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Gilvan Leite de Araujo; Matthias Grenzer (orgs.) Os Direitos Humanos à luz da Doutrina Social da Igreja Coleção “Interseção”

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Gilvan Leite de Araujo; Matthias Grenzer (orgs.)

Os

Direitos Humanos

luz da

Doutrina Social da Igreja

Coleo Interseo

III CONGRESSO INTERNACIONAL DE DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

IV SIMPSIO INTERNACIONAL do PEPG em TEOLOGIA da PUCSP

XLIII CONGRESSO BRASILEIRO de TEOLOGIA MORAL

So Paulo, 19 a 21 de setembro de 2018

Os Direitos Humanos luz da Doutrina Social da Igreja

ANAIS

Organizadores:

Gilvan Leite de Araujo

Matthias Grenzer

UNISAL / PUCSP

So Paulo

2018

Organizadores:

Prof. Dr. Gilvan Leite de Araujo (PUCSP)

Prof. Dr. Matthias Grenzer (PUCSP)

Colaboradores(as):

Andr Anas (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Anderson Frezzato (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Fabiola Weber (Mestranda no PEPG em Teologia da PUCSP)

Jos Roberto do Nascimento (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Luciano Jos Dias (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Pamela Karina dos Santos (Mestranda no PEPG em Teologia da PUCSP)

Petterson Brey (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Renato Marinoni dos Santos (Mestrando no PEPG em Teologia da PUCSP)

Local do evento: UNISAL (Campus Sta. Teresinha), 19 a 21 de setembro de 2018

So Paulo, Brasil

Os textos publicados so de responsabilidade de cada autor.

Projeto Grfico, Capa e Diagramao:

PEPG em Teologia da PUCSP

Coleo Interseo (v. 1)

ISBN: 978-85-60453-46-7

Diante da globalizao da indiferena, a alternativa humana.

(Papa Francisco)

Sumrio

Apresentao ------------------------------------------------------------------------------------- 7

Eixo Temtico: Aspectos Jurdicos e Direitos Humanos

LIBERDADE RELIGIOSA: LIGAO ENTRE O ARTIGO 18 DA DECLARAO

UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E O DECRETO DIGNTATIS

HUMANAE

Huanderson Silva Leite -------------------------------------------------------------------------- 9

A RELIGIO COMO BEM HUMANO BSICO: UMA ANLISE DO PAPEL DA

IGREJA NA PROTEO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MINORIAS

Marcela Bittencurt Brey ------------------------------------------------------------------------ 15

A INFLUNCIA DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA NA CONSTRUO DOS

DIREITOS TRABALHISTAS E O PRINCPIO DA VEDAO AO RETROCESSO

SOCIAL: UMA ANLISE HISTRICA, PRINCIPIOLGICA E CRTICA DO

DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

Mariana Camargo Cas ------------------------------------------------------------------------ 22

Eixo Temtico: Direitos Humanos e desafios pastorais

IGREJA EM SADA: UM CONTRIBUTO AOS DIREITOS HUMANOS LUZ DE

JOS COMBLIN

Anderson Frezzato ------------------------------------------------------------------------------- 30

DIREITOS HUMANOS: LINGUAGEM COMUM ENTRE IGREJA E SOCIEDADE

PS-MODERNA

Edevaldo Rocha ---------------------------------------------------------------------------------- 38

ACONSELHAMENTO PR-NUPCIAL: UMA PROPOSTA PASTORAL SOBRE O

PONTO DE VISTA DA TICA (CRIST) COM BASE NOS DIREITOS HUMANOS

Samuel Sanches ---------------------------------------------------------------------------------- 46

Eixo Temtico: Direitos Humanos, Filosofia, Literatura e Culturas

PESSOA HUMANA NA DECLARAO UNIVERSAL DOS DIREITOS

HUMANOS E LUZ DA DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Adriana Barbosa Guimares / Luciana Soares Bandeira --------------------------------- 54

CAMINHOS PARA UMA TEOLOGIA ENCARNADA: DILOGO ENTRE

ESPIRITUALIDADE, PRXIS E POESIA

Andr Anas -------------------------------------------------------------------------------------- 61

Eixo Temtico: Direitos Humanos, minorias e superao da violncia

APARECIDA, CORRUPO E O DIREITO DOS POBRES

Anderson Adevaldo dos Santos ---------------------------------------------------------------- 69

DIGNIDADE HUMANA E OS DESAFIOS ATUAIS DA CATEQUESE JUNTO

PESSOA COM DEFICINCIA MENTAL

Ismnio Dias Libarino Jnior ------------------------------------------------------------------ 76

VATICANO II, EDUCAO INTEGRAL E A SUPERAO DA VIOLNCIA

Marcel Alves Martins --------------------------------------------------------------------------- 83

CHAMADOS E INTERPELADOS JUSTIA E AO AMOR: UMA TEOLOGIA DA

VOCAO E SUAS IMPLICAES TICAS

Messias de Moraes Ferreira ------------------------------------------------------------------- 91

Eixo Temtico: Direitos Humanos, Sagradas Escrituras e Magistrio

QUE O DIREITO CORRA COMO A GUA E A JUSTIA COMO UM RIO

CAUDALOSO (Am 5,24)

Chaybom Anttone Rufino --------------------------------------------------------------------- 100

PORVERTURA, SOU EU UM JUDEU? (Jo 18,35b): RESQUCIO DE UMA

DISTINO DISCRIMINATRIA DE PILATOS

Francisca Antonia de Farias Grenzer ------------------------------------------------------ 107

OS DIREITOS HUMANOS RESIDNCIA EM QUALQUER PAS E

PROTEO DA FAMLIA POR PARTE DA SOCIEDADE E DO ESTADO EM

DILOGO COM A NARRATIVA EXODAL (Ex 18,1-7)

Francisca Cirlena Suzuki --------------------------------------------------------------------- 113

DEFICINCIAS FSICAS: UMA VISO RELIGIOSA CRIST DA INCLUSO

Jos Eduardo Rodrigues / Ney Souza ------------------------------------------------------- 120

DIANTE DA GLOBALIZAO DA INDIFERENA, OS CES FIZERAM A

DIFERENA: UMA ABORDAGEM PRAGMTICO-LINGUSTICA DE Lc 16,19-

25

Jos Roberto do Nascimento ----------------------------------------------------------------- 127

ISAAS 58 E A JUSTIA SOCIAL: UMA BREVE LEITURA

Julio Cesar Ribeiro ---------------------------------------------------------------------------- 134

DIREITOS HUMANOS LUZ DE Ex 3,7-9

Luciano Jos Dias ----------------------------------------------------------------------------- 139

OS DIREITOS HUMANOS NA MISSO DE UMA IGREJA EM DILOGO

Lucy Terezinha Mariotti ---------------------------------------------------------------------- 145

O DIREITO HUMANO ALIMENTAO EM DILOGO COM O EVANGELHO

Matthias Grenzer / Patrick Shija / Robert Damanza -------------------------------------- 152

COLOCAREIS VESTIMENTAS SOBRE VOSSOS FILHOS E VOSSAS FILHAS!

(Ex 3,22b): O DIREITO HUMANO AO VESTURIO EM DILOGO COM A

NARRATIVA EXODAL

Patricia Carneiro de Paula ------------------------------------------------------------------- 159

DIREITOS E DEVERES DE UM REINO DE SACERDOTES EM FACE AO

DIREITO HUMANO BSICO ISNTRUO: ABSTRAES DO DISCURSO DO

SENHOR NO MONTE SINAI (Ex 19,3-7)

Petterson Brey ---------------------------------------------------------------------------------- 166

CALIBRANDO OS DIREITOS HUMANOS NO MAGISTRIO DA IGREJA

Renato Arnellas Coelho ----------------------------------------------------------------------- 174

Eixo Temtico: Moral, tica e Direitos Humanos

DIREITOS HUMANOS E LIBERDADE RELIGIOSA LUZ DA DECLARAO

DIGNITATIS HUMANAE

Alex de Sousa ----------------------------------------------------------------------------------- 182

A PRTICA PASTORAL COMO PROMOTORA DOS DIREITOS HUMANOS: A

PRXIS DO EVANGELHO QUE PERPASSA PELO DIREITO VIDA

Pamela Santos ---------------------------------------------------------------------------------- 189

JESUS: UM REFUGIADO?

Renato Marinoni ------------------------------------------------------------------------------- 195

DOAO DE SI COMO CATEGORIA ENTERPRETATIVA DA EXPERINCIA

MORAL

Solange Aparecida Novaes ------------------------------------------------------------------- 201

7

Apresentao

De 19 a 21 de setembro de 2018, em So Paulo, no Campus Sta. Teresinha, o

Centro Universitrio Salesiano de So Paulo (UNISAL) e a Pontifcia Universidade

Catlica de So Paulo (PUC-SP) realizaram o III Congresso Internacional de Doutrina

Social da Igreja, com o tema Os Direitos Humanos luz da Doutrina Social da Igreja e

sob o lema: Diante da globalizao da indiferena, a alternativa humana (Papa

Francisco). Dada a importncia do tema, uniram-se a este Congresso o IV Simpsio Internacional do Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia da PUC-SP e o

XLIII Congresso Brasileiro de Teologia Moral.

O presente e-book rene os Textos Integrais de vinte e oito Comunicaes

Cientficas apresentadas no Congresso. Todas as pesquisas se dedicam ao dilogo entre a

Teologia e os Direitos Humanos, com especial ateno Doutrina Social da Igreja

Catlica. Os Eixos Temticos foram organizados da seguinte forma:

Aspectos Jurdicos e Direitos Humanos;

Direitos Humanos e desafios pastorais;

Direitos Humanos, Filosofia, Literatura e Culturas;

Direitos Humanos, minorias e superao da violncia;

Direitos Humanos, Sagradas Escrituras e Magistrio;

Moral, tica e Direitos Humanos.

O livro inicia a Coleo Interseo. Cultiva-se, pois, a esperana de que a f

crist, estudada criticamente na Teologia, possa entrar, sempre de novo, num dilogo

proveitoso com os demais saberes, a fim de favorecer as pessoas e as sociedades na busca

de sobrevivncias mais dignas e felizes.

Desejamos uma leitura agradvel!

Os organizadores e os(as) colaboradores(as)

8

Aspectos Jurdicos

e

Direitos Humanos

9

Liberdade religiosa: ligao entre o Artigo 18 da Declarao Universal dos Direitos

Humanos e o Decreto Dignitatis Humanae

Eixo temtico: Aspectos Jurdicos e direitos humanos

Huanderson Silva Leite1

Introduo

Lacoste (LACOSTE, 2004, p. 1030), em seu Dicionrio Crtico de Teologia, ao

discorrer sobre o verbete da liberdade religiosa afirma que: A liberdade religiosa um

aspecto da poltica e deve ser distinguida da ideia de liberdade que se encontra no NT. Tal

como as outras liberdades ela compreende os direitos e as prerrogativas do cidado numa

comunidade poltica organizada e a garantia que o Estado respeitar esses direitos.

