cÍrculos sociais e interaÇÕes no estudo da...

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CÍRCULOS SOCIAIS E INTERAÇÕES NO ESTUDO DA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS: SEGURANÇA ALIMENTAR NO BRASIL NAS DÉCADAS DE 80 E 90 ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ FEVEREIRO -2003

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  • CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA

    FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO

    BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90

    ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI

    UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE - UENF CAMPOS DOS GOYTACAZES - RJ

    FEVEREIRO -2003

  • CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA

    FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO

    BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90

    ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI Dissertao apresentada ao Centro de

    Cincias do Homem, da Universidade

    Estadual do Norte Fluminense, como

    parte das exigncias para obteno do

    ttulo de Mestre em Polticas Sociais.

    Orientao: Adelia Maria Miglievich Ribeiro

    CAMPOS DOS GOYTACAZES RJ

    FEVEREIRO - 2003

  • CRCULOS SOCIAIS E INTERAES NO ESTUDO DA

    FORMULAO DE POLTICAS: SEGURANA ALIMENTAR NO

    BRASIL NAS DCADAS DE 80 E 90

    ELIANE SIQUEIRA PEDLOWSKI Dissertao apresentada ao Centro de

    Cincias do Homem, da Universidade

    Estadual do Norte Fluminense, como

    parte das exigncias para obteno do

    ttulo de Mestre em Polticas Sociais.

    Aprovada em 25 de fevereiro de 2003

    Comisso Examinadora:

    ___________________________________

    Prof. Hugo Alberto Borsani Cardozo (Doutor, Cincia Poltica) - UENF

    ______________________________ Profa. Patrcia Silveira de Farias (Doutora, Antropologia, UFRJ) - UCAM

    ___________________________________

    Prof. Sergio de Azevedo (Doutor, Cincia Poltica) UENF

    ___________________________________

    Profa. Adlia Maria Miglievich Ribeiro (Doutora, Sociologia) UENF

    Orientadora

  • Em uma fbula um campons

    morte diz a seus filhos que h

    em suas terras um tesouro

    enterrado. Em conseqncia

    disso, os filhos escavam e

    reviram profundamente a terra

    por toda parte, sem encontrar o

    tesouro. Mas no ano seguinte a

    terra assim trabalhada produz

    trs vezes mais frutos. (...) Ns

    no iremos encontrar o tesouro,

    mas o mundo que ns

    escavamos sua procura trar

    ao esprito trs vezes mais

    frutos - mesmo se no se

    tratasse de nenhum modo na

    realidade do tesouro, mas sim

    de que esse escavar a

    necessidade e a determinao

    interior do nosso esprito.

    (Georg Simmel)

  • Dedico este trabalho a meus

    pais, que transmitiram, a mim e

    a meus irmos, o trabalho, a

    honestidade e o esprito pblico

    como pressupostos ticos

    bsicos em nossa vida

  • Agradecimentos

    Muitos contriburam para que esta dissertao acontecesse. Mencionar

    todos seria aqui difcil, mas considero que o trabalho ora apresentado traz

    embutido a impresso de cada vivncia com a qual interagi cada uma delas

    deixou em minha prpria vivncia a marca de sua passagem. Porm, algumas

    pessoas ajudaram a tornar essa tarefa mais leve, e no posso deixar de aqui de

    expressar minha profunda gratido .

    Primeiramente, devo declarar que tive a imensa sorte de contar com a

    generosidade de pessoas que, algumas at sequer sem conhecer-me, com muita

    gentileza enviaram-me ou ajudaram-me - com suas dicas de pesquisa - a

    conseguir material de trabalho. Assim, no posso deixar de falar aqui de Brasil

    Vargas Junior; Carlos Fernando Galvo; Gabriel, da AS-PTA; Gernimo, do Banco

    de Teses/UFRJ; Henrique Cairus; Ivone Atade, da secretaria do DESER; Maria

    Clia Lima, do Programa Comunidade Solidria; Marlia Angotti Ledier, secretria

    adjunta da ANDIFES; Regina, do Nud/PT; Rozi, do IBASE; Manuela Colao e Rita

    de Cassia Perrelli, respectivamente aluna e professora do curso de Graduao em

    Nutrio da UFRJ.

    Tambm, dedico gratido especial aos professores que participaram do

    Exame de Pr-Projeto: professora Leilah Landim (UFRJ), professor Marcos A.

    Pedlowski (UENF) e professora Teresa Peixoto Faria (UENF). As contribuies

    prestadas durante aquela ocasio foram valiosssimas, e estiveram presentes todo

    o tempo em minhas preocupaes;

    Aos meus entrevistados, em quem destaco e admiro sobretudo a boa

    vontade e a maneira cordial e franca com que me receberam: Jean Marc von der

    Weid (AS-PTA); Francisco Menezes (IBASE), e Renato Srgio Jamil Maluf

    (CPDA/UFRRJ);

    estimada amizade e ajuda de Milene Rodrigues Vargas, palavras no

    sero suficientes: estas no podem expressar ou retribuir o contedo de sua

    disposio para o impossvel, bem como de sua famlia: Marly, Juliana e

  • Eduardo, que souberam aturar minha presena nas vrias visitas que fiz sua

    casa, no Rio de Janeiro;

    Durante o tempo em que estive em Campos dos Goytacazes, tive a

    oportunidade de contar com o afeto, apoio e dedicao de Roosevelt, Ana

    Carolina e Hugo, assim como com a convivncia, sempre freqente, de Carolina

    de Cssia Abreu e Maria Carolina o sorriso e suavidade de todos me estimulou

    e assim continua ocorrendo, embora em minha lembrana;

    Aos alunos-companheiros de jornada no Laboratrio de Estudos do

    Espao Antrpico (LEEA/UENF): Maria Alice Pohlmann, Leonardo de Souza

    Cavadas e Miguel Raul Mazissa Zinga, devo declarar que sentirei falta dos

    momentos de trabalho rduo, e tambm de descontrao inteligente, que juntos

    experimentamos;

    Aos meus irmos Gilberto, Adalberto e Leonel: carrego um pouco de cada

    um dentro de mim - que experincia maravilhosa ter amigos como vocs,

    capazes de apoio incondicional e sincero;

    Especialmente a meu irmo Marcos, principal incentivador desde

    sempre, devo dizer que tens minha profunda admirao e respeito: sem a ajuda e

    o companheirismo mim dedicados, esta incurso no teria sido possvel;

    E com distino e louvor, agradeo minha orientadora Adelia Maria

    Miglievich Ribeiro, pelo exemplo de dedicao, competncia e coragem seu

    estmulo e otimismo foram fundamentais .

    todos, minha dvida eterna.

  • Sumrio

    Lista de figuras.........................................................................................................

    Lista de siglas..........................................................................................................

    Resumo...................................................................................................................

    Abstract...................................................................................................................

    Introduo..................................................................................................................

    Captulo 1

    Problematizando a dicotomia sociedade civil/Estado.................................................

    1.1 Sociedade civil: antecedentes e a leitura de Hegel e Marx................................

    1.2 A sociedade civil como o bero da democracia em Tocqueville........................

    1.3 Gramsci, marxismo ocidental e a renovao do conceito de sociedade civil......

    1.4 . O resgate contemporneo do conceito de sociedade civil...............................

    1.5 .Sociedade civil e sua apropriao no contexto brasileiro..................................

    Captulo 2

    Contra a dicotomia indivduo/sociedade: Georg Simmel e a perspectiva das

    formas sociais...........................................................................................................

    2.1 A influncia das idias de Georg Simmel.............................................................

    2.2 Entre o indivduo e a sociedade a opo por uma sociologia relacional...........

    2.3 Simmel e sua proposta sociolgica....................................................................

    Captulo 3

    A segurana alimentar no Brasil nos anos 80 e 90....................................................

    3.1 Viso panormica da dcada de 80.....................................................................

    3.2 O grupo de trabalho da SUPLAN de 1985............................................................

    3.3 A Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio de

    1986............................................................................................................................

    3.4 Viso panormica da dcada de 90.....................................................................

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  • 3.5 O Governo Paralelo, propostas de polticas e o dilogo entre Lula e Jos

    Gomes da Silva...........................................................................................................

    3.6 A proposta de poltica de segurana alimentar do Governo Paralelo...................

    3.7 O Movimento Pela tica na Poltica......................................................................

    3.8 A Ao da Cidadania Contra a Fome, a Misria e Pela Vida...............................

    3.9 Entrecruzamento de crculos sociais: Governo Paralelo, Itamar Franco e Ao

    da cidadania - a criao do CONSEA.........................................................................

    3.10 Sobre a implementao do CONSEA................................................................

    3.11 A I Conferncia Nacional de Segurana Alimentar.............................................

    3.12 A avaliao da experincia CONSEA..............................................................

    3.13 A extino do CONSEA......................................................................................

    3.14 O Programa Comunidade Solidria: a segurana alimentar como uma rodada

    de interlocuo poltica...............................................................................................

    3.15 O Documento Brasileiro para a Cpula Mundial da Alimentao em Roma,

    1996: crculos sociais em interao............................................................................

    3.17 Os fios da mobilizao social as sociedades em movimento........................

    Consideraes finais.................................................................................................

    Referncias Bibliogrficas..........................................................................................

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  • Resumo

    Este trabalho teve como objeto de estudo a mobilizao por uma poltica de

    segurana alimentar no Brasil, ocorrida durante as dcadas de 1980 e 1990. A

    dinmica social conduziu o trabalho no sentido de desenvolver um estudo que

    resgatasse a trajetria dessa mobilizao, privilegiando o estudo das interaes

    que viabilizaram as propostas, estratgias, campanhas, os movimentos, os fruns,

    as conferncias, os programas.

    Para visualizao das relaes entre a chamada sociedade civil e o

    governo, envolvidas nesta trajetria, retomou-se a discusso da dicotomia

    sociedade civil/Estado, atravs do histrico da noo de sociedade civil, e tambm

    sua utilizao contempornea. A opo metodolgica foi a de focalizar as formas e

    os crculos sociais presentes na trajetria da mobilizao, o que levou

    explicitao da obra de Georg Simmel, matriz terica da sociologia relacional,

    subsidiando uma melhor compreenso deste instrumental analtico.

    O mvel da pesquisa foi reunir elementos que proporcionassem uma

    resposta pergunta: que formas sociais estiveram presentes na mobilizao em

    prol da poltica de segurana alimentar no Brasil? Para tal, a base material de

    anlise incluiu entrevistas a personagens participantes da mobilizao, bem como

    a explorao de fontes documentais, identificadas durante a pesquisa exploratria.

