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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Liliane Mahalem de Lima Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais coletivos sob a perspectiva socioambiental MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Liliane Mahalem de Lima

Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais

coletivos sob a perspectiva socioambiental

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Liliane Mahalem de Lima

Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais

coletivos sob a perspectiva socioambiental

MESTRADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para obtenção do título de

MESTRE em Direito das Relações Sociais, pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a

orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas

Boas.

SÃO PAULO

2012

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Data: ___/___/2012

BANCA EXAMINADORA:

________________________________

Orientadora

Professora Dra. Regina Vera Villas Boas

________________________________

Professor Dr.

Instituição

________________________________

Professor Dr.

Instituição

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Dedico este trabalho aos meus pais, às minhas

avós, ao meu marido e ao meu filho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que de alguma forma direta ou indiretamente contribuíram

para este trabalho, mas não poderia deixar de fazer alguns agradecimentos

pontuais.

Agradeço, inicialmente, à minha orientadora Professora Dra. Regina Vera

Villas Boas, por ter me acolhido com carinho e dedicação, por nunca ter duvidado do

meu potencial, pelas valiosas colaborações neste trabalho e também nas demais

exigências desta pós-graduação.

Agradeço ao meu irmão Leandro, atualmente doutorando em Antropologia,

pelas oportunidades de diálogos e pelas sugestões de leitura de algumas obras e

artigos, os quais foram de suma importância para a elaboração deste trabalho.

Agradeço à Advocacia Geral da União, por ter me concedido uma licença

capacitação para elaboração da Dissertação de Mestrado, a qual foi fundamental à

feitura e conclusão deste estudo.

Agradeço aos demais professores dos créditos em que cursei pelas

contribuições e debates: Professora Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida,

Professor Marcio Pugliesi, Professor Nelson Nery Júnior, Professor Gilson Delgado

Miranda, Professora Patrícia Miranda Pizzol e Professor Willis Santiago Guerra

Filho.

Agradeço especialmente aos Professores Consuelo Yatsuda Moromizato

Yoshida e Marcelo Gomes Sodré pelas sugestões e contribuições a este trabalho

feitas no exame de qualificação.

Agradeço aos colegas de curso com quem tive a oportunidade de conviver,

dialogar e trocar experiências.

Agradeço aos meus pais, por tudo que já fizeram por mim, pelo incentivo para

estudar e para me tornar uma pessoa cada dia melhor.

Ao meu marido Thiago, pelo apoio, atenção, compreensão, parceria e

paciência.

Por fim, agradeço ao meu filho Heitor pela companhia agradável nos

momentos em que estive elaborando essa Dissertação.

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RESUMO

Esta dissertação de mestrado aborda o patrimônio cultural imaterial sob o

prisma do Direito, analisando a proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais e

aos direitos intelectuais coletivos das populações tradicionais sob a perspectiva

socioambiental. Parte de uma abordagem interdisciplinar, relacionando diversas

áreas jurídicas como: Constitucional, Internacional, Ambiental e os Difusos e

Coletivos, bem como procura levar em consideração algumas dimensões

antropológicas. O estudo se inicia com um breve histórico sobre a consolidação do

patrimônio cultural imaterial no Brasil, cotejado ao tratamento simultâneo recebido

no âmbito da UNESCO. A partir daí, o patrimônio cultural intangível foi conceituado

tendo por eixo central a Constituição Federal de 1988, bem como foram analisados

os instrumentos jurídicos protetivos, que são: o Registro e o Inventário Nacional de

Referências Culturais, desenvolvidos no âmbito do Instituto do Patrimônio Artístico e

Nacional (IPHAN). Em seguida, desdobra e aprofunda o “bem cultural” tendo em

conta as relações às noções jurídicas de bem ambiental, bem difuso e bem de

interesse eminentemente público. Depois, são analisados os principais aspectos do

socioambientalismo no Brasil tendo em conta a dualidade: sociodiversidade e

biodiversidade. Na sequencia, o trabalho aborda o conceito de “Populações

Tradicionais” e, em seu bojo, a Medida Provisória n° 2.186-16/2001 que confere, no

direito brasileiro, proteção aos conhecimentos tradicionais associados à

biodiversidade. Ao final, considera a proposta de construção de um regime jurídico

“sui generis” para a proteção aos conhecimentos tradicionais e aos recursos

genéticos presentes nas terras ocupadas pelas populações tradicionais e indígenas,

bem como outros direitos coletivos relacionados a sócio e a biodiversidade.

Palavras-chave: patrimônio cultural – socioambientalismo – biodiversidade –

conhecimentos tradicionais - direitos intelectuais.

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ABSTRACT

This dissertation addresses the issue of the intangible cultural heritage in the prism of

Law. It analyses, thru a socioenvironmental perspective, the legal protection over the

knowledges and the collective intellectual rights of traditional populations. As a

interdisciplinary, it links diverse legal areas (Constitutional, International,

Environmental, Diffuse and Collective) and attempts to take into account some

anthropological dimensions. The study begins with a brief history of the consolidation

of intangible cultural heritage in Brazil, collated with the simultaneous treatment

within the UNESCO. Thereafter, the intangible cultural heritage is conceptualized

taking the Federal Constitution of 1988 as is central axis, from which the protective

legal instruments -the National Registry and Inventory of Cultural References,

developed within the Institute of Artistic Heritage and (IPHAN) – are analysed. Then,

the text unfolds and deepens the "cultural heritage" taking into account its relations

with legal notions of environmental and diffuse heritage and its public concern. Then,

it analyses the core concerns of socioenviromentalism in Brazil, taking into account

its mais duality: the protection of bio and social diversity. In sequence, the work

addresses the formal concept of “traditional peoples”, and in its wake, the Provisional

Measure No. 2.186-16/2001 which, under the Brazilian law, confers protection over

the traditional knowledges associated with biodiversity. At the end, this work

considers the general proposal to build a “sui generis” legal system to protect the

traditional knowledges and the genetic resources found in the lands occupied by

traditional and indigenous populations, as well as other collective rights related to

social and biodiversity.

Keywords: cultural heritage – socioenvironmentalism – biodiversity – traditional

knowledge – intellectual property rights.

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ABREVIAÇÕES

CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica

CF – Constituição Federal

CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural

CTA – Conhecimentos Tradicionais Associados

CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético

DPHAN – Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

EC – Emenda Constitucional

ECO 92 – Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento

FUNAI – Fundação Nacional do Índio

INPI - Instituto de Propriedade Industrial (INPI) no Brasil. INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais

IPHAN – Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional

MinC – Ministério da Cultura

MP – Medida Provisória

OMC – Organização Mundial do Comércio.

OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual

ONG – Organização não governamental

ONU – Organização das Nações Unidas

PCH – Programa de Cidades Históricas

PL – Projeto de Lei

PNPI - Programa Nacional do Patrimônio Imaterial

RG – Recursos Genéticos SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional

TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual

Relacionados ao Comércio

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9

Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil e nas

Convenções Internacionais...............................................................................14

1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no

Brasil...14

1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO ................................... 22

1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU ........................... 26

Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os Instrumentos legais .... 28

2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988 ..... 28

2.2. O Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) . 45

Capítulo 3. Bem cultural ....................................................................................... 53

3.1. Bem cultural como bem ambiental ...................................................... 53

3.2. Bem cultural como bem de interesse público ..................................... 58

3.3. Bem cultural como bem difuso ............................................................ 61

Capítulo 4. Socioambientalismo e Biodiversidade ................................................ 66

4.1. Socioambientalismo ............................................................................ 66

4.2. Biodiversidade .................................................................................... 78

Capítulo 5. Conhecimentos tradicionais e os regimes jurídicos de proteção........ 84

5.1. O conceito de populações tradicionais ............................................... 84

5.2. Os conhecimentos tradicionais e as disposições da MP n° 2.186-16/2001

............................................................................................................................. 91

5.3. Os conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual coletiva ... 94

5.4. Regime jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos

tradicionais e os direitos intelectuais coletivos ................................................... 101

CONCLUSÃO ..................................................................................................... 109

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 122

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INTRODUÇÃO

Esta dissertação aborda o patrimônio cultural imaterial com ênfase na análise

da proteção jurídica nacional, feita considerando a transdiciplinariedade entre as

diversas áreas jurídicas, como Ambiental, Internacional e Difusos e Coletivos, tendo

como base o texto da Constituição Federal de 1988. Enfatiza a proteção aos

conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e das populações tradicionais. Tem

por eixo o processo de consolidação, no espaço público, da preocupação

socioambiental, a partir da qual se funda a associação entre a tradicionalidade dos

povos e a defesa do ambiente de da biodiversidade.

Atualmente, no que tange à tutela do patrimônio cultural, o grande desafio

reside na temática do patrimônio cultural intangível, tanto para estabelecer os termos

objetivos de proteção como para essa proteção ser efetiva. Em relação,

especificamente, às formas de proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais dos

povos indígenas e populações tradicionais esse tema tem se revelado

extremamente controvertido e complexo. Embora este estudo também aborde a

questão no âmbito da UNESCO e a Convenção sobre Diversidade Biológica, o foco

concentra-se no direito brasileiro.

A despeito da relevância crescente do tema, ainda é relativamente escassa a

bibliografia especializada que aborda o tema no Brasil, sob o prisma do direito. Além

de reduzido, parte do material é sucinto, apenas citando alguns conceitos e tecendo

algumas considerações sob o aspecto legal. Este estudo, eminentemente descritivo,

pretende contribuir com o preenchimento desta lacuna de informações no campo do

Direito.

A Constituição Federal de 1988, no art. 215, garantiu a todos o pleno

exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional. No artigo

subsequente dispôs que patrimônio cultural abarca os bens materiais e os imateriais

“tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à

ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...)”.

Conforme o texto, o patrimônio cultural imaterial é essencial à salvaguarda da

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história, da memória e da identidade dos povos formadores da sociedade brasileira.

Porém, além das dificuldades óbvias de uma época caracterizada pela economia de

mercado e a massificação das relações sociais, há vários desafios conceituais a

serem transpostos, tanto em relação às traduções culturais sob o aspecto

antropológico, quanto em relação ao aspecto jurídico, tema de preocupação que nos

cabe aqui.

Historicamente todo aparato legal e a doutrina especializada sobre proteção

ao patrimônio cultural estiveram voltados aos bens de natureza material, sendo o

tombamento o principal instrumento legal. Há tempos é evidente que este é

insuficiente para a concretização de todos os direitos e garantias previstos nos

artigos 215 e 216. Afinal, ele não se adéqua à compreensão contemporânea de

centrar a proteção no aspecto intangível, ou seja, nos conhecimentos e nos modos

de fazer, mas no bem em si, na materialidade.

Foi constatando essa lacuna legislativa que, quase após vinte anos da

promulgação da Constituição Federal, a sociedade civil e alguns setores do governo

começaram uma mobilização para a concretização e efetivação do direito cultural de

valorização e preservação do patrimônio intangível.

Em 1997, em Fortaleza, foi realizado pelo IPHAN o “Seminário Patrimônio

Imaterial: Estratégias de Formas de Proteção”, que discutiu as diretrizes para uma

política pública de salvaguarda da cultura tradicional e popular. Do encontro,

resultou o documento conhecido como “Carta de Fortaleza”, que resumiu as

conclusões desse encontro e lançou as bases dos trabalhos para a elaboração e

efetivação de uma nova política cultural. A partir deste ato, o governo federal, junto a

representantes da sociedade civil, deu outras providências como a criação de um

Grupo de Trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do IPHAN, e o

estabelecimento do que se chamou de “Política Nacional de Preservação do

Patrimônio Cultural”.

Com esta força tarefa, parte dessa lacuna legislativa foi preenchida com a

edição do Decreto presidencial n° 3.551 de 2000, o qual previu a criação do

instrumento legal do “registro”, adequado ao acautelamento do patrimônio intangível.

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Esse mesmo instrumento também dispôs sobre os termos do “Programa Nacional do

Patrimônio Imaterial”.

Paralelamente, discutia-se o projeto de lei da senadora Marina Silva,

apresentado em 1995, que propunha a regulamentação por meio de lei federal ao

acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados dos

povos indígenas e populações tradicionais. Esses conhecimentos tradicionais são

também parte do patrimônio cultural imaterial. Em 2001 a Medida Provisória n°

2.186-16 disciplinou a matéria, regulamentando internamente parte do previsto na

Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992.

Em que pese o conjunto dos instrumentos jurídicos hoje existentes para a

tutela do patrimônio cultual imaterial, é possível afirmar que os mesmos não têm sido

suficientes e eficazes. Na prática nem sempre esses instrumentos são capazes de

solucionar as demandas contemporâneas, sobretudo quando nos deparamos com

casos mais complexos, tal como no caso da propriedade intelectual sobre

conhecimentos tradicionais dos povos que vivem em territórios de ocupação

tradicional e guardam aspectos culturais distintos em relação aos padrões nacionais.

O desafio reside em se construir um sistema normativo eficaz para a proteção

dos direitos intelectuais coletivos no direito contemporâneo. As dificuldades estão

em se identificar os titulares e os detentores dos conhecimentos tradicionais, bem

como as dimensões territoriais e temporais relacionadas aos conhecimentos detidos

pelas populações tradicionais e indígenas. Além disso, existe um distanciamento

entre os modos como o direito, de sua parte, e detentores dos conhecimentos

tradicionais, de outra, entendem o que seja o “sujeito”, a “cultura” e o

“conhecimento”, que remetem ao cerne dos problemas comumente abordados no

âmbito da antropologia.

Além da indeterminação conceitual, outra dificuldade está em se estabelecer

os termos e os modos de conferir remunerações aos detentores destes

conhecimentos. Esses passam a adquirir o caráter de bens valiosos, novos objetos

de cobiça de grandes empresas e capitais privados, interessados em se

apropriarem, por meio de patentes, de conhecimentos tradicionais associados à

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biodiversidade, com vistas a adquirirem vantagens comparativas em relação a seus

concorrentes nos modernos mercados de biotecnologia.

A todos estes desafios, acresça-se o fato de que todo o sistema jurídico foi

fundado com base em institutos civis e processuais civis que se alicerçam na

clássica noção ocidental de indivíduo, que se opõe à sociedade, ao coletivo.

Este trabalho está dividido em cinco partes, pensadas com o objetivo de

facilitar a didática, posto que, esta é uma abordagem interdisciplinar, que se supõe

interessar não apenas ao direito, mas também à especialistas de outras áreas e até

aos próprios detentores dos conhecimentos e práticas culturais imateriais. O objetivo

deste estudo não é propor soluções, mas apresentar um panorama da situação atual

e uma descrição dos modos como estes desafios estão colocados no direito

contemporâneo.

Como de costume, o primeiro capítulo tem um caráter introdutório, foi

abordada a parte histórica da tutela do patrimônio cultural intangível no Brasil e no

âmbito da UNESCO. O último item trata da Convenção sobre Diversidade Biológica

da ONU, em razão das disposições relativas aos conhecimentos tradicionais.

No segundo capítulo, foi elucidado o conceito de patrimônio cultural imaterial,

com ênfase no disposto na Constituição Federal de 1988, bem como os

instrumentos legais para a proteção do patrimônio imaterial, ou seja, o Registro e o

Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

No terceiro capítulo, foi estudado o bem cultural e seu caráter ambiental, de

interesse público e difuso.

No quarto capítulo, tratou-se novamente da relação com o Direito Ambiental,

mas enfocando o patrimônio cultural imaterial sob o aspecto do socioambientalismo

e da biodiversidade.

No quinto capítulo, foi analisado o conceito de populações tradicionais, a atual

regulamentação no Brasil para a proteção dos conhecimentos tradicionais

associados à biodiversidade nos termos da MP n° 2.186-16/2001 e por fim a

necessidade de construção de um regime jurídico “sui generis” para a proteção dos

direitos intelectuais coletivos das populações tradicionais. Por último, o trabalho foi

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encerrado com uma conclusão geral de todo o material examinado.

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Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no

Brasil e nas Convenções Internacionais

O presente capítulo é introdutório ao fazer um apanhado histórico sobre a

tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil e também levando em conta as

Convenções Internacionais sobre essa temática, especialmente a Convenção para a

Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 e a Convenção sobre a Proteção da

Diversidade das Expressões Culturais de 2005, ambas assinadas no âmbito da

UNESCO. O último item aborda rapidamente a Convenção sobre a Diversidade

Biológica da ONU, assinada durante a ECO-92, em razão do tratamento concedido à

proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais

fazem parte do patrimônio cultural imaterial.

1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil Foi na Semana de Arte Moderna de 1922 que Mário de Andrade, precursor

dos estudos e reflexões sobre o patrimônio cultural imaterial, lançou e iniciou a

propagação de suas ideias sobre a importância de se estudar e de documentar,

principalmente através da etnografia, as diversas formas culturais, tradicionais e

populares, existentes no Brasil.

As ideias de Mário de Andrade eram inovadoras. Ele propunha uma

conceituação da cultura que abrangesse tanto as artes eruditas e a alta cultura,

como a cultura popular. Indígenas, negros e demais populações pauperizadas

contribuem tanto para a formação cultural do povo brasileiro, como as elites

econômicas.

Entre os anos de 1927 e 1929, o intelectual realizou duas viagens

etnográficas nas regiões norte e nordeste do Brasil para estudar e documentar

danças, lendas, músicas, festas, entre outros costumes1. Na década de 30, ele

integrou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo,

permanecendo até 1938, pouco após o Estado Novo em 1937.

1 Esse material foi publicado em “Na Pancada do Ganzá”, obra inconclusa em razão da morte precoce do autor em 1945. Posteriormente, a sua ajudante Telê Ancona Lopez organizou suas anotações e diários de viagem e publicou a obra “O Turista Aprendiz”.

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Conforme o Grupo de Trabalho para o Patrimônio Imaterial do Iphan:

Seu principal objetivo era a busca das raízes da nacionalidade e, na

pesquisa sobre o folclore, procurava não só o rigor científico, como também

assegurar o caráter coletivo e sistemático desses trabalhos, para o que

considerava indispensável a criação de instituições que se dedicassem a

pesquisar, guardar e difundir as informações sobre o assunto.

A preocupação de Mário de Andrade não era tanto com a proteção dessas

manifestações culturais que, nos anos vinte e trinta ainda não estavam

ameaçadas de desaparecimento, mas com seu conhecimento e

reconhecimento enquanto cultura brasileira. Nesse sentido, considerava

fundamental a divulgação e o acesso a esses registros, o que procurava

desenvolver através das atividades do Departamento de Cultura. 2

Em 1936, a pedido do ministro de Educação e Saúde Pública, Gustavo

Capanema, o escritor de Macunaíma elaborou um anteprojeto para a implantação de

uma política de proteção e preservação do patrimônio cultural nacional. Neste

documento previu a criação de um órgão de proteção ao patrimônio cultural, o qual

viria a ser o SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, bem

como reconheceu as expressões populares como modos de formação da identidade

nacional3.

No que se refere a uma política pública para o patrimônio cultural imaterial, o

anteprojeto era bastante avançado para seu momento histórico . Tem, inclusive,

diversos paralelos com as atuais políticas de proteção ao patrimônio cultural

intangível. Provavelmente, o pioneirismo de Mário de Andrade foi uma das razões

pelas quais seu texto não foi efetivamente levado adiante por décadas. Somente foi

retomado na década de 70, com o Centro Nacional de Referência Cultural.

2 Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 109/110. 3 “No Brasil, o reconhecimento do papel das expressões populares na formação de nossa identidade cultural remonta aos anos 30 e faz parte do contexto de criação do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. O registro dessas manifestações culturais está previsto no anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, em 1936, para a instituição e, embora não tenha sido levado a efeito por longo tempo, teve sua idéia retomada nos aos 70 pelo Centro Nacional de Referência Cultural e, em seguida, pela Fundação Nacional Pró-Memória.” O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 15.

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Com base neste mesmo anteprojeto de Mário de Andrade foi criado o Serviço

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, que foi o primeiro

órgão governamental com o objetivo de proteger o patrimônio cultural do Brasil. Em

1946 o nome foi alterado, pela primeira vez, para Departamento do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Em 1970 passou ser denominado como

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Embora tenha havido mudanças nos nomes oficiais, até a década de 80 o

órgão se dedicou exclusivamente à preservação do patrimônio cultural material. Não

incluía em suas atividades os bens que não se encaixassem em determinados

critérios históricos, artísticos e de “excepcionalidade referentes ao tombamento”.

Esse, aliás, era o único instrumento jurídico disponível à época para a proteção do

patrimônio cultural4.

Na década de 70 a atuação do IPHAN e os critérios por ele adotados

começaram a ser reavaliados por setores externos ao órgão. Pessoas ligadas ao

“design”, à indústria e à tecnologia propuseram mudanças nas políticas de

patrimônio, enfatizando a necessidade de se reconhecer também a cultura popular e

tradicional e propondo um sistema baseado na noção de referência cultural. De

acordo com Maria Cecília Londres Fonseca: “Entre outras mudanças, foi introduzida,

no vocabulário das políticas culturais, a noção de referência cultural, e foram

levantadas questões que, até então, não preocupavam aqueles que formulavam e

implementavam as políticas de patrimônio”5.

Aloísio Magalhães, um respeitado designer gráfico, foi o principal idealizador

e responsável pela criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em

julho de 1975. Ele se aproximou de integrantes do governo militar que eram,

digamos, mais sensíveis a estes temas, como o Ministro da Indústria e Comércio

Severo Gomes, o Ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella, e os generais

4 “Era preciso buscar as raízes vivas da identidade nacional exatamente naqueles contextos e bens que o SPHAN excluíra de sua atividade, por considerar estranhos aos critérios (histórico, artístico, de excepcionalidade) que presidiam os tombamentos.” FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91. 5 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 85.

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Golbery do Couto e Silva e Rubem Ludwig, que colaboraram para que o projeto

seguisse adiante6 Também participou do projeto de idealização e de implantação do

CNRC o diplomata e Secretário de Cultura do Distrito Federal, Wladimir Murtinho.

Contudo, a instituição desse centro por um governo de ditadura militar foi vista com

desconfiança e descrédito por vários setores da sociedade civil, fazendo com que

ficasse esvaziado de novas e inovadoras iniciativas.

O CNRC foi criado por um convênio multiinstitucional firmado por órgãos

estatais como o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da Educação e

Cultura, a Fundação Cultural do Distrito Federal e também instituições como a Caixa

Econômica Federal e a Universidade de Brasília.

O projeto de Aloísio Magalhães retomava as idéias para a proteção do

patrimônio imaterial do modernista Mário de Andrade, as quais foram deixadas de

lado pelo IPHAN. O centro tinha como objetivo “o traçado de um sistema referencial

básico para a descrição e análise de dinâmica cultural brasileira.” 7. A proposta era

apreender a cultura em sua dinamicidade, em sua diversidade, a cultura viva.

Procurou distância da noção inicial de uma cultura oficial, vinculada aos valores das

elites dominantes, estática e museificada.

Além disso, Magalhães, seguidor da obra andradiana, defendia a gestão

participativa das questões referentes ao patrimônio imaterial. Não cabe ao Estado

decidir sozinho o que deve ser preservado e registrado. Este trabalho deveria ser

feito junto à sociedade civil, aos especialistas, mas, sobretudo, junto às

comunidades envolvidas com os projetos culturais. Ou seja, o intelectual se referia a

um modelo em que as decisões deviam ser tomadas em conjunto com os sujeitos

que produzem e mantém um determinado “bem cultural”.

Em 1979, Aloísio Magalhães foi convidado a presidir o Instituto de Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional. Neste ano, foi decidido que o CNRC deveria ser

6 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91. 7 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 90.

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institucionalizado. Assim como Programa de Cidades Históricas (PCH) foi fundido às

atribuições do IPHAN.

A gestão de Magalhães teve o mérito de conseguir que a política cultural se

voltasse em efetivo para a proteção do patrimônio cultural popular e afro-brasileiro,

embora vivesse sob regime ditatorial. Suas ações ampliaram, em novas práticas

institucionais, a importância do patrimônio cultural, para além da alta cultura.

O texto institucional, Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A

trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil, formulado pelo

IPHAN, destaca que:

Um dos grandes feitos de Aloísio Magalhães no comando do CNRC e,

posteriormente, da FNPM, foi a ampliação da proteção do Estado em

relação ao patrimônio não-consagrado, vinculado à cultura popular e aos

cultos afro-brasileiros. Em Alagoas e na Bahia, o Iphan tombou,

respectivamente, a Serra da Barriga, onde os quilombos de Zumbi se

localizaram, e o Terreiro da Casa Branca, um dos mais importantes,antigos

e atuantes centros de atividade do candomblé baiano. 8

O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) aprofundou e detalhou as

propostas de Aloísio Magalhães para a proteção do patrimônio cultural imaterial. Em

seu âmbito foi desenvolvido a noção e o instrumento conhecido como “referência

cultural”.

A incorporação e o desenvolvimento desses conceitos na política cultural do país se

refletiram nos trabalhos da Assembléia Constituinte, de modo que os artigos

constitucionais que tratam da cultura contemplaram o patrimônio imaterial

juntamente com a noção de referência cultural.

O “caput” do artigo 216 da Constituição Federal previu expressamente a

proteção ao patrimônio cultural material e imaterial, sendo que ambos devem ser

“portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira”. Ou seja, incorporou, decisivamente, texto

constitucional a noção de referência cultural. O parágrafo primeiro dispõe sobre as

8 Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Brasília: IPHAN, 2006. P. 12.

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19

formas de proteção, registro, inventário e outros modos de acautelamento, além do

tradicional tombamento.

Assim, a Constituição Federal de 1988 foi um marco para as políticas

culturais, pois dedicou, finalmente, ao patrimônio cultural uma definição que estava

em sintonia com as propostas e ideias mais modernas de preservação da cultura

tradicional e popular em suas dimensões intangíveis.

Porém, apesar da disposição constitucional, pouco se fez, nos anos

subseqüentes, para o aprimoramento da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial

no Brasil. Não havia políticas públicas adequadas. A principal crítica dos estudiosos

e das populações tradicionais residia no fato de que não existia um instrumento

jurídico capaz de proteger, em efetivo, o patrimônio intangível. Afinal, neste

momento já era de amplo consenso que “tombamento”, é um instrumento totalmente

inadequado para desempenhar esta função.

Em novembro de 1997, na ocasião da comemoração aos sessenta anos de

criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), foi

realizado em Fortaleza o seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias de Formas de

Proteção”, que contou com a participação de gestores, acadêmicos, ativistas,

representantes da UNESCO. O encontro teve por objetivo discutir as diretrizes para

uma política de proteção e as formas de acautelamento legais e administrativas, o

que possibilitaria a efetivação dos dispositivos constitucionais que previam a

proteção ao patrimônio cultural imaterial. O resultado final foi o documento que se

convencionou chamar de “Carta de Fortaleza”9.