Segundo Teixeira (TEIXEIRA, 2013, p. 151), a partir do Decreto Dignitatis

Humanae, a dignidade humana vem reconhecida como precpuo fundamental da liberdade

religiosa. Em lugar de uma liberdade em benefcio da instituio, tpica do sculo XIX,

ocorre agora uma reinvindicao em benefcio do sujeito individual, do direito das

pessoas. Com a declarao sobre a liberdade religiosa, o Vaticano II afasta-se dos

antemas de Pio IX e abre um caminho novo na abordagem da dignidade humana,

constituindo tambm base essencial para um olhar mais compreensivo e positivo sobre as

outras tradies religiosas. a partir de ento que a Igreja Catlica inaugura oficialmente

um discurso de acolhida dos direitos humanos.

Tudo isto aparece ainda mais claramente quando se considera que a

suprema norma da vida humana a prpria lei divina, objetiva e

universal, com a qual Deus, no desgnio da sua sabedoria e amor, ordena,

dirige e governa o universo inteiro e os caminhos da comunidade

humana. Desta sua lei, Deus torna o homem participante, de modo que

este, segundo a suave disposio da divina providncia, possa conhecer

cada vez mais a verdade imutvel (3). Por isso, cada um tem o dever e

consequentemente o direito de procurar a verdade em matria religiosa,

de modo a formar, prudentemente, usando de meios apropriados, juzos

de conscincia retos e verdadeiros. (Dignitatis Humanae 3)

1 Graduado em Teologia pela Faculdade de So Bento So Paulo e Mestrando em Teologia pelo Programa

de Estudos Ps-Graduados em Teologia da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

10

O Papa Joo XXIII (JOO XXIII, 1963, p. 70) reconhece na Declarao Universal

dos Direitos Humanos um ato de altssima relevncia, uma vez que o prembulo desta

declarao proclama como ideal a ser demandado por todos os povos e por todas as

Naes, o efetivo reconhecimento e salvaguarda daqueles direitos e das respectivas

liberdades.

A Declarao Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi aprovada em 1948 na

Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas (ONU), como forma de reao

contra as atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, quando Hitler

comandou o genocdio de milhes de judeus e outras minorias nos campos de

concentrao. Este no deixa de ser tambm um dos fatores que influencia o Conclio

Vaticano II. O Artigo 18 da declarao universal dos direitos humanos declara que:

Todo o homem tem direito liberdade de pensamento, conscincia e

religio; este direito inclui a liberdade de mudar de religio ou crena e a

liberdade de manifestar essa religio ou crena, pelo ensino, pela prtica,

pelo culto e pela observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou

em particular.

O j mencionado papa Joo XXIII (JOO XXIII, 1963, p. 11), em relao a

liberdade religiosa, afirma: Pertence igualmente aos direitos da pessoa a liberdade de

prestar culto a Deus de acordo com os retos ditames da prpria conscincia, e de professar

a religio, privada e publicamente. Reforando ento essa relao entre a DUDH e o

Decreto Dignitatis Humanae, o presente decreto ainda afirma que: , pois, manifesto que

os homens de hoje desejam poder professar livremente a religio, em particular e em

pblico; mais ainda, a liberdade religiosa declarada direito civil na maior parte das

Constituies, e solenemente reconhecida em documentos internacionais (DH 15).

Contexto catlico pr-conciliar

Para (LIBNIO, 2005, p. 167), at o sculo XIX, a Igreja no defendeu a liberdade

religiosa como um dever inalienvel de cada pessoa, mas continuou firme na doutrina

tradicional de que a liberdade de conscincia era um delrio.

11

O Papa Gregrio XVI, na encclica Mirari, afirma o seguinte: Dessa fonte lodosa

do indiferentismo promana aquela sentena absurda e errnea, digo melhor disparate, que

afirma e defende a liberdade de conscincia (10).

Na mesma encclica ele vai ainda mais longe dizendo:

Devemos tratar tambm neste lugar da liberdade de imprensa, nunca

condenada suficientemente, se por ela se entende o direito de trazer-se

baila toda espcie de escritos, liberdade que por muitos desejada e

promovida. Horroriza-Nos, Venerveis Irmos, o considerar que

doutrinas monstruosas, digo melhor, que um sem-nmero de erros nos

assediam, disseminando-se por todas as partes, em inumerveis livros,

folhetos e artigos que, se insignificantes pela sua extenso, no o so

certamente pela malcia que encerram, e de todos eles provm a

maldio que com profundo pesar vemos espalhar-se por toda a terra.

(Mirari Vos 11)

Pio IX, na Quanta cura, tambm mostra o quo avesso a essa questo era o

magistrio catlico:

E, contra a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres,

no duvidam em afirmar que "a melhor forma de governo aquela em

que no se reconhea ao poder civil a obrigao de castigar, mediante

determinadas penas, os violadores da religio catlica, seno quando a

paz pblica o exija". E com esta ideia do governo social, absolutamente

falsa, no hesitam em consagrar aquela opinio errnea, em extremo

perniciosa Igreja catlica e sade das almas, chamada por Gregrio

XVI, Nosso Predecessor, de feliz memria., loucura, isto , que "a

liberdade de conscincias e de cultos um direito prprio de cada

homem, que todo Estado bem constitudo deve proclamar e garantir

como lei fundamental, e que os cidados tm direito plena liberdade de

manifestar suas ideias com a mxima publicidade - seja de palavra, seja

por escrito, seja de outro modo qualquer -, sem que autoridade civil nem

eclesistica alguma possam reprimir em nenhuma forma". (Quanta Cura

3)

Segundo Teixeira (TEIXEIRA, 2013, p. 150), a declarao Dignitatis Humanae

contribuiu de forma decisiva para a mudana de atitude dos catlicos com respeito s

outras tradies religiosas, uma vez que em razo da conscincia de sua centralidade, a

Igreja catlica teve sempre muita dificuldade em reconhecer o mundo da alteridade. Com

esta declarao, o Conclio procurou superar a viso tradicional do magistrio eclesistico

que, at Leo XIII, havia condenado as liberdades modernas.

Para Libnio (LIBNIO, 2005, p. 168), o Conclio inverteu a reflexo. No partiu

do abstrato, mas da pessoa concreta, de seus direitos inalienveis a liberdade de

conscincia, expresso pblica de sua f, individual e comunitariamente, desde que no

seja um atentado a valores fundamentais do convvio humano. Rompeu assim com a

12

tradio constantiniana pelos dois lados. De um lado, libertou o Estado da obrigao de

zelar e velar pela religio catlica, j que reconheceu que o Estado no competente em

questo de f, nem se exigiu dele uma profisso de f. De outro lado, a Igreja no

reivindicou para si nenhum privilgio. Orientou a reflexo na linha do fundamento do

direito constitucional inviolvel a liberdade religiosa desde a perspectiva da dignidade da

pessoa humana que se autodetermina na f de maneira livre e no pode crer de maneira

coagida de fora.

Os bastidores da promulgao do Decreto Dignitatis Humanae

Edelcio Otaviani (ALMEIDA, MANZINI e MAANEIRO, 2013), aps visitar os

escritos de Dom Boaventura Kloppenburg, perito na comisso teolgica, relata os

bastidores sobre as discusses relacionadas ao tema da liberdade religiosa no CVII. No

Conclio Vaticano II o tema da liberdade religiosa foi inserido, primeiramente, num rol de

oito propostas enviadas Comisso Central que foram reunidas pela Comisso

Preparatria num primeiro texto denominado De Tolerantia.

Para Mattei (MATTEI, 2013, p. 327-328), esse tema apareceu tambm em dois

pargrafos do esquema preparatrio Constituio Dogmtica sobre a Igreja e versavam

sobre a relao entre a Igreja e o Estado e a tolerncia. O Secretariado para a Unidade dos

Cristos havia preparado um esquema com o ttulo De Libertate religiosa, com 19

pargrafos repartidos por uma introduo e trs captulos, porm, quando os padres

conciliares comearam a discutir o texto da Constituio sobre a Igreja, o tema sob a

liberdade religiosa no mais apareceu no documento. Ele s voltou tona por ocasio da

apresentao do V captulo do esquema sobre o Ecumenismo, na sesso de 19 de

novembro de 1963.

Nesta ocasio, Dom Emilio De Smedt, bispo de Bruges, ao ler a Relao oficial do

Secretariado, para a Unio dos Cristos, apresentou as razes que possibilitaram ao tema

sobre a liberdade religiosa receber o nihil obstat da Comisso Teolgica do Conclio para

ser discutida.

Dom De Smedt apresentou as quatro principais razes que do ao tema da

liberdade religiosa um merecido destaque.

13

1 - A razo de verdade. A Igreja deve ensinar e defender o direito liberdade, porque se

trata de uma verdade cuja guarda lhe foi confiada por Cristo.

2 - Razo de defesa: uma vez que a Igreja no pode permanecer no silncio quando quase

metade da humanidade privada da liberdade religiosa pelo materialismo ateu de diversos

gneros.

3 - Razo de convivncia pacfica: uma vez que, em todas as naes, pessoas que aderem

as religies diversas so chamadas a conviverem entre si e com aqueles que carecem de

religio.

4 - Razo ecumnica: muitos no catlicos nutrem averso Igreja ou pelo menos

incriminam-na de certo maquiavelismo, porque lhes parece que exigimos o livre exerccio

da religio quando em determinada nao catlicos so em menor nmero.

Consideraes finais

Para Comblin (COMBLIN, 1998, p. 15), na histria do ocidente, no segundo

milnio, quase todas as heresias ou cismas procederam de exigncias de liberdade. A

todos a hierarquia respondia com a excomunho e a condenao como heresia. Por isso,

grande parte da tradio de liberdade crist encontra-se nas Igrejas separadas. A questo

da liberdade est no centro do ecumenismo com as Igrejas separadas no Ocidente.

O decreto Dignitatis Humanae alm de um avano, mostra uma converso na

concepo catlica a respeito da liberdade religiosa. fato que o documento procurou

atender e conciliar o desejo de alas conservadoras que no abriam mo da antiga viso

com a viso mais moderna proposta pelos padres conciliares.

Apesar de 58 Estados terem ratificado a Declarao, muitos ainda reprimem o

direito religioso de seus moradores com penalidades duras, como a pena de morte. Em

muitos casos, as pessoas que abandonam a f adotada pelo pas so presas, torturadas e

podem perder tudo o que possuem.

