coletÂnea - direitos culturais

72
.11 NÚMERO NÚMERO Entrevista com Farida Shaheed, especialista independente da ONU para Direitos Culturais Direitos Culturais e Direitos Humanos: Distâncias e Interseções Direitos Culturais no Brasil: uma Análise Jurídica Direitos culturais: um novo papel Entrevista com Farida Shaheed, especialista independente no campo dos direitos culturais das Nações Unidas Direitos culturais e direitos humanos: distâncias e interseções Direitos culturais no Brasil: uma análise jurídica

Upload: carolina-grant

Post on 26-Nov-2015

46 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

  • .11

    NMERONMERO

    Entrevista com Farida Shaheed, especialista independente da ONU para Direitos CulturaisDireitos Culturais e Direitos Humanos: Distncias e InterseesDireitos Culturais no Brasil: uma Anlise Jurdica

    Direitos culturais: um novo papelEntrevista com Farida Shaheed, especialista independente no campo dos direitos culturais das Naes UnidasDireitos culturais e direitos humanos: distncias e interseesDireitos culturais no Brasil: uma anlise jurdica

  • .1

  • .2 .3

    n. 112011

    SUMRIO

    Revista Observatrio Ita Cultural / OIC n. 11 (jan./abr. 2011) So Paulo, SP: Ita Cultural, 2011.

    QuadrimestralISSN 1981-125X

    1. Poltica cultural. 2. Gesto cultural. 3. Direitos culturais. 4. Direitos culturais no Brasil. I. Obser-vatrio Ita Cultural.

    CDD: 353.7

    Paranapiacaba, Santo Andr, SP, 2007. Foto: Humberto Pimentel

    DIREITO CULTURAL NO SCULO XXI: EXPECTATIVA E COMPLEXIDADETeixeira Coelho

    O NOVO PAPEL DOS DIREITOS CULTURAISEntrevista com Farida Shaheed, da ONUTeixeira Coelho

    A CENTRALIDADE DOS DIREITOS CULTURAIS, PONTOS DE CONTATO ENTRE DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOSPatrice Meyer-Bisch

    DIREITOS CULTURAIS, O FILHO PRDIGO DOS DIREITOS HUMANOSJess Prieto de Pedro

    O DIREITO DE TER ACESSO CULTURA E DELA PARTICIPAR COMO CARACTERSTICAS FUNDAMENTAIS DOS DIREITOS CULTURAIS Annamari Laaksonen

    A CIDADE COMO ESPAO PRIVILEGIADO PARA OS DIREITOS CULTURAISAlfons Martinell Sempere

    CINDERELA ENCONTRA SEU PRNCIPE: A ESPECIALISTA INDEPENDENTE NO CAMPO DOS DIREITOS CULTURAISYvonne Donders

    ENCONTRANDO MANEIRAS DE MEDIR A DIMENSO CULTURAL NOS DIREITOS HUMANOS E NO DESENVOLVIMENTOYvonne Donders e Annamari Laaksonen

    A questo jurdica no Brasil

    DIREITOS CULTURAIS NO BRASIL Francisco Humberto Cunha Filho

    DIREITOS CULTURAIS EM FOCO Bibliografia Jurdica ComentadaRodrigo Vieira Costa

    .06

    .15

    .27

    .43

    .49

    .61

    .73

    .89

    .115

    .127

  • .4 .5

    Foto: Humberto Pimentel

    [email protected]

    Revista Observatrio Ita Cultural

    EditorTeixeira Coelho

    Editor de imagemHumberto Pimentel

    Equipe de edioJosiane MozerMariana Oliveira MachadoSelma Cristina Silva

    Edio de textoKiel Pimenta

    Reviso de textoDenise Costa

    Produo editorialLara Daniela Gebrim

    Projeto grficoYoshiharu Arakaki

    DesignEstdio Ludens

    Colaboradores desta edioAlfons MartinellAnnamari LaaksonenFarida ShaheedFrancisco Humberto Cunha FilhoJess Prieto de PedroPatrice Meyer-BischRodrigo Vieira CostaTeixeira CoelhoYvonne Donders

  • .6 .7

    Teixeira Coelho

    Certa vez, a quem lhe afirmava que estvamos na Era dos Direitos, Norberto Bobbio, esse extraordinrio filsofo, escritor e poltico ita-liano, lembrou que esta deveria se denominar, na verdade, a Era da Expectativa dos Direitos.

    Em poucas palavras, Bobbio havia expressado com felicidade o que havia para dizer. Suas palavras so menos pessimistas do que pri-meira vista possam parecer; mesmo assim, formam uma advertn-cia preciosa: estamos mais na antessala dos direitos do que em seu territrio pleno. O fato de que se trata de uma expectativa de direitos e no de direitos propriamente ditos fica claro quando se l que, no fim de 2010, o reconhecido cineasta iraniano Jafar Panahi, uma das principais figuras da oposio em seu pas, foi condenado em sua prpria terra a seis anos de priso. Essa pena, porm, no pareceu

    1 Declarao Internacional sobre os Direitos Econ-micos, Sociais e Culturais, adotada pela Assembleia-geral da ONU em 16 de dezembro de 1966 e que entrou em vigor em 3 de janeiro de 1976.

    Direito ou expectativa

    Gra

    fism

    o co

    m o

    rost

    o de

    Julia

    n A

    ssen

    ge, c

    riado

    r do

    site

    Wik

    ileak

    s. Fo

    to: W

    ikile

    aks/

    divu

    ga

    o

    DIREITO CULTURAL NOSCULO XXI: EXPECTATIVAE COMPLEXIDADE

    suficiente ao tribunal iraniano: Panahi foi tambm proibido de filmar, isto , de exercer seu trabalho, pelos prximos 20 anos. pena que se supe central em seu caso, uma pena de privao de liberdade, acrescenta-se a pena acessria de retirada do direito de exercer seu trabalho e como seu trabalho consiste em contribuir para a vida cultural de seu pas e da humanidade, essa pena acessria compre-ende uma infrao grave, decisiva aos direitos culturais de Panahi. A declarao da ONU sobre os direitos econmicos, sociais e culturais de 1966, e que entrou em vigor dez anos depois1 estabelece que todos tm o direito de participar da vida cultural, de sua prpria vida cultural e da vida cultural de todos. Proibindo Panahi de fazer o que sabe e quer fazer, cinema, aquele tribunal iraniano aplica-lhe no apenas uma pena que contraria o direito internacional declarado como uma sano preventiva: no o pune apenas por algo que pos-sa ter dito e feito no passado e que contrariou os desejos represen-tados por aquele tribunal, como o pune preventivamente por algo que possa vir a dizer e fazer no futuro e que, de antemo, conside-rado inaceitvel. Panahi fica totalmente privado de vida cultural ati-va, quer dizer, como produtor: pena de priso e, depois disso, a pena de no poder viajar para fora do pas (atingindo a liberdade de ir e vir), acrescida da proibio de escrever roteiros e de dar entrevistas a meios de comunicao, locais ou estrangeiros. Em suma, proibio de participar da vida cultural da humanidade e, como a cultura tudo, proibio de participar da vida. Tudo isso por ter apoiado publicamente o candidato da oposio nas eleies presidenciais de seu pas, um posto para o qual foi reconduzido seu anterior ocu-pante, pessoa de confiana do sistema. Bobbio tem razo: esta a Era da Expectativa dos Direitos, no realmente uma Era dos Direitos.

    Se isso ainda precisasse ser demonstrado, bastaria recordar outro fato recente, a concesso do Prmio Nobel da Paz ao dissidente Liu Xiaobo pelo recurso no violncia na defesa dos direitos huma-nos em seu pas. Liu Xiaobo foi condenado em 2009 a 11 anos de priso por pedir mais liberdade para sua terra natal. Como disse o representante do Prmio Nobel na noite da concesso da honraria prmio que pela primeira vez no teve ningum para receb-lo em nome do outorgado , Liu Xiaobo foi condenado por sugerir como seu pas deveria ser governado, nada mais que isso. As autoridades chinesas suspenderam as notcias sobre a premiao na TV e na in-ternet e bloquearam as mensagens nas redes sociais que inclussem meno a seu nome. O nome disso censura prvia. Novamente um direito cultural foi atingido. Bobbio continua a ter razo.

    O motivo pelo qual disse acima que a afirmao de Bobbio no de todo pessimista que pelo menos temos agora a Expectativa de Al-guns Direitos, o que significa ser possvel saber pelo que se vai lutar, o que se espera conseguir.

    A formulao dos direitos culturais constitui, de fato, uma validao e uma ampliao dos direitos humanos, dos quais aqueles nasce-ram. Os direitos humanos surgiram na forma de declarao em 1948, aps a Segunda Guerra Mundial, como forma de proteger os indiv-duos contra os excessos do Estado, excessos (enorme eufemismo...)

  • .8 .9

    observados largamente ao longo daquele perodo de conflito (e mesmo antes dele) e que, na verdade, continuaram a ser praticados depois de seu encerramento pelo menos por alguns dos prprios pases que nominalmente haviam se insurgido contra o totalitaris-mo nazifascista que ento ameaava o mundo. A continuidade da opresso do indivduo pelo Estado prosseguiu assim, de um dos la-dos dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, pelo menos at o fim dos anos 1980, com a queda do Muro de Berlim que marcou o fim de uma era, pelo menos simbolicamente. A lista de infrao aos direitos humanos ps-declarao em favor desses mesmos direitos longa e sabida, no o caso de voltar aqui a lembr-la embora sem-pre seja necessrio ter uma parte da memria reservada para a recor-dao dos crimes cometidos em massa contra princpios e pessoas.

    Os direitos culturais foram uma ampliao dos direitos humanos: deram consistncia e contedo a palavras como liberdade j por si suficientemente nobre , mas que por vezes podem se revelar pe-rigosamente vazias. Liberdade para qu? De certo modo, no seria necessrio qualific-la. Liberdade de pensamento e de expresso j deveria ser algo suficientemente claro. Mas de que vale uma liber-dade de pensamento se no posso express-lo de modo que faa realmente sentido? No basta que me seja garantido o direito de subir num caixote em praa pblica e dizer o que me passa pela cabea. Importa que essa liberdade possa ser exercida no interior de um sistema no qual palavras e atos faam pleno sentido entramado, e esse sistema tem um nome hoje: vida cultural. A vida cultural um complexo de proposies e relaes que do pleno sentido liberda-de humana. a ela que a declarao dos direitos culturais se refere quando diz que todos tm direito a participar da vida cultural, algo que Panahi no poder fazer por 20 anos se sua pena no for revista.