    Se, a literatura em geral tende a ocultar as continuidades e

    descontinuidades das aes bem como as personagens envolvidas na formulao

    de polticas, a pesquisa efetuada demonstrou que o definhamento de um crculo

    social no significa o fim de uma luta, j que novos crculos so ininterruptamente

    criados e recriados. Neste dinamismo, nomes permaneceram, apesar das

    mudanas de 'lugar' ou status, apresentando diferentes formas sociais de

    interao: a cooperao, o dilogo, a parceria aparecem ao lado do conflito e da

    dominao, dentre outras, fazendo com que o tema permanecesse na agenda

    pblica de debates.

  • Lista de figuras

    Figura 1 - O grupo da SUPLAN.................................................................................

    Figura 2 - O grupo do Governo Paralelo..................................................................

    Figura 3 - Do Movimento Pela tica na Poltica Ao da Cidadania.....................

    Figura 4 - Entrecruzamento de crculos sociais: a criao do CONSEA....................

    Figura 5 - O CONSEA.............................................................................................

    Figura 6 - Entidades participantes da Interlocuo Poltica no Programa

    Comunidade Solidria representao quantitativa...............................................

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  • ii

    ii

    Lista de Siglas:

    ABAG - Associao Brasileira de Agribusiness

    ABI - Associao Brasileira de Imprensa

    ABIA - Associao Interdisciplinar de AIDS

    ABIA - Associao Brasileira das Indstrias de Alimentao

    ABONG - Associao Brasileira de Organizaes No-Governamentais

    ABRA - Associao Brasileira de Reforma Agrria

    ABRAS - Associao Brasileira de Supermercados

    ABRINQ - Associao Brasileira dos Fabricantes de Brinquedo

    GORA Associao de Projetos para Combate Fome

    AGROCERES - Empresa do ramo agropecurio

    AP - Ao Popular

    ARENA - Aliana Renovadora Nacional

    AS-PTA - Assessoria e Servios a Projetos em Agricultura Alternativa

    ASBRAER - Associao Brasileira das Empresas de Extenso Rural

    ASBRAN - Associao Brasileira de Nutrio

    CCS - Centro de Cincias da Sade

    CEAGESP - Central de Abastecimento Geral do Estado de So Paulo

    CEASA - Companhia Estadual de Abastecimento S/A

    CEPAL - Comisso Econmica para a Amrica Latina

    CFN - Conselho Federal de Nutricionistas

    CGT - Confederao Geral dos Trabalhadores

    CNBB Confederao Nacional dos Bispos do Brasil

    COEP Comit de Entidades Pblicas no Combate Fome e pela Vida

    CONAB - Companhia Nacional de Abastecimento

    CONCRAB - Confederao Nacional das Cooperativas de reforma agrria no Brasil

    CONSEA - Conselho Nacional de Segurana Alimentar

    CONTAG - Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

    CONTEC - Conselho Superior de Tecnologia

    CPC - Centro Popular de Cultura

    CPDA - Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade

    CRUB - Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras

  • iii

    iii

    CUT - Central nica dos Trabalhadores

    FAE - Fundao de Assistncia ao Estudante

    EMATER - Empresa Paranaense de Assistncia Tcnica e Extenso Rural

    FAO - Food and Agriculture Organization (Organizao das Naes Unidas para

    Alimentao e Agricultura)

    FASE - Federao de rgos para a Assistncia Social

    FMI - Fundo Monetrio Internacional

    IBASE Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas

    IBRA - Instituto Brasileiro de Reforma Agrria

    IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor

    INAN - Instituto Nacional de Alimentao e Nutrio

    INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    INESC - Instituto de Estudos Scio-econmicos

    INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia

    IPARDES - Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econmico e Social

    IPEA Instituto de Pesquisas Econmicas Aplicadas

    ISER - Instituto de Estudos da Religio

    JEC - Juventude Estudantil Catlica

    JUC - Juventude Universitria Catlica

    LBA - Legio Brasileira de Assistncia

    MDB - Movimento Democrtico Brasileiro

    MRE - Ministrio das Relaes Exteriores

    MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    NEPA - Ncleo de Estudos para a Alimentao

    OAB - Ordem dos Advogados do Brasil

    OMC - Organizao Mundial do Comrcio

    ONU - Organizao das Naes Unidas

    OPAS - Organizao Pan-Americana de Sade

    PAT - Programa de Alimentao do Trabalhador

    PC do B - Partido Comunista do Brasil

    PDS - Partido Democrtico Social

    PFL - Partido da Frente Liberal

    PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro

    PNAE - Programa Nacional de Alimentao Escolar

  • iv

    iv

    PNBE - Pensamento Nacional das Bases Empresariais

    PNDS - Pesquisa Nacional sobre Demografia e Sade

    PRODEA - Programa Emergencial de Distribuio de Alimentos

    PSB - Partido Socialista Brasileiro

    PT - Partido dos Trabalhadores

    PUC - Pontifcia Universidade Catlica

    PUCCAMP - Pontifcia Universidade Catlica de Campinas

    RBS - Rede Brasil Sul de Comunicaes

    SESC - Servio Social do Comrcio

    SESI - Servio Social da Indstria

    SUPLAN - Superintendncia de Planejamento

    UENF - Universidade Estadual do Norte Fluminense

    UFF - Universidade Federal Fluminense

    UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais

    UFPE - Universidade Federal de Pernambuco

    UFPR - Universidade Federal do Paran

    UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    UFSCar - Universidade Federal de So Carlos

    UnB - Universidade de Braslia

    UNE - Unio Nacional dos Estudantes

    UNESP - Universidade Estadual Paulista

    UNICAMP - Universidade Estadual de Campinas

    UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia

    UNIMEP - Universidade Metodista de Piracicaba

    USC - Universidade Sagrado Corao

    USF - Universidade So Francisco

    USP - Universidade de So Paulo

  • 1

    Introduo

    Esta dissertao tem por objeto de estudo a mobilizao por uma poltica de

    segurana alimentar, ocorrida no Brasil nas dcadas de 1980 e 1990, que trouxe

    embutida em seu bojo avanos e recuos; continuidades e descontinuidades;

    momentos de maior ou menor visibilidade; conflitos e alianas entre pessoas e

    grupos.

    Recentemente, em 30 de janeiro de 2003, assistiu-se ao lanamento nacional

    do 'Programa Fome Zero', iniciativa governamental de combate fome e misria,

    derivada do documento Projeto Fome Zero Uma Proposta de Poltica de

    Segurana Alimentar para o Brasil. Na apresentao inicial do documento, feita em

    outubro de 2001, declarou-se que o Projeto... era a sntese de um ano de trabalho

    de "companheiros e companheiras, com a participao de representantes de ONGs,

    institutos de pesquisas, sindicatos, organizaes populares, movimentos sociais e

    especialistas ligados questo da segurana alimentar, em todo o Brasil" (Instituto

    Cidadania, 2001). primeira vista, o que no est evidente que o referido

    documento representa a continuidade de uma luta pela implementao de uma

    poltica de segurana alimentar, defendida desde a dcada de 1980 por diferentes

    setores da sociedade brasileira. A dissertao apresentada prope o resgate dessa

    trajetria, observando as interaes sociais que, mais conflituosas ou menos,

    permitiram a existncia, hoje, deste item como prioridade de um Governo.

    Cabe inicialmente, traar um breve percurso dos diferentes significados da

    expresso 'segurana alimentar', em funo dos crculos sociais nos quais esta era

    incorporada ao debate. A expresso segurana alimentar, utilizada pela primeira

    vez logo aps a Primeira Guerra Mundial, com um significado impreciso, se

    mesclava idia de segurana nacional. Isto ocorreu porque, no ps-guerra

    imediato, explicitou-se o temor de que pases fossem dominados economicamente

    uns pelos outros, caso no tivessem alimentos suficientes para servir sua prpria

    populao. Naquele momento, o foco de ateno no era a questo da fome em si,

    mas da auto-suficincia na produo de alimentos, da a expresso resultar em

    'segurana alimentar'. A partir de ento, as situaes de insegurana alimentar

    foram relacionadas produo insuficiente de alimentos (Menezes, 2001).

  • 2

    Segundo Francisco Menezes (1999), at a primeira metade da dcada de

    70, prevaleceu a viso de que os problemas da fome e desnutrio resultavam de

    uma produo insuficiente de alimentos. Porm, ao findar aquela dcada, isto se

    modificou, dado que, mesmo com o aumento da oferta de alimentos, amplos

    segmentos da populao mundial continuavam sem acesso comida, evidenciando

    que a oferta insuficiente de alimentos no era a nica causa da permanncia da

    fome no mundo.

    A partir da dcada de 80, o significado da expresso necessariamente

    comeou a sofrer modificaes: a explicao anterior - a que bastava produzir

    alimentos em mais quantidade que estaria garantido o acesso - no se configurou

    como verdadeira. Foi quando se incorporou mais fortemente idia de segurana

    alimentar a problemtica do acesso aos alimentos (Menezes, 2001).

    Isso no exprimiu consenso sobre o seu significado, nem sobre as

    condies e meios para garantir o acesso a todos: desde o incio dos anos 80, pode-

    se notar uma disputa de vises, polarizada entre os organismos oficiais e

    multilaterais encabeados pela Organizao das Naes Unidas para a Alimentao

    e a Agricultura (FAO) de um lado, e organizaes no-governamentais (ONGs) e

    representaes de movimentos sociais, de outro. Os primeiros insistiam no aumento

    da produo de alimentos para acabar com a fome no mundo, enquanto os outros

    propunham a insero do tema da fome no campo dos direitos humanos,

    enfatizando o acesso aos alimentos (Menezes, 1998).

    No Brasil, as primeiras referncias pblicas segurana alimentar surgiram

    no Ministrio da Agricultura e Abastecimento no final de 1985, onde se elaborava

    uma proposta de 'Poltica Nacional de Segurana Alimentar'. Ainda na dcada de 80,

    o tema foi retomado durante a 'I Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio',

    ocorrida em 1986.

    A questo voltou pauta em 1990, durante o chamado Governo Paralelo1

    Um Conselho Nacional de Segurana Alimentar (CONSEA) foi criado em

    1993, subordinado diretamente Presidncia da Repblica, no governo do

    .

    Naquela ocasio, segurana alimentar foi compreendida como o acesso universal

    aos alimentos bsicos necessrios, em todos os momentos (Silva e Silva, 1991).

