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1 Coletânea Poética

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Coletânea Poética 1 CURSO EFA NS C Escola 2,3 de Azeitão UFCD 2 - Culturas Ambientais 2

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Page 1: Coletânea Poética-EFA NS C-2011-2012  Final

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Coletânea Poética

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2

CURSO EFA NS C

Cultura, Língua e Comunicação

UFCD 2 - Culturas Ambientais

Escola 2,3 de Azeitão

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Nota de Apresentação

“ Um poema é um mistério cuja chave deve ser procurada pelo leitor” Stéphane Mallarmé

Esta é uma compilação de poemas de poetas consagrados feita para um

trabalho da área de CLC, na unidade 2 - “Culturas ambientais”.

Os formandos selecionaram poemas que se enquadrassem no tema da

unidade. Este trabalho foi desenvolvido em aula. Cada formando elaborou uma

breve biografia do autor escolhido, fez a análise do poema - em termos formais

e de conteúdo - e definiu o seu enquadramento literário. Sobre o poder da

vertente artística, e da nossa literatura em articular, cada um opinou sobre a

sua influência cultural na promoção e no bem-estar do indivíduo.

Fez-se uma reflexão conjunta sobre os poemas escolhidos, em que cada

um apresentou a sua análise oralmente, lançando o debate sobre as diferentes

interpretações dos formandos acerca do conteúdo dos poemas.

Este trabalho permitiu um melhor conhecimento de alguns dos “nossos”

poetas e fomentou o gosto pela leitura, em especial, pela poesia.

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Título

Coletânea Poética

Seleção de poemas de vários autores

Coordenação

Prof. Guilhermina Duarte

Nota de apresentação

Irene Dias

Composição e arranjo gráfico

Irene Dias

Revisão

Prof. Guilhermina Duarte

Formandos:

Aníbal Afonso

Bruno Vale

Glória Gonçalves

Irene Dias

John Taube

Luís Dias

Luísa Paquete

Maria Helena

Paulo Silva

Pedro Sampaio

Edição: junho de 2012

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Índice

Poetas - Poema Páginas

Rainer Maria Rilke – Dia de outono 6

Alberto Caeiro – Árvores 7

Sophia de Mello Breyner Andresen – Paisagem 8

Eugénio de Andrade – Onde me levas, rio que cantei 9

Joaquim Pessoa – Nasci no campo 10

José Gomes Ferreira – Vivam apenas 11

Herberto Hélder – Há uma árvore 12

Luís de Camões – De quantas graças tem a Natureza 13

Bocage – Ó trevas que enlutais a Natureza 14

António Gedeão – Pastoral 15

António Correia de Oliveira – Pela Pátria 16

Alberto Caeiro – Quando vier a primavera 17

Miguel Torga - Segredo 18

Miguel Torga – Bucólica 19

Florbela Espanca – Árvores do Alentejo 20

Sebastião da Gama – Serra-Mãe 21

Álvaro de Campos – Ode Triunfal 23

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“Todo o homem saudável consegue ficar dois dias sem comer – sem a poesia jamais”

Tout homme bien portant peut se passer de manger pendant deux jours, - de poésie jamais.

Ch. Baudelair, in “L´art romantique”

Dia de Outono

Senhor: é tempo. O verão era imenso.

Coloque sua sombra sobre os relógios de sol

e solta ao vento nos campos.

Oferta dos últimos frutos para ser completo;

dar-lhes outro dia dois mais ao sul,

Pressioná-los a maturação, e perseguição

a doçura última para o vinho pesado.

Quem não tem casa, agora não vai construir mais uma.

Quem está sozinho agora vai permanecer assim por um longo

tempo,

vai ficar, ler, escrever longas cartas,

e vaguear pelas avenidas, para cima e para baixo,

sem parar, enquanto as folhas estão soprando.

Rainer Maria Rilke

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7

“A arte faz apenas versos : somente o coração é poeta.”

L´art ne fait que des vers: le coeur seul est poeta.

Chénier, in” Elégie”

Árvores

Não basta abrir a janela

Para ver os campos e o rio.

Não é bastante não ser cego

Para ver as árvores e as flores.

É preciso também não ter filosofia nenhuma.

Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.

Há só cada um de nós, como uma cave.

Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;

E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,

Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro

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8

“A poesia é a linguagem natural de todos os cultos”

La poésie et le langage naturel de tous les cultes

Necker Stael, in “De l´alleagne”

Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas,

O cheiro da terra era fundo e amargo,

E ao longe as cavalgadas do mar largam

Sacudiam na areia as suas crinas.

Era o céu azul, o campo verde, a terra escura,

Era a carne das árvores elástica e dura,

Eram as gotas de sangue da resina

E as folhas em que a luz se descombina.

Eram os caminhos num ir lento,

Eram as mãos profundas do vento

Era o livre e luminoso chamamento

Da asa dos espaços fugitiva.

Eram os pinheirais onde o céu poisa,

Era o peso e era a cor de cada coisa,

A sua quietude, secretamente viva,

E a sua exalação afirmativa.