    Este, em sua essncia resumida, o principal direito cultural: partici-par da vida cultural. A ele juntam-se outros dois que formam o trio mnimo que foi possvel formular de modo que um grande nmero de pases, embora no todos, subscrevessem a Declarao: o direi-to de participar das conquistas cientficas e tecnolgicas e o direito moral e material propriedade intelectual. Participar das conquistas cientficas significa, por exemplo, usufruir dos benefcios das pesqui-sas com as clulas-tronco, algo no reconhecido nos Estados Unidos durante o governo de George W. Bush por motivos religiosos. Par-ticipar das conquistas tecnolgicas significa, por exemplo, usufruir livremente dos benefcios da televiso aberta, a cabo, por satlite, da telefonia mvel e da internet. E, no entanto, quantos pases querem controlar e, efetivamente, restringem esse direito? A liberdade de informao e a liberdade cultural em seu sentido mais amplo torna-ram-se a principal garantia e os principais adversrios do totalitaris-mo, da opresso, da ignorncia e da corrupo muito mais at do que a fora bruta e os tribunais legais e isso algo que inmeros governos do norte e do sul no admitem.

    Os direitos culturais so de fato centrais vida contempornea, e essa centralidade apresenta uma enorme complexidade, levanta uma fila de questes de respostas nada fceis e evidentes. Se tenho

    direito a participar da vida cultural, e uma vez que a todo direito deve corresponder um dever, quem ou o que est obrigado a me fornecer essa vida cultural? O outro igual a mim certamente no, a sociedade como um todo tampouco. Regimes totalitrios dizem que o Estado que deve fornecer essa vida. Mas o esprito da De-clarao dos Direitos est longe de respaldar essa interpretao: cabe ao Estado preservar a vida cultural que existe, no criar uma, produzir uma. O Estado contemporneo no produz cultura, apenas cria as condies para que a cultura acontea. Os direitos culturais so direitos assimtricos: o direito est claro, o dever nem tanto. Isso talvez porque a ideia dos direitos culturais se prenda demasiado noo de necessidades culturais. Quais so as necessidades cultu-rais de uma dada pessoa? Essa uma questo subjetiva, razo pela qual os direitos culturais so, a justo ttulo, ditos subjetivos. Por vezes, algum Estado com pretenso de controlar a vida de seus cidados pe-se a definir essas necessidades, identificando-as por exemplo com aquelas referentes identidade cultural. Necessidades culturais seriam aquelas que definem a identidade cultural de um povo. O problema que os direitos culturais no se referem especificamen-te a um povo, a um coletivo, e, sim, a indivduos, e se por hiptese for possvel definir as necessidades identitrias de um coletivo, s o indivduo pode definir as necessidades de sua prpria identidade cultural pessoal. E como faz-las valer se so justamente em tudo individuais, pessoais, subjetivas?

    Como a Declarao dos Direitos Culturais, em seu ttulo abreviado, foi firmada por Estados, pareceu natural incluir ou fazer supor no es-prito do documento a ideia de identidade cultural, um conceito do sculo XIX, e supor que essa identidade seja estvel, nica condio

    Contedo da liberdade

    Quem preenche o direito cultural

    Trs direitos bsicos

    Garoto na entrada da Cidade Proibida, Pequim, China, 2008. Foto: Leandro Taques/Folhapress

  • .10 .11

    que torna possvel falar em necessidades culturais e em sua preser-vao. Quando a Declarao foi firmada, porm, no era ainda claro, como hoje, que a identidade cultural algo que muda, assim como e exatamente porque cultura aquilo que muda. A cultura no est-vel, no o que permanece, como supe um entendimento primrio; portanto, a identidade no permanente, algo que hoje j se comea a reconhecer com mais frequncia, como pode ser lido na entrevista concedida a esta revista pela expert independente da ONU, senhora Farida Shaheed. A tendncia das polticas pblicas sempre para a simplificao, para o desbaste das questes. Mas, se isso aceitvel, por exemplo, no campo da economia, o muito menos (ou nada) no campo da cultura, territrio do complexo por excelncia.

    As questes que se transformam em obstculo ao pleno exerccio dos direitos culturais so verdadeira legio. Os direitos culturais so individuais; muitos, porm, quiseram ver no coletivo, no grupo, na comunidade, o principal sujeito desses direitos, de tal modo a pro-por que os direitos culturais coletivos se sobrepem e se impem aos individuais. Por exemplo, se a ablao do clitris faz parte de uma cultura e como tal poderia ser teoricamente protegida como um di-reito cultural, nenhuma mulher individualmente poderia opor-se a ela e afirmar seu direito diferena. Mas j ficou claro que um dos direitos culturais centrais, o direito diversidade, no opera apenas entre as culturas, com uma cultura devendo respeitar os princpios da outra, mas no interior mesmo de uma mesma cultura, de modo que faa valer os direitos individuais, plena e estritamente individuais. O direito de participar da vida cultural implica, e isso hoje reconheci-do, o direito de no participar da vida cultural, de recusar-se a ela e de participar, se for o caso, de outra vida cultural, de uma vida cultu-ral que no faa parte dessa vida cultural que pretende impor uma restrio ao direito individual. O direito cultural individual quanto a seu sujeito e coletivo em seu objeto, como escreve neste nmero Patrice Meyer-Bisch. Esse princpio, porm, que pode implicar uma proteo dupla, ao indivduo e ao coletivo, no vai nunca deixar de lado que no centro da arena esto os indivduos em suas aes, ne-cessidades e mais do que isso, muito mais do que isso seus dese-jos. Os direitos culturais ainda levam muito pouco em considerao os desejos das pessoas na cultura e diante da cultura, preferindo sem-pre falar em necessidades, que parecem (apenas ilusoriamente) ser mais definveis porque... coletivas. Essa carncia certamente deriva de uma ainda insuficiente distino entre cultura e arte2, fruto de uma concepo antropolgica da cultura, tambm ela do sculo XIX, que no termina de impor-se. Uma cultura pode ter necessidades, possvel conced-lo. Mas a arte essencialmente uma questo de desejo, e o desejo pessoal, individual. O que justifica a existncia de uma obra de arte o desejo de seu criador, desejo que na sociedade moderna e contempornea independe de qualquer necessidade do destinatrio dessa obra de arte. S em termos muito genricos e superficiais se pode dizer, por exemplo, que a humanidade necessi-ta de narrativas, noo baseada no conceito de ser humano como aquele que conta histrias. Isso explica parte do problema. Por que razo, porm, ela precisa de tal narrativa, do cineasta X e no do ci-neasta Y, algo bem mais complexo que se apresenta na rbita do desejo, com o qual os direitos culturais no sabem ainda exatamente

    como lidar. Seguindo na esteira de Bobbio, o desejo em cultura (e em arte, e mais na arte do que na cultura) ainda um tema das Expectati-vas de Direito. (Pode ser uma sorte que assim seja, pensando bem... O desejo fica melhor no campo do imprevisvel...)

    Isso leva a outro ponto decisivo no campo dos direitos culturais: o valor da cultura, e o valor relativo das culturas. Em outras palavras, a cultura boa em si porque cultura? E todas as culturas valem o mesmo e devem ser igualmente respeitadas como tais? A cultura e as culturas so na verdade aquilo em nome do que se cometeram os maiores crimes contra a humanidade em todos os tempos e em especial no sculo XX, um dos mais carniceiros. A ideia de cultura acarreta quase sempre a de fronteiras culturais (e a de choques cul-turais) e estas, responsveis pela imagem das identidades culturais, sempre cobraram e cobram seus tributos em sangue, como lembra o escritor Claudio Magris, prmio Princpe de Astrias de Letras. No, a cultura e as culturas, consideradas como totalidades homogneas, so muitas vezes armadilhas das mais perigosas e fonte de discri-minaes e opresses. As culturas precisam ser desmembradas em suas unidades mnimas para adquirirem o sentido pelo qual cabem ser preservadas, e essas unidades mnimas so as pessoas, os indi-vduos, novamente. E isso que permitir avaliar se uma cultura ou um princpio cultural to bom quanto outro e pode ou no ser defendido ou, pelo contrrio, recusado. Os direitos culturais so uni-versais. Mas a universalidade que defendem maior que eles, e h princpios, como o direito de fazer o que bem se entender com o prprio corpo, que devem ser respeitados acima dos supostos di-reitos culturais de um coletivo e contra eles e isso no em nome propriamente de outra cultura (embora esse seja o fundo do proble-ma), mas em nome de algo maior, que a plena liberdade da pessoa humana em todos os campos e aspectos. Perversamente se diz que o respeito a uma deciso pessoal (por exemplo, recusar a ablao do clitris) fere a moral dos direitos culturais de um dado coletivo e, portanto, deve ser recusado. Mas a questo aqui no de moral e, sim, de direito, e o direito individual de no fazer alguma coisa em cultura deve prevalecer sempre sobre uma construo moral cole-tiva. No entanto, mais uma vez estamos aqui ainda em plena Era da Expectativa dos Direitos.

    A questo complexa. No por isso menos vital e urgente. Como mostra a leitura dos jornais, uma questo de todo dia, porque todo dia, em algum lugar, algum direito cultural violado por uma pes-soa individual, um coletivo ou um Estado, ou est na iminncia de o ser. O controle dos meios de comunicao de massa, num amplo espectro que vai do rdio TV e inclui a internet, um tema dirio denunciado em Estados abertamente totalitrios, naqueles subde-senvolvidos ou emergentes mais ou menos democrticos, e mesmo em outros que so reconhecidos como autenticamente democr-ticos ou amplamente democrticos (como o demonstra o caso do site WikiLeaks e as reaes que suscitou em pases que so conside-rados esteios da liberdade). Em certos campos da atividade humana, como neste, o avano para no dizer o progresso no nem uma constante nem uma evidncia. o que faz deste um tema central da poltica e da gesto cultural.

    Necessidadee desejo

    2 Cf. COELHO, Teixeira. A cultura e seu contrrio. So Paulo: Iluminuras: Ita Cultural, 2009.

    O valor da cultura

    O indivduo e o coletivo

  • .12 .13

    Este nmero da revista Observatrio inclui textos decisivos para a compreenso e o encaminhamento do que est em jogo. Os co-laboradores provm de diferentes experincias culturais (Espanha, Sua, Holanda, Paquisto, Brasil) e abordam muito mais questes do que aquelas que podem ser sumariadas numa introduo. Se-ria, de um lado, injusto destacar um ou outro deles, mas, por outro, nada mais correto, dadas as caractersticas de que se reveste, do que pr em evidncia uma contribuio em especial: a da primeira es-pecialista independente da ONU no campo dos direitos culturais, a senhora Farida Shaheed, que assumiu suas funes em novembro de 2009. Que ela tenha se disposto a conceder a esta revista uma entrevista exclusiva, uma das primeiras de seu mandato, d a suas palavras um peso especial.