    1 Articulao que agregou movimentos sociais, partidos e parlamento, visando atuar como agente fiscalizador do Poder Pblico e como frum gerador de propostas alternativas em diferentes reas (Menezes, L. C., 1991), cujo documento de instalao foi lanado em Braslia, em 15 de julho de 1990.

  • 3

    presidente Itamar Franco. No CONSEA, consensuava-se que, no Brasil, somente

    estaria garantida a segurana alimentar quando toda a populao tivesse acesso

    permanente aos alimentos necessrios, quantitativa e qualitativamente, para a

    manuteno da vida, de forma digna. Para tal, segurana alimentar era considerada

    como um objetivo nacional bsico e estratgico, a permear e articular todas as

    polticas e aes das reas econmica e social do Governo, a serem decididas em

    conjunto com a sociedade (CONSEA, 1994).

    Foi durante a existncia do CONSEA que ocorreu a primeira Conferncia

    Nacional de Segurana Alimentar no Brasil, em 1994. Naquela Conferncia,

    ampliou-se o entendimento brasileiro acerca da segurana alimentar:

    "Por Segurana Alimentar entende-se um conjunto de princpios,

    polticas, medidas e instrumentos que assegure permanentemente o

    acesso de todos os habitantes em territrio brasileiro aos alimentos,

    a preos adequados, em quantidade e qualidade necessrias para

    satisfazer as exigncias nutricionais para uma vida digna e saudvel

    bem como os demais direitos da cidadania" (CONSEA e Ao da

    Cidadania, 1994:12).

    No relatrio final da Conferncia, chamou-se ateno para o fato de que,

    apesar da construo de um estado de segurana alimentar ter como pr-requisito

    produo, estocagem e distribuio estratgica de alimentos, sua efetivao s se

    daria com o acesso universal alimentao, ou seja, quando todos tivessem poder

    aquisitivo para a compra destes alimentos: os itens anteriores seriam "meios" para a

    consecuo de um fim: uma populao com quantidade suficiente de alimentos

    mesa.

    Fez-se tambm, poca, a defesa de uma reforma estrutural do modelo

    econmico do pas, que favorecesse o aumento de renda da maioria da populao,

    e a participao da populao na formulao e implementao de um projeto de

    nao que inclusse a segurana alimentar (CONSEA e Ao da Cidadania, 1994).

    Mesmo aps a extino do CONSEA, em janeiro de 1995, sua formulao

    de segurana alimentar permaneceu como ponto de referncia tanto na esfera

    governamental, quanto entre os segmentos da sociedade que permaneceram

    discutindo o tema. Em 1996, no interior do Programa Comunidade Solidria do

  • 4

    Governo Federal, dentro dos momentos de interlocuo poltica ocorreu uma

    interlocuo poltica especfica sobre o tema que, reconhecendo a existncia de

    dissensos na discusso, apresentou o seguinte consenso no tocante segurana

    alimentar:

    "Segurana Alimentar e Nutricional significa garantir a todos

    condies de acesso a alimentos bsicos seguros e de qualidade,

    em quantidade suficiente para atender aos requisitos nutricionais, de

    modo permanente e sem comprometer o acesso a outras

    necessidades essenciais, com base em prticas alimentares

    saudveis, contribuindo assim para uma existncia digna em um

    contexto de desenvolvimento integral do ser humano" (Peliano e

    Franco, 1997: 57).

    Esta a definio de segurana alimentar contida tambm no Relatrio

    Nacional Brasileiro enviado Cpula Mundial da Alimentao de 1996, com exceo

    somente da palavra 'nutricional' que, existente no documento do Programa

    Comunidade Solidria, foi omitida naquele relatrio (Ministrio de Estado das

    Relaes Exteriores, 1996). Segundo Francisco Menezes, os aspectos da

    sustentabilidade ecolgica, social e econmica do sistema alimentar, foram

    incorporados noo de segurana alimentar aps a Cpula Mundial de

    Alimentao, que ocorreu em Roma, em 1996 (Menezes, s.d. b).

    Para Flvio Valente (2000:6), na compreenso mais ampliada de segurana

    alimentar, esta deixou de ser uma questo restrita ao tema da fome e da pobreza,

    sujeita apenas mobilizao de populaes pobres e excludas, "...j que envolve

    fortes grupos de presso ligados ao setor ambientalista, aos interesses dos

    consumidores, luta sindical, aos produtores agrcolas e outros". Apesar disso,

    segundo Valente, nos ltimos anos, a Unio Europia, o Banco Mundial e outros

    atores internacionais tenderam a se afastar do tema da segurana alimentar e do

    conceito aprovado na Cpula Mundial da Alimentao, optando por um significado

    restritivo e aparentemente superado, aquele exclusivo quase que integralmente

    questo da pobreza.

    Cabe aqui, devido a uma freqente associao, uma diferenciao entre os

    termos fome e misria, por vezes utilizados como sinnimos. Misria, geralmente,

  • 5

    relacionada a condies de pobreza extrema. Diante da palavra 'fome', um

    primeiro pensamento volta-se quela sensao fisiolgica individual que indica a

    necessidade de ingesto de alimentos - o impulso alimentao. Porm, tal impulso,

    quando no satisfeito continuamente, se transforma em carncia nutricional que, em

    termos biolgicos, leva a um funcionamento orgnico deficiente. Ocorre que, de

    situao transitria para alguns, a fome tem sido uma manifestao endmica para

    grandes contingentes populacionais. No contexto da segurana alimentar, a fome da

    qual se trata a fome endmica, ou ainda, a chamada 'fome coletiva', como na idia

    formulada por Josu de Castro2

    "Eis um problema to velho quanto a prpria vida" (Mayer, 1961:1). Os

    nmeros da fome

    (Castro, 1961:22).

    3

    Segundo o Ministrio de Sade, os dados oriundos da Pesquisa Nacional

    sobre Demografia e Sade (PNDS) de 1996 indicavam que 11% das crianas

    , mesmo com divergncias acerca da metodologia utilizada para

    sua obteno, demonstraram-se sempre alarmantes ao longo do tempo no Brasil.

    Dados oficiais do Ministrio da Sade do ano de 1991 indicavam que cerca de 13

    milhes de adultos brasileiros, 15,9% de nossa populao, tinham baixo peso

    segundo o ndice de Massa Corporal (IMC), um indicador utilizado para verificar a

    adequao peso atual em relao estatura atual. Ainda segundo o Ministrio, na

    mesma poca a prevalncia de baixo peso era de aproximadamente um quarto dos

    brasileiros jovens entre 18 e 24 anos. Alm disso, ficou evidenciado o grande dficit

    de estatura apresentado pelos nossos jovens, conseqncia do crescimento

    deficiente ao longo de todo o perodo de crescimento (Ministrio da Sade, s.d.).

    2Sem dvida, a personagem brasileira mais encontrada nos trabalhos que tratam sobre os problemas da fome Josu de Castro. Isto porque ele foi o primeiro brasileiro a levantar o tema da fome, sabendo que se dedicava a um tema considerado tabu: "Josu de Castro ficou no imaginrio brasileiro, especialmente das pessoas que lidam com esse tema, como sendo o grande precursor dessa discusso colocada nestes termos: a fome tratada como fenmeno social, com causas sociais, econmicas. Ele foi um dos primeiros a dizer que o tema da fome era to tabu que se tentou dar uma roupagem a ele mais assptica, pois quando se parou de falar em fome comeou a se falar de desnutrio, para tentar localizar o tema da fome num problema nutricional, tirando assim um pouco de sua carga relacionada aos direitos, explorao econmica, s condies estruturais, pobreza..." (Maluf, 2001). Dentre suas vrias obras, destacam-se O problema da alimentao no Brasil, de 1933; Geografia da Fome, de 1946; O livro negro da fome, de 1957. Em Geopoltica da fome, de 1951, sistematiza e aprofunda algumas elaboraes j abordadas anteriormente, alm de apontar novas questes, tal como o impacto da fome no organismo humano e na vida social deste. Aps o golpe militar de 1964 foi exilado, tendo falecido em Paris, em 1973. Cf. Rosana Magalhes, em: Fome. Uma (Re)Leitura de Josu de Castro,1997. 3 No se mede a fome propriamente dita, mas sim se presume a sua existncia quando ocorre uma combinao adversa de indicadores do estado nutricional, tais como os indicadores de medidas corporais, chamados antropomtricos, os indicadores bioqumicos, os indicadores dietticos, ou ainda os indicadores ditos sociais, onde so includos os indicadores de pobreza.

  • 6

    brasileiras menores de cinco anos apresentavam uma deficincia estatural em

    relao idade. Alm disso, duas entre dez crianas combinam dficit estatural e

    baixo peso constitucional: ...a situao nutricional da criana brasileira vem

    melhorando, mas a situao ainda preocupa, especialmente o retardo no

    crescimento linear, que reflexo da fome crnica (Ministrio da Sade, 2002:52).

    Pode-se dizer que os problemas da fome endmica e da (in) segurana

    alimentar tm estreita relao com as questes econmicas e de desenvolvimento

    do pas. Talvez por isso que, em torno da problemtica da fome endmica e da

    busca de sua erradicao, diferentes personagens e interesses tenham disputado

    espaos de poder na definio dos rumos de nossa histria poltica.

    Ao mesmo tempo, o tema, s vezes, guarda em torno de si um certo

    silncio, raramente abalado. Segundo Francisco Menezes (2001), embora sendo

    problema secular no Brasil, a fome e a desnutrio tornaram-se visveis,

    paradoxalmente, devido ao de alguns brasileiros notveis, como Josu de

    Castro e Herbet de Souza, o Betinho4

    Por outro lado, deve-se mencionar que a recente mobilizao brasileira em

    torno da questo da segurana alimentar ocorreu em momento de tentativa de

    redemocratizao de nossa sociedade, aps um perodo de 21 anos de ditadura

    militar. Alm disso, o contexto econmico brasileiro nas dcadas de 80 e 90 tambm

    favoreceu amplamente as manifestaes sociais. A unio destes dois fatores tornou

    , que insistiram em no permitir que suas

    causas e efeitos ficassem escondidos, no hesitando em denunciar o problema da

    fome no Brasil em todos os espaos que tinham alcance, nacionais ou

    internacionais.

