liliane mahalem de lima patrimônio cultural imaterial ... mahalem de... · ... conhecimentos...
TRANSCRIPT
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Liliane Mahalem de Lima
Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais
coletivos sob a perspectiva socioambiental
MESTRADO EM DIREITO
SÃO PAULO 2012
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Liliane Mahalem de Lima
Patrimônio cultural imaterial, conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais
coletivos sob a perspectiva socioambiental
MESTRADO EM DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Direito das Relações Sociais, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação da Professora Doutora Regina Vera Villas
Boas.
SÃO PAULO
2012
2
Data: ___/___/2012
BANCA EXAMINADORA:
________________________________
Orientadora
Professora Dra. Regina Vera Villas Boas
________________________________
Professor Dr.
Instituição
________________________________
Professor Dr.
Instituição
3
Dedico este trabalho aos meus pais, às minhas
avós, ao meu marido e ao meu filho.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que de alguma forma direta ou indiretamente contribuíram
para este trabalho, mas não poderia deixar de fazer alguns agradecimentos
pontuais.
Agradeço, inicialmente, à minha orientadora Professora Dra. Regina Vera
Villas Boas, por ter me acolhido com carinho e dedicação, por nunca ter duvidado do
meu potencial, pelas valiosas colaborações neste trabalho e também nas demais
exigências desta pós-graduação.
Agradeço ao meu irmão Leandro, atualmente doutorando em Antropologia,
pelas oportunidades de diálogos e pelas sugestões de leitura de algumas obras e
artigos, os quais foram de suma importância para a elaboração deste trabalho.
Agradeço à Advocacia Geral da União, por ter me concedido uma licença
capacitação para elaboração da Dissertação de Mestrado, a qual foi fundamental à
feitura e conclusão deste estudo.
Agradeço aos demais professores dos créditos em que cursei pelas
contribuições e debates: Professora Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida,
Professor Marcio Pugliesi, Professor Nelson Nery Júnior, Professor Gilson Delgado
Miranda, Professora Patrícia Miranda Pizzol e Professor Willis Santiago Guerra
Filho.
Agradeço especialmente aos Professores Consuelo Yatsuda Moromizato
Yoshida e Marcelo Gomes Sodré pelas sugestões e contribuições a este trabalho
feitas no exame de qualificação.
Agradeço aos colegas de curso com quem tive a oportunidade de conviver,
dialogar e trocar experiências.
Agradeço aos meus pais, por tudo que já fizeram por mim, pelo incentivo para
estudar e para me tornar uma pessoa cada dia melhor.
Ao meu marido Thiago, pelo apoio, atenção, compreensão, parceria e
paciência.
Por fim, agradeço ao meu filho Heitor pela companhia agradável nos
momentos em que estive elaborando essa Dissertação.
5
RESUMO
Esta dissertação de mestrado aborda o patrimônio cultural imaterial sob o
prisma do Direito, analisando a proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais e
aos direitos intelectuais coletivos das populações tradicionais sob a perspectiva
socioambiental. Parte de uma abordagem interdisciplinar, relacionando diversas
áreas jurídicas como: Constitucional, Internacional, Ambiental e os Difusos e
Coletivos, bem como procura levar em consideração algumas dimensões
antropológicas. O estudo se inicia com um breve histórico sobre a consolidação do
patrimônio cultural imaterial no Brasil, cotejado ao tratamento simultâneo recebido
no âmbito da UNESCO. A partir daí, o patrimônio cultural intangível foi conceituado
tendo por eixo central a Constituição Federal de 1988, bem como foram analisados
os instrumentos jurídicos protetivos, que são: o Registro e o Inventário Nacional de
Referências Culturais, desenvolvidos no âmbito do Instituto do Patrimônio Artístico e
Nacional (IPHAN). Em seguida, desdobra e aprofunda o “bem cultural” tendo em
conta as relações às noções jurídicas de bem ambiental, bem difuso e bem de
interesse eminentemente público. Depois, são analisados os principais aspectos do
socioambientalismo no Brasil tendo em conta a dualidade: sociodiversidade e
biodiversidade. Na sequencia, o trabalho aborda o conceito de “Populações
Tradicionais” e, em seu bojo, a Medida Provisória n° 2.186-16/2001 que confere, no
direito brasileiro, proteção aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade. Ao final, considera a proposta de construção de um regime jurídico
“sui generis” para a proteção aos conhecimentos tradicionais e aos recursos
genéticos presentes nas terras ocupadas pelas populações tradicionais e indígenas,
bem como outros direitos coletivos relacionados a sócio e a biodiversidade.
Palavras-chave: patrimônio cultural – socioambientalismo – biodiversidade –
conhecimentos tradicionais - direitos intelectuais.
6
ABSTRACT
This dissertation addresses the issue of the intangible cultural heritage in the prism of
Law. It analyses, thru a socioenvironmental perspective, the legal protection over the
knowledges and the collective intellectual rights of traditional populations. As a
interdisciplinary, it links diverse legal areas (Constitutional, International,
Environmental, Diffuse and Collective) and attempts to take into account some
anthropological dimensions. The study begins with a brief history of the consolidation
of intangible cultural heritage in Brazil, collated with the simultaneous treatment
within the UNESCO. Thereafter, the intangible cultural heritage is conceptualized
taking the Federal Constitution of 1988 as is central axis, from which the protective
legal instruments -the National Registry and Inventory of Cultural References,
developed within the Institute of Artistic Heritage and (IPHAN) – are analysed. Then,
the text unfolds and deepens the "cultural heritage" taking into account its relations
with legal notions of environmental and diffuse heritage and its public concern. Then,
it analyses the core concerns of socioenviromentalism in Brazil, taking into account
its mais duality: the protection of bio and social diversity. In sequence, the work
addresses the formal concept of “traditional peoples”, and in its wake, the Provisional
Measure No. 2.186-16/2001 which, under the Brazilian law, confers protection over
the traditional knowledges associated with biodiversity. At the end, this work
considers the general proposal to build a “sui generis” legal system to protect the
traditional knowledges and the genetic resources found in the lands occupied by
traditional and indigenous populations, as well as other collective rights related to
social and biodiversity.
Keywords: cultural heritage – socioenvironmentalism – biodiversity – traditional
knowledge – intellectual property rights.
7
ABREVIAÇÕES
CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica
CF – Constituição Federal
CNRC – Centro Nacional de Referência Cultural
CTA – Conhecimentos Tradicionais Associados
CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
DPHAN – Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
EC – Emenda Constitucional
ECO 92 – Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
INPI - Instituto de Propriedade Industrial (INPI) no Brasil. INRC – Inventário Nacional de Referências Culturais
IPHAN – Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional
MinC – Ministério da Cultura
MP – Medida Provisória
OMC – Organização Mundial do Comércio.
OMPI – Organização Mundial de Propriedade Intelectual
ONG – Organização não governamental
ONU – Organização das Nações Unidas
PCH – Programa de Cidades Históricas
PL – Projeto de Lei
PNPI - Programa Nacional do Patrimônio Imaterial
RG – Recursos Genéticos SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional
TRIPS – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
8
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no Brasil e nas
Convenções Internacionais...............................................................................14
1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no
Brasil...14
1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO ................................... 22
1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU ........................... 26
Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os Instrumentos legais .... 28
2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988 ..... 28
2.2. O Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) . 45
Capítulo 3. Bem cultural ....................................................................................... 53
3.1. Bem cultural como bem ambiental ...................................................... 53
3.2. Bem cultural como bem de interesse público ..................................... 58
3.3. Bem cultural como bem difuso ............................................................ 61
Capítulo 4. Socioambientalismo e Biodiversidade ................................................ 66
4.1. Socioambientalismo ............................................................................ 66
4.2. Biodiversidade .................................................................................... 78
Capítulo 5. Conhecimentos tradicionais e os regimes jurídicos de proteção........ 84
5.1. O conceito de populações tradicionais ............................................... 84
5.2. Os conhecimentos tradicionais e as disposições da MP n° 2.186-16/2001
............................................................................................................................. 91
5.3. Os conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual coletiva ... 94
5.4. Regime jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos
tradicionais e os direitos intelectuais coletivos ................................................... 101
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 109
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 122
9
INTRODUÇÃO
Esta dissertação aborda o patrimônio cultural imaterial com ênfase na análise
da proteção jurídica nacional, feita considerando a transdiciplinariedade entre as
diversas áreas jurídicas, como Ambiental, Internacional e Difusos e Coletivos, tendo
como base o texto da Constituição Federal de 1988. Enfatiza a proteção aos
conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e das populações tradicionais. Tem
por eixo o processo de consolidação, no espaço público, da preocupação
socioambiental, a partir da qual se funda a associação entre a tradicionalidade dos
povos e a defesa do ambiente de da biodiversidade.
Atualmente, no que tange à tutela do patrimônio cultural, o grande desafio
reside na temática do patrimônio cultural intangível, tanto para estabelecer os termos
objetivos de proteção como para essa proteção ser efetiva. Em relação,
especificamente, às formas de proteção jurídica aos conhecimentos tradicionais dos
povos indígenas e populações tradicionais esse tema tem se revelado
extremamente controvertido e complexo. Embora este estudo também aborde a
questão no âmbito da UNESCO e a Convenção sobre Diversidade Biológica, o foco
concentra-se no direito brasileiro.
A despeito da relevância crescente do tema, ainda é relativamente escassa a
bibliografia especializada que aborda o tema no Brasil, sob o prisma do direito. Além
de reduzido, parte do material é sucinto, apenas citando alguns conceitos e tecendo
algumas considerações sob o aspecto legal. Este estudo, eminentemente descritivo,
pretende contribuir com o preenchimento desta lacuna de informações no campo do
Direito.
A Constituição Federal de 1988, no art. 215, garantiu a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional. No artigo
subsequente dispôs que patrimônio cultural abarca os bens materiais e os imateriais
“tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...)”.
Conforme o texto, o patrimônio cultural imaterial é essencial à salvaguarda da
10
história, da memória e da identidade dos povos formadores da sociedade brasileira.
Porém, além das dificuldades óbvias de uma época caracterizada pela economia de
mercado e a massificação das relações sociais, há vários desafios conceituais a
serem transpostos, tanto em relação às traduções culturais sob o aspecto
antropológico, quanto em relação ao aspecto jurídico, tema de preocupação que nos
cabe aqui.
Historicamente todo aparato legal e a doutrina especializada sobre proteção
ao patrimônio cultural estiveram voltados aos bens de natureza material, sendo o
tombamento o principal instrumento legal. Há tempos é evidente que este é
insuficiente para a concretização de todos os direitos e garantias previstos nos
artigos 215 e 216. Afinal, ele não se adéqua à compreensão contemporânea de
centrar a proteção no aspecto intangível, ou seja, nos conhecimentos e nos modos
de fazer, mas no bem em si, na materialidade.
Foi constatando essa lacuna legislativa que, quase após vinte anos da
promulgação da Constituição Federal, a sociedade civil e alguns setores do governo
começaram uma mobilização para a concretização e efetivação do direito cultural de
valorização e preservação do patrimônio intangível.
Em 1997, em Fortaleza, foi realizado pelo IPHAN o “Seminário Patrimônio
Imaterial: Estratégias de Formas de Proteção”, que discutiu as diretrizes para uma
política pública de salvaguarda da cultura tradicional e popular. Do encontro,
resultou o documento conhecido como “Carta de Fortaleza”, que resumiu as
conclusões desse encontro e lançou as bases dos trabalhos para a elaboração e
efetivação de uma nova política cultural. A partir deste ato, o governo federal, junto a
representantes da sociedade civil, deu outras providências como a criação de um
Grupo de Trabalho no Ministério da Cultura, sob a coordenação do IPHAN, e o
estabelecimento do que se chamou de “Política Nacional de Preservação do
Patrimônio Cultural”.
Com esta força tarefa, parte dessa lacuna legislativa foi preenchida com a
edição do Decreto presidencial n° 3.551 de 2000, o qual previu a criação do
instrumento legal do “registro”, adequado ao acautelamento do patrimônio intangível.
11
Esse mesmo instrumento também dispôs sobre os termos do “Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial”.
Paralelamente, discutia-se o projeto de lei da senadora Marina Silva,
apresentado em 1995, que propunha a regulamentação por meio de lei federal ao
acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados dos
povos indígenas e populações tradicionais. Esses conhecimentos tradicionais são
também parte do patrimônio cultural imaterial. Em 2001 a Medida Provisória n°
2.186-16 disciplinou a matéria, regulamentando internamente parte do previsto na
Convenção sobre Diversidade Biológica de 1992.
Em que pese o conjunto dos instrumentos jurídicos hoje existentes para a
tutela do patrimônio cultual imaterial, é possível afirmar que os mesmos não têm sido
suficientes e eficazes. Na prática nem sempre esses instrumentos são capazes de
solucionar as demandas contemporâneas, sobretudo quando nos deparamos com
casos mais complexos, tal como no caso da propriedade intelectual sobre
conhecimentos tradicionais dos povos que vivem em territórios de ocupação
tradicional e guardam aspectos culturais distintos em relação aos padrões nacionais.
O desafio reside em se construir um sistema normativo eficaz para a proteção
dos direitos intelectuais coletivos no direito contemporâneo. As dificuldades estão
em se identificar os titulares e os detentores dos conhecimentos tradicionais, bem
como as dimensões territoriais e temporais relacionadas aos conhecimentos detidos
pelas populações tradicionais e indígenas. Além disso, existe um distanciamento
entre os modos como o direito, de sua parte, e detentores dos conhecimentos
tradicionais, de outra, entendem o que seja o “sujeito”, a “cultura” e o
“conhecimento”, que remetem ao cerne dos problemas comumente abordados no
âmbito da antropologia.
Além da indeterminação conceitual, outra dificuldade está em se estabelecer
os termos e os modos de conferir remunerações aos detentores destes
conhecimentos. Esses passam a adquirir o caráter de bens valiosos, novos objetos
de cobiça de grandes empresas e capitais privados, interessados em se
apropriarem, por meio de patentes, de conhecimentos tradicionais associados à
12
biodiversidade, com vistas a adquirirem vantagens comparativas em relação a seus
concorrentes nos modernos mercados de biotecnologia.
A todos estes desafios, acresça-se o fato de que todo o sistema jurídico foi
fundado com base em institutos civis e processuais civis que se alicerçam na
clássica noção ocidental de indivíduo, que se opõe à sociedade, ao coletivo.
Este trabalho está dividido em cinco partes, pensadas com o objetivo de
facilitar a didática, posto que, esta é uma abordagem interdisciplinar, que se supõe
interessar não apenas ao direito, mas também à especialistas de outras áreas e até
aos próprios detentores dos conhecimentos e práticas culturais imateriais. O objetivo
deste estudo não é propor soluções, mas apresentar um panorama da situação atual
e uma descrição dos modos como estes desafios estão colocados no direito
contemporâneo.
Como de costume, o primeiro capítulo tem um caráter introdutório, foi
abordada a parte histórica da tutela do patrimônio cultural intangível no Brasil e no
âmbito da UNESCO. O último item trata da Convenção sobre Diversidade Biológica
da ONU, em razão das disposições relativas aos conhecimentos tradicionais.
No segundo capítulo, foi elucidado o conceito de patrimônio cultural imaterial,
com ênfase no disposto na Constituição Federal de 1988, bem como os
instrumentos legais para a proteção do patrimônio imaterial, ou seja, o Registro e o
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).
No terceiro capítulo, foi estudado o bem cultural e seu caráter ambiental, de
interesse público e difuso.
No quarto capítulo, tratou-se novamente da relação com o Direito Ambiental,
mas enfocando o patrimônio cultural imaterial sob o aspecto do socioambientalismo
e da biodiversidade.
No quinto capítulo, foi analisado o conceito de populações tradicionais, a atual
regulamentação no Brasil para a proteção dos conhecimentos tradicionais
associados à biodiversidade nos termos da MP n° 2.186-16/2001 e por fim a
necessidade de construção de um regime jurídico “sui generis” para a proteção dos
direitos intelectuais coletivos das populações tradicionais. Por último, o trabalho foi
13
encerrado com uma conclusão geral de todo o material examinado.
14
Capítulo 1. Breve histórico do Patrimônio Cultural Imaterial no
Brasil e nas Convenções Internacionais
O presente capítulo é introdutório ao fazer um apanhado histórico sobre a
tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil e também levando em conta as
Convenções Internacionais sobre essa temática, especialmente a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 e a Convenção sobre a Proteção da
Diversidade das Expressões Culturais de 2005, ambas assinadas no âmbito da
UNESCO. O último item aborda rapidamente a Convenção sobre a Diversidade
Biológica da ONU, assinada durante a ECO-92, em razão do tratamento concedido à
proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais
fazem parte do patrimônio cultural imaterial.
1.1. Breve histórico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial no Brasil Foi na Semana de Arte Moderna de 1922 que Mário de Andrade, precursor
dos estudos e reflexões sobre o patrimônio cultural imaterial, lançou e iniciou a
propagação de suas ideias sobre a importância de se estudar e de documentar,
principalmente através da etnografia, as diversas formas culturais, tradicionais e
populares, existentes no Brasil.
As ideias de Mário de Andrade eram inovadoras. Ele propunha uma
conceituação da cultura que abrangesse tanto as artes eruditas e a alta cultura,
como a cultura popular. Indígenas, negros e demais populações pauperizadas
contribuem tanto para a formação cultural do povo brasileiro, como as elites
econômicas.
Entre os anos de 1927 e 1929, o intelectual realizou duas viagens
etnográficas nas regiões norte e nordeste do Brasil para estudar e documentar
danças, lendas, músicas, festas, entre outros costumes1. Na década de 30, ele
integrou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo,
permanecendo até 1938, pouco após o Estado Novo em 1937.
1 Esse material foi publicado em “Na Pancada do Ganzá”, obra inconclusa em razão da morte precoce do autor em 1945. Posteriormente, a sua ajudante Telê Ancona Lopez organizou suas anotações e diários de viagem e publicou a obra “O Turista Aprendiz”.
15
Conforme o Grupo de Trabalho para o Patrimônio Imaterial do Iphan:
Seu principal objetivo era a busca das raízes da nacionalidade e, na
pesquisa sobre o folclore, procurava não só o rigor científico, como também
assegurar o caráter coletivo e sistemático desses trabalhos, para o que
considerava indispensável a criação de instituições que se dedicassem a
pesquisar, guardar e difundir as informações sobre o assunto.
A preocupação de Mário de Andrade não era tanto com a proteção dessas
manifestações culturais que, nos anos vinte e trinta ainda não estavam
ameaçadas de desaparecimento, mas com seu conhecimento e
reconhecimento enquanto cultura brasileira. Nesse sentido, considerava
fundamental a divulgação e o acesso a esses registros, o que procurava
desenvolver através das atividades do Departamento de Cultura. 2
Em 1936, a pedido do ministro de Educação e Saúde Pública, Gustavo
Capanema, o escritor de Macunaíma elaborou um anteprojeto para a implantação de
uma política de proteção e preservação do patrimônio cultural nacional. Neste
documento previu a criação de um órgão de proteção ao patrimônio cultural, o qual
viria a ser o SPHAN – Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, bem
como reconheceu as expressões populares como modos de formação da identidade
nacional3.
No que se refere a uma política pública para o patrimônio cultural imaterial, o
anteprojeto era bastante avançado para seu momento histórico . Tem, inclusive,
diversos paralelos com as atuais políticas de proteção ao patrimônio cultural
intangível. Provavelmente, o pioneirismo de Mário de Andrade foi uma das razões
pelas quais seu texto não foi efetivamente levado adiante por décadas. Somente foi
retomado na década de 70, com o Centro Nacional de Referência Cultural.
2 Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 109/110. 3 “No Brasil, o reconhecimento do papel das expressões populares na formação de nossa identidade cultural remonta aos anos 30 e faz parte do contexto de criação do próprio Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. O registro dessas manifestações culturais está previsto no anteprojeto elaborado por Mário de Andrade, em 1936, para a instituição e, embora não tenha sido levado a efeito por longo tempo, teve sua idéia retomada nos aos 70 pelo Centro Nacional de Referência Cultural e, em seguida, pela Fundação Nacional Pró-Memória.” O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 15.
16
Com base neste mesmo anteprojeto de Mário de Andrade foi criado o Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1937, que foi o primeiro
órgão governamental com o objetivo de proteger o patrimônio cultural do Brasil. Em
1946 o nome foi alterado, pela primeira vez, para Departamento do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Em 1970 passou ser denominado como
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Embora tenha havido mudanças nos nomes oficiais, até a década de 80 o
órgão se dedicou exclusivamente à preservação do patrimônio cultural material. Não
incluía em suas atividades os bens que não se encaixassem em determinados
critérios históricos, artísticos e de “excepcionalidade referentes ao tombamento”.
Esse, aliás, era o único instrumento jurídico disponível à época para a proteção do
patrimônio cultural4.
Na década de 70 a atuação do IPHAN e os critérios por ele adotados
começaram a ser reavaliados por setores externos ao órgão. Pessoas ligadas ao
“design”, à indústria e à tecnologia propuseram mudanças nas políticas de
patrimônio, enfatizando a necessidade de se reconhecer também a cultura popular e
tradicional e propondo um sistema baseado na noção de referência cultural. De
acordo com Maria Cecília Londres Fonseca: “Entre outras mudanças, foi introduzida,
no vocabulário das políticas culturais, a noção de referência cultural, e foram
levantadas questões que, até então, não preocupavam aqueles que formulavam e
implementavam as políticas de patrimônio”5.
Aloísio Magalhães, um respeitado designer gráfico, foi o principal idealizador
e responsável pela criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em
julho de 1975. Ele se aproximou de integrantes do governo militar que eram,
digamos, mais sensíveis a estes temas, como o Ministro da Indústria e Comércio
Severo Gomes, o Ministro da Educação e Cultura Eduardo Portella, e os generais
4 “Era preciso buscar as raízes vivas da identidade nacional exatamente naqueles contextos e bens que o SPHAN excluíra de sua atividade, por considerar estranhos aos critérios (histórico, artístico, de excepcionalidade) que presidiam os tombamentos.” FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91. 5 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 85.
17
Golbery do Couto e Silva e Rubem Ludwig, que colaboraram para que o projeto
seguisse adiante6 Também participou do projeto de idealização e de implantação do
CNRC o diplomata e Secretário de Cultura do Distrito Federal, Wladimir Murtinho.
Contudo, a instituição desse centro por um governo de ditadura militar foi vista com
desconfiança e descrédito por vários setores da sociedade civil, fazendo com que
ficasse esvaziado de novas e inovadoras iniciativas.
O CNRC foi criado por um convênio multiinstitucional firmado por órgãos
estatais como o Ministério da Indústria e Comércio, o Ministério da Educação e
Cultura, a Fundação Cultural do Distrito Federal e também instituições como a Caixa
Econômica Federal e a Universidade de Brasília.
O projeto de Aloísio Magalhães retomava as idéias para a proteção do
patrimônio imaterial do modernista Mário de Andrade, as quais foram deixadas de
lado pelo IPHAN. O centro tinha como objetivo “o traçado de um sistema referencial
básico para a descrição e análise de dinâmica cultural brasileira.” 7. A proposta era
apreender a cultura em sua dinamicidade, em sua diversidade, a cultura viva.
Procurou distância da noção inicial de uma cultura oficial, vinculada aos valores das
elites dominantes, estática e museificada.
Além disso, Magalhães, seguidor da obra andradiana, defendia a gestão
participativa das questões referentes ao patrimônio imaterial. Não cabe ao Estado
decidir sozinho o que deve ser preservado e registrado. Este trabalho deveria ser
feito junto à sociedade civil, aos especialistas, mas, sobretudo, junto às
comunidades envolvidas com os projetos culturais. Ou seja, o intelectual se referia a
um modelo em que as decisões deviam ser tomadas em conjunto com os sujeitos
que produzem e mantém um determinado “bem cultural”.
Em 1979, Aloísio Magalhães foi convidado a presidir o Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Neste ano, foi decidido que o CNRC deveria ser
6 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 91. 7 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 90.
18
institucionalizado. Assim como Programa de Cidades Históricas (PCH) foi fundido às
atribuições do IPHAN.
A gestão de Magalhães teve o mérito de conseguir que a política cultural se
voltasse em efetivo para a proteção do patrimônio cultural popular e afro-brasileiro,
embora vivesse sob regime ditatorial. Suas ações ampliaram, em novas práticas
institucionais, a importância do patrimônio cultural, para além da alta cultura.
O texto institucional, Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A
trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil, formulado pelo
IPHAN, destaca que:
Um dos grandes feitos de Aloísio Magalhães no comando do CNRC e,
posteriormente, da FNPM, foi a ampliação da proteção do Estado em
relação ao patrimônio não-consagrado, vinculado à cultura popular e aos
cultos afro-brasileiros. Em Alagoas e na Bahia, o Iphan tombou,
respectivamente, a Serra da Barriga, onde os quilombos de Zumbi se
localizaram, e o Terreiro da Casa Branca, um dos mais importantes,antigos
e atuantes centros de atividade do candomblé baiano. 8
O Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) aprofundou e detalhou as
propostas de Aloísio Magalhães para a proteção do patrimônio cultural imaterial. Em
seu âmbito foi desenvolvido a noção e o instrumento conhecido como “referência
cultural”.
A incorporação e o desenvolvimento desses conceitos na política cultural do país se
refletiram nos trabalhos da Assembléia Constituinte, de modo que os artigos
constitucionais que tratam da cultura contemplaram o patrimônio imaterial
juntamente com a noção de referência cultural.
O “caput” do artigo 216 da Constituição Federal previu expressamente a
proteção ao patrimônio cultural material e imaterial, sendo que ambos devem ser
“portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira”. Ou seja, incorporou, decisivamente, texto
constitucional a noção de referência cultural. O parágrafo primeiro dispõe sobre as
8 Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A trajetória da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Brasília: IPHAN, 2006. P. 12.
19
formas de proteção, registro, inventário e outros modos de acautelamento, além do
tradicional tombamento.
Assim, a Constituição Federal de 1988 foi um marco para as políticas
culturais, pois dedicou, finalmente, ao patrimônio cultural uma definição que estava
em sintonia com as propostas e ideias mais modernas de preservação da cultura
tradicional e popular em suas dimensões intangíveis.
Porém, apesar da disposição constitucional, pouco se fez, nos anos
subseqüentes, para o aprimoramento da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial
no Brasil. Não havia políticas públicas adequadas. A principal crítica dos estudiosos
e das populações tradicionais residia no fato de que não existia um instrumento
jurídico capaz de proteger, em efetivo, o patrimônio intangível. Afinal, neste
momento já era de amplo consenso que “tombamento”, é um instrumento totalmente
inadequado para desempenhar esta função.
Em novembro de 1997, na ocasião da comemoração aos sessenta anos de
criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), foi
realizado em Fortaleza o seminário “Patrimônio Imaterial: Estratégias de Formas de
Proteção”, que contou com a participação de gestores, acadêmicos, ativistas,
representantes da UNESCO. O encontro teve por objetivo discutir as diretrizes para
uma política de proteção e as formas de acautelamento legais e administrativas, o
que possibilitaria a efetivação dos dispositivos constitucionais que previam a
proteção ao patrimônio cultural imaterial. O resultado final foi o documento que se
convencionou chamar de “Carta de Fortaleza”9.
Dentre as recomendações constantes neste documento está o
aprofundamento do conceito de bem cultural de natureza imaterial; a promoção do
inventário dos bens culturais em parceria com instituições estaduais e municipais de
cultura e órgãos de pesquisa; a criação de um Grupo de Trabalho no Ministério da
Cultura sob a coordenação do IPHAN para propor a criação do instituto jurídico
9 “No evento foram apresentadas e discutidas experiências brasileiras e internacionais de resgate e valorização da cultura tradicional e popular. Além disso, foram discutidas a ação institucional neste, os instrumentos legais e medidas administrativas que podem ser propostas para sua preservação e, especialmente, o conceito de ‘bem cultural de natureza imaterial’.” O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 16.
20
registro, necessário à proteção dos bens culturais imateriais; a criação de banco de
dados integrado; e o estabelecimento de uma Política Nacional de Preservação do
Patrimônio Cultural.
Em 1998, acolhendo as recomendações da “Carta de Fortaleza”, o Ministro da
Cultura Francisco Weffort editou a Portaria n° 37 que instituiu uma Comissão
interinstitucional para “elaborar proposta visando ao estabelecimento de critérios,
normas e formas de acautelamento do patrimônio imaterial brasileiro” 10 e também
criou um Grupo de Trabalho para prestar assessoria à comissão, composto por
técnicos do IPHAN, da Funarte e do Ministério da Cultura. 11
A Comissão e Grupo de Trabalho designados pelo Ministério da Cultura
produziram resultados. Em 2000 foi editado pelo Executivo o Decreto n° 3.551 que
instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Neste ano, também foi institucionalizada
pelo IPHAN, a metodologia denominada Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC).
O Registro e o INRC foram duas importantes conquistas das instituições
envolvidas e de toda sociedade civil. A partir desse momento o sistema jurídico
nacional passou a contar com instrumentos adequados à salvaguarda do patrimônio
cultural imaterial, um passo importante na efetivação dos dispositivos constitucionais
que tratam da cultura (artigos 215 e 216 CF).