Era a verdade e a força do mar largo,

Cuja voz, quando se quebra, sobe,

Era o regresso sem fim e a claridade

Das praias onde a direito o vento corre.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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9

“ A poesia nasce simples de uma mente serena”

Ovídio, in “Turista”

Onde me levas, rio que cantei

Onde me levas, rio que cantei,

esperança destes olhos que molhei

de pura solidão e desencanto?

Onde me levas? que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio

de uma noite maior e mais completa,

com anjos tristes a medir os gestos

da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo

como o coração dos frutos bravos,

pátria minha de fundos desenganos,

mas com sonhos, com prantos e com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo

e rasga esta sombra que me cerca.

Há outra fase na vida transbordante:

que seja nessa face que me

Eugénio de Andrade

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10

Nasci no campo, onde se cruzavam os cheiros de flor

Do limoeiro

Com o de hortelã e o do estrume. Brinquei

Por entre o milho, queimei em fogueiras o rosmaninho,

Persegui lagartixas, cobras e ouriços, capturei e destruí

Escaravelhos,

Defendi as carochas, roubei ninhos com ovos e pássaros

Implumes,

Colhi cachos ainda verdes, desesperei pelo amadurecimento

Dos figos, das romãs e dos alperces,

Tingi-me com amoras, fui irmão das abelhas, discuti com o

Vento

E mais do que a erva e as árvores aproveitei-me da chuva.

Agora moro num quarto andar e tenho um automóvel tão

Sólido como a minha infelicidade,

Viajo às vezes entre as árvores, e colinas com árvores e

Planícies com árvores

Mas está tudo longe, fora do alcance, fugindo de mim

Rapidamente, em sentido contrário,

Com a mesma rapidez com que a infância me fugiu.

Sou hoje um cidadão da pedra e do betão. Os meus pés não

Pisam já o alecrim,

Os meus olhos não se habituam já ao escuro da noite para

Observar o voo dos morcegos,

Guardo uma ideia vaga de como era um arado, tenho

Saudades

De ver o meu pai descalço a regar morangos e abóboras.

O piar dos tentilhões e dos picanços foi substituído pelo

Ruído do tráfego,

O desajeitado voar das borboletas parece-me às vezes vê-lo

Nos papéis

Que o vento levanta do chão, levando-os daqui para acolá,

E a minha vida é vivida de forma a comemorar o dia disto

E o dia daquilo

Sem comemorar nunca o dia em que começa a primavera.

Bom dia!, diz-me o cliente. Bom dia!, diz-me o fornecedor.

Bom dia!, digo eu, sem dizer nada.

Joaquim Pessoa

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11

Vivam Apenas

Vivam, apenas

Sejam bons como o sol.

Livres como o vento.

Naturais como as fontes.

Imitem as árvores dos caminhos

que dão flores e frutos

sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos

e transformar os espinhos

em rosas e canções.

E principalmente não pensem na morte.

Não sofram por causa dos cadáveres

que só são belos

quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.

A morte é para os mortos!

José Gomes Ferreira

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Há uma árvore

Há uma árvore de gotas em todos os paraísos.

Com o rosto molhado,

eu posso ficar com o rosto molhado,

com os olhos grandes.

Neste lugar absoluto pelo sopro,

fervem as víboras de ouro aos nós

sobre as pedras enterradas. Leopardos

lambem-me as mãos giratórias.

E eu abro a pedra para ver a água estremecendo.

A água embebeda-me.

Como nos corredores de uma casa brilha o ar,

brilha como entre os dedos.

- A minha vida é incalculável.

Herberto Hélder

Page 13: Coletânea Poética-EFA NS C-2011-2012  Final

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De quantas graças tinha, a Natureza

De quantas graças tinha, a Natureza

Fez um belo e riquíssimo tesouro,

E com rubis e rosas, neve e ouro,

Formou sublime e angélica beleza.

Pôs na boca os rubis, e na pureza

Do belo rosto as rosas, por quem mouro;

No cabelo o valor do metal louro;

No peito a neve em que a alma tem acesa.

Mas nos olhos mostrou quanto podia,

E fez deles um sol, onde se apura

A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura

Ela a apurar chegou quanto sabia

De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.

Luís de Camões

Page 14: Coletânea Poética-EFA NS C-2011-2012  Final

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Ó trevas que enlutais a Natureza

Ó trevas que enlutais a Natureza,

Longos ciprestes desta selva anosa,

Mochos de voz sinistra e lamentosa,

Que dissolveis dos fados a incertezas

Manes, sugeridos da morada acesa

Onde de horror sem fim Plutão se goza.

Não aterreis esta alma dolorosa,

Que é mais triste que voz minha tristeza.

Perdi o galardão da fé mais pura,

Esperanças frustrei do amor mais terno,

A posse de celeste formosura.

Volvei, pois, sombras vãs, ao fogo eterno;

E, lamentando a minha desventura,

Movereis à piedade o mesmo Inferno.

Bocage

Page 15: Coletânea Poética-EFA NS C-2011-2012  Final

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Pastoral

"Não há, não,

duas folhas iguais em toda a criação.

