [...] Uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política.‖9

Na época do ―Estado Novo‖, as músicas sobre as mulheres retratam não uma mulher vitimizada, mas como capazes de quebrar paradigmas. Um exemplo de música do período é Madalena, de Bide e Marçal

Ao atentarmo-nos para o seguinte trecho da música: ―Quando eles se entopem de vinho/Costumam buscar um carinho/De outras falenas‖. É possível corroborar as hipóteses de que os maridos mantinham relações extraconjugais. Falenas é o nome correntemente dado às borboletas noturnas da família dos geometrídeos10. Tal analogia supõe o adultério masculino tanto com as heteras11, quanto com outros homens (borboletas). É importante termos em vista que a monogamia, assim como a distinção entre hetero/homossexual, é também um valor cristão, portanto, não praticados pelos gregos que viviam regidos pela religião politeísta.

INDAGAÇÃO FEMININA

Mulheres de Atenas foi composta em 1970, em meio à Revolução Sexual, objetivando um questionamento feminino sobre sua postura perante os ditames do masculino. Quando os autores usam de forma imperativa ―Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas‖, de modo algum intencionam um resgate dos valores femininos do Período Clássico, mas usam-no como uma provocação para as mulheres, como um alerta. A canção é atemporal, não se refere apenas às mulheres da Grécia Antiga, tão pouco apenas às mulheres da segunda metade do século XX. A música é atual e nos permite ainda questionar se a presença do espectro feminino grego é ainda, de certa forma, presente.

Antes de tentar pleitear uma resposta possível para complexa questão, vamos retomar algumas mudanças fundamentais que ocorreram devido ao advento da Revolução Sexual. Tal revolução, iniciada em 1960, abriu portas para o movimento de emancipação feminina, principalmente devido à chegada da pílula anticoncepcional ao mercado. Até então, o ato sexual feminino ainda devia ser praticado visando apenas à reprodução. A chegada da pílula culminou em uma inovação, proporcionando relevantes mudanças na sociedade; principalmente para as mulheres, que pela primeira vez puderam manter relações sexuais optando por não engravidar. A partir de então, houve o elogio e o incentivo ao prazer feminino.

TÁ NA MINHA HORA

Te fiz uns sambas, neguinho, te dei carinho Despi as suas fantasias devagarinho

Da sua onipotência tratei com jeitinho E das chegadas de madrugada no sapatinho Agora tá na minha hora Eu vou passar uns tempos em mangueira

Não chora, neguinho, não chora

O meu coração é da estação primeira Te deixo a geladeira cheia e sem promessa

Que findo o carnaval eu tô de volta Não chora, neguinho, não chora O meu coração é verde rosa Não chora, neguinho, não chora

Tá na minha hora, tá na minha hora

(Adriana Calcanhoto)

AS IDEIAS DE MARCUSE FUNDAMENTARAM MOVIMENTOS ESTUDANTIS QUE PASSARAM A FAZER CRÍTICAS AO SISTEMA CAPITALISTA, RELACIONANDO-O COM A REPRESSÃO SEXUAL

A década de 1960 do século XX foi de intensa efervescência entre os jovens; as ideias de Marcuse fundamentaram movimentos estudantis que passaram a fazer críticas ao sistema capitalista, relacionando-o com a repressão sexual. Marcuse, com fortes influências de Karl Marx e de Sigmund Freud, pleiteou, em sua obra Eros e Civilização, a possibilidade de uma civilização não repressiva, exaltando a possibilidade da liberação da sociedade contemporânea do sistema repressivo

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capitalista mediante a criação de uma razão libidinal, que impediria o desvio da libido até atividades culturalmente úteis. De acordo com Marcuse, o processo de emancipação das massas dependia não só do movimento político, mas também de uma substancial alteração do comportamento ético-sexual. Para tanto, defendia a ―dessublimação controlada‖ onde ocorreria uma libertação simultânea da sexualidade e da agressividade reprimidas: ―A noção de uma ordem instintiva não-repressiva deve ser primeiramente testada nos mais desordenados de todos os instintos: os da sexualidade. A ordem não repressiva só é possível se os instintos sexuais puderem, em virtude de sua própria dinâmica e sob condições existenciais e sociais mudadas, gerar relações eróticas duradouras entre os indivíduos maduros. Temos de indagar se os instintos sexuais, após a eliminação de toda a mais-repressão, são capazes de desenvolver uma racionalidade libidinal que seja não só compatível, mas promova até o progresso para as formas superiores de liberdade civilizada‖.12

COMPARANDO A MÚSICA DE ADRIANA CALCANHOTO COM MULHERES DE ATENAS NOTA-SE UMA ESPÉCIE DE INVERSÃO DE PAPÉIS DIANTE DOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS E DA POSTURA SOCIAL