O discurso no pode ser apenas o de tolerncia, mas o de respeito a dignidade da

pessoa humana com seus direitos, bem como deve se haver tambm o respeito entre todas

14

as religies e formas de religiosidade e o consequente fim do discurso proselitista. Temos

ainda muito a avanar neste sentido.

Referncias

GREGRIO XVI. Mirari vos. 1832.

PIO IX. Encclica Quanta Cura. [S.l.]: [s.n.], 1864.

JOO XXIII. Carta Encclica Pacem in Terris. 1963.

DECRETO DIGNATIS HUMANAE SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA. In: ______

Compndio do Vaticano II Constituies Decretos Declaraes. Petrpolis: Vozes,

2000.

ALMEIDA, J. C.; MANZINI, R.; MAANEIRO, M. In: ______ As janelas do Vaticano

II - A Igreja em dilogo com o mundo. Aparecida: Santurio, 2013.

COMBLIN, J. In: ______ Vocao para a liberdade. So Paulo: Paulus, 1998.

DENZINGER, H.; HUNERMANN, P. Compndio dos smbolos: definies e declaraes

de f e moral. Traduo de Jos Marino e Johan Konings. So Paulo: Paulinas, 2007.

LACOSTE, J.-Y. Dicionrio Crtico de Teologia. So Paulo: Loyola, 2004.

LIBNIO, J. B. Conclio Vaticano II Em busca de uma primeira compreenso. So Paulo:

Loyola, 2005.

MATTEI, R. D. O Conclio Vaticano II Uma histria nunca escrita. So Paulo: Ambientes

& Costumes, 2013.

TEIXEIRA, F. Utopias do Vaticano II. So Paulo: Paulinas, Unio Marista do Brasil

(UMBRASIL), 2013.

15

A religio como bem humano bsico: uma anlise do papel da igreja na

proteo dos direitos fundamentais das minorias

Eixo temtico: Aspectos Jurdicos e direitos humanos.

Marcela Bittencourt Brey1

Introduo

Inicialmente, antes de se abordar a religio, qual sua influncia na sociedade e

como ela passou a ser considerada como um direito do indivduo vlido trazer algumas

consideraes, ainda que brevemente, do seu esboo histrico, e sua importncia no

cenrio contemporneo. O presente artigo tratar a religio a partir da tica ocidental e

mais especificamente aps a vida e ministrio de Jesus Cristo. Tendo como ponto de

partida, o fim do sculo III e incio do sculo IV, dado o cenrio poltico da poca e as

implicaes profundas para a igreja e a histria, no que concerne relao entre indivduo,

religio e liberdade religiosa.

As tenses polticas eram o pano de fundo nas relaes entre Igreja e o Estado. Os

eventos ocorridos desde a subida ao trono imperial por Constantino, j eram questionados

por outros imperadores, dado que o Imprio Romano era sucedido por 4 imperadores,

devido as ordens de Diocleciano a partir do ano 285. Assim, em virtude do falecimento de

Constncio, o exrcito elegeu Constantino, seu filho, para suced-lo, sendo este ato

considerado uma afronta ao sistema estabelecido por Diocleciano, dando margem

questionamentos pelos outros imperadores (BRAY, 2017, p. 121-123).

Desta feita, Constantino vivia um perodo turbulento no que diz respeito

legitimidade da titularidade da coroa imperial, e ainda teve que lutar contra Magncio (ano

de 312), filho de Maximiano que reivindicava o trono do pai. Tal fato culminou na

conhecida Batalha da Ponte Mlvia, em Roma. Os relatos trazem tona que Constantino

por ser mais supersticioso que religioso, teve uma viso com o smbolo cristo com as

palavras Sob este smbolo vencers. Assim determinou que o smbolo de Cristo fosse

1Marcela Bittencourt Brey, Advogada, Graduada em Direito pela Universidade So Judas Tadeu-SP, Ps-

Graduada em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura-SP, Ps-Graduada em Direito do Trabalho

pela Faculdade de Direito Damsio de Jesus, Membro das Comisses de Direitos Humanos e da OAB Vai

Escola, Secretria da Comisso de Coaching Jurdico da OAB-SP subseo Ipiranga.

16

estampado nas bandeiras e escudos de guerra, ganhando a batalha contra Magncio.

(OLSON, 2001, p. 143-145).

A partir de ento, pelas mos de Constantino, filho de Constncio, que o imprio

reencontrou a paz e a unidade (PIERRARD, 1982, p. 41-44), e desde o incio do seu

reinado manifestou simpatia em relao ao cristianismo, culminando diretamente no

chamado edito de Milo no ano 313. Este Edito realizado por Constantino e Licnio,

autorizava total liberdade de cultos, bem como a reparao dos prejuzos sofridos pelos

cristos que durante sculos haviam sido perseguidos.

Entretanto, as implicaes polticas do Edito de Milo permaneceram somente at

o reinado de Teodsio (anos 379-395), quando num edito assinado em Tessalnica (ano

380), visando exterminar as dissenses arianas, determinou que o catolicismo ortodoxo se

tornasse a religio oficial de todo o Imprio Romano, ou seja, cessou a liberdade religiosa

proclamada por Constantino e prevaleceu o princpio cuis rgio eius religio. Sob essa

tica, o homem no tinha liberdade de escolher sua religio, sendo, portanto, obrigado a

seguir a religio determinada pelo monarca.

Tendo o cristianismo ortodoxo sido erigido ao status de religio oficial do reino,

iniciou, contudo, a perseguio dos rivais, isto , aqueles que no estavam dispostos a

aderir ao catolicismo. A histria segue o seu curso, e a partir do sculo XI, denota-se

claramente disputas pelo poder, tanto na igreja bem como na sociedade civil. A Europa era

feudal, e nesse regime, era inevitvel a predominncia de um dos suseranos sobre os

outros, o que fomentou ainda mais, a concorrncia de quem seria o Rei. Na Inglaterra,

especialmente no sculo XII, o enfraquecimento do poder do monarca foi sensivelmente

sentido pelo Rei Joo Sem-Terra, o qual, pressionado aps a revolta armada dos bares

feudais, assinou a Magna Carta em 1215, cuja primeira clusula j tratava da liberdade

eclesistica (COMPARATO, 2017, p. 85,86).

nesse contexto poltico da Europa, que nasce So Toms de Aquino (1225-1273)

filho de um aristocrata. Em Paris, conheceu as obras de Aristteles (1245-1248), e por

meio de seu professor, o Telogo Alberto Magno, influenciou no somente a Teologia,

mas a Filosofia no sculo XIII. Toms de Aquino se tornou o maior brao da filosofia

escolstica, procurando criar um sistema de pensamento coerente e abrangente, firmado

numa lgica rigorosa.

Entretanto, a partir do sculo XIII de Toms, at a Era da Razo no sculo XVII, a

sociedade ocidental europeia passava por diversas mudanas no campo da Religio, da

17

teoria poltica, das cincias e na economia. Ressalte-se que a Filosofia buscava

independncia da Teologia, e a Reforma de Lutero (sculo XVI), rompia com as tradies

e dogmas da Igreja Catlica dominante, o que exerceu influncia preponderante no

movimento filosfico europeu. Ganhou ascenso o racionalismo de Ren Descartes, o

empirismo de John Locke e David Hume, transitando para o contratualismo de Jean-

Jacques Rousseau, at o racionalismo e criticismo de Kant (sculo XVIII), de inegvel

mister para a filosofia moderna e contempornea.

Na Reforma Protestante, as guerras tinham conotao religiosa, que resultavam,

no raras vezes, em perseguies a determinados grupos ou minorias. Tal intolerncia

inspirou os escritos de John Locke e de Voltaire, sendo que, especialmente a Carta acerca

da Tolerncia de Locke, contribuiu para o liberalismo e posterior laicidade estatal.

A religio como bem humano bsico por John Finnis

A partir da laicidade estatal, consagrou-se a religio como um direito da pessoa, e,

assim, desde ento, cada indivduo livre para escolher e exerc-la da forma como melhor

lhe convir. Entretanto, mesmo aps tantos sculos de discusso filosfica, guerras e

atrocidades acometidas contra a vida humana, principalmente os horrores da 2 Guerra

Mundial, a humanidade na contemporaneidade ainda testemunha atos intolerantes.

Infelizmente, tem sido cada vez mais frequentes as notcias sobre minorias, que

em virtude de perseguies ideolgicas ou religiosas migram para outros pases em

busca de salvar seu maior bem: a vida. Essa situao de refgio tem sido um dos maiores

entraves e inconvenientes para a comunidade internacional na atualidade, culminando

numa verdadeira tenso entre religio, liberdade religiosa e direitos humanos. Portanto,

saber qual o papel que o sistema de proteo de direitos humanos desempenha nessa

tenso, crucial para efetivar a proteo da vida humana.

justamente nesse aspecto que a proposta de estudo da Teoria da Lei Natural e

Direitos Naturais de John Finnis encontra proeminncia. O autor que possui formao na

teoria analtica do Direito compreendeu que ao longo dos sculos houve uma falsa

impresso acerca do que se considera a Teoria do Direito Natural, muitas vezes

relacionada com a metafsica ou sem eficcia dada a ausncia de coero. Para os

positivistas corrente da filosofia do direito que reduz o direito ao que est posto

somente vlido para o Direito, algo que por este positivado, recebendo o atributo de

coero.

18

John Finnis, entretanto, faz uma releitura do pensamento tomista e da Lei Natural,

partindo da razoabilidade prtica, onde a razo desempenha papel essencial. A noo de

bem humano, pode ser encontrada a partir de indagaes de que toda pessoa pautada na

sua racionalidade capaz de inquirir a si mesmo: quais so os aspectos bsicos de meu

bem-estar? (FINNIS, 2006, p. 91).

Sob a tica da tradio do pensamento aristotlico, So Toms de Aquino,

sustentava a integrao do Direito Natural e a lei positiva como fruto da instituio

humana, pois, no seu entendimento, no havia uma oposio entre elas. Mas, como o

pensamento filosfico europeu buscava independncia da cincia teolgica, a era moderna

cuidou de fazer crticas ao conceito de natureza pautada na racionalidade, e assim, o

Direito Natural foi desprezado, sendo cada vez mais distorcido.

Em virtude das mais variadas e tumultuadas convivncias que a sociedade

contempornea tem experimentado, a anlise da teoria da Lei Natural ganha importncia

diante da violao desse direito humano (intolerncia religiosa) e vai ao encontro com a

filosofia esposada pela Doutrina Social da Igreja e pelos documentos internacionais que

compem o sistema de proteo dos Direitos Humanos.