Dentre as recomendações constantes neste documento está o

aprofundamento do conceito de bem cultural de natureza imaterial; a promoção do

inventário dos bens culturais em parceria com instituições estaduais e municipais de

cultura e órgãos de pesquisa; a criação de um Grupo de Trabalho no Ministério da

Cultura sob a coordenação do IPHAN para propor a criação do instituto jurídico

9 “No evento foram apresentadas e discutidas experiências brasileiras e internacionais de resgate e valorização da cultura tradicional e popular. Além disso, foram discutidas a ação institucional neste, os instrumentos legais e medidas administrativas que podem ser propostas para sua preservação e, especialmente, o conceito de ‘bem cultural de natureza imaterial’.” O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 16.

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20

registro, necessário à proteção dos bens culturais imateriais; a criação de banco de

dados integrado; e o estabelecimento de uma Política Nacional de Preservação do

Patrimônio Cultural.

Em 1998, acolhendo as recomendações da “Carta de Fortaleza”, o Ministro da

Cultura Francisco Weffort editou a Portaria n° 37 que instituiu uma Comissão

interinstitucional para “elaborar proposta visando ao estabelecimento de critérios,

normas e formas de acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro” 10 e também

criou um Grupo de Trabalho para prestar assessoria à comissão, composto por

técnicos do IPHAN, da Funarte e do Ministério da Cultura. 11

A Comissão e Grupo de Trabalho designados pelo Ministério da Cultura

produziram resultados. Em 2000 foi editado pelo Executivo o Decreto n° 3.551 que

instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa

Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Neste ano, também foi institucionalizada

pelo IPHAN, a metodologia denominada Inventário Nacional de Referências

Culturais (INRC).

O Registro e o INRC foram duas importantes conquistas das instituições

envolvidas e de toda sociedade civil. A partir desse momento o sistema jurídico

nacional passou a contar com instrumentos adequados à salvaguarda do patrimônio

cultural imaterial, um passo importante na efetivação dos dispositivos constitucionais

que tratam da cultura (artigos 215 e 216 CF).

Em 2002, o IPHAN fez os seus dois primeiros registros de bens culturais de

natureza imaterial. Um, o “Ofício das Paneleiras” de Goiabeiras no Espírito Santo.

Outro, a “Arte Kusiwa” (pintura corporal e arte gráfica Wajãpi). Este foi declarado, no

ano seguinte, a primeira “Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade”

reconhecida pela UNESCO, no território nacional.

Os especialistas brasileiros tiveram um papel relevante nas mesas de

discussão internacionais. No ano seguinte, estes debates redundaram na

10 Portaria nº 37 do Ministério da Cultura, de 04 de março de 1998. Idem. P. 61. 11 O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 16.

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21

aprovação, pela UNESCO, da “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio

Cultural Imaterial”.

No Brasil, também em 2003, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular

foi integrado à estrutura do IPHAN. Em 2004 foi criado no IPHAN o “Departamento

do Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens Culturais”, pelo Decreto n° 5.040,

que substitui o “Departamento de Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens

Culturais”. Na reforma, o antigo Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP)

criado em 1958 também passou à gestão do novo departamento.

Internacionalmente também vale ressaltar que em 2005, foi aprovada pela

UNESCO a “Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões

Culturais”. Neste mesmo ano, a UNESCO inscreveu o Samba de Roda do

Recôncavo Baiano na lista das obras primas do patrimônio oral da humanidade.

No que tange à tutela do patrimônio cultural imaterial é oportuno incluir no

histórico a questão da proteção aos conhecimentos tradicionais associados à

biodiversidade na esfera nacional e internacional.

Em 1992 foi realizada no Rio de Janeiro a “Conferência das Nações Unidas

sobre o Ambiente e o Desenvolvimento”, a ECO-92. Dentre os documentos

internacionais resultantes dessa conferência está a “Convenção de Diversidade

Biológica” (CDB), que dispõe sobre a proteção aos conhecimentos tradicionais

associados ao patrimônio cultural imaterial. A citada Convenção estipula que cada

Estado deve regular por legislação interna os meios e as formas de distribuição

equitativa dos benefícios decorrentes do acesso aos recursos genéticos e aos

conhecimentos tradicionais das populações tradicionais.

Embora a CDB tenha vigência interna a partir de 29 de maio de 1994, foi

somente em 2001 que no Brasil foi regulamentado o acesso ao patrimônio genético

e aos conhecimentos tradicionais associados das populações tradicionais, por meio

da Medida Provisória n° 2.186. Houve regulamentação dos artigos 1°, 8°, alínea j,

10, alínea c, 15 e 16, alíneas 3 e 4 da citada Convenção, bem como dos inciso II do

§1° e o §4° do art. 225 da CF.

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22

Em razão da relevância para o tema, este trabalho aborda com destaque, em

itens subsequentes, as Convenções da UNESCO e a “Convenção sobre Diversidade

Biológica”.

1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO Outro ponto importante para este estudo é o reconhecimento do patrimônio

intangível na esfera internacional, principalmente no âmbito da UNESCO, órgão

especializado da ONU para a educação, a ciência e a cultura, cuja criação foi em

1945. Essa instituição tem tido relevante papel ao difundir, incentivar a promover

mundialmente a necessidade de se salvaguardar o patrimônio imaterial.

No Brasil, como na UNESCO, os dispositivos e as ações se voltavam,

inicialmente, à proteção do patrimônio material. Em 1972 foi firmada por diversos

países da Convenção da UNESCO sobre a “Salvaguarda do Patrimônio Mundial,

Cultural e Natural”, a qual apenas tutelou os bens materiais (móveis, imóveis, sítios

urbanos ou naturais e conjuntos arquitetônicos).

Somente anos mais tarde, na década de 80, um grupo de países em

desenvolvimento, signatários da Convenção, liderados pela Bolívia, iniciou um

movimento para o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial das

populações indígenas e tradicionais. Como destaca Márcia Sant’Anna, eles

“solicitaram formalmente à Unesco a realização de estudos que apontassem formas

jurídicas de proteção às manifestações da cultura tradicional como um importante

aspecto do Patrimônio Cultural da Humanidade”. 12

Foi uma reação ao documento inicial que não contemplava as necessidades

desses países, pois se constatou que os bens culturais a serem preservados nos

termos da Convenção de 1972 estavam predominantemente nos países ricos e

eram essencialmente materiais. Isto é, havia uma prioridade e uma preocupação

com a tutela dos bens culturais da sociedade ocidental dominante, principalmente da

Europa e da América do Norte. A Convenção de 1972 não dispensou qualquer

12 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 15.

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proteção aos saberes, às tradições, às línguas, às crenças populares, às danças,

aos modos de fazer, entre outros.

A UNESCO, em resposta a demanda formalizada por esse grupo de países,

emitiu em 1989 a “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e

Popular”, que reconhece a necessidade de se identificar e proteger as culturas,

tradicionais e populares, por meio de ações conjuntas entre a UNESCO e os países

membros. Note-se que, neste momento, o termo utilizado nos documentos era

“cultural tradicional e popular” e não “patrimônio cultural imaterial”.

O documento define “cultura tradicional e popular” nos seguintes termos:

A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de

uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou

por indivíduos e que reconhecidamente respondem à expectativas da

comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as

normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras

maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a

música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o

artesanato, a arquitetura e outras artes.

Quando foi emitida a “Recomendação de 1989” muitos dos países integrantes

da UNESCO ainda não tinham amadurecido os termos com relação à importância da

proteção às culturas tradicionais, indígenas e populares. Por esta razão foi aprovada

apenas como recomendação.

As recomendações e as declarações são diferentes das convenções ou dos

tratados 13. As primeiras, como bem formula Elder P.M. Alves, “são destinadas à

disseminação de idéias e valores, a convenção tem força de lei, pois cria, além do

compromisso de cumprimento entre os países signatários, o compromisso de

difusão e promoção” 14.

13 “A Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, embora não tenha eficácia legal no âmbito do direito internacional, cumpriu a função de instrumento de disseminação de ideias e valores. Como tal, tanto as medidas de sensibilização presentes no texto, quanto o conceito de cultura tradicional e popular definido na recomendação da Unesco de 1989, informaram sobremaneira as duas convenções da Unesco assinadas pelos países membros nesta década.” Idem, p. 550. 14 ALVES, Elder Patrick Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010. P. 544.

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24

A partir da década de 1990, os debates sobre a diversidade cultural e sobre

as políticas públicas para sua defesa foram ganhando espaço e as pressões sobre

os governos dos países em desenvolvimento e dos organismos internacionais se

intensificaram. Ainda de acordo com o autor:

É em nome da preservação e promoção da diversidade e da identidade

cultural que muitos estados nacionais e instituições transnacionais

passaram a defender a elaboração e execução de novas políticas públicas

de cultura. No entanto, como sustenta o próprio Mattelart, foi a consecução

de uma rede global de defesa e promoção da diversidade e da identidade

que produziu uma grande pressão junto aos governos nacionais (sobretudo

os governos dos chamados países em desenvolvimento) e organismos

transnacionais (BID e UNESCO), no sentido da adoção de novas políticas

culturais que pudessem ressemantizar e ressignificar um conjunto de

conceitos, como o conceito de exceção cultural (Mattelart, 2005: 102). 15

Nesse contexto, em 2001 foi aprovada na UNESCO a Declaração Universal

sobre a Diversidade Cultural. A despeito de não ter força de lei, foi um importante

documento preparatório para a aprovação das duas convenções subseqüentes, e

hoje vigentes, sobre a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: a Convenção

para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (2003) e a Convenção sobre a Proteção

da Diversidade das Expressões Culturais (2005).

A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial foi aprovada pela

UNESCO em 17.10.2003, a qual ratificou a Recomendação sobre a Salvaguarda da

Cultura Tradicional e Popular (1989) e a Declaração Universal da UNESCO sobre a

Diversidade Cultural (2001). 16

Internamente, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de 2003

em 01.02.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 22; em 15.02.2006 o Governo

Brasileiro ratificou a Convenção; em 12.04.06 o Presidente da República a

15 ALVES, Elder Patrick Maia.Op. cit. P. 544. 16 PELEGRINI, Sandra. C.A; FUNARI, Pedro Paulo. O que é patrimônio cultural imaterial. São Paulo: Brasiliense, 2008. P. 47.

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25

promulgou por meio do Decreto n° 5.733. A vigência interna é a partir de 01.06.06 e

internacionalmente a partir de 20.04.2006. 17

A supracitada Convenção considera o patrimônio cultural imaterial como fonte

de diversidade cultural 18 e também como garantia de desenvolvimento

sustentável19. O patrimônio imaterial foi conceituado no art. 2° da seguinte forma:

Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações,

expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,

artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades,

os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte

integrante de seu patrimônio cultural. 20

Em seguida, no mesmo artigo adiciona que a manifestação ocorre nos

seguintes campos:

a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do

patrimônio cultural imaterial;

b) expressões artísticas;

c) práticas sociais, rituais e atos festivos;

d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;

e) técnicas artesanais tradicionais. 21

Em 2005, a UNESCO aprovou a “Convenção sobre a Proteção da

Diversidade das Expressões Culturais”. Oportuno mencionar que o texto base desta

Convenção estava pronto antes do texto da Convenção de 2003, mas acabou por

ser aprovado somente dois anos mais tarde22.

17 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5753.htm, acesso em 29.12.2011. 18 “Reconhecendo que as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana,” Convenção para a Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, UNESCO, 17.10.2003, disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf, acesso em 29.12.2011. 19 “será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável” Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural da Humanidade. Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 “Embora a Convenção sobre a diversidade cultural tenha seu texto base, ou seja, sua declaração apresentada antes da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, seu processo de votação e apresentação só foi concluído quatro anos mais tarde, em 2005.” ALVES, Elder Patrick

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26

No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da

Convenção de 2005 em 20.12.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 485; em

16.01.2007 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 01.08.2007 o Presidente

da República a promulgou por meio do Decreto n° 6.177. A vigência interna é a partir

de 01.08.07 e internacionalmente a partir de 18.03.2007. 23

1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU Outro documento internacional essencial ao presente estudo é a Convenção

sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU. Este é um dos documentos resultantes

da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento,

realizada no Rio de Janeiro em 1992.

Seu texto reconheceu explicitamente a importância de se proteger os

conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

O artigo 1° trata dos objetivos da Convenção, os quais são “a conservação da

diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e repartição

justa e equitativa dos benefícios derivados dos recursos genéticos”. Além da

proteção aos recursos genéticos, consta também que o conhecimento, inovações e

práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida

tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade

biológica devem ser repeitados, preservados e mantidos, em conformidade com a

legislação nacional, devendo os benefícios oriundos da utilização desses

conhecimentos serem repartidos equitativamente (art. 8, j).

Apesar de ser um documento com vistas à proteção da biodiversidade no

planeta, em razão da íntima relação que as comunidades tradicionais têm com a

conservação da biodiversidade, tutelou-se, igualmente, os conhecimentos

tradicionais associados, os quais integram o patrimônio cultural imaterial.

Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010. P. 544. 23 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6177.htm, acesso em 29.12.2011.

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27

A Medida Provisória n° 2.186/2001, que tratou do acesso ao patrimônio

genético e a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado, assim o

definiu: “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de

comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético;”

(art. 7°, inc. II). Por ora, nos basta essa conceituação, pois iremos nos aprofundar

neste ponto em item posterior.

Em linhas gerais, o patrimônio cultural imaterial constitui-se das práticas,

representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades e

grupos reconhecem como integrante do seu patrimônio cultural, portanto, os

conhecimentos tradicionais associados se encaixam perfeitamente nesta definição.

Tais conhecimentos se diferem dos demais por terem valor potencial ou real

associado ao patrimônio genético.

No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da

Convenção de Diversidade Biológica em 03.02.1994 por meio do Decreto Legislativo

n° 02; em 28.02.1994 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 16.03.1998 o

Presidente da República a promulgou por meio do Decreto n° 2.519. A vigência

interna é a partir de 29.05.1994 e internacionalmente a partir de 29.12.1993. 24

24http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2519.htm, acesso em 29.12.2011.

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28

Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os Instrumentos legais

No panorama da proposta desta dissertação, este capítulo se dedica ao

conceito de “patrimônio cultural imaterial” à luz das disposições previstas na

Constituição Federal de 1988. Se comparada às constituições brasileiras anteriores,

a conceituação ganhou dimensões mais abrangentes e maior especificidade técnica.

Além disso, o texto atual passa a associar o conceito formal de “patrimônio” e a

noção de “referência cultural”, que contribui para alterar os modos como os bens

culturais são reconhecidos. Sair da visão na qual o Estado o define e conceitua os

“tipos humanos” ou “culturais”, para entrar no paradigma participativo, no qual, de

modo democrático, os sujeitos, alvo do processo, ocupam posição simétrica em

relação a especialistas e agências de Estado.

O conceito de “patrimônio cultural”, conforme o texto constitucional atual, leva

à análise dos dois instrumentos legais hoje disponíveis no Brasil para a proteção do

patrimônio cultural imaterial, que detalham os termos e as etapas objetivas para o

registro e o inventário de referências culturais. Esta metodologia foi consolidada em

torno do que os envolvidos em sua formulação passaram a denominar “Inventário

Nacional de Referências Culturas” (INRC).

2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988 Assim, a abordagem ampla e objetiva do conceito patrimônio cultural,

sedimentada no arcabouço da Constituição Federal de 1988, construída junto a

setores e órgãos especializados na preservação e defesa do patrimônio cultural,

consolida, ao mínimo, duas conquistas aos movimentos sociais organizados.

Primeiro, incorpora o relativismo cultural, que supera o viés evolucionista (progresso

unilinear da história) dos textos anteriores. Segundo, porque afirma a participação

democrática e simétrica entre os diversos entes envolvidos e interessados. Assim,

de um modo geral, é possível dizer que a nova redação instaura novos conceitos e

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29

técnicas relativas ao “patrimônio cultural” mais adequada à proposta “cidadã”

disposta na atual Carta Constitucional.

No âmbito internacional, as primeiras referências constitucionais à proteção

da cultura, feitas em títulos que tratavam também da ordem econômica e social e da

educação, constam na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar

de 1918. Ambas constituem marcos na história do constitucionalismo ocidental, por

terem assegurado, de modo pioneiro, estes direitos em cartas constitucionais. 25.

No Brasil, as Constituições de 1824 e a de 1891 sequer fazem referências ao

tema. A primeira Constituição nacional a versá-la foi a de 1934 no art. 10, inciso III,

já sob a inspiração dos modelos alemão e mexicano. Foi uma abordagem tímida,

pois apenas previu a competência concorrente entre a União e os Estados para a

proteção das belezas naturais e dos monumentos de valor histórico ou artístico, com

a possibilidade do Estado impedir a evasão de obras de arte.

Por sua vez, a Constituição de 1937 abordou o tema de forma pouco mais

ampla no art. 134, atribuindo competência também para os municípios e

equiparando os atentados contra os monumentos históricos artísticos e naturais aos

cometidos contra o patrimônio nacional. Foi durante a vigência desta Constituição

que foi editado o Decreto Lei 25 que dispôs sobre o patrimônio cultural, bem como

acerca do instituto do tombamento.

Já a Constituição de 1946 contemplou a questão da cultura de forma sucinta

e pouco efetiva no art. 175, o qual previu que: “As obras, monumentos e

documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as

paisagens e os locais dotados de particular beleza, ficam sob a proteção do Poder

Público.”

A Constituição de 1967 no art. 172 e a Emenda Constitucional 01/69 no art.

181 (o qual repetiu o art. 172) também abordaram o assunto, não inovando em

relação às Constituições anteriores, salvo pela novidade de incluir sob a proteção

estatal as jazidas arqueológicas. A previsão foi nos seguintes termos: “O amparo à

cultura é dever do Estado. Parágrafo único: Ficam sob a proteção especial do Poder

25 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 39.

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Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os

monumentos e as paisagens notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.”

A atual Constituição da República Federativa do Brasil foi elaborada e

promulgada após o fim do regime militar, tendo recebido influências das

Constituições contemporâneas da época, como a Constituição Portuguesa de 1976

e a Constituição Espanhola de 1978 e na América Latina, a Constituição do Panamá

de 1985. O tema da cultura foi tratado em todas essas cartas constitucionais.

A partir da década de 70 os direitos culturais passaram a constar nas

Constituições, sendo reconhecidos como direitos fundamentais do homem, de

acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva:

As Constituições contemporâneas – ou seja, aquelas que vieram da

derrocada dos regimes fascistas e militares após a década de 70 –

alargaram os horizontes da proteção da cultura, surgindo daí a idéia dos

direitos culturais como dimensão dos direitos fundamentais do homem, o

que tem sua matriz já na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de

1948, cujo art. 27 estabelece que toda pessoa tem direito de tomar parte

livremente na vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de

participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam, e toda

pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais que lhe

correspondem por razão das produções científicas, literárias ou artísticas de

que seja autor. 26

De acordo com Norberto Bobbio, o reconhecimento e o desenvolvimento dos

direitos humanos decorrem do processo histórico, sendo esses direitos variáveis e

mutáveis, que se alteram para se adequar aos interesses, às relações econômicas e

às necessidades das sociedades.

Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,

fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais

fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em

certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas

26 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 40.

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liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos

de uma vez e nem de uma vez por todas. 27

Portanto, alguns direitos que eram considerados absolutos no final do século

XVIII foram restringidos por declarações de direitos contemporâneas, por exemplo, o

direito de propriedade deve ser exercido atendendo sua função social. Atualmente, a

função social da propriedade é princípio constitucional expresso na Carta brasileira

de 1988 (art. 5°, inciso XXIII).

Por outro lado, direitos que antes nem existiam e eram impensáveis surgiram

como fruto desse processo histórico e passaram a integrar as declarações

internacionais e as Constituições de diversos países, tal como é o caso dos direitos

sociais e os direitos relativos à defesa do meio ambiente.

De acordo com Noberto Bobbio são diversas as categorias de direitos que,

hodiernamente, integram as declarações de direitos humanos de vários países.28 Ele

acrescenta que os direitos humanos são mutáveis e heterogêneos, de modo que a

coexistência entre eles implica em autolimitação. Veja-se:

Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria

heterogênea, refiro-me ao fato de que – desde quando passaram a ser

considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade,

também os direitos sociais – a categoria em seu conjunto passou a conter

direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser

concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. 29

Nesta toada, o autor propõe uma classificação dos direitos em gerações

levando em conta a natureza de cada um deles, bem como o momento histórico em

27 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 5.

28 “Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem liberdades, também os chamados direitos sociais, que consistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos aqui os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam a abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem ser realizados se for imposto a outros (incluídos aqui os órgãos públicos) um certo número de obrigações positivas.” BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 21. 29 Idem. P. 43.

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32

que surgiram. 30 Convém abordar essa classificação de forma sucinta para situarmos

nela o objeto deste estudo, que é o direito à cultura.

A primeira geração é composta pelos direitos referentes às liberdades

negativas, pois implicam uma abstenção estatal para se efetivarem, como exemplo:

o direito à vida, à liberdade civil ou religiosa.

Na segunda geração foram agrupados os direitos que ensejam uma

prestação positiva estatal para sua efetivação, são os direitos sociais, econômicos e

culturais. Historicamente, tais direitos surgiram a partir das influências das doutrinas

socialistas e com o advento do Estado de bem estar social (Welfare State).

A terceira geração é integrada por direitos coletivos, dentre os quais podemos

citar o direito ao meio ambiente sadio e a proteção ao consumidor. A quarta geração

relaciona-se com o desenvolvimento tecnológico no Estado contemporâneo e se

refere aos direitos para a proteção do patrimônio genético. 31

Convém salientar que a classificação dos direitos em gerações proposta por

Bobbio recebeu críticas. Alguns doutrinadores como Paulo Bonavides 32 e Joaquim

José Gomes Canotilho 33 discordam da terminologia utilizada por Bobbio, propondo

a substituição do termo geração por dimensão, por entenderem que ele nos induz a

pensar em sucessão cronológica dos direitos e em caducidade dos direitos das

gerações antecedentes. De acordo com Canotilho:

“É discutida a natureza desses direitos. Critica-se a précompreensão que

lhes está subjacente, pois ela sugere a perda de relevância e até a

substituição dos direitos de primeiras gerações. A idéia de generatividade

30 Idem. P. 05,06. 31 “Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” Idem. P. 06. 32 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 571, 572. 33 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª. Ed. Coimbra: Almedina, 2002. P. 386.

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33

geracional também não é totalmente correta: os direitos são de todas as

gerações. Em terceiro lugar, não se trata apenas de direitos com um

suporte coletivo – o direitos dos povos, o direito da humanidade. Neste

sentido se fala da solidarity rights, de direitos de solidariedade, sendo certo

que a solidariedade já era uma dimensão “indimensionável” dos direitos

económicos, sociais e culturais. Precisamente por isso, preferem hoje os

autores falar de três dimensões de direitos do homem (E. Riedel) e não de

“três gerações”. 34

Em que pesem as considerações e as críticas feitas pela doutrina

especializada, não é necessário para o presente estudo o aprofundamento em

relação às diversas teorias sobre os direitos fundamentais.

O direito à cultura foi previsto no art. 215 da Constituição Federal, nos

seguintes termos: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais

e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a

difusão das manifestações culturais.” Trata-se de um direito constitucional

fundamental, pertencente à segunda geração de direitos, o qual exige uma postura

estatal positiva para sua efetivação. O Estado deverá implementar políticas públicas

culturais a fim de possibilitar aos cidadãos o exercício deste direito em sua

integralidade.

O citado artigo é composto por duas normas, a primeira prevê a garantia ao

exercício do direito cultural e o acesso às fontes de cultura, a segunda dispõe sobre

o apoio e o incentivo à valorização das manifestações culturais.

De acordo com José Afonso da Silva:

Assim se delineia a dupla dimensão da expressão “direitos culturais”, que

consta do art. 215 da Constituição: de um lado, o direito cultural, como

norma agendi (...), e o direito cultural, como facultas agendi (...). O conjunto

de normas jurídicas que disciplinam as relações de cultura formam a ordem

jurídica da cultura.

Esse conjunto de todas as normas jurídicas, constitucionais ou ordinárias, é

que constitui o direito objetivo da cultura; e quando se fala em direito da

cultura se está referindo ao direito objetivo da cultura, ao conjunto de

34 Idem.

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34

normas sobre cultura. Pois bem, essas normas geram situações jurídicas

em favor dos interessados, que lhes dão da faculdade de agir, para auferir

vantagens ou bens jurídicos que sua situação jurídica produz, ao se

subsumir numa determinada norma. 35

Além do art. 215, o art. 216 da Constituição Federal também trata do tema da

cultura ao definir patrimônio cultural e fixar algumas diretrizes em seus parágrafos,

especialmente no que tange às políticas culturais. Ambos artigos estão inseridos no

Capítulo Da Educação, Da Cultura e do Desporto.

Porém, outros dispositivos também o abordam, são eles: o art. 5°, inciso

LXXIII, que prevê a ação popular para anular qualquer ato lesivo ao patrimônio

histórico e cultural; o art. 23 dispõe sobre a competência comum da União, Estados,

Distrito Federal e Municípios para a proteção da cultura nos incisos III e IV, bem

como para que sejam proporcionados os meios de acesso à cultura, à educação e à

ciência no inciso V; o art. 24 trata da competência concorrente da União, Estados e

Distrito Federal para legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural,

artístico, turístico e paisagístico no inciso VII e sobre cultura no inciso IX; o art. 30,

no inciso IX prevê que compete ao município “promover a proteção do patrimônio

histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e

estadual.” Além dos acima citados há ainda outros dispositivos que se referem ao

tema da cultura: os artigos 4°, § único; 210; 219; 221, incisos I, II e III; 227; 231, § 1°;

242, § 1° e 243.

O artigo 216 caput e incisos I a V da CF definiu o patrimônio cultural brasileiro

nos seguintes termos:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços

destinados às manifestações artístico-culturais;

35 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 48.

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35

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Como já mencionado, a redação deste artigo, que dispõe sobre os bens que

devem ser “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes

grupos formadores da sociedade brasileira”, inova em relação às Constituições

brasileiras anteriores.

Incorpora, pela primeira vez, os conceitos “patrimônio cultural material e

imaterial brasileiro” e “referencias culturais” ao invés de “patrimônio histórico e

artístico nacional”, disposto desde o previsto no art. 1º do Decreto Lei 25 de 1937.