    4 Betinho iniciou sua militncia na Juventude Estudantil Catlica (JEC) em Belo Horizonte, mais tarde transformada em Juventude Universitria Catlica (JUC), com a qual viajou pelo Brasil com o Centro Popular de Cultura (CPC) da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), convocando assemblias estudantis em inmeras faculdades ou disputando a direo da entidade com a Ao Popular (AP), que na poca dominava o movimento estudantil. Na Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), fez parte do ncleo que gerou o pensamento poltico da JUC e depois o da AP, articulando-se posteriormente com o grupo de cristos progressistas da PUC do Rio. Tendo se formado em Sociologia em 1962, Betinho engajou-se nos movimentos operrios e na luta pelas chamadas "reformas de base, marcantes do Governo Joo Goulart. Depois do golpe militar de 64, Betinho passou a atuar na resistncia ditadura militar. Em 1971, quando a represso foi intensificada, exilou-se. De volta ao Brasil, ajudou a fundar o Instituto de Estudos da Religio (ISER) e logo depois o Instituto Brasileiro de Anlises Sociais e Econmicas (IBASE). Betinho tambm desempenhou papel decisivo como fundador e principal articulador da Campanha Nacional pela Reforma Agrria, congregando entidades de trabalhadores rurais. Nessa luta pela democratizao da terra organizou, em 1990, o movimento Terra e Democracia. Em 1985, soube que tinha o vrus HIV. Em 1986, ajudou a fundar a Associao Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), da qual foi presidente durante 11 anos. Mesmo doente Betinho nunca abandonou a militncia poltica. Em 1992, integrou a liderana do Movimento Pela tica na Poltica, que serviu de base para a Ao da Cidadania Contra a Misria e Pela Vida. Morreu em 1997, aos 61 anos. Cf. www.ibase.org.br.

    http://www.ibase.org.br/
  • 7

    nossa sociedade um campo frtil para as iniciativas e mobilizaes em torno da

    fome e da segurana alimentar nas referidas dcadas.

    O fato que, nas dcadas de 1980 e 1990, a persistncia de nmeros

    reveladores da fome e da pobreza, agora com maior visibilidade pblica, aliada

    situao econmica em constante flutuao, proporcionou o afloramento tambm da

    mobilizao em torno da necessidade de uma poltica de 'segurana alimentar' no

    Brasil, ainda que restrita a poucos segmentos organizados.

    Como nutricionista e profissional de sade pblica, a prtica me levou a

    buscar uma reflexo mais profunda e rigorosa em relao aos programas

    assistenciais de combate fome e desnutrio, dados seus tmidos resultados.

    Minha insero no Mestrado em Polticas Sociais, na Universidade Estadual do

    Norte Fluminense (UENF) tinha como alvo averiguar as formas como se gestavam

    as polticas sociais, mais especificamente, como eram pensadas as polticas que se

    materializavam nos programas assistenciais de distribuio de alimentos, seus

    impedimentos e constrangimentos, assim como o trajeto percorrido por aqueles que

    se mobilizam em torno da formulao dessas polticas.

    Decidi privilegiar aquelas personagens que se envolveram na mobilizao

    por uma poltica de segurana alimentar no Brasil identificando grupos e eventos,

    frutos das interaes sociais, que fizeram com que a discusso em torno do tema se

    mantivesse contnua, apesar de momentos de maior ou menor visibilidade pblica.

    J demonstrava aqui minha opo por entender o combate fome como dinmica

    social, relacionada aos mais distintos elementos, no como uma projeo linear e

    contnua.

    Estudar poltica social sob este ponto de vista significava, para mim, desviar

    o foco da tradicional avaliao de resultados em favor do estudo dos processos

    polticos e sociais, atravs dos quais eu poderia atentar para as continuidades e

    descontinuidades das aes em prol da implantao de uma poltica definitiva de

    combate fome no Brasil, neste caso, uma poltica de segurana alimentar,

    compreendida como relacionada aos estudos das dcadas de redemocratizao do

    pas.

    Na busca por reflexes tericas que auxiliassem neste trabalho, percebi que,

    na literatura poltica, a partio dos conceitos de Estado e sociedade civil (esta

    excluindo as foras econmicas) no me eram suficientemente explicativas. Por

  • 8

    outro lado, na literatura mais estritamente sociolgica, a concepo de sociedade

    como parte dos indivduos em ao levava a uma fetichizao do primeiro

    conceito, o que as teorias contemporneas tendiam a recusar. Alm disso, o foco

    estrito nas aes coletivas obrigavam-me a compromissos tericos com uma

    determinada viso de homem e ser racional que no permitiam aflorar a mais

    noo mais ampla dos processos que podemos chamar, por exemplo, de fenmenos

    de massa.

    No dilogo com distintas perspectivas tericas, e na percepo de seus

    alcances e limites, tive acesso a um dos clssicos da sociologia, de resgate recente,

    porm intenso, entre os socilogos brasileiros: Georg Simmel (1858-1918).

    Curiosamente, no era o Georg Simmel ensasta, autor de escritos sobre a

    metrpole e seus impactos na construo de subjetividades, a pea poderosa na

    equao de minhas questes. Foi, sim, o Georg Simmel metodlogo que, sem

    nunca ter produzido acerca da poltica de seu tempo, propiciou as ferramentas para

    que eu estudasse a dinmica social, em suas continuidades e descontinuidades.

    Autor do conceito de sociao (Vergellschaftung), Simmel o define como

    uma unidade de ao que pressupe a existncia de indivduos em interao

    (Wechselwirkung), isto , uma ao recproca produzida por determinados instintos

    (Trieben), inclinaes ou para determinados fins. A sociao a sociedade en statu

    nascendi., o modo escolhido por Simmel para analisar a vida em sociedade,

    privilegiando as energias e interaes em detrimento de uma noo pouco realista

    da sociedade. Cultura e as instituies sociais so formadas - e transformadas -

    nas interaes cotidianas que necessariamente supem foras contrrias em

    relao5

    .

    As relaes sociais so condicionadas de modo absolutamente

    dualista: a unio, a harmonia, a cooperao que valem tanto como

    foras socializantes, devem ser atravessadas pelo distanciamento,

    concorrncia, repulso, para dar lugar s configuraes reais da

    sociedade: as grandes formas de organizao, que constroem ou

    que parecem construir a sociedade, as quais devem continuamente

    5 Distintamente do conceito hegeliano da dialtica moderna, Simmel no postula que as contradies so solucionadas numa sntese superior; entende que as oposies transformam-se incessantemente em novas interaes. So estas que garantem a dinmica social Cf. Vandenberghe, 2001, p. 119.

  • 9

    ser turvas, desequilibradas, frgeis. (Vandenberghe, 2001:32. A

    traduo de Miglievich Ribeiro).

    Notando que, em grupos sociais os mais plurais possveis e de insondveis

    motivaes, ainda assim se encontram as mesmas relaes formais dos indivduos

    entre si, isto , formas sociais recorrentes produtos de oposies/interaes -

    tais como, dominao e subordinao, competio e cooperao, diviso do

    trabalho e aproximao, formao de partidos e representao, a sociologia

    simmeliana prope o estudo da dinmica social propriamente dita.

    As motivaes envolvidas nas vrias fases de elaborao e implementao

    de uma poltica social so infinitas. O desafio de trazer a perspectiva simmeliana,

    que no se prende ao contedo motivacional dos agentes, mas sim s formas

    sociais que estes geram - e nas quais so gerados - ao interagirem, possibilitou-me

    a observao do campo de atuao onde atores se mesclavam e se confundiam,

    assim como a percepo de uma proximidade entre fatos aparentemente isolados.

    Assim, a opo de se estudar crculos sociais formando organizaes e

    instituies, traz em si a possibilidade de que se tenha uma histria mais realista a

    narrar, de modo que a construo da poltica de segurana alimentar no Brasil, a par

    dos processos de consolidao democrtica em nosso pas, ganhe uma concretude

    que apenas a anlise das configuraes sociais, e no da sociedade como uma

    entidade supra-individual permite. Ao mesmo tempo, o olhar acerca das

    configuraes sociais convida percepo das resistncias e persistncias das

    formas sociais numa anlise histrica de alcance mdio.

    Para alcanar meu objetivo, inicialmente efetuei uma pesquisa documental,

    onde busquei por todo tipo de documento referente segurana alimentar,

    privilegiando, porm, aqueles em que a descrio histrico-poltica estivesse

    presente. Ao final da busca, selecionei 57 documentos que, em sua grande maioria,

    eram assinados por ONGs, embora tenha encontrado tambm autores em

    Universidades, no Governo Federal, em partido poltico e na Igreja Catlica . Cabe

    salientar aqui a pequena quantidade de dissertaes e teses, bem como publicaes

    acadmicas sobre o tema6

    6 As dissertaes das quais tive conhecimento foram: "Segurana Alimentar: a interveno da ABAG no campo de disputa e produo ideolgica", por Paulo Marques Eduardo Moruzzi (CPDA/UFFRJ, 1996); "Segurana Alimentar e Sustentabilidade - Complementaridades e Conflitos", de Francisco Menezes (CPDA/UFRRJ, 1996), sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf; "Participao da sociedade civil no Governo Itamar Franco: Conselho Nacional de segurana alimentar-CONSEA", de

    at o momento.

  • 10

    A explorao inicial dos dados possibilitou-me definir o perodo mais relevante

    no qual a questo da segurana alimentar se tornou pblica no Brasil: a dcada de

    80 e meados da dcada de 90, bem como identificar informantes privilegiados sobre

    os eventos envolvidos; dentre estes, as personagens que escreviam e/ou que

    participaram dos acontecimentos identificados.

    Durante a realizao do trabalho, visitei a sede do Instituto Brasileiro de

    Anlises Sociais e Econmicas (IBASE), a Assessoria e Servios a Projetos em

    Agricultura Alternativa (AS-PTA), o Curso de Ps-Graduao em Desenvolvimento,

    Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

    (UFRRJ). Nestes locais, mantive contatos com protagonistas de algumas das aes

    envolvendo as estratgias de combate fome no Brasil: Francisco Menezes,

    economista com mestrado no tema pelo CPDA, e que coordenava a Segurana

    Alimentar do IBASE; Jean Marc von der Weid, engenheiro qumico de formao,

    com ps-graduao em economia, fundador da AS-PTA, ONG brasileira que

    trabalha com tecnologia voltada agricultura ecolgica - segundo seu relato, a AS-

    PTA tem atuado rea de segurana alimentar desde sua fundao, mas sua

    insero na discusso mais poltica e intelectual sobre o assunto se deu a partir de

    1994/95, quando comeou a preparao da Conferncia Mundial de Alimentao de

    1996. Renato Srgio Jamil Maluf, economista com doutorado em Economia pela

    Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); em 1989, transferiu-se para a

    Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde produziu vrios

    trabalhos versando sobre segurana alimentar7

    Mantive dilogo e recebi informaes via correio eletrnico com entrevistados

    e com outros informantes, como Flvio Valente, mdico, com Mestrado em Sade e

    .