    O fato de uma sociedade de naes, como a ONU, ter sentido a ne-cessidade de nomear uma especialista independente (isto , que no representa um Estado em especial) para tratar desse assunto forte-mente indicativo da moldura em que ele se situa, por sua delicadeza e urgncia. Inmeras passagens de sua entrevista so extremamen-te reveladoras e importantes em seu significado. O fato de ter des-pertado para o tema em virtude de uma experincia pessoal sob uma ditadura militar em seu pas, o Paquisto, bem indicativo da

    atmosfera em que muitos de ns ainda vivemos e do que preciso fazer para dela escapar. No menos importante a passagem em que diz procurar trazer, em sua misso, maior clareza para o conceito de direitos culturais ao investigar quais dos direitos humanos podem de fato ser considerados culturais e qual o contedo que podem ter, de modo que se desenvolvam padres normativos sobre os direitos culturais e se reforce a implementao dos direitos culturais em ge-ral ao criar as condies para que se prestem contas desses direitos (accountability) e se lhes faa justia (justiciability), isto , que sejam passveis de uma deciso judicial, que sejam vlidos legalmente e no sirvam apenas como peas de um discurso retrico.

    No menos digna de nota sua afirmao de que todos tm o di-reito de contribuir para a criao da cultura inclusive por meio da contestao das normas e valores que prevalecem na comunidade a que escolhem pertencer e a outras. uma posio lcida e ele-vada que d ideia da Expectativa de Direitos um significado mais animador. A cultura um campo aberto s simplificaes tericas e paradoxalmente a poltica cultural torna-se mais simplificada medida que a dinmica cultural se apresenta mais complexa. um mecanismo de defesa do gestor cultural, seria possvel dizer; com-preensvel mas nem por isso justificvel: a poltica cultural tem por

    Estudantes participam de manifestao por ocasio da visita do presidente dos Estados Unidos a So Paulo, SP, em 2007. Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

  • .15.14

    meta alcanar o maior nmero possvel de pessoas e isso ela busca fazer por meio, frequentemente, do procedimento da equiparao por baixo e pelo mnimo que satisfaa o maior nmero; os direitos culturais, inversamente, tm o indivduo por sujeito e o coletivo como objeto. Entender bem essa equao e conseguir montar ade-quadamente seus termos o desafio da poltica cultural do sculo XXI. No, porm, fazendo-o no papel. Como diz Farida Shaheed ao final de suas respostas, os Estados precisam demonstrar que esto constantemente dando os passos necessrios total realizao dos direitos culturais com o mximo possvel de recursos. a medida desses recursos que dir quanto realmente um Estado entende e defende os direitos culturais. A primeira dcada deste sculo j se encerrou: as promessas e a letra da lei devem tornar-se realidade. J.

    Teixeira Coelho

    Professor titular da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo (ECA/USP), curador-coordenador do Museu de Arte de So Paulo (Masp), consultor do Observatrio Ita Cultural. Autor, entre outros, dos livros Usos da Cultura, A Cultura e Seu Contrrio e Histria Natural da Ditadura (Prmio Portugal Telecom 2007).E-mail: [email protected]; [email protected]

    Farida Shaheed reconhecida internacionalmente por suas pesquisas no Womens Resource Center [Centro de Recursos para as Mulheres] e como membro do conselho do centro conhe-cido pelo nome de Women Living under Muslim Laws [Mulheres que Vivem sob Leis Muul-manas]. Participou da Conferncia de Mulheres Muulmanas Parlamentares e contribuiu para a Declarao de Islamabad sobre o papel das mulheres parlamentares muulmanas na promo-o da paz, do progresso e do desenvolvimento das sociedades islmicas.

    Sociloga de trnsito internacional, atua desde os anos 1980 como consultora para diferentes agncias da ONU e defende as causas dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Pu-blicou, entre outros, Citizenship and the Nuanced Belonging of Women (2007) e Gender, Religion and the Quest for Justice in Pakistan (Unrisd, 2009).

    Esta entrevista foi feita logo aps um seminrio sobre direitos culturais realizado em Genebra, em fevereiro de 2010, com organizao da Unesco, da Organizao Internacional da Franco-fonia e do Observatrio dos Direitos e da Diversidade Cultural de Friburgo, com o objetivo de apresentar publicamente a senhora Farida Shaheed, no incio de seu mandato, comunidade internacional interessada nos direitos culturais e na colaborao para a definio do contedo desses direitos.

    Teixeira Coelho

    O NOVO PAPELDOS DIREITOS CULTURAISEntrevista com Farida Shaheed, da ONU

  • .16 .17

    Farida Shaheed foi a primeira especialista independente no campo dos direitos culturais nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos das Naes Unidas (ONU) em outubro de 2009 e assumiu suas fun-es em 1 de novembro de 2009.

    1. O que despertou seu interesse pelos direitos culturais?Meu interesse pela cultura e suas relaes com os direitos foi de-sencadeado por minha prpria experincia pessoal na defesa dos direitos sob uma ditadura militar que, entre outras coisas problem-ticas, buscava firmemente eliminar a diversidade cultural no Paquis-to. Com a tomada do poder por um golpe de estado, o general Zia-ul-Haq (1977-1988) empenhou-se em justificar a continuao de seu regime ilegal e a anulao dos direitos recorrendo religio combinada com a cultura. Na poca, com uma formao como so-ciloga em Genebra (Sua) e na Universidade de Leeds (Reino Uni-do), eu estava trabalhando no South Asian Institute, um centro de pesquisa da Universidade de Punjab em Lahore, Paquisto. O regi-me militar rapidamente tornou impossvel a prtica independente do pensamento e da redao de trabalhos dentro da universidade. Mais de uma centena de professores foi demitida, transferida para reas rurais ou, como eu, houve quem preferisse se demitir ante tais circunstncias sufocantes. Comecei a trabalhar em projetos de pesquisa para diversos rgos das Naes Unidas, comeando com a Organizao Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Naes Unidas para a Infncia (Unicef ) e a Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO).

    O regime ZIA tinha como alvos principais os direitos das mulheres e das minorias, ao mesmo tempo em que sufocava os sindicatos de trabalhadores e os partidos polticos. Em 1981, ajudei a formar o Frum de Ao das Mulheres, que liderou a resistncia feminina ao regime militar no Paquisto e depois catalisou a formao do Co-mit de Ao Conjunta pelos Direitos do Povo ambos os fruns permanecem como principais atores na defesa dos direitos huma-nos no Paquisto. A experincia de lutar para manter os direitos sob um regime militar levou-nos a aprender vrias lies extremamente importantes. Trs so mais relevantes nesse contexto. A primeira foi a facilidade com que os direitos, inclusive aqueles considerados as-segurados, podem ser anulados se somente uma pequena minoria de pessoas tiver conscincia dos direitos legais ou acesso a eles. A segunda foi o papel vital das perspectivas culturais no campo dos direitos. Os militares introduziram medidas antidemocrticas e mi-sginas quase inevitavelmente justificadas pelo que se considerava apropriado do ponto de vista da religio e/ou da cultura. Ao mesmo tempo em que o povo no concordava com a verso dos militares para a cultura e a religio, conforme os resultados eleitorais subse-quentes demonstraram, sentiu-se, porm, incapaz de mostrar uma oposio aberta a essas imposies por medo de trair sua religio e identidade cultural. A terceira lio decorrente disso foi que os di-reitos no podem ser, sozinhos, promovidos com medidas legais; imprescindvel uma apropriao popular desses direitos, e essa apropriao decorre de vises de mundo fundamentadas em um senso de cultura de si mesmo, como indivduo e como comunidade.

    Apoiar as pessoas para reivindicar seus direitos requer um trabalho de interface entre a cultura e os direitos e de preenchimento da la-cuna entre as polticas formais e os direitos por um lado e, por outro, a vida das pessoas envolvidas em uma rede complexa de estruturas de poder e as normas socioculturais.

    A luta pelos direitos das mulheres e de outros setores marginalizados da sociedade levou-me a analisar as interligaes entre cultura, di-reitos e responsabilidades do Estado do ponto de vista tanto prtico quanto conceitual. Portanto, combino a pesquisa acadmica e meus textos sobre a implementao de diversos instrumentos de direitos humanos das Naes Unidas, e a interface dos direitos humanos e da diversidade cultural, com o trabalho prtico de base no somente no Paquisto, mas envolvendo uma grande variedade de complexidades culturais e contextos em diversas regies do mundo.

    Minha pesquisa gira em torno dos desafios enfrentados na defe-sa da universalidade dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que se mantm o direito de todos os indivduos e comunidades a promover, proteger e desenvolver suas culturas. Ao longo dos anos, trabalhando em contextos culturais diversos, tenho me empenha-do em aumentar o entendimento das normas, dos padres e dos instrumentos relativos aos direitos humanos e fomentar as medidas apropriadas para a promoo e a proteo dos direitos culturais como um processo complementar necessrio para a proteo de todos os direitos e liberdades fundamentais. Minha preocupao tem sido a promoo de polticas e projetos especficos para deter-minados contextos elaborados com uma frgil abordagem cultural, com vistas a dar sustentao aos direitos de setores marginalizados, incluindo os de mulheres, lavradores e religiosos, bem como mino-rias tnicas.

    2. Por que as Naes Unidas decidiram nomear uma especialis-ta no campo dos direitos culturais e por que essa especialista precisa ser independente?A deciso do Conselho de Direitos Humanos de nomear uma espe-cialista independente para o campo dos direitos culturais reflete o desejo da comunidade internacional de avanar na concretizao dos direitos culturais, que, no passado, foram considerados subde-senvolvidos. Conforme ratificado na resoluo 10/23 que determi-nou esse mandato, os Estados tm a responsabilidade de promo-ver e proteger os direitos culturais. Esses direitos fazem parte dos direitos humanos, que so universais, indivisveis, inter-relacionados e interdependentes. Os direitos culturais so, em muitos aspectos, fundamentais para o reconhecimento da dignidade humana e o res-peito a ela, uma vez que protegem o desenvolvimento e a expresso de vrias vises de mundo individuais e coletivas e abrangem liberdades importantes relativas s questes de identidade. Com base em normas e princpios existentes na lei internacional dos di-reitos humanos, os direitos culturais permitem uma compreenso mais rica do princpio da universalidade dos direitos humanos levan-do em conta a diversidade cultural. Alm disso, os direitos culturais constituem ferramentas essenciais para o desenvolvimento, a paz

    Farida Shaheed.Foto: Christina Rufatto

  • .18 .19

    e a erradicao da pobreza e para a gerao de coeso social, bem como de respeito e compreenso mtuos entre indivduos e grupos em toda a sua diversidade.

    De acordo com a resoluo 10/23, os direitos culturais foram uma das ltimas reas destinadas a um monitoramento especial do Con-selho de Direitos Humanos das Naes Unidas. O sistema de pro-cedimentos especiais do Conselho de Direitos Humanos um ele-mento-chave da mquina de direitos humanos das Naes Unidas, cobrindo todos os conjuntos de direitos: civil, cultural, econmico, poltico e social. Os procedimentos especiais esto a cargo de espe-cialistas independentes em direitos humanos, conhecidos por vrias denominaes grupos de trabalho, relatores especiais, especialis-tas independentes ou representantes (especiais) do secretrio-geral , o que no reflete nenhuma hierarquia nem indica diferentes nveis de autoridade. Independncia, juntamente com imparcialidade e flexibilidade, permite que os titulares dos mandatos de procedimen-tos especiais desempenhem um papel extremamente importante para promoo e proteo dos direitos humanos. Consequente-mente, todos os titulares do mandato atuam em carter pessoal. Eles no so funcionrios das Naes Unidas nem recebem nenhuma remunerao financeira.