O constitucionalista José Afonso da Silva, em revisão sobre o ordenamento

da cultura, destaca as razões pelas quais o novo arcabouço representa um avanço:

Patrimônio cultural é expressão mais adequada e mais abrangente do que

patrimônio histórico e artístico. Menos adequado, embora não menos

abrangente, é falar-se em patrimônio histórico, artístico ou cultural, porque o

“cultural” já inclui o “histórico” e o “artístico”, por isso a Constituição andou

bem empregando a expressão sintética “patrimônio cultural”, no art. 216,

embora já não o tenha feito tão bem quando se refere a bens de valor

histórico, artístico ou cultural, nos arts. 23, III e IV, e 24, VII. 36

Ao empregar a expressão “patrimônio cultural brasileiro”, importante destacar,

não deixa dúvidas de que engloba além do patrimônio da União, também o dos

Estados e dos Municípios. Não se refere apenas ao patrimônio cultural da União,

pois se assim se pretendesse a formulação deveria constar algo como “patrimônio

cultural nacional ou da União”. 37 A leitura sistemática do artigo não deixa dúvidas ao

dispor no §1º que a comunidade deve colaborar com o Poder Público na promoção e

na preservação deste patrimônio.

A palavra patrimônio tem origem latina (patrimonium) e nos remete a bens

transmitidos por linhas de descendência entre consangüíneos, não importando se 36 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 100. 37 “Patrimônio cultural brasileiro é expressão jurídica que abrange não só o patrimônio cultural estabelecido pela União, mas também o estabelecido pelos Estados e Municípios. Se a Constituição falasse em patrimônio cultural nacional, então poder-se-ia entender que ela só estivesse mencionando o patrimônio cultural organizado pelo Governo Federal.” SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 101.

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36

por linha paterna ou materna. Portanto, a palavra alude a um conjunto de bens cujo

critério primeiro de transmissão de direitos e deveres é o vínculo das gerações

presentes com seus antepassados.38

Isto é, quando a Constituição no art. 216 emprega a expressão “patrimônio

cultural”, é porque se propõe a delimitar conjuntos de sujeitos de direito compostos

por aqueles bens, de natureza material ou imeterial, que ostentem essa

característica; que tenham sido transmitidos ao longo do tempo entre sucessivas

gerações. Apenas sobre estes conjuntos versa o regime de proteção e salvaguarda

nela previsto e em outros diplomas legais que o normatizam.

De acordo com Marés39 os “bens culturais”, ao contrário dos bens que

integram o patrimônio civil de uma pessoa, não precisam ostentar valor econômico e

nem ter o mesmo titular. E complementa:

Isto quer dizer que o conceito de patrimônio cultural, patrimônio genético,

ambiental, florestal, e até mesmo patrimônio nacional – da Nação e não do

Estado -, são atécnicos, como diziam Alibrandi e Ferri, mas servem para

identificar uma universalidade juridicamente protegida sob as mesmas

condições. 40

Em outro texto o citado autor melhor explica essa atecnia do termo patrimônio

cultural ao mencionar que este é qualificado por critérios diversos, por exemplo, os

valores socioambientais associados: “cada um desses patrimônios é o conjunto de

bens agregados por valores especiais (socioambientais) que se compõem e se

integram por bens de diversos patrimônios individuais (públicos e privados).” 41

Retomemos aqui o emprego da expressão “bens de natureza material e

imaterial”. Como já mencionado a formulação se propõe a não deixar dúvidas de que

38 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. P. 1447. 39 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed., 6ª. Reimp. Curitiba: Juruá, 2011. P. 47. 40 Idem. 41 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao Direito Socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 40.

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37

também estão sob o manto constitucional as riquezas culturais que não

necessariamente ostentam suportes materiais correlatos, chamadas por “bens

imateriais ou intangíveis”.

Anteriormente à Constituição Federal de 1988, as cartas constitucionais

precedentes, a legislação complementar e as políticas públicas relacionadas com a

proteção à cultura tinham como alvo os bens móveis ou imóveis. O Decreto Lei 25

de 1937 que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional previu

no art. 1° a sua constituição pelo “conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no

País e cuja conservação seja de interesse público (...)”, nos artigos subseqüentes

tampouco há qualquer dispositivo que preveja a proteção aos bens culturais

intangíveis.

A definição dos bens culturais materiais não encontra maiores dificuldades:

são aqueles bens corpóreos móveis ou imóveis, que possuem uma materialidade ou

suporte e tem um valor cultural para os diferentes grupos formadores da sociedade.

Deste modo, podem ser pertencentes à cultura popular ou erudita. Como exemplos:

os monumentos históricos, as edificações, os artefatos construídos pelo homem,

vestimentas, instrumentos, utensílios, obras artísticas como telas e esculturas,

documentos, entre outros.

Os bens culturais imateriais são os intangíveis, por excelência, justamente por

não possuírem necessariamente um suporte. São mais difíceis de serem definidos,

em razão de sua intangibilidade, o que leva a discussão a um alto nível de

abstração. Estes são aqueles bens não mensurados por sua materialidade. Por não

dispor sobre um suporte, não são passíveis de objetivações fundadas nas

qualidades da matéria. A formulação, portanto, parte da premissa de que “valor

cultural” é necessariamente valor para e na perspectiva dos diferentes grupos

formadores da nação dos brasileiros. Por este caráter, consegue incorporar

expressões culturais, populares e tradicionais, como festas, danças, crenças e

cosmologias, músicas, línguas. Importa os diferentes modos de saber e os modos

de fazer, que compõem o conjunto das riquezas da nacionalidade e da humanidade.

Marés entende que todos os bens culturais, sejam eles materiais ou

imateriais, são intangíveis. “(...) Porque guardam uma evocação, representação,

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38

lembrança, quer dizer, por mais materiais que sejam, existe neles uma grandeza

imaterial que é justamente o que os faz culturais” 42

Assim, ao se referir ao “patrimônio cultural imaterial”, e deslocar a questão do

eixo da materialidade, o tema passa a se associar a um novo arcabouço de

conceitos como: tradição, oralidade, intangibilidade, entre outros.

Importante destacar que não existe nenhum consenso no âmbito nacional ou

internacional sobre a melhor expressão para definir formalmente este conceito.

No Brasil, conforme o “Relatório Final das Atividades da Comissão e do

Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial“ (2006), o Ministério da Cultura e o IPHAN

optaram pela expressão “patrimônio cultural imaterial”, antes de tudo, por ter sido a

expressão consagrada no art. 216 da Constituição Federal. Mas ressalvam:

Cientes dessa discussão, e levando em conta que ela está longe de chegar

a uma conclusão, a Comissão e o GTPI optaram nesse trabalho por seguir

o Artigo 216 da Constituição Federal, (...). Não há dúvida de que as

expressões “patrimônio imaterial” e “bem cultural de natureza imaterial”

reforçam uma falsa dicotomia entre esses bens culturais vivos e o chamado

patrimônio material. Por outro lado, contudo, com essa definição, delimita-se

um conjunto de bens culturais que, apesar de estar intrinsecamente

vinculado a uma cultura material, não vinha sendo reconhecido oficialmente

como patrimônio nacional.43

Na Constituição Federal de 1988 foi previsto um conceito aberto no que tange

aos bens culturais, o rol previsto nos incisos I a V do art. 216 não é taxativo, em

razão de ter sido precedido pela a expressão “nos quais se incluem”, podendo

outros bens que ali não foram elencados virem a constituir o patrimônio cultural

nacional.

Portanto, não restringe os tipos de bens passíveis de serem integrantes do

patrimônio cultural imaterial, podendo ser eles materiais ou imateriais, móveis ou

42 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. P. 48.

43 Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial IN: in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 4ª. Ed. Brasília: IPHAN, 2006. P. 17.

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39

imóveis, tomados em conjunto ou singularmente, sendo o critério limitador a

verificação da existência da referência cultural para os citados grupos.

Atualmente, o diploma legal que regulamenta a salvaguarda dos bens de

natureza imaterial é o Decreto lei n° 3551 de agosto de 2000, que instituiu o registro

e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Esse decreto previu no art. 1°,

§ 1°, incisos I a IV que os bens de natureza imaterial que constituem o patrimônio

cultural brasileiro são os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os

lugares, bem como especificou as formas de expressão cultural que devem ser

inscritas em cada um desses livros. No § 2° do mesmo artigo dispõe que deve ser

levado em consideração “a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional

para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.”

Por sua vez, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

Imaterial da UNESCO (2003), ratificada pelo Brasil e aprovada pelo Congresso

Nacional, também define o que se entende por patrimônio cultural imaterial. O art. 2°

da citada Convenção assim dispôs:

Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações,

expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,

artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades,

os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte

integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que

se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas

comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a

natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e

continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade

cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será

levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível

com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com

os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e

do desenvolvimento sustentável.

Nota-se que o art. 216 da Constituição Federal, o art. 1° do Decreto n°

3.551/2000 e o art. 2° da citada Convenção da UNESCO nos remete a um conceito

bastante equivalente desse conjunto de bens culturais denominado “patrimônio

cultural imaterial”, sendo indispensável que o bem porte referência cultural para as

comunidades e grupos que formam o país. Isto é, o bem deve ser considerado pelos

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40

próprios grupos ou comunidades envolvidos como um elemento identificador, um

traço característico da cultura que se pretende preservar.

Em item anterior foi abordado o contexto histórico em que surgiu a noção de

“referência cultural”. Como visto, a introdução da referência cultural possibilitou um

rompimento com o padrão anterior que estabelecia que a cultura passível de

reconhecimento e preservação era somente a cultura pertencente às classes

dominantes, a cultura oficial, erudita, praticada nas escolas de belas artes e

imortalizada nos museus. Em contrapartida, foi oferecido um modelo fundado na

diversidade cultural, na descentralização estatal e na participação democrática,

ampliando o espectro de valorização e proteção às outras formas de culturas

praticadas pelos demais grupos formadores da identidade nacional.

Isso implica em dizer que as riquezas de povos indígenas, afrodescendentes

e quilombolas; extrativistas, agricultores e pescadores; segmentos fundamentais à

formação da “cultura brasileira”, ganharam novo estatuto e proteção no arcabouço

jurídico nacional. Recebem tratamento simétrico ao dado aos descendentes de

europeus, antigos colonizadores. Não há exceção a qualquer grupo, o que vem de

encontro com os princípios da igualdade (art. 3°, IV da CF) e o repúdio ao racismo

(art. 4°, VIII da CF).

Concebida a partir de debates entre o direito e a antropologia, a noção de

“referência cultural”, disposta na carta constitucional, importa sobremaneira para o

Direito. Afinal, é o elemento diferenciador em relação aos demais bens jurídicos. Um

bem cultural é oficializado enquanto bem jurídico quando porta “referência cultural”

em relação à “identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira”. Representa uma reviravolta, uma reorientação em relação às

políticas culturais anteriores. Contudo, o que significa, no texto constitucional, esse

portar referência?

José Afonso da Silva explica em passagem que ora transcrevemos que se

trata de um critério de valoração:

Referência, neste contexto, expressa um destaque de valoração. Portar

referência, assim, é trazer em si uma especial posição entre os objetos da

mesma natureza. Tem o mesmo sentido da expressão “ter como ponto de

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41

referência” – ou seja, como um signo balizador da conduta a seguir, do

caminho a tomar. Assim, bens portadores de referência são bens dotados

de um valor de destaque que serve para definir a essência do objeto de

relação ao qual se prende com o princípio de referibilidade considerado. É

que no caso, referência é, também, um signo de relação entre os bens

culturais, como antecedentes ou referentes, e a identidade, a ação e a

memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como

conseqüentes ou referidos. Identidade, ação e memória são os

conseqüentes ou referidos que portam a idéia de manter com o passado

uma relação enriquecedora do presente. E é nisso que se destaca o valor

de referência que fundamenta a inclusão dos bens culturais referentes no

patrimônio cultural brasileiro constitucionalmente protegido. Quer isso dizer

que os bens que devem constituir o patrimônio cultural brasileiro hão de ser

aqueles bens que sejam referências para definir a essência da identidade,

ou da ação ou da memória dos mencionados grupos. Usamos, aqui, as

alternativas porque não é necessário que a referência seja um vetor do

conjunto desses objetos. Basta que seja pertinente a um, apenas:

identidade, ou ação, ou memória. 44

Para aprofundar a questão, cabe indagar quem possui legitimidade para

auferir a existência ou não da relação (referência cultural) de entre os bens culturais

(antecedentes) e a “identidade, a ação e a memória” dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira (conseqüentes).

De acordo com Maria Cecília Londres Fonseca, também no Dossiê final das

atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial de 2006:

Quando se fala em referências culturais, se pressupõem sujeitos para os

quais essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa

perspectiva veio deslocar o foco dos bens - que em geral se impõem por

sua monumentalidade, por sua riqueza, por seu “peso” material e simbólico

- para a dinâmica de atribuição de sentidos e valores. Ou seja, para o fato

de que os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor

intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em

função de determinados critérios e interesses historicamente condicionados.

Levada às últimas conseqüências, essa perspectiva afirma a relatividade de

qualquer processo de atribuição de valor - seja valor histórico, artístico,

nacional etc.- a bens, e põe em questão os critérios até então adotados

44 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 114.

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42

para a constituição de patrimônios culturais, legitimados por disciplinas

como a história, a história da arte, a arqueologia, a etnografia, etc.

Relativizando o critério do saber, chamava-se atenção para o papel do

poder. 45

Logo, os bens culturais não têm valor em si mesmo. A análise da valoração

será sempre feita pelos sujeitos envolvidos neste processo, ou seja, aqueles para os

quais as referências culturais tenham um especial sentido e um particular significado

capazes de identificar e caracterizar a cultura do grupo ou da comunidade. Nos

dizeres da autora acima citada: “Falar em referências culturais nesse caso significa,

pois, dirigir o olhar para representações que configuram uma “identidade” da região

para seus habitantes, e que remetem à paisagem, às edificações e objetos, aos

“fazeres” e “saberes”, às crenças e hábitos, etc.” 46

Esse modelo pautado pela referência cultural implica, além da valoração dos

bens pelos próprios titulares, em igualmente possibilitar aos detentores de uma

prática cultural determinar o destino desses bens. Somente a eles caberá decidir

sobre a permanência, a alteração ou a supressão desses “saberes”, “fazeres” etc.

É essencialmente nesse aspecto que é possível identificar o distanciamento

da visão dos folcloristas, que valoravam uma prática cultural a partir dos próprios

pontos de vista, focando apenas os seus valores e impondo uma defesa integral e

irrestrita dessas práticas. Nesse sentido, ainda de acordo com Londres Fonseca:

É importante frisar que não se partia também de pressupostos que

costumam estar presentes nas pesquisas feitas pelos folcloristas ou pelos

planejadores econômicos, ou seja, a defesa incondicional da necessidade

de se proteger produtos e modos de vida autênticos, em uma visão

idealizada da cultura popular. 47

Ao evitar imposições aos processos culturais, deixa a critério dos titulares

dessas práticas culturais a decisão sobre o futuro delas. Reconhece-se a

45 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 85, 86.

46 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 89. 47 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 93.

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43

importância da dinamicidade do bem cultural, notadamente daqueles bens em que o

aspecto imaterial se sobressai. Afinal, ao longo do tempo um bem cultural é

constantemente repensado e reavaliado no domínio desses grupos, comunidades e

sociedades, podendo ser recriado, reelaborado, ressemantizado e, inclusive,

abandonado. É um processo contínuo, vivo, dinâmico entre as gerações passadas,

presentes e futuras. Portanto, uma política cultural orientada com base na noção de

referência cultural – conforme aqui tratada – não pode estar atada às antigas

concepções preservacionistas que buscavam a imobilização, a imortalidade e a

museificação dos bens culturais.

Tanto o Decreto n° 3551/2000 que instituiu o Registro dos Bens Culturais de

Natureza Imaterial como a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural

Imaterial da UNESCO em 2003 abordaram o aspecto dinâmico e vivo dessa classe

de bens. No art. 2° da citada Convenção há menção de que o patrimônio cultural

imaterial é transmitido e recriado de geração em geração, promovendo desta forma

o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana; por sua vez, o art. 7° do

referido Decreto dispõe que: “O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais

registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo

do Patrimônio Cultural para decidir sobre a revalidação do título de "Patrimônio

Cultural do Brasil".

A dinamicidade dos bens culturais atualmente não encontra objeções na

doutrina especializada e mais recente. Ainda de acordo com a mesma autora:

(...) acredito que pensar a preservação de bens culturais a partir da

identificação de referências culturais - do modo como essa noção foi

entendida neste texto - significa adotar uma postura antes preventiva que

curativa. Pois trata-se de identificar, na dinâmica social em que se inserem

bens e práticas culturais, sentidos e valores vivos, marcos de vivências e

experiências que conformam uma cultura para os sujeitos que com ela se

identificam. Valores e sentidos esses que estão sendo constantemente

produzidos e reelaborados, e que evidenciam a inserção da atividade de

preservação de bens culturais no campo das práticas simbólicas. 48

A formulação de Paulo Affonso Leme Machado é no mesmo sentido:

48 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 89.

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44

O conceito constitucional de patrimônio cultural é dinâmico, caminha no

tempo, unindo gerações. É uma noção ampla, e que poderíamos chamar de

patrimônio cultural social nacional. É a expressão cultural, ainda que

focalizada de forma isolada, que passa a ter repercussão num âmbito maior,

que é a “sociedade brasileira” (art. 216 CF). 49

Percebe-se, assim, que o patrimônio cultural é aquilo que liga as gerações

passadas às presentes e ambas às futuras gerações. É um vínculo entre gerações

que se modifica ao longo da história. Esse caráter dinâmico é ainda mais marcante

quando se está diante do patrimônio intangível, pois sua preservação depende da

sociedade que herdou uma manifestação cultural, a qual será responsável por

resguardar essa herança e repassá-la aos seus descendentes.

Outra novidade no âmbito cultural, foi que a Constituição Federal previu

expressamente o princípio da participação social no âmbito cultural ao dispor no §1°

do art. 216 que: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e

protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,

vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e

preservação.”

Ao estabelecer que o Poder Público e a comunidade são responsáveis

conjuntamente pela preservação do patrimônio cultural cria-se um modelo de gestão

democrático e participativo, o qual deve contar com a colaboração e atuação das

ONGs, empresas, sindicatos, associações, comunidades tradicionais, organismos

internacionais, entre outros. Portanto, houve uma superação do modelo anterior que

era verticalizado, ou seja, as decisões de preservação eram tomadas pelo Estado

sem a colaboração dos cidadãos.

Ademais, esse modelo de gestão democrática e participativa é fundamental à

concretização da proteção ao patrimônio cultural tal como previsto na Carta Magna,

pois esta ao dispor que o patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos bens

“portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira” quis assimilar igualmente a cultura popular e

tradicional, não se restringindo apenas à cultura oficial e dominante. 49 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 .ª Ed. São Paulo: Malheiros,

2011. . p. 1025.

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45

Percebe-se, portanto, que o conceito adotado na esfera constitucional e

acompanhado pelas legislações complementares implica em uma intercomunicação

do patrimônio cultural com o meio ambiente, as questões sociais, econômicas,

políticas, jurídicas, internacionais etc., de modo que qualquer medida protetiva deve

levar em consideração essas outras questões que se interpenetram. Especialmente,

os processos culturais devem ser tratados em conjunto com as questões sociais e

ambientais, é como se uma rede interligasse todas essas esferas em uma relação

de interdependência e interpenetração.

2.2. O Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) A Constituição Federal previu no art. 216, § 1° os meios de promoção e

proteção do patrimônio cultural. Este dispositivo elenca os inventários, registros,

vigilância, tombamentos, desapropriações, além de outras formas possíveis para o

acautelamento.

Como dito, na segunda metade da década de 90, conseguiu-se, a partir da

Carta de Fortaleza (1997), regulamentar a tutela ao patrimônio imaterial. Os esforços

conjuntos resultaram na edição do Decreto n° 3.551/2000, que instituiu o “Registro

de Bens Culturais de Natureza Imaterial” e criou o “Programa Nacional do Patrimônio

Imaterial” (PNPI). No mesmo ano, o IPHAN consolidou a metodologia para o

Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).

Com isso, o sistema jurídico nacional passou a contar com novos

mecanismos para a proteção do patrimônio cultural intangível, especialmente

quando se trata da proteção às culturas tradicionais e populares. Assim, antes

mesmo da aprovação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da

UNESCO em 2003 o Brasil já contava com o Decreto n° 3.551/2000.

A definição do que seja o INRC consta na Instrução Normativa n° 01/2009 do

IPHAN:

(...) o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC - uma

metodologia de pesquisa desenvolvida pelo Iphan que objetiva auxiliá-lo na

produção de conhecimento e diagnósticos sobre os domínios da vida social

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46

aos quais são atribuídos sentidos e valores que constituem referências de

identidade para os grupos sociais.

Os Inventários podem ser produzidos pelo ente público ou mediante parcerias

por pessoas físicas ou jurídicas externas ao IPHAN (§ 1° do art. 1, Instrução

Normativa 01/2009, IPHAN). Nesses casos, os entes externos, tais como ONGs e

fundações, deverão solicitar autorização ao IPHAN para o uso dessa metodologia, e

assinar um Termo de Compromisso.

O INRC é um importante instrumento para conhecer e documentar o

patrimônio imaterial. Além disso, fornece subsídios à implementação de políticas

públicas destinadas à valorização e proteção do conhecimento e à inclusão social

das comunidades e grupos inventariados. O objetivo é que os formuladores

produzam no INRC documentação plenamente hábil à instrução dos processos de

Registro. A inscrição de um bem imaterial em um dos livros próprios é o

reconhecimento estatal da importância deste bem, o qual passa a ostentar o título de

“Patrimônio Cultural do Brasil”.

O objetivo do registro é reconhecer a importância dos bens imateriais e

resguardá-los através da documentação. A proposta é a valorizar a cultura e

estimular os grupos e as comunidades detentoras desses conhecimentos, práticas e

saberes a conservar suas próprias histórias e tradições, repassando-os às gerações

futuras.

Conforme art. 1°, §1° do Decreto n° 3.551/2000, as manifestações culturais

imateriais podem ser registradas em quatro diferentes livros. A escolha dependende

das características da expressão cultural que se pretende inscrever. São eles:

I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e

modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;

II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas

que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do

entretenimento e de outras práticas da vida social;

III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas

manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;

IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,

santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem

práticas culturais coletivas.

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47

O §3° deste artigo prevê que outros livros poderão ser abertos quando os

bens a serem inscritos não possam ser enquadrados nos livros previstos no §1°.

Além de instituir os livros, o citado decreto ainda dispõe sobre as partes

legítimas para requerer o registro (art. 2°) as atribuições do IPHAN (art. 3°) e do

Ministério da Cultura (art. 6°), o procedimento para análise e inscrição de um bem

nos livros (art. 4° e 5°), a revalidação e a perda do registro (art. 7°) e a instituição no

âmbito do Ministério da Cultura do "Programa Nacional do Patrimônio Imaterial" (art.

8°).

O caráter mutável e dinâmico do patrimônio cultural intangível não recomenda

que seja utilizado o tombamento para a proteção desses bens, pois este é um

instrumento jurídico voltado estritamente à salvaguarda dos bens materiais. Um bem

tombado deve ser preservado em sua integralidade, evitando-se ao máximo

qualquer modificação e descaracterização. Logo, o registro surge diante a

necessidade de se preservar bens cuja riqueza não reside propriamente no suporte

material, mas na dinâmica de produção de conhecimentos50.

No Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho

Patrimônio Imaterial, redigido por Márcia Sant’Anna, consta que quando da

elaboração da proposta dois princípios fundamentais foram levados em

consideração.

O primeiro refere-se à própria natureza do patrimônio intangível:

(...) essas manifestações possuem uma dinâmica específica de

transmissão, atualização e transformação que não pode ser submetida às

formas usuais de proteção do patrimônio cultural. O patrimônio imaterial não

requer ‘proteção’ e ‘conservação’ – no mesmo sentido das noções

fundadoras da prática de preservação dos bens culturais móveis e imóveis –

mas identificação, reconhecimento, registro etnográfico, acompanhamento

50 Os objetos, as edificações e os sítios materiais, quando tomados apenas por este prisma, podem ser tombados; enquanto que os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os lugares onde as práticas culturais são exercidas devem ser registrados nos termos do Decreto n° 3.551/2000.

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48

periódico, divulgação e apoio. Enfim, mais documentação e

acompanhamento e menos intervenção51.

O segundo princípio é a substituição do conceito de autenticidade pela ideia

de continuidade histórica, que, conforme o instrumento, deve ser “identificada por

meio de estudos históricos e etnográficos que apontem as características essenciais

da manifestação, sua manutenção através do tempo e a tradição a qual se

vinculam”52. Por esta razão, os bens registrados são frequentemente reavaliados

pelo IPHAN a fim de se decidir sobre a manutenção do bem intangível como

integrante do patrimônio cultural imaterial do país.

A autora conclui em seguida que ambos os princípios caracterizam o registro

como “instrumento de reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial”53.

O Decreto n° 3.551/2000 também estabelece formas de participação popular

no processo. Afinal, o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial surgiu com

um viés democrático, tendo por objetivo possibilitar que setores da sociedade civil

participem, em efetivo, dos processos administrativos. O art. 2° estabelece que a

instauração de um processo de registro pode ser solicitada pelo Ministro de Estado

da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias estaduais,

municipais e do Distrito Federal; sociedades ou associações civis. Em seguida, o §

3° do art. 3° possibilita que a instrução do processo de registro seja feita por

entidade pública ou privada que detenha conhecimentos específicos sobre a

matéria.

O §2° do art. 1° do Decreto n° 3.551/2000 previu dois requisitos que devem

ocorrer concomitantemente para se efetuar o registro de um bem intangível: “A

inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade

histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a

formação da sociedade brasileira”.

51 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 19.

52 Idem. 53 Idem.

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49

Importante destacar, entretanto, que o Decreto, ao exigir que o bem tenha

“relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade

brasileira”, foi além do que previu a Constituição Federal. Afinal, o caput do art. 216

consta que o patrimônio cultural deve ser portador de “referência à identidade, à

ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, não

havendo necessidade da relevância nacional. Deste modo, o requisito da relevância

nacional constante no decreto deve ser auferido nos termos do que propõe a Carta

Constitucional. Ou seja, em relação aos grupos formadores da nação brasileira,

integrantes de um país culturalmente diverso.

O requisito da continuidade histórica do patrimônio intangível nos reporta à

ideia de transformação do bem cultural ao longo das gerações. Devem ser bens de

caráter intergeracional, de modo a que sejam passíveis de registro aqueles que

guardem uma relação com o passado, sejam praticados no tempo presente e

tenham perspectiva de se manter no futuro.