    Rosana Sperandio Pereira (ICS/UnB, 1997), sob orientao de Pedro Demo; Abastecimento e Segurana Alimentar: o caso do trigo, de Plinio A. Pereira Jr. (CPDA/UFRRJ, 1998) sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf; "O conceito de Segurana Alimentar e a Formao de Polticas no Brasil: Articulaes com o Debate sobre a Reforma Agrria", de Marcelo Rodrigues Kinouchi (FCF/UNESP, 1998), sob a orientao de Vera Mariza Henriques de Miranda Costa; "Segurana Alimentar", de Sandrine Estella Peeters (COPPE/UFRJ, 1999), sob orientao de Miguel de Simoni; "Contribuio da tecnologia de irradiao de alimentos no fornecimento de segurana alimentar e nutricional", de Sonia Regina Schauffert Ferreira (IN/UFRJ, 1999), sob orientao de Edgar Francisco Oliveira Jesus. Teses, apenas: "Segurana Alimentar como um princpio ordenador de polticas pblicas: implicaes e conexes para o caso brasileiro", de Lavinia Davis Rangel Pessanha (CPDA/UFRRJ, 1998), sob orientao de John Wilkinson, e Manejo de Estoques e Segurana Alimentar no Brasil: repensando estratgias, de Ebenezer Pereira Couto (CPDA/UFRRJ, 2000), sob orientao de Renato Srgio Jamil Maluf. 7 AS entrevistas se deram na cidade do Rio de Janeiro/RJ. Conversei com Francisco Menezes na sede do IBASE, em 06 de fevereiro de 2001; Jean Marc von der Weid na sede da AS-PTA, em 07 de fevereiro de 2001; estive com Renato Maluf no CPDA, para entrevist-lo, em duas ocasies: a primeira, em 13 de julho de 2001, e a segunda, em 24 de janeiro de 2002.

  • 11

    Nutrio por Harvard, com antiga militncia na rea da sade no tocante rea de

    alimentao e nutrio, e Dom Mauro Morelli, bispo catlico de Duque de Caxias,

    municpio da Baixada Fluminense/RJ.

    Nas entrevistas, utilizei um roteiro semi-estruturado, idealizado a partir da

    busca exploratria de dados. O mtodo de entrevista realizado foi, seguindo

    Richardson (1999:210), o de entrevista guiada. Seguindo este modelo, levei um

    roteiro de tpicos a serem abordados, mas sem perguntas pr-formuladas estas

    foram feitas no processo da entrevista. As entrevistas foram gravadas e transcritas

    por mim integralmente, logo em seguida, permitindo-me observar lacunas ou

    ambigidades e retornar o contato com o entrevistado.

    Os entrevistados, personagens de um s enredo, apontaram-me outros

    nomes e possibilidades de entendimento de conflito, consenso, aproximaes,

    distanciamentos, que criaram a histria da poltica de segurana alimentar no Brasil.

    Ao mesmo tempo, contrastei as diferentes falas, em suas

    complementaridades e antagonismos, assim como os documentos colhidos na

    pesquisa a acervos, de modo a entender as falas nos distintos contextos em que

    foram produzidas. No seria de outra maneira capaz de identificar as formas

    variadas que os debates e as aes em torno da segurana alimentar ganharam no

    Brasil.

    A anlise do tipo documental (Richardson, 1999), estritamente temtica, teve

    como objetivo bsico determinar o mais fielmente possvel os fenmenos sociais

    aqui, tambm as entrevistas foram consideradas documentos.

    Os momentos de maior nfase no tema da segurana alimentar persistem ao

    lado dos momentos de menor nfase; as personagens parecem conquistar formas

    mais slidas de organizao e visibilidade em dadas circunstncias, enquanto que,

    em outras, a impresso clara de um esvaziamento da mobilizao. Entretanto, se a

    dinmica social traduz continuidades e descontinuidades, na tentativa de

    sistematiz-las, busquei a reconstruo da histria (ou das histrias) dos

    acontecimentos e dos crculos sociais que expressam os esforos e embates na

    sociedade brasileira em torno da segurana alimentar.

    A dissertao ficou assim organizada: alm da introduo e das

    consideraes finais, foram elaborados trs captulos. O captulo 1 retoma a

    discusso da dicotomia sociedade civil/Estado, atravs do histrico da noo de

    sociedade civil. Se, proponho uma anlise que reveja tal dicotomia, creio caber antes

  • 12

    uma reviso dos distintos quadros tericos nas quais a mesma foi construda.

    O captulo 2 introduz a sociologia de Georg Simmel: a rigor, o mvel da

    pesquisa foi reunir elementos que proporcionassem uma resposta pergunta: que

    formas sociais estiveram presentes na mobilizao em prol da poltica de

    segurana alimentar no Brasil? Desta perspectiva, a obra de Georg Simmel, matriz

    terica da sociologia relacional, explicitada, visando a melhor compreenso de sua

    aplicao em minha pesquisa.

    Aps apresentar Simmel, no captulo 3, trarei ao leitor a reconstruo do

    percurso acidentado da constituio dos debates, aes e mobilizao acerca de

    uma poltica de segurana alimentar no Brasil.

    Ao final deste trabalho, espero ter oferecido ao leitor uma viso, parcial, mas

    no pouco objetiva8

    8 No pretendo, com esta afirmao, passar a idia de que o trabalho esteja sustentado por uma crena na 'neutralidade', nem tampouco a situao inversa, isto , que escapo da expectativa de identificar e explicar fenmenos sociais. Tendo a acatar a afirmao de Max Weber (1989:87), quando disse "No existe qualquer anlise cientfica puramente 'objetiva' da vida cultural ou (...) dos 'fenmenos sociais', que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graas s quais estas manifestaes possam ser, explcita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposio, enquanto objeto de pesquisa". Nesse sentido, admitindo as escolhas tericas, Weber no abre mo do rigor e da intersubjetividade no processo de pesquisa.

    , dos acontecimentos que avultaram em torno da busca por uma

    poltica de segurana alimentar em nosso pas, e tambm da abrangncia e

    efetividade da utilizao dos crculos sociais ou formas de sociao como modo de

    estudo das dinmicas sociais que direcionaram e definiram as polticas sociais num

    contexto marcado pela descontinuidade poltica, tal como o brasileiro, bem como as

    novas formas sociais existentes na definio e implementao de polticas.

  • 13

    Captulo 1 Problematizando a dicotomia 'sociedade civil/Estado'

    Considera-se que a retomada do conceito de sociedade civil na

    interpretao da realidade social cresceu medida que a poltica ultrapassou a

    arena dos agentes polticos tradicionais, mobilizando novas dinmicas sociais. Na

    sociedade contempornea, os indivduos interagem em inmeros 'crculos sociais',

    institucionalizados em maior ou menor grau, entrelaando mundo pblico e privado,

    estes freqentemente representados como Estado e sociedade civil. O esforo

    efetuado neste captulo o de demonstrar a importncia de se rever teorias nas

    quais a bipartio Estado e sociedade civil foi construda, a iniciar pelos 'clssicos'.

    Tambm, procura-se salientar a existncia de leituras distintas acerca do significado

    de 'sociedade civil', que ora incorpora as relaes econmicas ou relaes de

    mercado; ora prope uma apartao entre sociedade civil e mercado. Sobretudo,

    ressaltar que, para alm das diferentes significaes e usos tericos, o conceito est

    presente nos discursos dos mais variados atores sociais e polticos.

    1.1 Sociedade civil: antecedentes e a leitura de Hegel e Marx

    Se, em Aristteles, que viveu de 384 a 322 a.C., a idia de sociedade civil

    sugeria a existncia de uma 'comunidade pblica tico-poltica' de iguais, sua

    perspectiva organicista no exclua a 'sociedade poltica' da 'sociedade'. Os

    jusnaturalistas, de Thomas Hobbes a Emmanuel Kant, compreendiam que

    sociedade civil representava a sociedade regulada por algum tipo de autoridade

    reconhecida capaz de assegurar a liberdade, a segurana, a convivncia pacfica

    entre os homens. Por outro lado, tenderam a v-la como produto do 'contrato social',

    de razo humana, portanto. exceo de Rousseau, tambm identificaram a

    sociedade civil poltica. Mesmo na diversidade de discursos, inauguraram o

    conceito moderno de sociedade civil (Costa, 1997).

    A partir do sculo XVIII, 'sociedade civil' ganhou um sentido semntico

    autnomo em relao poltica, quando a expresso 'civil' passou a significar

    'civilidade' ou 'civilizao', destacando a condio moral e os costumes da

    sociedade, sem qualquer conexo com o Estado (Merquior, 1991).

  • 14

    A idia moderna de sociedade civil, no quadro do Iluminismo, est associada

    afirmao de liberdades individuais bem como resistncia de indivduos frente a

    Estados autoritrios - da a contraposio dual Estado/sociedade civil - como pode

    ser observado pelo percurso histrico do conceito.

    Adam Fergusom, em 1717, combateu a idia de que o Estado fosse a

    extenso imediata da sociedade; em Thomas Paine, encontra-se a defesa da

    limitao do poder estatal para a preservao da sociedade civil. Seu surgimento era

    a anttese da sociedade tradicional ou o complexo monrquico-aristocrtico-feudal.

    Sua existncia no dependia de vnculos consangneos ou de tradio. Baseava-se

    noutras formas de interao no-tradicionais e seu papel inclua o controle do

    Estado, cabendo aos 'civis' legitimar as decises tomadas pelo/no Estado.

    Em Princpios da Filosofia do direito, publicado em 1821, Hegel (1770-1831)

    chamou de sociedade civil a sociedade pr-poltica, isto , a fase da sociedade

    humana at ento chamada de sociedade natural (Bobbio, 1999). Hegel

    compreendeu a sociedade civil como uma esfera social intermediria, situada entre a

    famlia e o Estado, incorporando a esfera da economia, o aparato jurdico e a

    administrao pblica, e a corporao - o espao social onde os indivduos se

    apresentam vinculados pelas carncias materiais:

    "Sociedade civil, associao de membros, que so indivduos

    independentes, numa universalidade formal, mediante suas

    necessidades e a constituio jurdica como instrumento de

    segurana da pessoa e da propriedade e por meio de uma

    regulamentao exterior para satisfazer as exigncias particulares e

    coletivas. Este estado exterior converge e se rene na Constituio

    do Estado, que o fim e a realidade em ato da substncia universal

    e da vida pblica nela consagrada" (Hegel, 1997:155).