Em 2002, o IPHAN fez os seus dois primeiros registros de bens culturais de
natureza imaterial. Um, o “Ofício das Paneleiras” de Goiabeiras no Espírito Santo.
Outro, a “Arte Kusiwa” (pintura corporal e arte gráfica Wajãpi). Este foi declarado, no
ano seguinte, a primeira “Obra Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade”
reconhecida pela UNESCO, no território nacional.
Os especialistas brasileiros tiveram um papel relevante nas mesas de
discussão internacionais. No ano seguinte, estes debates redundaram na
10 Portaria nº 37 do Ministério da Cultura, de 04 de março de 1998. Idem. P. 61. 11 O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 16.
21
aprovação, pela UNESCO, da “Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial”.
No Brasil, também em 2003, o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular
foi integrado à estrutura do IPHAN. Em 2004 foi criado no IPHAN o “Departamento
do Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens Culturais”, pelo Decreto n° 5.040,
que substitui o “Departamento de Patrimônio Imaterial e Documentação de Bens
Culturais”. Na reforma, o antigo Centro de Folclore e Cultura Popular (CNFCP)
criado em 1958 também passou à gestão do novo departamento.
Internacionalmente também vale ressaltar que em 2005, foi aprovada pela
UNESCO a “Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões
Culturais”. Neste mesmo ano, a UNESCO inscreveu o Samba de Roda do
Recôncavo Baiano na lista das obras primas do patrimônio oral da humanidade.
No que tange à tutela do patrimônio cultural imaterial é oportuno incluir no
histórico a questão da proteção aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade na esfera nacional e internacional.
Em 1992 foi realizada no Rio de Janeiro a “Conferência das Nações Unidas
sobre o Ambiente e o Desenvolvimento”, a ECO-92. Dentre os documentos
internacionais resultantes dessa conferência está a “Convenção de Diversidade
Biológica” (CDB), que dispõe sobre a proteção aos conhecimentos tradicionais
associados ao patrimônio cultural imaterial. A citada Convenção estipula que cada
Estado deve regular por legislação interna os meios e as formas de distribuição
equitativa dos benefícios decorrentes do acesso aos recursos genéticos e aos
conhecimentos tradicionais das populações tradicionais.
Embora a CDB tenha vigência interna a partir de 29 de maio de 1994, foi
somente em 2001 que no Brasil foi regulamentado o acesso ao patrimônio genético
e aos conhecimentos tradicionais associados das populações tradicionais, por meio
da Medida Provisória n° 2.186. Houve regulamentação dos artigos 1°, 8°, alínea j,
10, alínea c, 15 e 16, alíneas 3 e 4 da citada Convenção, bem como dos inciso II do
§1° e o §4° do art. 225 da CF.
22
Em razão da relevância para o tema, este trabalho aborda com destaque, em
itens subsequentes, as Convenções da UNESCO e a “Convenção sobre Diversidade
Biológica”.
1.2. O patrimônio imaterial no âmbito da UNESCO Outro ponto importante para este estudo é o reconhecimento do patrimônio
intangível na esfera internacional, principalmente no âmbito da UNESCO, órgão
especializado da ONU para a educação, a ciência e a cultura, cuja criação foi em
1945. Essa instituição tem tido relevante papel ao difundir, incentivar a promover
mundialmente a necessidade de se salvaguardar o patrimônio imaterial.
No Brasil, como na UNESCO, os dispositivos e as ações se voltavam,
inicialmente, à proteção do patrimônio material. Em 1972 foi firmada por diversos
países da Convenção da UNESCO sobre a “Salvaguarda do Patrimônio Mundial,
Cultural e Natural”, a qual apenas tutelou os bens materiais (móveis, imóveis, sítios
urbanos ou naturais e conjuntos arquitetônicos).
Somente anos mais tarde, na década de 80, um grupo de países em
desenvolvimento, signatários da Convenção, liderados pela Bolívia, iniciou um
movimento para o reconhecimento como patrimônio cultural imaterial das
populações indígenas e tradicionais. Como destaca Márcia Sant’Anna, eles
“solicitaram formalmente à Unesco a realização de estudos que apontassem formas
jurídicas de proteção às manifestações da cultura tradicional como um importante
aspecto do Patrimônio Cultural da Humanidade”. 12
Foi uma reação ao documento inicial que não contemplava as necessidades
desses países, pois se constatou que os bens culturais a serem preservados nos
termos da Convenção de 1972 estavam predominantemente nos países ricos e
eram essencialmente materiais. Isto é, havia uma prioridade e uma preocupação
com a tutela dos bens culturais da sociedade ocidental dominante, principalmente da
Europa e da América do Norte. A Convenção de 1972 não dispensou qualquer
12 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 15.
23
proteção aos saberes, às tradições, às línguas, às crenças populares, às danças,
aos modos de fazer, entre outros.
A UNESCO, em resposta a demanda formalizada por esse grupo de países,
emitiu em 1989 a “Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e
Popular”, que reconhece a necessidade de se identificar e proteger as culturas,
tradicionais e populares, por meio de ações conjuntas entre a UNESCO e os países
membros. Note-se que, neste momento, o termo utilizado nos documentos era
“cultural tradicional e popular” e não “patrimônio cultural imaterial”.
O documento define “cultura tradicional e popular” nos seguintes termos:
A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de
uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou
por indivíduos e que reconhecidamente respondem à expectativas da
comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as
normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras
maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a
música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o
artesanato, a arquitetura e outras artes.
Quando foi emitida a “Recomendação de 1989” muitos dos países integrantes
da UNESCO ainda não tinham amadurecido os termos com relação à importância da
proteção às culturas tradicionais, indígenas e populares. Por esta razão foi aprovada
apenas como recomendação.
As recomendações e as declarações são diferentes das convenções ou dos
tratados 13. As primeiras, como bem formula Elder P.M. Alves, “são destinadas à
disseminação de idéias e valores, a convenção tem força de lei, pois cria, além do
compromisso de cumprimento entre os países signatários, o compromisso de
difusão e promoção” 14.
13 “A Recomendação para a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular, embora não tenha eficácia legal no âmbito do direito internacional, cumpriu a função de instrumento de disseminação de ideias e valores. Como tal, tanto as medidas de sensibilização presentes no texto, quanto o conceito de cultura tradicional e popular definido na recomendação da Unesco de 1989, informaram sobremaneira as duas convenções da Unesco assinadas pelos países membros nesta década.” Idem, p. 550. 14 ALVES, Elder Patrick Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010. P. 544.
24
A partir da década de 1990, os debates sobre a diversidade cultural e sobre
as políticas públicas para sua defesa foram ganhando espaço e as pressões sobre
os governos dos países em desenvolvimento e dos organismos internacionais se
intensificaram. Ainda de acordo com o autor:
É em nome da preservação e promoção da diversidade e da identidade
cultural que muitos estados nacionais e instituições transnacionais
passaram a defender a elaboração e execução de novas políticas públicas
de cultura. No entanto, como sustenta o próprio Mattelart, foi a consecução
de uma rede global de defesa e promoção da diversidade e da identidade
que produziu uma grande pressão junto aos governos nacionais (sobretudo
os governos dos chamados países em desenvolvimento) e organismos
transnacionais (BID e UNESCO), no sentido da adoção de novas políticas
culturais que pudessem ressemantizar e ressignificar um conjunto de
conceitos, como o conceito de exceção cultural (Mattelart, 2005: 102). 15
Nesse contexto, em 2001 foi aprovada na UNESCO a Declaração Universal
sobre a Diversidade Cultural. A despeito de não ter força de lei, foi um importante
documento preparatório para a aprovação das duas convenções subseqüentes, e
hoje vigentes, sobre a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial: a Convenção
para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial (2003) e a Convenção sobre a Proteção
da Diversidade das Expressões Culturais (2005).
A Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial foi aprovada pela
UNESCO em 17.10.2003, a qual ratificou a Recomendação sobre a Salvaguarda da
Cultura Tradicional e Popular (1989) e a Declaração Universal da UNESCO sobre a
Diversidade Cultural (2001). 16
Internamente, o Congresso Nacional aprovou o texto da Convenção de 2003
em 01.02.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 22; em 15.02.2006 o Governo
Brasileiro ratificou a Convenção; em 12.04.06 o Presidente da República a
15 ALVES, Elder Patrick Maia.Op. cit. P. 544. 16 PELEGRINI, Sandra. C.A; FUNARI, Pedro Paulo. O que é patrimônio cultural imaterial. São Paulo: Brasiliense, 2008. P. 47.
25
promulgou por meio do Decreto n° 5.733. A vigência interna é a partir de 01.06.06 e
internacionalmente a partir de 20.04.2006. 17
A supracitada Convenção considera o patrimônio cultural imaterial como fonte
de diversidade cultural 18 e também como garantia de desenvolvimento
sustentável19. O patrimônio imaterial foi conceituado no art. 2° da seguinte forma:
Entende-se por ‘patrimônio cultural imaterial’ as práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. 20
Em seguida, no mesmo artigo adiciona que a manifestação ocorre nos
seguintes campos:
a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do
patrimônio cultural imaterial;
b) expressões artísticas;
c) práticas sociais, rituais e atos festivos;
d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo;
e) técnicas artesanais tradicionais. 21
Em 2005, a UNESCO aprovou a “Convenção sobre a Proteção da
Diversidade das Expressões Culturais”. Oportuno mencionar que o texto base desta
Convenção estava pronto antes do texto da Convenção de 2003, mas acabou por
ser aprovado somente dois anos mais tarde22.
17 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/decreto/d5753.htm, acesso em 29.12.2011. 18 “Reconhecendo que as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial, assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana,” Convenção para a Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, UNESCO, 17.10.2003, disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf, acesso em 29.12.2011. 19 “será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável” Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural da Humanidade. Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 “Embora a Convenção sobre a diversidade cultural tenha seu texto base, ou seja, sua declaração apresentada antes da Convenção para Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, seu processo de votação e apresentação só foi concluído quatro anos mais tarde, em 2005.” ALVES, Elder Patrick
26
No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da
Convenção de 2005 em 20.12.2006 por meio do Decreto Legislativo n° 485; em
16.01.2007 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 01.08.2007 o Presidente
da República a promulgou por meio do Decreto n° 6.177. A vigência interna é a partir
de 01.08.07 e internacionalmente a partir de 18.03.2007. 23
1.3. A Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU Outro documento internacional essencial ao presente estudo é a Convenção
sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU. Este é um dos documentos resultantes
da Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente e o Desenvolvimento,
realizada no Rio de Janeiro em 1992.
Seu texto reconheceu explicitamente a importância de se proteger os
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
O artigo 1° trata dos objetivos da Convenção, os quais são “a conservação da
diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e repartição
justa e equitativa dos benefícios derivados dos recursos genéticos”. Além da
proteção aos recursos genéticos, consta também que o conhecimento, inovações e
práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida
tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade
biológica devem ser repeitados, preservados e mantidos, em conformidade com a
legislação nacional, devendo os benefícios oriundos da utilização desses
conhecimentos serem repartidos equitativamente (art. 8, j).
Apesar de ser um documento com vistas à proteção da biodiversidade no
planeta, em razão da íntima relação que as comunidades tradicionais têm com a
conservação da biodiversidade, tutelou-se, igualmente, os conhecimentos
tradicionais associados, os quais integram o patrimônio cultural imaterial.
Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010. P. 544. 23 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6177.htm, acesso em 29.12.2011.
27
A Medida Provisória n° 2.186/2001, que tratou do acesso ao patrimônio
genético e a proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado, assim o
definiu: “informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de
comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético;”
(art. 7°, inc. II). Por ora, nos basta essa conceituação, pois iremos nos aprofundar
neste ponto em item posterior.
Em linhas gerais, o patrimônio cultural imaterial constitui-se das práticas,
representações, expressões, conhecimentos e técnicas que as comunidades e
grupos reconhecem como integrante do seu patrimônio cultural, portanto, os
conhecimentos tradicionais associados se encaixam perfeitamente nesta definição.
Tais conhecimentos se diferem dos demais por terem valor potencial ou real
associado ao patrimônio genético.
No âmbito do direito interno, o Congresso Nacional aprovou o texto da
Convenção de Diversidade Biológica em 03.02.1994 por meio do Decreto Legislativo
n° 02; em 28.02.1994 o Governo Brasileiro ratificou a Convenção; em 16.03.1998 o
Presidente da República a promulgou por meio do Decreto n° 2.519. A vigência
interna é a partir de 29.05.1994 e internacionalmente a partir de 29.12.1993. 24
24http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2519.htm, acesso em 29.12.2011.
28
Capítulo 2. O conceito patrimônio cultural no Direito e os Instrumentos legais
No panorama da proposta desta dissertação, este capítulo se dedica ao
conceito de “patrimônio cultural imaterial” à luz das disposições previstas na
Constituição Federal de 1988. Se comparada às constituições brasileiras anteriores,
a conceituação ganhou dimensões mais abrangentes e maior especificidade técnica.
Além disso, o texto atual passa a associar o conceito formal de “patrimônio” e a
noção de “referência cultural”, que contribui para alterar os modos como os bens
culturais são reconhecidos. Sair da visão na qual o Estado o define e conceitua os
“tipos humanos” ou “culturais”, para entrar no paradigma participativo, no qual, de
modo democrático, os sujeitos, alvo do processo, ocupam posição simétrica em
relação a especialistas e agências de Estado.
O conceito de “patrimônio cultural”, conforme o texto constitucional atual, leva
à análise dos dois instrumentos legais hoje disponíveis no Brasil para a proteção do
patrimônio cultural imaterial, que detalham os termos e as etapas objetivas para o
registro e o inventário de referências culturais. Esta metodologia foi consolidada em
torno do que os envolvidos em sua formulação passaram a denominar “Inventário
Nacional de Referências Culturas” (INRC).
2.1. Conceito de Patrimônio Cultural na Constituição Federal de 1988 Assim, a abordagem ampla e objetiva do conceito patrimônio cultural,
sedimentada no arcabouço da Constituição Federal de 1988, construída junto a
setores e órgãos especializados na preservação e defesa do patrimônio cultural,
consolida, ao mínimo, duas conquistas aos movimentos sociais organizados.
Primeiro, incorpora o relativismo cultural, que supera o viés evolucionista (progresso
unilinear da história) dos textos anteriores. Segundo, porque afirma a participação
democrática e simétrica entre os diversos entes envolvidos e interessados. Assim,
de um modo geral, é possível dizer que a nova redação instaura novos conceitos e
29
técnicas relativas ao “patrimônio cultural” mais adequada à proposta “cidadã”
disposta na atual Carta Constitucional.
No âmbito internacional, as primeiras referências constitucionais à proteção
da cultura, feitas em títulos que tratavam também da ordem econômica e social e da
educação, constam na Constituição Mexicana de 1917 e na Constituição de Weimar
de 1918. Ambas constituem marcos na história do constitucionalismo ocidental, por
terem assegurado, de modo pioneiro, estes direitos em cartas constitucionais. 25.
No Brasil, as Constituições de 1824 e a de 1891 sequer fazem referências ao
tema. A primeira Constituição nacional a versá-la foi a de 1934 no art. 10, inciso III,
já sob a inspiração dos modelos alemão e mexicano. Foi uma abordagem tímida,
pois apenas previu a competência concorrente entre a União e os Estados para a
proteção das belezas naturais e dos monumentos de valor histórico ou artístico, com
a possibilidade do Estado impedir a evasão de obras de arte.
Por sua vez, a Constituição de 1937 abordou o tema de forma pouco mais
ampla no art. 134, atribuindo competência também para os municípios e
equiparando os atentados contra os monumentos históricos artísticos e naturais aos
cometidos contra o patrimônio nacional. Foi durante a vigência desta Constituição
que foi editado o Decreto Lei 25 que dispôs sobre o patrimônio cultural, bem como
acerca do instituto do tombamento.
Já a Constituição de 1946 contemplou a questão da cultura de forma sucinta
e pouco efetiva no art. 175, o qual previu que: “As obras, monumentos e
documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as
paisagens e os locais dotados de particular beleza, ficam sob a proteção do Poder
Público.”
A Constituição de 1967 no art. 172 e a Emenda Constitucional 01/69 no art.
181 (o qual repetiu o art. 172) também abordaram o assunto, não inovando em
relação às Constituições anteriores, salvo pela novidade de incluir sob a proteção
estatal as jazidas arqueológicas. A previsão foi nos seguintes termos: “O amparo à
cultura é dever do Estado. Parágrafo único: Ficam sob a proteção especial do Poder
25 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 39.
30
Público os documentos, as obras e os locais de valor histórico ou artístico, os
monumentos e as paisagens notáveis, bem como as jazidas arqueológicas.”
A atual Constituição da República Federativa do Brasil foi elaborada e
promulgada após o fim do regime militar, tendo recebido influências das
Constituições contemporâneas da época, como a Constituição Portuguesa de 1976
e a Constituição Espanhola de 1978 e na América Latina, a Constituição do Panamá
de 1985. O tema da cultura foi tratado em todas essas cartas constitucionais.
A partir da década de 70 os direitos culturais passaram a constar nas
Constituições, sendo reconhecidos como direitos fundamentais do homem, de
acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva:
As Constituições contemporâneas – ou seja, aquelas que vieram da
derrocada dos regimes fascistas e militares após a década de 70 –
alargaram os horizontes da proteção da cultura, surgindo daí a idéia dos
direitos culturais como dimensão dos direitos fundamentais do homem, o
que tem sua matriz já na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de
1948, cujo art. 27 estabelece que toda pessoa tem direito de tomar parte
livremente na vida cultural da comunidade, de gozar das artes e de
participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam, e toda
pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais que lhe
correspondem por razão das produções científicas, literárias ou artísticas de
que seja autor. 26
De acordo com Norberto Bobbio, o reconhecimento e o desenvolvimento dos
direitos humanos decorrem do processo histórico, sendo esses direitos variáveis e
mutáveis, que se alteram para se adequar aos interesses, às relações econômicas e
às necessidades das sociedades.
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,
fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais
fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas
26 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo: Malheiros, 2001. P. 40.
31
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos
de uma vez e nem de uma vez por todas. 27
Portanto, alguns direitos que eram considerados absolutos no final do século
XVIII foram restringidos por declarações de direitos contemporâneas, por exemplo, o
direito de propriedade deve ser exercido atendendo sua função social. Atualmente, a
função social da propriedade é princípio constitucional expresso na Carta brasileira
de 1988 (art. 5°, inciso XXIII).
Por outro lado, direitos que antes nem existiam e eram impensáveis surgiram
como fruto desse processo histórico e passaram a integrar as declarações
internacionais e as Constituições de diversos países, tal como é o caso dos direitos
sociais e os direitos relativos à defesa do meio ambiente.
De acordo com Noberto Bobbio são diversas as categorias de direitos que,
hodiernamente, integram as declarações de direitos humanos de vários países.28 Ele
acrescenta que os direitos humanos são mutáveis e heterogêneos, de modo que a
coexistência entre eles implica em autolimitação. Veja-se:
Quando digo que os direitos do homem constituem uma categoria
heterogênea, refiro-me ao fato de que – desde quando passaram a ser
considerados como direitos do homem, além dos direitos de liberdade,
também os direitos sociais – a categoria em seu conjunto passou a conter
direitos entre si incompatíveis, ou seja, direitos cuja proteção não pode ser
concedida sem que seja restringida ou suspensa a proteção de outros. 29
Nesta toada, o autor propõe uma classificação dos direitos em gerações
levando em conta a natureza de cada um deles, bem como o momento histórico em
27 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 5.
28 “Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que consistem liberdades, também os chamados direitos sociais, que consistem em poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos aqui os órgãos públicos) obrigações puramente negativas, que implicam a abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem ser realizados se for imposto a outros (incluídos aqui os órgãos públicos) um certo número de obrigações positivas.” BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. P. 21. 29 Idem. P. 43.
32
que surgiram. 30 Convém abordar essa classificação de forma sucinta para situarmos
nela o objeto deste estudo, que é o direito à cultura.
A primeira geração é composta pelos direitos referentes às liberdades
negativas, pois implicam uma abstenção estatal para se efetivarem, como exemplo:
o direito à vida, à liberdade civil ou religiosa.
Na segunda geração foram agrupados os direitos que ensejam uma
prestação positiva estatal para sua efetivação, são os direitos sociais, econômicos e
culturais. Historicamente, tais direitos surgiram a partir das influências das doutrinas
socialistas e com o advento do Estado de bem estar social (Welfare State).
A terceira geração é integrada por direitos coletivos, dentre os quais podemos
citar o direito ao meio ambiente sadio e a proteção ao consumidor. A quarta geração
relaciona-se com o desenvolvimento tecnológico no Estado contemporâneo e se
refere aos direitos para a proteção do patrimônio genético. 31
Convém salientar que a classificação dos direitos em gerações proposta por
Bobbio recebeu críticas. Alguns doutrinadores como Paulo Bonavides 32 e Joaquim
José Gomes Canotilho 33 discordam da terminologia utilizada por Bobbio, propondo
a substituição do termo geração por dimensão, por entenderem que ele nos induz a
pensar em sucessão cronológica dos direitos e em caducidade dos direitos das
gerações antecedentes. De acordo com Canotilho:
“É discutida a natureza desses direitos. Critica-se a précompreensão que
lhes está subjacente, pois ela sugere a perda de relevância e até a
substituição dos direitos de primeiras gerações. A idéia de generatividade
30 Idem. P. 05,06. 31 “Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Mas já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo.” Idem. P. 06. 32 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2006. P. 571, 572. 33 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 6ª. Ed. Coimbra: Almedina, 2002. P. 386.
33
geracional também não é totalmente correta: os direitos são de todas as
gerações. Em terceiro lugar, não se trata apenas de direitos com um
suporte coletivo – o direitos dos povos, o direito da humanidade. Neste
sentido se fala da solidarity rights, de direitos de solidariedade, sendo certo
que a solidariedade já era uma dimensão “indimensionável” dos direitos
económicos, sociais e culturais. Precisamente por isso, preferem hoje os
autores falar de três dimensões de direitos do homem (E. Riedel) e não de
“três gerações”. 34
Em que pesem as considerações e as críticas feitas pela doutrina
especializada, não é necessário para o presente estudo o aprofundamento em
relação às diversas teorias sobre os direitos fundamentais.
O direito à cultura foi previsto no art. 215 da Constituição Federal, nos
seguintes termos: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais
e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.” Trata-se de um direito constitucional
fundamental, pertencente à segunda geração de direitos, o qual exige uma postura
estatal positiva para sua efetivação. O Estado deverá implementar políticas públicas
culturais a fim de possibilitar aos cidadãos o exercício deste direito em sua
integralidade.
O citado artigo é composto por duas normas, a primeira prevê a garantia ao
exercício do direito cultural e o acesso às fontes de cultura, a segunda dispõe sobre
o apoio e o incentivo à valorização das manifestações culturais.
De acordo com José Afonso da Silva:
Assim se delineia a dupla dimensão da expressão “direitos culturais”, que
consta do art. 215 da Constituição: de um lado, o direito cultural, como
norma agendi (...), e o direito cultural, como facultas agendi (...). O conjunto
de normas jurídicas que disciplinam as relações de cultura formam a ordem
jurídica da cultura.
Esse conjunto de todas as normas jurídicas, constitucionais ou ordinárias, é
que constitui o direito objetivo da cultura; e quando se fala em direito da
cultura se está referindo ao direito objetivo da cultura, ao conjunto de
34 Idem.
34
normas sobre cultura. Pois bem, essas normas geram situações jurídicas
em favor dos interessados, que lhes dão da faculdade de agir, para auferir
vantagens ou bens jurídicos que sua situação jurídica produz, ao se
subsumir numa determinada norma. 35
Além do art. 215, o art. 216 da Constituição Federal também trata do tema da
cultura ao definir patrimônio cultural e fixar algumas diretrizes em seus parágrafos,
especialmente no que tange às políticas culturais. Ambos artigos estão inseridos no
Capítulo Da Educação, Da Cultura e do Desporto.
Porém, outros dispositivos também o abordam, são eles: o art. 5°, inciso
LXXIII, que prevê a ação popular para anular qualquer ato lesivo ao patrimônio
histórico e cultural; o art. 23 dispõe sobre a competência comum da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios para a proteção da cultura nos incisos III e IV, bem
como para que sejam proporcionados os meios de acesso à cultura, à educação e à
ciência no inciso V; o art. 24 trata da competência concorrente da União, Estados e
Distrito Federal para legislar sobre proteção ao patrimônio histórico, cultural,
artístico, turístico e paisagístico no inciso VII e sobre cultura no inciso IX; o art. 30,
no inciso IX prevê que compete ao município “promover a proteção do patrimônio
histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e
estadual.” Além dos acima citados há ainda outros dispositivos que se referem ao
tema da cultura: os artigos 4°, § único; 210; 219; 221, incisos I, II e III; 227; 231, § 1°;
242, § 1° e 243.
O artigo 216 caput e incisos I a V da CF definiu o patrimônio cultural brasileiro
nos seguintes termos:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
35 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 48.
35
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Como já mencionado, a redação deste artigo, que dispõe sobre os bens que
devem ser “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira”, inova em relação às Constituições
brasileiras anteriores.
Incorpora, pela primeira vez, os conceitos “patrimônio cultural material e
imaterial brasileiro” e “referencias culturais” ao invés de “patrimônio histórico e
artístico nacional”, disposto desde o previsto no art. 1º do Decreto Lei 25 de 1937.
O constitucionalista José Afonso da Silva, em revisão sobre o ordenamento
da cultura, destaca as razões pelas quais o novo arcabouço representa um avanço:
Patrimônio cultural é expressão mais adequada e mais abrangente do que
patrimônio histórico e artístico. Menos adequado, embora não menos
abrangente, é falar-se em patrimônio histórico, artístico ou cultural, porque o
“cultural” já inclui o “histórico” e o “artístico”, por isso a Constituição andou
bem empregando a expressão sintética “patrimônio cultural”, no art. 216,
embora já não o tenha feito tão bem quando se refere a bens de valor
histórico, artístico ou cultural, nos arts. 23, III e IV, e 24, VII. 36
Ao empregar a expressão “patrimônio cultural brasileiro”, importante destacar,
não deixa dúvidas de que engloba além do patrimônio da União, também o dos
Estados e dos Municípios. Não se refere apenas ao patrimônio cultural da União,
pois se assim se pretendesse a formulação deveria constar algo como “patrimônio
cultural nacional ou da União”. 37 A leitura sistemática do artigo não deixa dúvidas ao
dispor no §1º que a comunidade deve colaborar com o Poder Público na promoção e
na preservação deste patrimônio.
A palavra patrimônio tem origem latina (patrimonium) e nos remete a bens
transmitidos por linhas de descendência entre consangüíneos, não importando se 36 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 100. 37 “Patrimônio cultural brasileiro é expressão jurídica que abrange não só o patrimônio cultural estabelecido pela União, mas também o estabelecido pelos Estados e Municípios. Se a Constituição falasse em patrimônio cultural nacional, então poder-se-ia entender que ela só estivesse mencionando o patrimônio cultural organizado pelo Governo Federal.” SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 101.
36
por linha paterna ou materna. Portanto, a palavra alude a um conjunto de bens cujo
critério primeiro de transmissão de direitos e deveres é o vínculo das gerações
presentes com seus antepassados.38
Isto é, quando a Constituição no art. 216 emprega a expressão “patrimônio
cultural”, é porque se propõe a delimitar conjuntos de sujeitos de direito compostos
por aqueles bens, de natureza material ou imeterial, que ostentem essa
característica; que tenham sido transmitidos ao longo do tempo entre sucessivas
gerações. Apenas sobre estes conjuntos versa o regime de proteção e salvaguarda
nela previsto e em outros diplomas legais que o normatizam.
De acordo com Marés39 os “bens culturais”, ao contrário dos bens que
integram o patrimônio civil de uma pessoa, não precisam ostentar valor econômico e
nem ter o mesmo titular. E complementa:
Isto quer dizer que o conceito de patrimônio cultural, patrimônio genético,
ambiental, florestal, e até mesmo patrimônio nacional – da Nação e não do
Estado -, são atécnicos, como diziam Alibrandi e Ferri, mas servem para
identificar uma universalidade juridicamente protegida sob as mesmas
condições. 40
Em outro texto o citado autor melhor explica essa atecnia do termo patrimônio
cultural ao mencionar que este é qualificado por critérios diversos, por exemplo, os
valores socioambientais associados: “cada um desses patrimônios é o conjunto de
bens agregados por valores especiais (socioambientais) que se compõem e se
integram por bens de diversos patrimônios individuais (públicos e privados).” 41
Retomemos aqui o emprego da expressão “bens de natureza material e
imaterial”. Como já mencionado a formulação se propõe a não deixar dúvidas de que
38 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. P. 1447. 39 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed., 6ª. Reimp. Curitiba: Juruá, 2011. P. 47. 40 Idem. 41 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao Direito Socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 40.
37
também estão sob o manto constitucional as riquezas culturais que não
necessariamente ostentam suportes materiais correlatos, chamadas por “bens
imateriais ou intangíveis”.