Verifica-se que não houve previsão no Decreto n° 3.551/2000 a respeito do

tempo pretérito mínimo exigido para se concluir pela continuidade histórica de um

determinado bem que se pretende registrar. Cabe aos profissionais responsáveis

(antropólogos, historiadores, etc.) resolverem essa questão junto às populações

interessadas. Deste modo, há aqui uma discordância em relação à posição de

Machado que entende que para tanto seria melhor buscar uma interpretação

comparativa com o art. 7° do Decreto, que prevê o prazo de pelo menos dez anos

quando se trata de revalidação do título54.

Após a inscrição de um bem cultural em um dos livros de registro, a

continuidade histórica em relação à manutenção da prática cultural e sua

perspectiva futura será analisada pelo IPHAN mediante avaliações periódicas, ao

54 “O tempo pretérito de vida do bem cultural não está definido no decreto e nem em outro documento. Ficaria, então, sujeito à opinião de cada funcionário e conselheiro do IPHAN? Aparentemente, a resposta é afirmativa. Contudo, pode-se tentar uma interpretação comparativa em matéria de escala temporal, olhando-se o art. 7° do Decreto 3.551/2000. Neste artigo está estabelecido que a cada 10 anos será feita uma reavaliação do bem cultural, para se definir a revalidação do título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.” MACHADO. Op. cit. P. 1033.

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50

menos a cada dez anos, conforme previsto no art. 7° do Decreto55. Cabe ao órgão

verificar se a prática cultural se mantém viva, isto é, se é merecedora de continuar

com o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”. Nos casos em que não há

revalidação, o § único do art. 7° prevê que o registro será mantido como referência

cultural de seu tempo.

A avaliação deve levar em conta as alterações que podem ter ocorrido no

lapso temporal com o bem registrado, isso por causa do caráter vivo e dinâmico

dessas manifestações culturais. Porém, essas mudanças não podem

descaracterizar o bem que foi objeto de registro. Deve-se referir apenas às aspectos

marginais, permanecendo os elementos básicos, principais, identificadores.

Obviamente, não cabe fazer nova apreciação sobre a relevância do bem cultural,

pois isso já foi decidido quando da inscrição em um dos livros de registro.

Diante dessas considerações, conclui-se que o registro tem natureza

preventiva, pois busca a manutenção e a continuidade histórica dos bens culturais

imateriais. Por se tratar um instrumento que visa preservar as manifestações

culturais a fim de que essas se mantenham vivas e não sejam esquecidas, a ele

caberá orientar as políticas públicas em relação aos incentivos para a continuidade

histórica de uma determinada prática cultural.

Márcia Sant’Anna elucida os vários efeitos do registro:

Os efeitos do registro são vários. Em primeiro lugar, fica instituída a

obrigação pública de documentar e acompanhar a dinâmica das

manifestações culturais registradas. Em segundo lugar, promove-se, com o

ato de inscrição, o reconhecimento da importância desses bens e sua

valorização, mediante a concessão do título do Patrimônio Cultural do Brasil

e a implementação, em parcerias com entidades públicas e privadas, de

ações de promoção e divulgação. Em terceiro, se estabelece a manutenção,

pelo Iphan, de banco de dados sobre os bens registrados abertos ao

público; e, por fim, se favorece a transmissão e a continuidade das

manifestações registradas mediante a identificação de ações de apoio, no

âmbito do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Além desses efeitos,

o registro ensejará a realização de inventário nacional de referência cultural 55 “O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para decidir sobre a revalidação do título de "Patrimônio Cultural do Brasil".

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51

que permitirá o mapeamento dessas manifestações no território nacional,

fornecendo dados para o desenvolvimento de uma política nacional de

registro e valorização apoiada em sólida base de conhecimentos”56.

Deste modo, o registro é importante para se traçar uma política pública

adequada ao reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial. O art. 8° do

citado Decreto inclusive institui um “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”,

para que seja implementada uma política específica de inventário, referenciamento e

valorização do patrimônio cultural intangível.

Atualmente já foram registradas pelo IPHAN as seguintes expressões

culturais do patrimônio intangível (dados atualizados em abril de 2012):

Livro de Registro dos Saberes: a) Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro;

b) Modo de fazer Viola-de-Cocho; c) Ofício dos Mestres de Capoeira; d) Ofício de

Sineiro; e) Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das

serras da Canastra e do Salitre/ Alto de Paranaíba; f) Ofício das Baianas de Acarajé;

g) Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina

Pastora/SE; h) Ofício das Paneleiras de Goiabeira; i) Saberes e Práticas Associados

ao modo de fazer Bonecas Karajá.

Livro de Registro das Celebrações: a) Círio de Nossa Senhora de Nazaré; b)

Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão; c) Festa do Divino Espírito

Santo de Pirenópolis/GO; d) Feira de Sant’Ana de Caicó/RN; e) Ritual Yaokwa do

povo indígena Enawene Nawe.

Livro de Registro das Formas de Expressão: a) Arte Kusiwa – pintura corporal

e gráfica Wajãpi; b) Frevo; c) Jongo no Sudeste; d) Matrizes do Samba no Rio de

Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo; e) Samba de Roda do

Recôncavo Baiano; f) Tambor de Crioula do Maranhão; g) Roda de Capoeira; h)

Toque dos Sinos em Minas Gerais tendo como referência São João del Rey e as

cidades e Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Sabará, Serro e

Tiradentes; i) Ritxòkò: Expressão Artística e Cosmológica do Povo de Karajá.

56 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 21.

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52

Livro de Registro dos Lugares: a) Cachoeira de Iauaretê – Lugar Sagrado dos

Povos Indígenas dos rios Uaupés e Papuri; b) Feira de Caruaru.

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53

Capítulo 3. Bem cultural

O presente capítulo tem por escopo aprofundar o estudo do que seja o “bem

cultural”, identificando suas principais características e as analisando. Constatou-se

que os aspectos que se destacam são o ambiental, o difuso e o fato de pertencer a

uma categoria de bens de interesse público, que não se relaciona com a dicotomia

bens públicos versus bens privados.

3.1. Bem cultural como bem ambiental Feitas as considerações sobre o conceito de patrimônio cultural imaterial na

Constituição Federal de 1988 e sobre os instrumentos legais a eles aplicáveis, cabe

indagar sobre a natureza do bem cultural, se ele pode ou não ser considerado como

um bem ambiental e quais as suas principais características.

Atualmente, a maioria da doutrina especializada em Direito Ambiental entende

que a Constituição Federal adotou uma concepção unitária de meio ambiente.

Considera como bem ambiental os bens naturais e artificiais e também os bens

culturais. Nos termos do art. 225 da CF, todos esses bens constituem o meio

ambiente e devem compô-lo para que este seja ecologicamente equilibrado e

proporcione uma qualidade de vida saudável,.

Na doutrina pátria um dos conceitos de meio ambiente mais aceito e

reproduzido é o formulado por José Afonso da Silva na obra Direito Ambiental

Constitucional, o qual adota uma visão unitária. De acordo com o renomado jurista:

O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de

toda a Natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos,

compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais,

o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. 57

Em seguida, ele propõe o seguinte conceito para meio ambiente:

“O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais,

artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida

57 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 20.

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em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção

unitária do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais.” 58

José Afonso elenca três aspectos do meio ambiente, são eles: o artificial, o

cultural e o natural. Ele diferencia o meio ambiente artificial do cultural, pois esse

último tem “um sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”59.

Fiorillo também adota a concepção unitária de meio ambiente e vai além ao

incluir como o quarto aspecto o meio ambiente do trabalho. Ele entende que o

conceito de meio ambiente previsto na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente foi

recepcionado pela Constituição Federal em razão da utilização da expressão “sadia

qualidade” de vida no art. 225. Completa:

Com isso, conclui-se que a definição de meio ambiente é ampla, devendo-

se observar que o legislador optou por trazer um conceito jurídico

indeterminado, a fim de criar um espaço positivo de incidência da norma.

(...)

Primeiramente, cumpre frisar que é unitário o conceito de meio ambiente,

porquanto todo este é regido por inúmeros princípios, diretrizes e objetivos

que compõem a Política Nacional do Meio Ambiente. Não se busca

estabelecer divisões estanques, isolantes, até mesmo porque isso seria um

empecilho à aplicação da efetiva tutela. 60

Edis Milaré também aceita a concepção unitária do meio ambiente e, ao

interpretar a Constituição Federal juntamente com a Lei da Política Nacional do Meio

Ambiente, conclui que:

Para o Direito brasileiro, portanto, são elementos do meio ambiente, além

daqueles tradicionais, como o ar, a água e o solo, também a biosfera, esta

com claro conteúdo relacional (e, por isso mesmo, flexível). Temos, em

todos eles, a representação do meio ambiente natural. Além disso, vamos

encontrar uma série de bens culturais e históricos, que também se inserem

58 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 20.

59 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 21. 60 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 72, 73.

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55

entre os recursos ambientais, como meio ambiente artificial ou humano,

integrado ou associado ao patrimônio natural61.

Carlos Frederico Marés também entende que o meio ambiente é integrado

pela natureza e pelas modificações introduzidas pelo homem:

O meio ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um ponto de vista

humanista, compreende a natureza e as modificações que nela vem

introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente é composto pela terra,

a água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os

elementos subjetivos e evocativos, como a beleza da paisagem ou a

lembrança do passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da

passagem de seres humanos. Desta forma, para compreender o meio

ambiente é tão importante a montanha, como a evocação mística que dela

faça o povo.

Alguns destes elementos existem independentes da ação do homem e os

chamamos de meio ambiente natural; outros são frutos da sua intervenção

e os chamamos de meio ambiente cultural. 62

Na legislação brasileira, o conceito de meio ambiente foi dado pelo art. 3°,

inciso I da Lei n° 6.938/1981 que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente,

o citado dispositivo prevê que meio ambiente é “o conjunto de condições, leis,

influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e

rege a vida em todas as suas formas”. É uma definição restrita de meio ambiente ao

adotar somente o aspecto natural, ela foi recepcionada pela Lei Maior por não colidir

com os dispositivos constitucionais ambientais. Contudo, é uma definição parcial já

que não inclui os aspectos artificiais e culturais.

As opiniões da doutrina especializada acima expostas nos parecem acertadas

ao acolherem a visão unitária do meio ambiente, a qual está de acordo com uma

interpretação sistemática e integradora da Lei Maior, bem como com a concepção

holística de meio ambiente. A Constituição Federal quis que a tutela ambiental não

61 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. A Gestão Ambiental em foco. 7ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 143. 62 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15.

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56

se restringisse somente aos recursos naturais, mas alcançasse também os

elementos artificiais e culturais.

Deste modo, tem-se o bem ambiental como gênero, do qual o bem natural, o

bem artificial e o bem cultural são espécies. Porém, essas espécies de bens jamais

devem ser vistas como partes isoladas ou estanques, mas como as partes de um

conjunto que se integram, de um todo, que é o meio ambiente ecologicamente

equilibrado.

A divisão do meio ambiente em diversos aspectos ou categorias é meramente

para fins didáticos e operacionais, pois com isso se destaca uma especial qualidade

de um bem e se possibilita um melhor tratamento jurídico, uma tutela mais eficaz e

que leve em conta as peculiaridades e particularidades de cada um.

A atual Constituição Federal ao assegurar o equilíbrio ecológico do meio

ambiente garante a manutenção e continuidade da vida humana e, mais,

proporciona aos indivíduos condições de vida digna, de modo que o artigo 225

instituiu em prol dos indivíduos um direito fundamental. Embora este não seja

explícito por não estar expresso no art. 5° da Carta Magna, trata-se de um direito

fundamental implícito por força do §2° do art. 5° ao possibilitar meios para a

concretização do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF).

Outro ponto relevante para o estudo das relações entre o bem ambiental e

bem cultural é o caráter intergeracional. A solidariedade entre as gerações foi

expressamente prevista no caput do art. 225 da Constituição Federal, que impôs a

todos o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as

presentes e futuras gerações. Apesar da previsão expressa no texto constitucional,

exatamente no capítulo dedicado ao meio ambiente, esse princípio ainda tem sido

pouco explorado pela doutrina nacional.

O princípio da solidariedade intergeracional foi incluído em na Constituição

Federal seguido a tendência de documentos internacionais que a precederam.

Especificamente, ele constou nos princípios 1 e 2 da Carta de Estocolmo de 1972

(ONU), os quais impuseram ao homem o dever de preservar o meio ambiente para

as presentes e futuras gerações. Em seguida, em 1987, novamente foi incluído no

documento “Nosso Futuro Comum” (ONU), oportunidade em que foi intimamente

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57

relacionado ao desenvolvimento sustentável, que assim foi definido: “o

desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer as

capacidades das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”.

Machado aborda a solidariedade entre gerações quando trata do princípio do

acesso equitativo aos recursos naturais. Explica que os “bens que integram o meio

ambiente planetário, como água, ar, sol e solo, devem satisfazer as necessidades

comuns de todos os habitantes da Terra”63. Em seguida acrescenta que a “equidade

no acesso aos recursos ambientais deve ser enfocada não só com relação à

localização espacial dos usuários atuais, como em relação aos usuários potenciais

das gerações vindouras”64.

O citado autor também ressalta a solidariedade entre gerações quando define

patrimônio cultural, ressaltando a importância da geração presente em preservá-lo

para as gerações futuras:

O conceito de patrimônio está ligado a um conjunto de bens que foi

transmitido para a geração presente. O patrimônio cultural representa o

trabalho a criatividade, a espiritualidade e as crenças, o cotidiano e o

extraordinário de gerações anteriores, diante do qual a geração presente

terá que emitir um juízo de valor, o que quererá conservar, modificar ou até

demolir. Esse patrimônio é recebido sem mérito da geração que o recebe,

mas não continuará a existir sem seu apoio. O patrimônio cultural dever ser

fruído pela geração presente, sem prejudicar a possibilidade de fruição da

geração futura65.

O princípio da equidade intergeracional ao dispor que gerações ainda sequer

nascidas são igualmente detentora de direitos ambientais prevê algo à primeira vista

impensável aos sistemas jurídicos, salvo pela tutela dos direitos dos nascituros.

Marchesan se socorre a James Nickel quando enfrenta essa questão:

Convém lembrar, não sem a ajuda de Nickel, que os fundamentos que

embasam a defesa dos direitos das futuras populações são os mesmos que

63 Op. cit. P. 66,67. 64 Op. cit. P. 68,69. 65 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 .ª Ed. São Paulo: Malheiros,

2011. P. 1023.

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norteiam a justiça para as pessoas que hoje habitam o planeta. Em ambos

os casos, a ideia base é que humanos são iguais em seus reclamos

espirituais e devem tratar uns aos outros equanimente no tocante à

apropriação de recursos 66.

Esse princípio, apesar de não constar expressamente nos artigos 215 e 216

da Constituição, deve ser aplicado aos bens culturais, afinal ele é a base da

proteção do patrimônio cultural imaterial. Não é possível preservar expressões

culturais, conhecimentos, técnicas, modos de fazer criar e viver sem que haja a

transmissão entre gerações. Essas formas vivas de culturas somente assim

permanecerão se forem assimiladas pelas gerações vindouras, a qual será a

depositária da cultura dos seus antepassados. De acordo com Marchesan “É na

dimensão cultural que o princípio da equidade intergeracional se apresenta com toda

sua plenitude, porquanto uma sociedade humana não pode sobreviver sem a

transmissão cultural de uma para outra geração”67.

Tendo em conta as considerações acima, não resta dúvida de que o bem

cultural tomado como bem ambiental é, portanto, essencial à qualidade de vida do

ser humano e sua preservação é fundamental para a manutenção do equilíbrio

ecológico dos ecossistemas. A finalidade última dessa preservação é criar condições

de vida digna tanto para os indivíduos que serão diretamente por ela beneficiados

como para toda a coletividade. Essa essencialidade reside no fato de que a

salvaguarda da cultura de um povo permite a preservação da sua memória e sua

continuidade histórica. A diversidade cultural em um país somente existe se os

diferentes grupos que o compõem puderem manter e cultivar sua própria cultura ao

longo das gerações, não importando se essas culturas remetam ou não aos padrões

da nacionalidade.

3.2. Bem cultural como bem de interesse público Outra questão relevante ao presente estudo é o especial interesse que

qualifica os bens culturais (espécie de bem ambiental) e a relação dos mesmos

estabelecem frente à tradicional divisão civilista de bens públicos e bens privados.

66 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A Tutela do Patrimônio Cultural sob o enfoque do Direito Ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. P. 165. 67 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Op. cit. P. 163.

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59

Os bens jurídicos são aqueles passíveis de valoração pelo Direito e que

podem servir de objeto de uma relação jurídica, portanto podem ter ou não valor

econômico. Deste modo, os bens ambientais e os bens culturais são bens jurídicos e

podem ser classificados como públicos ou privados dependendo da titularidade do

bem. Por exemplo: uma obra de arte pode pertencer a uma coleção particular ou a

um museu público, um prédio histórico tombado pode ter como proprietário um

particular ou um órgão público, entre outros.

Isto é, o bem cultural, independentemente de sua dominialidade pública ou

privada, é qualificado por um interesse público. “Bem de interesse público” é uma

uma nova categoria de bens estabelecida pela doutrina especializada com o objetivo

de superar a tradicional dicotomia entre o bem público e o bem privado, prevista no

Código Civil de 1917 e reiterada no novo Código em 2002.

De acordo com José Afonso da Silva, os bens culturais estão sujeitos a um

regime jurídico especial68 a que podem ser submetidos tantos bens públicos como

os privados. Eles seriam considerados pela doutrina como “bens de interesse

público” e acrescenta que nesta categoria especial:

(...) se inserem tantos os bens pertencentes a entidades públicas como os

bens dos sujeitos privados subordinados a uma particular disciplina para a

consecução de um fim público, uma espécie de propriedade funcionalizada.

O que dá natureza especial a esses bens é precisamente o valor cultural

neles impregnado69.

Na concepção de Marés70, os bens ambientais (naturais ou culturais) são

bens de interesse público, por serem portadores do interesse que torna seu caráter

público diferente em relação a outros bens:

Todos os bens, materialmente considerados, sejam ambientais ou não, são

públicos ou privados. Os ambientais, porém, independente de serem

públicos ou privados, revestem-se de um interesse que os faz terem um

caráter público diferente. A diferença está em que, seja a propriedade

68 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 154. 69 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 154. 70 Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15. P. 23.

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pública ou particular, os direitos sobre esses bens são exercidos com

limitações e restrições, tendo em vista o interesse público, coletivo, nela

existente. O interesse público é, neste caso, o reconhecimento coletivo de

que o bem cultural deve ser preservado71.

Assim, ao classificar um bem cultural como “bem de interesse público” o que

se pretende é identificar o elemento que diferencia esses bens dos demais. Esse

diferencial é o valor cultural que os permeia, que é de interesse do Poder Público e

de toda a coletividade. Portanto, a categoria não altera o regime civil dos bens

públicos ou privados, mas impõe o dever de proteção aos bens culturais, de modo

tal que toda a coletividade passa a ter direitos e obrigações sobre tais bens. Nesta

toada, percebe-se que o esse interesse público que qualifica os bens culturais está

intimamente ligado a outra característica: a titularidade difusa.

Já foi visto que todo bem cultural possui um valor que lhe dá sentido e, tal

como previsto no art. 216 CF, esse valor concerne à referência cultural que ele deve

portar em relação a um grupo formador da identidade nacional. Sendo assim, a

proteção do bem cultural interessa a uma determinada coletividade e também a todo

povo brasileiro, pois esse bem contribui para manutenção da diversidade cultural no

país. Ademais, a Constituição Federal no §1° do art. 216 impôs ao Poder Público,

com colaboração da comunidade, o dever de proteção do patrimônio cultural.

Nos dizeres de José Afonso da Silva: “A essência do bem cultural consiste na

sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto

material e um valor que lhe dá sentido. Por isso se diz que o ser do bem cultural é

ser um sentido.”72 Os interesses e direitos da coletividade recaem sobre o caráter

intangível, imaterial do bem cultural, isto é, sobre o especial sentido que eles têm

para os indivíduos, para os diversos grupos sociais e para o povo brasileiro, por isso

são bens difusos.

Nos dizeres de José Afonso da Silva, “a essência do bem cultural consiste na

sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto

material e um valor que lhe dá sentido. Por isso se diz que o ser do bem cultural é 71 Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15.. P. 22.

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61

ser um sentido”73. Os interesses e direitos da coletividade recaem sobre o caráter

intangível, imaterial do bem cultural, isto é, sobre o especial sentido que eles têm

para os indivíduos, para os diversos grupos sociais e para o povo brasileiro, por isso

são bens difusos.

Marés bem explica esse fenômeno:

Na realidade, sobre estes bens nasce um novo direito, que se sobrepõe ao

antigo direito individual já existente. O bem como que se divide em um lado

material, físico, que pode ser aproveitado pelo exercício de um direito

individual, e outro, imaterial, que é apropriado por toda coletividade, de

forma difusa, que passa a ter direitos ou no mínimo interesse sobre ela.

Como estas partes ou lados são inseparáveis, os direitos, ou interesses

coletivos sobre uma delas necessariamente se comunicam à outra. 74

3.3. Bem cultural como bem difuso Dado que a titularidade difusa do bem cultural é constatada e reforçada

quando se tem em conta que se está diante de uma espécie de bem ambiental,

integrante do meio ambiente, de uso comum do povo (art. 225 da CF e inciso I do

art. 2° da LPNMA) e essencial à sadia qualidade de vida, estes bens devem ser

fruídos não somente em benefício de seu proprietário, mas de toda a coletividade,

preservando-os também para as futuras gerações.

Os bens ambientais, passíveis de apropriação pública ou privada, além da

função econômica a que são destinados, devem cumprir uma função

socioambiental. José Afonso explica que “o proprietário, seja pessoa pública ou

particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer porque

ela não integra a sua disponibilidade”75.

A norma do art. 225 da CF ao estabelecer que todos têm direito ao meio

ambiente ecologicamente equilibrado, não se refere a uma pessoa individualmente,

mas a uma coletividade de pessoas indefinidas, o que revela o caráter

transindividual desses bens. De acordo com Fiorillo:

73 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 26.

74 Op. cit. P. 23. 75 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 84.

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62

O bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica

constitucional mais relevante ser ESSENCIAL À SADIA QUALIDADE DE

VIDA, sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser

desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais76.

(itálico e maiúsculas no original)

Por sua importância para a sadia qualidade de vida, bem como sua

titularidade difusa, Marés se refere a eles como “bens socioambientais”. De acordo

com este autor são bens que não podem ser divididos entre os titulares, eles não se

confundem com aqueles bens que possuem vários proprietários individuais.

Acrescenta que, ainda que a coisa seja indivisa, eles não pertencem a ninguém

especial, mas a toda coletividade. Veja-se:

Os bens socioambientais são todos aqueles que adquirem essencialidade

para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e de

todas as culturas humanas (sociodiversidade). Assim, os bens ambientais

podem ser naturais ou culturais, ou se melhor podemos dizer, a razão da

preservação há de ser predominantemente natural ou cultural se tem como

finalidade o bio ou a sociodiversidade, ou a ambos, numa interação

necessária entre o ser humano e o ambiente em que vive77.

Deste modo, a Constituição Federal de 1988 inovou em relação ao sistema

anterior ao prever os bens difusos, ou seja, uma nova classe de bens que não se

enquadra na classificação de bens públicos ou privados. Esses bens têm como

característica a indivisibilidade e a transindividualidade, pois pertencem a pessoas

indeterminadas. A diferença dos bens difusos em relação aos bens públicos é a

titularidade, pois estes pertencem aos entes públicos.

A previsão constitucional para os bens difusos encontra-se explicitamente no

art. 129, inciso III, que estabelece como função institucional do Ministério Público a

defesa dos interesses difusos e coletivos por meio de ação civil pública. Ademais, é

possível identificar outros dispositivos constitucionais que previram direitos de

natureza difusa, como exemplo, o próprio art. 225 que dispõe que todos têm direito

76 FIORILLO. Op. cit. P. 179. 77 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 38.

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ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como os artigos que tratam do

direito à educação, à cultura, à saúde, entre outros.

Os direitos difusos vieram a ter tratamento constitucional em um momento

histórico em que os direitos das coletividades ganhavam cada vez mais projeção e

reconhecimento, pois em várias situações uma ameaça de lesão ou uma lesão não

afetavam somente a esfera de um indivíduo, mas de pessoas indeterminadas ou de

toda uma coletividade. Foi uma ruptura com o modelo civilista da modernidade

construído inteiramente sobre o individualismo, mais especificamente, sobre a

propriedade privada e a autonomia da vontade.

A sociedade contemporânea, assentada sob o modelo capitalista de

produção, é caracterizada pela intensificação da industrialização, produção em larga

escala, automatização dos meios de produção, interdependência entre os países,

concentração populacional nos centros urbanos, aumento do poder das mídias,

entre outros, consequentemente, esse novo delineamento social teve reflexos no

âmbito jurídico. Foi necessário elaborar um sistema que superasse o modelo

individualista e atendesse às necessidades das coletividades e de pessoas

indeterminadas ligadas entre si por motivos circunstanciais. Foi diante desse

contexto histórico e social que os interesses e direitos difusos foram inseridos na

Constituição Federal de 1988.

O ordenamento jurídico brasileiro já contava com alguns diplomas legais que

tratavam dos direitos coletivos, tais como: o Decreto-Lei n° 25/1937 que instituiu o

tombamento dos bens culturais, o Código Florestal (Lei n° 4.771/1965), a Lei da

Ação Popular (Lei n° 4.717/65) e a Lei de Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/1985),

mas foi apenas com a promulgação da Constituição Federal em 1988 que os direitos

difusos e coletivos passaram a ter visibilidade.

Na esfera infraconstitucional, dois anos mais tarde foi aprovado o Código de

Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) para regulamentar os direitos e deveres nas

relações de consumo e prever normas processuais. Esse diploma legal inaugurou

um sistema processual de tutela coletiva, o qual foi completado por institutos

processuais já existentes, como a Ação Popular e a Ação Civil Pública.

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64

Portanto, hoje contamos com um sistema processual que coloca à disposição

da coletividade lesada ou ameaçada de lesão um “microssitema da tutela coletiva”,

que consiste em um conjunto de dispositivos processuais para a defesa dos

interesses e direitos coletivos lato sensu. Esse microssistema é composto

especialmente pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei de Ação Civil

Pública, que estão interligados e se comunicam.