Note-se, que a referida convivncia tem se tornado cada vez mais rdua. H

diferentes grupos religiosos dividindo o mesmo espao geogrfico, e a religio muitas

vezes tem sido considerada o eixo de conflito, uma vez que cada grupo tem sua concepo

e prtica diferente. Diante disso, como a Igreja pode auxiliar a pessoa oprimida, vtima de

intolerncia religiosa? Ou ainda, como auxiliar o estrangeiro que busca refgio? A Igreja

seria uma coadjuvante junto ao Estado, para assegurar a efetividade das normas internas e

dos documentos internacionais, aos quais o Brasil signatrio?

oportuno salientar, que o objeto de ateno do presente artigo, so os grupos

minoritrios, que em razo da falta de harmonia imposta, talvez pela sociedade

multicultural, e diferentes concepes a respeito da vida, da identidade, ideologias e etc.,

se veem em situao de vulnerabilidade. Atualmente, no cerne desse debate, se faz

necessrio reconhecer a religio como bem humano bsico, posto que assume destaque,

pois a partir da concepo que cada indivduo possui sobre o tema, que podem surgir

19

as dissidncias, e por via de consequncia, nascem os perigos a violao do direito vida,

liberdade e segurana.

Ressalte-se, que tais direitos podem ser compreendidos como universais, bsicos e

essenciais, recebendo a conotao por John Finnis de direitos naturais e nesse sentido

quase tudo neste livro diz respeito a direitos humanos (direitos humanos sendo uma

expresso contempornea que se refere aos direitos naturais: uso esses termos como

sinnimos) (FINNIS, 2006, p. 195).

Consideraes Finais

O atual cenrio reflete uma crise do final do sculo passado e incio deste.

Caminha-se para a transio de mentalidade no ramo da cincia do Direito, que era

estritamente positivista, rumo a uma compreenso mais tica da problemtica jurdica. Os

eventos ps 2 Guerra Mundial (1945) culminaram na necessidade de se consagrar de

modo universal, o respeito pelo ser humano. Portanto, a pessoa humana passa a ser

considerada o ncleo central do pensamento ps-guerra.

Nesse contexto, nasce a Declarao Universal dos Direitos do Homem (1948),

aprovada pela Resoluo n 217(III) da Assembleia Geral das Naes Unidas em 10 de

dezembro de 1948, e, dentro da problemtica abordada no presente estudo, prev em seu

Artigo 18, que o ser humano tem direito a manifestar ou no, bem como, mudar de

religio. Contudo, os movimentos migratrios tm sido responsveis pelas frequentes

notcias de seres humanos que morrem ou se submetem s pssimas condies de vida,

sendo uma das causas, as perseguies religiosas.

No ordenamento jurdico brasileiro vigente, um dos fundamentos do Estado

Democrtico de Direito expresso na Constituio Federal de 1.988, a dignidade da

pessoa humana (art. 1, inciso III) considerada a base dos direitos e garantias fundamentais

do cidado e orientador estatal. Como reflexo, o indivduo tem o direito fundamental e

inviolvel liberdade de crena e ao seu exerccio (art. 5, incisos VI e VIII).

No que concerne igreja, luz do art. 44, IV e seu 1 previsto no Cdigo Civil

Brasileiro, esta conceituada como pessoa jurdica de direito privado, vedado ao Estado

intervir no seu funcionamento. conhecida tambm como entidade de terceiro setor.

Desempenha papel social e fundamental na sociedade onde est inserida. Vive o desafio

20

de recuperar a prevalncia dos direitos humanos como valor paradigmtico e referencial

na tica democrtica, sob as perspectivas de outras questes como gnero, raa e etnia.

Especialmente, no que concerne religio e sua prtica, deve buscar do Estado a

efetividade e garantia do indivduo que sofre violao do pleno exerccio dos direitos

civis, polticos, sociais, econmicos e culturais, assegurados no ordenamento jurdico

vigente e nos documentos internacionais aos quais o Brasil faz parte, como por exemplo,

a Declarao Universal dos Direitos do Homem de 1948 (art.18), o Pacto Internacional

dos Direitos Civis de 1966 (art.27), a Declarao sobre a Eliminao de Todas as Formas

de Intolerncia e Discriminao Fundadas na Religio ou nas Convices de 1981, bem

como, a Declarao de Princpios sobre a Tolerncia aprovada pela Conferncia Geral da

Unesco em 1995.

Conclui-se, portanto, que ao longo do desenvolvimento histrico, diante de

cenrios onde vimos conflitos polticos e sociais, a religio ganhou ascenso exercendo

ora o papel de protagonista ou de antagonista. Na atualidade, a tenso tem sido

apresentada pela convivncia entre grupos plurais numa sociedade cada vez mais

multicultural, fator agravado pela globalizao econmica, aumentando as desigualdades

sociais, deixando marcas de pobreza absoluta e de excluso social.

Tais fatores exigem uma abordagem mais prxima da Igreja, para que seja a

mediadora no dilogo entre os atores envolvidos em caso de violao de direitos humanos.

Da a coerncia da aplicao da teoria da Lei Natural de John Finnis com a Doutrina

Social da Igreja, como instrumento de resgate da prpria noo de respeito da pessoa.

Reconhecer a religio como um bem humano bsico, possa ser agora e no futuro, o nico

elo em comum da humanidade, uma linguagem universal entre todas as sociedades

multiculturais da ps-modernidade.

Referncias Bibliogrficas

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

BRAY, Gerald Lewis, Igreja: um relato teolgico e histrico. So Paulo: Shedd

Publicaes, 2017.

COMPARATO, Fbio K. A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos- 11. ed. So

Paulo: Saraiva, 2017.

_______________________. A Declarao Universal de Direitos Humanos, aprovado

pela Assembleia Geral das Naes Unidas em 10 de dezembro de 1948. In: A Afirmao

Histrica dos Direitos Humanos- 11. ed. So Paulo: Saraiva, 2017.

21

_______________________. Magna Carta de 1215, assinada pelo Rei Joo Sem Terra da

Inglaterra. In: A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos- 11. ed. So Paulo:

Saraiva, 2017.

_______________________. Os Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966. In:

A Afirmao Histrica dos Direitos Humanos- 11.ed. So Paulo: Saraiva, 2017.

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em sua 28 reunio, Paris, 1995. Disponvel em

http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf Acessado em 09

out.2018.

Declarao sobre a Eliminao de Todas as Formas de Intolerncia e Discriminao

Fundadas na Religio ou nas Convices, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em

1981. Res. 36/55. Disponvel em http://www2.camara.leg.br/atividade-

legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-

humanos-e-politica-externa/DecElimFormIntDisc.html Acessado em 09 out.2018.

FINNIS, John. Lei Natural e Direitos Naturais. So Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

OLSON, Roger, Histria da Teologia Crist: 2000 anos de tradies e reformas. So

Paulo: Editora Vida, 2001.

PIERRARD, Pierre, Histria da Igreja. So Paulo: Paulus, 1982.

PIOVESAN, Flvia. DIREITOS HUMANOS NA ERA DA GLOBALIZAO: O

PAPEL DO 3 SETOR. PIOVESAN, Flvia; GARCIA, Maria (orgs.). In: Teoria Geral

dos direitos humanos. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 1247-1258.

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22

A influncia da Doutrina Social da Igreja na construo dos Direitos

Trabalhistas e o princpio da vedao ao retrocesso social: uma Anlise

Histrica, Principiolgica e Crtica do Direito do Trabalho no Brasil

Eixo Temtico: Aspectos Jurdicos e Direitos Humanos.

Mariana Camargo Cas1

Introduo

Aos 15 de maio de 1891, ms dedicado pelos catlicos a Nossa Senhora, nascia

por obra do Papa Leo XIII um novo tempo na Igreja e no mundo. Rerum Novarum

(das coisas novas) a encclica que inaugura o que vem a ser a Doutrina Social da

Igreja, fruto de inmeras reflexes acerca da questo social. E como uma me que

aconselha seus filhos a seguirem determinado caminho que eles obstam em seguir, o

Magistrio da Igreja critica tanto o capitalismo, quanto o incipiente socialismo, no

obstante opta pelo capitalismo invocando o direito natural propriedade, sob o

argumento de que o homem anterior ao Estado. Hoje, mais de 127 anos aps a

promulgao da Rerum Novarum, ainda se discute a questo social, sendo que ano aps

ano o cenrio econmico-social modifica-se.

Nesse sentido, a sociedade brasileira vive em um contexto de crise moral, social,

poltica e econmica, considerando-se que autoridades polticas discutem questes

diversas, dentre elas a questo do desemprego e a problemtica da previdncia social.

Diante de tal cenrio, j ocorreu o que chamamos de reforma trabalhista com o advento

da Lei 13.467/2017. Por isso, o presente trabalho visa estudar o cenrio de crise da

poca da Revoluo Industrial, comparando-o com o cenrio brasileiro de crise

econmico-social sob a luz da Doutrina Social da Igreja, tendo como bssola a Rerum

Novarum, promulgada pelo Papa Leo XIII em 1891, o que influenciou sobremaneira

na criao das legislaes posteriores, bem como teve influncia no prprio mbito do

Direito Internacional. E mesmo tendo sido um documento direcionado queles apelos

sociais, notadamente em ateno a um chamado governamental, referido documento

tem carter universal e principiolgico, o que o atualiza a cada dia e o torna bem

1 Graduanda em Direito pelo Centro Universitrio Salesiano de So Paulo U.E. DE LORENA.

23

prximo da realidade brasileira ps reforma trabalhista.

Deste modo, observar-se- aquilo que foi proferido pelos Pontfices desde a

Rerum Novarum at dos dias atuais a fim de elucidar aquilo que pode ser a soluo para

um conflito denominado luta de classes, sendo a proposta do Papa Leo XIII contrria a

esta trazida pelo marxismo, no sentido de unir as classes at que haja uma amizade

fraterna e verdadeira colaborao. Afinal de contas, nas palavras do Pontfice, no h

capital sem trabalho, nem trabalho sem capital.

Desenvolvimento

Quando se trata do vocbulo trabalho, devem ser consideradas inmeras variveis

que mudam o cenrio por completo. Assim, podemos analisar o trabalho do ponto de

vista do cristianismo como uma misso dada por Deus que dignifica o homem

(PONTIFCIO CONSELHO JUSTIA E PAZ, 2011, p. 160), na viso histrica da

escravido ou da servido, em que a relao jurdica existente entre o sujeito que labora

e o seu patro era de sujeio, entretanto o objeto do presente estudo o trabalho

assalariado, sendo que a relao jurdica que se estabelece entre patro e operrio a de

subordinao (DELGADO, 2015, p. 90).