Anteriormente à Constituição Federal de 1988, as cartas constitucionais
precedentes, a legislação complementar e as políticas públicas relacionadas com a
proteção à cultura tinham como alvo os bens móveis ou imóveis. O Decreto Lei 25
de 1937 que organizou a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional previu
no art. 1° a sua constituição pelo “conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no
País e cuja conservação seja de interesse público (...)”, nos artigos subseqüentes
tampouco há qualquer dispositivo que preveja a proteção aos bens culturais
intangíveis.
A definição dos bens culturais materiais não encontra maiores dificuldades:
são aqueles bens corpóreos móveis ou imóveis, que possuem uma materialidade ou
suporte e tem um valor cultural para os diferentes grupos formadores da sociedade.
Deste modo, podem ser pertencentes à cultura popular ou erudita. Como exemplos:
os monumentos históricos, as edificações, os artefatos construídos pelo homem,
vestimentas, instrumentos, utensílios, obras artísticas como telas e esculturas,
documentos, entre outros.
Os bens culturais imateriais são os intangíveis, por excelência, justamente por
não possuírem necessariamente um suporte. São mais difíceis de serem definidos,
em razão de sua intangibilidade, o que leva a discussão a um alto nível de
abstração. Estes são aqueles bens não mensurados por sua materialidade. Por não
dispor sobre um suporte, não são passíveis de objetivações fundadas nas
qualidades da matéria. A formulação, portanto, parte da premissa de que “valor
cultural” é necessariamente valor para e na perspectiva dos diferentes grupos
formadores da nação dos brasileiros. Por este caráter, consegue incorporar
expressões culturais, populares e tradicionais, como festas, danças, crenças e
cosmologias, músicas, línguas. Importa os diferentes modos de saber e os modos
de fazer, que compõem o conjunto das riquezas da nacionalidade e da humanidade.
Marés entende que todos os bens culturais, sejam eles materiais ou
imateriais, são intangíveis. “(...) Porque guardam uma evocação, representação,
38
lembrança, quer dizer, por mais materiais que sejam, existe neles uma grandeza
imaterial que é justamente o que os faz culturais” 42
Assim, ao se referir ao “patrimônio cultural imaterial”, e deslocar a questão do
eixo da materialidade, o tema passa a se associar a um novo arcabouço de
conceitos como: tradição, oralidade, intangibilidade, entre outros.
Importante destacar que não existe nenhum consenso no âmbito nacional ou
internacional sobre a melhor expressão para definir formalmente este conceito.
No Brasil, conforme o “Relatório Final das Atividades da Comissão e do
Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial“ (2006), o Ministério da Cultura e o IPHAN
optaram pela expressão “patrimônio cultural imaterial”, antes de tudo, por ter sido a
expressão consagrada no art. 216 da Constituição Federal. Mas ressalvam:
Cientes dessa discussão, e levando em conta que ela está longe de chegar
a uma conclusão, a Comissão e o GTPI optaram nesse trabalho por seguir
o Artigo 216 da Constituição Federal, (...). Não há dúvida de que as
expressões “patrimônio imaterial” e “bem cultural de natureza imaterial”
reforçam uma falsa dicotomia entre esses bens culturais vivos e o chamado
patrimônio material. Por outro lado, contudo, com essa definição, delimita-se
um conjunto de bens culturais que, apesar de estar intrinsecamente
vinculado a uma cultura material, não vinha sendo reconhecido oficialmente
como patrimônio nacional.43
Na Constituição Federal de 1988 foi previsto um conceito aberto no que tange
aos bens culturais, o rol previsto nos incisos I a V do art. 216 não é taxativo, em
razão de ter sido precedido pela a expressão “nos quais se incluem”, podendo
outros bens que ali não foram elencados virem a constituir o patrimônio cultural
nacional.
Portanto, não restringe os tipos de bens passíveis de serem integrantes do
patrimônio cultural imaterial, podendo ser eles materiais ou imateriais, móveis ou
42 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. P. 48.
43 Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial IN: in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. 4ª. Ed. Brasília: IPHAN, 2006. P. 17.
39
imóveis, tomados em conjunto ou singularmente, sendo o critério limitador a
verificação da existência da referência cultural para os citados grupos.
Atualmente, o diploma legal que regulamenta a salvaguarda dos bens de
natureza imaterial é o Decreto lei n° 3551 de agosto de 2000, que instituiu o registro
e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Esse decreto previu no art. 1°,
§ 1°, incisos I a IV que os bens de natureza imaterial que constituem o patrimônio
cultural brasileiro são os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os
lugares, bem como especificou as formas de expressão cultural que devem ser
inscritas em cada um desses livros. No § 2° do mesmo artigo dispõe que deve ser
levado em consideração “a continuidade histórica do bem e sua relevância nacional
para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.”
Por sua vez, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial da UNESCO (2003), ratificada pelo Brasil e aprovada pelo Congresso
Nacional, também define o que se entende por patrimônio cultural imaterial. O art. 2°
da citada Convenção assim dispôs:
Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações,
expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos,
artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades,
os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que
se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas
comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a
natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e
continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade
cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será
levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível
com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com
os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e
do desenvolvimento sustentável.
Nota-se que o art. 216 da Constituição Federal, o art. 1° do Decreto n°
3.551/2000 e o art. 2° da citada Convenção da UNESCO nos remete a um conceito
bastante equivalente desse conjunto de bens culturais denominado “patrimônio
cultural imaterial”, sendo indispensável que o bem porte referência cultural para as
comunidades e grupos que formam o país. Isto é, o bem deve ser considerado pelos
40
próprios grupos ou comunidades envolvidos como um elemento identificador, um
traço característico da cultura que se pretende preservar.
Em item anterior foi abordado o contexto histórico em que surgiu a noção de
“referência cultural”. Como visto, a introdução da referência cultural possibilitou um
rompimento com o padrão anterior que estabelecia que a cultura passível de
reconhecimento e preservação era somente a cultura pertencente às classes
dominantes, a cultura oficial, erudita, praticada nas escolas de belas artes e
imortalizada nos museus. Em contrapartida, foi oferecido um modelo fundado na
diversidade cultural, na descentralização estatal e na participação democrática,
ampliando o espectro de valorização e proteção às outras formas de culturas
praticadas pelos demais grupos formadores da identidade nacional.
Isso implica em dizer que as riquezas de povos indígenas, afrodescendentes
e quilombolas; extrativistas, agricultores e pescadores; segmentos fundamentais à
formação da “cultura brasileira”, ganharam novo estatuto e proteção no arcabouço
jurídico nacional. Recebem tratamento simétrico ao dado aos descendentes de
europeus, antigos colonizadores. Não há exceção a qualquer grupo, o que vem de
encontro com os princípios da igualdade (art. 3°, IV da CF) e o repúdio ao racismo
(art. 4°, VIII da CF).
Concebida a partir de debates entre o direito e a antropologia, a noção de
“referência cultural”, disposta na carta constitucional, importa sobremaneira para o
Direito. Afinal, é o elemento diferenciador em relação aos demais bens jurídicos. Um
bem cultural é oficializado enquanto bem jurídico quando porta “referência cultural”
em relação à “identidade, à ação ou à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”. Representa uma reviravolta, uma reorientação em relação às
políticas culturais anteriores. Contudo, o que significa, no texto constitucional, esse
portar referência?
José Afonso da Silva explica em passagem que ora transcrevemos que se
trata de um critério de valoração:
Referência, neste contexto, expressa um destaque de valoração. Portar
referência, assim, é trazer em si uma especial posição entre os objetos da
mesma natureza. Tem o mesmo sentido da expressão “ter como ponto de
41
referência” – ou seja, como um signo balizador da conduta a seguir, do
caminho a tomar. Assim, bens portadores de referência são bens dotados
de um valor de destaque que serve para definir a essência do objeto de
relação ao qual se prende com o princípio de referibilidade considerado. É
que no caso, referência é, também, um signo de relação entre os bens
culturais, como antecedentes ou referentes, e a identidade, a ação e a
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como
conseqüentes ou referidos. Identidade, ação e memória são os
conseqüentes ou referidos que portam a idéia de manter com o passado
uma relação enriquecedora do presente. E é nisso que se destaca o valor
de referência que fundamenta a inclusão dos bens culturais referentes no
patrimônio cultural brasileiro constitucionalmente protegido. Quer isso dizer
que os bens que devem constituir o patrimônio cultural brasileiro hão de ser
aqueles bens que sejam referências para definir a essência da identidade,
ou da ação ou da memória dos mencionados grupos. Usamos, aqui, as
alternativas porque não é necessário que a referência seja um vetor do
conjunto desses objetos. Basta que seja pertinente a um, apenas:
identidade, ou ação, ou memória. 44
Para aprofundar a questão, cabe indagar quem possui legitimidade para
auferir a existência ou não da relação (referência cultural) de entre os bens culturais
(antecedentes) e a “identidade, a ação e a memória” dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira (conseqüentes).
De acordo com Maria Cecília Londres Fonseca, também no Dossiê final das
atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial de 2006:
Quando se fala em referências culturais, se pressupõem sujeitos para os
quais essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa
perspectiva veio deslocar o foco dos bens - que em geral se impõem por
sua monumentalidade, por sua riqueza, por seu “peso” material e simbólico
- para a dinâmica de atribuição de sentidos e valores. Ou seja, para o fato
de que os bens culturais não valem por si mesmos, não têm um valor
intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em
função de determinados critérios e interesses historicamente condicionados.
Levada às últimas conseqüências, essa perspectiva afirma a relatividade de
qualquer processo de atribuição de valor - seja valor histórico, artístico,
nacional etc.- a bens, e põe em questão os critérios até então adotados
44 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 114.
42
para a constituição de patrimônios culturais, legitimados por disciplinas
como a história, a história da arte, a arqueologia, a etnografia, etc.
Relativizando o critério do saber, chamava-se atenção para o papel do
poder. 45
Logo, os bens culturais não têm valor em si mesmo. A análise da valoração
será sempre feita pelos sujeitos envolvidos neste processo, ou seja, aqueles para os
quais as referências culturais tenham um especial sentido e um particular significado
capazes de identificar e caracterizar a cultura do grupo ou da comunidade. Nos
dizeres da autora acima citada: “Falar em referências culturais nesse caso significa,
pois, dirigir o olhar para representações que configuram uma “identidade” da região
para seus habitantes, e que remetem à paisagem, às edificações e objetos, aos
“fazeres” e “saberes”, às crenças e hábitos, etc.” 46
Esse modelo pautado pela referência cultural implica, além da valoração dos
bens pelos próprios titulares, em igualmente possibilitar aos detentores de uma
prática cultural determinar o destino desses bens. Somente a eles caberá decidir
sobre a permanência, a alteração ou a supressão desses “saberes”, “fazeres” etc.
É essencialmente nesse aspecto que é possível identificar o distanciamento
da visão dos folcloristas, que valoravam uma prática cultural a partir dos próprios
pontos de vista, focando apenas os seus valores e impondo uma defesa integral e
irrestrita dessas práticas. Nesse sentido, ainda de acordo com Londres Fonseca:
É importante frisar que não se partia também de pressupostos que
costumam estar presentes nas pesquisas feitas pelos folcloristas ou pelos
planejadores econômicos, ou seja, a defesa incondicional da necessidade
de se proteger produtos e modos de vida autênticos, em uma visão
idealizada da cultura popular. 47
Ao evitar imposições aos processos culturais, deixa a critério dos titulares
dessas práticas culturais a decisão sobre o futuro delas. Reconhece-se a
45 FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas de patrimônio. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 85, 86.
46 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 89. 47 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 93.
43
importância da dinamicidade do bem cultural, notadamente daqueles bens em que o
aspecto imaterial se sobressai. Afinal, ao longo do tempo um bem cultural é
constantemente repensado e reavaliado no domínio desses grupos, comunidades e
sociedades, podendo ser recriado, reelaborado, ressemantizado e, inclusive,
abandonado. É um processo contínuo, vivo, dinâmico entre as gerações passadas,
presentes e futuras. Portanto, uma política cultural orientada com base na noção de
referência cultural – conforme aqui tratada – não pode estar atada às antigas
concepções preservacionistas que buscavam a imobilização, a imortalidade e a
museificação dos bens culturais.
Tanto o Decreto n° 3551/2000 que instituiu o Registro dos Bens Culturais de
Natureza Imaterial como a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial da UNESCO em 2003 abordaram o aspecto dinâmico e vivo dessa classe
de bens. No art. 2° da citada Convenção há menção de que o patrimônio cultural
imaterial é transmitido e recriado de geração em geração, promovendo desta forma
o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana; por sua vez, o art. 7° do
referido Decreto dispõe que: “O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais
registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo
do Patrimônio Cultural para decidir sobre a revalidação do título de "Patrimônio
Cultural do Brasil".
A dinamicidade dos bens culturais atualmente não encontra objeções na
doutrina especializada e mais recente. Ainda de acordo com a mesma autora:
(...) acredito que pensar a preservação de bens culturais a partir da
identificação de referências culturais - do modo como essa noção foi
entendida neste texto - significa adotar uma postura antes preventiva que
curativa. Pois trata-se de identificar, na dinâmica social em que se inserem
bens e práticas culturais, sentidos e valores vivos, marcos de vivências e
experiências que conformam uma cultura para os sujeitos que com ela se
identificam. Valores e sentidos esses que estão sendo constantemente
produzidos e reelaborados, e que evidenciam a inserção da atividade de
preservação de bens culturais no campo das práticas simbólicas. 48
A formulação de Paulo Affonso Leme Machado é no mesmo sentido:
48 FONSECA, Maria Cecília Londres. Op. cit. P. 89.
44
O conceito constitucional de patrimônio cultural é dinâmico, caminha no
tempo, unindo gerações. É uma noção ampla, e que poderíamos chamar de
patrimônio cultural social nacional. É a expressão cultural, ainda que
focalizada de forma isolada, que passa a ter repercussão num âmbito maior,
que é a “sociedade brasileira” (art. 216 CF). 49
Percebe-se, assim, que o patrimônio cultural é aquilo que liga as gerações
passadas às presentes e ambas às futuras gerações. É um vínculo entre gerações
que se modifica ao longo da história. Esse caráter dinâmico é ainda mais marcante
quando se está diante do patrimônio intangível, pois sua preservação depende da
sociedade que herdou uma manifestação cultural, a qual será responsável por
resguardar essa herança e repassá-la aos seus descendentes.
Outra novidade no âmbito cultural, foi que a Constituição Federal previu
expressamente o princípio da participação social no âmbito cultural ao dispor no §1°
do art. 216 que: “O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação.”
Ao estabelecer que o Poder Público e a comunidade são responsáveis
conjuntamente pela preservação do patrimônio cultural cria-se um modelo de gestão
democrático e participativo, o qual deve contar com a colaboração e atuação das
ONGs, empresas, sindicatos, associações, comunidades tradicionais, organismos
internacionais, entre outros. Portanto, houve uma superação do modelo anterior que
era verticalizado, ou seja, as decisões de preservação eram tomadas pelo Estado
sem a colaboração dos cidadãos.
Ademais, esse modelo de gestão democrática e participativa é fundamental à
concretização da proteção ao patrimônio cultural tal como previsto na Carta Magna,
pois esta ao dispor que o patrimônio cultural brasileiro é constituído pelos bens
“portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira” quis assimilar igualmente a cultura popular e
tradicional, não se restringindo apenas à cultura oficial e dominante. 49 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 .ª Ed. São Paulo: Malheiros,
2011. . p. 1025.
45
Percebe-se, portanto, que o conceito adotado na esfera constitucional e
acompanhado pelas legislações complementares implica em uma intercomunicação
do patrimônio cultural com o meio ambiente, as questões sociais, econômicas,
políticas, jurídicas, internacionais etc., de modo que qualquer medida protetiva deve
levar em consideração essas outras questões que se interpenetram. Especialmente,
os processos culturais devem ser tratados em conjunto com as questões sociais e
ambientais, é como se uma rede interligasse todas essas esferas em uma relação
de interdependência e interpenetração.
2.2. O Registro e o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) A Constituição Federal previu no art. 216, § 1° os meios de promoção e
proteção do patrimônio cultural. Este dispositivo elenca os inventários, registros,
vigilância, tombamentos, desapropriações, além de outras formas possíveis para o
acautelamento.
Como dito, na segunda metade da década de 90, conseguiu-se, a partir da
Carta de Fortaleza (1997), regulamentar a tutela ao patrimônio imaterial. Os esforços
conjuntos resultaram na edição do Decreto n° 3.551/2000, que instituiu o “Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial” e criou o “Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial” (PNPI). No mesmo ano, o IPHAN consolidou a metodologia para o
Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC).
Com isso, o sistema jurídico nacional passou a contar com novos
mecanismos para a proteção do patrimônio cultural intangível, especialmente
quando se trata da proteção às culturas tradicionais e populares. Assim, antes
mesmo da aprovação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da
UNESCO em 2003 o Brasil já contava com o Decreto n° 3.551/2000.
A definição do que seja o INRC consta na Instrução Normativa n° 01/2009 do
IPHAN:
(...) o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC - uma
metodologia de pesquisa desenvolvida pelo Iphan que objetiva auxiliá-lo na
produção de conhecimento e diagnósticos sobre os domínios da vida social
46
aos quais são atribuídos sentidos e valores que constituem referências de
identidade para os grupos sociais.
Os Inventários podem ser produzidos pelo ente público ou mediante parcerias
por pessoas físicas ou jurídicas externas ao IPHAN (§ 1° do art. 1, Instrução
Normativa 01/2009, IPHAN). Nesses casos, os entes externos, tais como ONGs e
fundações, deverão solicitar autorização ao IPHAN para o uso dessa metodologia, e
assinar um Termo de Compromisso.
O INRC é um importante instrumento para conhecer e documentar o
patrimônio imaterial. Além disso, fornece subsídios à implementação de políticas
públicas destinadas à valorização e proteção do conhecimento e à inclusão social
das comunidades e grupos inventariados. O objetivo é que os formuladores
produzam no INRC documentação plenamente hábil à instrução dos processos de
Registro. A inscrição de um bem imaterial em um dos livros próprios é o
reconhecimento estatal da importância deste bem, o qual passa a ostentar o título de
“Patrimônio Cultural do Brasil”.
O objetivo do registro é reconhecer a importância dos bens imateriais e
resguardá-los através da documentação. A proposta é a valorizar a cultura e
estimular os grupos e as comunidades detentoras desses conhecimentos, práticas e
saberes a conservar suas próprias histórias e tradições, repassando-os às gerações
futuras.
Conforme art. 1°, §1° do Decreto n° 3.551/2000, as manifestações culturais
imateriais podem ser registradas em quatro diferentes livros. A escolha dependende
das características da expressão cultural que se pretende inscrever. São eles:
I - Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e
modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades;
II - Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas
que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do
entretenimento e de outras práticas da vida social;
III - Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas
manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas;
IV - Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras,
santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem
práticas culturais coletivas.
47
O §3° deste artigo prevê que outros livros poderão ser abertos quando os
bens a serem inscritos não possam ser enquadrados nos livros previstos no §1°.
Além de instituir os livros, o citado decreto ainda dispõe sobre as partes
legítimas para requerer o registro (art. 2°) as atribuições do IPHAN (art. 3°) e do
Ministério da Cultura (art. 6°), o procedimento para análise e inscrição de um bem
nos livros (art. 4° e 5°), a revalidação e a perda do registro (art. 7°) e a instituição no
âmbito do Ministério da Cultura do "Programa Nacional do Patrimônio Imaterial" (art.
8°).
O caráter mutável e dinâmico do patrimônio cultural intangível não recomenda
que seja utilizado o tombamento para a proteção desses bens, pois este é um
instrumento jurídico voltado estritamente à salvaguarda dos bens materiais. Um bem
tombado deve ser preservado em sua integralidade, evitando-se ao máximo
qualquer modificação e descaracterização. Logo, o registro surge diante a
necessidade de se preservar bens cuja riqueza não reside propriamente no suporte
material, mas na dinâmica de produção de conhecimentos50.
No Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho
Patrimônio Imaterial, redigido por Márcia Sant’Anna, consta que quando da
elaboração da proposta dois princípios fundamentais foram levados em
consideração.
O primeiro refere-se à própria natureza do patrimônio intangível:
(...) essas manifestações possuem uma dinâmica específica de
transmissão, atualização e transformação que não pode ser submetida às
formas usuais de proteção do patrimônio cultural. O patrimônio imaterial não
requer ‘proteção’ e ‘conservação’ – no mesmo sentido das noções
fundadoras da prática de preservação dos bens culturais móveis e imóveis –
mas identificação, reconhecimento, registro etnográfico, acompanhamento
50 Os objetos, as edificações e os sítios materiais, quando tomados apenas por este prisma, podem ser tombados; enquanto que os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os lugares onde as práticas culturais são exercidas devem ser registrados nos termos do Decreto n° 3.551/2000.
48
periódico, divulgação e apoio. Enfim, mais documentação e
acompanhamento e menos intervenção51.
O segundo princípio é a substituição do conceito de autenticidade pela ideia
de continuidade histórica, que, conforme o instrumento, deve ser “identificada por
meio de estudos históricos e etnográficos que apontem as características essenciais
da manifestação, sua manutenção através do tempo e a tradição a qual se
vinculam”52. Por esta razão, os bens registrados são frequentemente reavaliados
pelo IPHAN a fim de se decidir sobre a manutenção do bem intangível como
integrante do patrimônio cultural imaterial do país.
A autora conclui em seguida que ambos os princípios caracterizam o registro
como “instrumento de reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial”53.
O Decreto n° 3.551/2000 também estabelece formas de participação popular
no processo. Afinal, o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial surgiu com
um viés democrático, tendo por objetivo possibilitar que setores da sociedade civil
participem, em efetivo, dos processos administrativos. O art. 2° estabelece que a
instauração de um processo de registro pode ser solicitada pelo Ministro de Estado
da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias estaduais,
municipais e do Distrito Federal; sociedades ou associações civis. Em seguida, o §
3° do art. 3° possibilita que a instrução do processo de registro seja feita por
entidade pública ou privada que detenha conhecimentos específicos sobre a
matéria.
O §2° do art. 1° do Decreto n° 3.551/2000 previu dois requisitos que devem
ocorrer concomitantemente para se efetuar o registro de um bem intangível: “A
inscrição num dos livros de registro terá sempre como referência a continuidade
histórica do bem e sua relevância nacional para a memória, a identidade e a
formação da sociedade brasileira”.
51 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 19.
52 Idem. 53 Idem.
49
Importante destacar, entretanto, que o Decreto, ao exigir que o bem tenha
“relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade
brasileira”, foi além do que previu a Constituição Federal. Afinal, o caput do art. 216
consta que o patrimônio cultural deve ser portador de “referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, não
havendo necessidade da relevância nacional. Deste modo, o requisito da relevância
nacional constante no decreto deve ser auferido nos termos do que propõe a Carta
Constitucional. Ou seja, em relação aos grupos formadores da nação brasileira,
integrantes de um país culturalmente diverso.
O requisito da continuidade histórica do patrimônio intangível nos reporta à
ideia de transformação do bem cultural ao longo das gerações. Devem ser bens de
caráter intergeracional, de modo a que sejam passíveis de registro aqueles que
guardem uma relação com o passado, sejam praticados no tempo presente e
tenham perspectiva de se manter no futuro.
Verifica-se que não houve previsão no Decreto n° 3.551/2000 a respeito do
tempo pretérito mínimo exigido para se concluir pela continuidade histórica de um
determinado bem que se pretende registrar. Cabe aos profissionais responsáveis
(antropólogos, historiadores, etc.) resolverem essa questão junto às populações
interessadas. Deste modo, há aqui uma discordância em relação à posição de
Machado que entende que para tanto seria melhor buscar uma interpretação
comparativa com o art. 7° do Decreto, que prevê o prazo de pelo menos dez anos
quando se trata de revalidação do título54.
Após a inscrição de um bem cultural em um dos livros de registro, a
continuidade histórica em relação à manutenção da prática cultural e sua
perspectiva futura será analisada pelo IPHAN mediante avaliações periódicas, ao
54 “O tempo pretérito de vida do bem cultural não está definido no decreto e nem em outro documento. Ficaria, então, sujeito à opinião de cada funcionário e conselheiro do IPHAN? Aparentemente, a resposta é afirmativa. Contudo, pode-se tentar uma interpretação comparativa em matéria de escala temporal, olhando-se o art. 7° do Decreto 3.551/2000. Neste artigo está estabelecido que a cada 10 anos será feita uma reavaliação do bem cultural, para se definir a revalidação do título de “Patrimônio Cultural do Brasil”.” MACHADO. Op. cit. P. 1033.
50
menos a cada dez anos, conforme previsto no art. 7° do Decreto55. Cabe ao órgão
verificar se a prática cultural se mantém viva, isto é, se é merecedora de continuar
com o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”. Nos casos em que não há
revalidação, o § único do art. 7° prevê que o registro será mantido como referência
cultural de seu tempo.
A avaliação deve levar em conta as alterações que podem ter ocorrido no
lapso temporal com o bem registrado, isso por causa do caráter vivo e dinâmico
dessas manifestações culturais. Porém, essas mudanças não podem
descaracterizar o bem que foi objeto de registro. Deve-se referir apenas às aspectos
marginais, permanecendo os elementos básicos, principais, identificadores.
Obviamente, não cabe fazer nova apreciação sobre a relevância do bem cultural,
pois isso já foi decidido quando da inscrição em um dos livros de registro.
Diante dessas considerações, conclui-se que o registro tem natureza
preventiva, pois busca a manutenção e a continuidade histórica dos bens culturais
imateriais. Por se tratar um instrumento que visa preservar as manifestações
culturais a fim de que essas se mantenham vivas e não sejam esquecidas, a ele
caberá orientar as políticas públicas em relação aos incentivos para a continuidade
histórica de uma determinada prática cultural.
Márcia Sant’Anna elucida os vários efeitos do registro:
Os efeitos do registro são vários. Em primeiro lugar, fica instituída a
obrigação pública de documentar e acompanhar a dinâmica das
manifestações culturais registradas. Em segundo lugar, promove-se, com o
ato de inscrição, o reconhecimento da importância desses bens e sua
valorização, mediante a concessão do título do Patrimônio Cultural do Brasil
e a implementação, em parcerias com entidades públicas e privadas, de
ações de promoção e divulgação. Em terceiro, se estabelece a manutenção,
pelo Iphan, de banco de dados sobre os bens registrados abertos ao
público; e, por fim, se favorece a transmissão e a continuidade das
manifestações registradas mediante a identificação de ações de apoio, no
âmbito do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Além desses efeitos,
o registro ensejará a realização de inventário nacional de referência cultural 55 “O IPHAN fará a reavaliação dos bens culturais registrados, pelo menos a cada dez anos, e a encaminhará ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural para decidir sobre a revalidação do título de "Patrimônio Cultural do Brasil".
51
que permitirá o mapeamento dessas manifestações no território nacional,
fornecendo dados para o desenvolvimento de uma política nacional de
registro e valorização apoiada em sólida base de conhecimentos”56.
Deste modo, o registro é importante para se traçar uma política pública
adequada ao reconhecimento e valorização do patrimônio imaterial. O art. 8° do
citado Decreto inclusive institui um “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”,
para que seja implementada uma política específica de inventário, referenciamento e
valorização do patrimônio cultural intangível.
Atualmente já foram registradas pelo IPHAN as seguintes expressões
culturais do patrimônio intangível (dados atualizados em abril de 2012):
Livro de Registro dos Saberes: a) Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro;
b) Modo de fazer Viola-de-Cocho; c) Ofício dos Mestres de Capoeira; d) Ofício de
Sineiro; e) Modo Artesanal de Fazer Queijo de Minas nas regiões do Serro e das
serras da Canastra e do Salitre/ Alto de Paranaíba; f) Ofício das Baianas de Acarajé;
g) Modo de Fazer Renda Irlandesa, tendo como referência este ofício em Divina
Pastora/SE; h) Ofício das Paneleiras de Goiabeira; i) Saberes e Práticas Associados
ao modo de fazer Bonecas Karajá.
Livro de Registro das Celebrações: a) Círio de Nossa Senhora de Nazaré; b)
Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranhão; c) Festa do Divino Espírito
Santo de Pirenópolis/GO; d) Feira de Sant’Ana de Caicó/RN; e) Ritual Yaokwa do
povo indígena Enawene Nawe.
Livro de Registro das Formas de Expressão: a) Arte Kusiwa – pintura corporal
e gráfica Wajãpi; b) Frevo; c) Jongo no Sudeste; d) Matrizes do Samba no Rio de
Janeiro: Partido Alto, Samba de Terreiro e Samba-Enredo; e) Samba de Roda do
Recôncavo Baiano; f) Tambor de Crioula do Maranhão; g) Roda de Capoeira; h)
Toque dos Sinos em Minas Gerais tendo como referência São João del Rey e as
cidades e Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Congonhas do Campo, Sabará, Serro e
Tiradentes; i) Ritxòkò: Expressão Artística e Cosmológica do Povo de Karajá.