    Carlos Nelson Coutinho (1998) observou que Hegel compreendeu a famlia

    como a primeira forma objetiva de comunidade universalizadora de interesses - isto

    , definidora efetiva de normas ticas para a ao dos indivduos. Nesta, contudo,

    inexistia o ideal de pblico; pessoas singulares, em suas atividades cotidianas,

    interagiam. Nesse aspecto, a sociedade civil era uma etapa frente na histria da

    humanidade visto que nela, comeavam a surgir o que o filsofo poltico designou

  • 15

    como atores coletivos.

    No se tratava, na sociedade civil, da possibilidade de instaurao de uma

    tica universal; embora, nesta, as vontades humanas j no fossem apenas

    singulares (individuais), mas corporativas (particulares) como nica forma de

    alcanarem seus fins. A sociedade civil, portanto, era um campo de lutas tanto do

    interesse privado 'singular' de todos contra todos quanto do interesse privado

    singular contra o interesse de grupos particulares. Nesta disputa, os interesses

    privados particulares de grupos vencem os interesses privados singulares.

    "A sociedade civil contm os trs momentos seguintes: a) a

    mediao da carncia e a satisfao dos indivduos pelo seu

    trabalho e pelo trabalho e satisfao de todos os outros: o sistema

    de carncias. b) a realidade do elemento universal da liberdade,

    implcito neste sistema, a defesa da propriedade pela justia. c) a

    precauo contra o resduo de contingncias destes sistemas e a

    defesa dos interesses particulares como algo comum, pela

    administrao e pela corporao" (Hegel, 1997:173).

    No por reconhecer na sociedade civil o lcus dos associativismos que

    Hegel deixou de critic-la como claramente mercantil-capistalista. Recusou a

    concepo de sociedade civil como espao de realizao do 'bem comum' tal como

    Mandeville9

    Hegel prosseguiu no sentido de conceber que assim como os homens

    necessitaram associar-se na sociedade civil, tambm as corporaes necessitaram

    superar-se a fim de se preservarem e terem suas vontades particulares plenamente

    realizveis numa forma de ordenamento mais elevada; convertem-se, assim, no

    previu em sua mxima 'vcios privados, virtudes pblicas'. Tambm no

    aderiu noo de Estado Liberal capaz de gerenciar os interesses particulares.

    Neste ponto, como admirador de Rousseau, privilegiou a noo de 'vontade geral'

    mas se recusou a entend-la como realizvel apenas na supresso das liberdades

    individuais.

    9Bernard de Mandeville, pensador holands nascido em 1670. Segundo ele, no existe nexo necessrio entre virtudes privadas e virtudes pblicas. Ao contrrio, em sua clebre frmula "vcios privados, virtudes pblicas", assegurava que a imperfeio humana, ao abrigar uma infinidade de talentos e preferncias, responsvel pelo que a humanidade agregadamente possui de melhor, atribuindo s 'artes do bom governo' a garantia de uma converso dos vcios privados em virtudes pblicas.

  • 16

    'esprito do Estado', dado que no Estado que encontram os meios para alcanar

    seus fins particulares.

    Assim, em Hegel, a sociedade civil representava um campo de articulao

    de particularidades. Tal articulao representada nas associaes e nas instituies

    particulares a condio de sada do amorfismo social, visto que indivduos

    singulares no passam de uma 'massa disforme'; porm, o pluralismo das vontades

    particulares h que se conciliar com a prioridade da vontade geral, e este o papel

    do Estado.

    Segundo Bobbio (1999), o Estado hegeliano contm e supera a sociedade

    civil; transformando uma universalidade meramente formal o reino das

    particularidades - em universalidade objetiva, em uma realidade orgnica: "... a

    natureza do Estado no consiste em relaes de contrato, quer de um contrato de

    todos com todos, quer de todos com o prncipe ou o governo" (Hegel, 1997:93). A

    unio dos interesses particulares com o interesse geral no se d fora do Estado

    Racional. Para Hegel, no existia a possibilidade de 'esfera pblica' - espao

    intersubjetivo criado por meio do contrato e do consenso - fora da burocracia

    estatal; assim como a auto-gesto ou a democratizao do poder so faces do

    individualismo e do contratualismo, que Hegel rejeitava como capazes de realizar

    aquilo que prometem: a democracia propriamente dita.

    Contrariamente a Hegel, em Karl Marx (1818-1883), o Estado foi

    considerado o elemento subordinado da histria. Na perspectiva do materialismo

    histrico e dialtico, a sociedade entendida como modo de produo determinado

    pela luta entre as classes sociais que definem o 'modo' propriamente como cada

    sociedade produz e organiza seu 'produto'. So as relaes sociais - foras

    produtivas e relaes de produo - que formam 'sociedade'. As instituies

    polticas, jurdicas, ideolgicas so conformadas pela dinmica estrutural - base

    econmica - que muito mais ampla que as formas organizacionais que desta

    derivam no plano superestrutural.

    Assim sendo, Marx no d ao Estado - superestrutura - um papel central no

    modo pelo qual uma sociedade historicamente se constitui. O Estado uma

    instituio dentre outras que vo legitimar o que acontece no 'solo real da histria',

    isto , no modo de produo de uma sociedade. Questionando o Estado-Racional

    formulado por Hegel, identificando-o to apenas como 'coletivo ilusrio' ou 'comit

  • 17

    executivo da classe dominante', Marx inverteu o idealismo hegeliano - elaborando o

    materialismo histrico e dialtico - e no admitiu a possibilidade da tica pblica se

    realizar num 'Estado' que nasce de uma 'sociedade civil', tal como definida por

    Hegel, como reino dos particularismos.

    Marx pouco trabalhou com os conceitos de Estado e sociedade civil, no por

    descuido, mas devido sua tese, que relativiza a credibilidade desta concepo de

    sociedade. Estado e sociedade civil, para Marx, constituem uma construo social

    prpria da ordem capitalista onde a sociedade civil confunde-se com a estrutura, isto

    , com as condies materiais de existncia da qual deriva a superestrutura - nesta,

    o Estado - como pode ser observado no clebre prefcio na Contribuio Critica da

    Economia Poltica:

    "...na produo social da prpria existncia, os homens entram em

    relaes determinadas, necessrias, independentes da sua vontade;

    estas relaes de produo correspondem a um grau determinado de

    desenvolvimento de suas foras produtivas materiais. O conjunto

    dessas relaes de produo constitui a estrutura econmica da

    sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura

    jurdica e poltica e qual correspondem formas sociais determinadas

    de conscincia . O modo de produo da vida material condiciona o

    processo de vida social, poltica e intelectual" (Marx, 1992:82).

    Na carta de Marx a Annenkov, escrita em 1846, pode-se perceber que a

    idia de sociedade civil em Marx estava longe de ser uma concepo esttica, j que

    era sempre relacional ao estgio de desenvolvimento das foras produtivas:

    "Que a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da

    ao recproca dos homens. Podem os homens eleger livremente

    esta ou aquela forma social? Nada disso. A um determinado nvel do

    desenvolvimento das foras produtivas dos homens corresponde uma

    determinada forma de comrcio e de consumo. A determinadas fases

    de desenvolvimento da produo, do comrcio, do consumo

    correspondem determinadas formas de organizao social, uma

    determinada organizao da famlia, das camadas sociais ou das

  • 18

    classes; em sntese: uma determinada sociedade civil. A uma

    determinada sociedade civil corresponde um determinado Estado

    poltico, que no mais que a expresso oficial daquela" (Marx,

    1992:85).

    A sociedade civil era fonte e expresso do domnio da burguesia. Assim,

    tanto a sociedade civil quanto o Estado que lhe era imanente no se concretizavam

    como local da esfera pblica, mas sim de particularismos. Diferentemente dos

    particularismos identificados por Hegel, capazes de se transmutar em vontade geral,

    para Marx os particularismos revelavam contradies de classes economicamente

    antagnicas. Para ele, o capitalismo s fez acentuar a contradio e simplificar os

    conflitos, levando-os ao pice ao colocar em plos opostos a burguesia e o

    proletariado. Marx considerava que, para que a esfera pblica se concretizasse, a

    classe proletria representando a imensa parcela da humanidade historicamente

    oprimida - deveria suprimir o poder poltico da camada ou classe social dominante -

    a burguesia e seu Estado burgus. A noo de 'comunismo' implicava, portanto, em

    uma sociedade auto-regulada sem classes, logo, sem sociedade civil ou Estado.

    Em Sobre a questo judia, artigo de 1844, Marx refora a idia de sociedade

    civil como o campo de atuao do privado:

    "O Estado poltico acabado ou perfeito, por sua essncia, a vida

    genrica do homem por oposio sua vida material. Todas as

    premissas dessa vida egosta permanecem de p margem da

    esfera do Estado, na sociedade civil, mas como qualidade desta. Ali

    onde o Estado alcanou o seu verdadeiro desenvolvimento, o

    homem leva uma dupla vida, no s no plano do pensamento, da

    conscincia, como tambm da realidade, da vida: uma vida celestial

    e outra terrena; a vida na comunidade poltica, na qual se considera

    como ser coletivo, e a vida na sociedade civil, na qual atua como

    particular ..." (Marx, 1992:187).

    1.2 A sociedade civil como bero da democracia em Tocqueville

    Outras vertentes recusam a proposta marxista, e insistem na valorizao da

  • 19

    sociedade civil como possibilidade de participao dos cidados comuns nas

    polticas de Estado. Os escritos do francs Alexis de Tocqueville (1805-1859), por

    exemplo, tm sido constantemente revisitados tambm para avaliar a relao entre

    sociedade civil e democracia.

    No primeiro volume de seu livro, A Democracia na Amrica (2000), publicado

    pela primeira vez em 1835, Tocqueville empenhou-se em trazer tona a

    problemtica da liberdade na democracia, apontando as virtudes e limitaes da

    equao liberdade e igualdade, tema caro a liberais e marxistas.

    Franois Furet, no prefcio do primeiro volume de A Democracia na Amrica

    comentou que

    "...o famoso captulo (...) sobre as associaes mostra que estas

    desempenham na sociedade democrtica um papel comparvel ao

    da aristocracia na sociedade aristocrtica, constituindo outros tantos

    corpos coletivos que manifestam a iniciativa do social

    independentemente do Estado. Por isso, a anlise de Tocqueville

    consiste no apenas em estudar a paixo igualitria, ainda que esta

    seja central, mas compreender como, no caso americano, a

    democracia teceu uma rede de sentimentos, de idias e de

    costumes que confere sociedade suas caractersticas distintivas e

    sua vida particular" (Furet, 1998:XLIII).