De acordo com os autores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:

A ação coletiva para a tutela de direitos difusos e coletivos é basicamente

regida pelo conjunto formado pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código

de Defesa do Consumidor. Em verdade, não se trata de uma única ação,

mas sim de um conjunto aberto de ações, de que se pode lançar mão

sempre que se apresentem adequadas para a tutela desses direitos. Nesse

sentido, claramente estabelece o art. 83 do CDC que, para a defesa dos

direitos difusos e coletivos, são admissíveis todas as espécies de ações

capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela78.

O Código de Defesa do Consumidor dispôs no art. 81 que a defesa coletiva

poderá ser exercida quando estivermos diante de direitos difusos, coletivos (em

sentido estrito) e individuais homogêneos. A diferenciação entre essas categorias

reside no tipo de interesse ou direito a ser tutelado por uma ação coletiva.

Como visto, os direitos difusos (inciso I) eles são indivisíveis e

transindividuais, ou seja, não há como individualizar os sujeitos, os titulares desse

direito são pessoas indeterminadas e indetermináveis ligadas por circunstâncias de

fato. Os direitos coletivos (inciso II), por sua vez, também são indivisíveis e

transindividuais, mas tem como sujeito um grupo, uma categoria ou uma classe de

pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.

Nesta categoria é possível identificar um grupo de determinados de sujeitos de

direito, podendo esse grupo ser ou não organizado.

Por fim, os direitos individuais homogêneos (inciso III) são divisíveis e

decorrentes de uma origem comum. Ao contrário do que ocorre com os direitos

difusos e coletivos, aqui tutela-se direitos individuais, que podem ser atribuídos a

78 MARINONI, Luiz. Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 2, Processo de Conhecimento, 6ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P. 733.

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sujeitos determinados. Porém, por serem direitos idênticos pertencentes a diversas

pessoas, em razão da massificação das relações sociais, admite-se a tutela coletiva

para uma melhor prestação da atividade jurisdicional, evitando decisões conflitantes.

Essa classificação prevista no Código de Defesa do Consumidor foi

estruturada para a tutela dos direitos e interesses coletivos em juízo, desse modo, a

distinção entre essas categorias deve ser feita levando-se em conta o interesse

posto em juízo e o pedido formulado em uma ação coletiva. De acordo com

Consuelo Yoshida: “Não é possível proceder-se à correta distinção entre os direitos

e interesses metaindividuais sem se atentar para o tipo de pretensão material e da

tutela jurisdicional pretendida”79.

Feitas essas considerações não há dúvidas de que o bem cultural é um bem

difuso, pois é indivisível e interessa à toda sociedade brasileira conservá-lo e

preservá-lo para as presentes e futuras gerações, não sendo possível identificar os

sujeitos que serão beneficiados pela ação coletiva (transindividual).

Contudo, sob a ótica processual, se admitirmos que a pretensão material ou a

tutela pretendida se refere apenas a uma coletividade determinada ou passível de

determinação é possível enquadrar o bem cultural também na categoria dos

interesses ou direitos coletivos (em sentido estrito). No entanto, a finalidade última

da tutela será sempre a proteção do patrimônio cultural dos povos que compartilham

a construção da nação dos brasileiros, que, no limite, interessam a todos, mesmo

que indiretamente.

Assim, face ao exposto, não há dúvidas de que o bem cultural é um bem

difuso, de modo que quando estivermos diante de lesão ou ameaça de lesão aos

interesses ou direitos culturais deve-se lançar mão das regras processuais próprias

para a defesa dos interesses e direitos metaindividuais. Conclui-se, em síntese, que

o bem cultural é bem ambiental, de titularidade difusa e de interesse público ao

apresentar o valor cultural como elemento diferencial.

79 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Direitos e Interesses Individuais Homogêneos: A “Origem Comum” e a Complexidade da Causa de Pedir. Implicações na legitimidade Ad Causam ativa e no interesse de agir do Ministério Público. Revista da Faculdade de Direito PUC-SP, ano 1, 1º. Semestre-2001. Método: São Paulo, 2001. P. 109.

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Capítulo 4. Socioambientalismo e Biodiversidade

Este capítulo se destina ao estudo do socioambientalismo no Brasil,

considerando o disposto na Constituição Federal de 1988. Adentrar neste tema é

essencial para a presente pesquisa, uma vez que, como visto, o socioambientalismo

contém, em si, tanto a sociodiversidade e quanto a biodiversidade, ambas

relacionadas com o patrimônio cultural imaterial. No item subsequente, foi abordada

a biodiversidade, tendo em conta principalmente o previsto na Convenção sobre

Diversidade Biológica (1992) da ONU.

4.1. Socioambientalismo Já foi abordado anteriormente que a Constituição Federal de 1988 foi

formulada após o fim do regime militar, e que buscou atender aos anseios de uma

sociedade civil farta de autoritarismo, e ansiosa por abertura e redemocratização.

Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, diversos grupos e representantes

dos mais variados setores da sociedade civil colaboraram nas discussões e estudos,

de modo que foi possível incluir no texto parte das propostas e reivindicações, tais

como as relativas ao ambiente e aos direitos dos povos indígenas.

Com a promulgação do documento em 1988, o país passou a dispor de uma

Carta Constitucional democrática, pluralista, cidadã e com um extenso rol de

direitos. Além dos já consagrados direitos básicos do homem, foram incluídos os

direitos de terceira geração, como exemplo: o direito ao meio ambiente sadio e

equilibrado, os direitos do consumidor, os direitos indígenas e de outras minorias, a

função social e ambiental da propriedade privada, entre outros.

Essa Carta Constitucional foi a primeira na história do Brasil a dedicar um

capítulo inteiro à proteção do meio ambiente, considerado como um direito

fundamental. Além das disposições constantes no art. 225, outros artigos também

abordam a questão ambiental em temas específicos, na política urbana, no

desenvolvimento agrário, nas questões indígenas, como princípio geral da ordem

econômica, entre outros.

Inovou também ao prever pela primeira vez a solidariedade intergeracional

para com o meio ambiente, isto é, todos (Estado e coletividade) devem preservá-lo

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67

para as presentes e futuras gerações. O citado artigo dispõe que: “Todos têm direito

ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o

dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

As disposições constitucionais relativas ao meio ambiente, incluindo seu

caráter intergeracional, foram inspiradas no conceito de ecodesenvolvimento

consolidado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em

1972, em Estocolmo; bem como no conceito de desenvolvimento sustentável

previsto no documento intitulado “Nosso futuro comum”, publicado em 1987 pela

Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU.

Durante as polêmicas reuniões da Conferência de Estocolmo, como uma via

alternativa às propostas de desenvolvimento econômico alheio às questões

ambientais e sociais, o canadense Maurice Strong propôs um modelo de

desenvolvimento em que todas essas questões deviam ser conjuntamente

consideradas, o que chamou de ecodesenvolvimento. Posteriormente, o economista

Ignacy Sachs ampliou e difundiu esse conceito abordando questões éticas, culturais

e a solidariedade entre as gerações.

Anos mais tarde, em 1983, a ONU criou a Comissão Mundial sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela Primeira Ministra da Noruega Gro

Harlem Brundtland. Como resultado foi publicado em 1987 o documento “Nosso

futuro comum”, também conhecido por “Relatório Brundtland”.

Essa Comissão teve como desafio analisar a situação ambiental face às

críticas ao modelo econômico de desenvolvimento praticado nas nações

industrializadas e repetido nos países periféricos, em que os recursos naturais eram

utilizados desconsiderando-se a capacidade de renovação e absorção dos

ecossistemas.

Ao final dos estudos, a Comissão propôs que o desenvolvimento econômico

fosse integrado à questão ambiental e promovesse a equidade social, vindo a

formular o termo desenvolvimento sustentável, assim definido no citado documento:

“o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer as

capacidades das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades.”

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68

Portanto, foi sob a influência dos conceitos de ecodesenvolvimento e

desenvolvimento sustentável que foi promulgada a Constituição Federal de 1988,

com o objetivo de se estabelecer uma sociedade pautada pela liberdade, pela

solidariedade, pela justiça social, pela defesa do meio ambiente, pela diversidade

cultural, entre outros.

A Constituição Federal previu o princípio do desenvolvimento sustentável

tanto no art. 225, como no art. 170. O art. 225 o tratou ao prever que todos têm

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e devem preservá-lo para as

presentes e futuras gerações, por sua vez no art. 170 consta que a ordem

econômica tem por finalidade assegurar a todos a existência digna, conforme os

ditames da justiça social, e dentre os princípios a serem observados está a defesa

do meio ambiente (inciso IV). Esse inciso sofreu alteração pela EC n° 42/2003, a

qual lhe acrescentou o seguinte texto: “inclusive mediante tratamento diferenciado

conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de

elaboração e prestação;”.

O objetivo deste princípio foi aliar a questão ambiental e ao desenvolvimento

econômico, promovendo a equidade social. Tendo em conta a concepção unitária de

meio ambiente e sua abordagem holística, para a efetivação do princípio do

desenvolvimento sustentável a questão cultural também deve ser analisada e

sopesada nesta equação. Isto é, as políticas públicas de desenvolvimento

econômico devem abordar tanto a preservação dos recursos naturais como a

salvaguarda do patrimônio cultural, seja material ou imaterial.

O patrimônio cultural imaterial são as práticas, representações, expressões,

conhecimentos e técnicas que as comunidades e grupos reconhecem como

integrante do seu patrimônio cultural, portanto, ao se salvaguardá-lo se está,

concomitantemente, garantindo condições de vida digna aos detentores dessas

expressões intangíveis e possibilitando a manutenção das formas de cultura que os

nutre e os identifica perante o restante da sociedade. Consequentemente, assegura-

se a diversidade cultural.

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69

Assim, o desenvolvimento econômico e social para ser sustentável deve

incluir em sua pauta a proteção às diferentes formas de expressão cultural do seu

povo.

Foi, portanto, em um contexto de reabertura política e sob a influência de

novas ideias e concepções, tais como as propostas pelo desenvolvimento

sustentável, que “novos direitos” passaram a constar na Constituição Federal e

minorias, antes marginalizadas, puderam ser contempladas. Como exemplo, aos

povos indígenas foi dedicado um capítulo próprio, assegurando-lhes direitos

coletivos, o direito à diferença cultural (manter a própria língua, crenças, tradições e

costumes) e os direitos originários sobre as terras tradicionalmente por eles

ocupadas; às comunidades remanescentes de quilombos foi reconhecida a

propriedade definitiva das terras tradicionalmente por elas ocupadas.

A interpretação sistemática desses “novos direitos” constitucionais possibilitou

o desenvolvimento do socioambientalismo no Brasil. Trata-se de um modelo que

rompe com o padrão anterior em que o individual é valorizado em detrimento do

coletivo e propõe um novo paradigma, que concilia os direitos sociais e culturais com

os direitos ambientais. Porém, não se trata de uma simples soma desses direitos. A

proposta socioambiental vai além, ao buscar a igualdade e a justiça social por meio

da promoção conjunta da sustentabilidade ambiental e da sustentabilidade

sociocultural. Isto é, alia a biodiversidade à sociodiversidade.

Ressalta-se que é a inclusão das questões sociais que difere o ambientalismo

tradicional do socioambientalismo. Este é uma vertente mais moderna e atual

daquele, pois objetiva uma maior aplicabilidade e efetividade aos direitos

fundamentais ao incorporar os direitos sociais e os culturais na pauta ambiental. O

ambientalismo tem uma visão mais restrita, pois objetiva somente a defesa e

conservação dos recursos naturais, não levando em conta as demais questões.

Outro evento que influenciou significativamente a consolidação do

socioambientalismo no Brasil foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento em 1992 no Rio de Janeiro (Eco-92), que contou com

a participação de 179 países. Foi este o momento em que as questões ambientais

foram colocadas no centro das discussões tanto na esfera nacional como

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internacional, oportunidade em que foram assinados os mais importantes acordos

internacionais em matéria de meio ambiente. São eles: Convenção do Clima;

Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB); Agenda 21; Declaração do Rio sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento; Declaração de Princípios para um Consenso

Global sobre Manejo, Conservação e Desenvolvimento Sustentável de todos os

tipos de Florestas.

A Agenda 21 foi o documento que formulou as bases para o planejamento de

sociedades sustentáveis em diferentes localidades. Nele já é possível perceber a

aliança da sustentabilidade ambiental com a social, pois além da conservação dos

recursos naturais, foram traçados objetivos e metas sociais a serem perseguidos,

tais como a erradicação da pobreza, a proteção da saúde, a segurança alimentar, o

respeito às diferenças culturais, o fortalecimento do papel das populações indígenas,

entre outros.

O socioambientalismo no Brasil surgiu como uma via para atender às

pressões e às demandas sociais das minorias marginalizadas e não contempladas

pelas políticas públicas, como os povos indígenas, as comunidades quilombolas e

as populações tradicionais, nas quais também se enquadram os seringueiros, os

castanheiros, pescadores artesanais, entre muitos outros grupos e coletividades.

No entendimento de Juliana Santilli:

O sociambientalismo brasileiro – tal como o reconhecemos e identificamos –

nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas

entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do

socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de

redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e

consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a

realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. Fortaleceu-se – com

o ambientalismo em geral – nos anos 90, principalmente depois da

realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, no Rio

de Janeiro, em 1992 (Eco-92), quando os conceitos socioambientais

passaram claramente a influenciar a edição de normas legais. 80

80 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2007. P. 31.

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Um movimento social notadamente marcante na história do

socioambientalismo no Brasil foi a luta das populações tradicionais, especialmente

dos seringueiros, juntamente com as populações indígenas no estado do Acre ao

longo da década de 80. Eles se uniram e formaram a Aliança dos Povos da Floresta,

sob a liderança de Chico Mendes, para se oporem ao modelo de desenvolvimento

que privilegiava a extração indiscriminada de recursos naturais, a devastação da

mata para a plantação de pastagens e desenvolvimento da agropecuária, o qual

colocava em risco a cultura, o modo de vida e até a sobrevivência desses povos

amazônicos.

Os ativistas se uniram à essas populações e passaram a apoiá-las na defesa

de seus direitos perante o Estado e o poder econômico. Afinal, neste momento,

muitos dos grupos ligados à proteção do meio ambiente já tinham a percepção de

que a manutenção dessas populações nos locais habitualmente por elas ocupados,

juntamente com a salvaguarda de sua cultura, era uma maneira de se proteger a

floresta e a biodiversidade.

No caso dos seringueiros a atividade por eles desenvolvida passou a ser

considerada importante à manutenção da biodiversidade amazônica, pois eles

tinham conhecimentos tradicionais de manejo ambiental, de modo que a atividade

de extração do látex não era predatória, pois respeitava os limites e a capacidade de

renovação do ecossistema local. Para garantirem seus direitos eles passaram a

reivindicar perante o Estado a criação de reservas extrativistas, com vistas a ter

direitos coletivos sob as terras por eles ocupadas, o que lhes possibilitaria continuar

com a atividade econômica que vinham desenvolvendo há anos. A criação desses

espaços especialmente protegidos “passou a ser considerado por cientistas e

formuladores de políticas públicas como uma via de desenvolvimento sustentável e

socialmente equitativo para a Amazônia”.81

Portanto, os socioambientalistas acreditam que as políticas públicas somente

serão efetivas e sustentáveis se levarem em conta as demandas e os contextos

socioculturais, ou seja, vão além da simples conservação e preservação dos

recursos naturais. Essas políticas, ao envolver as comunidades e povos detentores

81 SANTILLI, Juliana. Op. cit. P. 33.

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de conhecimentos tradicionais, protegem ao mesmo tempo a biodiversidade e a

sociodiversidade, além de possibilitarem a repartição justa dos benefícios trazidos

pelas atividades por elas desempenhadas. O sociambientalismo, deste modo, é uma

forma de realização da sustentabilidade.

Juliana Santilli sintetiza essas idéias em brilhante trecho transcrito a seguir:

O socioambientalismo foi construído com base na idéia de que as políticas

públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais,

detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. Mais do

que isso, desenvolveu-se com base na concepção de que, em um país

pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de

desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente

ambiental – ou seja, a sustentabilidade das espécies, ecossistemas e

processos ecológicos – como também a sustentabilidade social – ou seja,

deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades

sociais e promover valores como justiça social e equidade. Além disso, o

novo paradigma de desenvolvimento preconizado pelo socioambientalismo

deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do

processo democrático no país, com ampla participação social na gestão

ambiental.82

Sob este enfoque socioambiental, a preservação e o respeito às culturas dos

diferentes grupos formadores do país são um meio de realização do

desenvolvimento sustentável. Assegurar a diversidade cultural implica não somente

cumprir com este princípio constitucional, mas também em proteger o meio ambiente

e a biodiversidade. De acordo com Carlos Frederico Marés “não há nada melhor

para preservar o ambiente do que uma cultura a ele adequada”83.

O respeito à diversidade cultural dos diferentes povos formadores da

identidade nacional é um princípio constitucional que deve orientar as relações do

Estado tanto do ponto de vista interno como do internacional, também as relações

entre os particulares devem ser pautadas por este princípio.

82 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2007. P. 34. 83 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 25.

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Os estados fundados na democracia respeitam as diferenças culturais de

seus próprios povos e também dos demais Estados-Nação. Porém, a adoção do

princípio da diversidade cultural pelo Brasil, tal como delineado na Constituição

Federal de 1988, não significa apenas respeitar e aceitar essas diferenças, mas

garantir e promover a existência e a convivência das diversas formas de cultura

formadoras da identidade nacional. Não é um princípio cujo conteúdo contém

apenas uma abstenção ou uma não interferência por parte do Estado, mas sim um

princípio que implica em uma conduta positiva, uma meta a ser alcançada.

Nas sociedades contemporâneas constata-se o fenômeno da massificação

das relações sociais, bem como a imposição e homogeneização dos padrões de

conduta, os quais são ditados pelo sistema econômico capitalista, pautado pela

acumulação de capital e regras mercadológicas predatórias. Portanto, se está diante

de um modelo econômico que busca eliminar o pluralismo e as diferenças culturais,

as formas de cultura que são preservadas e incentivadas são aquelas que são

comercializáveis e geram lucro ao mercado.

Nesse contexto é imprescindível que o Estado atue de forma positiva,

formulando e implementando políticas públicas que tenham por escopo resguardar e

promover as diversas formas de expressões culturais dentro de seu território. Essa

prestação estatal deve recair justamente sobre as formas de culturas ameaçadas, as

quais definitivamente não são aquelas que expressam a cultura oficial e dominante,

mas aquelas que pertencem às minorias e aos grupos vulneráveis do ponto de vista

econômico, como exemplo: os indígenas e os afro-brasileiros.

Na atual Carta Constitucional são vários os dispositivos que preveem o citado

princípio, o art. 4° dispõe que as relações internacionais brasileiras devem ser

regidas pelo princípio da autodeterminação dos povos (inciso III) e pelo repúdio ao

racismo (inciso VIII), no parágrafo único dispõe que “A República Federativa do

Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da

América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de

nações.”. Na Seção referente à Educação consta previsão no art. 210 que no

conteúdo mínimo do ensino fundamental deve-ser assegurar o respeito aos valores

culturais, artísticos, nacionais e regionais. O §2° do citado artigo inovou e rompeu

com a tradição assimilacionista ao assegurar aos indígenas a utilização de suas

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línguas maternas e de seus próprios processos de aprendizagem na educação. O

art. 215 prevê que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos

culturais, devendo apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações

culturais. O §3° deste artigo trata do estabelecimento do Plano Nacional de Cultura,

o qual deve ser conduzido considerando a “valorização da diversidade étnica e

regional” (inciso V). O art. 216, já abordado anteriormente, prevê que o patrimônio

cultural nacional é constituído pelos bens que portem referência à identidade, à ação

e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Isto é,

introduz a noção de referência cultural, de modo que não apenas a cultura oficial é

reconhecida como integrante deste patrimônio, mas também outras culturas

tradicionais, como os indígenas, afrodescendentes, imigrantes etc. Por fim, o art.

231 assegura aos índios o direito de permanecer com sua própria cultura ao prever

que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,

crenças e tradições, (...)”

Além das disposições constitucionais, o Brasil é signatário de duas

Convenções da UNESCO referentes à diversidade cultural, a Convenção para a

Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 (a qual ratificou Declaração Universal

da UNESCO sobre a Diversidade Cultural de 2001) e a Convenção sobre a Proteção

da Diversidade das Expressões Culturais de 2005. Já foi dito anteriormente que o

texto da Convenção de 2005 é anterior ao da Convenção de 2003, porém aquele

somente foi aprovado dois anos mais tarde.

A Declaração Universal sobre Diversidade Cultural de 2002 logo no art. 1

considera a diversidade cultural tão necessária ao gênero humano quanto a

biodiversidade é essencial para a natureza, constituindo patrimônio comum da

humanidade e devendo ser reconhecida e consolidada em benefício das futuras

gerações. Deste modo, essa Declaração coloca no mesmo grau de importância para

a humanidade a diversidade cultural e a diversidade biológica. Ademais, o mesmo

texto as considera como fatores de desenvolvimento, não apenas econômico, “mas

também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e

espiritual satisfatória” (art. 3).

A definição de diversidade cultural para a UNESCO encontra-se na citada

Convenção de 2005, de acordo com esse documento:

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“Diversidade cultural” refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as

culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais

expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A

diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas

quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da

humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também

através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e

fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e

tecnologias empregados. (Art. 4, 1)

Ademais, essa Convenção estabelece que a diversidade cultural é condição

essencial ao desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e

futuras e um dos seus principais motores. Também prevê a necessidade de

incorporar a cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento

nacionais e internacionais.

Importante para o presente estudo é que a Convenção de 2005 reconhece a

importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza cultural e meio de

realização do desenvolvimento sustentável. No texto da convenção tais

conhecimentos são considerados como “fonte de riqueza material e imaterial, e, em

particular, dos sistemas de conhecimento das populações indígenas, e sua

contribuição positiva para o desenvolvimento sustentável, assim como a

necessidade de assegurar sua adequada proteção e promoção”.

A Convenção de 2003 que dispõe sobre a salvaguarda do patrimônio imaterial

tem objeto mais específico. Logo nas considerações iniciais tal documento

reconhece a “importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade

cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”. Em seguida destaca-se o

essencial papel de comunidades como as indígenas, grupos e até de indivíduos “na

produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial,

assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana”.

Tanto a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural quanto as duas

Convenções da UNESCO analisadas vão ao encontro das bases do

socioambientalismo o Brasil, pois consideraram a proteção e a promoção da

diversidade cultural como um dos elementos fundamentais à concretização do

desenvolvimento sustentável.

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Mais especificamente, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio

Cultural Imaterial (2003) da UNESCO relacionou o desenvolvimento sustentável com

o patrimônio cultural imaterial, dispondo que este é considerado como fonte de

diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável. Em seguida, ao

defini-lo, estabeleceu que somente o patrimônio cultural imaterial que promova o

desenvolvimento sustentável deve ser levado em conta (art. 2, 1). Na Convenção

sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) o

princípio do desenvolvimento sustentável foi mencionado em dez dispositivos. Esse

documento considerou a diversidade cultural como um dos principais motores do

desenvolvimento sustentável e ressaltou a necessidade de se integrar a cultura ao

desenvolvimento econômico para conseguir sustentabilidade.

Assegurar a diversidade cultural nos moldes propostos pelo

socioambientalismo possibilita, em especial, a realização do ditame constitucional

que dispõe sobre a proteção dos bens culturais de natureza intangível (art. 216 CF).

Isso porque o foco principal dessa proteção não é recai sobre os bens culturais

materiais, mas sim sobre as expressões culturais e os processos de produção de

cultura e conhecimento no âmbito dessas diversas comunidades e grupos. Protege-

se, sobretudo, os processos culturais, a cultura como algo vivo e dinâmico, que é

constantemente criada e recriada ao longo das gerações.

Deste modo, ao assegurar que essas comunidades e grupos permaneçam

nos territórios tradicionalmente por eles ocupados vivendo de acordo com seus

hábitos, costumes, línguas e praticando os processos culturais por eles

desenvolvidos para a garantia da própria sobrevivência permite-lhes a continuidade

de suas existências e, consequentemente, desses processos e expressões culturais.

A necessidade de se aliar a preservação da biodiversidade à sociodiversidade

como via de concretização do desenvolvimento sustentável já pode ser verificada na

legislação nacional, especialmente na Lei n° 9.985/2000 que instituiu o Sistema

Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).

O projeto de lei inicialmente elaborado para a criação de espaços

especialmente protegidos adotou o enfoque preservacionista e conservacionista,

tinha como preocupação central e essencial a proteção dos recursos naturais e dos

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ecossistemas, priorizando as unidades de proteção integral, nos moldes feitos nos

Estados Unidos.

De acordo com Juliana Santilli:

O projeto de lei encaminhado ao Congresso pelo presidente Fernando

Collor de Mello em 1992 adotava uma orientação claramente

preservacionista, inspirada em um modelo de unidade de conservação

preocupado unicamente com o valor das espécies e ecossistemas e com a

perda da biodiversidade em si, sem atentar para as exigências e

necessidades humanas concretas, e sem nenhuma referência à perda para

a qualidade de vida das pessoas.84

Ao longo do processo de tramitação desta Lei no Congresso Nacional foi

apresentada proposta de substitutivo pelo Deputado Fábio Feldmann e,

posteriormente, algumas modificações pelo Deputado Fernando Gabeira, com o que

foi possível aprovar uma lei para a criação dos espaços especialmente protegidos

que contemplasse também o aspecto social e cultural, incluindo a questão das

comunidades locais e das populações tradicionais.

A nova perspectiva adotada consta já nos objetivos da Lei n° 9.985/2000 que

no art. 4°, inc. XIII prevê: “proteger os recursos naturais necessários à subsistência

de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua

cultura e promovendo-as social e economicamente.” Ademais, formam inseridos

meios de participação das comunidades locais e tradicionais na criação e gestão das

unidades de conservação. Mais especificamente, esta lei previu dentre suas

diretrizes (art. 5°) a participação da sociedade na política nacional das unidades de

conservação (inciso II); a efetiva participação das populações locais na criação,

implantação e gestão das unidades de conservação (inciso III); que seja dado

incentivo às populações locais e às organizações privadas a estabelecerem e

administrarem unidades de conservação dentro do sistema nacional (inciso V). Além

destes incisos, a lei conta com outras previsões referentes à participação social, tal

como o art. 5°, IV e 42, §2°.

84 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. P. 112, 113.