56 SANT’ANNA, Márcia. Relatório Final das Atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial in O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006. P. 21.
52
Livro de Registro dos Lugares: a) Cachoeira de Iauaretê – Lugar Sagrado dos
Povos Indígenas dos rios Uaupés e Papuri; b) Feira de Caruaru.
53
Capítulo 3. Bem cultural
O presente capítulo tem por escopo aprofundar o estudo do que seja o “bem
cultural”, identificando suas principais características e as analisando. Constatou-se
que os aspectos que se destacam são o ambiental, o difuso e o fato de pertencer a
uma categoria de bens de interesse público, que não se relaciona com a dicotomia
bens públicos versus bens privados.
3.1. Bem cultural como bem ambiental Feitas as considerações sobre o conceito de patrimônio cultural imaterial na
Constituição Federal de 1988 e sobre os instrumentos legais a eles aplicáveis, cabe
indagar sobre a natureza do bem cultural, se ele pode ou não ser considerado como
um bem ambiental e quais as suas principais características.
Atualmente, a maioria da doutrina especializada em Direito Ambiental entende
que a Constituição Federal adotou uma concepção unitária de meio ambiente.
Considera como bem ambiental os bens naturais e artificiais e também os bens
culturais. Nos termos do art. 225 da CF, todos esses bens constituem o meio
ambiente e devem compô-lo para que este seja ecologicamente equilibrado e
proporcione uma qualidade de vida saudável,.
Na doutrina pátria um dos conceitos de meio ambiente mais aceito e
reproduzido é o formulado por José Afonso da Silva na obra Direito Ambiental
Constitucional, o qual adota uma visão unitária. De acordo com o renomado jurista:
O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de
toda a Natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos,
compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais,
o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. 57
Em seguida, ele propõe o seguinte conceito para meio ambiente:
“O meio ambiente é, assim, a interação do conjunto de elementos naturais,
artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida
57 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 20.
54
em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção
unitária do ambiente, compreensiva dos recursos naturais e culturais.” 58
José Afonso elenca três aspectos do meio ambiente, são eles: o artificial, o
cultural e o natural. Ele diferencia o meio ambiente artificial do cultural, pois esse
último tem “um sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”59.
Fiorillo também adota a concepção unitária de meio ambiente e vai além ao
incluir como o quarto aspecto o meio ambiente do trabalho. Ele entende que o
conceito de meio ambiente previsto na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente foi
recepcionado pela Constituição Federal em razão da utilização da expressão “sadia
qualidade” de vida no art. 225. Completa:
Com isso, conclui-se que a definição de meio ambiente é ampla, devendo-
se observar que o legislador optou por trazer um conceito jurídico
indeterminado, a fim de criar um espaço positivo de incidência da norma.
(...)
Primeiramente, cumpre frisar que é unitário o conceito de meio ambiente,
porquanto todo este é regido por inúmeros princípios, diretrizes e objetivos
que compõem a Política Nacional do Meio Ambiente. Não se busca
estabelecer divisões estanques, isolantes, até mesmo porque isso seria um
empecilho à aplicação da efetiva tutela. 60
Edis Milaré também aceita a concepção unitária do meio ambiente e, ao
interpretar a Constituição Federal juntamente com a Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente, conclui que:
Para o Direito brasileiro, portanto, são elementos do meio ambiente, além
daqueles tradicionais, como o ar, a água e o solo, também a biosfera, esta
com claro conteúdo relacional (e, por isso mesmo, flexível). Temos, em
todos eles, a representação do meio ambiente natural. Além disso, vamos
encontrar uma série de bens culturais e históricos, que também se inserem
58 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 20.
59 SILVA, José Afonso da. Op. cit. P. 21. 60 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 72, 73.
55
entre os recursos ambientais, como meio ambiente artificial ou humano,
integrado ou associado ao patrimônio natural61.
Carlos Frederico Marés também entende que o meio ambiente é integrado
pela natureza e pelas modificações introduzidas pelo homem:
O meio ambiente, entendido em toda a sua plenitude e de um ponto de vista
humanista, compreende a natureza e as modificações que nela vem
introduzindo o ser humano. Assim, o meio ambiente é composto pela terra,
a água, o ar, a flora e a fauna, as edificações, as obras de arte e os
elementos subjetivos e evocativos, como a beleza da paisagem ou a
lembrança do passado, inscrições, marcos ou sinais de fatos naturais ou da
passagem de seres humanos. Desta forma, para compreender o meio
ambiente é tão importante a montanha, como a evocação mística que dela
faça o povo.
Alguns destes elementos existem independentes da ação do homem e os
chamamos de meio ambiente natural; outros são frutos da sua intervenção
e os chamamos de meio ambiente cultural. 62
Na legislação brasileira, o conceito de meio ambiente foi dado pelo art. 3°,
inciso I da Lei n° 6.938/1981 que dispõe sobre a Política Nacional de Meio Ambiente,
o citado dispositivo prevê que meio ambiente é “o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e
rege a vida em todas as suas formas”. É uma definição restrita de meio ambiente ao
adotar somente o aspecto natural, ela foi recepcionada pela Lei Maior por não colidir
com os dispositivos constitucionais ambientais. Contudo, é uma definição parcial já
que não inclui os aspectos artificiais e culturais.
As opiniões da doutrina especializada acima expostas nos parecem acertadas
ao acolherem a visão unitária do meio ambiente, a qual está de acordo com uma
interpretação sistemática e integradora da Lei Maior, bem como com a concepção
holística de meio ambiente. A Constituição Federal quis que a tutela ambiental não
61 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. A Gestão Ambiental em foco. 7ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. P. 143. 62 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15.
56
se restringisse somente aos recursos naturais, mas alcançasse também os
elementos artificiais e culturais.
Deste modo, tem-se o bem ambiental como gênero, do qual o bem natural, o
bem artificial e o bem cultural são espécies. Porém, essas espécies de bens jamais
devem ser vistas como partes isoladas ou estanques, mas como as partes de um
conjunto que se integram, de um todo, que é o meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
A divisão do meio ambiente em diversos aspectos ou categorias é meramente
para fins didáticos e operacionais, pois com isso se destaca uma especial qualidade
de um bem e se possibilita um melhor tratamento jurídico, uma tutela mais eficaz e
que leve em conta as peculiaridades e particularidades de cada um.
A atual Constituição Federal ao assegurar o equilíbrio ecológico do meio
ambiente garante a manutenção e continuidade da vida humana e, mais,
proporciona aos indivíduos condições de vida digna, de modo que o artigo 225
instituiu em prol dos indivíduos um direito fundamental. Embora este não seja
explícito por não estar expresso no art. 5° da Carta Magna, trata-se de um direito
fundamental implícito por força do §2° do art. 5° ao possibilitar meios para a
concretização do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, CF).
Outro ponto relevante para o estudo das relações entre o bem ambiental e
bem cultural é o caráter intergeracional. A solidariedade entre as gerações foi
expressamente prevista no caput do art. 225 da Constituição Federal, que impôs a
todos o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as
presentes e futuras gerações. Apesar da previsão expressa no texto constitucional,
exatamente no capítulo dedicado ao meio ambiente, esse princípio ainda tem sido
pouco explorado pela doutrina nacional.
O princípio da solidariedade intergeracional foi incluído em na Constituição
Federal seguido a tendência de documentos internacionais que a precederam.
Especificamente, ele constou nos princípios 1 e 2 da Carta de Estocolmo de 1972
(ONU), os quais impuseram ao homem o dever de preservar o meio ambiente para
as presentes e futuras gerações. Em seguida, em 1987, novamente foi incluído no
documento “Nosso Futuro Comum” (ONU), oportunidade em que foi intimamente
57
relacionado ao desenvolvimento sustentável, que assim foi definido: “o
desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer as
capacidades das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”.
Machado aborda a solidariedade entre gerações quando trata do princípio do
acesso equitativo aos recursos naturais. Explica que os “bens que integram o meio
ambiente planetário, como água, ar, sol e solo, devem satisfazer as necessidades
comuns de todos os habitantes da Terra”63. Em seguida acrescenta que a “equidade
no acesso aos recursos ambientais deve ser enfocada não só com relação à
localização espacial dos usuários atuais, como em relação aos usuários potenciais
das gerações vindouras”64.
O citado autor também ressalta a solidariedade entre gerações quando define
patrimônio cultural, ressaltando a importância da geração presente em preservá-lo
para as gerações futuras:
O conceito de patrimônio está ligado a um conjunto de bens que foi
transmitido para a geração presente. O patrimônio cultural representa o
trabalho a criatividade, a espiritualidade e as crenças, o cotidiano e o
extraordinário de gerações anteriores, diante do qual a geração presente
terá que emitir um juízo de valor, o que quererá conservar, modificar ou até
demolir. Esse patrimônio é recebido sem mérito da geração que o recebe,
mas não continuará a existir sem seu apoio. O patrimônio cultural dever ser
fruído pela geração presente, sem prejudicar a possibilidade de fruição da
geração futura65.
O princípio da equidade intergeracional ao dispor que gerações ainda sequer
nascidas são igualmente detentora de direitos ambientais prevê algo à primeira vista
impensável aos sistemas jurídicos, salvo pela tutela dos direitos dos nascituros.
Marchesan se socorre a James Nickel quando enfrenta essa questão:
Convém lembrar, não sem a ajuda de Nickel, que os fundamentos que
embasam a defesa dos direitos das futuras populações são os mesmos que
63 Op. cit. P. 66,67. 64 Op. cit. P. 68,69. 65 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 .ª Ed. São Paulo: Malheiros,
2011. P. 1023.
58
norteiam a justiça para as pessoas que hoje habitam o planeta. Em ambos
os casos, a ideia base é que humanos são iguais em seus reclamos
espirituais e devem tratar uns aos outros equanimente no tocante à
apropriação de recursos 66.
Esse princípio, apesar de não constar expressamente nos artigos 215 e 216
da Constituição, deve ser aplicado aos bens culturais, afinal ele é a base da
proteção do patrimônio cultural imaterial. Não é possível preservar expressões
culturais, conhecimentos, técnicas, modos de fazer criar e viver sem que haja a
transmissão entre gerações. Essas formas vivas de culturas somente assim
permanecerão se forem assimiladas pelas gerações vindouras, a qual será a
depositária da cultura dos seus antepassados. De acordo com Marchesan “É na
dimensão cultural que o princípio da equidade intergeracional se apresenta com toda
sua plenitude, porquanto uma sociedade humana não pode sobreviver sem a
transmissão cultural de uma para outra geração”67.
Tendo em conta as considerações acima, não resta dúvida de que o bem
cultural tomado como bem ambiental é, portanto, essencial à qualidade de vida do
ser humano e sua preservação é fundamental para a manutenção do equilíbrio
ecológico dos ecossistemas. A finalidade última dessa preservação é criar condições
de vida digna tanto para os indivíduos que serão diretamente por ela beneficiados
como para toda a coletividade. Essa essencialidade reside no fato de que a
salvaguarda da cultura de um povo permite a preservação da sua memória e sua
continuidade histórica. A diversidade cultural em um país somente existe se os
diferentes grupos que o compõem puderem manter e cultivar sua própria cultura ao
longo das gerações, não importando se essas culturas remetam ou não aos padrões
da nacionalidade.
3.2. Bem cultural como bem de interesse público Outra questão relevante ao presente estudo é o especial interesse que
qualifica os bens culturais (espécie de bem ambiental) e a relação dos mesmos
estabelecem frente à tradicional divisão civilista de bens públicos e bens privados.
66 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A Tutela do Patrimônio Cultural sob o enfoque do Direito Ambiental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. P. 165. 67 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Op. cit. P. 163.
59
Os bens jurídicos são aqueles passíveis de valoração pelo Direito e que
podem servir de objeto de uma relação jurídica, portanto podem ter ou não valor
econômico. Deste modo, os bens ambientais e os bens culturais são bens jurídicos e
podem ser classificados como públicos ou privados dependendo da titularidade do
bem. Por exemplo: uma obra de arte pode pertencer a uma coleção particular ou a
um museu público, um prédio histórico tombado pode ter como proprietário um
particular ou um órgão público, entre outros.
Isto é, o bem cultural, independentemente de sua dominialidade pública ou
privada, é qualificado por um interesse público. “Bem de interesse público” é uma
uma nova categoria de bens estabelecida pela doutrina especializada com o objetivo
de superar a tradicional dicotomia entre o bem público e o bem privado, prevista no
Código Civil de 1917 e reiterada no novo Código em 2002.
De acordo com José Afonso da Silva, os bens culturais estão sujeitos a um
regime jurídico especial68 a que podem ser submetidos tantos bens públicos como
os privados. Eles seriam considerados pela doutrina como “bens de interesse
público” e acrescenta que nesta categoria especial:
(...) se inserem tantos os bens pertencentes a entidades públicas como os
bens dos sujeitos privados subordinados a uma particular disciplina para a
consecução de um fim público, uma espécie de propriedade funcionalizada.
O que dá natureza especial a esses bens é precisamente o valor cultural
neles impregnado69.
Na concepção de Marés70, os bens ambientais (naturais ou culturais) são
bens de interesse público, por serem portadores do interesse que torna seu caráter
público diferente em relação a outros bens:
Todos os bens, materialmente considerados, sejam ambientais ou não, são
públicos ou privados. Os ambientais, porém, independente de serem
públicos ou privados, revestem-se de um interesse que os faz terem um
caráter público diferente. A diferença está em que, seja a propriedade
68 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 154. 69 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 154. 70 Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15. P. 23.
60
pública ou particular, os direitos sobre esses bens são exercidos com
limitações e restrições, tendo em vista o interesse público, coletivo, nela
existente. O interesse público é, neste caso, o reconhecimento coletivo de
que o bem cultural deve ser preservado71.
Assim, ao classificar um bem cultural como “bem de interesse público” o que
se pretende é identificar o elemento que diferencia esses bens dos demais. Esse
diferencial é o valor cultural que os permeia, que é de interesse do Poder Público e
de toda a coletividade. Portanto, a categoria não altera o regime civil dos bens
públicos ou privados, mas impõe o dever de proteção aos bens culturais, de modo
tal que toda a coletividade passa a ter direitos e obrigações sobre tais bens. Nesta
toada, percebe-se que o esse interesse público que qualifica os bens culturais está
intimamente ligado a outra característica: a titularidade difusa.
Já foi visto que todo bem cultural possui um valor que lhe dá sentido e, tal
como previsto no art. 216 CF, esse valor concerne à referência cultural que ele deve
portar em relação a um grupo formador da identidade nacional. Sendo assim, a
proteção do bem cultural interessa a uma determinada coletividade e também a todo
povo brasileiro, pois esse bem contribui para manutenção da diversidade cultural no
país. Ademais, a Constituição Federal no §1° do art. 216 impôs ao Poder Público,
com colaboração da comunidade, o dever de proteção do patrimônio cultural.
Nos dizeres de José Afonso da Silva: “A essência do bem cultural consiste na
sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto
material e um valor que lhe dá sentido. Por isso se diz que o ser do bem cultural é
ser um sentido.”72 Os interesses e direitos da coletividade recaem sobre o caráter
intangível, imaterial do bem cultural, isto é, sobre o especial sentido que eles têm
para os indivíduos, para os diversos grupos sociais e para o povo brasileiro, por isso
são bens difusos.
Nos dizeres de José Afonso da Silva, “a essência do bem cultural consiste na
sua peculiar estrutura, em que se fundem, numa unidade objetiva, um objeto
material e um valor que lhe dá sentido. Por isso se diz que o ser do bem cultural é 71 Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Bens Culturais e sua Proteção Jurídica. 3ª. Ed. São Paulo: Juruá, 2005. P. 15.. P. 22.
61
ser um sentido”73. Os interesses e direitos da coletividade recaem sobre o caráter
intangível, imaterial do bem cultural, isto é, sobre o especial sentido que eles têm
para os indivíduos, para os diversos grupos sociais e para o povo brasileiro, por isso
são bens difusos.
Marés bem explica esse fenômeno:
Na realidade, sobre estes bens nasce um novo direito, que se sobrepõe ao
antigo direito individual já existente. O bem como que se divide em um lado
material, físico, que pode ser aproveitado pelo exercício de um direito
individual, e outro, imaterial, que é apropriado por toda coletividade, de
forma difusa, que passa a ter direitos ou no mínimo interesse sobre ela.
Como estas partes ou lados são inseparáveis, os direitos, ou interesses
coletivos sobre uma delas necessariamente se comunicam à outra. 74
3.3. Bem cultural como bem difuso Dado que a titularidade difusa do bem cultural é constatada e reforçada
quando se tem em conta que se está diante de uma espécie de bem ambiental,
integrante do meio ambiente, de uso comum do povo (art. 225 da CF e inciso I do
art. 2° da LPNMA) e essencial à sadia qualidade de vida, estes bens devem ser
fruídos não somente em benefício de seu proprietário, mas de toda a coletividade,
preservando-os também para as futuras gerações.
Os bens ambientais, passíveis de apropriação pública ou privada, além da
função econômica a que são destinados, devem cumprir uma função
socioambiental. José Afonso explica que “o proprietário, seja pessoa pública ou
particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer porque
ela não integra a sua disponibilidade”75.
A norma do art. 225 da CF ao estabelecer que todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado, não se refere a uma pessoa individualmente,
mas a uma coletividade de pessoas indefinidas, o que revela o caráter
transindividual desses bens. De acordo com Fiorillo:
73 SILVA, José Afonso da. Ordenação Constitucional da Cultura. P. 26.
74 Op. cit. P. 23. 75 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 9ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011. P. 84.
62
O bem ambiental é, portanto, um bem que tem como característica
constitucional mais relevante ser ESSENCIAL À SADIA QUALIDADE DE
VIDA, sendo ontologicamente de uso comum do povo, podendo ser
desfrutado por toda e qualquer pessoa dentro dos limites constitucionais76.
(itálico e maiúsculas no original)
Por sua importância para a sadia qualidade de vida, bem como sua
titularidade difusa, Marés se refere a eles como “bens socioambientais”. De acordo
com este autor são bens que não podem ser divididos entre os titulares, eles não se
confundem com aqueles bens que possuem vários proprietários individuais.
Acrescenta que, ainda que a coisa seja indivisa, eles não pertencem a ninguém
especial, mas a toda coletividade. Veja-se:
Os bens socioambientais são todos aqueles que adquirem essencialidade
para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e de
todas as culturas humanas (sociodiversidade). Assim, os bens ambientais
podem ser naturais ou culturais, ou se melhor podemos dizer, a razão da
preservação há de ser predominantemente natural ou cultural se tem como
finalidade o bio ou a sociodiversidade, ou a ambos, numa interação
necessária entre o ser humano e o ambiente em que vive77.
Deste modo, a Constituição Federal de 1988 inovou em relação ao sistema
anterior ao prever os bens difusos, ou seja, uma nova classe de bens que não se
enquadra na classificação de bens públicos ou privados. Esses bens têm como
característica a indivisibilidade e a transindividualidade, pois pertencem a pessoas
indeterminadas. A diferença dos bens difusos em relação aos bens públicos é a
titularidade, pois estes pertencem aos entes públicos.
A previsão constitucional para os bens difusos encontra-se explicitamente no
art. 129, inciso III, que estabelece como função institucional do Ministério Público a
defesa dos interesses difusos e coletivos por meio de ação civil pública. Ademais, é
possível identificar outros dispositivos constitucionais que previram direitos de
natureza difusa, como exemplo, o próprio art. 225 que dispõe que todos têm direito
76 FIORILLO. Op. cit. P. 179. 77 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 38.
63
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como os artigos que tratam do
direito à educação, à cultura, à saúde, entre outros.
Os direitos difusos vieram a ter tratamento constitucional em um momento
histórico em que os direitos das coletividades ganhavam cada vez mais projeção e
reconhecimento, pois em várias situações uma ameaça de lesão ou uma lesão não
afetavam somente a esfera de um indivíduo, mas de pessoas indeterminadas ou de
toda uma coletividade. Foi uma ruptura com o modelo civilista da modernidade
construído inteiramente sobre o individualismo, mais especificamente, sobre a
propriedade privada e a autonomia da vontade.
A sociedade contemporânea, assentada sob o modelo capitalista de
produção, é caracterizada pela intensificação da industrialização, produção em larga
escala, automatização dos meios de produção, interdependência entre os países,
concentração populacional nos centros urbanos, aumento do poder das mídias,
entre outros, consequentemente, esse novo delineamento social teve reflexos no
âmbito jurídico. Foi necessário elaborar um sistema que superasse o modelo
individualista e atendesse às necessidades das coletividades e de pessoas
indeterminadas ligadas entre si por motivos circunstanciais. Foi diante desse
contexto histórico e social que os interesses e direitos difusos foram inseridos na
Constituição Federal de 1988.
O ordenamento jurídico brasileiro já contava com alguns diplomas legais que
tratavam dos direitos coletivos, tais como: o Decreto-Lei n° 25/1937 que instituiu o
tombamento dos bens culturais, o Código Florestal (Lei n° 4.771/1965), a Lei da
Ação Popular (Lei n° 4.717/65) e a Lei de Ação Civil Pública (Lei n° 7.347/1985),
mas foi apenas com a promulgação da Constituição Federal em 1988 que os direitos
difusos e coletivos passaram a ter visibilidade.
Na esfera infraconstitucional, dois anos mais tarde foi aprovado o Código de
Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90) para regulamentar os direitos e deveres nas
relações de consumo e prever normas processuais. Esse diploma legal inaugurou
um sistema processual de tutela coletiva, o qual foi completado por institutos
processuais já existentes, como a Ação Popular e a Ação Civil Pública.
64
Portanto, hoje contamos com um sistema processual que coloca à disposição
da coletividade lesada ou ameaçada de lesão um “microssitema da tutela coletiva”,
que consiste em um conjunto de dispositivos processuais para a defesa dos
interesses e direitos coletivos lato sensu. Esse microssistema é composto
especialmente pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Lei de Ação Civil
Pública, que estão interligados e se comunicam.
De acordo com os autores Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:
A ação coletiva para a tutela de direitos difusos e coletivos é basicamente
regida pelo conjunto formado pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código
de Defesa do Consumidor. Em verdade, não se trata de uma única ação,
mas sim de um conjunto aberto de ações, de que se pode lançar mão
sempre que se apresentem adequadas para a tutela desses direitos. Nesse
sentido, claramente estabelece o art. 83 do CDC que, para a defesa dos
direitos difusos e coletivos, são admissíveis todas as espécies de ações
capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela78.
O Código de Defesa do Consumidor dispôs no art. 81 que a defesa coletiva
poderá ser exercida quando estivermos diante de direitos difusos, coletivos (em
sentido estrito) e individuais homogêneos. A diferenciação entre essas categorias
reside no tipo de interesse ou direito a ser tutelado por uma ação coletiva.
Como visto, os direitos difusos (inciso I) eles são indivisíveis e
transindividuais, ou seja, não há como individualizar os sujeitos, os titulares desse
direito são pessoas indeterminadas e indetermináveis ligadas por circunstâncias de
fato. Os direitos coletivos (inciso II), por sua vez, também são indivisíveis e
transindividuais, mas tem como sujeito um grupo, uma categoria ou uma classe de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
Nesta categoria é possível identificar um grupo de determinados de sujeitos de
direito, podendo esse grupo ser ou não organizado.
Por fim, os direitos individuais homogêneos (inciso III) são divisíveis e
decorrentes de uma origem comum. Ao contrário do que ocorre com os direitos
difusos e coletivos, aqui tutela-se direitos individuais, que podem ser atribuídos a
78 MARINONI, Luiz. Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil, vol. 2, Processo de Conhecimento, 6ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. P. 733.
65
sujeitos determinados. Porém, por serem direitos idênticos pertencentes a diversas
pessoas, em razão da massificação das relações sociais, admite-se a tutela coletiva
para uma melhor prestação da atividade jurisdicional, evitando decisões conflitantes.
Essa classificação prevista no Código de Defesa do Consumidor foi
estruturada para a tutela dos direitos e interesses coletivos em juízo, desse modo, a
distinção entre essas categorias deve ser feita levando-se em conta o interesse
posto em juízo e o pedido formulado em uma ação coletiva. De acordo com
Consuelo Yoshida: “Não é possível proceder-se à correta distinção entre os direitos
e interesses metaindividuais sem se atentar para o tipo de pretensão material e da
tutela jurisdicional pretendida”79.
Feitas essas considerações não há dúvidas de que o bem cultural é um bem
difuso, pois é indivisível e interessa à toda sociedade brasileira conservá-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações, não sendo possível identificar os
sujeitos que serão beneficiados pela ação coletiva (transindividual).
Contudo, sob a ótica processual, se admitirmos que a pretensão material ou a
tutela pretendida se refere apenas a uma coletividade determinada ou passível de
determinação é possível enquadrar o bem cultural também na categoria dos
interesses ou direitos coletivos (em sentido estrito). No entanto, a finalidade última
da tutela será sempre a proteção do patrimônio cultural dos povos que compartilham
a construção da nação dos brasileiros, que, no limite, interessam a todos, mesmo
que indiretamente.
Assim, face ao exposto, não há dúvidas de que o bem cultural é um bem
difuso, de modo que quando estivermos diante de lesão ou ameaça de lesão aos
interesses ou direitos culturais deve-se lançar mão das regras processuais próprias
para a defesa dos interesses e direitos metaindividuais. Conclui-se, em síntese, que
o bem cultural é bem ambiental, de titularidade difusa e de interesse público ao
apresentar o valor cultural como elemento diferencial.
79 YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Direitos e Interesses Individuais Homogêneos: A “Origem Comum” e a Complexidade da Causa de Pedir. Implicações na legitimidade Ad Causam ativa e no interesse de agir do Ministério Público. Revista da Faculdade de Direito PUC-SP, ano 1, 1º. Semestre-2001. Método: São Paulo, 2001. P. 109.
66
Capítulo 4. Socioambientalismo e Biodiversidade
Este capítulo se destina ao estudo do socioambientalismo no Brasil,
considerando o disposto na Constituição Federal de 1988. Adentrar neste tema é
essencial para a presente pesquisa, uma vez que, como visto, o socioambientalismo
contém, em si, tanto a sociodiversidade e quanto a biodiversidade, ambas
relacionadas com o patrimônio cultural imaterial. No item subsequente, foi abordada
a biodiversidade, tendo em conta principalmente o previsto na Convenção sobre
Diversidade Biológica (1992) da ONU.
4.1. Socioambientalismo Já foi abordado anteriormente que a Constituição Federal de 1988 foi
formulada após o fim do regime militar, e que buscou atender aos anseios de uma
sociedade civil farta de autoritarismo, e ansiosa por abertura e redemocratização.
Durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, diversos grupos e representantes
dos mais variados setores da sociedade civil colaboraram nas discussões e estudos,
de modo que foi possível incluir no texto parte das propostas e reivindicações, tais
como as relativas ao ambiente e aos direitos dos povos indígenas.
Com a promulgação do documento em 1988, o país passou a dispor de uma
Carta Constitucional democrática, pluralista, cidadã e com um extenso rol de
direitos. Além dos já consagrados direitos básicos do homem, foram incluídos os
direitos de terceira geração, como exemplo: o direito ao meio ambiente sadio e
equilibrado, os direitos do consumidor, os direitos indígenas e de outras minorias, a
função social e ambiental da propriedade privada, entre outros.
Essa Carta Constitucional foi a primeira na história do Brasil a dedicar um
capítulo inteiro à proteção do meio ambiente, considerado como um direito
fundamental. Além das disposições constantes no art. 225, outros artigos também
abordam a questão ambiental em temas específicos, na política urbana, no
desenvolvimento agrário, nas questões indígenas, como princípio geral da ordem
econômica, entre outros.
Inovou também ao prever pela primeira vez a solidariedade intergeracional
para com o meio ambiente, isto é, todos (Estado e coletividade) devem preservá-lo
67
para as presentes e futuras gerações. O citado artigo dispõe que: “Todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”
As disposições constitucionais relativas ao meio ambiente, incluindo seu
caráter intergeracional, foram inspiradas no conceito de ecodesenvolvimento
consolidado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em
1972, em Estocolmo; bem como no conceito de desenvolvimento sustentável
previsto no documento intitulado “Nosso futuro comum”, publicado em 1987 pela
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU.
Durante as polêmicas reuniões da Conferência de Estocolmo, como uma via
alternativa às propostas de desenvolvimento econômico alheio às questões
ambientais e sociais, o canadense Maurice Strong propôs um modelo de
desenvolvimento em que todas essas questões deviam ser conjuntamente
consideradas, o que chamou de ecodesenvolvimento. Posteriormente, o economista
Ignacy Sachs ampliou e difundiu esse conceito abordando questões éticas, culturais
e a solidariedade entre as gerações.
Anos mais tarde, em 1983, a ONU criou a Comissão Mundial sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela Primeira Ministra da Noruega Gro
Harlem Brundtland. Como resultado foi publicado em 1987 o documento “Nosso
futuro comum”, também conhecido por “Relatório Brundtland”.
Essa Comissão teve como desafio analisar a situação ambiental face às
críticas ao modelo econômico de desenvolvimento praticado nas nações
industrializadas e repetido nos países periféricos, em que os recursos naturais eram
utilizados desconsiderando-se a capacidade de renovação e absorção dos
ecossistemas.