Imperioso observar que o contexto histrico ao qual est inserido este estudo o

ps Revoluo Industrial, cenrio que contemplava o pice dos direitos de 1 dimenso

na viso de Norberto Bobbio e da doutrina jurdica moderna. Nesse sentido, imperava o

pacta sunt servanda nas relaes de trabalho, o que significa dizer que patro e operrio

negociavam livremente as condies laborais (BARROS, 2012, p. 54). Este princpio

revelava um claro desequilbrio nas relaes, em que uma parte era a dona do capital e

dos meios de produo e a outra mero oferecedor da sua fora de trabalho.

Naturalmente, as consequncias comearam a aparecer e aqueles que conheciam a

pobreza, passaram a contemplar a misria (COMPARATO, 2013, p. 65).

Dento deste cenrio, surgem discusses em diversos setores acerca daquilo que

mais tarde seria denominado questo social. Assim, a Rerum Novarum o documento

oficial que consubstancia o posicionamento da Igreja Catlica diante disso. Esta

encclica inaugura o que vem a ser a Doutrina Social da Igreja (DSI), um conjunto de

documentos que contempla o pensamento da Igreja sobre questes que envolvem a

24

dignidade da pessoa humana e questes a ela correlatas (PONTIFCIO CONSELHO

JUSTIA E PAZ, 2011, p. 162).

O cenrio de crise econmica, poltica e social que assolava o mundo precisava

ser discutido e, pode-se dizer, foi cedendo espao para o que atualmente se denomina

Direito Internacional do Trabalho. Nesta senda, a maioria da doutrina brasileira apoia-se

na teoria de Granizo e Rotvoss de que esta cincia jurdica passou por uma evoluo

histrica que foi dividida em quatro fases, quais sejam formao (1802 1848) com o

Peels Act, na Inglaterra; intensificao (1848 1890) com o advento do Manifesto

Comunista de Karl Marx e da Revoluo de 1848 ocorrida na Frana; consolidao

(1890 1919) na ocasio da Conferncia de Berlim e da Rerum Novarum; autonomia

(1919 final do sc. XX) que tem como marco a criao da Organizao Internacional

do Trabalho (OIT) e da Constituio Mexicana e de Weimar (DELGADO, 2015, p. 99).

Diante disso, observa-se que o objeto do nosso estudo est localizado exatamente

na terceira fase da evoluo histrica do Direito Internacional do Trabalho, sendo que

na ocasio da Conferncia de Berlim, o Papa Leo XIII foi convocado a se posicionar

em nome da Igreja e o fez por meio da promulgao da Rerum Novarum (SSSEKIND,

2000, p. 91).

No que tange ao cenrio brasileiro, encontramos a influncia da Rerum Novarum

na criao da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), considerando-se que foi

dividida em quatro procedimentos distintos, sejam eles a sistematizao das normas de

proteo individual do trabalho, inspiradas nas convenes da OIT e na Rerum

Novarum; a compilao da legislao da vspera, inspirada em normas

constitucionais vigentes; a atualizao e complementao de disposies superadas ou

incompletas; e a elaborao de novas normas (BIAVASCHI, 2007, P. 118 apud

GUNTHER, 2011, p. 26).

Curiosamente, houve influncia tanto no mbito internacional, quanto no interno,

o que pode ser atribudo ao carter principiolgico (ou universal) da DSI que contempla

o denominado direito natural propriedade privada que complementado pela funo

social da propriedade (RERUM NOVARUM, 1891). Nesse sentido, depreende-se dos

documentos papais que havia uma bipolarizao mundial entre o liberalismo econmico

e o socialismo de Marx, e a Igreja Catlica por meio da DSI optou claramente pelo

liberalismo econmico, entretanto com inmeras ressalvas. A opo por este modelo d-

25

se pela premissa de que o homem anterior ao estado e, assim, tem o direito natural a

propriedade privada, todavia deixou aos economicamente favorecidos a incumbncia de

dar assistncia aos pobres por fora do princpio da solidariedade (CENTESIMUS

ANNUS, 2002). Cumpre-nos demonstrar que a DSI no se limitou aos problemas que

ensejaram a promulgao de cada encclica, mas traz em seu bojo princpios universais

e atemporais.

Atualmente, o cenrio brasileiro est bem prximo daquilo que fora exposto,

sendo notria a crise econmica, poltica e social que assola o pas. Aps o

impeachment da presidente Dilma Rousseff, quando do governo do presidente Michel

Temer, foi concludo que o melhor para solucionar a crise seria uma Reforma

Trabalhista, o que se concretizou por meio da Lei 13.347/2017. Esta lei alterou

significativamente mais de cem artigos da CLT, tanto na esfera do direito material,

quando processual.

Nesse diapaso, foram acaloradamente discutidas as alteraes e a expresso que

chamava a ateno da mdia era o incipiente retrocesso social, sendo este uma situao

em que direitos conquistados ao longo da histria so perdidos, aniquilados ou

relativizados. Cumpre-nos fazer uma digresso para informar que os direitos trabalhistas

localizam-se na 2 dimenso dos direitos humanos fundamentais, momento posterior

conquista das liberdades individuais e da no interferncia estatal. In casu, observa-se o

movimento de interferncia estatal a fim de equilibrar as relaes de trabalho. E, por

lgica, se os direitos trabalhistas so internacionalmente considerados direitos humanos

fundamentais, so pelos princpios deste regidos. Deste modo, o princpio da Vedao

ao Retrocesso Social rege os direitos humanos fundamentais e enuncia que direitos

trabalhistas j adquiridos, bem com os seus princpios norteadores vinculam o poder

legislativo e no podem retroceder (REIS, 2010, p. 111).

Resta evidente que um dos principais pontos discutidos sobre a Lei 13.347/2017,

foi o chamado Princpio do Negociado sobre o Legislado previsto no art. 611-A da CLT

(BRASIL, 1943) que remete ao anteriormente exposto pacta sunt servanda, o mesmo

princpio que culminou nas pssimas condies de trabalho, pauperizao do

proletariado e na necessidade da interveno do Estado das relaes laborais.

Consideraes Finais

26

Finalmente, compreende-se que o quadro do ps Revoluo Industrial e o atual

so semelhantes e, naturalmente, interessante pensar que solues encontradas para as

crises anteriores podem ser adotadas para atenuar o que se vive hodiernamente. De

plano, esclarecemos que no Brasil o poder judicirio tem liberdade para interpretar as

normas e no fica adstrito quilo que entender inconstitucional ou claramente uma

afronta s normas internacionais (BRASIL, 1942), por fora do princpio do livre

convencimento motivado (BRASIL, 1988), bem como so livres os acadmicos e

doutrinadores do direito para opinar sobre as mudanas concernentes ao Direito do

Trabalho.

Ademais, a proposta da DSI para solucionar os conflitos provenientes da luta de

classes atual e eficaz. A ideia central da Rerum Novarum a de que no h capital

sem trabalho, nem trabalho sem capital (RERUM NOVARUM, 1891), assim uma classe

deve estar harmonicamente ligada a outra. O patro respeitando a dignidade humana de

seus empregados, seu direito a salrio e condies dignas de trabalho, entendendo que o

trabalho no uma mercadoria; o empregado, por outro lado, no causando danos ao

seu patro e cumprindo fielmente as obrigaes contratuais.

Assim, temos a DSI em consonncia com o Direito, mirando um mesmo ponto

de vista principiolgico, buscando a verdade sobre a questo social desde a primeira

Revoluo Industrial. A proposta de So Joo Paulo II vai justamente ao encontro dos

anseios dos acadmicos, juristas e doutrinadores, do Direito do Trabalho: buscar a

verdade, estudando. Deste modo, podemos com convico unir a Igreja ao Direito,

afinal de contas a f e a razo so consideradas duas asas pelas quais o esprito humano

se eleva para a contemplao da verdade, nas palavras do mesmo papa (FIDES ET

RATIO, 1998).

Alm disso, pode-se de longe notar que h diversas outras temticas a serem

abordadas a partir da presente pesquisa, como, por exemplo, o trabalho do menor e da

mulher, diante dos inmeros conflitos estudados pela cincia jurdica e pela mater

Igreja, o que demonstra a vasta contribuio da pioneira Rerum Novarum para o

incipiente e atual Direito do Trabalho.

Referncias Bibliogrficas

27

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28

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PONTIFCIO CONSELHO JUSTIA E PAZ. Compndio da Doutrina Social da

Igreja. So Paulo: Paulinas, 2011.

REIS, Daniela Muradas. O Princpio da Vedao do Retrocesso no Direito do

Trabalho. So Paulo: LTr, 2010.

SSSEKIND, Arnaldo. Direito Internacional do Trabalho. 3 ed. So Paulo: LTr,

2000.

http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_re

29

Direitos Humanos

e

desafios pastorais

30

Igreja em sada: um contributo aos Direitos Humanos luz de Jos Comblin

Eixo temtico: Direitos Humanos e desafios pastorais

Anderson Frezzato1

Introduo

No so poucas as vezes que encontramos, quer escrito nos Documentos do

Magistrio da Igreja, quer em pronunciamentos, sobretudo do Papa Francisco, o apelo a

uma Igreja em sada. Isso significa que cada vez mais a Igreja toma conscincia do seu

papel no mundo e da sua participao nas realidades que envolvem os povos, sobretudo

aqueles com grandes sofrimentos. So tantas as atividades pastorais em que a Igreja pode

empenhar-se no encontro com o outro que explorado, passa fome, e refugiado. Nesse

sentido, o Papa Pio XII, no dia 21 de abril de 1957, na Carta Encclica Fidei Donum,

lanava o convite para a Igreja se fazer mais atuante nas realidades de sofrimento dos

povos africanos e latinos americanos. O apelo do Papa Pio XII no s mostra um interesse

da Igreja em seu crescimento e expanso, mas na atuao da Igreja como presena de

Jesus que cuida e trata dos feridos da histria. Assim diz o Pontfice, consciente do modo

como vivem os povos latino-americanos to solapados nos seus direitos humanos, que

era preciso de voltar para as imensas plagas da Amrica do Sul, esmagadas por muitas

dificuldades que j sabemos (FD n 3). Justamente como grmen, encontramos, aqui, o

sentido de uma Igreja que se abre e se preocupa com os direitos humanos dos latino-

americanos.

Certamente inspirados pelos apelos da Igreja, ainda antes da publicao da Fidei

Donum, os bispos belgas fundaram o COPAL - Colgio Pr-Amrica Latina. Esse Colgio

se constitua de uma instncia de preparao dos futuros missionrios para Amrica Latina

e enviava missionrios acompanhando-os humanamente, economicamente e

pastoralmente, nos lugares por onde prestavam os mais diversos trabalhos pastorais. Os

sacerdotes eram convidados a assumir a ndole missionria respondendo aos apelos papais

ou atendendo a uma vocao pessoal, como foi o caso do Pe. Jos Comblin. Aps o

trmino do doutorado, em Lovaina, manifestou reiteradamente sua vontade de partir em

misso, tendo escrito duas vezes ao Cardeal van Roey. Finalmente, aps a segunda

1 Mestrando em Teologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, do Programa de Estudos de Ps-Graduados em Teologia na Linha de Pesquisa de Sistematizao da F Crist. Membro integrante do

Grupo de Pesquisa Jos Comblin (CNPQ).