    A democracia desenvolve-se e fortalece-se atravs da multiplicao das

    associaes voluntrias e grupos de interesse. Em seu relato sobre as associaes

    voluntrias encontradas na Amrica, Tocqueville observou que americanos de

    diversas idades, condies e opinies se associavam constantemente, tanto em

    termos comerciais e industriais, quanto nas formas religiosas e morais, srias ou

    fteis, gerais ou particulares, grandes ou pequenas; estas, que lideravam os novos

    projetos sociais, no o Estado ou os grandes proprietrios.

    Analisando a democracia como fenmeno inelutvel da modernidade, porm

    a ser aperfeioado, interessava-lhe demonstrar como esta poderia dar vida ao

    chamado 'esprito pblico', a par do individualismo que marca a sociedade de

    massa. Atribua consolidao das instituies democrticas um papel central na

    viabilidade de uma sociedade de cidados ativos e virtuosos ainda que sob a gide

  • 20

    das carncias materiais.

    Tocqueville (2000), que sentia ainda muito proximamente os efeitos da

    Revoluo Francesa, sabia que um regime democrtico poderia levar 'tirania da

    maioria', uma forma de opresso at ento pouco mencionada entre os arautos do

    regime democrtico. Por fim, temia que a democracia tambm resultasse na

    negligncia do bem-estar da sociedade: uma tendncia ao individualismo

    exacerbado e no-participao no espao pblico levaria ao descaso com o bem

    comum, ao 'despotismo democrtico'.

    Na fragilidade dos vnculos sociais tradicionais - o reforo do individualismo -

    estava, paradoxalmente, a fora da democracia, ao permitir e encorajar os cidados

    a formar associaes de todos os tipos e finalidades com base na igualdade entre os

    indivduos. As associaes cvicas, ao promoverem o esprito de colaborao,

    tornavam-se essenciais para a discusso dos assuntos pblicos:

    "Os sentimentos e as idias s se renovam, o corao s aumenta e

    o esprito humano s se desenvolve mediante a ao recproca dos

    homens uns sobre os outros. Mostrei que essa ao quase nula

    nos pases democrticos. portanto necessrio recri-las

    artificialmente a. E isso somente as associaes podem fazer" (Op.

    cit:134).

    Atravs da vida associativa de Igrejas independentes e de associaes

    voluntrias, os cidados americanos - que viviam em condies de igualdade

    superior dos europeus - adquiriram a tica de interesse prprio bem

    compreendido que contrabalanava a fora do individualismo, visto que supunha a

    fuso entre os interesses pblico e privado. Reconhecia que as peculiaridades da

    democracia dos Estados Unidos eram historicamente singulares, sendo devedoras

    de seu estvel sistema institucional de leis e justia, com grande respeito pela lei, e

    pelos 'hbitos do corao' do povo: o gosto da liberdade, um igualitarismo

    espontneo espalhado por todos os nveis da sociedade, as virtudes privadas, o

    associativismo, a importncia das comunidades locais, o interesse pelas causas

    pblicas.

    Uma articulao bem temperada entre associativismo e interesse

    comunitrio, por um lado, e a livre expresso de direitos e interesses individuais de

  • 21

    outro, dava, nos Estados Unidos da Amrica, a possibilidade de se definir a

    sociedade civil no exerccio de sua misso: a definio e fiscalizao do papel do

    Estado. Os poderes Executivo, Legislativo e Judicirio, por sua vez, representariam

    no controle mtuo, a tima relao entre representados e representantes. Os riscos

    da 'tirania da maioria' e do 'despotismo democrtico' poderiam ser freados ao se

    garantir a liberdade igual de participao dos cidados na 'coisa'pblica.

    1.3 Gramsci, marxismo ocidental e a renovao do conceito de sociedade civil

    Antonio Gramsci, terico marxista italiano, admirador da revoluo

    bolchevique ao mesmo tempo que seu crtico na maneira de sua realizao no

    Ocidente - , detinha a mais forte convico de que toda revoluo era precedida por

    um intenso trabalho de crtica, de penetrao cultural, de permeao de idias em

    grupos antes refratrios.

    Gramsci cr na tarefa da 'filosofia da prxis' enquanto ideologia superior,

    coerente e orgnica a superar os julgamentos do mundo, confusos e contraditrios,

    marcados por elementos 'egosticos-passionais', individualistas e corporativistas. A

    'batalha cultural', a preparao ideolgica organizada, a luta pela hegemonia (da

    direo poltico-cultural de uma sociedade), tinham um lcus por excelncia para

    ocorrer: a sociedade civil.

    O conceito de 'sociedade civil', no-fundamental em Marx, ganhou em

    Gramsci grande relevncia, ao exprimir a mediao entre a infra-estrutura

    econmica e o Estado 'em sentido restrito'. Arena privilegiada da luta de classe,

    portanto, a incluir as relaes econmicas (distintamente da abordagem

    habermasiana, por exemplo), a sociedade civil apresentava-se como um momento

    constitutivo do Estado.

    Na teoria ampliada do Estado de Gramsci, o Estado possui duas esferas

    principais: "...por Estado deve-se entender, alm do aparelho governamental,

    tambm o aparelho privado de hegemonia ou sociedade civil" (Gramsci, 1991:147).

    Para Coutinho, o Estado gramsciano comporta a sociedade poltica - o Estado em

    sentido estrito ou Estado-coero - e a sociedade civil, formada pelo conjunto das

    organizaes responsveis pela elaborao e/ou difuso das ideologias, incluindo

    sistema escolar, Igreja, partidos polticos, sindicatos, organizaes profissionais,

    organizao material da cultura, dentre outras (Coutinho, 1999:127).

  • 22

    Gramsci acreditava que a superposio entre as noes de Estado e

    governo provinha de uma 'confuso' entre a sociedade civil e a sociedade poltica,

    "pois deve-se notar que na noo geral de Estado entram elementos que tambm

    so comuns noo de sociedade civil (neste sentido, poder-se-ia dizer que o

    Estado = sociedade poltica + sociedade civil, isto , hegemonia revestida de

    coero)" (Op. Cit:149) .

    Gramsci salientou que nem tudo o que faz parte da sociedade civil deve ser

    considerado como 'bom' j que ela poderia, por exemplo, ser hegemonizada pela

    chamada 'direita'. De maneira anloga, nem tudo o que provm do Estado 'mau',

    pois este pode expressar demandas universalistas que se originam nas lutas das

    classes subalternas (Coutinho, s.d.).

    A sociedade civil, como mundo das livres iniciativas, dos conflitos

    ideolgicos, dos cruzamentos culturais e de definio poltica emerge como espao

    de movimentao de diversas foras concentradas em partidos, organizaes,

    grupos, que no se apresentam, ao contrrio, como 'grupos desinteressados'. Desta

    forma, nos trabalhos de Gramsci, o conceito de hegemonia ganhou importncia

    central, j que expressa potencialmente a liderana cultural-ideolgica de uma

    classe sobre a outra na sociedade civil:

    O exerccio normal da hegemonia, (...) caracteriza-se pela

    combinao da fora e do consenso, que se equilibram de modo

    variado, sem que a fora suplante em muito o consenso, mas, ao

    contrrio, tentando fazer com que a fora parea apoiada no

    consenso da maioria, expresso pelos chamados rgos da

    opinio pblica - jornais e associaes -, os quais, por isso, em

    certas situaes, so artificialmente multiplicados. (Gramsci,

    2000:95).

    A compreenso da sociedade civil como o lcus da luta de classes a se dar

    pela conquista da direo poltica mais do que pela dominao/coero - tarefa, por

    excelncia, do Estado 'em sentido estrito' - coloca Gramsci em posio antagnica

    dos pensadores liberais, sobretudo, quando se observa que a noo de estado em

    sentido amplo visa a possibilitar a efetivao de uma sociedade auto-regulada, numa

    era ps-derrubada do capitalismo.

  • 23

    1.4 O resgate contemporneo do conceito de sociedade civil

    H cerca de pouco mais de duas dcadas, observa-se uma reviso terica

    dos conceitos de Estado e sociedade civil, clssicos das literaturas sociolgica e

    poltica.

    Srgio Costa (1997) aponta que, no leste europeu, esse debate acendeu-se

    no incio dos anos 70, como crtica 'onipresena' do Estado no 'socialismo real',

    enquanto que, na Amrica Latina, tal debate esteve associado resistncia contra

    os regimes autoritrios. O tema no novo, mas seus usos contemporneos

    supem a 'emergncia da sociedade civil', a partir da segunda metade do sculo XX,

    evidenciada nos movimentos sociais e repercutida na mdia, assim como as crises

    de legitimao - quer de Estados capitalistas quer socialistas - que obrigaram a um

    retorno dos critrios de definio do que se chama 'democracia' por lideranas

    polticas, intelectuais, entre outras, que se viram diante do desafio de redefinir suas

    prprias definies" (Op. cit:5) .

    Retomando o debate internacional contemporneo, Srgio Costa (1997)

    identifica duas vertentes interpretativas da sociedade civil, as quais ele denominou

    moderada e enftica. Na chamada corrente moderada, sociedade civil tratada

    como uma categoria preponderantemente emprica, uma descrio das

    conformaes poltico-sociais existentes no contexto liberal-democrtico. Aqui, no

    h novidade em se falar 'sociedade civil organizada', dado que esta foi a condio

    mesma do surgimento do Estado-Nao no advento da modernidade burguesa.

    Pode-se dizer que, nesta perspectiva, a sociedade civil a 'outra face da moeda'

    num regime poltico pautado no Estado democrtico. Dentre os autores desta

    corrente, segundo Costa, esto Edward Shills e Ralph Dahrendorf.

    Por sua vez, os tericos da corrente enftica defendem o fortalecimento da

    sociedade civil como uma nova 'ordem social' distinta da j conhecida e que

    representaria o ndulo normativo de um projeto radical democrtico; dentre alguns

    tericos desta linha, cita: Charles Taylor; John Keane; Michael Walzer; Cohen e

    Arato.