    3. O que acarreta o mandato da Especialista Independente no campo dos direitos culturais?Em geral, os procedimentos especiais incluem investigar, elaborar re-latrios e fazer recomendaes sobre os direitos humanos do ponto de vista temtico ou especfico de cada pas. Com o respaldo do Alto Comissariado das Naes Unidas para os Direitos Humanos (ACNU-DH), os titulares dos mandatos realizam visitas aos pases (misses para levantamento de informaes); atuam em casos individuais e em questes de natureza estrutural e mais ampla enviando comunicados aos Estados, trazendo ao seu conhecimento alegaes de violao; realizam estudos temticos e convocam uma junta de especialistas; desenvolvem normas internacionais de direitos humanos; engajam-se na defesa e na conscientizao pblica; e fornecem consultoria e apoio para cooperao tcnica. Para aumentar a proteo e a promo-o dos direitos e para incentivar a cooperao e o acompanhamen-to, os procedimentos especiais atuam de forma construtiva com uma ampla variedade de interlocutores: governos, outros rgos interna-cionais e regionais de direitos humanos, entidades das Naes Unidas, instituies nacionais de direitos humanos e a sociedade civil, entre as quais figuram organizaes no governamentais e instituies aca-dmicas. Como mecanismo mais diretamente acessvel na mquina internacional de direitos humanos, os procedimentos especiais inte-ragem regularmente com os defensores dos direitos humanos e as vtimas reais e potenciais das violaes de direitos humanos.

    Em termos mais especficos, como especialista independente no campo dos direitos culturais, minha funo a de estudar a relao entre os direitos culturais e a diversidade cultural e identificar as me-lhores prticas, assim como os obstculos, presentes na promoo e na proteo dos direitos culturais nos nveis local e internacional, na

    perspectiva do gnero e das incapacidades. Com base em estudos e interaes, espera-se que eu faa sugestes de medidas e aes con-cretas para promover e proteger os direitos culturais que possam ser adotadas pelos Estados e pelo Conselho de Direitos Humanos.

    4. O que a senhora espera alcanar durante seu mandato?Pretendo trazer mais clareza ao conceito de direitos culturais, pes-quisando o melhor caminho para distinguir que direitos humanos podem ser considerados culturais, e comear a definir o teor desses direitos a fim de desenvolver padres normativos sobre direitos cul-turais e ampliar sua implantao, por exemplo, garantindo a possi-bilidade de serem exercidos e de justia em caso contrrio. Vou co-mear analisando e, depois, trabalhando as definies existentes no momento sobre direitos culturais em documentos internacionais de direitos humanos. Tais definies e documentos enfatizam o enten-dimento de cultura como um produto, como um processo e como um modo de vida, implicando que a cultura inclui referncias alm daquelas que se referem a etnicidade, lngua e religio.

    Alm disso, a fim de identificar as melhores prticas para promover e proteger os direitos culturais, pretendo fazer uma anlise crtica de algumas das medidas e polticas implementadas pelos Estados, assim como iniciativas implementadas por outros nas esferas local, nacional, regional e internacional. Acredito que as melhores prticas, principalmente aquelas que envolvem cooperao em mltiplos n-veis e vrias partes interessadas, podem funcionar como base para a sugesto de outras medidas e polticas que proporcionem respaldo aos direitos culturais.

    5. Quais so as principais questes que a senhora abordar du-rante seu mandato?No decorrer do meu mandato, proponho-me a abordar vrias ques-tes divididas em duas grandes categorias: a) garantir os direitos cul-turais nos processos de globalizao e desenvolvimento, inclusive o modo pelo qual se relacionam com o pluralismo de meios de co-municao e o impacto das tecnologias de informao; b) questes referentes a participao, acesso e contribuio no que tange vida cultural sem nenhuma discriminao, com foco na implementao dos direitos culturais dentro do sistema educacional, liberdade de pesquisa cientfica e atividade criativa, o direito de beneficiar-se do progresso cientfico e de ter acesso ao patrimnio cultural. Em am-bas as categorias, devo garantir uma perspectiva de gnero sobre os direitos culturais e abordar os direitos culturais de pessoas com de-ficincias e de no nacionais. Alm disso, pretendo localizar novas questes e prioridades medida que avanar no meu mandato por meio das misses empreendidas a vrios pases, consultas regionais e outras atividades em campo.

    6. Que direitos podem ser classificados como culturais?Os direitos culturais esto to intimamente interligados com outros direitos humanos que s vezes difcil traar uma linha divisria en-tre os direitos culturais e os demais. Em geral, os direitos culturais protegem os direitos de cada pessoa individualmente, em comu-

  • .20 .21

    nidade com outros e como grupos de pessoas para desenvolver e expressar sua humanidade e viso de mundo, os significados que atribuem a sua experincia e a maneira como o fazem. Os direitos culturais tambm podem ser considerados como algo que prote-ge o acesso ao patrimnio e aos recursos culturais que permitem a ocorrncia desses processos de identificao e desenvolvimento.

    Os direitos culturais constituem uma rea de desafio justamente porque esto ligados a uma vasta gama de questes que variam da criatividade e expresso artsticas em diversas formas materiais e no materiais a questes de lngua, informao e comunicao; educa-o; identidades mltiplas de indivduos no contexto de comunida-des diversas mltiplas e inconstantes; desenvolvimento de vises de mundo especficas e a busca de modos especficos de vida; partici-pao na vida cultural, acesso e contribuio a ela; bem como pr-ticas culturais e acesso ao patrimnio cultural tangvel e intangvel.

    Com base no Artigo 27 da Declarao Universal dos Direitos Hu-manos e nos Artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, todas as pessoas tm o direito de: expressar-se e criar e disseminar seu trabalho na lngua de sua es-colha e, particularmente, na sua lngua nativa; usufruir os benefcios do progresso cientfico e suas aplicaes; contar com a proteo de interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produo cientfica, literria ou artstica da qual for autor; usufruir a liberdade indispensvel para a pesquisa cientfica e a atividade criativa; rece-ber educao de qualidade e treinamento que respeitem totalmen-te sua identidade cultural; e participar da vida cultural de sua escolha e executar suas prprias prticas culturais, sujeito ao respeito a ou-tros direitos humanos e liberdades fundamentais.

    Como mencionado anteriormente, durante meu mandato pretendo pesquisar mais sobre como distinguir melhor os direitos humanos que podem ser considerados culturais e tambm como definir me-lhor o teor desses direitos de forma preliminar. Alm disso, propo-nho-me a aprofundar a anlise da existncia, significado e abran-gncia de uma dimenso cultural de direitos humanos.

    7. Os direitos culturais tm como objetivo proteger indivduos ou entidades coletivas? No incomum encontrar intelectuais, organizaes ou at Estados argumentando que, quando se trata de cultura, os direitos coletivos deveriam ter prioridade sobre os direitos individuais. Qual sua viso sobre essa questo?H vrios pontos de vista sobre a relao entre os direitos coletivos e individuais e uma discusso muito intensa no mbito da lei inter-nacional dos direitos humanos sobre a dimenso coletiva dos direi-tos, principalmente no que se refere aos direitos culturais. Por um lado, essa discusso diz respeito ao exerccio coletivo dos direitos individuais e, por outro, existncia dos direitos coletivos per se en-tendidos como direitos do grupo. Meu apoio seria para a viso ma-nifestada pelo Comit das Naes Unidas dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais de que os direitos culturais podem ser exercidos por todos separada ou conjuntamente ou como uma comunida-

    de. A dimenso coletiva dos direitos culturais reconhecida em ins-trumentos como a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou tnicas, Religiosas e Lingusticas, e a existncia de direitos culturais coletivos tem se tor-nado uma realidade na rea da lei internacional dos direitos huma-nos hoje, em particular na Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indgenas.

    No acho que seja apropriado, no entanto, falar de uma ou outra categoria de direitos (individual ou coletiva) como tendo prioridade sobre a outra. Como o caso de todos os outros direitos humanos, os direitos culturais atingem seu limite no ponto em que infringem outros direitos humanos. De acordo com a lei internacional, nenhum direito pode ser invocado ou interpretado para justificar qualquer ato que leve negao ou violao de outros direitos humanos e liberdades fundamentais. Os direitos culturais no so exceo.

    No se deve, portanto, tomar os direitos culturais coletivos para implicar a negao dos direitos culturais individuais: os indivduos sempre gozam do seu direito, por exemplo, de participar ou no par-ticipar de uma ou de vrias comunidades; de desenvolver livremente suas identidades mltiplas; e de ter acesso ao patrimnio cultural bem como ao de outros. Acredito ser imprescindvel, nesse sentido, lembrar que os direitos culturais sempre incluem o direito de um in-divduo de recusar-se a participar de prticas normativas associadas a uma comunidade cultural especfica qual pertena e rejeit-las. Os indivduos devem sempre ter o direito de contribuir para a cria-o da cultura, inclusive por meio de contestao das normas e dos valores dominantes dentro das comunidades s quais escolheram pertencer e dos de outras comunidades. Alm do mais, no deve-mos nos esquecer de que todas as identidades, inclusive as culturais, esto em constante desenvolvimento, que os indivduos sempre se identificam com vrias entidades coletivas simultaneamente e, tam-bm, que o fato de pertencer a um grupo em particular no implica necessariamente igualdade dentro daquele grupo. Algumas prticas que esto sendo defendidas como culturalmente justificadas podem impedir o acesso a direitos e benefcios assegurados pelos Estados e/ou podem ser discriminatrias com base em outros marcadores de identidade, como gnero, etnicidade, classe, condio migrante etc. Consequentemente, o direito de no participar de uma entidade cultural, o direito de ter identidades mltiplas e o direito de mud-las vontade so de vital importncia.

    Durante meu mandato, espero poder esclarecer mais essa discusso explorando a relao entre os direitos culturais individuais e coleti-vos, levando em considerao a prtica dos mecanismos dos direitos humanos nos mbitos nacional, regional e internacional.

    8. A diversidade cultural e os direitos culturais apoiam-se mutuamente?Antes de mais nada, importante reconhecer que a diversidade cul-tural no existe somente entre grupos e sociedades; h diversidade dentro de cada grupo e sociedade. Da mesma forma, as identidades

  • .22 .23

    no so singulares. Cada indivduo portador de uma identidade mltipla e complexa que o torna um ser nico. Isso faz com que cada pessoa seja, ao mesmo tempo, parte de vrias comunidades distintas de cultura compartilhada que pode estar fundamentada em inmeros fatores, como etnicidade, descendncia, religio, cren-as e convices, lngua, gnero, idade, filiao de classe, profisso, modos de vida e localizao geogrfica. Essas mltiplas identidades culturais so relevantes tanto para a vida privada quanto para a es-fera da vida pblica. Consequentemente, h necessidade de garan-tir a proteo dos direitos dos indivduos do ponto de vista tanto das polticas dos Estados como das restries impostas a suas vrias identidades coletivas, que podem impedir o acesso de indivduos aos direitos que lhes so conferidos pelo Estado.