Ao final dos estudos, a Comissão propôs que o desenvolvimento econômico
fosse integrado à questão ambiental e promovesse a equidade social, vindo a
formular o termo desenvolvimento sustentável, assim definido no citado documento:
“o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer as
capacidades das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades.”
68
Portanto, foi sob a influência dos conceitos de ecodesenvolvimento e
desenvolvimento sustentável que foi promulgada a Constituição Federal de 1988,
com o objetivo de se estabelecer uma sociedade pautada pela liberdade, pela
solidariedade, pela justiça social, pela defesa do meio ambiente, pela diversidade
cultural, entre outros.
A Constituição Federal previu o princípio do desenvolvimento sustentável
tanto no art. 225, como no art. 170. O art. 225 o tratou ao prever que todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e devem preservá-lo para as
presentes e futuras gerações, por sua vez no art. 170 consta que a ordem
econômica tem por finalidade assegurar a todos a existência digna, conforme os
ditames da justiça social, e dentre os princípios a serem observados está a defesa
do meio ambiente (inciso IV). Esse inciso sofreu alteração pela EC n° 42/2003, a
qual lhe acrescentou o seguinte texto: “inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação;”.
O objetivo deste princípio foi aliar a questão ambiental e ao desenvolvimento
econômico, promovendo a equidade social. Tendo em conta a concepção unitária de
meio ambiente e sua abordagem holística, para a efetivação do princípio do
desenvolvimento sustentável a questão cultural também deve ser analisada e
sopesada nesta equação. Isto é, as políticas públicas de desenvolvimento
econômico devem abordar tanto a preservação dos recursos naturais como a
salvaguarda do patrimônio cultural, seja material ou imaterial.
O patrimônio cultural imaterial são as práticas, representações, expressões,
conhecimentos e técnicas que as comunidades e grupos reconhecem como
integrante do seu patrimônio cultural, portanto, ao se salvaguardá-lo se está,
concomitantemente, garantindo condições de vida digna aos detentores dessas
expressões intangíveis e possibilitando a manutenção das formas de cultura que os
nutre e os identifica perante o restante da sociedade. Consequentemente, assegura-
se a diversidade cultural.
69
Assim, o desenvolvimento econômico e social para ser sustentável deve
incluir em sua pauta a proteção às diferentes formas de expressão cultural do seu
povo.
Foi, portanto, em um contexto de reabertura política e sob a influência de
novas ideias e concepções, tais como as propostas pelo desenvolvimento
sustentável, que “novos direitos” passaram a constar na Constituição Federal e
minorias, antes marginalizadas, puderam ser contempladas. Como exemplo, aos
povos indígenas foi dedicado um capítulo próprio, assegurando-lhes direitos
coletivos, o direito à diferença cultural (manter a própria língua, crenças, tradições e
costumes) e os direitos originários sobre as terras tradicionalmente por eles
ocupadas; às comunidades remanescentes de quilombos foi reconhecida a
propriedade definitiva das terras tradicionalmente por elas ocupadas.
A interpretação sistemática desses “novos direitos” constitucionais possibilitou
o desenvolvimento do socioambientalismo no Brasil. Trata-se de um modelo que
rompe com o padrão anterior em que o individual é valorizado em detrimento do
coletivo e propõe um novo paradigma, que concilia os direitos sociais e culturais com
os direitos ambientais. Porém, não se trata de uma simples soma desses direitos. A
proposta socioambiental vai além, ao buscar a igualdade e a justiça social por meio
da promoção conjunta da sustentabilidade ambiental e da sustentabilidade
sociocultural. Isto é, alia a biodiversidade à sociodiversidade.
Ressalta-se que é a inclusão das questões sociais que difere o ambientalismo
tradicional do socioambientalismo. Este é uma vertente mais moderna e atual
daquele, pois objetiva uma maior aplicabilidade e efetividade aos direitos
fundamentais ao incorporar os direitos sociais e os culturais na pauta ambiental. O
ambientalismo tem uma visão mais restrita, pois objetiva somente a defesa e
conservação dos recursos naturais, não levando em conta as demais questões.
Outro evento que influenciou significativamente a consolidação do
socioambientalismo no Brasil foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento em 1992 no Rio de Janeiro (Eco-92), que contou com
a participação de 179 países. Foi este o momento em que as questões ambientais
foram colocadas no centro das discussões tanto na esfera nacional como
70
internacional, oportunidade em que foram assinados os mais importantes acordos
internacionais em matéria de meio ambiente. São eles: Convenção do Clima;
Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB); Agenda 21; Declaração do Rio sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento; Declaração de Princípios para um Consenso
Global sobre Manejo, Conservação e Desenvolvimento Sustentável de todos os
tipos de Florestas.
A Agenda 21 foi o documento que formulou as bases para o planejamento de
sociedades sustentáveis em diferentes localidades. Nele já é possível perceber a
aliança da sustentabilidade ambiental com a social, pois além da conservação dos
recursos naturais, foram traçados objetivos e metas sociais a serem perseguidos,
tais como a erradicação da pobreza, a proteção da saúde, a segurança alimentar, o
respeito às diferenças culturais, o fortalecimento do papel das populações indígenas,
entre outros.
O socioambientalismo no Brasil surgiu como uma via para atender às
pressões e às demandas sociais das minorias marginalizadas e não contempladas
pelas políticas públicas, como os povos indígenas, as comunidades quilombolas e
as populações tradicionais, nas quais também se enquadram os seringueiros, os
castanheiros, pescadores artesanais, entre muitos outros grupos e coletividades.
No entendimento de Juliana Santilli:
O sociambientalismo brasileiro – tal como o reconhecemos e identificamos –
nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas
entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do
socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de
redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e
consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a
realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. Fortaleceu-se – com
o ambientalismo em geral – nos anos 90, principalmente depois da
realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, no Rio
de Janeiro, em 1992 (Eco-92), quando os conceitos socioambientais
passaram claramente a influenciar a edição de normas legais. 80
80 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2007. P. 31.
71
Um movimento social notadamente marcante na história do
socioambientalismo no Brasil foi a luta das populações tradicionais, especialmente
dos seringueiros, juntamente com as populações indígenas no estado do Acre ao
longo da década de 80. Eles se uniram e formaram a Aliança dos Povos da Floresta,
sob a liderança de Chico Mendes, para se oporem ao modelo de desenvolvimento
que privilegiava a extração indiscriminada de recursos naturais, a devastação da
mata para a plantação de pastagens e desenvolvimento da agropecuária, o qual
colocava em risco a cultura, o modo de vida e até a sobrevivência desses povos
amazônicos.
Os ativistas se uniram à essas populações e passaram a apoiá-las na defesa
de seus direitos perante o Estado e o poder econômico. Afinal, neste momento,
muitos dos grupos ligados à proteção do meio ambiente já tinham a percepção de
que a manutenção dessas populações nos locais habitualmente por elas ocupados,
juntamente com a salvaguarda de sua cultura, era uma maneira de se proteger a
floresta e a biodiversidade.
No caso dos seringueiros a atividade por eles desenvolvida passou a ser
considerada importante à manutenção da biodiversidade amazônica, pois eles
tinham conhecimentos tradicionais de manejo ambiental, de modo que a atividade
de extração do látex não era predatória, pois respeitava os limites e a capacidade de
renovação do ecossistema local. Para garantirem seus direitos eles passaram a
reivindicar perante o Estado a criação de reservas extrativistas, com vistas a ter
direitos coletivos sob as terras por eles ocupadas, o que lhes possibilitaria continuar
com a atividade econômica que vinham desenvolvendo há anos. A criação desses
espaços especialmente protegidos “passou a ser considerado por cientistas e
formuladores de políticas públicas como uma via de desenvolvimento sustentável e
socialmente equitativo para a Amazônia”.81
Portanto, os socioambientalistas acreditam que as políticas públicas somente
serão efetivas e sustentáveis se levarem em conta as demandas e os contextos
socioculturais, ou seja, vão além da simples conservação e preservação dos
recursos naturais. Essas políticas, ao envolver as comunidades e povos detentores
81 SANTILLI, Juliana. Op. cit. P. 33.
72
de conhecimentos tradicionais, protegem ao mesmo tempo a biodiversidade e a
sociodiversidade, além de possibilitarem a repartição justa dos benefícios trazidos
pelas atividades por elas desempenhadas. O sociambientalismo, deste modo, é uma
forma de realização da sustentabilidade.
Juliana Santilli sintetiza essas idéias em brilhante trecho transcrito a seguir:
O socioambientalismo foi construído com base na idéia de que as políticas
públicas ambientais devem incluir e envolver as comunidades locais,
detentoras de conhecimentos e de práticas de manejo ambiental. Mais do
que isso, desenvolveu-se com base na concepção de que, em um país
pobre e com tantas desigualdades sociais, um novo paradigma de
desenvolvimento deve promover não só a sustentabilidade estritamente
ambiental – ou seja, a sustentabilidade das espécies, ecossistemas e
processos ecológicos – como também a sustentabilidade social – ou seja,
deve contribuir também para a redução da pobreza e das desigualdades
sociais e promover valores como justiça social e equidade. Além disso, o
novo paradigma de desenvolvimento preconizado pelo socioambientalismo
deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do
processo democrático no país, com ampla participação social na gestão
ambiental.82
Sob este enfoque socioambiental, a preservação e o respeito às culturas dos
diferentes grupos formadores do país são um meio de realização do
desenvolvimento sustentável. Assegurar a diversidade cultural implica não somente
cumprir com este princípio constitucional, mas também em proteger o meio ambiente
e a biodiversidade. De acordo com Carlos Frederico Marés “não há nada melhor
para preservar o ambiente do que uma cultura a ele adequada”83.
O respeito à diversidade cultural dos diferentes povos formadores da
identidade nacional é um princípio constitucional que deve orientar as relações do
Estado tanto do ponto de vista interno como do internacional, também as relações
entre os particulares devem ser pautadas por este princípio.
82 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis, 2007. P. 34. 83 SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 25.
73
Os estados fundados na democracia respeitam as diferenças culturais de
seus próprios povos e também dos demais Estados-Nação. Porém, a adoção do
princípio da diversidade cultural pelo Brasil, tal como delineado na Constituição
Federal de 1988, não significa apenas respeitar e aceitar essas diferenças, mas
garantir e promover a existência e a convivência das diversas formas de cultura
formadoras da identidade nacional. Não é um princípio cujo conteúdo contém
apenas uma abstenção ou uma não interferência por parte do Estado, mas sim um
princípio que implica em uma conduta positiva, uma meta a ser alcançada.
Nas sociedades contemporâneas constata-se o fenômeno da massificação
das relações sociais, bem como a imposição e homogeneização dos padrões de
conduta, os quais são ditados pelo sistema econômico capitalista, pautado pela
acumulação de capital e regras mercadológicas predatórias. Portanto, se está diante
de um modelo econômico que busca eliminar o pluralismo e as diferenças culturais,
as formas de cultura que são preservadas e incentivadas são aquelas que são
comercializáveis e geram lucro ao mercado.
Nesse contexto é imprescindível que o Estado atue de forma positiva,
formulando e implementando políticas públicas que tenham por escopo resguardar e
promover as diversas formas de expressões culturais dentro de seu território. Essa
prestação estatal deve recair justamente sobre as formas de culturas ameaçadas, as
quais definitivamente não são aquelas que expressam a cultura oficial e dominante,
mas aquelas que pertencem às minorias e aos grupos vulneráveis do ponto de vista
econômico, como exemplo: os indígenas e os afro-brasileiros.
Na atual Carta Constitucional são vários os dispositivos que preveem o citado
princípio, o art. 4° dispõe que as relações internacionais brasileiras devem ser
regidas pelo princípio da autodeterminação dos povos (inciso III) e pelo repúdio ao
racismo (inciso VIII), no parágrafo único dispõe que “A República Federativa do
Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações.”. Na Seção referente à Educação consta previsão no art. 210 que no
conteúdo mínimo do ensino fundamental deve-ser assegurar o respeito aos valores
culturais, artísticos, nacionais e regionais. O §2° do citado artigo inovou e rompeu
com a tradição assimilacionista ao assegurar aos indígenas a utilização de suas
74
línguas maternas e de seus próprios processos de aprendizagem na educação. O
art. 215 prevê que o Estado deve garantir a todos o pleno exercício dos direitos
culturais, devendo apoiar e incentivar a valorização e a difusão das manifestações
culturais. O §3° deste artigo trata do estabelecimento do Plano Nacional de Cultura,
o qual deve ser conduzido considerando a “valorização da diversidade étnica e
regional” (inciso V). O art. 216, já abordado anteriormente, prevê que o patrimônio
cultural nacional é constituído pelos bens que portem referência à identidade, à ação
e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Isto é,
introduz a noção de referência cultural, de modo que não apenas a cultura oficial é
reconhecida como integrante deste patrimônio, mas também outras culturas
tradicionais, como os indígenas, afrodescendentes, imigrantes etc. Por fim, o art.
231 assegura aos índios o direito de permanecer com sua própria cultura ao prever
que “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, (...)”
Além das disposições constitucionais, o Brasil é signatário de duas
Convenções da UNESCO referentes à diversidade cultural, a Convenção para a
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 (a qual ratificou Declaração Universal
da UNESCO sobre a Diversidade Cultural de 2001) e a Convenção sobre a Proteção
da Diversidade das Expressões Culturais de 2005. Já foi dito anteriormente que o
texto da Convenção de 2005 é anterior ao da Convenção de 2003, porém aquele
somente foi aprovado dois anos mais tarde.
A Declaração Universal sobre Diversidade Cultural de 2002 logo no art. 1
considera a diversidade cultural tão necessária ao gênero humano quanto a
biodiversidade é essencial para a natureza, constituindo patrimônio comum da
humanidade e devendo ser reconhecida e consolidada em benefício das futuras
gerações. Deste modo, essa Declaração coloca no mesmo grau de importância para
a humanidade a diversidade cultural e a diversidade biológica. Ademais, o mesmo
texto as considera como fatores de desenvolvimento, não apenas econômico, “mas
também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e
espiritual satisfatória” (art. 3).
A definição de diversidade cultural para a UNESCO encontra-se na citada
Convenção de 2005, de acordo com esse documento:
75
“Diversidade cultural” refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as
culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais
expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A
diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas
quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da
humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também
através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e
fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e
tecnologias empregados. (Art. 4, 1)
Ademais, essa Convenção estabelece que a diversidade cultural é condição
essencial ao desenvolvimento sustentável em benefício das gerações atuais e
futuras e um dos seus principais motores. Também prevê a necessidade de
incorporar a cultura como elemento estratégico das políticas de desenvolvimento
nacionais e internacionais.
Importante para o presente estudo é que a Convenção de 2005 reconhece a
importância dos conhecimentos tradicionais como fonte de riqueza cultural e meio de
realização do desenvolvimento sustentável. No texto da convenção tais
conhecimentos são considerados como “fonte de riqueza material e imaterial, e, em
particular, dos sistemas de conhecimento das populações indígenas, e sua
contribuição positiva para o desenvolvimento sustentável, assim como a
necessidade de assegurar sua adequada proteção e promoção”.
A Convenção de 2003 que dispõe sobre a salvaguarda do patrimônio imaterial
tem objeto mais específico. Logo nas considerações iniciais tal documento
reconhece a “importância do patrimônio cultural imaterial como fonte de diversidade
cultural e garantia de desenvolvimento sustentável”. Em seguida destaca-se o
essencial papel de comunidades como as indígenas, grupos e até de indivíduos “na
produção, salvaguarda, manutenção e recriação do patrimônio cultural imaterial,
assim contribuindo para enriquecer a diversidade cultural e a criatividade humana”.
Tanto a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural quanto as duas
Convenções da UNESCO analisadas vão ao encontro das bases do
socioambientalismo o Brasil, pois consideraram a proteção e a promoção da
diversidade cultural como um dos elementos fundamentais à concretização do
desenvolvimento sustentável.
76
Mais especificamente, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial (2003) da UNESCO relacionou o desenvolvimento sustentável com
o patrimônio cultural imaterial, dispondo que este é considerado como fonte de
diversidade cultural e garantia de desenvolvimento sustentável. Em seguida, ao
defini-lo, estabeleceu que somente o patrimônio cultural imaterial que promova o
desenvolvimento sustentável deve ser levado em conta (art. 2, 1). Na Convenção
sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) o
princípio do desenvolvimento sustentável foi mencionado em dez dispositivos. Esse
documento considerou a diversidade cultural como um dos principais motores do
desenvolvimento sustentável e ressaltou a necessidade de se integrar a cultura ao
desenvolvimento econômico para conseguir sustentabilidade.
Assegurar a diversidade cultural nos moldes propostos pelo
socioambientalismo possibilita, em especial, a realização do ditame constitucional
que dispõe sobre a proteção dos bens culturais de natureza intangível (art. 216 CF).
Isso porque o foco principal dessa proteção não é recai sobre os bens culturais
materiais, mas sim sobre as expressões culturais e os processos de produção de
cultura e conhecimento no âmbito dessas diversas comunidades e grupos. Protege-
se, sobretudo, os processos culturais, a cultura como algo vivo e dinâmico, que é
constantemente criada e recriada ao longo das gerações.
Deste modo, ao assegurar que essas comunidades e grupos permaneçam
nos territórios tradicionalmente por eles ocupados vivendo de acordo com seus
hábitos, costumes, línguas e praticando os processos culturais por eles
desenvolvidos para a garantia da própria sobrevivência permite-lhes a continuidade
de suas existências e, consequentemente, desses processos e expressões culturais.
A necessidade de se aliar a preservação da biodiversidade à sociodiversidade
como via de concretização do desenvolvimento sustentável já pode ser verificada na
legislação nacional, especialmente na Lei n° 9.985/2000 que instituiu o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
O projeto de lei inicialmente elaborado para a criação de espaços
especialmente protegidos adotou o enfoque preservacionista e conservacionista,
tinha como preocupação central e essencial a proteção dos recursos naturais e dos
77
ecossistemas, priorizando as unidades de proteção integral, nos moldes feitos nos
Estados Unidos.
De acordo com Juliana Santilli:
O projeto de lei encaminhado ao Congresso pelo presidente Fernando
Collor de Mello em 1992 adotava uma orientação claramente
preservacionista, inspirada em um modelo de unidade de conservação
preocupado unicamente com o valor das espécies e ecossistemas e com a
perda da biodiversidade em si, sem atentar para as exigências e
necessidades humanas concretas, e sem nenhuma referência à perda para
a qualidade de vida das pessoas.84
Ao longo do processo de tramitação desta Lei no Congresso Nacional foi
apresentada proposta de substitutivo pelo Deputado Fábio Feldmann e,
posteriormente, algumas modificações pelo Deputado Fernando Gabeira, com o que
foi possível aprovar uma lei para a criação dos espaços especialmente protegidos
que contemplasse também o aspecto social e cultural, incluindo a questão das
comunidades locais e das populações tradicionais.
A nova perspectiva adotada consta já nos objetivos da Lei n° 9.985/2000 que
no art. 4°, inc. XIII prevê: “proteger os recursos naturais necessários à subsistência
de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua
cultura e promovendo-as social e economicamente.” Ademais, formam inseridos
meios de participação das comunidades locais e tradicionais na criação e gestão das
unidades de conservação. Mais especificamente, esta lei previu dentre suas
diretrizes (art. 5°) a participação da sociedade na política nacional das unidades de
conservação (inciso II); a efetiva participação das populações locais na criação,
implantação e gestão das unidades de conservação (inciso III); que seja dado
incentivo às populações locais e às organizações privadas a estabelecerem e
administrarem unidades de conservação dentro do sistema nacional (inciso V). Além
destes incisos, a lei conta com outras previsões referentes à participação social, tal
como o art. 5°, IV e 42, §2°.
84 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. P. 112, 113.
78
As unidades de conservação criadas pela Lei do SNUC se dividem em
unidades de proteção integral e unidades de uso sustentável (art. 7°), dentre as
segundas consta a previsão de criação da Reserva Extrativista 85 e da Reserva de
Desenvolvimento Sustentável 86 (art. 14, inc. IV e VI. art. 18 e art. 20). Ambas criam
espaços protegidos de forma especial nos quais se assegura às populações
tradicionais a continuidade nos territórios tradicionalmente por elas ocupados e o
desempenho de suas atividades, o que garante o uso sustentável dos recursos
naturais e a preservação de suas culturas.
4.2. Biodiversidade Tendo em vista a íntima relação da sociodiversidade com a biodiversidade
para o presente estudo, faz-se necessário tecer algumas considerações sobre a
proteção da biodiversidade no âmbito interno e internacional. Essa abordagem será
feita tendo em conta o aspecto jurídico e algumas questões econômicas, pois foi
somente nas últimas décadas que os países do hemisfério sul, detentores de
recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, passaram a ter a real dimensão da
importância desses recursos e da enorme riqueza que os mesmos poderiam gerar,
especialmente para as indústrias de biotecnologia, como as que produzem fármacos
e cosméticos.
85 “Art. 18. A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade.
§ 1o A Reserva Extrativista é de domínio público, com uso concedido às populações extrativistas tradicionais conforme o disposto no art. 23 desta Lei e em regulamentação específica, sendo que as áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe a lei. (...)”
86 “Art. 20. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na manutenção da diversidade biológica.
§ 1o A Reserva de Desenvolvimento Sustentável tem como objetivo básico preservar a natureza e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a reprodução e a melhoria dos modos e da qualidade de vida e exploração dos recursos naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente, desenvolvido por estas populações. (...)”
79
Inicialmente, oportuno constar que o Brasil é um país megadiverso, pois
possui a maior diversidade biológica de flora e fauna do planeta, estima-se em cerca
de 20%. De acordo com a Convenção sobre Diversidade Biológica:
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos vivos de todas
as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres,
marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de
que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies,
entre espécies e de ecossistemas.
Internamente, a proteção da biodiversidade constou expressamente no art.
225, §1°, II da Constituição Federal de 1988, o qual incumbiu ao Poder Público, para
a efetivação do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, “preservar a
diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e à manipulação do material genético.”.
Antes da Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro
em 1992, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais eram considerados
patrimônio da humanidade, com a adesão de diversos países ao documento
internacional foi reconhecido que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus
próprios recursos biológicos e que os benefícios decorrentes da utilização dos
conhecimentos, inovações e práticas das populações indígenas e comunidades
locais devem ser repartidos equitativamente, em conformidade com a legislação
nacional.
Porém, foi apenas com a ratificação da Convenção sobre Diversidade
Biológica em 1994, através do Decreto Legislativo n° 02/02/94, que esse documento
internacional veio a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, trazendo importantes
questões a serem legisladas internamente para a preservação da biodiversidade e
também para regular a relação com os entes nacionais e internacionais interessados
em acessar o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais associados das
populações tradicionais.
Com a Convenção sobre Diversidade Biológica, a biodiversidade foi
reconhecida como essencial à vida no planeta, devendo os recursos ambientais
serem preservados para as presentes e futuras gerações. Além disso, a
biodiversidade passou a ser valorizada também do ponto de vista econômico, o que
80
despertou o interesse de vários entes para as questões a ela relativas, tais como: as
empresas interessadas em acessar patrimônio genético e detentoras de tecnologia,
as ONGs que atuam na esfera ambiental, os indígenas, as populações tradicionais,
as entidades internacionais, entre outros.
A Convenção sobre Diversidade Biológica trouxe à baila um novo paradigma
em relação aos povos indígenas e populações tradicionais, ao considerar que esses
grupos estão integrados aos ecossistemas e que, inclusive, contribuem para a
conservação e preservação da diversidade biológica. Isso constou expressamente
do art. 8, j da CDB quando menciona que:
Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e
manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e
populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à
conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar
sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores
desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição
equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,
inovações e práticas;
Apesar de atualmente ainda haver muita controvérsia acerca do uso
sustentável dos recursos ambientais pelos povos autóctones e populações
tradicionais, existem vários estudos que demonstram que a maior percentagem de
diversidade biológica está localiza em Terras Indígenas.
Ana Valéria Araújo cita dados extraídos de pesquisa realizada sobre o tema:
Há diversos estudos que atestam serem os povos indígenas e as
populações tradicionais, em grande parte, responsáveis pela diversidade
biológica de nossos ecossistemas, produto da interação e do manejo da
natureza nos moldes tradicionais. Apenas para que se tenha uma ideia, o
seminário “Consulta de Macapá”, realizado em 1999 no âmbito de projeto
“Avaliação e Identificação de Ações Prioritárias para a Conservação,
Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade da
Amazônia Brasileira”, concluiu que nada menos do que 40% das áreas de
81
extrema importância biológica e 36% das de muito alta importância biológica
na Amazônia estão inseridas em terras indígenas87.
Porém, se por um lado esse documento reconhece o valor dos
conhecimentos, das inovações e das práticas das populações tradicionais relevantes
à conservação e a utilização da biodiversidade, por outro, ele incentiva o uso destes
saberes mediante uma repartição justa dos benefícios com eles obtidos. Tendo em
conta essa relação, a autora Eliane Moreira entende que a Convenção tem um
caráter “ambivalente” ao reconhecer a importância dos saberes tradicionais e,
concomitantemente, reafirmar o sistema de propriedade intelectual:
É certo, porém, que devemos estar atentos ao caráter “ambivalente” da
CDB, nas palavras de Aubertin e Boisvert (1988, p. 17). Essas autoras
corretamente alertam para a necessidade de analisar com certa objetividade
o contexto da convenção, pois ao tempo em que se propõe a valorizar o
trabalho de conservação desempenhado pelos povos tradicionais, ratifica o
sistema de propriedade intelectual, ao criar mecanismos para sua expansão 88.
A repartição justa e equitativa dos benefícios conseguidos com a utilização
dos conhecimentos tradicionais é um dos três objetivos previstos no artigo 1 da
CDB, juntamente com a conservação da biodiversidade e da utilização sustentável
dos recursos.
Outro ponto a ser destacado na CDB é o respeito à soberania dos Estados
(art. 15, 1 89), pois cabe a eles legislar internamente sobre a repartição de benefícios
oriundos do acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais das
comunidades locais. Neste ponto este documento de direito internacional
87 ARAÚJO, Ana Valéria. Acesso a recursos genéticos e proteção aos conhecimentos tradicionais associados. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 86. 88 Moreira, Eliane. Conhecimento Tradicional e a Proteção. In: T&C Amazônia, Ano V, Número 11, Junho, 2007. Disponível em: http://www.fucapi.br/tec/imagens/revistas/completa_revista_tc11_final.pdf, Acesso em 06/04/2012. P. 39. 89 “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.”
82
estabeleceu objetivos e traçou diretrizes, trazendo noções genéricas que necessitam
de regulamentação interna.
Atualmente, a acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos
tradicionais associados e o modo como deverá ser feita a repartição dos benefícios
foram regulamentados no Brasil pela Medida Provisória n° 2.186-16/2001,
atualmente em vigor em decorrência da EC n° 32/2001.
A citada MP é muito criticada por não ter dispensado um tratamento jurídico
eficaz à proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais
associados, especialmente no que tange à proteção dos direitos de propriedade
intelectual coletiva dos indígenas e das populações tradicionais sobre esses
recursos e conhecimentos. Isso ocorreu porque a MP foi editada às pressas, sem
que houvesse qualquer debate no Congresso Nacional e com a sociedade civil90.
À época da edição da MP, estavam em discussão no Congresso Nacional
algumas propostas para a regulamentação, por meio de lei federal, do acesso aos
recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, todas essas
discussões foram desconsideradas pelo Governo Federal. O primeiro projeto de lei
sobre o tema foi apresentado em 1995 pela senadora Marina Silva e recebeu o n°
306/1995, hoje encontra-se arquivado.
O argumento para a edição desta MP foi que a temática precisava
urgentemente de regulamentação após a repercussão negativa perante a opinião
pública e a indignação de setores do governo, como o Ministério do Meio Ambiente,
do contrato de bioprospecção celebrado entre a organização social Bioamazônia91 e
a transnacional da indústria farmacêutica Novartis. Isso fez com que fez o Governo 90 “A MP 2.186, que regulamenta o acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado no país , ignorou pelo menos cinco anos de discussões já havidas no Congresso Nacional e as divergências ainda pendentes sobre temas polêmicos que envolvem o assunto, estabelecendo de modo unilateral e pouco democrático regras de conduta que afetam interesses de amplos setores da sociedade brasileira, desde povos indígenas e populações tradicionais, passando por proprietários rurais, pela comunidade científica, indústrias e empresários do ramo do biotecnologia.” ARAÚJO, Ana Valéria. Acesso a recursos genéticos e proteção aos conhecimentos tradicionais associados. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000. P. 91. 91 A Bioamazônia é uma Organização Social (O.S.) criada nos termos da Lei Federal n° 9.637/1998, que formalizou um contrato de gestão com o Ministério do Meio Ambiente para colaborar com o PROBEM – Programa Brasileira de Ecologia Molecular para Uso Sustentável da Biodiversidade da Amazônia.
83
Federal o suspendesse e editasse a MP, a qual ficou conhecida como MP da
Novartis92 93.