    Andrew Arato (1995) interpretou positivamente a recuperao do conceito de

    sociedade civil, considerando-o prenncio de uma organizao autnoma da

    sociedade, na reconstruo de laos sociais 'fora' de Estados autoritrios, laos

    esses concebidos como formadores de uma esfera pblica independente e separada

  • 24

    de toda forma de comunicao oficial, estatal ou controlada por partidos. Porm,

    Arato salientou que o uso metodolgico do conceito de sociedade civil possui

    inmeras ambigidades, j que mesmo quando se diferencia sociedade civil de

    sociedade poltica e sociedade econmica - tal qual o seu caso - permanecem "...

    obscuras as dimenses da sociedade civil que estariam fundamentalmente

    envolvidas". Para Arato,

    "...a unidade da sociedade civil s bvia quando considerada de

    uma perspectiva normativa. Sem dvida, o dinheiro e o poder

    representam a efetiva razo de ser de muitas associaes da

    sociedade civil e existem partidos polticos que, agindo como

    movimentos sociais, procuram adotar, por exemplo, uma lgica

    antiburocrtica e de democracia direta. Neste ltimo caso, os

    argumentos funcionais que contm predies especificamente

    empricas (...) demonstram bem as dificuldades envolvidas na

    questo." (Op. cit:21-2).

    Norberto Bobbio (1999:49) chamou a ateno sobre a problemtica

    utilizao deste conceito, pois, segundo ele, "...o conceito de sociedade civil (...)

    usado, at mesmo na linguagem filosfica, de modo menos tcnico e rigoroso, com

    significaes oscilantes, que exigem uma certa cautela na comparao e algumas

    precises preliminares". fato que, dadas as diferentes formas de apropriao do

    conceito de sociedade civil pelas diversas vertentes intelectuais e polticas, se

    busca, em diferentes estudos, uma determinao especfica 'de qual sociedade

    civil est se falando'.

    Jrgen Habermas (1984), percebeu a sociedade como sistema social,

    cujos sub-sistemas so o Estado e o Mercado - ambos regidos pela moralidade

    instrumental- , a sociedade civil, lcus da esfera pblica - a ser regida pela razo

    comunicativa, se as foras instrumentais assim permitirem e, por fim, o mundo da

    vida, como a esfera das subjetividades.

    Ao tratar da esfera pblica, demonstrou que, nas primeiras constituies

    modernas copiou-se o modelo liberal da esfera pblica burguesa, o qual garantiu

    ser a sociedade civil a esfera da autonomia individual, onde cidados definiam o

    bem pblico na arena de debates. Contraposto sociedade civil, existia o Estado,

  • 25

    limitado a poucas funes, tal como garantir a liberdade na sociedade civil. Na

    esfera pblica, a se desenvolver na sociedade civil, a autoridade do Estado deveria

    ser, portanto, restrita e legitimada por cidados politicamente ativos.

    Habermas atentou para a mudana estrutural da esfera pblica, tanto no

    aspecto de sua instrumentalizao como na restrio de seus efetivos participantes.

    A mudana estrutural da esfera pblica habermasiana trouxe para dentro dela as

    coligaes econmicas; as organizaes de massa; os representantes polticos das

    foras culturais e religiosas. Segundo Habermas, a esfera pblica tornou-se o local

    de intensa concorrncia dos interesses privados organizados frente ao Executivo

    intervencionista, o que ele identificou como uma 'refeudalizao da sociedade':

    "... medida que, com a delimitao entre setor privado e setor pblico,

    no s instncias polticas passam assumir certas funes da esfera

    da troca de mercadorias e do trabalho social, mas tambm

    inversamente, foras sociais passam a assumir funes polticas. Por

    isso que essa refeudalizao tambm se estende prpria esfera

    pblica poltica: nela, as organizaes procuram compromissos com o

    Estado e entre si, se possvel com a excluso da esfera pblica..."

    (Habermas, 1984:269)

    Se, por um lado, Habermas acredita que a esfera pblica tenha se tornado,

    tambm, o 'reino da competio' e dos interesses particularistas, devido sua

    invaso pela lgica da eficcia econmica, por outro lado ele acredita na

    revitalizao do conceito de sociedade civil. Cr que a mquina administrativa do

    Estado e o mercado cumprem metas que no poderiam se dar em outra lgica que

    no a da adequao meios e fins - razo instrumental. Por outro lado, observa srios

    riscos democracia se tal lgica se tornasse a nica forma de sociao entre os

    indivduos. Supunha que, num nvel maior ou menor de idealizao, nichos de

    oxigenao haveriam de permear a sociedade civil de modo a conformar modos de

    interao entre indivduos no movidos exclusivamente para a sobrevivncia

    material. Entende que o trabalho permite relaes sociais avessas ao debate 'entre

    iguais' na sociedade capitalista; contudo, a construo de espaos pblicos de

    interao, a par das relaes econmicas, por exemplo e, tambm, da vida privada,

    poderiam se constituir em novas formas de solidariedade menos instrumentais e

  • 26

    mais democrticas (Miglievich Ribeiro, 2002)

    1.5 Sociedade civil e sua apropriao no contexto brasileiro

    Marcos Pedlowski (2001), em reviso acerca do uso do conceito de

    sociedade civil, demonstrou que, mesmo possuindo uma longa histria no

    pensamento poltico ocidental, este conceito apenas recentemente reapareceu como

    um tema central em debates contemporneos que englobam teorias do Estado,

    desenvolvimento econmico, e democracia. O autor observou que o interesse

    renovado na sociedade civil adveio de uma preocupao generalizada com o

    fracasso de regimes polticos e estratgias econmicas, que caracterizou a dcada

    de 80. Alm disso, salientou que existe a defesa, por parte de alguns autores, de

    que a existncia de organizaes no-governamentais (ONGs) seja essencial para a

    construo de sociedades civis fortes, ao mesmo tempo em que um crescente

    nmero de autores questionam tais potencialidades.

    No contexto brasileiro, pode-se observar que o uso do conceito 'sociedade

    civil' cresceu a partir da segunda metade dos anos 70, poca em que se acentuaram

    os processos de corroso da ditadura militar e a concomitante irrupo de novos

    movimentos sociais. Interessa enfatizar que, no contexto da luta contra a ditadura, a

    chamada 'sociedade civil' tornou-se sinnimo de resistncia ao Estado ditatorial, j

    que no uso coloquial da palavra, a semntica indicava 'civil' como o contrrio de

    'militar.

    Na dicotomia civil/militar, tudo o que provinha da 'sociedade civil' era visto de

    modo positivo, enquanto o inverso, isto , tudo o que dizia respeito ao Estado

    (militar), aparecia com forte conotao negativa. O conceito ocupou ento, naquele

    momento, uma funo mais poltica do que analtico-terica; contudo, abriu caminho

    para os futuros usos no Brasil, da expresso sociedade civil como dissociada do

    Estado.

    Digno de observao o fato de que, quase ao mesmo tempo, cresce a

    importncia da atuao das ONGs na sociedade brasileira. A intensificao da

    discusso sobre o conceito - acompanhada da crtica ao estatismo - coincidiu com o

    interesse dos organismos internacionais, principalmente o Banco Mundial, na

    cooperao multilateral com as ONGs brasileiras, a partir dos anos 80.

    Principalmente desde ento, as expresses 'sociedade civil' e 'ONGs' passaram a

  • 27

    freqentar os mesmos locais.

    Nanci Valadares de Carvalho 10

    Valadares defende que as ONGs articulam um projeto de sociedade

    transnacional que remonta sociedade autogerida do comunismo. Nesse sentido,

    expressou sua crena na sociedade civil como sinnimo de uma comunidade de

    indivduos automediados. Aposta na sociedade civil como ncleo da solidariedade

    universal contra as formas ilegtimas dos Estados-Nao na contemporaneidade, ao

    mesmo tempo em que reconhece no fortalecimento da sociedade civil a garantia da

    democratizao do prprio Estado.

    (2001) mostrou que, longe de serem um

    fenmeno estritamente brasileiro, as ONGs eram manifestaes de um movimento

    histrico europeu de origem altrusta, formadas a partir de um mesmo molde e

    formato organizativo. A autora esclareceu que, desde o fim dos anos 60, a idia de

    autogoverno tornou-se crescentemente assunto das discusses polticas em todas

    as partes do planeta e, em menos de uma dcada, estes grupos alcanaram tanto

    um padro de organizao quanto de objetivos sociais que os distinguiam das

    entidades sociais tradicionais de filantropia.

    As ONGs, grassroots ou organizaes-de-base estabeleceram-se por volta

    dos anos 70 nos pases desenvolvidos e rapidamente se espalharam pelo mundo,

    com o objetivo de responder s demandas legtimas de governabilidade de seus

    associados, ento atendidas nos canais burocrticos estatais ou privados (Op. cit:

    211). Desde seu nascimento, estas organizaes criaram polticas alternativas s

    burocracias estatais:

    "Pode-se ento afirmar que as Ongs, a despeito dos vnculos

    associativos que porventura venham enlaar, so estritamente

    independentes e autnomas em face ao Estado e ao mercado que,

    at este ponto, haviam sido considerados os agentes exclusivamente

    responsveis pelos processos de desenvolvimento econmico,

    simblico, social e poltico das sociedades na sua totalidade"

    (Carvalho, 2001:212).

    Herdeira da tradio de estudos norte-americanos acerca do non-profit

    sector, a autora est entre os defensores de um espao de 'sociaes' onde as

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    lgicas da hierarquia estatal e de mercado no tm penetrao.

    Leilah Landim (1998) por sua vez, permite-nos atentar para a peculiaridade

    das ONGs no contexto brasileiro, que traz diferenas em face realidade norte-

    americana. Para esta autora, no Brasil, por 'ONG' deve-se entender um conjunto de

    organizaes da sociedade civil com caractersticas bastante peculiares:

    "...instituies com razovel grau de independncia em sua gesto e

    funcionamento, criadas voluntariamente, sem pretender carter

    representativo e sem ter como mvel o lucro material, dedicadas a

    atividades ligadas a questes sociais, pretendendo a

    institucionalizao, a qualificao do trabalho e a profissionalizao

    de seus agentes, tendo a frmula projeto como mediao para suas

    atividades, onde as relaes internacionais - incluindo redes

    polticas e sociais e recursos financeiros - esto particularmente

    presentes. Organizaes nas quais, finalmente, o iderio dos

    direitos e da cidadania marca de peso, permeando e politizando

    atividades variadas" (Op. cit:54-55).

    Leilah Landim alerta para o fato de que freqentemente as ONGs so

    mencionadas na temtica das novas relaes entre Estado e sociedade, com papis

    diversos - para o 'bem' ou para o 'mal'. Para o bem, quando atuam no controle,

    proposio, co-gesto de polticas pblicas. Para o mal, quando atuam pela

    execuo de servios, momento em que so freqentemente acusadas de

    substitutas funcionais e estratgicas do Estado no contexto neoliberal. Este ltimo