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As unidades de conservação criadas pela Lei do SNUC se dividem em

unidades de proteção integral e unidades de uso sustentável (art. 7°), dentre as

segundas consta a previsão de criação da Reserva Extrativista 85 e da Reserva de

Desenvolvimento Sustentável 86 (art. 14, inc. IV e VI. art. 18 e art. 20). Ambas criam

espaços protegidos de forma especial nos quais se assegura às populações

tradicionais a continuidade nos territórios tradicionalmente por elas ocupados e o

desempenho de suas atividades, o que garante o uso sustentável dos recursos

naturais e a preservação de suas culturas.

4.2. Biodiversidade Tendo em vista a íntima relação da sociodiversidade com a biodiversidade

para o presente estudo, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre a

proteção da biodiversidade no âmbito interno e internacional. Essa abordagem será

feita tendo em conta o aspecto jurídico e algumas questões econômicas, pois foi

somente nas últimas décadas que os países do hemisfério sul, detentores de

recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, passaram a ter a real dimensão da

importância desses recursos e da enorme riqueza que os mesmos poderiam gerar,

especialmente para as indústrias de biotecnologia, como as que produzem fármacos

e cosméticos.

85 “Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.

§ 1o A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei. (...)”

86 “Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica.

§ 1o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações. (...)”

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Inicialmente, oportuno constar que o Brasil é um país megadiverso, pois

possui a maior diversidade biológica de flora e fauna do planeta, estima-se em cerca

de 20%. De acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica:

Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas

as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres,

marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de

que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies,

entre espécies e de ecossistemas.

Internamente, a proteção da biodiversidade constou expressamente no art.

225, §1°, II da Constituição Federal de 1988, o qual incumbiu ao Poder Público, para

a efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, “preservar a

diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades

dedicadas à pesquisa e à manipulação do material genético.”.

Antes da Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro

em 1992, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais eram considerados

patrimônio da humanidade, com a adesão de diversos países ao documento

internacional foi reconhecido que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus

próprios recursos biológicos e que os benefícios decorrentes da utilização dos

conhecimentos, inovações e práticas das populações indígenas e comunidades

locais devem ser repartidos equitativamente, em conformidade com a legislação

nacional.

Porém, foi apenas com a ratificação da Convenção sobre Diversidade

Biológica em 1994, através do Decreto Legislativo n° 02/02/94, que esse documento

internacional veio a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, trazendo importantes

questões a serem legisladas internamente para a preservação da biodiversidade e

também para regular a relação com os entes nacionais e internacionais interessados

em acessar o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais associados das

populações tradicionais.

Com a Convenção sobre Diversidade Biológica, a biodiversidade foi

reconhecida como essencial à vida no planeta, devendo os recursos ambientais

serem preservados para as presentes e futuras gerações. Além disso, a

biodiversidade passou a ser valorizada também do ponto de vista econômico, o que

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despertou o interesse de vários entes para as questões a ela relativas, tais como: as

empresas interessadas em acessar patrimônio genético e detentoras de tecnologia,

as ONGs que atuam na esfera ambiental, os indígenas, as populações tradicionais,

as entidades internacionais, entre outros.

A Convenção sobre Diversidade Biológica trouxe à baila um novo paradigma

em relação aos povos indígenas e populações tradicionais, ao considerar que esses

grupos estão integrados aos ecossistemas e que, inclusive, contribuem para a

conservação e preservação da diversidade biológica. Isso constou expressamente

do art. 8, j da CDB quando menciona que:

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e

manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e

populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à

conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar

sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores

desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição

equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,

inovações e práticas;

Apesar de atualmente ainda haver muita controvérsia acerca do uso

sustentável dos recursos ambientais pelos povos autóctones e populações

tradicionais, existem vários estudos que demonstram que a maior percentagem de

diversidade biológica está localiza em Terras Indígenas.

Ana Valéria Araújo cita dados extraídos de pesquisa realizada sobre o tema:

Há diversos estudos que atestam serem os povos indígenas e as

populações tradicionais, em grande parte, responsáveis pela diversidade

biológica de nossos ecossistemas, produto da interação e do manejo da

natureza nos moldes tradicionais. Apenas para que se tenha uma ideia, o

seminário “Consulta de Macapá”, realizado em 1999 no âmbito de projeto

“Avaliação e Identificação de Ações Prioritárias para a Conservação,

Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade da

Amazônia Brasileira”, concluiu que nada menos do que 40% das áreas de

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extrema importância biológica e 36% das de muito alta importância biológica

na Amazônia estão inseridas em terras indígenas87.

Porém, se por um lado esse documento reconhece o valor dos

conhecimentos, das inovações e das práticas das populações tradicionais relevantes

à conservação e a utilização da biodiversidade, por outro, ele incentiva o uso destes

saberes mediante uma repartição justa dos benefícios com eles obtidos. Tendo em

conta essa relação, a autora Eliane Moreira entende que a Convenção tem um

caráter “ambivalente” ao reconhecer a importância dos saberes tradicionais e,

concomitantemente, reafirmar o sistema de propriedade intelectual:

É certo, porém, que devemos estar atentos ao caráter “ambivalente” da

CDB, nas palavras de Aubertin e Boisvert (1988, p. 17). Essas autoras

corretamente alertam para a necessidade de analisar com certa objetividade

o contexto da convenção, pois ao tempo em que se propõe a valorizar o

trabalho de conservação desempenhado pelos povos tradicionais, ratifica o

sistema de propriedade intelectual, ao criar mecanismos para sua expansão 88.

A repartição justa e equitativa dos benefícios conseguidos com a utilização

dos conhecimentos tradicionais é um dos três objetivos previstos no artigo 1 da

CDB, juntamente com a conservação da biodiversidade e da utilização sustentável

dos recursos.

Outro ponto a ser destacado na CDB é o respeito à soberania dos Estados

(art. 15, 1 89), pois cabe a eles legislar internamente sobre a repartição de benefícios

oriundos do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais das

comunidades locais. Neste ponto este documento de direito internacional

87 ARAÚJO, Ana Valéria. Acesso a recursos genéticos e proteção aos conhecimentos tradicionais associados. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 86. 88 Moreira, Eliane. Conhecimento Tradicional e a Proteção. In: T&C Amazônia, Ano V, Número 11, Junho, 2007. Disponível em: http://www.fucapi.br/tec/imagens/revistas/completa_revista_tc11_final.pdf, Acesso em 06/04/2012. P. 39. 89 “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.”

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estabeleceu objetivos e traçou diretrizes, trazendo noções genéricas que necessitam

de regulamentação interna.

Atualmente, a acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos

tradicionais associados e o modo como deverá ser feita a repartição dos benefícios

foram regulamentados no Brasil pela Medida Provisória n° 2.186-16/2001,

atualmente em vigor em decorrência da EC n° 32/2001.

A citada MP é muito criticada por não ter dispensado um tratamento jurídico

eficaz à proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais

associados, especialmente no que tange à proteção dos direitos de propriedade

intelectual coletiva dos indígenas e das populações tradicionais sobre esses

recursos e conhecimentos. Isso ocorreu porque a MP foi editada às pressas, sem

que houvesse qualquer debate no Congresso Nacional e com a sociedade civil90.

À época da edição da MP, estavam em discussão no Congresso Nacional

algumas propostas para a regulamentação, por meio de lei federal, do acesso aos

recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, todas essas

discussões foram desconsideradas pelo Governo Federal. O primeiro projeto de lei

sobre o tema foi apresentado em 1995 pela senadora Marina Silva e recebeu o n°

306/1995, hoje encontra-se arquivado.

O argumento para a edição desta MP foi que a temática precisava

urgentemente de regulamentação após a repercussão negativa perante a opinião

pública e a indignação de setores do governo, como o Ministério do Meio Ambiente,

do contrato de bioprospecção celebrado entre a organização social Bioamazônia91 e

a transnacional da indústria farmacêutica Novartis. Isso fez com que fez o Governo 90 “A MP 2.186, que regulamenta o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado no país , ignorou pelo menos cinco anos de discussões já havidas no Congresso Nacional e as divergências ainda pendentes sobre temas polêmicos que envolvem o assunto, estabelecendo de modo unilateral e pouco democrático regras de conduta que afetam interesses de amplos setores da sociedade brasileira, desde povos indígenas e populações tradicionais, passando por proprietários rurais, pela comunidade científica, indústrias e empresários do ramo do biotecnologia.” ARAÚJO, Ana Valéria. Acesso a recursos genéticos e proteção aos conhecimentos tradicionais associados. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 91. 91 A Bioamazônia é uma Organização Social (O.S.) criada nos termos da Lei Federal n° 9.637/1998, que formalizou um contrato de gestão com o Ministério do Meio Ambiente para colaborar com o PROBEM – Programa Brasileira de Ecologia Molecular para Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia.

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Federal o suspendesse e editasse a MP, a qual ficou conhecida como MP da

Novartis92 93.

Neste contrato de bioprospecção fora acordado que a empresa suíça teria

acesso a “cerca de 10 mil microorganismos da Amazônia e a detenção exclusiva das

patentes dos eventuais produtos desenvolvidos com base nesses organismos, a

Bioamazônia receberia 4 milhões de dólares, em treinamento e transferência de

tecnologia” 94.

Deste modo, apesar dessa matéria não ter sido regulamentada por lei,

frustrando as discussões no Congresso Nacional e com a sociedade civil, a

aplicação da citada MP deve ser feita buscando uma interpretação que efetive e

maximize os direitos conferidos aos indígenas e populações tradicionais, com o fito

de proteger os conhecimentos tradicionais e também a biodiversidade existente nos

territórios ocupados por esses grupos.

92 PEDRO, Antônio Fernando Pinheiro. “Biodiversidade Brasileira e os contratos de Bioprospecção (O caso Bioamazônia – Novartis)”. Disponível em: http://pinheiropedro.com.br/site/artigos/biodiversidade-brasileira-e-os-contratos-de-bioprospeccao-o-caso-bioamazonia-novartis/. Acesso em 10/04/2012 93 “Acesso e Repartição de Benefícios (ARB) no Brasil: a nova fórmula jurídica para legalizar a biopirataria.” Disponível em: http://www.socioambiental.org/coptrix/art_02.html. Acesso em: 10/04/2012.

94 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA, André e BENSUSAN, Nurit (org.) Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70. Acesso em 10/04/2012.

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84

Capítulo 5. Conhecimentos tradicionais e os regimes jurídicos de proteção

Tendo em conta que a relação existente entre as populações tradicionais e

indígenas e a manutenção e conservação da biodiversidade e da sociodiversidade,

no presente capítulo será analisada a proteção jurídica que o ordenamento jurídico

nacional dispensa aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e

aos recursos genéticos presentes nos territórios ocupados por essas populações.

Para o enfrentamento deste tema é imprescindível que se faça algumas

considerações iniciais sobre o conceito e a abrangência dos termos: populações

tradicionais e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

5.1. O conceito de populações tradicionais

Conceituar populações tradicionais é tarefa bastante difícil, tanto do ponto de

vista jurídico como antropológico, trata-se de questão extremamente controvertida e

debatida entre os estudiosos, pois a formulação deste conceito implica em encontrar

um “denominador comum” para se referir a distintos grupos sociais, cada um com

suas próprias características e localizados em diversas partes do território.

As populações tradicionais incluem grupos em sua essência bastante

diversificados, como os indígenas, os quilombolas e as comunidades locais, das

quais como exemplo tem-se os seringueiros, as quebradeiras de cocos, os

babaçueiros, os ribeirinhos, os jangadeiros, entre outros. Isto é, são populações

muito distintas do ponto de vista sociocultural.

Nos documentos legais não há sequer consenso sobre a terminologia para se

referir a esses grupamentos humanos. Por exemplo, a CDB utiliza a expressão

“comunidades locais e povos indígenas”, a Lei do SNUC refere-se a eles como

“populações tradicionais”, já a MP n° 2.186/2001 adota a locução “comunidade

indígena e comunidade local”.

As divergências terminológicas também estão presentes na antropologia, de

acordo com Antônio Carlos Diegues, utilizam-se as expressões “populações

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85

tradicionais”, “comunidades tradicionais”, “culturas tradicionais” e “sociedades

tradicionais”95.

Inicialmente, será analisado o conceito de populações tradicionais do ponto

de vista jurídico, considerando os documentos legais nacionais que o abordam.

Tendo em conta que esse é um termo desenvolvido e formulado pelas ciências

sociais, especialmente a antropologia, faz-se também necessário tecer algumas

considerações sobre essa área de estudo a fim de melhor identificar os principais

elementos que discernem esses grupos humanos dos demais.

O primeiro diploma legal a fazer referência às populações tradicionais foi o

Decreto n° 98.897/1990, que dispôs sobre as reservas extrativistas. Neste

documento não houve formulação de qualquer conceito, ele apenas menciona que

as populações extrativistas fazem exploração auto-sustentável e conservam os

recursos naturais renováveis.

Doze anos após a promulgação da Constituição Federal entrou em vigor a Lei

n° 9.985/2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação

(SNUC). Esta lei tampouco conceituou populações tradicionais, mas acabou por

fazê-lo indiretamente ao mencioná-las em diversos dispositivos legais, tais como: os

objetivos da lei constantes do art. 4°, as diretrizes no art. 5° e naqueles que tratam

das reservas extrativistas e das reservas de desenvolvimento sustentável.

O inciso XIII do art. 4° prevê que o Sistema Nacional de Unidades de

Conservação deve proteger os recursos naturais necessários à subsistência de

populações tradicionais, bem como deve respeitar e valorizar a cultura de cada uma

delas. Por sua vez, o art. 18 ao definir reserva extrativista menciona que é uma área

utilizada por populações tradicionais, as quais têm a subsistência baseada no

extrativismo e, de modo complementar, na agricultura de subsistência e na criação

de animais de pequeno porte, acrescenta que essa unidade tem por objetivo a

proteger os meios de vida e de cultura desses grupos e assegurar o uso sustentável

dos recursos naturais. Já ao instituir a reserva de desenvolvimento sustentável no

art. 20, esta é definida como uma área que abriga populações tradicionais que têm

95 DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 3ª. Ed. São Paulo: Hucitec, 2001. P. 44.

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86

sua existência baseada em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos

naturais desenvolvidos ao longo de gerações, as quais protegem e natureza e

colaboram com a manutenção da biodiversidade.

Nota-se que os modelos de sistemas de conservação previstos na Lei do

SNUC de reserva extrativista e de reserva de desenvolvimento sustentável têm por

princípio básico uma relação simbiótica entre as populações tradicionais e os

recursos naturais, a qual é, ao mesmo tempo, fonte de biodiversidade e de

sociodiversidade.

A partir da análise dos citados dispositivos legais é possível identificar as

características fundamentais das populações tradicionais tal como constou na lei do

SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), são elas: populações com

cultura própria e diferenciada e que subsistem com base em recursos naturais

utilizados de forma sustentável.

Convém ressaltar que o conceito de populações tradicionais constou no texto

da Lei do SNUC aprovado pelo Congresso Nacional, mas o inciso foi vetado pelo

Presidente da República. No dispositivo vetado população tradicional tinha sido

definida no inciso XV do art. 2° como:

grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três

gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo

seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua

subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável;

Nas razões consta que o dispositivo foi vetado por contrariar o interesse

público, alegou-se a excessiva abrangência do conceito, o que prejudicaria a

aplicação da lei para a proteção das populações verdadeiramente tradicionais.

Segue-se a íntegra transcrita: “O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço

de imaginação, caberia toda a população do Brasil.

De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem

continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos

como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades

de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta

para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o

número de gerações não deve ser considerado para definir se a população

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87

é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a

noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o

conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que

alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda,

impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações

verdadeiramente tradicionais.

Sugerimos, por essa razão, o veto ao art. 2o, inciso XV, por contrariar o

interesse público."

O veto foi bem recebido pelos socioambientalistas, especialmente os

preservacionistas que alegavam que a amplitude do conceito poderia desvirtuar os

objetivos da lei. Também agradou aquelas populações tradicionais que teriam

dificuldades em comprovar a permanência mínima de três gerações em uma

localidade, tais como os extrativistas.

Logo em seguida à aprovação da Lei do SNUC, visando regulamentar parte

do que foi ratificado na Convenção sobre a Diversidade Biológica, a Medida

Provisória n° 2.186-16/2001, que trata sobre o acesso ao patrimônio genético e ao

conhecimento tradicional associado, definiu “comunidade local” como:

grupo humano associado, incluindo remanescentes de comunidades de

quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza,

tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que

conserva suas instituições sociais e econômicas. (art. 7°, inc. III).

A definição de “comunidade local”, ao contrário do que consta na Lei do

SNUC, não faz menção à utilização dos recursos naturais de forma sustentável. É

um conceito bastante amplo, no qual se enquadra diversos grupos humanos,

portanto, o que dificulta a aplicação da MP.

Outro documento legal relativamente recente que aborda o conceito de

populações tradicionais é o Decreto n° 6.040/2007, que institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No art. 3°,

inciso I povos e comunidades tradicionais são definidos como:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que

possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam

territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,

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social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,

inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

Nota-se que os conceitos constantes dos dispositivos legais analisados não

são coincidentes, eles se assemelham em vários aspectos. Ressalvada a definição

de “comunidade local” prevista na MP n° 2186/2001, as demais têm em comum o

fato de identificar como populações tradicionais aqueles grupos humanos que

subsistem com base em recursos naturais utilizados de forma sustentável e que têm

uma cultura própria e diferenciada.

Portanto, no conceito jurídico de populações tradicionais alia-se a

sociodiversidade à biodiversidade. De acordo com Juliana Santilli:

O conceito de “populações tradicionais”, desenvolvido pelas ciências sociais

e incorporado ao ordenamento jurídico, só pode ser compreendido com

base na interface entre biodiversidade e sociodiversidade. Entre os

cientistas sociais e ambientais, a categoria “populações tradicionais” já é

relativamente bem aceita e definida.

O reconhecimento da importância do papel desses povos para a preservação

e conservação ambiental fez com que eles passassem a ser vistos como elementos

essenciais nas políticas ambientais pautadas pela sustentabilidade, vindo a ostentar

um status jurídico diferenciado.

Outrossim, convém esclarecer que os índios e os quilombolas possuem status

jurídico diferenciado em relação às populações tradicionais previstas na Lei do

SNUC, porém para a MP n° 2.186/2001 todos esses grupos são considerados como

“comunidade local”.

No caso dos índios, o Capítulo VIII (artigos 231 e 232) da Constituição

Federal é inteiramente dedicado aos direitos desses povos, atualmente esses

dispositivos estão regulamentados pelo Estatuto do Índio (Lei n° 6.001/73). Por sua

vez, o art. 68 do ADCT reconheceu aos remanescentes das comunidades dos

quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva, cabendo ao

Estado a emissão dos respectivos títulos. Esse dispositivo atualmente está

regulamentado pelo Decreto n° 4.887/2003, cuja constitucionalidade está sendo

questionada pela ADI n° 3239 proposta pelo partido dos Democratas, na qual se

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sustenta que a regulamentação deveria ser feita por lei e não por decreto

presidencial, a ação ainda não foi julgada pelo STF.

Apesar de ser possível identificar nos dispositivos legais estudados os

elementos fundamentais que caracterizam esses grupamentos humanos, o conceito

jurídico de populações tradicionais ainda é frágil, assim, faz-se oportuno tecer

algumas considerações sobre esse tema do ponto de vista das ciências sociais.

Em artigo intitulado “Conhecimento Tradicional e a Proteção”, Eliane Moreira

busca identificar as características das populações tradicionais, ou seja, o que

diferencia esses grupos do restante da sociedade. Neste artigo povos indígenas e

quilombolas são considerados populações tradicionais, juntamente com outros

grupos tais como os seringueiros.

Logo de início a autora defende que o critério da ocupação territorial não pode

ser visto como estanque em países como o Brasil, onde são vários os problemas

fundiários, o mais seguro é identificar essas populações através do modo de vida:

o que faz um grupo social ser identificado como tradicional não é a

localidade onde se encontra, (...), mas sim seu modo de vida e suas formas

de estreitar relações com a diversidade biológica, em função de uma

dependência que não precisa ser apenas com fins de subsistência, pode ser

também material, econômica, cultural, religiosa, espiritual, etc96.

Em seguida, a citada autora menciona que no modo de vida dessas

populações um traço essencial e marcante é a relação com a natureza baseada no

uso sustentável dos recursos naturais. Segue-se a íntegra transcrita:

Antônio Carlos Diegues (1998, p. 87), como já referido, reconhece nas

culturas e sociedades tradicionais uma relação estreita com a natureza,

relação essa que “constrói um modo de vida”. A relação em questão, além

de permitir sobrevivência dessas populações, também gera cultura, como

lembra Lígia Simonian (2005, p. 61). “de uma complexidade ímpar e que

inclui estratégias de conservação”.

96 Moreira, Eliane. Conhecimento Tradicional e a Proteção. In: T&C Amazônia, Ano V, Número 11, Junho, 2007. Disponível em: http://www.fucapi.br/tec/imagens/revistas/completa_revista_tc11_final.pdf, Acesso em 06/04/2012. P. 36.

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90

Cada vez mais se reconhece o papel relevante das populações tradicionais

para a conservação e uso sustentável dos recursos naturais. Sarita Albagli

(2005, p. 18) lembra que essas populações possuem conhecimentos,

práticas agrícolas e de subsistência adequadas ao meio em que vivem e

possuem um papel de “guardiães do patrimônio biogenético do planeta”,

mas as sucessivas agressões ao ambiente natural em que vivem têm

conduzido, também, à perda de sua diversidade sociocultural97.

Parece não restar dúvida de que a relação das populações tradicionais com a

natureza deve ser pautada pelo uso sustentável de recursos naturais, razão pela

qual elas são consideradas geradoras e protetoras da biodiversidade. Em razão de

estarem totalmente integradas ao meio ambiente em que vivem são sociedades que

se interessam diretamente pela conservação destes territórios, afinal, se os próprios

habitantes aniquilarem as fontes de recursos naturais presentes nesses espaços

estarão determinando sua própria destruição.

Essas são populações que desenvolvem uma relação profunda com o meio

ambiente em que vivem, elas possuem conhecimentos tradicionais sobre esses

territórios e desenvolvem técnicas de manejo sustentável para neles permanecerem

e proverem o próprio sustento, o peculiar modo de vida de cada um desses grupos

denota uma cultura própria.

Em razão de possuírem cultura própria e diferenciada, as populações

tradicionais compõem a diversidade social e cultural do país. Deste modo, os

saberes, as expressões, as práticas, os conhecimentos desenvolvidos por elas

merecem ser preservados ao longo das gerações, pois integram e compõem o

patrimônio cultural brasileiro, especialmente o imaterial (art. 216 da CF).

Outro conceito importante a ser acrescentado ao presente estudo é o

fornecido pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha na obra Cultura com aspas.

Ela entende que a melhor forma de descrever as populações tradicionais é “em

extensão”, ou seja, “pela simples enumeração dos elementos que as compõem” 98.

No capítulo intitulado “Populações tradicionais e conservação ambiental” ela

97 Idem. P. 36. 98 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 278.

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considera como populações tradicionais os autóctones, os quilombolas e outros

grupamentos humanos. Ao final ela propõe o seguinte conceito:

As populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando

para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública

conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de

técnicas ambientalistas de baixo impacto, formas equitativas de organização

social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas

leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente

reafirmados e reelaborados99.

No conceito proposto pela renomada antropóloga também é possível

identificar claramente a relação do aspecto ambiental, ao se mencionar o uso de

técnicas ambientalistas de baixo impacto, com a questão cultural quando aborda a

importância das formas de organização interna desses grupos e os traços culturais.

5.2. Os conhecimentos tradicionais e as disposições da MP n° 2.186-16/2001 Os povos indígenas e populações tradicionais desenvolvem conhecimentos

tradicionais que podem estar associados ou não a biodiversidade. No primeiro caso,

esses conhecimentos são as práticas individuais ou coletivas dessas populações

que possuem valor real ou potencial ao associado à biodiversidade. Já no segundo

caso, esses conhecimentos podem ser criações artísticas, literárias, lendas, contos,

danças, entre outros.

Atualmente, os pontos mais controvertidos e polêmicos para o sistema

jurídico se referem aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, em

razão da possibilidade que eles têm de gerar riqueza, especialmente para as

indústrias que fazem bioprospecção de recursos genéticos para o desenvolvimento

de produtos, como medicamentos e cosméticos.

De acordo com Eliane Moreira:

O conhecimento tradicional ressalta em interesse aos grandes laboratórios

em face de dois dados principais: a) a certeza da aplicabilidade eficaz da

técnica, posto que testada anos a fio, dentro das populações; b) a redução

99 Idem. P. 300.

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de pelo menos metade do tempo de estudo e pesquisa, o que em dólares

perfaz alguns milhões. 100

Na legislação nacional, os conhecimentos tradicionais que não se referem à

biodiversidade devem ser tutelados pelos instrumentos próprios para a salvaguarda

do patrimônio cultural imaterial, que são o Registro e o Inventário Nacional de

Referências Culturais, que já foram objeto de estudo em capítulo anterior.

Em se tratando de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a

proteção destes se dá nos termos da CDB (ratificada pelo Brasil) e da MP n° 2.186-

16/2001, que disciplinou, dentre outras matérias, o acesso ao patrimônio genético e

aos conhecimentos tradicionais associados.

A Convenção sobre Diversidade Biológica não conceituou o que são os

conhecimentos tradicionais associados, por sua vez a MP n° 2.186-16/2001, no art.

7°, inciso II trouxe a seguinte definição:

II - conhecimento tradicional associado: informação ou prática individual ou

coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou

potencial, associada ao patrimônio genético;

A citada MP veio regulamentar a nível nacional o inciso II do § 1o e o § 4o do

art. 225 da CF, bem como os artigos 1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas

3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Apesar de constar na MP que o conhecimento tradicional pode ser uma

prática individual, a titularidade desse conhecimento pertence à comunidade no qual

ele foi gerado e desenvolvido, é uma titularidade coletiva, de modo que a

autorização para o acesso dever ser dada com o respaldo do grupo. O objetivo foi

incluir na proteção aqueles conhecimentos que não são compartilhados por todos os

membros da comunidade, em razão de serem detidos por apenas um indivíduo (por

exemplo: o pajé) ou por apenas alguns indivíduos, mas que se referem à toda

coletividade e nela estão inseridos. Isso constou expressamente no § único do art.

9°: “Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional

100 MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicioanl a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 105.

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associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda

que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.”

Do ponto de vista antropológico, parte da discussão está justamente em

identificar os titulares dos conhecimentos tradicionais dentro de um grupo ou

comunidade. Afinal, os conhecimentos tradicionais nem sempre são acessados e

compartilhados por todos os componentes, pois podem ter sido desenvolvidos e

aprimorados apenas por parte de seus integrantes. Para ilustrar, os conhecimentos

secretos detidos pelo pajé, também os conhecimentos detidos pelas mulheres

referentes aos métodos anticoncepcionais ou outras práticas relacionadas com o

feminino. Contudo, entendemos que essa discussão tem pouca relevância do ponto

de vista jurídico justamente pelo dispositivo acima citado, que confere à toda

comunidade a titularidade desse conhecimento, trata-se de um modo de proteger e

beneficiar todo o grupo.