    H um consenso geral de que a promoo e a proteo universais dos direitos humanos (incluindo os direitos culturais) e o respeito diver-sidade cultural apoiam-se mutuamente. O pleno respeito aos direitos humanos e, em particular, aos direitos culturais, cria um ambiente que permite, e constitui, uma garantia de diversidade cultural. Ao mesmo tempo, respeito diversidade cultural, sua proteo e promoo so essenciais para assegurar o pleno respeito aos direitos culturais. A questo, contudo, : at que ponto, e em quais circunstncias, os direi-tos culturais implicam a obrigao de respeitar, proteger e promover a diversidade cultural e o patrimnio cultural em suas diversas formas? Assegurar apoio mtuo entre a diversidade cultural e os direitos hu-manos, em particular os direitos culturais, requer a satisfao de certas condies. Deve-se ter como base o reconhecimento da diversidade de identidades e expresses culturais; tratamento equitativo e respei-to pela dignidade equnime de todas as pessoas e comunidades, sem discriminao baseada em suas identidades culturais; e abertura a ou-tros, discusso e trocas interculturais.

    A proteo da diversidade cultural no significa que se deva levantar barreiras entre indivduos e grupos para proteger suas especificida-des nem que a discusso e a crtica a respeito das prticas culturais, dos modos de vida e das vises de mundo devam ser banidas. Os Estados so responsveis, porm, pela criao de um ambiente favo-rvel diversidade cultural e fruio dos direitos culturais. Os Esta-dos tambm tm a obrigao de respeitar e proteger o patrimnio cultural em todas as suas formas. O desafio aqui no tanto a preser-vao dos bens e das prticas culturais tais como so medida que pode ser inadequada em certas circunstncias , mas a preservao das condies que permitiram a criao e o desenvolvimento de tais bens e prticas.

    Ao mesmo tempo em que o cumprimento dessas obrigaes repre-senta um enorme desafio, especialmente nas sociedades em que as pessoas sentem que seu patrimnio cultural comum est ameaado por causa, particularmente, do dinamismo ou do domnio de outras culturas, dos processos de globalizao e desenvolvimento e/ou da posio dominante de atores corporativos no campo da cultura e do lazer, o princpio da universalidade dos direitos humanos deve manter-se como a base comum de ao.

    9. Uma vez que os direitos culturais fazem parte dos direitos humanos e, como tais, so universais, existe um conflito entre a universalidade dos direitos culturais e a diversidade cultural?O princpio da universalidade dos direitos humanos, um dos princ-pios fundamentais da lei internacional dos direitos humanos, por um lado, e o dos direitos culturais e da diversidade cultural, por outro, so s vezes considerados opostos. Essa viso decorre, em parte, de uma tendncia deslocada de comparar diversidade cultural com relativis-mo cultural, que tem o efeito de suscitar medos e mal-entendidos em relao ao reconhecimento e implementao dos direitos culturais. O consenso da comunidade internacional que ningum pode invo-car a diversidade cultural para infringir os direitos humanos garantidos pela lei internacional nem limitar sua abrangncia.

    Nem todas as prticas culturais podem ser consideradas protegidas pela lei internacional dos direitos humanos. Contudo, identificar exa-tamente que prticas culturais devem ser consideradas contrrias aos direitos humanos nem sempre uma tarefa fcil. No nvel na-cional, tal processo de identificao requer, por exemplo, um marco legal indicando princpios que fundamentem que direitos culturais podem ser limitados e um Judicirio independente capaz de tomar uma deciso informada segundo esse marco legal, bem como a lei internacional dos direitos humanos, considerando a prtica dos r-gos internacionais de superviso dos direitos humanos.

    Entretanto, a lei por si s no suficiente. Tambm h necessida-de de medidas polticas que permitam a efetivao de um debate instrudo, aberto e participativo dentro de uma dada sociedade e/ou comunidade e que estimulem uma modificao dos padres ou prticas culturais que forem prejudiciais ao usufruto dos direitos hu-manos. No mbito da comunidade, particularmente importante encontrar formas de reforar os elementos positivos da cultura, ao mesmo tempo em que se promove a conscientizao da natureza opressiva de certas prticas adotadas em nome da cultura por meio de um processo de negociao cultural envolvendo famlias, inte-lectuais e lderes comunitrios. Tal processo pode abrir espao para o surgimento de novas interpretaes e o desenvolvimento de boas prticas culturais, particularmente aquelas que so capazes de fo-mentar a implementao dos direitos humanos universais em vrios contextos culturais.

    10. Na ausncia de um tribunal internacional, como se pode fa-zer cumprir os direitos culturais? O que pode ser feito para evitar violaes dos direitos culturais pelo Estado em mbito nacional?As sanes para os direitos tm origem em normas culturais do que aceitvel e no aceitvel. Nesse sentido, os direitos culturais so imprescindveis para os conceitos de todos os outros direitos. A cul-tura e os direitos esto unidos em uma relao cclica, dinmica e em evoluo. As noes culturais podem impedir a implementao de direitos legais, conforme observado, por exemplo, pelos relato-res especiais sobre a Violncia contra a Mulher. Da mesma forma, porm, disposies legais podem reforar a promoo dos direitos, assim como proporcionar reparaes de violaes, mudando assim

  • .24 .25

    as normas culturais. por esse motivo que os conceitos dos direitos culturais e do direito cultura precisam ser mais desenvolvidos por meio, por exemplo, do trabalho sob meu mandato.

    importante promover o consenso sobre as normas a serem man-tidas por toda a comunidade internacional no campo dos direitos culturais, assim como todos os outros. Uma vez que os direitos cul-turais representam uma rea relativamente subdesenvolvida dos direitos humanos, essencial que primeiramente se determine a abrangncia da natureza dos direitos culturais com base no consen-so existente sobre os princpios dos direitos humanos. Em termos de mecanismos, vou me empenhar para primeiro identificar as melho-res prticas existentes nos nveis local, nacional, regional e interna-cional, de forma que elas possam servir de base para as discusses e levar ao consenso entre o sistema das Naes Unidas, os Estados e os grupos da sociedade civil a respeito de medidas concretas que venham a apoiar os direitos culturais de indivduos e grupos, inclusi-ve por meio da cooperao em vrios nveis. Ao fazer isso, tambm prestarei ateno s situaes que tornam toda a gama de direitos humanos mais vulnervel ao abuso, como situaes de guerra e conflito armado.

    J temos um forte ponto de partida, o que muito significativo. Os direitos culturais so conservados como um tesouro em alguns dos instrumentos de direitos humanos regionais e internacionais mais amplamente ratificados ou aceitos, dentre os quais se encontram a Declarao Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (Pidesc). Os Estados tm, assim, voluntariamente, assumido o compromisso de respeitar, pro-teger e cumprir os direitos culturais, estando obrigados a faz-lo por meio da adoo de medidas legislativas, administrativas e judiciais especficas, entre outras. Os mecanismos internacionais de direitos humanos das Naes Unidas e das organizaes regionais fazem o monitoramento para ver como os governos cumprem suas obriga-es previstas no tratado e adotam declaraes e recomendaes para respeitar esses direitos. As instituies da sociedade civil, entre as quais mas no somente as organizaes no governamentais, podem cooperar com os rgos internacionais de direitos humanos no monitoramento e na promoo dos direitos culturais.

    Alm disso, h vrios mecanismos de denncia disponveis dentro das Naes Unidas, assim como nos sistemas regionais de direitos humanos. Como mencionado antes, os procedimentos especiais das Naes Unidas intervm diretamente nos governos diante de alegaes especficas de violaes dos direitos humanos, inclusive dos direitos culturais. As denncias relativas a violaes dos direitos culturais de pessoas pertencentes s minorias e de povos indgenas dentro do marco do Artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (PIDCP) podem ser e tm sido frequentemente apre-sentadas de acordo com o Protocolo Facultativo ao PIDCP. A entra-da em vigor do Protocolo Facultativo ao Pidesc tambm permitir a apresentao de denncias referentes a supostas violaes dos direitos culturais. Em nvel regional, os aspectos culturais de outros

    direitos humanos so analisados, por exemplo, de acordo com os mecanismos de denncia dos sistemas de direitos humanos euro-peu, interamericano e africano.

    11. J no mais politicamente correto falar sobre o choque de civilizaes ou culturas. Em sua opinio, esse fenmeno ainda existe? Em caso afirmativo, como ele se relaciona com os direi-tos culturais?As tenses sempre existem entre as pessoas de diferentes pontos de vista, tanto dentro de uma cultura como entre culturas. As ten-ses no deveriam ser consideradas como algo necessariamente negativo, uma vez que podem gerar criatividade e produzir novas formas de pensar as questes. Elas deveriam ser valorizadas pelas oportunidades que proporcionam para explorar e compreender as diversas perspectivas e experincias a fim de levar a um consenso sobre os padres, as normas e as prticas bsicas dos direitos huma-nos. De qualquer forma, uma falcia acreditar que as culturas so entidades hermeticamente fechadas que existem isoladas de todas as outras culturas.

    Ao longo de toda a histria, grupos culturais divergentes interagi-ram uns com os outros e enriqueceram-se por meio de intercm-bios de ideias e pessoas. Isso particularmente verdadeiro no nosso mundo contemporneo, onde novas tecnologias de comunicao e informao e a migrao se combinaram para intensificar e multi-plicar enormemente os intercmbios entre todos os povos, inclusive aqueles em reas bastante remotas do mundo. Com engajamentos como esse, sempre existe um interfluxo de ideias, bem como de bens e produtos. O desafio identificar as razes comuns dos direi-tos humanos em todas as culturas para chegar a um consenso sobre os direitos humanos e os direitos culturais de maneira que elas no somente imponham penalidades sobre algum grupo determinado, mas tambm, e simultaneamente, defendam a universalidade de to-dos os direitos humanos. O contato e a interligao cada vez maior das culturas tornam tudo isso ainda mais importante para promover e proteger a diversidade cultural dentro dos Estados, assim como alm dos Estados, para que todos separada ou conjuntamente, ou como uma comunidade tenham assegurado seu direito cultura, ou seja, o direito no somente de preservar as manifestaes cultu-rais, mas de se desenvolver em termos culturais como um modo de vida, ao mesmo tempo em que mantm os padres universais dos direitos humanos.