Neste contrato de bioprospecção fora acordado que a empresa suíça teria
acesso a “cerca de 10 mil microorganismos da Amazônia e a detenção exclusiva das
patentes dos eventuais produtos desenvolvidos com base nesses organismos, a
Bioamazônia receberia 4 milhões de dólares, em treinamento e transferência de
tecnologia” 94.
Deste modo, apesar dessa matéria não ter sido regulamentada por lei,
frustrando as discussões no Congresso Nacional e com a sociedade civil, a
aplicação da citada MP deve ser feita buscando uma interpretação que efetive e
maximize os direitos conferidos aos indígenas e populações tradicionais, com o fito
de proteger os conhecimentos tradicionais e também a biodiversidade existente nos
territórios ocupados por esses grupos.
92 PEDRO, Antônio Fernando Pinheiro. “Biodiversidade Brasileira e os contratos de Bioprospecção (O caso Bioamazônia – Novartis)”. Disponível em: http://pinheiropedro.com.br/site/artigos/biodiversidade-brasileira-e-os-contratos-de-bioprospeccao-o-caso-bioamazonia-novartis/. Acesso em 10/04/2012 93 “Acesso e Repartição de Benefícios (ARB) no Brasil: a nova fórmula jurídica para legalizar a biopirataria.” Disponível em: http://www.socioambiental.org/coptrix/art_02.html. Acesso em: 10/04/2012.
94 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA, André e BENSUSAN, Nurit (org.) Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70. Acesso em 10/04/2012.
84
Capítulo 5. Conhecimentos tradicionais e os regimes jurídicos de proteção
Tendo em conta que a relação existente entre as populações tradicionais e
indígenas e a manutenção e conservação da biodiversidade e da sociodiversidade,
no presente capítulo será analisada a proteção jurídica que o ordenamento jurídico
nacional dispensa aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e
aos recursos genéticos presentes nos territórios ocupados por essas populações.
Para o enfrentamento deste tema é imprescindível que se faça algumas
considerações iniciais sobre o conceito e a abrangência dos termos: populações
tradicionais e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
5.1. O conceito de populações tradicionais
Conceituar populações tradicionais é tarefa bastante difícil, tanto do ponto de
vista jurídico como antropológico, trata-se de questão extremamente controvertida e
debatida entre os estudiosos, pois a formulação deste conceito implica em encontrar
um “denominador comum” para se referir a distintos grupos sociais, cada um com
suas próprias características e localizados em diversas partes do território.
As populações tradicionais incluem grupos em sua essência bastante
diversificados, como os indígenas, os quilombolas e as comunidades locais, das
quais como exemplo tem-se os seringueiros, as quebradeiras de cocos, os
babaçueiros, os ribeirinhos, os jangadeiros, entre outros. Isto é, são populações
muito distintas do ponto de vista sociocultural.
Nos documentos legais não há sequer consenso sobre a terminologia para se
referir a esses grupamentos humanos. Por exemplo, a CDB utiliza a expressão
“comunidades locais e povos indígenas”, a Lei do SNUC refere-se a eles como
“populações tradicionais”, já a MP n° 2.186/2001 adota a locução “comunidade
indígena e comunidade local”.
As divergências terminológicas também estão presentes na antropologia, de
acordo com Antônio Carlos Diegues, utilizam-se as expressões “populações
85
tradicionais”, “comunidades tradicionais”, “culturas tradicionais” e “sociedades
tradicionais”95.
Inicialmente, será analisado o conceito de populações tradicionais do ponto
de vista jurídico, considerando os documentos legais nacionais que o abordam.
Tendo em conta que esse é um termo desenvolvido e formulado pelas ciências
sociais, especialmente a antropologia, faz-se também necessário tecer algumas
considerações sobre essa área de estudo a fim de melhor identificar os principais
elementos que discernem esses grupos humanos dos demais.
O primeiro diploma legal a fazer referência às populações tradicionais foi o
Decreto n° 98.897/1990, que dispôs sobre as reservas extrativistas. Neste
documento não houve formulação de qualquer conceito, ele apenas menciona que
as populações extrativistas fazem exploração auto-sustentável e conservam os
recursos naturais renováveis.
Doze anos após a promulgação da Constituição Federal entrou em vigor a Lei
n° 9.985/2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
(SNUC). Esta lei tampouco conceituou populações tradicionais, mas acabou por
fazê-lo indiretamente ao mencioná-las em diversos dispositivos legais, tais como: os
objetivos da lei constantes do art. 4°, as diretrizes no art. 5° e naqueles que tratam
das reservas extrativistas e das reservas de desenvolvimento sustentável.
O inciso XIII do art. 4° prevê que o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação deve proteger os recursos naturais necessários à subsistência de
populações tradicionais, bem como deve respeitar e valorizar a cultura de cada uma
delas. Por sua vez, o art. 18 ao definir reserva extrativista menciona que é uma área
utilizada por populações tradicionais, as quais têm a subsistência baseada no
extrativismo e, de modo complementar, na agricultura de subsistência e na criação
de animais de pequeno porte, acrescenta que essa unidade tem por objetivo a
proteger os meios de vida e de cultura desses grupos e assegurar o uso sustentável
dos recursos naturais. Já ao instituir a reserva de desenvolvimento sustentável no
art. 20, esta é definida como uma área que abriga populações tradicionais que têm
95 DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 3ª. Ed. São Paulo: Hucitec, 2001. P. 44.
86
sua existência baseada em sistemas sustentáveis de exploração dos recursos
naturais desenvolvidos ao longo de gerações, as quais protegem e natureza e
colaboram com a manutenção da biodiversidade.
Nota-se que os modelos de sistemas de conservação previstos na Lei do
SNUC de reserva extrativista e de reserva de desenvolvimento sustentável têm por
princípio básico uma relação simbiótica entre as populações tradicionais e os
recursos naturais, a qual é, ao mesmo tempo, fonte de biodiversidade e de
sociodiversidade.
A partir da análise dos citados dispositivos legais é possível identificar as
características fundamentais das populações tradicionais tal como constou na lei do
SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), são elas: populações com
cultura própria e diferenciada e que subsistem com base em recursos naturais
utilizados de forma sustentável.
Convém ressaltar que o conceito de populações tradicionais constou no texto
da Lei do SNUC aprovado pelo Congresso Nacional, mas o inciso foi vetado pelo
Presidente da República. No dispositivo vetado população tradicional tinha sido
definida no inciso XV do art. 2° como:
grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três
gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo
seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua
subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável;
Nas razões consta que o dispositivo foi vetado por contrariar o interesse
público, alegou-se a excessiva abrangência do conceito, o que prejudicaria a
aplicação da lei para a proteção das populações verdadeiramente tradicionais.
Segue-se a íntegra transcrita: “O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço
de imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem
continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser definidos
como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza. O conceito de ecossistema não se presta
para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o
número de gerações não deve ser considerado para definir se a população
87
é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a
noção de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o
conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal forma que
alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda,
impossibilitando a proteção especial que se pretende dar às populações
verdadeiramente tradicionais.
Sugerimos, por essa razão, o veto ao art. 2o, inciso XV, por contrariar o
interesse público."
O veto foi bem recebido pelos socioambientalistas, especialmente os
preservacionistas que alegavam que a amplitude do conceito poderia desvirtuar os
objetivos da lei. Também agradou aquelas populações tradicionais que teriam
dificuldades em comprovar a permanência mínima de três gerações em uma
localidade, tais como os extrativistas.
Logo em seguida à aprovação da Lei do SNUC, visando regulamentar parte
do que foi ratificado na Convenção sobre a Diversidade Biológica, a Medida
Provisória n° 2.186-16/2001, que trata sobre o acesso ao patrimônio genético e ao
conhecimento tradicional associado, definiu “comunidade local” como:
grupo humano associado, incluindo remanescentes de comunidades de
quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza,
tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que
conserva suas instituições sociais e econômicas. (art. 7°, inc. III).
A definição de “comunidade local”, ao contrário do que consta na Lei do
SNUC, não faz menção à utilização dos recursos naturais de forma sustentável. É
um conceito bastante amplo, no qual se enquadra diversos grupos humanos,
portanto, o que dificulta a aplicação da MP.
Outro documento legal relativamente recente que aborda o conceito de
populações tradicionais é o Decreto n° 6.040/2007, que institui a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. No art. 3°,
inciso I povos e comunidades tradicionais são definidos como:
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que
possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam
territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,
88
social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;
Nota-se que os conceitos constantes dos dispositivos legais analisados não
são coincidentes, eles se assemelham em vários aspectos. Ressalvada a definição
de “comunidade local” prevista na MP n° 2186/2001, as demais têm em comum o
fato de identificar como populações tradicionais aqueles grupos humanos que
subsistem com base em recursos naturais utilizados de forma sustentável e que têm
uma cultura própria e diferenciada.
Portanto, no conceito jurídico de populações tradicionais alia-se a
sociodiversidade à biodiversidade. De acordo com Juliana Santilli:
O conceito de “populações tradicionais”, desenvolvido pelas ciências sociais
e incorporado ao ordenamento jurídico, só pode ser compreendido com
base na interface entre biodiversidade e sociodiversidade. Entre os
cientistas sociais e ambientais, a categoria “populações tradicionais” já é
relativamente bem aceita e definida.
O reconhecimento da importância do papel desses povos para a preservação
e conservação ambiental fez com que eles passassem a ser vistos como elementos
essenciais nas políticas ambientais pautadas pela sustentabilidade, vindo a ostentar
um status jurídico diferenciado.
Outrossim, convém esclarecer que os índios e os quilombolas possuem status
jurídico diferenciado em relação às populações tradicionais previstas na Lei do
SNUC, porém para a MP n° 2.186/2001 todos esses grupos são considerados como
“comunidade local”.
No caso dos índios, o Capítulo VIII (artigos 231 e 232) da Constituição
Federal é inteiramente dedicado aos direitos desses povos, atualmente esses
dispositivos estão regulamentados pelo Estatuto do Índio (Lei n° 6.001/73). Por sua
vez, o art. 68 do ADCT reconheceu aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras a propriedade definitiva, cabendo ao
Estado a emissão dos respectivos títulos. Esse dispositivo atualmente está
regulamentado pelo Decreto n° 4.887/2003, cuja constitucionalidade está sendo
questionada pela ADI n° 3239 proposta pelo partido dos Democratas, na qual se
89
sustenta que a regulamentação deveria ser feita por lei e não por decreto
presidencial, a ação ainda não foi julgada pelo STF.
Apesar de ser possível identificar nos dispositivos legais estudados os
elementos fundamentais que caracterizam esses grupamentos humanos, o conceito
jurídico de populações tradicionais ainda é frágil, assim, faz-se oportuno tecer
algumas considerações sobre esse tema do ponto de vista das ciências sociais.
Em artigo intitulado “Conhecimento Tradicional e a Proteção”, Eliane Moreira
busca identificar as características das populações tradicionais, ou seja, o que
diferencia esses grupos do restante da sociedade. Neste artigo povos indígenas e
quilombolas são considerados populações tradicionais, juntamente com outros
grupos tais como os seringueiros.
Logo de início a autora defende que o critério da ocupação territorial não pode
ser visto como estanque em países como o Brasil, onde são vários os problemas
fundiários, o mais seguro é identificar essas populações através do modo de vida:
o que faz um grupo social ser identificado como tradicional não é a
localidade onde se encontra, (...), mas sim seu modo de vida e suas formas
de estreitar relações com a diversidade biológica, em função de uma
dependência que não precisa ser apenas com fins de subsistência, pode ser
também material, econômica, cultural, religiosa, espiritual, etc96.
Em seguida, a citada autora menciona que no modo de vida dessas
populações um traço essencial e marcante é a relação com a natureza baseada no
uso sustentável dos recursos naturais. Segue-se a íntegra transcrita:
Antônio Carlos Diegues (1998, p. 87), como já referido, reconhece nas
culturas e sociedades tradicionais uma relação estreita com a natureza,
relação essa que “constrói um modo de vida”. A relação em questão, além
de permitir sobrevivência dessas populações, também gera cultura, como
lembra Lígia Simonian (2005, p. 61). “de uma complexidade ímpar e que
inclui estratégias de conservação”.
96 Moreira, Eliane. Conhecimento Tradicional e a Proteção. In: T&C Amazônia, Ano V, Número 11, Junho, 2007. Disponível em: http://www.fucapi.br/tec/imagens/revistas/completa_revista_tc11_final.pdf, Acesso em 06/04/2012. P. 36.
90
Cada vez mais se reconhece o papel relevante das populações tradicionais
para a conservação e uso sustentável dos recursos naturais. Sarita Albagli
(2005, p. 18) lembra que essas populações possuem conhecimentos,
práticas agrícolas e de subsistência adequadas ao meio em que vivem e
possuem um papel de “guardiães do patrimônio biogenético do planeta”,
mas as sucessivas agressões ao ambiente natural em que vivem têm
conduzido, também, à perda de sua diversidade sociocultural97.
Parece não restar dúvida de que a relação das populações tradicionais com a
natureza deve ser pautada pelo uso sustentável de recursos naturais, razão pela
qual elas são consideradas geradoras e protetoras da biodiversidade. Em razão de
estarem totalmente integradas ao meio ambiente em que vivem são sociedades que
se interessam diretamente pela conservação destes territórios, afinal, se os próprios
habitantes aniquilarem as fontes de recursos naturais presentes nesses espaços
estarão determinando sua própria destruição.
Essas são populações que desenvolvem uma relação profunda com o meio
ambiente em que vivem, elas possuem conhecimentos tradicionais sobre esses
territórios e desenvolvem técnicas de manejo sustentável para neles permanecerem
e proverem o próprio sustento, o peculiar modo de vida de cada um desses grupos
denota uma cultura própria.
Em razão de possuírem cultura própria e diferenciada, as populações
tradicionais compõem a diversidade social e cultural do país. Deste modo, os
saberes, as expressões, as práticas, os conhecimentos desenvolvidos por elas
merecem ser preservados ao longo das gerações, pois integram e compõem o
patrimônio cultural brasileiro, especialmente o imaterial (art. 216 da CF).
Outro conceito importante a ser acrescentado ao presente estudo é o
fornecido pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha na obra Cultura com aspas.
Ela entende que a melhor forma de descrever as populações tradicionais é “em
extensão”, ou seja, “pela simples enumeração dos elementos que as compõem” 98.
No capítulo intitulado “Populações tradicionais e conservação ambiental” ela
97 Idem. P. 36. 98 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosacnaify, 2009, p. 278.
91
considera como populações tradicionais os autóctones, os quilombolas e outros
grupamentos humanos. Ao final ela propõe o seguinte conceito:
As populações tradicionais são grupos que conquistaram ou estão lutando
para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade pública
conservacionista que inclui algumas das seguintes características: uso de
técnicas ambientalistas de baixo impacto, formas equitativas de organização
social, presença de instituições com legitimidade para fazer cumprir suas
leis, liderança local e, por fim, traços culturais que são seletivamente
reafirmados e reelaborados99.
No conceito proposto pela renomada antropóloga também é possível
identificar claramente a relação do aspecto ambiental, ao se mencionar o uso de
técnicas ambientalistas de baixo impacto, com a questão cultural quando aborda a
importância das formas de organização interna desses grupos e os traços culturais.
5.2. Os conhecimentos tradicionais e as disposições da MP n° 2.186-16/2001 Os povos indígenas e populações tradicionais desenvolvem conhecimentos
tradicionais que podem estar associados ou não a biodiversidade. No primeiro caso,
esses conhecimentos são as práticas individuais ou coletivas dessas populações
que possuem valor real ou potencial ao associado à biodiversidade. Já no segundo
caso, esses conhecimentos podem ser criações artísticas, literárias, lendas, contos,
danças, entre outros.
Atualmente, os pontos mais controvertidos e polêmicos para o sistema
jurídico se referem aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, em
razão da possibilidade que eles têm de gerar riqueza, especialmente para as
indústrias que fazem bioprospecção de recursos genéticos para o desenvolvimento
de produtos, como medicamentos e cosméticos.
De acordo com Eliane Moreira:
O conhecimento tradicional ressalta em interesse aos grandes laboratórios
em face de dois dados principais: a) a certeza da aplicabilidade eficaz da
técnica, posto que testada anos a fio, dentro das populações; b) a redução
99 Idem. P. 300.
92
de pelo menos metade do tempo de estudo e pesquisa, o que em dólares
perfaz alguns milhões. 100
Na legislação nacional, os conhecimentos tradicionais que não se referem à
biodiversidade devem ser tutelados pelos instrumentos próprios para a salvaguarda
do patrimônio cultural imaterial, que são o Registro e o Inventário Nacional de
Referências Culturais, que já foram objeto de estudo em capítulo anterior.
Em se tratando de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a
proteção destes se dá nos termos da CDB (ratificada pelo Brasil) e da MP n° 2.186-
16/2001, que disciplinou, dentre outras matérias, o acesso ao patrimônio genético e
aos conhecimentos tradicionais associados.
A Convenção sobre Diversidade Biológica não conceituou o que são os
conhecimentos tradicionais associados, por sua vez a MP n° 2.186-16/2001, no art.
7°, inciso II trouxe a seguinte definição:
II - conhecimento tradicional associado: informação ou prática individual ou
coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou
potencial, associada ao patrimônio genético;
A citada MP veio regulamentar a nível nacional o inciso II do § 1o e o § 4o do
art. 225 da CF, bem como os artigos 1o, 8o, alínea "j", 10, alínea "c", 15 e 16, alíneas
3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica.
Apesar de constar na MP que o conhecimento tradicional pode ser uma
prática individual, a titularidade desse conhecimento pertence à comunidade no qual
ele foi gerado e desenvolvido, é uma titularidade coletiva, de modo que a
autorização para o acesso dever ser dada com o respaldo do grupo. O objetivo foi
incluir na proteção aqueles conhecimentos que não são compartilhados por todos os
membros da comunidade, em razão de serem detidos por apenas um indivíduo (por
exemplo: o pajé) ou por apenas alguns indivíduos, mas que se referem à toda
coletividade e nela estão inseridos. Isso constou expressamente no § único do art.
9°: “Para efeito desta Medida Provisória, qualquer conhecimento tradicional
100 MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicioanl a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 105.
93
associado ao patrimônio genético poderá ser de titularidade da comunidade, ainda
que apenas um indivíduo, membro dessa comunidade, detenha esse conhecimento.”
Do ponto de vista antropológico, parte da discussão está justamente em
identificar os titulares dos conhecimentos tradicionais dentro de um grupo ou
comunidade. Afinal, os conhecimentos tradicionais nem sempre são acessados e
compartilhados por todos os componentes, pois podem ter sido desenvolvidos e
aprimorados apenas por parte de seus integrantes. Para ilustrar, os conhecimentos
secretos detidos pelo pajé, também os conhecimentos detidos pelas mulheres
referentes aos métodos anticoncepcionais ou outras práticas relacionadas com o
feminino. Contudo, entendemos que essa discussão tem pouca relevância do ponto
de vista jurídico justamente pelo dispositivo acima citado, que confere à toda
comunidade a titularidade desse conhecimento, trata-se de um modo de proteger e
beneficiar todo o grupo.
Na doutrina ambiental nacional, Edis Milaré, baseado em obras estrangeiras,
define conhecimentos tradicionais associados como:
um conjunto de conhecimentos construídos por um grupo de pessoas
através de gerações que viveram em contacto estreito com a natureza. Isso
inclui um sistema de classificação, uma série de observações empíricas
sobre o meio ambiente local e um sistema de auto-gerenciamento que
administra o uso de recursos101.
Apesar das inúmeras críticas que a MP n° 2.186-16/2001 tem recebido, este
documento normatizou algumas das diretrizes constantes na CDB para o acesso
aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade. Ela dispôs sobre a obrigatoriedade das comunidades locais
consentirem com o acesso; a repartição justa e equitativa dos benefícios, a qual
deverá ser feita mediante Contrato de Acesso, Uso e Repartição de Benefícios; criou
o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para aprovar e fiscalizar tais
contratos.
101 MILARÉ, Edis. A Gestão Ambiental em Foco. 6ª. Ed., São Paulo: RT, 2009. P. 597.
94
Ademais, a citada MP também garantiu alguns direitos às comunidades locais
e indígenas que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional
associado ao patrimônio genético, os quais constam no art. 9°:
I - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as
publicações, utilizações, explorações e divulgações;
II - impedir terceiros não autorizados de:
a) utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao
conhecimento tradicional associado;
b) divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou
constituem conhecimento tradicional associado;
III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou
indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de
sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.
Contudo, a MP n° 2.186-16/2001 não tratou da proteção à propriedade
intelectual dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Aliás,
consta inclusive no § 4° do art. 8° que: “§ 4o. A proteção ora instituída não afetará,
prejudicará ou limitará direitos relativos à propriedade intelectual”. Isto é, o objetivo
deste dispositivo foi deixar claro que nenhuma alteração estava sendo feita no
sistema jurídico de proteção à propriedade intelectual.
5.3. Os conhecimentos tradicionais e a propriedade intelectual coletiva Portanto, atualmente o grande debate na área reside em como proteger
juridicamente os direitos intelectuais das populações tradicionais relacionados aos
conhecimentos tradicionais associados, uma vez que esses conhecimentos por
serem gerados de forma essencialmente diversa dos saberes científicos não se
encaixam em nenhum dos instrumentos legais existentes para a proteção da
propriedade intelectual.
A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha na obra Cultura com Aspas
compara os saberes científicos e os saberes tradicionais e conclui que eles são
diferentes em vários aspectos, não apenas pelos resultados; “o conhecimento
95
científico se afirma, por definição, como verdade absoluta”102, enquanto que os
saberes tradicionais são tolerantes eles “acolhem frequentemente com igual
confiança ou ceticismo explicações divergentes, cuja validade entendem seja
puramente local.” 103; os saberes tradicionais possuem diferentes regimes, “há pelo
menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos”104,
enquanto que “existe por hipótese um regime único para o conhecimento científico” 105. O conhecimento científico é hegemônico e os tradicionais não, isso se manifesta
inclusive na linguagem: “quando se diz simplesmente ‘ciência’, ‘ciência tout court,
está se falando de ciência ocidental; para falar de ‘ciência tradicional’, é necessário
acrescentar o adjetivo”106. Em seguida, ela continua a compará-los e se recorre à
clássica obra, O pensamento selvagem [1962], de Lévi-Strauss:
Lévi-Strauss defende que saber tradicional e conhecimento científico
repousam ambos sobre as mesmas operações lógicas e, mais, respondem
ao mesmo apetite de saber. Onde residem então as diferenças patentes em
seus resultados? As diferenças, afirma Lévi-Strauss, provêm dos níveis
estratégicos distintos a que se aplicam. O conhecimento tradicional opera
com unidades perceptuais, o que Goethe defendia contra o iluminismo
vitorioso. Opera com as assim chamadas qualidades segundas, coisas
como cheiros, cores, sabores... No conhecimento científico, em contraste,
acabaram por imperar definitivamente unidades conceituais. A ciência
moderna hegemônica usa conceitos, a ciência tradicional usa percepções. É
a lógica do conceito em contraste com a lógica das qualidades sensíveis107.
O aparato jurídico para a proteção à propriedade intelectual foi construído
sobre as bases do conhecimento científico, portanto, nele não se encaixam os
conhecimentos tradicionais. Vandana Shiva afirma que “conhecimento e criatividade
foram, todavia, definidos de maneira tão estreita no contexto dos DPI, que a
102 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com Aspas. P. 301.
103 Idem. P. 301. 104 Idem. P. 302. 105 Idem. P. 302. 106 Idem. P. 303. 107 Idem. P. 303.
96
criatividade da natureza e dos sistemas de conhecimento não-ocidentais é
totalmente ignorada”108.
O sistema de proteção à propriedade intelectual vigente está fundado no
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio (TRIPS) de 1994, o qual é gerido pela Organização Mundial do Comércio
(OMC). A finalidade é garantir aos inventores ou produtores responsáveis pelas
produções intelectuais o direito de auferir retribuições por suas criações, ainda que
por um tempo determinado. Esse sistema é composto por duas áreas: a)
Propriedade Intelectual (patentes, marcas, desenhos, indicações geográficas,
proteção de cultivares); b) Direitos Autorais (obras literárias e artísticas, cultura
imaterial).
Contudo, nesse sistema não há previsão de reconhecimento de direitos
relacionados à propriedade intelectual para os saberes tradicionais, afinal isso
implicaria em colocar sob a mesma proteção conhecimentos gerados de forma
coletiva e transmitidos ao longo das gerações, ou seja, fundamentalmente diversos
do conhecimento científico. A total ausência de proteção jurídica aos conhecimentos
tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, além de ser um
desrespeito com os indígenas e com as populações tradicionais, facilita a prática da
biopirataria pelos indivíduos e empresas interessadas em acessar o patrimônio
genético e os conhecimentos tradicionais.
Juliana Santilli afirma não haver uma definição jurídica para a biopirataria,
mas entende que:
é relativamente bem aceito o conceito de que a biopirataria é a atividade
que envolve o acesso aos recursos genéticos de um determinado país ou
aos conhecimentos tradicionais associados a tais recursos genéticos (ou a
ambos) em desacordo com os princípios estabelecidos na Convenção sobre
a Diversidade Biológica (CDB), a saber: a soberania dos Estados sobre
seus recursos genéticos e a necessidade de consentimento prévio
fundamentado dos países de origem dos recursos genéticos para as
atividades de acesso, bem como a repartição justa e eqüitativa dos
108 SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001. P. 31.
97
benefícios derivados de sua utilização. Quando a atividade envolve
conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas e populações
tradicionais, a CDB estabelece a necessidade de que sua aplicação se dê
mediante a aprovação e a participação de seus detentores e a repartição
dos benefícios com os mesmos109.
Ocorre que no acordo das TRIPS não houve qualquer vinculação ao que foi
previsto na Convenção sobre Diversidade Biológica para a concessão de direitos de
propriedade intelectual, exige-se somente o cumprimento dos requisitos constantes
no acordo para cada um dos modelos. Por exemplo, no caso de concessão de
patentes, que é o modelo que tem maior relação com o objeto deste estudo, deve
ser demonstrado o atendimento dos requisitos constantes no art. 27, que são: a
novidade, a invenção e a aplicação industrial. Não há qualquer controle por parte
dos institutos que analisam os pedidos de patentes sobre o cumprimento dos
princípios previstos na CDB quando no processo inventivo tiver havido acesso de
patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado.
Ademais, os países signatários do citado acordo não podem alterar por meio
de legislação interna as normas para a concessão dos direitos de propriedade
intelectual. Deste modo, quando da análise desses pedidos, os países ricos em
biodiversidade não poderão exigir, sequer internamente, o cumprimento dos
preceitos da CDB e de suas leis quando tiver havido acesso a patrimônio genético
localizado em seu território ou a conhecimento tradicional de seu povo.
Com o objetivo de solucionar essa problemática e proteger os conhecimentos
tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, existe uma corrente
que defende que devem ser feitas adaptações no sistema de propriedade intelectual
vigente, notadamente em relação às patentes, de modo a se incluir na esfera de
proteção também os conhecimentos tradicionais. Propõe, portanto, a propriedade
intelectual coletiva.
A proposta é no sentido de se adequar os modelos atuais às peculiaridades
desses conhecimentos, sem que haja alterações significativas no sistema. Essa
109 SANTILLI, Juliana. Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade: Elementos para a Construção de um Regime Jurídico Sui Generis de Proteção. Disponível em: http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT08/juliana_santilli.pdf. Acesso em 01/04/2012. P. 04.
98
vertente tem sido defendida pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual
(OMPI) e, no Brasil, pelo Instituto de Propriedade Industrial (INPI).
Internacionalmente, os conhecimentos tradicionais são tratados, ainda que
indiretamente, no âmbito da OMC e pelo acordo das TRIPS. Os defensores desta
corrente defendem que deve haver uma alteração no acordo mediante uma revisão
do art. 27.3 (b) que se refere às patentes. Contudo, esta questão é muito
controversa, tanto em relação aos termos em que a revisão deve ser feita, como em
relação à posição de alguns países que não admitem qualquer revisão no acordo
para a inclusão dos conhecimentos tradicionais, como é o caso dos Estados Unidos.
O Brasil, por meio do Ministério das Relações Exteriores, propôs a seguinte
revisão para o art. 27 do acordo das TRIPS:
Artigo 27 – TRIPs (tradução livre) 110
Matéria patenteável
1. [...]
2. Os Membros poderão excluir do patenteamento as invenções cuja
exploração comercial em seu território deve ser impedida necessariamente
para proteger a ordem pública ou a moralidade, inclusive para proteger a
saúde ou a vida das pessoas ou dos animais ou para preservar os vegetais,
ou para evitar danos graves ao meio ambiente, sempre que essa exclusão
não se faça meramente porque a exploração esteja proibida por sua
legislação.
3. Os Membros poderão excluir ainda assim do patenteamento:
a) [...];
b) as plantas e os animais exceto os microorganismos, e os procedimentos
essencialmente biológicos para a produção de plantas ou animais, que não
sejam procedimentos nãobiológicos ou microbiológicos. Não obstante, os
Membros deverão outorgar proteção a todas as variedades de plantas
mediante patentes, mediante um sistema eficaz sui generis ou mediante
uma combinação entre os dois. As disposições do presente subparágrafo
serão objeto de revisão quatro anos depois da entrada em vigor do Acordo
da OMC.