Na doutrina ambiental nacional, Edis Milaré, baseado em obras estrangeiras,

define conhecimentos tradicionais associados como:

um conjunto de conhecimentos construídos por um grupo de pessoas

através de gerações que viveram em contacto estreito com a natureza. Isso

inclui um sistema de classificação, uma série de observações empíricas

sobre o meio ambiente local e um sistema de auto-gerenciamento que

administra o uso de recursos101.

Apesar das inúmeras críticas que a MP n° 2.186-16/2001 tem recebido, este

documento normatizou algumas das diretrizes constantes na CDB para o acesso

aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados à

biodiversidade. Ela dispôs sobre a obrigatoriedade das comunidades locais

consentirem com o acesso; a repartição justa e equitativa dos benefícios, a qual

deverá ser feita mediante Contrato de Acesso, Uso e Repartição de Benefícios; criou

o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para aprovar e fiscalizar tais

contratos.

101 MILARÉ, Edis. A Gestão Ambiental em Foco. 6ª. Ed., São Paulo: RT, 2009. P. 597.

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Ademais, a citada MP também garantiu alguns direitos às comunidades locais

e indígenas que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional

associado ao patrimônio genético, os quais constam no art. 9°:

I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as

publicações, utilizações, explorações e divulgações;

II - impedir terceiros não autorizados de:

a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao

conhecimento tradicional associado;

b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou

constituem conhecimento tradicional associado;

III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou

indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de

sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.

Contudo, a MP n° 2.186-16/2001 não tratou da proteção à propriedade

intelectual dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Aliás,

consta inclusive no § 4° do art. 8° que: “§ 4o. A proteção ora instituída não afetará,

prejudicará ou limitará direitos relativos à propriedade intelectual”. Isto é, o objetivo

deste dispositivo foi deixar claro que nenhuma alteração estava sendo feita no

sistema jurídico de proteção à propriedade intelectual.

5.3. Os conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual coletiva Portanto, atualmente o grande debate na área reside em como proteger

juridicamente os direitos intelectuais das populações tradicionais relacionados aos

conhecimentos tradicionais associados, uma vez que esses conhecimentos por

serem gerados de forma essencialmente diversa dos saberes científicos não se

encaixam em nenhum dos instrumentos legais existentes para a proteção da

propriedade intelectual.

A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha na obra Cultura com Aspas

compara os saberes científicos e os saberes tradicionais e conclui que eles são

diferentes em vários aspectos, não apenas pelos resultados; “o conhecimento

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95

científico se afirma, por definição, como verdade absoluta”102, enquanto que os

saberes tradicionais são tolerantes eles “acolhem frequentemente com igual

confiança ou ceticismo explicações divergentes, cuja validade entendem seja

puramente local.” 103; os saberes tradicionais possuem diferentes regimes, “há pelo

menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos”104,

enquanto que “existe por hipótese um regime único para o conhecimento científico” 105. O conhecimento científico é hegemônico e os tradicionais não, isso se manifesta

inclusive na linguagem: “quando se diz simplesmente ‘ciência’, ‘ciência tout court,

está se falando de ciência ocidental; para falar de ‘ciência tradicional’, é necessário

acrescentar o adjetivo”106. Em seguida, ela continua a compará-los e se recorre à

clássica obra, O pensamento selvagem [1962], de Lévi-Strauss:

Lévi-Strauss defende que saber tradicional e conhecimento científico

repousam ambos sobre as mesmas operações lógicas e, mais, respondem

ao mesmo apetite de saber. Onde residem então as diferenças patentes em

seus resultados? As diferenças, afirma Lévi-Strauss, provêm dos níveis

estratégicos distintos a que se aplicam. O conhecimento tradicional opera

com unidades perceptuais, o que Goethe defendia contra o iluminismo

vitorioso. Opera com as assim chamadas qualidades segundas, coisas

como cheiros, cores, sabores... No conhecimento científico, em contraste,

acabaram por imperar definitivamente unidades conceituais. A ciência

moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional usa percepções. É

a lógica do conceito em contraste com a lógica das qualidades sensíveis107.

O aparato jurídico para a proteção à propriedade intelectual foi construído

sobre as bases do conhecimento científico, portanto, nele não se encaixam os

conhecimentos tradicionais. Vandana Shiva afirma que “conhecimento e criatividade

foram, todavia, definidos de maneira tão estreita no contexto dos DPI, que a

102 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com Aspas. P. 301.

103 Idem. P. 301. 104 Idem. P. 302. 105 Idem. P. 302. 106 Idem. P. 303. 107 Idem. P. 303.

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criatividade da natureza e dos sistemas de conhecimento não-ocidentais é

totalmente ignorada”108.

O sistema de proteção à propriedade intelectual vigente está fundado no

Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao

Comércio (TRIPS) de 1994, o qual é gerido pela Organização Mundial do Comércio

(OMC). A finalidade é garantir aos inventores ou produtores responsáveis pelas

produções intelectuais o direito de auferir retribuições por suas criações, ainda que

por um tempo determinado. Esse sistema é composto por duas áreas: a)

Propriedade Intelectual (patentes, marcas, desenhos, indicações geográficas,

proteção de cultivares); b) Direitos Autorais (obras literárias e artísticas, cultura

imaterial).

Contudo, nesse sistema não há previsão de reconhecimento de direitos

relacionados à propriedade intelectual para os saberes tradicionais, afinal isso

implicaria em colocar sob a mesma proteção conhecimentos gerados de forma

coletiva e transmitidos ao longo das gerações, ou seja, fundamentalmente diversos

do conhecimento científico. A total ausência de proteção jurídica aos conhecimentos

tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, além de ser um

desrespeito com os indígenas e com as populações tradicionais, facilita a prática da

biopirataria pelos indivíduos e empresas interessadas em acessar o patrimônio

genético e os conhecimentos tradicionais.

Juliana Santilli afirma não haver uma definição jurídica para a biopirataria,

mas entende que:

é relativamente bem aceito o conceito de que a biopirataria é a atividade

que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou

aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a

ambos) em desacordo com os princípios estabelecidos na Convenção sobre

a Diversidade Biológica (CDB), a saber: a soberania dos Estados sobre

seus recursos genéticos e a necessidade de consentimento prévio

fundamentado dos países de origem dos recursos genéticos para as

atividades de acesso, bem como a repartição justa e eqüitativa dos

108 SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001. P. 31.

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benefícios derivados de sua utilização. Quando a atividade envolve

conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas e populações

tradicionais, a CDB estabelece a necessidade de que sua aplicação se dê

mediante a aprovação e a participação de seus detentores e a repartição

dos benefícios com os mesmos109.

Ocorre que no acordo das TRIPS não houve qualquer vinculação ao que foi

previsto na Convenção sobre Diversidade Biológica para a concessão de direitos de

propriedade intelectual, exige-se somente o cumprimento dos requisitos constantes

no acordo para cada um dos modelos. Por exemplo, no caso de concessão de

patentes, que é o modelo que tem maior relação com o objeto deste estudo, deve

ser demonstrado o atendimento dos requisitos constantes no art. 27, que são: a

novidade, a invenção e a aplicação industrial. Não há qualquer controle por parte

dos institutos que analisam os pedidos de patentes sobre o cumprimento dos

princípios previstos na CDB quando no processo inventivo tiver havido acesso de

patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado.

Ademais, os países signatários do citado acordo não podem alterar por meio

de legislação interna as normas para a concessão dos direitos de propriedade

intelectual. Deste modo, quando da análise desses pedidos, os países ricos em

biodiversidade não poderão exigir, sequer internamente, o cumprimento dos

preceitos da CDB e de suas leis quando tiver havido acesso a patrimônio genético

localizado em seu território ou a conhecimento tradicional de seu povo.

Com o objetivo de solucionar essa problemática e proteger os conhecimentos

tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, existe uma corrente

que defende que devem ser feitas adaptações no sistema de propriedade intelectual

vigente, notadamente em relação às patentes, de modo a se incluir na esfera de

proteção também os conhecimentos tradicionais. Propõe, portanto, a propriedade

intelectual coletiva.

A proposta é no sentido de se adequar os modelos atuais às peculiaridades

desses conhecimentos, sem que haja alterações significativas no sistema. Essa

109 SANTILLI, Juliana. Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade: Elementos para a Construção de um Regime Jurídico Sui Generis de Proteção. Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT08/juliana_santilli.pdf. Acesso em 01/04/2012. P. 04.

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vertente tem sido defendida pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual

(OMPI) e, no Brasil, pelo Instituto de Propriedade Industrial (INPI).

Internacionalmente, os conhecimentos tradicionais são tratados, ainda que

indiretamente, no âmbito da OMC e pelo acordo das TRIPS. Os defensores desta

corrente defendem que deve haver uma alteração no acordo mediante uma revisão

do art. 27.3 (b) que se refere às patentes. Contudo, esta questão é muito

controversa, tanto em relação aos termos em que a revisão deve ser feita, como em

relação à posição de alguns países que não admitem qualquer revisão no acordo

para a inclusão dos conhecimentos tradicionais, como é o caso dos Estados Unidos.

O Brasil, por meio do Ministério das Relações Exteriores, propôs a seguinte

revisão para o art. 27 do acordo das TRIPS:

Artigo 27 – TRIPs (tradução livre) 110

Matéria patenteável

1. [...]

2. Os Membros poderão excluir do patenteamento as invenções cuja

exploração comercial em seu território deve ser impedida necessariamente

para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a

saúde ou a vida das pessoas ou dos animais ou para preservar os vegetais,

ou para evitar danos graves ao meio ambiente, sempre que essa exclusão

não se faça meramente porque a exploração esteja proibida por sua

legislação.

3. Os Membros poderão excluir ainda assim do patenteamento:

a) [...];

b) as plantas e os animais exceto os microorganismos, e os procedimentos

essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, que não

sejam procedimentos nãobiológicos ou microbiológicos. Não obstante, os

Membros deverão outorgar proteção a todas as variedades de plantas

mediante patentes, mediante um sistema eficaz sui generis ou mediante

uma combinação entre os dois. As disposições do presente subparágrafo

serão objeto de revisão quatro anos depois da entrada em vigor do Acordo

da OMC.

110 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA, André e BENSUSAN, Nurit (org.) Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70. Acesso em 10/04/2012. P. 206.

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99

Contudo, essa corrente tem sido muito criticada pelos especialistas

(principalmente antropólogos e ambientalistas) tampouco tem sido bem recebida

pelos indígenas e populações tradicionais, afinal apenas efetuar alterações pontuais

no sistema de propriedade intelectual para incluir a proteção dos conhecimentos

tradicionais não parece ser adequado e efetivo para tutelar esses saberes face às

incompatibilidades intrínsecas entre eles e o sistema vigente de propriedade

intelectual.

Exige-se para a concessão de uma patente a comprovação de três requisitos:

a atividade inventiva, a novidade e a aplicação industrial. Contudo, é bastante

complicado demonstrar a existência de novidade quando se está diante dos

conhecimentos tradicionais. Afinal, eles são transmitidos ao longo das gerações,

sendo alterados e reformulados com o decurso de tempo, podendo inclusive serem

compartilhados entre diversos grupos ou comunidades que habitam uma região.

Ainda em relação aos requisitos patentários, nem sempre esses

conhecimentos possuem aplicação industrial direta, em grande parte dos casos as

empresas os acessam para a produção de um produto final, desenvolvido a partir

desses conhecimentos, sendo esse produto que terá aplicabilidade no mercado de

consumo.

Outro empecilho para encaixar os conhecimentos tradicionais no sistema de

propriedade intelectual é que a autoria não é individual e sim plural, são saberes

coletivos. O conhecimento é produzido de modo conjunto e não se refere apenas a

um indivíduo, mas à toda uma coletividade.

Inserir que quando está no grupo há divisões internas sobre a propriedade do

conhecimento - nova complexidade.

Disso decorre também a dificuldade em identificar um interlocutor

responsável pela comunidade, pois esses grupos (comunidades indígenas ou

populações tradicionais) possuem sistemas de representação e liderança próprios,

que obviamente são diferentes daqueles existentes nos sistemas capitalistas.

Mais um impeditivo para se patentear conhecimentos tradicionais é que não

há sentido em protegê-los apenas por um prazo determinado, vindo, após o decurso

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100

do lapso temporal, serem considerados de domínio público. No Brasil, o art. 40 da

Lei n° 9.279/96 prescreveu que a patente de invenção deverá vigorar pelo prazo de

20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo de 15 (quinze) anos, contados

do depósito. Esses conhecimentos se referem à cultura, à identidade, aos modos de

vida desses povos, devendo ser respeitados e preservados para as presentes e para

as futuras gerações.

De acordo com Eliane Moreira:

De fato, os conhecimentos tradicionais jamais caberão na “fôrma” dos

direitos de propriedade intelectual, pois esses se servem à proteção de um

direito gerado em bases e em campos próprios, possuindo fundamentos

ontológicos diferenciados, em verdade, no caso da propriedade intelectual

trata-se de proteger o produto (ou processo), em se tratando de

conhecimento tradicional importa proteger a cultura e seus elementos

circundantes, ainda que possa, subsidiariamente, servir-se de outro

sistema. 111

Por fim, utilizar a expressão “propriedade intelectual coletiva” para denominar

um sistema de salvaguarda dos conhecimentos tradicionais nos remete a uma

inadequação, pois o termo “propriedade” não reflete os processos de produção dos

conhecimentos tradicionais no âmbito das comunidades indígenas e das populações

tradicionais.112.

O direito de propriedade é real e individual. Conforme o art. 1.228 do Código

Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de

reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”, o que

reflete claramente a concepção privatística. Por outro lado, os conhecimentos

111 MOREIRA, Eliane. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus Conhecimentos Associados à Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus cenários de disputa. In: Proteção aos Conhecimentos das Sociedades Tradicionais. BARROS, Benedita da Silva; GARCÉS, Cláudia Leonor López; MOREIRA, Eliane Cristina Pinto; PINHEIRO, Antônio do Socorro Ferreira. (Orgs.) Belém: Museu Paraense Emílio Goedi, Centro Universitário do Pará, 2006. P. 14. 112 “A teoria da adoção da propriedade coletiva esbarrou num sério problema: a força da palavra propriedade, que por inúmeras razões se opõe ontologicamente à noção de proteção de conhecimento tradicional e recursos genéticos.” MOREIRA, Eliane. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicional a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 152.

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tradicionais são coletivos e compartilhados, são bens imateriais fruídos pelos vários

indivíduos pertencentes à coletividade.

Juliana Santilli defende a inadequação da expressão “propriedade intelectual

coletiva” para denominar um sistema de proteção aos conhecimentos tradicionais:

O conceito de propriedade – o direito do proprietário de usar, gozar e dispor

da coisa, e de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua

ou detenha – é excessivamente estreito e limitado para abranger a

complexidade dos processos que geram a inovação, a criatividade e a

inventividade nos contextos culturais em que vivem povos indígenas,

quilombolas e populações tradicionais. No direito ocidental, a propriedade –

tanto sobre bens materiais quanto sobre imateriais - é um direito

essencialmente individual e de conteúdo fortemente econômico e

patrimonial, e, ainda quando se trata de propriedade coletiva ou

condominial, cada co-titular do direito é plenamente identificável 113.

Esse também é o entendimento de Eliane Moreira, conforme trecho abaixo

transcrito:

“A teoria da adoção da propriedade coletiva esbarrou num sério problema: a

força da palavra propriedade, que por inúmeras razões se opõe

ontologicamente à noção de proteção de conhecimento tradicional e

recursos genéticos.

A primeira grande dificuldade é a barreira cultural que existe neste conceito,

porque muitas das comunidades tradicionais não possuem o entendimento

do que seja propriedade, pelo menos da forma como o tem dita “sociedade

civilizada”.114.

5.4. Regime jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais e os direitos intelectuais coletivos

Existe uma segunda corrente que sustenta a elaboração de um sistema

jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais. Aqueles que a

defendem tem preferido a utilização da expressão “direitos intelectuais coletivos”, a

qual não se vincula à ideia de propriedade e de individualismo, refletindo a aspecto 113 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. P. 213. 114 MOREIRA, Eliane. Idem. P. 152.

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coletivo dos conhecimentos tradicionais. Essa expressão “foi trazida pelas mãos de

Vandana Shiva (Índia), Tewolde Egziabher (Etiópia) e Gurdial Nijar (Malásia)” 115.

A elaboração desse regime tem sido defendida por renomados estudiosos

contemporâneos, dentre eles: Manuela Carneiro da Cunha, Juliana Santilli, Eliane

Moreira, Nurit Bensusan, Fernando Mathias, Vandana Shiva, Ana Valéria Araújo,

João Mitia Antunha Barbosa, Diana Pombo e Lúcia Vásquez.

Esse sistema “sui generis” tem como proposta proteger, além dos direitos

intelectuais, todo o processo de geração, conservação e transmissão dos

conhecimentos tradicionais, ou seja, os povos, os territórios por eles ocupados, as

formas de expressão cultural etc. Isto é, trata-se de um sistema moldado sobre as

bases do socioambientalismo, que trabalha com a dualidade: biodiversidade e

sociodiversidade.

Oferecer proteção apenas aos direitos de propriedade intelectual dessas

coletividades implica em somente tutelar os conhecimentos tradicionais sob o

aspecto econômico e mercadológico, o que não condiz com os princípios da

dignidade da pessoa humana, da proteção ao meio ambiente, da proteção ao

patrimônio cultural e da diversidade cultural, todos expressos na Constituição

Federal. Deste modo, tutelar os direitos intelectuais dos indígenas e populações

tradicionais levando em conta o caráter coletivo é um dos elementos desse regime

jurídico “sui generis”116.

Portanto, a proposta de construção de um regime jurídico “sui generis” vai

além da criação mecanismos jurídicos aptos à proteção da propriedade intelectual

dos conhecimentos tradicionais. Busca-se defender a cultura dos diferentes povos

formadores da identidade nacional, em conformidade com o previsto no art. 216 da

Constituição Federal. Os conhecimentos tradicionais são bens culturais imateriais

que integram o patrimônio cultural brasileiro.

115 MOREIRA, Eliane. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicioanl a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 157. 116 O artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem prevê que: “Todos têm o direito à proteção dos interesses morais e materiais resultante de qualquer obra científica, literária ou artística de que sejam autores.”

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103

A diferença essencial entre as duas correntes reside no fato de que a primeira

(propriedade intelectual coletiva) tem uma visão individualista, privatística e

mercadológica, pois busca tutelar os conhecimentos tradicionais por meio de

adaptações no instituto das patentes; enquanto que a segunda (direitos intelectuais

coletivos) objetiva salvaguardar os conhecimentos tradicionais mediante a

construção de um sistema coletivo pautado pelos princípios da preservação cultural,

da diversidade cultural e da proteção ambiental.

Eliane Moreira assim disserta sobre a perspectiva cultural para a proteção dos

conhecimentos tradicionais:

Sob essa perspectiva deve-se refletir acerca de um aparato jurídico que

permita a afirmação dos conhecimentos tradicionais não como direitos

proprietários, mas como direitos patrimoniais. Deslocando-se o debate do

campo do utilitarismo econômico para o campo da defesa do patrimônio

cultural, identificando seus componentes, não como bens economicamente

apreciáveis, mas como bens culturais socialmente relevantes, a partir de

uma nova concepção jurídica de patrimônio, já abraçada pelo regime

constitucional brasileiro, (...) 117.

A proteção aos conhecimentos tradicionais das populações tradicionais nos

moldes previstos pela Convenção de Diversidade Biológica (especialmente o art. 8°,

“j”), regulamentada no Brasil pela MP n° 2.186-16/2001, integra o microssistema de

tutela aos direitos coletivos em sentido lato. Deste modo, as disposições legais para

a defesa dessa classe de direitos podem ser aplicadas para a proteção desses

conhecimentos, como exemplo: o ajuizamento de ação civil pública.

À luz de tudo que já foi exposto não há dúvidas de que os conhecimentos

tradicionais são bens culturais e ostentam as qualidades abordadas no Capítulo 03

do presente estudo, pois tem qualidade de bem ambiental, são de interesse público

e de caráter coletivo/difuso.

Mais especificamente, os conhecimentos tradicionais são bens culturais

imateriais pertencentes ao patrimônio cultural brasileiro. Tendo em conta a

117 MOREIRA, Eliane. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus Conhecimentos Associados à Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus cenários de disputa. P. 18.

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concepção unitária do meio ambiente são qualificados, consequentemente, como

bens ambientais.

Ademais, são bens de interesse público, que devem ser preservados para as

presentes e futuras gerações por portarem referência cultural em relação aos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa qualidade não se

relaciona com a dicotomia bens públicos e bens privados.

O caráter coletivo e difuso de tais bens é facilmente perceptível, pois têm

como titulares coletividades, que neste caso são as populações tradicionais e

indígenas. Não são bens passíveis de serem individualizados. O elemento difuso

reside no fato de portarem referência cultural nos termos do art. 216 da CF e

integrarem o patrimônio cultural do país, por isso também são classificáveis como

bens difusos, já que preservá-los interessa não apenas à essas coletividades, mas a

todo o povo brasileiro.

Nurit Bensusan detecta a característica difusa desses bens inclusive na

denominação que lhes foi dada, isto é, no adjetivo “tradicional” atribuído aos

conhecimentos:

Vale destacar que o adjetivo “tradicional” atribuído aos conhecimentos

objeto de nossa análise é dado não por sua antiguidade ou inexistência de

método cientificamente comprovado, como defendem alguns, mas

fundamentalmente pelo sistema de transmissão oral, entre coletividades e

gerações, o que determina a titularidade coletiva (e não raramente difusa),

de sorte que os direitos sobre tais conhecimentos também têm essa

natureza coletiva e intergeracional118.

Tendo em conta as citadas características dos conhecimentos tradicionais a

adoção de um regime jurídico “sui generis” seria mais eficaz, adequada e condizente

com a tutela jurídica que tais conhecimentos merecem. Mais uma vez ressalta-se

que não bastam somente regras relativas à proteção da propriedade intelectual

coletiva.

118 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 205.

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105

Neste sistema, as normas para a proteção dos “direitos intelectuais coletivos”

comporia um conjunto de regras jurídicas para a tutela dos direitos difusos e

coletivos dos indígenas e das populações tradicionais, salvaguardando-se a cultura

desses povos diferenciados, o que também implicaria em preservação da

biodiversidade, uma vez que tal sistema seria elaborado sob a perspectiva

socioambiental.

Compartilha desse entendimento Nurit Bensusan ao defender que não basta

apenas que seja resguardado o direito desses povos de consentir de forma livre e

informada sobre o acesso ao conhecimento tradicional, necessitando também a

garantia de outros direitos, tais como os direitos territoriais a manutenção de sua

própria cultura. Veja-se:

Para garantir proteção e promover conhecimentos é necessário muito mais

que um mecanismo de consulta às comunidades que garantam benefícios

decorrentes do seu uso consentido, mas urge que se garantam também os

direitos territoriais, base material onde os conhecimentos são

desenvolvidos, criados e recriados e políticas que permitam aos povos,

criadores e recriadores dos saberes tradicionais, opções dentro de seus

usos, costumes e tradições. Mais que isso, é importante garantir às

populações tradicionais irrestrito acesso aos conhecimentos não-

tradicionais como forma de permitir a integração sem assimilação119.

A criação desse regime jurídico “sui generis” também tem sido defendida por

diversos segmentos e movimentos promovidos pelos próprios povos indígenas. Esse

desejo foi explicitado na Carta de São Luis do Maranhão, elaborada durante um

encontro de pajés em 2001. Abaixo o item 15 deste documento:

15. Propomos que se adote um instrumento universal de proteção jurídica

dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui generis,

distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual e

que entre outros aspectos contemple: o reconhecimento das terras e

territórios indígenas, consequentemente a sua demarcação; o

reconhecimento da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais

como imprescritíveis e impenhoráveis e dos recursos como bens de

119 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 205.

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interesse público; com direito aos povos e comunidades indígenas locais

negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos

existentes em seus territórios; do reconhecimento das formas tradicionais

de organização dos povos indígenas; a inclusão do princípio do

consentimento prévio informado e uma clara disposição a respeito da

participação dos povos indígenas na distribuição equitativas de benefícios

resultantes da utilização destes recursos e conhecimentos; permitir a

continuidade da livre troca entre povos indígenas dos seus recursos e

conhecimentos tradicionais120.

Além do exposto no item 15, outras reivindicações dos indígenas constaram

desse documento, dentre elas: a participação das comunidades indígenas no

Conselho de Gestão do Patrimônio Genético; a regulamentação por meio de lei do

acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, com discussões

amplas com as comunidades e organizações indígenas; oposição a toda forma de

patenteamento que provenha da utilização dos conhecimentos tradicionais e criação

de mecanismos de punição para coibir o furto da biodiversidade em Terras

Indígenas; o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais como saber e ciência,

conferindo-lhe tratamento equitativo em relação ao conhecimento científico

ocidental, estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a

importância dos conhecimentos tradicionais; a discussão entre os povos indígenas

de uma moratória para exploração dos conhecimentos tradicionais associados e dos

recursos genéticos até a aprovação do Estatuto das Sociedades e a ratificação da

Convenção 169 da OIT; uma discussão ampla com as comunidades e organizações

indígenas sobre a criação de bancos de dados e registros; a adoção de uma política

de proteção da biodiversidade e sociodiversidade destinada ao desenvolvimento

econômico sustentável dos povos indígenas, garantindo-se recursos para a proteção

dos conhecimentos tradicionais e preservação das espécies “in situ”; a criação de

um Comitê Indígena para o acompanhamento dos processos de discussão e

planejamento da produção dos Conhecimentos Tradicionais; o direito de

participação nos espaços de decisões nacionais e internacionais sobre

biodiversidade e conhecimentos tradicionais, como CDB, OMPI, OMC e outros; a

aprovação do Projeto de Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas; entre outras. 120 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 209.

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107

Os estudiosos desse tema elencam alguns elementos considerados

essenciais à construção de um regime jurídico “sui generis” que seja eficaz na

proteção aos conhecimentos tradicionais associados. A seguir foram abordados

alguns desses elementos.