A Guerra do Vietnã, primeiro evento bélico coberto pela mídia televisiva, causou revolta entre os jovens estadunidenses, e foi dentro desse contexto que, no final da década, surgiu o movimento hippie, que tinha como slogan ―Faça amor, não faça guerra‖ (como uma forma de exaltar o amor livre mediante o uso de drogas ilícitas13, em oposição à guerra). O Woodstock, maior símbolo desse movimento, aconteceu em 1969 em uma fazenda no interior de Nova York. Ora, esse evento musical contou com a presença de milhares de pessoas marcando o ápice do movimento de contracultura, cujas ideias permearam décadas e, de certa forma, se fazem vivos até hoje. Os artistas mais famosos da época se apresentaram no festival que foi movido a drogas alucinógenas e sexo livre – em nome da paz.

A figura feminina, que a partir de 1960/70 adquire certa autonomia sobre seu corpo, ao poder controlar sua função reprodutiva, começa a lutar cada vez mais pela igualdade entre os gêneros conquistando os bancos das universidades e, consecutivamente, o mercado de trabalho. Essas mudanças foram acontecendo gradativamente e hoje podemos observar o reflexo das alterações iniciadas ainda no século XX.

Visto que uma canção setecentista composta por figuras masculinas foi utilizada para inspirar as reflexões acerca da feminilidade dentro de um contexto de sujeição, faremos uso de uma canção composta em 2011 por uma mulher para elucubrarmos sobre a maneira que a figura feminina se mostra hoje. A música a ser utilizada foi composta por Adriana Calcanhoto e é intitulada Tá na minha hora. Comparando a música de Adriana Calcanhoto com Mulheres de Atenas nota-se uma espécie de inversão de papéis – masculino e feminino – diante dos relacionamentos afetivos e também diante da postura social. O título da canção expõe a ideia de que o estereótipo feminino de ―dona de casa / boa mãe de família‖ já não é priorizada por parte das mulheres na sociedade atual. A mulher de hoje, diferentemente das Mulheres de Atenasjá não ficam em casa esperando por seus maridos enquanto estes estão desenvolvendo suas atividades. Agora, a mulher se coloca como protagonista de sua história, e ocupa (alguns) espaços que antes era de exclusividade masculina. Ora, fica evidente na música que a mulher não perde sua característica maternal; ela não estará em casa, mas fará o possível para que a situação fique confortável ao companheiro. Essa estrofe remete também a alteração na condição financeira feminina, que

agora estuda, trabalha e luta pela igualdade de salários. Ela compra mantimentos e enche a geladeira, ação que até pouco tempo era de obrigação do homem, arrimo de família.

De acordo com Adriana Calcanhoto, a mulher contemporânea é ativa nas relações sexuais e na arte da conquista. Ela, além de compor sambas, quer também sambar! Diferentemente das mulheres de Atenas, que viviam à mercê de seus maridos, a mulher contemporânea, desfruta da emancipação que vem sendo por ela conquistada independente da presença de um homem ao seu lado. Especificamente no caso da música de Calcanhoto, a mulher vivencia boemia enquanto sugere que o marido, em casa, espere por ela.

A mulher hoje possui condições muito favoráveis para desenvolver seus potenciais e tal desenvolvimento, acredito, proliferará de forma substancial como já vem ocorrendo principalmente nos últimos cinquenta anos. É importante que a ―batalha‖ feminina, não seja movida por uma espécie de rancor histórico contra o masculino – se assim for, no lugar de uma igualdade entre os gêneros, apenas haverá uma inversão de sinais.

1 Referente aos afazeres do lar 2 PLATÃO, 1983:33 3 N. do T. 1983: 33 4 Época em que a canção foi composta 5 Péricles foi um importante político de Atenas responsável pela instituição da Democracia. Ele governou a Pólis no século V

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a. C. Por sua influência, este período ficou conhecido como século de Péricles. b. 6 Aposento reservado às mulheres. c. 7 Cortesãs. d. 8 Havia regras para a prática de tais relações, mas diferem fundamentalmente das que vivenciamos hoje. e. 9 PLATÃO, 1983: 24 f. 10 www.dicionarioinformal.com.br/definicao. php?palavra=falena&id=159. g. 11 Cortesã. h. 12 MARCUSE, 1975:175 i. 13 As drogas obtiveram importante papel para a desinibição sexual, principalmente feminina.

REFERÊNCIAS

FONTES, Maria Helena Sansão. Sem Fantasia - Masculino e Feminino em Chico Buarque. Rio de Janeiro: Graphia, 2003. MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. PLATÃO. O Banquete. São Paulo: Abril (Os Pensadores), 1983.

CAROLINA DESOTI é bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e atua como

professora da rede pública estadual de ensino no Estado São Paulo. [email protected]. Revista FILOSOFIA, abril de 2012.