110 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA, André e BENSUSAN, Nurit (org.) Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70. Acesso em 10/04/2012. P. 206.
99
Contudo, essa corrente tem sido muito criticada pelos especialistas
(principalmente antropólogos e ambientalistas) tampouco tem sido bem recebida
pelos indígenas e populações tradicionais, afinal apenas efetuar alterações pontuais
no sistema de propriedade intelectual para incluir a proteção dos conhecimentos
tradicionais não parece ser adequado e efetivo para tutelar esses saberes face às
incompatibilidades intrínsecas entre eles e o sistema vigente de propriedade
intelectual.
Exige-se para a concessão de uma patente a comprovação de três requisitos:
a atividade inventiva, a novidade e a aplicação industrial. Contudo, é bastante
complicado demonstrar a existência de novidade quando se está diante dos
conhecimentos tradicionais. Afinal, eles são transmitidos ao longo das gerações,
sendo alterados e reformulados com o decurso de tempo, podendo inclusive serem
compartilhados entre diversos grupos ou comunidades que habitam uma região.
Ainda em relação aos requisitos patentários, nem sempre esses
conhecimentos possuem aplicação industrial direta, em grande parte dos casos as
empresas os acessam para a produção de um produto final, desenvolvido a partir
desses conhecimentos, sendo esse produto que terá aplicabilidade no mercado de
consumo.
Outro empecilho para encaixar os conhecimentos tradicionais no sistema de
propriedade intelectual é que a autoria não é individual e sim plural, são saberes
coletivos. O conhecimento é produzido de modo conjunto e não se refere apenas a
um indivíduo, mas à toda uma coletividade.
Inserir que quando está no grupo há divisões internas sobre a propriedade do
conhecimento - nova complexidade.
Disso decorre também a dificuldade em identificar um interlocutor
responsável pela comunidade, pois esses grupos (comunidades indígenas ou
populações tradicionais) possuem sistemas de representação e liderança próprios,
que obviamente são diferentes daqueles existentes nos sistemas capitalistas.
Mais um impeditivo para se patentear conhecimentos tradicionais é que não
há sentido em protegê-los apenas por um prazo determinado, vindo, após o decurso
100
do lapso temporal, serem considerados de domínio público. No Brasil, o art. 40 da
Lei n° 9.279/96 prescreveu que a patente de invenção deverá vigorar pelo prazo de
20 (vinte) anos e a de modelo de utilidade pelo prazo de 15 (quinze) anos, contados
do depósito. Esses conhecimentos se referem à cultura, à identidade, aos modos de
vida desses povos, devendo ser respeitados e preservados para as presentes e para
as futuras gerações.
De acordo com Eliane Moreira:
De fato, os conhecimentos tradicionais jamais caberão na “fôrma” dos
direitos de propriedade intelectual, pois esses se servem à proteção de um
direito gerado em bases e em campos próprios, possuindo fundamentos
ontológicos diferenciados, em verdade, no caso da propriedade intelectual
trata-se de proteger o produto (ou processo), em se tratando de
conhecimento tradicional importa proteger a cultura e seus elementos
circundantes, ainda que possa, subsidiariamente, servir-se de outro
sistema. 111
Por fim, utilizar a expressão “propriedade intelectual coletiva” para denominar
um sistema de salvaguarda dos conhecimentos tradicionais nos remete a uma
inadequação, pois o termo “propriedade” não reflete os processos de produção dos
conhecimentos tradicionais no âmbito das comunidades indígenas e das populações
tradicionais.112.
O direito de propriedade é real e individual. Conforme o art. 1.228 do Código
Civil: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de
reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”, o que
reflete claramente a concepção privatística. Por outro lado, os conhecimentos
111 MOREIRA, Eliane. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus Conhecimentos Associados à Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus cenários de disputa. In: Proteção aos Conhecimentos das Sociedades Tradicionais. BARROS, Benedita da Silva; GARCÉS, Cláudia Leonor López; MOREIRA, Eliane Cristina Pinto; PINHEIRO, Antônio do Socorro Ferreira. (Orgs.) Belém: Museu Paraense Emílio Goedi, Centro Universitário do Pará, 2006. P. 14. 112 “A teoria da adoção da propriedade coletiva esbarrou num sério problema: a força da palavra propriedade, que por inúmeras razões se opõe ontologicamente à noção de proteção de conhecimento tradicional e recursos genéticos.” MOREIRA, Eliane. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicional a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 152.
101
tradicionais são coletivos e compartilhados, são bens imateriais fruídos pelos vários
indivíduos pertencentes à coletividade.
Juliana Santilli defende a inadequação da expressão “propriedade intelectual
coletiva” para denominar um sistema de proteção aos conhecimentos tradicionais:
O conceito de propriedade – o direito do proprietário de usar, gozar e dispor
da coisa, e de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua
ou detenha – é excessivamente estreito e limitado para abranger a
complexidade dos processos que geram a inovação, a criatividade e a
inventividade nos contextos culturais em que vivem povos indígenas,
quilombolas e populações tradicionais. No direito ocidental, a propriedade –
tanto sobre bens materiais quanto sobre imateriais - é um direito
essencialmente individual e de conteúdo fortemente econômico e
patrimonial, e, ainda quando se trata de propriedade coletiva ou
condominial, cada co-titular do direito é plenamente identificável 113.
Esse também é o entendimento de Eliane Moreira, conforme trecho abaixo
transcrito:
“A teoria da adoção da propriedade coletiva esbarrou num sério problema: a
força da palavra propriedade, que por inúmeras razões se opõe
ontologicamente à noção de proteção de conhecimento tradicional e
recursos genéticos.
A primeira grande dificuldade é a barreira cultural que existe neste conceito,
porque muitas das comunidades tradicionais não possuem o entendimento
do que seja propriedade, pelo menos da forma como o tem dita “sociedade
civilizada”.114.
5.4. Regime jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais e os direitos intelectuais coletivos
Existe uma segunda corrente que sustenta a elaboração de um sistema
jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais. Aqueles que a
defendem tem preferido a utilização da expressão “direitos intelectuais coletivos”, a
qual não se vincula à ideia de propriedade e de individualismo, refletindo a aspecto 113 SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. P. 213. 114 MOREIRA, Eliane. Idem. P. 152.
102
coletivo dos conhecimentos tradicionais. Essa expressão “foi trazida pelas mãos de
Vandana Shiva (Índia), Tewolde Egziabher (Etiópia) e Gurdial Nijar (Malásia)” 115.
A elaboração desse regime tem sido defendida por renomados estudiosos
contemporâneos, dentre eles: Manuela Carneiro da Cunha, Juliana Santilli, Eliane
Moreira, Nurit Bensusan, Fernando Mathias, Vandana Shiva, Ana Valéria Araújo,
João Mitia Antunha Barbosa, Diana Pombo e Lúcia Vásquez.
Esse sistema “sui generis” tem como proposta proteger, além dos direitos
intelectuais, todo o processo de geração, conservação e transmissão dos
conhecimentos tradicionais, ou seja, os povos, os territórios por eles ocupados, as
formas de expressão cultural etc. Isto é, trata-se de um sistema moldado sobre as
bases do socioambientalismo, que trabalha com a dualidade: biodiversidade e
sociodiversidade.
Oferecer proteção apenas aos direitos de propriedade intelectual dessas
coletividades implica em somente tutelar os conhecimentos tradicionais sob o
aspecto econômico e mercadológico, o que não condiz com os princípios da
dignidade da pessoa humana, da proteção ao meio ambiente, da proteção ao
patrimônio cultural e da diversidade cultural, todos expressos na Constituição
Federal. Deste modo, tutelar os direitos intelectuais dos indígenas e populações
tradicionais levando em conta o caráter coletivo é um dos elementos desse regime
jurídico “sui generis”116.
Portanto, a proposta de construção de um regime jurídico “sui generis” vai
além da criação mecanismos jurídicos aptos à proteção da propriedade intelectual
dos conhecimentos tradicionais. Busca-se defender a cultura dos diferentes povos
formadores da identidade nacional, em conformidade com o previsto no art. 216 da
Constituição Federal. Os conhecimentos tradicionais são bens culturais imateriais
que integram o patrimônio cultural brasileiro.
115 MOREIRA, Eliane. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicioanl a luz do direito ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2000. P. 157. 116 O artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem prevê que: “Todos têm o direito à proteção dos interesses morais e materiais resultante de qualquer obra científica, literária ou artística de que sejam autores.”
103
A diferença essencial entre as duas correntes reside no fato de que a primeira
(propriedade intelectual coletiva) tem uma visão individualista, privatística e
mercadológica, pois busca tutelar os conhecimentos tradicionais por meio de
adaptações no instituto das patentes; enquanto que a segunda (direitos intelectuais
coletivos) objetiva salvaguardar os conhecimentos tradicionais mediante a
construção de um sistema coletivo pautado pelos princípios da preservação cultural,
da diversidade cultural e da proteção ambiental.
Eliane Moreira assim disserta sobre a perspectiva cultural para a proteção dos
conhecimentos tradicionais:
Sob essa perspectiva deve-se refletir acerca de um aparato jurídico que
permita a afirmação dos conhecimentos tradicionais não como direitos
proprietários, mas como direitos patrimoniais. Deslocando-se o debate do
campo do utilitarismo econômico para o campo da defesa do patrimônio
cultural, identificando seus componentes, não como bens economicamente
apreciáveis, mas como bens culturais socialmente relevantes, a partir de
uma nova concepção jurídica de patrimônio, já abraçada pelo regime
constitucional brasileiro, (...) 117.
A proteção aos conhecimentos tradicionais das populações tradicionais nos
moldes previstos pela Convenção de Diversidade Biológica (especialmente o art. 8°,
“j”), regulamentada no Brasil pela MP n° 2.186-16/2001, integra o microssistema de
tutela aos direitos coletivos em sentido lato. Deste modo, as disposições legais para
a defesa dessa classe de direitos podem ser aplicadas para a proteção desses
conhecimentos, como exemplo: o ajuizamento de ação civil pública.
À luz de tudo que já foi exposto não há dúvidas de que os conhecimentos
tradicionais são bens culturais e ostentam as qualidades abordadas no Capítulo 03
do presente estudo, pois tem qualidade de bem ambiental, são de interesse público
e de caráter coletivo/difuso.
Mais especificamente, os conhecimentos tradicionais são bens culturais
imateriais pertencentes ao patrimônio cultural brasileiro. Tendo em conta a
117 MOREIRA, Eliane. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus Conhecimentos Associados à Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos e seus cenários de disputa. P. 18.
104
concepção unitária do meio ambiente são qualificados, consequentemente, como
bens ambientais.
Ademais, são bens de interesse público, que devem ser preservados para as
presentes e futuras gerações por portarem referência cultural em relação aos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa qualidade não se
relaciona com a dicotomia bens públicos e bens privados.
O caráter coletivo e difuso de tais bens é facilmente perceptível, pois têm
como titulares coletividades, que neste caso são as populações tradicionais e
indígenas. Não são bens passíveis de serem individualizados. O elemento difuso
reside no fato de portarem referência cultural nos termos do art. 216 da CF e
integrarem o patrimônio cultural do país, por isso também são classificáveis como
bens difusos, já que preservá-los interessa não apenas à essas coletividades, mas a
todo o povo brasileiro.
Nurit Bensusan detecta a característica difusa desses bens inclusive na
denominação que lhes foi dada, isto é, no adjetivo “tradicional” atribuído aos
conhecimentos:
Vale destacar que o adjetivo “tradicional” atribuído aos conhecimentos
objeto de nossa análise é dado não por sua antiguidade ou inexistência de
método cientificamente comprovado, como defendem alguns, mas
fundamentalmente pelo sistema de transmissão oral, entre coletividades e
gerações, o que determina a titularidade coletiva (e não raramente difusa),
de sorte que os direitos sobre tais conhecimentos também têm essa
natureza coletiva e intergeracional118.
Tendo em conta as citadas características dos conhecimentos tradicionais a
adoção de um regime jurídico “sui generis” seria mais eficaz, adequada e condizente
com a tutela jurídica que tais conhecimentos merecem. Mais uma vez ressalta-se
que não bastam somente regras relativas à proteção da propriedade intelectual
coletiva.
118 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 205.
105
Neste sistema, as normas para a proteção dos “direitos intelectuais coletivos”
comporia um conjunto de regras jurídicas para a tutela dos direitos difusos e
coletivos dos indígenas e das populações tradicionais, salvaguardando-se a cultura
desses povos diferenciados, o que também implicaria em preservação da
biodiversidade, uma vez que tal sistema seria elaborado sob a perspectiva
socioambiental.
Compartilha desse entendimento Nurit Bensusan ao defender que não basta
apenas que seja resguardado o direito desses povos de consentir de forma livre e
informada sobre o acesso ao conhecimento tradicional, necessitando também a
garantia de outros direitos, tais como os direitos territoriais a manutenção de sua
própria cultura. Veja-se:
Para garantir proteção e promover conhecimentos é necessário muito mais
que um mecanismo de consulta às comunidades que garantam benefícios
decorrentes do seu uso consentido, mas urge que se garantam também os
direitos territoriais, base material onde os conhecimentos são
desenvolvidos, criados e recriados e políticas que permitam aos povos,
criadores e recriadores dos saberes tradicionais, opções dentro de seus
usos, costumes e tradições. Mais que isso, é importante garantir às
populações tradicionais irrestrito acesso aos conhecimentos não-
tradicionais como forma de permitir a integração sem assimilação119.
A criação desse regime jurídico “sui generis” também tem sido defendida por
diversos segmentos e movimentos promovidos pelos próprios povos indígenas. Esse
desejo foi explicitado na Carta de São Luis do Maranhão, elaborada durante um
encontro de pajés em 2001. Abaixo o item 15 deste documento:
15. Propomos que se adote um instrumento universal de proteção jurídica
dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui generis,
distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual e
que entre outros aspectos contemple: o reconhecimento das terras e
territórios indígenas, consequentemente a sua demarcação; o
reconhecimento da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais
como imprescritíveis e impenhoráveis e dos recursos como bens de
119 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 205.
106
interesse público; com direito aos povos e comunidades indígenas locais
negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos
existentes em seus territórios; do reconhecimento das formas tradicionais
de organização dos povos indígenas; a inclusão do princípio do
consentimento prévio informado e uma clara disposição a respeito da
participação dos povos indígenas na distribuição equitativas de benefícios
resultantes da utilização destes recursos e conhecimentos; permitir a
continuidade da livre troca entre povos indígenas dos seus recursos e
conhecimentos tradicionais120.
Além do exposto no item 15, outras reivindicações dos indígenas constaram
desse documento, dentre elas: a participação das comunidades indígenas no
Conselho de Gestão do Patrimônio Genético; a regulamentação por meio de lei do
acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, com discussões
amplas com as comunidades e organizações indígenas; oposição a toda forma de
patenteamento que provenha da utilização dos conhecimentos tradicionais e criação
de mecanismos de punição para coibir o furto da biodiversidade em Terras
Indígenas; o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais como saber e ciência,
conferindo-lhe tratamento equitativo em relação ao conhecimento científico
ocidental, estabelecendo uma política de ciência e tecnologia que reconheça a
importância dos conhecimentos tradicionais; a discussão entre os povos indígenas
de uma moratória para exploração dos conhecimentos tradicionais associados e dos
recursos genéticos até a aprovação do Estatuto das Sociedades e a ratificação da
Convenção 169 da OIT; uma discussão ampla com as comunidades e organizações
indígenas sobre a criação de bancos de dados e registros; a adoção de uma política
de proteção da biodiversidade e sociodiversidade destinada ao desenvolvimento
econômico sustentável dos povos indígenas, garantindo-se recursos para a proteção
dos conhecimentos tradicionais e preservação das espécies “in situ”; a criação de
um Comitê Indígena para o acompanhamento dos processos de discussão e
planejamento da produção dos Conhecimentos Tradicionais; o direito de
participação nos espaços de decisões nacionais e internacionais sobre
biodiversidade e conhecimentos tradicionais, como CDB, OMPI, OMC e outros; a
aprovação do Projeto de Declaração da ONU sobre Direitos Indígenas; entre outras. 120 BENSUSAN, Nurit. Breve histórico da regulamentação do acesso aos recursos genéticos no Brasil. In: QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. P. 209.
107
Os estudiosos desse tema elencam alguns elementos considerados
essenciais à construção de um regime jurídico “sui generis” que seja eficaz na
proteção aos conhecimentos tradicionais associados. A seguir foram abordados
alguns desses elementos.
Tendo em conta que os indígenas e as populações tradicionais possuem
íntima relação com os territórios tradicionalmente por elas ocupados e que os
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade são desenvolvidos nestes
espaços, qualquer sistema que tenha por escopo salvaguardar esses grupos e os
conhecimentos por eles gerados deve também proteger as terras em que eles
vivem. Portanto, é necessário que sejam implementadas políticas públicas com esse
objetivo, tais como: o reconhecimento e demarcação das terras indígenas, a
instituição de reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável e a concessão
de títulos de propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades
remanescentes de quilombos.
Conforme já abordado, esse sistema deve ser construído sob a ótica dos
direitos difusos e coletivos, afinal os conhecimentos tradicionais são titularizados coletivamente pelas populações tradicionais. Ademais, ainda há conhecimentos
que são compartilhados entre duas ou mais populações tradicionais.
Devem ser reconhecidos os sistemas de representação próprios e a legitimidade para si representar dos indígenas e das populações tradicionais em
processos envolvendo a autorização para acesso aos conhecimentos tradicionais
associados. O sistema jurídico brasileiro deve reconhecer essas formas
diferenciadas de representação, considerando a diversidade cultural e o pluralismo
jurídico.
O acesso aos conhecimentos tradicionais, bem como o uso referente aos
conhecimentos acessados devem ser precedidos de consentimento prévio e
informado dos indígenas e das populações tradicionais. O consentimento somente
pode ser concedido após a realização de um efetivo processo de discussão com a
comunidade detentora dos conhecimentos, no qual se deve levar em conta as
peculiaridades desses povos, tais como: a língua, os costumes, a forma de
organização social etc. No processo para a concessão desse consentimento é
108
imprescindível a formulação de um documento escrito em linguagem acessível e
compreensível a esses povos, no qual deve ser aclarados todos os aspectos da
autorização, como: o objetivo do acesso, o tempo de duração, a metodologia de
pesquisa, entre outros. O desrespeito a essas exigências vicia todo o processo e
torna nulo o consentimento já concedido.
Outro ponto é que haja a repartição justa de benefícios, para tanto é
necessário que o consentimento para o acesso concedido por esses povos tenha se
dado de forma prévia e informada, portanto, trata-se de uma decorrência do
elemento anterior. Essa repartição deve ser feita de acordo com a contribuição dada
para a elaboração do produto final, portanto, a empresa que acessa o conhecimento
tradicional deve ser transparente em relação aos dados econômicos envolvidos no
processo.
Qualquer atividade que envolva o acesso aos conhecimentos tradicionais
associados que puder causar riscos às populações tradicionais, à cultura desses
povos e à biodiversidade deve ser pautada pelo princípio da precaução, podendo
as populações tradicionais recusarem o acesso ou revogar a autorização de acesso
já concedida com base neste princípio.
Nas ações que versem sobre anulação das patentes concedidas após o
acesso do conhecimento tradicional associado deve haver a inversão do ônus da prova em benefício das populações tradicionais e indígenas supostamente
lesadas, por serem a parte hipossuficiente e vulnerável.
Além desses elementos, outros podem ser vir a integrar o regime jurídico “sui
generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais, desde que estejam em
consonância com os objetivos desse regime, isto é, desde que venham para
complementar e efetivar uma real proteção a esses conhecimentos em
conformidade com os princípios constitucionais de proteção ao patrimônio cultural
imaterial, à diversidade cultural, à biodiversidade e a dignidade da pessoa humana.
109
CONCLUSÃO
Diante de todo exposto, conclui-se, em súmulas, o seguinte:
I – Mário de Andrade foi o pioneiro nos estudos sobre patrimônio imaterial no
Brasil. O intelectual propunha o estudo e a documentação, principalmente através da
etnografia, das formas de cultura tradicional e popular no Brasil, bem como uma
conceituação de cultura que abrangia tanto as artes eruditas e cultura de elite.
Outro nome de destaque foi o designer gráfico Aloísio Magalhães, o qual foi
responsável pela criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) em
julho de 1975. Em seu projeto, ele retomou as ideias do modernista Mário de
Andrade para a proteção ao patrimônio imaterial, propondo apreender a cultura em
sua dinamicidade, diversidade, a cultura viva.
Os estudos e as ideias relativas ao patrimônio cultural imaterial
desenvolvidos, principalmente, por Mário de Andrade e Aloísio Magalhães
repercutiram nos trabalhos da Assembleia Constituinte, passando a constar no texto
constitucional a proteção também ao patrimônio cultural imaterial associado à noção
de referência cultural.
Quase após vinte anos da promulgação da Constituição Federal quase nada
havia sido feito para a proteção ao patrimônio cultural imaterial, razão pela qual
alguns setores da sociedade civil e do governo se mobilizaram para a concretização
e efetivação do direito cultural de valorização e preservação do patrimônio
intangível. Parte dessa lacuna legislativa foi preenchida com a edição do Decreto
presidencial n° 3.551 de 2000, o qual previu a criação do Registro, um instrumento
legal apropriado ao acautelamento do patrimônio intangível. Esse mesmo
instrumento também dispôs sobre o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
II – O patrimônio cultural imaterial também teve reconhecimento no âmbito da
UNESCO por meio dos seguintes documentos: Recomendação sobre a Salvaguarda
da Cultura Tradicional e Popular de 1989; Declaração Universal sobre a Diversidade
110
Cultural de 2001; Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de 2003 e
a Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais de 2005.
Oportuno relembrar que a Convenção de 2003 considera o patrimônio cultural
imaterial como fonte de diversidade cultural e também como garantia de
desenvolvimento sustentável.
Outro documento importante é a Convenção sobre Diversidade Biológica da
ONU de 1992, na qual houve o reconhecimento explícito da importância de se tutelar
os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Apesar de ser um
documento com vistas à proteção da biodiversidade, em razão da íntima relação
desta com as comunidades tradicionais, se tutelou igualmente os conhecimentos
tradicionais, os quais são bens culturais imateriais.
III – A Constituição Federal de 1988 adotou um conceito de patrimônio cultural
que atendeu às reivindicações dos setores e órgãos especializados na preservação
e defesa do patrimônio cultural, utilizando terminologia mais moderna e abordando o
tema em seus variados aspectos e de forma ampla. A técnica de redação foi mais
adequada ao modelo de “Constituição Cidadã” que se propôs a ser a atual Carta
Constitucional.
O direito à cultura foi previsto no art. 215 da Constituição Federal, por sua vez
o art. 216 que define patrimônio cultural e fixa algumas diretrizes em seus
parágrafos, especialmente no que tange às políticas culturais. Neste artigo utilizou-
se pela primeira vez os termos patrimônio cultural brasileiro e bens de natureza
material e imaterial. Sobretudo, merece destaque a inclusão da noção de referência
cultural ao dispor que os bens devem ser “portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.”
IV – Os bens culturais materiais são aqueles bens corpóreos móveis ou
imóveis, que possuem uma materialidade ou suporte. Os bens culturais imateriais
são mais difíceis de serem definidos, em razão de sua intangibilidade e abstração.
Esses são aqueles bens que não possuem materialidade, não são passíveis de
111
apreensão física por não comportarem um suporte. Ambos devem portar referência
cultural para os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, conforme art.
216 CF. Isto é, o bem deve ser considerado pelos próprios grupos ou comunidades
envolvidos como um elemento identificador, um traço característico da cultura que
se pretende preservar.
A noção de referência cultural é o elemento diferenciador em relação aos
demais bens jurídicos. Deste modo, se verificado que um determinado bem jurídico
porta referência cultural em relação à identidade, à ação ou à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ele pode ser considerado um
bem cultural. Os bens culturais não têm valor em si mesmo, a análise da valoração
será sempre feita pelos sujeitos envolvidos, ou seja, aqueles para os quais as
referências culturais tenham um especial sentido e um particular significado capazes
de identificar e caracterizar a cultura de determinado grupo.
V - A Constituição Federal previu no art. 216, § 1° os meios de promoção e
proteção do patrimônio cultural, sendo elencados neste dispositivo os inventários,
registros, vigilância, tombamento, desapropriação, além de outras formas possíveis
para o acautelamento. Em se tratando salvaguarda de patrimônio cultural intangível
os instrumentos próprios para tanto são os inventários e o registro.
O Inventário Nacional de Referências Culturais foi disciplinado pela Instrução
Normativa do IPHAN n° 01/2009, trata-se de um importante instrumento para
conhecer e documentar o patrimônio imaterial. Ademais, ele fornece subsídios à
implementação de políticas públicas destinadas à valorização e a proteção do
conhecimento e à inclusão social das comunidades e grupos inventariados. A
documentação produzida no INRC é hábil à instrução dos processos de Registro.
O registro foi disciplinado pelo Decreto n° 3.551/2000 e tem por objetivo
reconhecer a importância dos bens imateriais e resguardá-los através da
documentação, buscando a valorização da cultura e fornecendo um estímulo aos
grupos e às comunidades detentoras desses conhecimentos, práticas e saberes a
conservar a própria história e suas tradições, repassando-os às gerações futuras. A
inscrição de um bem imaterial em um dos livros próprios é o reconhecimento estatal
112
da importância deste bem, o qual passa a ostentar o título de “Patrimônio Cultural do
Brasil”.
VI - Atualmente, a maioria da doutrina especializada em Direito Ambiental
entende que a Constituição Federal adotou a concepção unitária de meio ambiente,
considerando como bem ambiental os bens naturais e artificiais e também os bens
culturais. Todos esses bens constituem o meio ambiente e devem compô-lo para
que este seja ecologicamente equilibrado e proporcione uma qualidade de vida
saudável, nos termos do art. 225 da CF.
A visão unitária do meio ambiente está de acordo com uma interpretação
sistemática e integradora da Lei Maior, bem como com a concepção holística de
meio ambiente. A Constituição Federal quis que a tutela ambiental não se
restringisse somente aos recursos naturais, mas alcançasse também os elementos
artificiais e culturais. Deste modo, tem-se o bem ambiental como gênero, do qual o
bem natural, o bem artificial e o bem cultural são espécies.
O princípio da solidariedade entre gerações previsto no art. 225 da CF apesar
de não constar expressamente nos artigos 215 e 216 da Constituição, deve ser
aplicado aos bens culturais, afinal ele é a base da proteção do patrimônio cultural
imaterial. Não é possível preservar expressões culturais, conhecimentos, técnicas,
modos de fazer criar e viver sem que haja a transmissão entre gerações. Essas
formas vivas de culturas somente assim permanecerão se forem assimiladas pelas
gerações vindouras, a qual será a depositária da cultura dos seus antepassados.
O bem cultural, independentemente de sua dominialidade pública ou privada,
é qualificado por um interesse público. A doutrina especializada se refere a ele como
bem de interesse público, trata-se de uma nova categoria de bens que supera a
tradicional dicotomia: bem público versus bem privado, prevista no Código Civil de
1917 e repetida no novo Código em 2002.
Ao classificar um bem cultural como bem de interesse público o que se
pretende é identificar o elemento que diferencia esses bens dos demais, esse
diferencial é o valor cultural os permeia, sendo interesse do Poder Público e de toda
113
a coletividade a sua preservação. Portanto, é uma categoria que não altera o regime
civil dos bens públicos ou privados, mas que impõe o dever de preservação dos
bens culturais, de modo que toda a coletividade passa a ter direitos e obrigações
sobre tal bem.
O interesse público que qualifica os bens culturais está intimamente ligado a
outra característica dos mesmos, que é a sua titularidade difusa. A preservação do
bem cultural interessa a uma determinada coletividade e também a todo povo
brasileiro, pois esse bem contribui para manutenção da diversidade cultural no país.
Ademais, a Constituição Federal no §1° do art. 216 impôs ao Poder Público, com
colaboração da comunidade, o dever de preservação do patrimônio cultural.
A titularidade difusa do bem cultural é verifica e reforçada quando se tem em
conta que se está diante de uma espécie de bem ambiental, assim, como integrante
do meio ambiente é de uso comum do povo (art. 225 da CF e inciso I do art. 2° da
LPNMA) e também essencial à sadia qualidade de vida. Estes bens devem ser
fruídos não somente em benefício de seu proprietário, mas de toda a coletividade,
preservando-os também para as futuras gerações.
Tendo em conta que o bem cultural é um bem difuso, quando se está diante
de lesão ou ameaça de lesão aos interesses ou direitos culturais deve-se lançar mão
das regras processuais próprias para a defesa dos interesses e direitos
metaindividuais, previstas principalmente na Lei de Ação Civil Pública e na parte
processual do Código de Defesa do Consumidor.