Tendo em conta que os indígenas e as populações tradicionais possuem

íntima relação com os territórios tradicionalmente por elas ocupados e que os

conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade são desenvolvidos nestes

espaços, qualquer sistema que tenha por escopo salvaguardar esses grupos e os

conhecimentos por eles gerados deve também proteger as terras em que eles

vivem. Portanto, é necessário que sejam implementadas políticas públicas com esse

objetivo, tais como: o reconhecimento e demarcação das terras indígenas, a

instituição de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável e a concessão

de títulos de propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades

remanescentes de quilombos.

Conforme já abordado, esse sistema deve ser construído sob a ótica dos

direitos difusos e coletivos, afinal os conhecimentos tradicionais são titularizados coletivamente pelas populações tradicionais. Ademais, ainda há conhecimentos

que são compartilhados entre duas ou mais populações tradicionais.

Devem ser reconhecidos os sistemas de representação próprios e a legitimidade para si representar dos indígenas e das populações tradicionais em

processos envolvendo a autorização para acesso aos conhecimentos tradicionais

associados. O sistema jurídico brasileiro deve reconhecer essas formas

diferenciadas de representação, considerando a diversidade cultural e o pluralismo

jurídico.

O acesso aos conhecimentos tradicionais, bem como o uso referente aos

conhecimentos acessados devem ser precedidos de consentimento prévio e

informado dos indígenas e das populações tradicionais. O consentimento somente

pode ser concedido após a realização de um efetivo processo de discussão com a

comunidade detentora dos conhecimentos, no qual se deve levar em conta as

peculiaridades desses povos, tais como: a língua, os costumes, a forma de

organização social etc. No processo para a concessão desse consentimento é

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108

imprescindível a formulação de um documento escrito em linguagem acessível e

compreensível a esses povos, no qual deve ser aclarados todos os aspectos da

autorização, como: o objetivo do acesso, o tempo de duração, a metodologia de

pesquisa, entre outros. O desrespeito a essas exigências vicia todo o processo e

torna nulo o consentimento já concedido.

Outro ponto é que haja a repartição justa de benefícios, para tanto é

necessário que o consentimento para o acesso concedido por esses povos tenha se

dado de forma prévia e informada, portanto, trata-se de uma decorrência do

elemento anterior. Essa repartição deve ser feita de acordo com a contribuição dada

para a elaboração do produto final, portanto, a empresa que acessa o conhecimento

tradicional deve ser transparente em relação aos dados econômicos envolvidos no

processo.

Qualquer atividade que envolva o acesso aos conhecimentos tradicionais

associados que puder causar riscos às populações tradicionais, à cultura desses

povos e à biodiversidade deve ser pautada pelo princípio da precaução, podendo

as populações tradicionais recusarem o acesso ou revogar a autorização de acesso

já concedida com base neste princípio.

Nas ações que versem sobre anulação das patentes concedidas após o

acesso do conhecimento tradicional associado deve haver a inversão do ônus da prova em benefício das populações tradicionais e indígenas supostamente

lesadas, por serem a parte hipossuficiente e vulnerável.

Além desses elementos, outros podem ser vir a integrar o regime jurídico “sui

generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais, desde que estejam em

consonância com os objetivos desse regime, isto é, desde que venham para

complementar e efetivar uma real proteção a esses conhecimentos em

conformidade com os princípios constitucionais de proteção ao patrimônio cultural

imaterial, à diversidade cultural, à biodiversidade e a dignidade da pessoa humana.

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109

CONCLUSÃO

Diante de todo exposto, conclui-se, em súmulas, o seguinte:

I – Mário de Andrade foi o pioneiro nos estudos sobre patrimônio imaterial no

Brasil. O intelectual propunha o estudo e a documentação, principalmente através da

etnografia, das formas de cultura tradicional e popular no Brasil, bem como uma

conceituação de cultura que abrangia tanto as artes eruditas e cultura de elite.

Outro nome de destaque foi o designer gráfico Aloísio Magalhães, o qual foi

responsável pela criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em

julho de 1975. Em seu projeto, ele retomou as ideias do modernista Mário de

Andrade para a proteção ao patrimônio imaterial, propondo apreender a cultura em

sua dinamicidade, diversidade, a cultura viva.

Os estudos e as ideias relativas ao patrimônio cultural imaterial

desenvolvidos, principalmente, por Mário de Andrade e Aloísio Magalhães

repercutiram nos trabalhos da Assembleia Constituinte, passando a constar no texto

constitucional a proteção também ao patrimônio cultural imaterial associado à noção

de referência cultural.

Quase após vinte anos da promulgação da Constituição Federal quase nada

havia sido feito para a proteção ao patrimônio cultural imaterial, razão pela qual

alguns setores da sociedade civil e do governo se mobilizaram para a concretização

e efetivação do direito cultural de valorização e preservação do patrimônio

intangível. Parte dessa lacuna legislativa foi preenchida com a edição do Decreto

presidencial n° 3.551 de 2000, o qual previu a criação do Registro, um instrumento

legal apropriado ao acautelamento do patrimônio intangível. Esse mesmo

instrumento também dispôs sobre o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.

II – O patrimônio cultural imaterial também teve reconhecimento no âmbito da

UNESCO por meio dos seguintes documentos: Recomendação sobre a Salvaguarda

da Cultura Tradicional e Popular de 1989; Declaração Universal sobre a Diversidade

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Cultural de 2001; Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 e

a Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005.

Oportuno relembrar que a Convenção de 2003 considera o patrimônio cultural

imaterial como fonte de diversidade cultural e também como garantia de

desenvolvimento sustentável.

Outro documento importante é a Convenção sobre Diversidade Biológica da

ONU de 1992, na qual houve o reconhecimento explícito da importância de se tutelar

os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Apesar de ser um

documento com vistas à proteção da biodiversidade, em razão da íntima relação

desta com as comunidades tradicionais, se tutelou igualmente os conhecimentos

tradicionais, os quais são bens culturais imateriais.

III – A Constituição Federal de 1988 adotou um conceito de patrimônio cultural

que atendeu às reivindicações dos setores e órgãos especializados na preservação

e defesa do patrimônio cultural, utilizando terminologia mais moderna e abordando o

tema em seus variados aspectos e de forma ampla. A técnica de redação foi mais

adequada ao modelo de “Constituição Cidadã” que se propôs a ser a atual Carta

Constitucional.

O direito à cultura foi previsto no art. 215 da Constituição Federal, por sua vez

o art. 216 que define patrimônio cultural e fixa algumas diretrizes em seus

parágrafos, especialmente no que tange às políticas culturais. Neste artigo utilizou-

se pela primeira vez os termos patrimônio cultural brasileiro e bens de natureza

material e imaterial. Sobretudo, merece destaque a inclusão da noção de referência

cultural ao dispor que os bens devem ser “portadores de referência à identidade, à

ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.”

IV – Os bens culturais materiais são aqueles bens corpóreos móveis ou

imóveis, que possuem uma materialidade ou suporte. Os bens culturais imateriais

são mais difíceis de serem definidos, em razão de sua intangibilidade e abstração.

Esses são aqueles bens que não possuem materialidade, não são passíveis de

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111

apreensão física por não comportarem um suporte. Ambos devem portar referência

cultural para os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, conforme art.

216 CF. Isto é, o bem deve ser considerado pelos próprios grupos ou comunidades

envolvidos como um elemento identificador, um traço característico da cultura que

se pretende preservar.

A noção de referência cultural é o elemento diferenciador em relação aos

demais bens jurídicos. Deste modo, se verificado que um determinado bem jurídico

porta referência cultural em relação à identidade, à ação ou à memória dos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ele pode ser considerado um

bem cultural. Os bens culturais não têm valor em si mesmo, a análise da valoração

será sempre feita pelos sujeitos envolvidos, ou seja, aqueles para os quais as

referências culturais tenham um especial sentido e um particular significado capazes

de identificar e caracterizar a cultura de determinado grupo.

V - A Constituição Federal previu no art. 216, § 1° os meios de promoção e

proteção do patrimônio cultural, sendo elencados neste dispositivo os inventários,

registros, vigilância, tombamento, desapropriação, além de outras formas possíveis

para o acautelamento. Em se tratando salvaguarda de patrimônio cultural intangível

os instrumentos próprios para tanto são os inventários e o registro.

O Inventário Nacional de Referências Culturais foi disciplinado pela Instrução

Normativa do IPHAN n° 01/2009, trata-se de um importante instrumento para

conhecer e documentar o patrimônio imaterial. Ademais, ele fornece subsídios à

implementação de políticas públicas destinadas à valorização e a proteção do

conhecimento e à inclusão social das comunidades e grupos inventariados. A

documentação produzida no INRC é hábil à instrução dos processos de Registro.

O registro foi disciplinado pelo Decreto n° 3.551/2000 e tem por objetivo

reconhecer a importância dos bens imateriais e resguardá-los através da

documentação, buscando a valorização da cultura e fornecendo um estímulo aos

grupos e às comunidades detentoras desses conhecimentos, práticas e saberes a

conservar a própria história e suas tradições, repassando-os às gerações futuras. A

inscrição de um bem imaterial em um dos livros próprios é o reconhecimento estatal

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112

da importância deste bem, o qual passa a ostentar o título de “Patrimônio Cultural do

Brasil”.

VI - Atualmente, a maioria da doutrina especializada em Direito Ambiental

entende que a Constituição Federal adotou a concepção unitária de meio ambiente,

considerando como bem ambiental os bens naturais e artificiais e também os bens

culturais. Todos esses bens constituem o meio ambiente e devem compô-lo para

que este seja ecologicamente equilibrado e proporcione uma qualidade de vida

saudável, nos termos do art. 225 da CF.

A visão unitária do meio ambiente está de acordo com uma interpretação

sistemática e integradora da Lei Maior, bem como com a concepção holística de

meio ambiente. A Constituição Federal quis que a tutela ambiental não se

restringisse somente aos recursos naturais, mas alcançasse também os elementos

artificiais e culturais. Deste modo, tem-se o bem ambiental como gênero, do qual o

bem natural, o bem artificial e o bem cultural são espécies.

O princípio da solidariedade entre gerações previsto no art. 225 da CF apesar

de não constar expressamente nos artigos 215 e 216 da Constituição, deve ser

aplicado aos bens culturais, afinal ele é a base da proteção do patrimônio cultural

imaterial. Não é possível preservar expressões culturais, conhecimentos, técnicas,

modos de fazer criar e viver sem que haja a transmissão entre gerações. Essas

formas vivas de culturas somente assim permanecerão se forem assimiladas pelas

gerações vindouras, a qual será a depositária da cultura dos seus antepassados.

O bem cultural, independentemente de sua dominialidade pública ou privada,

é qualificado por um interesse público. A doutrina especializada se refere a ele como

bem de interesse público, trata-se de uma nova categoria de bens que supera a

tradicional dicotomia: bem público versus bem privado, prevista no Código Civil de

1917 e repetida no novo Código em 2002.

Ao classificar um bem cultural como bem de interesse público o que se

pretende é identificar o elemento que diferencia esses bens dos demais, esse

diferencial é o valor cultural os permeia, sendo interesse do Poder Público e de toda

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a coletividade a sua preservação. Portanto, é uma categoria que não altera o regime

civil dos bens públicos ou privados, mas que impõe o dever de preservação dos

bens culturais, de modo que toda a coletividade passa a ter direitos e obrigações

sobre tal bem.

O interesse público que qualifica os bens culturais está intimamente ligado a

outra característica dos mesmos, que é a sua titularidade difusa. A preservação do

bem cultural interessa a uma determinada coletividade e também a todo povo

brasileiro, pois esse bem contribui para manutenção da diversidade cultural no país.

Ademais, a Constituição Federal no §1° do art. 216 impôs ao Poder Público, com

colaboração da comunidade, o dever de preservação do patrimônio cultural.

A titularidade difusa do bem cultural é verifica e reforçada quando se tem em

conta que se está diante de uma espécie de bem ambiental, assim, como integrante

do meio ambiente é de uso comum do povo (art. 225 da CF e inciso I do art. 2° da

LPNMA) e também essencial à sadia qualidade de vida. Estes bens devem ser

fruídos não somente em benefício de seu proprietário, mas de toda a coletividade,

preservando-os também para as futuras gerações.

Tendo em conta que o bem cultural é um bem difuso, quando se está diante

de lesão ou ameaça de lesão aos interesses ou direitos culturais deve-se lançar mão

das regras processuais próprias para a defesa dos interesses e direitos

metaindividuais, previstas principalmente na Lei de Ação Civil Pública e na parte

processual do Código de Defesa do Consumidor.

VII – A Constituição Federal de 1988 foi a primeira na história do Brasil a

dedicar um capítulo inteiro à proteção do meio ambiente, considerado um direito

fundamental. Além das disposições constantes no art. 225, outros artigos também

abordam a questão ambiental em temas específicos, na política urbana, no

desenvolvimento agrário, nas questões indígenas, como princípio geral da ordem

econômica, entre outros. Inovou também ao prever pela primeira vez a solidariedade

intergeracional para com o meio ambiente, isto é, todos (Estado e coletividade)

devem preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

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As disposições constitucionais relativas ao meio ambiente, incluindo seu

caráter intergeracional, foram inspiradas no conceito de ecodesenvolvimento

consolidado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em

1972, em Estocolmo; bem como no conceito de desenvolvimento sustentável

previsto no documento intitulado “Nosso futuro comum”, publicado em 1987 pela

Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU.

A Constituição Federal previu o princípio do desenvolvimento sustentável

tanto no art. 225, como no art. 170. O objetivo deste princípio é aliar a questão

ambiental ao desenvolvimento econômico, promovendo a equidade social. Tendo

em conta a concepção unitária de meio ambiente e sua abordagem holística, para a

efetivação do princípio do desenvolvimento sustentável a questão cultural também

deve ser analisada e sopesada nesta equação. Isto é, as políticas públicas de

desenvolvimento econômico devem abordar tanto a preservação dos recursos

naturais como a salvaguarda do patrimônio cultural, seja material ou imaterial.

Foi a previsão destes “novos direitos” na Constituição Federal de 1988 que

possibilitou o desenvolvimento do socioambientalismo no Brasil, trata-se de um

modelo que rompe com o padrão anterior em que o individual é valorizado em

detrimento do coletivo e propõe um novo paradigma, que concilia os direitos sociais

e culturais com os direitos ambientais. Porém, não se trata de uma simples soma

desses direitos, a proposta socioambiental vai além, ao buscar a igualdade e a

justiça social por meio da promoção conjunta da sustentabilidade ambiental e da

sustentabilidade sociocultural. Isto é, alia-se a biodiversidade à sociodiversidade.

A origem do socioambientalismo no Brasil não remonta aos estudos feitos em

centros de pesquisa ou nas universidades, ele foi concebido a partir de

acontecimentos históricos, surgiu como uma via para atender às pressões e às

demandas sociais das minorias marginalizadas e não contempladas pelas políticas

públicas, como os povos indígenas, as comunidades quilombolas e as populações

tradicionais, nas quais se enquadram os seringueiros, os castanheiros, pescadores

artesanais, entre outros.

Na perspectiva socioambiental as políticas públicas somente serão efetivas e

sustentáveis se levarem em conta as demandas e os contextos socioculturais, ou

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seja, vão além da simples conservação e preservação dos recursos naturais. Essas

políticas, ao envolver as comunidades locais detentoras de conhecimentos

tradicionais, preservam ao mesmo tempo a biodiversidade e a sociodiversidade, e

também possibilitam a repartição justa dos benefícios trazidos pelas atividades por

elas desempenhadas. O sociambientalismo é uma forma de realização da

sustentabilidade.

O respeito à diversidade cultural dos diferentes povos formadores da

identidade nacional é um princípio constitucional que deve orientar as relações do

Estado tanto do ponto de vista interno como do internacional, também as relações

entre os particulares devem ser pautadas por este princípio.

Assegurar a diversidade cultural nos moldes propostos pelo

socioambientalismo possibilita, em especial, a realização do ditame constitucional

que dispõe sobre a proteção dos bens culturais de natureza intangível (art. 216 CF).

Isso porque o foco principal dessa proteção não recai sobre os bens culturais

materiais, mas sim sobre as expressões culturais e os processos de produção de

cultura e conhecimento no âmbito das diversas comunidades e grupos. Protege-se,

sobretudo, os processos culturais, a cultura como algo vivo e dinâmico.

A necessidade de se aliar a preservação da biodiversidade à sociodiversidade

como via de concretização do desenvolvimento sustentável pode ser verificada na

legislação nacional, especialmente na Lei n° 9.985/2000 que instituiu o Sistema

Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).

VIII - O Brasil é um país megadiverso, pois possui a maior diversidade

biológica de flora e fauna do planeta, estima-se em cerca de 20%. Internamente, a

proteção da biodiversidade constou expressamente no art. 225, §1°, II da

Constituição Federal de 1988.

Antes da Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro

em 1992, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais eram considerados

patrimônio da humanidade, com a adesão de diversos países ao documento

internacional foi reconhecido que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus

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próprios recursos biológicos e que os benefícios decorrentes da utilização dos

conhecimentos, inovações e práticas das populações indígenas e comunidades

locais devem ser repartidos equitativamente, em conformidade com a legislação

nacional.

Com a Convenção sobre Diversidade Biológica a biodiversidade foi

reconhecida como essencial à vida no planeta, devendo os recursos ambientais

serem preservados para as presentes e futuras gerações. Além disso, a

biodiversidade passou a ser valorizada também do ponto de vista econômico.

A Convenção sobre Diversidade Biológica trouxe à baila um novo paradigma

em relação aos povos indígenas e populações tradicionais, ao considerar que esses

grupos estão integrados aos ecossistemas e que, inclusive, contribuem para a

conservação e preservação da diversidade biológica. Isso constou expressamente

do art. 8, j da CDB.

Apesar de atualmente ainda haver muita controvérsia acerca do uso

sustentável dos recursos ambientais pelos povos autóctones e populações

tradicionais, existem vários estudos que demonstram que a maior percentagem de

diversidade biológica está localiza em terras indígenas.

Porém, se por um lado esse documento reconhece o valor dos

conhecimentos, das inovações e das práticas das populações tradicionais relevantes

à conservação e a utilização da biodiversidade, por outro, ele incentiva o uso destes

saberes mediante uma repartição justa dos benefícios com eles obtidos.

A CDB também previu o respeito à soberania dos Estados (art. 15, 1 121), pois

cabe a eles legislar internamente sobre a repartição de benefícios oriundos do

acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais das comunidades

locais. No Brasil, atualmente o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos

tradicionais associados e o modo como deverá ser feita a repartição dos benefícios

foram regulamentados pela Medida Provisória n° 2.186-16/2001, em vigor em

decorrência da EC n° 32/2001.

121 “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.”

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A citada MP tem sido muito criticada por não ter dispensado um tratamento

jurídico eficaz à proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais

associados, especialmente no que tange à proteção dos direitos de propriedade

intelectual coletiva dos indígenas e das populações tradicionais sobre esses

recursos e conhecimentos.

IX - As populações tradicionais incluem grupos em sua essência bastante

diversificados, como os indígenas, os quilombolas e as comunidades locais, das

quais como exemplo tem-se os seringueiros, as quebradeiras de cocos, os

babaçueiros, os ribeirinhos, os jangadeiros, entre outros. Isto é, são populações

muito distintas do ponto de vista sociocultural. Nos documentos legais e

antropológicos não há sequer consenso sobre a terminologia para se referir a esses

grupamentos humanos.

A Lei n° 9.985/2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de

Conservação (SNUC) não conceituou populações tradicionais, mas acabou por fazê-

lo indiretamente ao mencioná-las em diversos dispositivos legais, de modo que é

possível identificar as características essenciais das populações tradicionais, são

elas: populações com cultura própria e diferenciada e que subsistem com base em

recursos naturais utilizados de forma sustentável.

Por sua vez, a Medida Provisória n° 2.186-16/2001 que regulamentou parte

do que foi ratificado na Convenção sobre a Diversidade Biológica, definiu

“comunidade local” como: “grupo humano associado, incluindo remanescentes de

comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza,

tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva

suas instituições sociais e econômicas. (art. 7°, inc. III).”

O Decreto n° 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento

Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, definiu no art. 3°, inciso I povos

e comunidades tradicionais como: “grupos culturalmente diferenciados e que se

reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que

ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução

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cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,

inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;”

O reconhecimento da importância do papel desses povos para a preservação

e conservação ambiental fez com que eles passassem a ser vistos como elementos

essenciais nas políticas ambientais pautadas pela sustentabilidade, vindo a ostentar

um status jurídico diferenciado.

X – Os povos indígenas e populações tradicionais desenvolvem

conhecimentos tradicionais que podem estar associados ou não a biodiversidade.

No primeiro caso, esses conhecimentos são as práticas individuais ou coletivas

dessas populações que possuem valor real ou potencial associados à

biodiversidade. Já no segundo caso, esses conhecimentos podem ser criações

artísticas, literárias, lendas, contos, danças, entre outros.

Atualmente, os pontos mais controvertidos e polêmicos para o sistema

jurídico se referem aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, em

razão da possibilidade que eles têm de gerar riqueza, especialmente para as

indústrias que fazem bioprospecção de recursos genéticos para o desenvolvimento

de produtos, como medicamentos e cosméticos.

Na legislação nacional, os conhecimentos tradicionais que não se referem à

biodiversidade devem ser tutelados pelos instrumentos próprios para a salvaguarda

do patrimônio cultural imaterial, que são o Registro e o Inventário Nacional de

Referências Culturais.

Em se tratando de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a

proteção destes se dá nos termos da CDB (ratificada pelo Brasil) e da MP n° 2.186-

16/2001, que disciplinou, dentre outras matérias, o acesso ao patrimônio genético e

aos conhecimentos tradicionais associados.

A Convenção sobre Diversidade Biológica não conceituou o que são os

conhecimentos tradicionais associados, por sua vez a MP n° 2.186-16/2001, no art.

7°, inciso II trouxe a seguinte definição: “II - conhecimento tradicional associado:

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informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade

local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético;”

A MP n° 2.186-16/2001 não tratou da proteção à propriedade intelectual dos

conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

XI - Atualmente o grande debate na área reside em como proteger

juridicamente os direitos intelectuais das populações tradicionais e indígenas

relacionados aos conhecimentos tradicionais associados, uma vez que esses

conhecimentos por serem gerados de forma essencialmente diversa dos saberes

científicos não se encaixam em nenhum dos instrumentos legais existentes para a

proteção da propriedade intelectual.

O aparato jurídico para a proteção à propriedade intelectual foi construído

sobre as bases do conhecimento científico, portanto, nele não se encaixam os

conhecimentos tradicionais.

O sistema de proteção à propriedade intelectual vigente está fundado no

Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao

Comércio (TRIPS) de 1994, o qual é gerido pela Organização Mundial do Comércio

(OMC). Nesse sistema não há previsão de reconhecimento de direitos relacionados

à propriedade intelectual para os saberes tradicionais, afinal isso implicaria em

colocar sob a mesma proteção conhecimentos gerados de forma coletiva e

transmitidos ao longo das gerações, ou seja, fundamentalmente diversos do

conhecimento científico.

No acordo das TRIPS não houve qualquer vinculação ao que foi previsto na

Convenção sobre Diversidade Biológica para a concessão de direitos de

propriedade intelectual, exige-se somente o cumprimento dos requisitos constantes

no acordo para cada um dos modelos. Ademais, os países signatários do citado

acordo não podem alterar por meio de legislação interna as normas para a

concessão dos direitos de propriedade intelectual.

Com o objetivo de solucionar essa problemática e proteger os conhecimentos

tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, existe uma corrente

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que defende que devem ser feitas adaptações no sistema de propriedade intelectual

vigente, notadamente em relação às patentes, de modo a se incluir na esfera de

proteção também os conhecimentos tradicionais. Propõe, portanto, a propriedade

intelectual coletiva.

Contudo, essa corrente tem sido muito criticada pelos especialistas

(principalmente antropólogos e ambientalistas), tampouco tem sido bem recebida

pelos indígenas e populações tradicionais, afinal apenas efetuar alterações pontuais

no sistema de propriedade intelectual para incluir a proteção dos conhecimentos

tradicionais não parece ser adequado e efetivo para tutelar esses saberes face às

incompatibilidades intrínsecas entre eles e o sistema vigente de propriedade

intelectual.

XII - Existe uma segunda corrente que sustenta a elaboração de um sistema

jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais. Aqueles que a

defendem tem preferido a utilização da expressão “direitos intelectuais coletivos”, a

qual não se vincula à ideia de propriedade e de individualismo, refletindo a aspecto

coletivo dos conhecimentos tradicionais.

Esse sistema “sui generis” tem como proposta proteger, além dos direitos

intelectuais, todo o processo de geração, conservação e transmissão dos

conhecimentos tradicionais, ou seja, os povos, os territórios por eles ocupados, as

formas de expressão cultural etc. Isto é, trata-se de um sistema moldado sobre as

bases do socioambientalismo, que trabalha com a dualidade: biodiversidade e

sociodiversidade.

A proteção aos conhecimentos tradicionais das populações tradicionais nos

moldes previstos pela Convenção de Diversidade Biológica (especialmente o art. 8°,

“j”), regulamentada no Brasil pela MP n° 2.186-16/2001, integra o microssistema de

tutela aos direitos coletivos em sentido lato. Deste modo, as disposições legais para

a defesa dessa classe de direitos podem ser aplicadas para a proteção desses

conhecimentos, como exemplo: o ajuizamento de ação civil pública.

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Tendo em conta que os conhecimentos tradicionais são bens ambientais,

culturais, difusos e de interesse público, a adoção de um regime jurídico “sui

generis” seria mais eficaz, adequada e condizente com a tutela jurídica que tais

conhecimentos merecem.

Os estudiosos desse tema elencam alguns elementos considerados

essenciais à construção de um regime jurídico “sui generis”, são eles: a) a proteção

dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas e populações tradicionais;

b) um sistema jurídico construído sob a ótica dos direitos difusos e coletivos; c) o

reconhecimento dos sistemas de representação próprios e a legitimidade para si

representar dos indígenas e das populações tradicionais em processos envolvendo

a autorização para acesso aos conhecimentos tradicionais associados; d) o

consentimento prévio e informado dos indígenas e das populações tradicionais para

o acesso e uso do conhecimento tradicional, bem como a repartição justa de

benefícios; e) a adoção do princípio da precaução em relação a qualquer atividade

que envolva o acesso aos conhecimentos tradicionais associados que puder causar

riscos às populações tradicionais e indígenas, à cultura desses povos e à

biodiversidade; f) nas ações que versem sobre anulação das patentes concedidas

após o acesso do conhecimento tradicional associado deve haver a inversão do

ônus da prova em benefício das populações tradicionais e indígenas supostamente

lesadas, por serem a parte hipossuficiente e vulnerável.

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