31

tentativa, seu pedido foi aceito e o destino de Pe. Jos Comblin foi definido: o Brasil. O

ponto inicial da misso era a Arquidiocese de Campinas e depois outras regies do Brasil,

sobretudo, o Nordeste.

Assim, aps essa exposio, que se configura a proposta de nossa comunicao:

apresentar a importncia de Jos Comblin como missionrio de uma Igreja em sada frente

s realidades de sofrimentos pelas quais passavam os brasileiros em sua poca e que

gritam tambm no tempo de hoje, como a pobreza, falta de liberdade, corrupo, etc. Indo

ao encontro dos pobres e de seus direitos, Pe. Jos Comblin refletiu sobre os desafios

pastorais da Igreja presente no mundo, luz dos direitos humanos, impulsionado pela

atitude preferencial de Jesus diante daqueles que mais sofrem e tm sede de justia.

Uma Igreja em sada se depara inevitavelmente com o direito de todos

A ndole missionria da Igreja, tratada pela Constituio Dogmtica Lumen

Gentium em seu n. 17 e mais amplamente desenvolvida no Decreto Ad Gentes, ambos

documentos do Conclio Vaticano II, encontra na expresso Igreja em sada (Cf. EG n

20), do Papa Francisco, sua indicao mais simples e precisa do desejo da Igreja de ir ao

encontro de todos os povos e em especial dos mais distantes da f catlica e que, luz da

atitude preferencial dos pobres, assume a misso de ir ao encontro tambm daqueles que

sofrem o estigma da pobreza, da segregao racial, esto desempregados, doentes, e

aqueles que de alguma forma se sentem prejudicados no seus direitos humanos.

A Igreja, para ser missionria, precisa de missionrios e missionrias. Dessa forma,

que vamos entender a vida ministerial do Pe. Jos Comblin. Missionrio de uma Igreja

em sada, procurou realizar seu mpeto missionrio levando a presena de Jesus a todas as

pessoas que se encontrava. Esse mpeto missionrio de Jos Comblin nasce, mesmo que

em grmen, das provocaes feitas pelo Papa Pio XII, na sua Carta Encclica Fidei

Domun, quando faz notar a necessidade de toda a Igreja em promover uma atitude

missionria sria na Amrica Latina e na frica. Em suas palavras, Pio XII, exorta os

bispos a enviarem missionrios a estas terras. O missionrio deveria levar e ser a presena

de Cristo e por consequncia da Igreja, perante aqueles que mais sofrem e se esto sendo

lesados dos seus direitos mais fundamentais, como a sade, educao, liberdade e justia.

Assim, afirma o Papa que a Igreja, que defendeu o nascimento e desenvolvimento de

32

tantas naes, no pode deixar de olhar com mxima ateno por aqueles povos to

necessitados (Cf. FD n. 6).

Foi justamente nesse tempo de pontificado de Pio XII que Jos Comblin comea a

analisar a realidade da Igreja e a mudana da sociedade. Em 1950, terminando seu

doutoramento, Comblin quer ofertar para a Igreja todo o conhecimento adquirido em

Louvaina e pede ao Cardeal van Roey, arcebispo de Malinas, a possibilidade de trabalhar

numa Parquia. Foi nomeado vigrio da Parquia Sagrado Corao, em Bruxelas. Nesse

trabalho paroquial, Comblin percebeu a grande distncia que havia entre a religio

tradicional e a sociedade. O mundo fora da sacristia estava evoluindo. Tudo estava em

movimento: a poltica, a economia, a sociedade, os costumes. A proposta da vida crist

estava j distante dos assuntos cotidianos da populao (Cf. MGGLER, 2013, p. 30).

Quando Comblin ouve uma conferncia do Cardeal van Roey que expunha as

assertivas da Fidei Donum, ele comea a questionar-se se no poderia oferecer mais de si

para a Igreja e para o prximo, assumindo uma vocao missionria que pudesse estar em

contato com os sofrimentos das pessoas e ajudar, como trabalhador do Reino, a superar as

condies de mazelas das pessoas. A primeira ideia foi ir para o Congo, mas depois, pela

providncia de Deus e atendendo ao pedido do ento bispo de Campinas, Dom Paulo de

Tarso Campos, Comblin se coloca disposio para vir para o Brasil. Mas antes disso,

frequentar um curso preparatrio para missionrios que os bispos belgas fundaram em

1955, COPAL Colgio Pr-Amrica Latina, em Lovaina. Tal colgio oferecia uma

bsica preparao sobre o idioma, cultura local, alm de acompanhar o missionrio em

suas futuras necessidades (Cf. MGGLER, 2013, p. 47).

O COPAL a concretizao de um projeto dos bispos belgas que queriam, j de

1895, abrir, junto a abadia beneditina de Keizersberg, um seminrio de formao para

futuros padres missionrios para a Amrica Latina. O projeto no prosperou at 1953,

quando a partir dessa data, a ideia retomada e desenvolvida principalmente pelo Cardeal

van Roey, que instala o novo colgio em 1955 num antigo convento neogtico na

Tervuurse Straat, na cidade de Louvaina. O Colgio tambm abriu a possibilidade de

abrigar no s seminaristas belgas, mas tambm os latino-americanos (STOLS, 2014, p.

176)

Segundo o que testemunha o Cardeal van Roey, a primeira pessoa que falou com

ele, na cidade de Roma, em 1952, sobre a situao preocupante da evangelizao na

Amrica Latina, vista a escassez de padres, foi o Cardela Pizzardo, Prefeito da Sagrada

Congregao dos Seminrios e Universidades Catlicas. Naquela ocasio, disse o Cardeal

33

Pizzaro que a Santa S se preocupava com a situao trgica e muito perigosa da Igreja

nos pases da Amrica Latina, em razo, de um lado, pela penria extrema do clero e, de

outro lado, pela forte propaganda protestante (Cf. van ROEY, 1953).

Em resposta a preocupao do Cardeal Pizzardo, van Roey expe aos bispos

belgas, reunidos em Assembleia Anual, na Arquidiocese de Malines, em 27 de julho de

1952, a necessidade da fundao de um colgio ou seminrio para preparar padres para a

Amrica Latina. A primeira opo, como j fora dito acima, foi por fundar um seminrio,

no entanto, se concretizou a formao do colgio. Isso se deu pelo fato de que mesmo na

Blgica tendo um nmero significativo de vocaes sacerdotais, as dioceses e os institutos

religiosos preferiam seus prprios seminrios para a formao do clero. Nesse sentido, o

COPAL nunca teve muita procura como seminrio, mas prevaleceu como um colgio que

oferecia por alguns meses um curso de formao para padres j formados, freiras,

voluntrios. Com a Fidei Donum, os bispos belgas colocaram disposio da Santa S e

da Amrica Latina os padres do colgio. De 1955 a 1983, partiram para o Brasil 115

padres, dos quais 67 belgas. Um deles Pe. Jos Comblin (STOLS, 2014, 176).

Comblin ter a oportunidade de conhecer a realidade da Igreja Brasileira, e o mais

significativo, o modo como vive o povo brasileiro, em especial no Nordeste. Depois de

ficar pouco tempo em Campinas, e um tempo no Chile, Comblin ir para o nordeste

brasileiro e conhecer e admirar pelo resto de sua vida o bispo Dom Helder Cmara. Ser

l, no Nordeste brasileiro, que Comblin se sentir livre para apresentar o Conclio

Vaticano II e ajudar as comunidades crists a passar por uma converso: voltar-se para a

pessoa humana dentro do contexto em que vivia, responder aos anseios de vida e de

liberdade, de crescimento e realizao, de justia e fraternidade (MGGLER, 2013, p.

91)

O labor teolgico de Comblin contribuir para que as prerrogativas dos direitos de

todo ser humano, expressas na Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, seja

incorporado a teologia e que a teologia se tornasse, por teoria e prtica, uma defensora e

promotora dos direitos dos homens e mulheres. Claro, que Comblin tomar a Declarao

dos Direitos Universais dentro da perspectiva latino-americana: que as pessoas tenham

direitos, parece ser uma ideia aceita por todos; que os cidados tenham direitos iguais, j

uma perspectiva no aceita por todos (MIRANDA, 2014, p. 04). Comblin desenvolver,

na sua teologia, esta ideia que todos temos direitos, mas direitos iguais. Ideia to cara para

os povos latinos americanos: a igualdade de direitos.

34

No livro Cristos rumo ao Sculo XXI, Comblin reconhece haver no nascimento da

Declarao do Direitos Universais um contexto que privilegia a classe de poder, ou seja, a

burguesia. Quem tem mais poder financeiro tem condies de conquistar para si e para os

seus, os direitos assegurados. Ento, afirma que as elites invocam os direitos humanos

para lutar contra o Estado que queria cobrar impostos; para exigir a liberdade do mercado

[...]. Em nome dos direitos humanos impem aos pases mais fracos abertura das

fronteiras, mas lutam para fechar as fronteiras do prprio pas (COMBLIN, 1996, p.

289). No entanto, Comblin, no rechaar os ideais dos direitos humanos como fizeram os

telogos latino-americanos Jos Miguel Bonino e Hugo Assmann, por entenderem que, na

Declarao Universal dos Diretos Humanos, estava escondida uma poltica

intervencionista dos Estados Unidos nos pases do terceiro mundo (Cf. SIGMUND, 1990,

p. 52-78). O missionrio belga desenvolver seu pensamento teolgico dentro da

perspectiva libertadora, sem, contudo, desprezar a Declarao (ESTVEZ, 2012, p. 4).

Dessa forma, Comblin v a teologia da libertao como a voz de defesa dos

direitos humanos. Esse o grande contributo de Jos Comblin. Ele no rejeita a

Declarao Universal dos Direitos Humanos, mas a l dentro da perspectiva da teologia da

libertao que defender, a partir do Evangelho, o direito dos povos. Para ele, na Amrica

Latina, em especial no Brasil, s se pode falar em direitos humanos quando existem

instituies poderosas ou profticas reconhecidas que levantem a voz para defend-los

(COMBLIN, 1996, p. 289). Indubitavelmente, uma destas instituies deve ser a Igreja

Catlica.