VII – A Constituição Federal de 1988 foi a primeira na história do Brasil a
dedicar um capítulo inteiro à proteção do meio ambiente, considerado um direito
fundamental. Além das disposições constantes no art. 225, outros artigos também
abordam a questão ambiental em temas específicos, na política urbana, no
desenvolvimento agrário, nas questões indígenas, como princípio geral da ordem
econômica, entre outros. Inovou também ao prever pela primeira vez a solidariedade
intergeracional para com o meio ambiente, isto é, todos (Estado e coletividade)
devem preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
114
As disposições constitucionais relativas ao meio ambiente, incluindo seu
caráter intergeracional, foram inspiradas no conceito de ecodesenvolvimento
consolidado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente em
1972, em Estocolmo; bem como no conceito de desenvolvimento sustentável
previsto no documento intitulado “Nosso futuro comum”, publicado em 1987 pela
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU.
A Constituição Federal previu o princípio do desenvolvimento sustentável
tanto no art. 225, como no art. 170. O objetivo deste princípio é aliar a questão
ambiental ao desenvolvimento econômico, promovendo a equidade social. Tendo
em conta a concepção unitária de meio ambiente e sua abordagem holística, para a
efetivação do princípio do desenvolvimento sustentável a questão cultural também
deve ser analisada e sopesada nesta equação. Isto é, as políticas públicas de
desenvolvimento econômico devem abordar tanto a preservação dos recursos
naturais como a salvaguarda do patrimônio cultural, seja material ou imaterial.
Foi a previsão destes “novos direitos” na Constituição Federal de 1988 que
possibilitou o desenvolvimento do socioambientalismo no Brasil, trata-se de um
modelo que rompe com o padrão anterior em que o individual é valorizado em
detrimento do coletivo e propõe um novo paradigma, que concilia os direitos sociais
e culturais com os direitos ambientais. Porém, não se trata de uma simples soma
desses direitos, a proposta socioambiental vai além, ao buscar a igualdade e a
justiça social por meio da promoção conjunta da sustentabilidade ambiental e da
sustentabilidade sociocultural. Isto é, alia-se a biodiversidade à sociodiversidade.
A origem do socioambientalismo no Brasil não remonta aos estudos feitos em
centros de pesquisa ou nas universidades, ele foi concebido a partir de
acontecimentos históricos, surgiu como uma via para atender às pressões e às
demandas sociais das minorias marginalizadas e não contempladas pelas políticas
públicas, como os povos indígenas, as comunidades quilombolas e as populações
tradicionais, nas quais se enquadram os seringueiros, os castanheiros, pescadores
artesanais, entre outros.
Na perspectiva socioambiental as políticas públicas somente serão efetivas e
sustentáveis se levarem em conta as demandas e os contextos socioculturais, ou
115
seja, vão além da simples conservação e preservação dos recursos naturais. Essas
políticas, ao envolver as comunidades locais detentoras de conhecimentos
tradicionais, preservam ao mesmo tempo a biodiversidade e a sociodiversidade, e
também possibilitam a repartição justa dos benefícios trazidos pelas atividades por
elas desempenhadas. O sociambientalismo é uma forma de realização da
sustentabilidade.
O respeito à diversidade cultural dos diferentes povos formadores da
identidade nacional é um princípio constitucional que deve orientar as relações do
Estado tanto do ponto de vista interno como do internacional, também as relações
entre os particulares devem ser pautadas por este princípio.
Assegurar a diversidade cultural nos moldes propostos pelo
socioambientalismo possibilita, em especial, a realização do ditame constitucional
que dispõe sobre a proteção dos bens culturais de natureza intangível (art. 216 CF).
Isso porque o foco principal dessa proteção não recai sobre os bens culturais
materiais, mas sim sobre as expressões culturais e os processos de produção de
cultura e conhecimento no âmbito das diversas comunidades e grupos. Protege-se,
sobretudo, os processos culturais, a cultura como algo vivo e dinâmico.
A necessidade de se aliar a preservação da biodiversidade à sociodiversidade
como via de concretização do desenvolvimento sustentável pode ser verificada na
legislação nacional, especialmente na Lei n° 9.985/2000 que instituiu o Sistema
Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
VIII - O Brasil é um país megadiverso, pois possui a maior diversidade
biológica de flora e fauna do planeta, estima-se em cerca de 20%. Internamente, a
proteção da biodiversidade constou expressamente no art. 225, §1°, II da
Constituição Federal de 1988.
Antes da Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro
em 1992, os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais eram considerados
patrimônio da humanidade, com a adesão de diversos países ao documento
internacional foi reconhecido que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus
116
próprios recursos biológicos e que os benefícios decorrentes da utilização dos
conhecimentos, inovações e práticas das populações indígenas e comunidades
locais devem ser repartidos equitativamente, em conformidade com a legislação
nacional.
Com a Convenção sobre Diversidade Biológica a biodiversidade foi
reconhecida como essencial à vida no planeta, devendo os recursos ambientais
serem preservados para as presentes e futuras gerações. Além disso, a
biodiversidade passou a ser valorizada também do ponto de vista econômico.
A Convenção sobre Diversidade Biológica trouxe à baila um novo paradigma
em relação aos povos indígenas e populações tradicionais, ao considerar que esses
grupos estão integrados aos ecossistemas e que, inclusive, contribuem para a
conservação e preservação da diversidade biológica. Isso constou expressamente
do art. 8, j da CDB.
Apesar de atualmente ainda haver muita controvérsia acerca do uso
sustentável dos recursos ambientais pelos povos autóctones e populações
tradicionais, existem vários estudos que demonstram que a maior percentagem de
diversidade biológica está localiza em terras indígenas.
Porém, se por um lado esse documento reconhece o valor dos
conhecimentos, das inovações e das práticas das populações tradicionais relevantes
à conservação e a utilização da biodiversidade, por outro, ele incentiva o uso destes
saberes mediante uma repartição justa dos benefícios com eles obtidos.
A CDB também previu o respeito à soberania dos Estados (art. 15, 1 121), pois
cabe a eles legislar internamente sobre a repartição de benefícios oriundos do
acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais das comunidades
locais. No Brasil, atualmente o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos
tradicionais associados e o modo como deverá ser feita a repartição dos benefícios
foram regulamentados pela Medida Provisória n° 2.186-16/2001, em vigor em
decorrência da EC n° 32/2001.
121 “Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.”
117
A citada MP tem sido muito criticada por não ter dispensado um tratamento
jurídico eficaz à proteção dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais
associados, especialmente no que tange à proteção dos direitos de propriedade
intelectual coletiva dos indígenas e das populações tradicionais sobre esses
recursos e conhecimentos.
IX - As populações tradicionais incluem grupos em sua essência bastante
diversificados, como os indígenas, os quilombolas e as comunidades locais, das
quais como exemplo tem-se os seringueiros, as quebradeiras de cocos, os
babaçueiros, os ribeirinhos, os jangadeiros, entre outros. Isto é, são populações
muito distintas do ponto de vista sociocultural. Nos documentos legais e
antropológicos não há sequer consenso sobre a terminologia para se referir a esses
grupamentos humanos.
A Lei n° 9.985/2000, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Unidades de
Conservação (SNUC) não conceituou populações tradicionais, mas acabou por fazê-
lo indiretamente ao mencioná-las em diversos dispositivos legais, de modo que é
possível identificar as características essenciais das populações tradicionais, são
elas: populações com cultura própria e diferenciada e que subsistem com base em
recursos naturais utilizados de forma sustentável.
Por sua vez, a Medida Provisória n° 2.186-16/2001 que regulamentou parte
do que foi ratificado na Convenção sobre a Diversidade Biológica, definiu
“comunidade local” como: “grupo humano associado, incluindo remanescentes de
comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza,
tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva
suas instituições sociais e econômicas. (art. 7°, inc. III).”
O Decreto n° 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, definiu no art. 3°, inciso I povos
e comunidades tradicionais como: “grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
118
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,
inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;”
O reconhecimento da importância do papel desses povos para a preservação
e conservação ambiental fez com que eles passassem a ser vistos como elementos
essenciais nas políticas ambientais pautadas pela sustentabilidade, vindo a ostentar
um status jurídico diferenciado.
X – Os povos indígenas e populações tradicionais desenvolvem
conhecimentos tradicionais que podem estar associados ou não a biodiversidade.
No primeiro caso, esses conhecimentos são as práticas individuais ou coletivas
dessas populações que possuem valor real ou potencial associados à
biodiversidade. Já no segundo caso, esses conhecimentos podem ser criações
artísticas, literárias, lendas, contos, danças, entre outros.
Atualmente, os pontos mais controvertidos e polêmicos para o sistema
jurídico se referem aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, em
razão da possibilidade que eles têm de gerar riqueza, especialmente para as
indústrias que fazem bioprospecção de recursos genéticos para o desenvolvimento
de produtos, como medicamentos e cosméticos.
Na legislação nacional, os conhecimentos tradicionais que não se referem à
biodiversidade devem ser tutelados pelos instrumentos próprios para a salvaguarda
do patrimônio cultural imaterial, que são o Registro e o Inventário Nacional de
Referências Culturais.
Em se tratando de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, a
proteção destes se dá nos termos da CDB (ratificada pelo Brasil) e da MP n° 2.186-
16/2001, que disciplinou, dentre outras matérias, o acesso ao patrimônio genético e
aos conhecimentos tradicionais associados.
A Convenção sobre Diversidade Biológica não conceituou o que são os
conhecimentos tradicionais associados, por sua vez a MP n° 2.186-16/2001, no art.
7°, inciso II trouxe a seguinte definição: “II - conhecimento tradicional associado:
119
informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade
local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético;”
A MP n° 2.186-16/2001 não tratou da proteção à propriedade intelectual dos
conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
XI - Atualmente o grande debate na área reside em como proteger
juridicamente os direitos intelectuais das populações tradicionais e indígenas
relacionados aos conhecimentos tradicionais associados, uma vez que esses
conhecimentos por serem gerados de forma essencialmente diversa dos saberes
científicos não se encaixam em nenhum dos instrumentos legais existentes para a
proteção da propriedade intelectual.
O aparato jurídico para a proteção à propriedade intelectual foi construído
sobre as bases do conhecimento científico, portanto, nele não se encaixam os
conhecimentos tradicionais.
O sistema de proteção à propriedade intelectual vigente está fundado no
Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao
Comércio (TRIPS) de 1994, o qual é gerido pela Organização Mundial do Comércio
(OMC). Nesse sistema não há previsão de reconhecimento de direitos relacionados
à propriedade intelectual para os saberes tradicionais, afinal isso implicaria em
colocar sob a mesma proteção conhecimentos gerados de forma coletiva e
transmitidos ao longo das gerações, ou seja, fundamentalmente diversos do
conhecimento científico.
No acordo das TRIPS não houve qualquer vinculação ao que foi previsto na
Convenção sobre Diversidade Biológica para a concessão de direitos de
propriedade intelectual, exige-se somente o cumprimento dos requisitos constantes
no acordo para cada um dos modelos. Ademais, os países signatários do citado
acordo não podem alterar por meio de legislação interna as normas para a
concessão dos direitos de propriedade intelectual.
Com o objetivo de solucionar essa problemática e proteger os conhecimentos
tradicionais no âmbito dos direitos de propriedade intelectual, existe uma corrente
120
que defende que devem ser feitas adaptações no sistema de propriedade intelectual
vigente, notadamente em relação às patentes, de modo a se incluir na esfera de
proteção também os conhecimentos tradicionais. Propõe, portanto, a propriedade
intelectual coletiva.
Contudo, essa corrente tem sido muito criticada pelos especialistas
(principalmente antropólogos e ambientalistas), tampouco tem sido bem recebida
pelos indígenas e populações tradicionais, afinal apenas efetuar alterações pontuais
no sistema de propriedade intelectual para incluir a proteção dos conhecimentos
tradicionais não parece ser adequado e efetivo para tutelar esses saberes face às
incompatibilidades intrínsecas entre eles e o sistema vigente de propriedade
intelectual.
XII - Existe uma segunda corrente que sustenta a elaboração de um sistema
jurídico “sui generis” para a proteção dos conhecimentos tradicionais. Aqueles que a
defendem tem preferido a utilização da expressão “direitos intelectuais coletivos”, a
qual não se vincula à ideia de propriedade e de individualismo, refletindo a aspecto
coletivo dos conhecimentos tradicionais.
Esse sistema “sui generis” tem como proposta proteger, além dos direitos
intelectuais, todo o processo de geração, conservação e transmissão dos
conhecimentos tradicionais, ou seja, os povos, os territórios por eles ocupados, as
formas de expressão cultural etc. Isto é, trata-se de um sistema moldado sobre as
bases do socioambientalismo, que trabalha com a dualidade: biodiversidade e
sociodiversidade.
A proteção aos conhecimentos tradicionais das populações tradicionais nos
moldes previstos pela Convenção de Diversidade Biológica (especialmente o art. 8°,
“j”), regulamentada no Brasil pela MP n° 2.186-16/2001, integra o microssistema de
tutela aos direitos coletivos em sentido lato. Deste modo, as disposições legais para
a defesa dessa classe de direitos podem ser aplicadas para a proteção desses
conhecimentos, como exemplo: o ajuizamento de ação civil pública.
121
Tendo em conta que os conhecimentos tradicionais são bens ambientais,
culturais, difusos e de interesse público, a adoção de um regime jurídico “sui
generis” seria mais eficaz, adequada e condizente com a tutela jurídica que tais
conhecimentos merecem.
Os estudiosos desse tema elencam alguns elementos considerados
essenciais à construção de um regime jurídico “sui generis”, são eles: a) a proteção
dos territórios tradicionalmente ocupados pelos indígenas e populações tradicionais;
b) um sistema jurídico construído sob a ótica dos direitos difusos e coletivos; c) o
reconhecimento dos sistemas de representação próprios e a legitimidade para si
representar dos indígenas e das populações tradicionais em processos envolvendo
a autorização para acesso aos conhecimentos tradicionais associados; d) o
consentimento prévio e informado dos indígenas e das populações tradicionais para
o acesso e uso do conhecimento tradicional, bem como a repartição justa de
benefícios; e) a adoção do princípio da precaução em relação a qualquer atividade
que envolva o acesso aos conhecimentos tradicionais associados que puder causar
riscos às populações tradicionais e indígenas, à cultura desses povos e à
biodiversidade; f) nas ações que versem sobre anulação das patentes concedidas
após o acesso do conhecimento tradicional associado deve haver a inversão do
ônus da prova em benefício das populações tradicionais e indígenas supostamente
lesadas, por serem a parte hipossuficiente e vulnerável.
122
BIBLIOGRAFIA
ALVES, Alaôr Caffé e PHILIPPI JR., Arlindo. Curso Interdisciplinar de Direito
Ambiental. São Paulo: Manole, 2004.
ALBAGLI, Sarita. Da biodiversidade à biotecnologia: a nova fronteira da informação.
Brasília: Ci. Inf., vol. 27, n. 1, 1998. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-19651998000100002. Acesso
em: 06/04/2012.
ALVES, Elder Patrick Maia. Diversidade cultural, patrimônio cultural material e
cultura popular: a Unesco e a construção de um universalismo global. In Revista
Soc. Estado, vol. 25, n° 3, Brasília: Departamento de Sociologia UNB, 2010.
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11 ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
_________________________. Manual de Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007.
________________________. Diversidade Biológica e Conhecimento Tradicional
Associado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
ANTUNHA, Carla; ANTUNHA BARBOSA, João Mitia; FIGUEIREDO, Patrick. O
Território do Conhecimento Tradicional: controvérsias em torno da aplicação da
legislação de patentes aos conhecimentos indígenas. Revista Proa, n° 02, vol. 1,
2010. Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/proa/ArtigosII/PDFS/carla_joao_patrick.pdf, acesso em:
04/04/2012.
ANTUNHA BARBOSA, João Mitia. Peuples Autochtones, Connaissances
Tradicionneles et Droits. Tese de Doutorado em Direito Privado. École Doctorale
Pierre Couvart e Universidade de São Paulo, 2012.
ARAÚJO, Ana Valéria e LEITÃO, Sergio. Socioambientalismo, Direito Internacional e
Soberania. In: SILVA, Letícia Borges da (Coord.). Sociambientalismo uma realidade
– homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Curitiba: Juruá, 2007.
123
ARAÚJO, Ana Valéria. Acesso a Recursos Genéticos e Proteção aos
Conhecimentos Tradicionais Associados. In: LIMA, André (org.). O direito para o
Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris, 2000.
AZEVEDO, Cristina Maria. A Regulamentação do Acesso aos Recursos Genéticos e
aos Conhecimentos Tradicionais Associados no Brasil. Revista Eletrônica Biota
Neotropica, vol. 5, n.1, 2005. Disponível em:
http://www.biotaneotropica.org.br/v5n1/pt/fullpaper?bn00105012005+pt. Acesso em
04/04/2012.
___________________ e MOREIRA, Teresa Cristina. A Proteção dos
Conhecimentos Tradicionais Associados: Desafios a enfrentar. In: Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N° 32. Patrimônio imaterial e
biodiversidade. Organização Manuela Carneiro da Cunha. Brasília: IPHAN, 2005.
___________________ e AZEVEDO, Eurico de Andrade. A Trajetória Inacabada de
uma Regulamentação. Revista Eletrônica Comciência, SBPC, N. 26, jun., 2000.
Disponível em: http://www.comciencia.br/reportagens/biodiversidade/bio11.htm.
Acesso em 05/04/2012.
BAPTISTA, Fernando Mathias. A gestão dos recursos naturais pelos povos
indígenas e do direito ambiental. In: LIMA, André (org.). O direito para o Brasil
socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio
Fabris, 2000.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
_______________. O Futuro da Democracia. 10ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo: Malheiros,
2006.
CAMARANI, Laura Amábile de Carvalho Ferreira. O folclore brasileiro no direito
ambiental constitucional. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da
Constituição. 6ª. Ed. Coimbra: Almedina, 2002.
124
CANOTILHO, José Joaquim Gomes e LEITE, José Rubens Morato. Direito
Constitucional Ambiental Brasileiro. 2ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª. Ed. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
CASTRO, Sônia Rabello de. O Estado na Preservação dos Bens Culturais. São
Paulo: Renovar, 1991.
CAVALCANTI, Maria Laura de Viveiros de Castro; FONSECA, Maria Cecília
Londres. Patrimônio Imaterial no Brasil Legislação e Políticas Estaduais. Brasília:
UNESCO, Educarte, 2008.
COSTA, Beatriz Souza. A Proteção do Patrimônio Cultural como um Direito
Fundamental. In Patrimônio Cultural e sua Tutela Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009.
CUNHA, Manoela Carneiro da. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997.
_______________. Patrimônio genético e conhecimento tradicional associado:
considerações jurídicas sobre seu acesso. In: LIMA, André (org.). O direito para o
Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto Socioambiental, Porto Alegre: Sergio
Antônio Fabris, 2000.
DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 3ª. Ed. São
Paulo: Hucitec, 2001.
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Princípios do Direito Processual Ambiental. 3. ª
Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
______________________________. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 12. ª
Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
____________________________ e DIAFÉRIA, Adriana. Biodiversidade Patrimônio
Genético e Biotecnologia no Direito Ambiental. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
FREITAS, Wladimir Passos de. Direito Administrativo e Meio Ambiente. 2ª. Ed.
Curitiba: Juruá, 1998.
125
FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: Base para novas políticas
de patrimônio. Políticas sociais: acompanhamento e análise – n°2. Brasília: IPEA –
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2000.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; MELLO FRANCO, Francisco Manoel
de. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Almanaque Brasil Socioambiental. Documento
Eletrônico ISA. São Paulo: 2008. Disponível em:
http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=10297. Acesso
em 01/03/2012.
___________________________. QUEM CALA CONSENTE? Subsídios para a
proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA, André e BENSUSAN, Nurit (org.)
Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003. Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70. Acesso em
01.04.2012.
IPHAN. O Registro do Patrimônio Imaterial: Dossiê final das atividades da Comissão
e do Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial. Brasília: IPHAN, 4ª. Ed., 2006.
_____. Os Sambas, as rodas, os bumbas, os meus e os bois. A trajetória da
salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil. Brasília: IPHAN, 2006.
_____. Patrimônio Cultural Imaterial: para saber mais. Brasília: IPHAN/MINC, 2007.
_____. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N° 32. Patrimônio
imaterial e biodiversidade. Organização Manuela Carneiro da Cunha. Brasília:
IPHAN, 2005.
JUCOVSKI, Vera Lúcia. Responsabilidade civil do Estado por danos ambientais. São
Paulo: Juarez Oliveira, 2000.
LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo
extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção
ampla de patrimônio cultural. In: Memória e patrimônio. Ensaios contemporâneos.
ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Orgs.). Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 19 .ª Ed. São Paulo:
Malheiros, 2011.
126
______________________________. Ação Civil Pública e Tombamento. 2ª. Ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
MAGALHÃES, Wladimir Garcia. Função Social da Propriedade Intelectual e a
Sociodiversidade. In: O Direito Ambiental na Atualidade – Estudos em Homenagem
a Guilherme José Purvin de Figueiredo. DANTAS, Marcelo Buzaglo; SÉGUIN, Elida;
AHMED, Flávio (Coord.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A Tutela do Patrimônio Cultural sob o Enfoque do
Direito Ambiental. Porto Alegre: 2007.
____________________________. A Importância da Preservação Cultural na Pós-
Modernidade. In: Direito Ambiental em Evolução 4. FREITAS, Wladimir Passos de
(Coord.). Curitiba: Juruá, 2011.
____________________________; STEIGLEDER, Annelise Monteiro. CAPELLI,
Sílvia. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.
MARÉS DE SOUZA FILHO, Carlos Frederico. Bens Culturais e sua Proteção
Jurídica. 3ª. Ed. Curitiba: Juruá, 2005.
__________________________________. Introdução ao direito socioambiental. In:
LIMA, André (org.). O direito para o Brasil socioambiental. São Paulo: Instituto
Socioambiental, Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000.
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil,
vol. 2, Processo de Conhecimento, 6ª. Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 15ª. Ed. São
Paulo: Saraiva, 2002.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro (atualizadores Eurico de
Andrade Azevedo e José Emmanuel Burle Filho). 35ª. Ed. São Paulo: Malheiros,
2009.
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. A Gestão Ambiental em foco. 7ª. Ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 25ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2006.
_________________. Constitução do Brasil Interpretada e Legislação
Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.
127
MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. A tutela jurídica da biodiversidade: uso e proteção
dos recursos genéticos brasileiros e do conhecimento tradicioanl a luz do direito
ambiental. Dissertação de Mestrado em Direito, Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, São Paulo, 2000.
_________________________. Conhecimento Tradicional e a Proteção. In: T&C
Amazônia, Ano V, Número 11, Junho, 2007. Disponível em:
http://www.fucapi.br/tec/imagens/revistas/completa_revista_tc11_final.pdf, Acesso em
06/04/2012.
__________________________. O Direito dos Povos Tradicionais sobre seus
Conhecimentos Associados à Biodiversidade: as distintas dimensões destes direitos
e seus cenários de disputa. In: Proteção aos Conhecimentos das Sociedades
Tradicionais. BARROS, Benedita da Silva; GARCÉS, Cláudia Leonor López;
MOREIRA, Eliane Cristina Pinto; PINHEIRO, Antônio do Socorro Ferreira. (Orgs.)
Belém: Museu Paraense Emílio Goedi, Centro Universitário do Pará, 2006.
NERY JUNIOR, Nelson e ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Código civil comentado
e legislação extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
______________________________________________________. Constituição
Federal comentada e legislação constitucional. 2.ª. Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal (processo
civil, penal e administrativo). 9.ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
NERY JUNIOR, Nelson; FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo e MILARÉ,
Édis. A ação civil pública e a tutela jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo:
Saraiva, 1984.
OLIVEIRA, David Barbosa de. A referência cultural do Inventário Nacional de
proteção dos bens imateriais. Políticas Culturais em Revista, Vol. 3, N° 2,
Universidade Federal da Bahia, 2010. Disponível em:
http://www.portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/viewArticle/5015. Acesso
em 17/01/2012.
PARDO, Guilhermo Orozco e ALONSO, Esteban Perez. La tutela del Patrimonio
Historico, Cultural o Artistico. Madrid, 1996.
128
PEDRO, Antônio Fernando Pinheiro. “Biodiversidade Brasileira e os contratos de
Bioprospecção (O caso Bioamazônia – Novartis)”. Disponível em:
http://pinheiropedro.com.br/site/artigos/biodiversidade-brasileira-e-os-contratos-de-
bioprospeccao-o-caso-bioamazonia-novartis/. Acesso em 10/04/2012.
PELEGRINI, Sandra. C.A; FUNARI, Pedro Paulo. O que é patrimônio cultural
imaterial. São Paulo: Brasiliense, 2008.
RÊGO, Patrícia de Amorim. Proteção Jurídica da Diversidade Biológica e Cultural.
In: FREITAS, Vladimir Passos de (Coord.). Direito Ambiental em Evolução 2. 8ª. Ed.
Curitiba: Juruá, 2010.
REISEWITS, Lucia. Direito Ambiental e Patrimônio Cultural Direito à Preservação da
Memória, Ação e Identidade do Povo Brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.
RITCHER, Rui Arno. Meio Ambiente Cultural: Omissão do Estado e Tutela Judicial.
Curitiba: Juruá, 1999.
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação Civil Pública e Meio Ambiente. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.
__________________________. Elementos de Direito Ambiental Parte Geral, 2.ª
Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e Novos Direitos. São Paulo: Peirópolis,
2007.
_______________. A Agrobiodiversidade, os Instrumentos Jurídicos de Proteção ao
Patrimônio Cultural e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
(SNUC). In: Direito Socioambiental Homenagem a Wladimir Passos de Freitas. Vol.
2. GALLI, Alessandra (Coord.) Curitiba: Juruá, 2011.
________________. Biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados: novos
avanços e impasses na criação de regimes legais de proteção. In: QUEM CALA
CONSENTE? Subsídios para a proteção aos conhecimentos tradicionais. LIMA,
André e BENSUSAN, Nurit (org.) Série Documentos do ISA 8. São Paulo: 2003.
Disponível em: http://www.socioambiental.org/inst/pub/detalhe_down_html?codigo=70.
Acesso em 01/04/2012.
________________. Conhecimentos Tradicionais Associados à Biodiversidade:
Elementos para a Construção de um Regime Jurídico Sui Generis de Proteção.
129
Disponível em :
http://www.anppas.org.br/encontro_anual/encontro2/GT/GT08/juliana_santilli.pdf. Acesso em
01/04/2012.
________________. Os "Novos” Direitos Socioambientais. In: Direito Ambiental em
Evolução 5. FREITAS, Wladimir Passos de (Coord.). Curitiba: Juruá, 2011.
SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio. Princípios de Direito
Ambiental na Dimensão Internacional e Comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
SÉGUIN, Elida. O Direito Ambiental: Nossa Casa Planetária. 2ª. Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2002.
SILVA, Daisy Rafaela da Silva. Patrimônio Cultural Imaterial – A tutela em face do
Direito Ambiental Brasileiro. In: Leituras Complementares de Direito Ambiental.
MARQUES, José Roberto (org.). Salvador: Podivm, 2008.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3ª. Ed. São
Paulo: Malheiros, 1999.
_____________________. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32. ª Ed. São
Paulo: Malheiros, 2009.
____________________. Direito Ambiental Constitucional. 9. ª Ed. São Paulo:
Malheiros, 2011.
____________________. Ordenação Constitucional da Cultura. São Paulo:
Malheiros, 2001.
SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Tradução
de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
TAMASO, Isabela. A expansão do patrimônio: novos olhares sobre velhos objetos,
outros desafios... Sociedade e Cultura, Univ. Federal de Goiás, Vol. 8, N. 2,
JUL./DEZ, 2005. Disponível em:
http://www.revistas.ufg.br/index.php/fchf/issue/view/401/showToc. Acesso em:
17/02/2012.
VIANNA, Letícia. Patrimônio Imaterial: legislação e inventários culturais A
experiência do Projeto Celebrações e Saberes da Cultural Popular. Série Encontros
e Estudos do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular n° 5, 2005. Disponível
em:
130
http://www.cnfcp.gov.br/pdf/Patrimonio_Imaterial/Patrimonio_Imaterial_Legislacao/C
NFCP_Patrimonio_Imaterial_Leticia_Vianna.pdf. Acesso em 30/03/2012.
YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Direitos e Interesses Individuais
Homogêneos: A “Origem Comum” e a Complexidade da Causa de Pedir.
Implicações na legitimidade Ad Causam ativa e no interesse de agir do Ministério
Público. Revista da Faculdade de Direito PUC-SP, ano 1, 1º. Semestre-2001.
Método: São Paulo, 2001.
Documentos Internacionais:
ONU. Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, Estocolmo, 1972.
____. Nosso futuro comum - Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento da ONU, 1987.
____. Agenda 21, Rio de Janeiro, 1992.
____. Convenção sobre Diversidade Biológica, Rio de Janeiro, 1992.
UNESCO. Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural, 1972.
________. Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular,
1989.
________. Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural da Humanidade,
2003.
________. Convenção sobre a Proteção da Diversidade das Expressões Culturais,
2005.