Ou nervura a menos, ou célula a mais,

não há, de certeza, duas folhas iguais.

Limbo todas têm,

que é próprio das folhas;

pecíolo algumas;

bainha nem todas.

Umas são fendidas,

crenadas, lobadas,

inteiras, partidas,

singelas, dobradas.

Outras acerosas,

redondas, agudas,

macias, viscosas,

fibrosas, carnudas.

Nas formas presentes,

nos actos distantes,

mesmo semelhantes

são sempre diferentes.

Umas vão e caem no charco cinzento,

e lançam apelos nas ondas que fazem;

outras vão e jazem

sem mais movimento.

Mas outras não jazem,

nem caem, nem gritam,

apenas volitam

nas dobras do vento.

É dessas que eu sou.

António Gedeão

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PELA PÁTRIA

Ouve, meu filho: cheio de carinho,

Ama as Árvores, ama. E, se puderes,

(E poderás: tu podes quanto queres!)

Vai-as plantando à beira do caminho.

Hoje uma, outra amanhã, devagarinho.

Serão em fruto e em flor, quando cresceres.

Façam os outros como tu fizeres:

Aves de Abril que vão compondo o ninho.

Torne fecunda e bela, cada qual,

A terra em que nascer: e Portugal

Será fecundo e belo, e o mundo inteiro.

Fortes e unidos, trabalhai assim…

- A Pátria não é mais do que um jardim

Onde nós todos temos um canteiro.

António Correia de Oliveira

Page 17: Coletânea Poética-EFA NS C-2011-2012  Final

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“A poesia não é um modo de liberar a emoção, mas uma fuga da emoção; não é uma expressão

da própria personalidade, mas uma fuga da personalidade.”

S. Eliot, in”Tradition and the Individual Tatent”

Quando vier a Primavera

Quando vier a primavera ,

Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira

E as árvores não serão menos verdes que na

primavera passada.

A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

E a primavera era depois de amanhã,

Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.

Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?

Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;

E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.

Por isso, se morrer agora, morro contente,

Porque tudo é real e tudo está certo.

Alberto Caeiro

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SEGREDO

Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.

Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino.

Quero ser um bom menino

E guardar

Este segredo comigo.

E ter depois um amigo

Que faça o pino

A voar...

Miguel Torga

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Bucólica

A vida é feita de nadas:

De grandes serras paradas

À espera de movimento;

De searas onduladas

Pelo vento;

De casas de moradia

Caiadas e com sinais

De ninhos que outrora havia

Nos beirais;

De poeira;

De sombra de uma figueira;

De ver esta maravilha:

Meu Pai a erguer uma videira

Como uma mãe que faz a trança à filha.

Miguel Torga

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Árvores do Alentejo

Horas mortas... Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido... e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol pesponte

A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

- Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

Florbela Espanca

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SERRA – MÃE

O agoiro do bufo, nos penhascos,

foi o sinal da Paz.

O Silêncio baixou do céu,

mesclou as cores todas o negrume,

o folhado calou o seu perfume,

e a Serra adormeceu.

Depois, apenas uma linha escura

e a nódoa branca de uma fonte amiga;

a fazer-me sedento, de a ouvir,

a água, num murmúrio de cantiga,

ajuda a Serra a dormir.

O murmúrio é a alma de um Poeta que se finou

e anda agora à procura, pela Serra,

da verdade dos sonhos que na Terra

nunca alcançou.

E outros murmúrios de água escuto, mais além:

os Poetas embalam sua Mãe,

que um dia os embalou.

Na noite calma,

a poesia da Serra adormecida

vem recolher-se em mim.

E o combate magnífico da Cor,

que eu vi de dia;

e o casamento do cheiro a maresia

com o perfume agreste do alecrim;

e os gritos mudos das rochas sequiosas que o Sol castiga

- passam a dar-se em mim.

E todo eu me alevanto e todo eu ardo.

Chego a julgar a Arrábida por Mãe

quando não serei mais do que seu bastardo.

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A minha alma sente-se beijada

pela poalha da hora do Sol-pôr;

sente-se a vida das seivas e a alegria

que faz cantar as aves na quebrada;

e a solidão augusta que me fala

pela mata cerrada,

aonde o ar no peito se me cala,

desceu da Serra e concentrou-se em mim.

E eu pressinto que a Noite, nesse instante,

se vai ajoelhar…

… … … … … … … … … … … … … … … … …

… … … … … … … … … … … … … … … … …

… … … … … … … … … … … … … … … … …

Ai não te cales, água murmurante!

Ai não te cales, voz do Poeta errante!,

- se não a Serra pode despertar.

Sebastião da Gama

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Ode Triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria

fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

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Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,

Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!

Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram

Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!

Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes

E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;

E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra

E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

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Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente.

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

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Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,

Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,

As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

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Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosamente gente humana que vive como os cães

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

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Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,

Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!

Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.

Engatam-me em todos os comboios.

Içam-me em todos os cais.

Giro dentro das hélices de todos os navios.

Eia! eia-hô! eia!

Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!

Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!

Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!

Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!

Álvaro de Campos

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Ano letivo de 2011/2012

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