    12. No que se refere poltica pblica, a cultura muitas vezes fica em ltimo lugar, principalmente nos pases em desenvol-vimento. possvel promover os direitos culturais se a prpria cultura no recebe apoio nem promoo? Como as Naes Unidas e a senhora podem, dentro do marco do seu mandato, abordar esse problema?As Naes Unidas veem as trocas e o desenvolvimento culturais (em termos de herana e criatividade) como um instrumento para a gerao de coeso social, para o avano do dilogo e da paz inter-nacionais e para o desenvolvimento sustentvel. Dentro da famlia

  • .26 .27

    das Naes Unidas, a Organizao das Naes Unidas para a Educa-o, Cincia e Cultura (Unesco) que tem a responsabilidade bsica de promover a cultura. As atividades culturais da Unesco concentram-se na proteo e salvaguarda do patrimnio cultural em todas as suas formas e na promoo do dilogo intercultural, por meio do desenvolvimento de instrumentos legais e da realizao de uma ampla variedade de estudos, projetos e atividades de assistncia tcnica.

    Como especialista independente no campo dos direitos culturais, tenho a incumbncia do Conselho de Direitos Humanos de desenvolver um traba-lho bem coordenado com a Unesco e colaborar com eles, particularmente no que tange ao estudo da relao entre os direitos culturais e a diversida-de cultural com o objetivo de promover ainda mais os direitos culturais.

    importante observar, no entanto, que o propsito do meu mandato contribuir para a promoo e a proteo dos direitos culturais, no da cul-tura per se. Enquanto voc se refere falta de apoio cultura em muitos pases, tambm so muito frequentes situaes em que a cultura (muitas vezes a cultura nacional, mas em muitos casos tambm, por exemplo, as culturas minoritrias) recebe um apoio significativo do Estado, enquanto os direitos culturais da populao so negados e violados pelo mesmo Estado. Isso somente um exemplo no qual meu mandato constitui um valor agregado.

    Tambm gostaria de destacar que, enquanto a promoo da cultura, bem como a garantia do pleno gozo dos direitos culturais, pode exigir recursos financeiros e, como tal, representar alguma dificuldade para os pases em desenvolvimento, nem todos os aspectos dos direitos culturais envolvem necessariamente grandes recursos. Por exemplo, a obrigao de no interferir nas liberdades culturais e o reconhecimento da diver-sidade cultural e da expresso cultural e o respeito a elas muitas vezes exigem mais vontade poltica do que recursos financeiros. Ao mesmo tempo, como ressaltado pelo Comit dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, os Estados devem demonstrar que esto constantemente tomando medidas necessrias para o pleno cumprimento dos direitos culturais de acordo com o mximo de recursos disponveis.

    Patrice Meyer-Bisch

    A adoo, em setembro de 2001, da Declarao Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural representa, simbolicamente, a grande virada poltica do incio deste sculo. Embora a diversidade cultu-ral fosse considerada um freio ao desenvolvimento, um obstculo modernidade e, portanto, ao progresso, cincia e democracia, ela hoje cada vez mais entendida como um recurso do desenvol-vimento, da cincia, da democracia e da paz. Nem toda diversidade cultural, porm, benfica, pois preciso tambm que ela esteja a servio dos direitos humanos, fonte de diversidade, para uma com-preenso nunca alcanada da universalidade. No interior do sistema dos direitos humanos, so os direitos culturais que atualmente esto em primeiro plano, pois so as ferramentas que permitem garantir o bom uso da diversidade a servio da dignidade humana, universal, singularmente presente em cada um e desenvolvida graas a seus recursos culturais. Recolocar os direitos culturais dentro do sistema dos direitos humanos uma exigncia de coeso conforme ao prin-cpio da indivisibilidade; tambm recoloc-los no centro do polti-co. Tal o desafio filosfico, ao mesmo tempo antropolgico, jurdi-co e poltico que est em jogo: o desafio da proteo mtua entre diversidade e direitos culturais, um fator ainda muito mal conhecido pela paz, assim como pelo desenvolvimento1.

    Lago Titicaca (Isla de Uros), Peru, 2010. Foto: Edson A. Gomes

    1 Uma parte desse docu-mento foi apresentada em Rabat, no decorrer do segundo congresso da As-sociao Francofnica das Comisses Nacionais dos Direitos Humanos (5 a 7 de fevereiro de 2007, Unit et Diversit. Du Respect de la Diversit la Jouissance Effective des Droits Cultu-rels Unidade e Diversi-dade. Do Respeito pela Di-versidade Posse Efetiva dos Direitos Culturais), sob o ttulo La Philosophie des Droits Culturels: un Grand tonnement (A Filosofia dos Direitos Culturais: um Grande Espanto).

    A CENTRALIDADE DOS DIREITOS CULTURAIS, PONTOS DE CONTATO ENTRE DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOS

  • .28 .29

    Por conseguinte:

    um abandono das iluses: uma cultura no existe e, portanto, no pode dialogar: a expresso dilogo das culturas, ou das civilizaes, no faz nenhum sentido somente as pessoas portadoras de refe-rncias culturais a patrimnios, tradies, disciplinas, comunidades e instituies podem dialogar, e elas nunca esto habilitadas a re-presentar, por si ss, uma religio, uma cincia, uma arte. Os patri-mnios so amplos demais. O retorno ao sujeito de direito concreto, no caso, obriga a recusar qualquer essencialismo das culturas.

    Em sntese, um retorno vinculao entre as pessoas por intermdio das obras: coisas, gestos, instituies.

    Desafio de filosofia poltica: a centralidade da cultura na poltica

    Os indivduos querem ser livres para fazerem parte da sociedade sem terem que se desligar dos bens culturais que escolheram. uma ideia simples, mas profundamente perturbadora. (PNUD, 2004, p. 1.)

    Por que o Relatrio do PNUD3 afirma que tal ideia perturbadora? Ela confronta o enfraquecimento progressivo do Estado, que no s se acha submetido s presses conjugadas da globalizao e da autonomizao dos atores privados, mas deve tambm reconhecer que sua pretenso neutralidade cultural ou ao monoculturalismo nacional, o que d no mesmo refutada. A concepo do Estado hoje deve renunciar iluso segundo a qual uma construo demo-crtica, tal como a cincia, estaria alm das culturas, em um universo puro que seria o da razo. Ns hoje devemos reconhecer a plena ex-tenso das crticas que foram feitas a respeito dessa concepo neu-tra do Estado liberal para reacultur-lo, retomando e desenvolven-do as fontes e os recursos de sua cultura democrtica. Trata-se de reabilitar o valor e a diversidade dos recursos culturais das estruturas e prticas democrticas. Tal a condio primeira para uma retoma-da das dinmicas democrticas, sobretudo nas sociedades europeias conscientes de suas enormes imperfeies, principalmente em relao aos mais pobres. Conscientes tambm da imperfeio de seus meios para assegurar a paz, na medida em que tais sociedades desconhecem a real extenso das dimenses culturais dos desafios atuais. Os direitos culturais, compreendidos no interior do sistema indivisvel dos direitos humanos, constituem uma via incontornvel para alcanar esse urgente retorno s origens.

    A mudana de perspectiva, simbolicamente marcada pela Declarao Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, consiste em in-verter a concepo da diversidade: esta o ambiente onde se colige a universalidade, um ambiente a se observar, respeitar e valorizar, a fim de obter uma universalidade mais profunda, mais autntica, apropriada a cada ambiente, pois que suas origens no so negligenciadas.

    3 PNUD: Rapport mondial sur le dveloppement hu-main. La libert culturelle dans un monde diversifi. Paris: Economica, 2004.

    Trs desafios filosficos

    Desafio antropolgico: a vinculao

    O escasso desenvolvimento dos direitos culturais representa um buraco escancarado na rede de segurana do sistema dos direitos humanos. Entre as diversas razes para esse atraso, fica patente que tais direitos se situam no centro de todas as questes mais polmi-cas sobre o fundamento dos direitos humanos, afetando diretamen-te sua interpretao, assim como sua aplicao prtica. A filosofia dos direitos culturais2 est associada a uma filosofia da vinculao entre a pessoa individual e seus ambientes culturais. Os direitos cul-turais podem ser definidos como os direitos de uma pessoa, sozinha ou coletivamente, de exercer livremente atividades culturais para vi-venciar seu processo nunca acabado de identificao, o que implica o direito de aceder aos recursos necessrios para isso.

    So os direitos que autorizam cada pessoa, sozinha ou coletivamen-te, a desenvolver a criao de suas capacidades. Eles permitem a cada um alimentar-se da cultura como a primeira riqueza social; eles constituem a substncia da comunicao, seja com o outro ou con-sigo mesmo, por meio das obras.

    Esse vnculo se exprime por meio de seus direitos, liberdades e res-ponsabilidades em viver sua identidade como um processo nunca acabado de realizao de si, inseparvel de um reconhecimento so-cial. Esse ltimo se exprime particularmente por meio de:

    um retorno ao corpo: uma fenomenologia da cultura, a cultura como nossa pele, superficial e profunda. Ela a interface entre a nossa intimidade mais secreta e nossas visibilidade e ao sociais, mais amplas;

    um retorno ao sujeito: uma filosofia da identidade concebida no como refgio, mas como interface com o outro, como rosto, gesto e obra, processo nunca acabado, que fundamenta a noo de direi-tos culturais. Isso permite encarar o sujeito de direito de forma mais concreta, em termos da sua singularidade ao mesmo tempo particu-lar e universal, sua riqueza una e mltipla, sua capacidade individual de apropriao, permitindo-lhe ser n e tecelo do tecido social, en-fim, sua presena, acumulada na memria e projetada;

    um retorno s coisas: visibilidade do trabalho humano e do valor das obras cotidianas e dos componentes multifacetados dos patri-mnios. As coisas em sua complexidade interna como em seu ml-tiplo pertencimento aos ambientes;

    um retorno aos ambientes: um homem no grande coisa sem vnculos adequados a seus ambientes, complexos, heterclitos: seus recursos.

    2 Essa apresentao pode ser considerada um co-mentrio da Declarao de Friburgo, referente aos direitos culturais, e ao programa de observaes dos direitos culturais con-duzido pelo Observatrio da Diversidade e dos Di-reitos Culturais. Ver: www.unifr.ch/iiedh.

  • .30 .31

    O paradigma da proteo mtua

    Diversidade e direitos culturais, uma situao nova

    A diversidade cultural no um fim em si mesma, no entanto, um recurso a ser preservado. O exerccio dos direitos e das liberdades e responsabilidades culturais constitui o fim e tambm o meio dessa preservao e desse desenvolvimento, pois significa que cada um pode participar dessa diversidade, dela extraindo recursos e contri-buindo para seu enriquecimento. A proteo mtua da diversidade e dos direitos culturais, por e para os direitos culturais, forma um novo paradigma poltico que permite reatar os recursos dispersos, e por isso ele exerce um efeito desencadeador da paz e do desenvolvimento, por meio da instaurao progressiva de sociedades aprendedoras.