Para Comblin, especialmente motivado pelo contexto da ao dos regimes

militares na Amrica Latina, afirmava ser necessrio tornar a Declarao dos Direitos

Humanos mais condizente com as realidades com que viviam os povos latinos-

americanos, especialmente o Brasil que, de 1964 a 1985, passou pela ditadura militar (Cf.

ESTVEZ, 2012, p. 4). Ele propunha que a Igreja no Brasil deveria elaborar uma

declarao pblica de apoio aos direitos humanos. Nessa declarao pblica deveria ficar

claro a postura pastoral libertadora da Igreja e sua preocupao com a vida de todos. Era

necessria uma tica de solidariedade, at mais profunda que a tica dos Direitos

Humanos. No pensamento de Comblin, a Igreja precisaria ser essa voz tica que no nega

a Declarao dos Direitos Humanos, mas a atualiza. Diz:

Na Amrica Latina os Direitos Humanos foram invocados como base de

contestao dos regimes militares. No tiveram muita eficcia. At hoje os

Direitos Humanos so invocados nas lutas pelos direitos dos pobres. A

35

sociedade burguesa, porm, tinham o poder econmico e no fizeram nada, j os

pobres no tem poder nenhum para apoiar seus direitos. A burguesia

dificilmente far concesso para os pobres em nome dos Direitos Humanos. Os

direitos dos pobres precisam de uma tica mais profunda do que a tica dos

Direitos Humanos (COMBLIN, 1996, p. 289).

Dentre os telogos John Sobrino, Leonardo Boff, Clodovis Boff e Ignacio

Ellacura, o que mais se destacou pela sua convergncia com os Direitos Humanos foi Jos

Comblin. Por mais que a ideia de direitos humanos, na viso dos telogos acima, se

afinasse com um direito de uma classe econmica privilegiada e incentivadora do

individualismo liberal, Jos Comblin foi alm dos colegas. Ele certamente no contradisse

os citados nesse assunto do trabalho teolgico, mas quis que os direitos humanos fossem

melhor refletidos pela teologia da libertao. Para o nosso telogo, a teologia da libertao

e seu discurso pelo pobre, enriqueceria a promoo dos direitos humanos no Brasil, uma

vez que, o discurso de direitos estaria dirigido a uma prtica libertadora reivindicativa de

justia social para todos (ESTVEZ, 2012, p. 4).

Desse modo, a noo de que a Igreja, no Brasil, no deveria desprezar a

Declarao Universal dos Direitos Humanos, mas usar de seus temas to importantes de

uma tica social de igualdade para todos, acaba influenciando os movimentos sociais com

direo catlica, principalmente aqueles que surgem dentro das Comunidades Eclesiais de

Base. A luta pelos direitos de todos, sobretudo para que tenham vida (Cf. Jo 10,10) no

salvaguardada apenas pelo Evangelho, mas tambm pela Declarao Universal

(ESTVEZ, 2012, p. 5).

Consideraes Finais

Segundo Ottaviani, Jos Comblin tinha um trao muito particular de sua

personalidade. Ele era capaz de ler muito bem os sinais dos tempos, as transformaes

pelas quais a sociedade moderna passava e a importncia de uma reflexo eclesial sria

que respondesse com eficcia aos novos desafios da ao evangelizadora. Foi nessa

perspectiva que Comblin chega ao Brasil: ao invs de reagir contra o grande inimigo da

Igreja, o comunismo, declarado pelo papa Pio XII, ele queria fazer uma experincia nova

de viver o Evangelho com os pobres numa Igreja, como afirma o Papa Francisco, em sada

e promotora da cultura do encontro (Cf. OTTAVIANI, 2015, p.194).

36

Em terras brasileiras, o padre belga encontrou a possibilidade de desenvolver sua

misso e teologia. Falando com Pe. Carl Laga, belga e seu companheiro, Comblin disse

que a Igreja no Brasil pode fazer bem diferente daquilo que fez a Igreja no continente

europeu. Na Europa, a Igreja no se deu conta das transformaes da sociedade e no

refletiu sobre seu modo de agir e ser, permanecendo estagnada Aqui, a Igreja tem,

segundo ele, condies de responder aos novos desafios da evangelizao, assumindo cada

vez mais o Evangelho e fazendo da mensagem de Jesus, uma voz de esperana para os

mais sofredores. (LAGA, 2016, p.179)

Um significativo instrumento para o incio da concretizao da vontade de ser

missionrio na Amrica Latina, foi ento o Colgio pro-Amrica Latina. No entramos em

questo no mrito da formao que ele recebeu neste Colgio, mas afirmamos que o Copal

se tornou naquela poca um importante centro de formao missionria para a Igreja e

pode ser caracterizado, com o olhar de hoje, como uma ao verdadeira e sria atitude da

Igreja de sair de si mesma para encontrar-se com o outro e suas realidades de sofrimento.

Comblin, no desenvolvimento de sua teologia pode afirmar a importncia da

Declarao dos Direitos Humanos para a prpria teologia e para a Igreja. A Igreja, atenta

as dificuldades dos povos, sobretudo no contexto brasileiro, deveria ser uma voz forte de

defesa dos direitos de todos e direitos iguais. Ele sabe que os ideais da Declarao

Universal no podem ser usados por uma classe burguesa, oriunda do poder econmico,

que defende seus prprios interesses, mas deve ser pautada por uma tica social, onde a

defesa coletiva do direito universal prevalea diante de interesses mesquinhos e

segregadores. Oferece, enfim, um contributo implantao da Declarao dos Direitos

Humanos, fazendo que os temas ali presentes sejam tratados nos movimentos sociais e nas

pastorais da Igreja que procuram ir ao encontro do prximo e levam em conta suas

realidades de sofrimento causadas pela injustia social.

Referncias Bibliogrficas

ESTVEZ, Adriana. Por uma conceitualizao sociopoltica dos direitos humanos a

partir da experincia latino-americana. In: Revista on line Lua Nova: cultura e poltica.

[ISSN 0102-6445]. Vol 86, 2012. Disponvel em http://dx.doi.org/10.1590/S0102-

64452012000200008. Acesos em 22 de agosto de 2018.

CONBLIN, Jos. Cristos rumo ao Sculo XXI. Nova caminhada de libertao. So

Paulo: Paulus, 1996.

37

LAGA, Carl. Joseph Comblin (1923-2011). In. Brasil e Blgica. Cinco sculos de

Conexes e Interaes. So Paulo: Editora Narrativa, 2014.

MIRANDA, Maria Manuela dos Santos. A Igreja e Direitos Humanos. In. Revista de

Professores de Filosofia. APF. Disponvel em http://apfilosofia.org/wp-

content/uploads/2017/06Igrejaedirietoshumanos-normalizado.pdf. Acesso em 10 de agosto

de 2018.

MGGLER, Monica Maria. Padre Jos Comblin: uma vida guiada pelo Esprito. So

Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012.

OTTAVIANI, Edelcio. Jos Comblin: um telogo contemporneo e parresiasta. In.

Revistas Estudos de Religio [ISSN 2176-1078]. Vol. 29, n 1. Jan-jun, 2015, pp. 179-

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10 de agosto de 2018.

PIO XII, Papa. Fidei Donum. Carta Encclica de 21 de Abril 1957. In AAS 49 (1957)

225-248. Disponvel em: https://w2.vatican.va/content/pius-xii/pt/../hf_p-

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STOLS, Eddy. Presenas belgas no catolicismo do Brasil contemporneo (1945-2010).

In. Brasil e Blgica. Cinco sculos de Conexes e Interaes. So Paulo: Editora

Narrativa, 2014.

38

Direitos humanos: linguagem comum entre igreja e sociedade ps-

moderna

Eixo temtico: Direitos Humanos e desafios pastorais.

Edevaldo Rocha1

Introduo

No caminho da misso evangelizadora da igreja, o compromisso da aplicabilidade

dos Direitos Humanos faz parte da dimenso prtica da Doutrina Social da Igreja que opta

preferencialmente pelos pobres. Este recurso de busca pela dignidade humana tambm

opo concreta e imediata no mbito secular da sociedade contempornea. Estas duas

esferas sociais, igreja e sociedade secular, devem superar seus antagonismos e unir-se

naquilo que tem em comum, ou seja, na busca do bem-estar e realizao humana.

Portanto, a voz pblica da Igreja deve ser capaz de promover o dilogo a partir de uma

linguagem comum em que os dois lados se entendam e participem concretamente no bom

funcionamento de toda a sociedade.

O primeiro passo ir ao encontro daqueles que no meio secular esto dispostos ao

dilogo, devido o objetivo ser o bem comum, e que o desejo de libertao humana

almejado pela sociedade secular para os cristos a materialidade da revelao. Dentro

desta realidade temos uma linguagem consensual, que perpassa tambm pela compreenso

de lei natural sem cair em legalismo religioso imvel, mas apoiado na dinmica

antropolgica como princpio dos direitos da dignidade humana. Estes fundamentos

despontam em nossos tempos como meio de aproximao e superao de divergncias

entre Igreja e sociedade porque se direcionam uma meta nica que a eficaz

concretizao dos Direitos Humanos.

1 Edevaldo Rocha, graduado em Teologia pela PUC-SP, mestrando em Teologia pela mesma faculdade,

membro Grupo de Pesquisa em Literatura, Religio e Teologia LERTE (Lder: prof. Dr. Antonio

Manzatto).

39

1 - O dilogo social, itinerrio no cumprimento dos Direitos Humanos

O entendimento dos Direitos Humanos apenas como normas jurdicas impe

limites a sua base humanstica, desvinculando-o da prtica e reduzindo ao simples

discurso que pode ser direcionado em favor de um sistema alimentado por uma poltica de

mercado que dita uma realidade de explorao, marginalizao e injustia.

No possvel descartar no contexto atual de ps-modernidade, comits,

organizaes no mbito profano, colocando-se como verdadeiros contribuintes na

dedicao da luta pela justia a partir da exigncia do cumprimento e aplicao dos

Direitos Humanos na sua totalidade. A negao dos avanos destas instituies seculares

no que tange a responsabilidade e a aplicabilidade dos Direitos Humanos seria um erro,

devido a estrutura desta sociedade ps-moderna comportar uma realidade plural e

multicultural.

O secularismo presente nestas instituies no deve ser visto apenas como perigo

as tradies religiosas, todavia, visualizar o secularismo de modo genrico sem um

discernimento, produz um discurso ilusrio e incompleto. O caminho a ser seguindo

quanto ao entendimento do secularismo perpassa na distino que pode ser traduzido em

duas verses, sendo a primeira um secularismo que exclui a religiosidade do mbito do

bem-estar da pessoa humana, que devido a experincia histrica anterior a religio vista

como um perigo e por isso deve ser descartada da esfera pblica-poltica. Em

contrapartida a outra verso do secularismo que est pautada na governabilidade

democrtica, que a partir dos princpios igualitrios de liberdade reconhece na autoridade

das religies o direito de acesso igual a toda esfera pblica-social fazendo deste espao o

local de uma convivncia em prol do bem comum (BARRETO, LITLE, p.237).