    A adoo da Declarao Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural (doravante denominada Declarao) e da Conveno sobre a Proteo e Promoo da Diversidade de Expresses Culturais (do-ravante denominada Conveno) , ao mesmo tempo, testemunha e instrumento maior de uma nova tomada de conscincia poltica. A Declarao inaugurou uma via ampla que a Conveno confirmou em mbito mais restrito, em um momento em que a importncia do respeito diversidade cultural surge como uma urgncia mun-dial. O reforo dos direitos culturais dentro do sistema dos direitos humanos permite, ao mesmo tempo, uma proteo ampliada dos direitos e das liberdades individuais e constitui uma condio ne-

    Soweto, antigo gueto negro na poca do apartheid. Joanesburgo, frica do Sul, 2010. Foto: Marcello Casal Jr./ABr

    Desafio de filosofia do direito: a subjetividade

    Os direitos culturais permitem fechar o crculo da indivisibilidade, pois a filosofia da vinculao que eles implicam leva a assegurar:

    a vinculao do sujeito ao objeto, sobretudo do sujeito com as co-letividades: os direitos culturais como direitos humanos so direitos da pessoa, sozinha ou coletivamente, o que significa que seu sujei-to sempre individual, mas seu objeto partilhado (uma referncia cultural: lngua religio, cincia...), um ponto de comunho, de in-terao com o outro;

    a vinculao entre direitos, liberdades e responsabilidades: o objeto desses direitos, a identificao, implica desde o incio uma respon-sabilizao, uma capacitao (empoderamento) das liberdades e responsabilidades, sem o que os direitos no podem ser efetivos;

    as vinculaes do presente com as tradies: a nfase recai no elo in-tergeracional, amplamente ocultado em nossas abordagens atuais;

    a continuidade desde o mais material (as coisas) at o mais espiritual (o sentido): isso contesta ou ao menos relativiza as divises adminis-trativas, tais como a distino entre patrimnios material e imaterial, sendo que a atividade cultural consiste em dar corpo ao esprito e conferir sentido matria;

    a adequao cultural de cada direito humano: a dimenso cultural de cada direito humano no um relativismo, e isso no s uma sim-ples melhoria, mas uma condio de adequao do objeto do direito s capacidades do sujeito em aceder aos recursos culturais apropria-dos (alimentao, moradia e tambm justia adequadas). Trata-se, portanto, de uma condio da efetividade para cada direito humano;

    o contedo mais exigente do direito de participar da vida poltica: se cada direito humano constitui uma dimenso da cidadania, os direi-tos culturais garantem as capacidades de cada pessoa de participar da orientao da cidade, assegurando o sentido (da cultura partici-pativa) em todos os setores da vida cotidiana.

  • .32 .33

    dos direitos e liberdades dos indivduos em participar da vida cul-tural exigem ser explicitados. A coerncia dos direitos culturais, cin-didos entre direitos civis e polticos, direitos econmicos e sociais, muitas vezes reduzidos aos direitos das minorias, no suficiente: sua definio dispersa. H um vazio na proteo ao conjunto dos direitos humanos.

    Fecundidade e perspectivas da proteo mtua

    Os direitos culturais asseguram assim o fio condutor da fecundidade da vinculao entre mulheres e homens, sujeitos dos direitos cultu-rais, e o objeto desses direitos o recurso comum a todos , do qual a diversidade cultural constitui a reserva. A proteo mtua entre diversidade e direitos culturais insere-se primeiro na lgica geral dos direitos humanos.

    essencial ancorar as polticas de proteo da diversidade cultural na lgica dos direitos humanos. Pelo menos cinco argumentos jus-tificam a vinculao entre diversidade cultural e direitos humanos:

    Os direitos humanos asseguram a legitimidade democrtica con-tra os desvios de rota relativistas e particularistas.

    A lgica do direito em geral, porm mais especialmente dos di-reitos fundamentais, uma lgica de vinculao, de respeito aos indivduos, sozinhos e em comunidades. Ela obriga a uma aborda-gem realista, que no se contenta com objetivos gerais, mas busca a efetividade no terreno prtico em favor de cada um dos direitos humanos, com estratgias especficas.

    Cada um desses direitos, contudo, considerado em princpio na sua indivisibilidade e na sua interdependncia com os demais, o que permite que se tenha simultaneamente uma abordagem setorizada e integrada, ou transversal, apta a apreender as lgicas de um de-senvolvimento sustentvel integral (no reduzido a trs ou quatro pilares): os direitos humanos so intermedirios dos sistemas so-ciais ou dimenses diferentes do desenvolvimento.

    por isso que essa abordagem permite, nesse sentido, a cons-truo de indicadores que tm essa capacidade de medida tica, estabelecendo o elo entre os princpios e a dignidade das pessoas dentro de domnios precisos que correspondem a cada direito hu-mano, sempre conectados entre si: as bases so claras para estabe-lecer sistemas de indicadores fundados na legitimidade e aptos a coligir a complexidade tica do terreno.

    Finalmente e reciprocamente, coligir a diversidade cultural con-dio essencial para captar a riqueza da interculturalidade dos direi-tos humanos e desenvolver-lhes a universalidade concreta, enrique-cida por complexidades.

    No mago dos direitos humanos, entretanto, os direitos culturais tm essa funo particular de assegurar o sentido entre pessoas, benefici-rios e atores, e entre os setores sociais. Trata-se, de fato, de que toda atividade contribui para o desenvolvimento de um sentido humano, sem o qual no possvel a identidade da pessoa e de seus atos.

    cessria preservao do capital formado pela diversidade cultural4. O engajamento das naes e de largas fatias da sociedade civil em favor da Conveno sinal de que um grande potencial poltico se encontra presentemente em aberto e que a ao de reforma no se limitar proteo nacional das atividades ligadas economia da cultura no sentido clssico. nesse ponto que alguns avaliam que o paradigma cultural est, pouco a pouco, ocupando o lugar do paradigma social5.

    Ademais, na medida em que o mbito visado se situe entre o eco-nmico e o cultural, no ser possvel permanecer apenas no plano das boas intenes ou culpar a falta de vontade poltica: no se tra-ta mais apenas de uma questo de boa vontade, uma exigncia racional que deve ser demonstrada em campo. A esse respeito, a comparao com a diversidade biolgica continua a ser expressiva: a diversidade cultural um recurso cujo inventrio deve ser feito no intuito de melhor conhec-la e melhor proteg-la. Um recurso des-perdiado, reduzido de forma parcialmente irremedivel, da a ur-gncia. A diferena entre o biolgico e o cultural que a diversidade cultural est no mago do ser humano; ela alimenta sua individuali-dade, assim como sua capacidade de se integrar ao tecido social, de ser ele prprio o n e o tecelo do tecido social. A carga tica atinge aqui seu ponto mximo: a dignidade das pessoas, assim como a ca-pacidade de acolhimento e sobrevida das comunidades, sociedades e povos, est em jogo no plano imediato, particularmente para as pessoas mais desfavorecidas, cujas identidades so desprezadas, e para as geraes futuras.

    Necessidade de uma clarificao

    O desafio que, se o campo de observao fundamental e urgente, ele tambm necessariamente muito geral e transversal e, portanto, difcil de apreender pelos meios clssicos setorizados. Uma clarifica-o das definies dos direitos culturais no interior do sistema dos direitos humanos, assim como da natureza e das consequncias de suas violaes, o melhor meio para impedir que eles sejam:

    utilizados em prol de um relativismo cultural, indo contra a univer-salidade dos direitos humanos;

    pretextos para colocar comunidades, ou at povos inteiros, uns contra os outros.

    Os direitos culturais foram frequentemente apresentados como contrapostos ou paralelos aos direitos humanos, embora sejam parte integrante dos mesmos conforme o princpio de indivisibili-dade. No plano universal, e no que tange ao essencial, eles esto atualmente includos no direito de participar da vida cultural e no direito educao. Acrescentem-se a isso as dimenses culturais das liberdades clssicas6. Ento, se esses ltimos direitos e liberda-des so objeto de procedimentos temticos, o mesmo no ocorre em relao ao direito de participar da vida cultural que, no entanto, seu denominador comum. O direito do respeito s identidades, implicitamente contido no direito no discriminao, e o conjunto

    4 Por isso a Declarao Universal da Unesco so-bre a Diversidade Cultural faz meno a eles (Art. 5: Marco propcio da diversi-dade cultural) e a seu pla-no de ao definido como objetivo. ( 4): Avanar na compreenso e clarifica-o do contedo dos di-reitos culturais, enquanto parte integrante dos direi-tos humanos.

    5 TOURAINE, A. Um novo paradigma para com-preender o mundo de hoje. Petrpolis: Vozes, 2006. 261 p. Nesse livro, ele prope substituir o pa-radigma social pelo pa-radigma cultural. A meu ver, tal deslocamento no uma substituio, mas um modo de refundar os paradigmas social, eco-nmico e poltico mos-trando sua interdepen-dncia: a considerao da dimenso cultural do social significa uma nova cultura do social. O mes-mo vale para a economia.

    6 Liberdade de pensamen-to, de conscincia e de reli-gio (Artigo 18 da Declara-o Universal, Artigo 18 do Pacto referente aos direitos civis e polticos), liberdade de opinio e de expresso (Artigo 19 da Declarao Universal, Artigo 19 do Pacto referente aos direitos civis e polticos). Os instru-mentos e disposies que dizem respeito aos direitos das pessoas pertencentes a minorias especificam, alm disso, esses direitos de essncia universal, sobre-tudo o Artigo 27 do Pacto referente aos direitos civis e polticos, a Conveno 169 da OIT referente s popu-laes indgenas e tribais, e a Declarao das Naes Unidas sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Mi-norias Nacionais ou tnicas, Religiosas e Lingusticas.

  • .34 .35

    constitui a diversidade cultural a condio para a capacidade de escolha7 dos atores, indivduos e instituies, isto , suas liberdades fundamentais tanto quanto sua capacidade de desenvolvimento, segundo as anlises de Amartya Sen: a diversidade cultural a ori-gem e o capital do desenvolvimento8.

    Cada um sabe, ou deveria saber, que no a censura, a intimidao ou a violao de determinados direitos civis que protege um povo contra o assdio de um fundamentalismo, seja ele religioso ou no, mas o respeito ao direito educao, informao, a todas as li-berdades dentro de um espao pblico democraticamente orga-nizado. A segurana no justifica nenhuma limitao de um direito humano, mas, ao contrrio, supe o florescimento de tais direitos. Quando exigida uma restrio no exerccio de uma liberdade, o benefcio para o conjunto das liberdades deve ser imediatamente visvel. Frente a um fanatismo redutor, a resposta democrtica no pode ser o autoritarismo de um Estado centralizado (ressalvadas as condies estritas do estado de exceo), mas, ao contrrio, a diversidade interativa das liberdades, dos direitos e das responsa-bilidades. A segurana humana no garantida seno pela tessitura dos direitos/liberdades/responsabilidades.

    A anlise da relao de direito (sujeito, objeto, devedor) nos d, as-sim, um trplice esclarecimento da diversidade:

    diversidade das pessoas (mais precisamente, aqui, o respeito de seu direito identidade);

    diversidade dos seus objetos (direitos propriedade, mais especifi-camente, aqui, o direito de acesso e participao nos patrimnios culturais), que garante (e garantido por) o espao das liberdades (aqui entendidas como as liberdades culturais ou liberdades de exer-cer atividades culturais e de participar da vida cultural)9;

    diversidade das responsabilidades para as pessoas e os atores so-ciais. Nota-se aqui a importncia do direito a uma informao ade-quada (levando-se em conta a diversidade cultural), sem a qual a responsabilidade no faz sentido. tambm o direito informao que permite a comunicao das diversidades e, portanto, o desen-volvimento da riqueza cultural.