Tratando-se de instituies no religiosas no empenho da promoo humana, cujo

Direitos Humanos so um mecanismo para a defesa de novas situaes que ameaam a

integridade humana, segundo a Doutrina Social da Igreja Catlica faz parte do esforo

comum da sociedade a prtica do Direitos Humanos porque seria vo proclamar os

direitos, se no fosse evidenciado todos os esforos a fim de que seja devidamente

assegurado o seu respeito por parte de todos, em toda a parte e em relao a quem quer

que seja (DSI n. 153), mas no deve-se fechar os olhos situao conflitiva entre a

sociedade secular e a religio, sendo a primeira em rejeitar que a instncia religiosa exera

o seu servio na vida social e poltica. Libanio apresenta esta situao como um ponto

40

paradoxal, pois de um lado existe o discurso da tolerncia religiosa, um dos pilares da

defesa dos Direitos Humanos, mas que ao mesmo tempo h uma desqualificao da

religio (LIBANIO, 2014, p.144).

Neste contexto conflitivo devido a prpria estrutura da sociedade ps-moderna

conter uma pluralidade o Papa Francisco entende que a soluo um processo de

trabalho lento e rduo que exige querer integrar-se e aprender a faz-lo at se desenvolver

uma cultura do encontro numa harmonia pluriforme (EG 220). Este processo implica

num dilogo com o Estado, com a sociedade e com os crentes de outras denominaes

crists, esta prtica caracterizada como dilogo social ser capaz de cumprir um servio de

pleno desenvolvimento humano a partir do estabelecimento dos seus direitos (EG 238).

2 - Direitos Humanos como materialidade da Revelao Divina

Na via da promoo humana a Igreja na funo que lhe cabe, de ser sacramento da

salvao, sinal visvel do chamado humanidade de participar no projeto salvfico de

Deus, e nisso constitui sua misso evangelizadora, ocorre o estreitamento dos laos entre

evangelizao e promoo humana, laos de ordem antropolgica, dado que o homem h

ser evangelizado no um ser abstrato, mas um ser condicionado pelo conjunto de

problemas sociais e econmicos; laos de ordem teolgica, porque no se pode nunca

dissociar o plano da criao do plano da redeno, um e outro a abrangerem as situaes

bem concretas da injustia que deve ser combatida e da justia a ser restaurada (CDSI

66).

Este conceito de promoo humana da Igreja faz perdurar uma resistncia da esfera

secular da sociedade, primeiramente pela prpria condio histrica que ainda no foi

superada devido que na cristandade a igreja ter sido uma instituio controladora e os

movimentos na busca de direitos terem surgido no desejo de independncia do poder

eclesistico e tambm pelo fato da igreja bancar a sua fundamentao no dado da f, ou

seja, sua fundamentao teolgica a partir dos dados da revelao, esta concepo ainda

suscita no meio profano crticas devido seu referencial ser pautado na racionalidade.

Para atender ao apelo do Papa Francisco uma aproximao dialogal da Igreja a

sociedade pluralizada em vista de um vida digna para todo ser humano, tendo como

instrumento o cdigo dos Direitos Humanos, este elo deve ser favorecido por meio

daquilo que comum, primeiro porque a igreja reconhece que mesmo nos no crentes a

41

graa atua ocultamente (GS 22), e a outra condio, devido a sua visibilidade a de um

testemunho de uma f viva, adulta e educada [...], que deve manifestar a sua fecundidade,

penetrando a vida dos fiis, mesmo a profana, levando-os justia e ao amor, sobretudo os

mais necessitados (GS 21), ou seja, a caridade sinal de unidade.

Em se tratando da efetivao dos Direitos Humanos na realidade macro da

sociedade em que reside uma situao plural e multicultural, Schillebeeckx coloca um fato

comum para toda sociedade, religiosa ou descrente, a experincia do bem e do mal, que

ele denomina como experincias humanas de contraste esta percepo diferente do

dualismo grego que embora todo bem uma realidade visvel, no deixa de contrastar

com a realidade do mal, e tudo aquilo que provm do mal, seja a injustia, a explorao e

escravido gera um elemento positivo que a indignao humana, sendo essa experincia

de indignao um fator fundamental para o florescimento da tica (SCHILLEBEECKX,

1994, p. 22). O veto profundo do homem ao mal envolve, portanto, certo sim ou um

sim em aberto [...] esta experincia mutuamente se encontram em crentes e agnsticos.

tambm a base alvissareira para a solidariedade universal e para o empenho comum em

prol de um mundo melhor (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 23).

A sociedade contempornea que carrega consigo pluralidade de ideologias e

variedades de conceitos e convices, situao na qual a Igreja est inserida, e por estar no

mundo sem ser do mundo, traz como proposta missionria um agir dialgico, que mesmo

diante de uma sociedade que em partes se mantm critica a religio, h outros setores

desta mesma sociedade que se dispe ao dilogo, e a grande tenso perpassa pela

linguagem que na maioria das vezes est restrita aos fiis. Dentro do processo dialgico, a

sociedade secular busca entender qual a linguagem concreta que a igreja tem no

cumprimento dos Direitos Humanos, e o retorno que a igreja pode dar fundamentar que

a promoo dos Direitos Humanos a materialidade da revelao divina. Segundo

Schillebeeckx esta revelao que acontece primeiro na histria profana e o sentido

religioso absorvido posteriormente por meio dos crentes que interpretam a revelao

como libertao humana, portanto, a linguagem religiosa com sua espiritualidade recebe

do evento profano de libertao a materialidade, assim aconteceu no xodo na histria de

Israel, assim como no acontecimento Jesus de Nazar, com o seu agir libertador do

homem. (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 23-25)

Homens crentes contemplam na histria da libertao humana o rosto de Deus.

Incrdulos no o fazem, com efeito, mas, no nvel da libertao humana (no nvel do

material da revelao de Deus), podem falar, sejam crentes ou no crentes, uma linguagem

42

comum sobre este processo. possvel haver acordo a, assim como tambm cooperao.

(SCHILLEBEECKX, 1994, p. 24).

Esse agir libertador de Deus num determinado tempo e local na histria a partir do

horizonte da experincia social humana, mesmo sem o sentido religioso, ou seja, fora da

revelao judaico-crist, marcado pela presena salvfica de Deus. Libanio usa o mesmo

conceito de Karl Rahner e denomina de revelao atemtica, isto , o desgnio de Deus

universal, todos so afetados por ele. Deus no excluiu ningum de seu projeto salvfico.

Portanto ningum est fora do mundo a revelao (LIBANIO, 2014, p. 161).

Sendo Deus libertador de todos os homens, existe uma urgncia e prioridade por

aqueles que mais sofrem, os explorados, os excludos, os mais pobres, a partir dessa

posio partidria de Deus pelos pobres, a Igreja entende que os Direitos Humanos o um

meio de trazer a tona um rosto que foi apartado da condio de dignidade, condio de

imagem de Deus, portanto o pobre a opo o destinatrio da missionariedade da Igreja

e ponto de convergncia com a sociedade secular.

3 - Lei natural ancoragem dos direitos naturais na aplicao dos Direitos Humanos

Ainda neste contexto de dilogo entre Igreja e sociedade para fins de

comprometimento e aplicabilidade dos Direitos Humanos, Pe. Antnio Moser prope a

lei e os direitos naturais como referenciais e modelo de dilogo, mesmo que este

pressuposto ressoe estranho e de forma negativa sociedade contempornea.

A primeira fundamentao de Moser com relao a lei e os direitos naturais deriva

da historicidade da compreenso deste dado, do qual ultrapassa o contexto religioso

cristo, de modo que tanto a filosofia como outras religies desde a antiguidade partilham

da mesma concepo da tradio crist, de que faz parte da natureza humana descobrir em

si a lei natural. Partindo da revelao judaico-crist a fundamentao de lei natural, Moser

cita a voz proftica que desde o perodo pr-pascal - incluso o profetismo ps-pascal -

sempre ressoou no desejo de preservao da dignidade humana, valor originado da Imago

Dei, esta ao humana contedo essencial no meio proftico e portanto no precisa de

uma lei escrita, pois uma lei que brota do corao, mesmo a sociedade moderna

norteada pela razo negando a relao divina com a lei natural, h o entendimento de que

intrnseco ao ser humano o desejo do bem comum que no deixa de ser lei natural

(MOSER, 2014, p. 80-81).

43

O desdobramento da reao negativa da sociedade contempornea perante a

religio tem legitimidade no evento histrico da cristandade em que a arbitrariedade

eclesistica ressoando at meados do sculo XX - protagonizou a imobilidade da lei

natural com a prerrogativa de ser a nica voz da sociedade capaz de interpret-la. Diante

desta posio da Igreja que o movimento de liberdade e emancipao ganhou volume e

atingiu o pice na formalizao da Declarao dos direitos do homem e do cidado na

Revoluo Francesa.

Moser menciona esse fato histrico da cristandade como o motivo do imobilismo

da lei natural, fruto de um classicismo proveniente de uma hermenutica filosfica com

nfase no neologismo, mas existe outro eixo que tem origem na concepo antropolgica

de que o sujeito um ser em crescimento. pontuado uma compreenso dinmica da

natureza humana, existe uma progresso ao vir a ser (MOSER, 2014, p. 84), portanto, a

interpretao da lei natural do ponto de vista ontolgico imvel faz jus, mas como

princpio fundamental do indivduo ser criado a imagem de Deus e por isso constituinte

de dignidade e de capacidade de fazer o bem. Esse princpio da lei natural fundamento

slido para a formao das regras morais que no pode ser imvel. Este movimento

dialtico entre lei natural como princpio das demais segmentaes do direito se faz

necessrio por levar em considerao as circunstncias culturais, histricas, econmicas,

polticas e religiosas que so aspectos dinmicos derivado da realidade antropolgica

(MOSER, 2014, p. 85).

Essa fundamentao da lei natural como ancoragem dos direitos naturais sempre

volveis e dinmicos crucial no dilogo entre religio e sociedade na aplicabilidade dos

Direitos Humanos: lei natural e direito natural no apenas convidam a uma busca

incessante da identidade de todos os seres, de toda a natureza, e, sobretudo da natureza

humana, mas tambm convidam para o dilogo aberto e profundo que no fecha

fronteiras, mas estabelece pontes que possibilitam a convivncia de todos com todos e de

todos com tudo. Ou seja, tanto em termos polticos, de convvio pacfico, quanto em

termos de enriquecimento mtuo, lei natural e dire