    A diversidade dos interagentes (diversidade dos atores e de suas interaes) a base da segurana que no pode ser garantida se-no pelos direitos. A segurana humana entendida como garantia do respeito pela substncia de cada direito humano e da eficcia das instituies que so necessrias a isso apoia-se na manuteno des-sa diversidade social como reserva ativa de capacidades, ou capital. Uma poltica de segurana humana, portanto, s legtima e crvel se tiver como alvo essa complexidade: ela s pode ser sistmica. Seu objetivo, portanto, sintetizado na atribuio de confiabilidade de todos os sistemas sociais referentes ao cerne intangvel de cada di-reito humano. Uma medida parcial, que subestime o elo entre todos os direitos humanos entre as diversas dimenses da segurana , parcial e perversa.

    7 Cf. Artigo 3 da Declara-o Universal sobre a Di-versidade Cultural.

    8 O relatrio de J. Prez de Cullar, Notre Diversit Cra-trice (Paris: Unesco, 1996) tinha definido muito bem o lugar da diversidade den-tro do desenvolvimento. Faltavam-lhe, porm, as vias concretas, sobretudo as do direito, como tam-bm uma cultura renovada da economia, para que a riqueza cultural fosse consi-derada em seu devido lu-gar: no centro.

    9 Classicamente, o direito propriedade (a ser di-ferenciado do direito da propriedade), tal como definido no Artigo 17 da Declarao Universal dos Direitos Humanos, ao qual tem direito toda pes-soa, sozinha ou coletiva-mente, garante o espao das liberdades. Pode-se considerar o direito ao patrimnio como uma interpretao do direito propriedade nos dom-nios da cultura.

    Diversidade e segurana por meio dos direitos

    por isso que os direitos culturais so fatores primordiais de demo-cratizao, pois so vetores ou veculos de sentido, particularmente aplicando-se o direito de participar da vida cultural, direito este que hoje revisitado, sobretudo, no mbito do Comit dos Direitos Eco-nmicos, Sociais e Culturais das Naes Unidas. Os direitos culturais permitem a vinculao entre os direitos individuais e o objetivo pol-tico que hoje percebido como essencial: a proteo da diversidade cultural, condio no s do desenvolvimento econmico, mas do desenvolvimento poltico em geral fundado em uma melhoria cons-tante da segurana humana.

    Diversidade e segurana humana

    A diversidade significa uma multiplicidade de atores com suas re-servas de informaes e energia e, portanto, suas capacidades de ao. Assim como a diversidade biolgica constitui a riqueza de um ecossistema e, portanto, sua capacidade de reagir, de se ajustar, de se adaptar, assim tambm a diversidade social constitui a riqueza de uma sociedade (ou sistema social). Ela significa uma multido de atores, de fontes de informao, de capacidade de relaes, a riqueza de um tecido. No entanto, ela tambm uma multiplicida-de de liberdades, de direitos e responsabilidades, o que a torna um tecido democrtico. O vnculo lgico assim estabelecido com a segurana humana compreendida em sentido integral: o respeito dignidade de cada um, por meio da proteo do cerne de cada direito humano e por meio da manuteno das instituies que so necessrias a tal fim. Enfim, essa diversidade social especfica que

    ndios em protesto invadem a Cmara dos Deputados. Braslia, DF, 2010. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

  • .36 .37

    A presena do perigo de padronizao e, portanto, do empobreci-mento geral no longo prazo, no contudo suficiente para conven-cer, sendo ainda preciso demonstrar as lgicas subjacentes, o lugar central do par diversidade/direitos culturais dentro dos diferentes mbitos sociais, no como ideia geral incontrolvel, mas como fio condutor, o elo que permite a proteo e a criao de riqueza huma-na. o fio vinculando uma pessoa s obras que lhe so necessrias e, pelo intermdio dessas obras, a outras pessoas. o fio que permite a um autor depositar algo de sua dignidade em uma obra, e permite a um terceiro dela extrair um recurso de liberao.

    A complexa diversidade a condio, a efetividade da vinculao entre as pessoas e as obras (coisas, gestos, instituies), inclusive para os mais pobres constituindo-se em riqueza. O objetivo poltico garantir essa riqueza pela via do direito. A explicitao desse fio condutor , ao mesmo tempo, o recurso precioso a se observar e o mtodo de observao: necessrio buscar indicadores de comple-xidade e indicadores de efetividade dos direitos culturais que sejam, igualmente, indicadores de adequao entre as pessoas e os recursos.

    O efeito desencadeador

    Todos os direitos humanos so fatores de desenvolvimento, j que garantem acesso, geram liberdades e autorizam responsabilidades. Mas, entre esses direitos, os direitos culturais tm um efeito de alavan-ca ainda maior, permitindo apoiar-se sobre os saberes adquiridos, pois estes garantem o livre acesso s referncias e aos patrimnios.

    Demonstrao do efeito alavanca do par diversidade/direitos culturais

    Eis aqui uma argumentao em quatro passos:

    a) as culturas so uma capacidade de vinculao, a diversidade intera-tiva de seus componentes, ou riqueza, uma superfcie de exposi-o ao outro, de comunicao (recepo, interiorizao, expresso);

    b) as identidades so ndulos, constitudas por, pelo menos, quatro fios que so as quatro dialticas essenciais11 permitindo a criatividade cul-tural por meio da reunio dos pares de opostos: universal/particular, unidade/diversidade, pessoal/comunidade, patrimnio/projeto;

    c) os direitos culturais constituem as capacidades de vincular o sujeito s suas obras, ou, dito de outro modo, eles tornam o sujeito capaz de extrair das obras tantos quantos forem os recursos indispensveis a seu desenvolvimento. Por exemplo, o direito lngua no mais que um direito entre outros, o acesso a uma capacidade que se abre para todas as demais. Tal o efeito de alavanca ou efeito desenca-deador do par diversidade/direitos culturais: o acesso aos recursos;

    d) os direitos culturais constituem tambm a capacidade de vincular o sujeito a outro, uma vez apropriados os recursos culturais, de exercer suas responsabilidades em relao aos patrimnios culturais, para ele e para o outro.

    11 Essas quatro dialticas so importantes na cons-truo dos indicadores, pois permitem inteligir diver-sidade cultural e direitos humanos e cita, mais espe-cificamente, algumas liber-dades e direitos culturais.

    Dimenso cultural da segurana humana

    Minha tese nesta altura da demonstrao que no exagero falar em segurana cultural eu sei quanto essa expresso arriscada , no para designar a pretenso perversa a uma cultura homognea (limpeza tnica ou ideolgica), mas para identificar a segurana le-gtima dentro da continuidade do elo com a riqueza cultural. No justo que uma pessoa, sozinha ou coletivamente, seja isolada dos recursos que so necessrios sua identificao. No justo nem razovel que uma instituio seja culturalmente inadequada a seus usurios, a ponto de contribuir para o fracionamento dos re-cursos humanos e no humanos. Trata-se aqui de securizar o acesso aos recursos culturais essenciais, tal como se pode securizar o acesso aos recursos alimentares ou da sade, por exemplo. nesse sentido que a segurana cultural exige ser garantida pelos direitos corres-pondentes: os direitos culturais e a dimenso cultural dos demais direitos humanos.

    Do ponto de vista sistmico, igualmente importante tornar segu-ros os sistemas de preservao da diversidade e, primeiramente, da observao. aqui que o direito comparece como norma tica e metodolgica, porquanto autoriza e coage a formao do vnculo entre os indivduos e os sistemas sociais nos quais eles habitam. coerente, realista e necessrio observar a diversidade cultural em sua generalidade, apoiando-se em uma abordagem pontual dos direitos culturais dentro dos direitos humanos, e reciprocamente. Observar esse vnculo verificar o princpio da proteo mtua entre diver-sidade e direitos humanos e, mais especificamente, os direitos cul-turais10. Essa abordagem em pina, abarcando simultaneamente um recurso individual e um recurso sistmico (a diversidade cultural que os sistemas sociais produzem e da qual se nutrem) tem a vantagem de ser tica e funcional.

    Proteo mtua do recurso cultural, fim e meio de todo desenvolvimento.

    No se trata de um ordenamento, mas de dois polos: a diversidade cultural dos atores, suas capacidades adquiridas, faz parte do capital, mas essa diversidade no faz sentido a no ser que seja ativa, utiliza-da no exerccio dos direitos culturais.

    direitos culturaisrecurso individual

    atores individuais e coletivos

    diversidade culturalrecurso sistmico

    capital (capacidades adquiridas)

    10 O primeiro princpio do Artigo 2 da Conveno estabelece o princpio da proteo mtua entre di-versidade cultural e direitos humanos e cita, mais espe-cificamente, algumas liber-dades e direitos culturais.

  • .38 .39

    em que permitem ao sujeito apoderar-se de suas prprias capacida-des. nesse sentido que Joseph Wresinski atribui aos direitos culturais um efeito de alavanca12: Se o indivduo, sozinho ou coletivamente, re-conhece e tem reconhecidas suas capacidades dentro dos vnculos possveis com as capacidades do ambiente, ento os outros direitos humanos tornam-se inelutveis, pois os recursos so apropriados, no duplo sentido da palavra: o lgico (adequados s suas capacidades) e o ativo (reconhecidos e incorporados pelo sujeito). Nosso defeito consiste em pensar os recursos como exteriores ao sujeito. Os direitos culturais permitem ao sujeito apropriar-se deles, incorpor-los, no s recorrer a um capital de recursos disponveis, o que j bastante, mas reconhecer e liberar seus prprios recursos em adequao com os recursos externos. Em outras palavras, o respeito integridade da dig-nidade humana supe o respeito capacidade individual em integrar os recursos necessrios, capacidade de se apropriar.

    12 A ao cultural efeti-vamente primordial. Ela permite formular a ques-to da excluso humana de forma mais radical do que a questo do acesso ao direito moradia, ao trabalho, aos recursos ou sade. Poderamos pen-sar que o acesso a esses outros direitos se torna inelutvel, j que o direito cultura reconhecido. WRESINSKI, Joseph. Culture et grande pauvret. Paris: Quart Monde, 2004. p. 40.

    O argumento central: os direitos culturais so capacidades de capacidades

    Em suma, o argumento este: os direitos culturais podem ser defi-nidos como capacidades de capacidades, capacidades de captar capacidades presentes no ambiente, assim como de ir busc-las em outros ambientes. A estima da dignidade acha-se no reconhecimento da identidade que constitui a integridade da pessoa: a identificao o ato pelo qual cada um reconhece e v reconhecidas suas capaci-dades, paralelamente ao florescimento pessoal