ciranda de pedra - lygia fagundes telles

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    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudosacadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fimexclusivo de compra futura.

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    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

    nvel."

  • Coleo Lygia Fagundes TellesCONSELHO EDITORIALAlberto da Costa e SilvaAntonio DimasLilia Moritz SchwarczLuiz SchwarczCOORDENACO EDITORIALMarta Garcia

    LIVROS DE LYGIA FAGUNDES TELLESPUBLICADOS PELA COMPANHIA DAS LETRASCiranda de Pedra 1954, 2009Antes do Baile Verde 1970, 2009As Meninas 1973, 2009Seminrio dos Ratos 1977, 2009A Noite Escura e Mais Eu 1995, 2009Inveno e Memria 2000, 2009

  • LygiaFagundesTellesCirandade PedraRomance Nova edio revista pela autora

    POSFCIO DESilviano Santiago

  • Zazita e ao Durval minha me e meu pai.

  • boca da fonte, boca generosa dizendoinesgotavelmente a mesma gua...RILKE, SONETOS A ORFEU, II, 15

  • Sumrio

    Ciranda de Pedra

    SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO

    Posfcio O Avesso da Festa, Silviano SantiagoCarta Carlos Drummond de AndradeDepoimento Prof. Silveira BuenoA Autora

  • Cirandade Pedra

  • Primeira Parte

  • IVirgnia subiu precipitadamente a escada e trancou-se no quarto.

    Abre, menina ordenou Luciana do lado de fora.Virgnia encostou-se parede e ps-se a roer as unhas, seguindo com o

    olhar uma formiguinha que subia pelo batente da porta. Se entrar a nessafresta, voc morre!, sussurrou soprando-a para o cho. Eu te salvo,bobinha, no tenha medo, disse em voz alta. E afastou-a com o indicador.Nesse instante fixou o olhar na unha roda at a carne. Pensou nas unhas deOtvia. E esmagou a formiga.

    Virgnia, eu no estou brincando, menina. Abre logo, anda! Agora no posso. No pode por qu? Estou fazendo uma coisa respondeu evasivamente.Pensava em Conrado a lhe explicar que os bichos so como gente, tm

    alma de gente, e que matar um bichinho era o mesmo que matar umapessoa. Se voc for m e comear a matar s por gosto, na outra vidavoc ser bicho tambm, mas um desses bichos horrveis, cobra, rato,aranha... Deitou-se no assoalho e comeou a se espojar angustiosamente,avanando de rastros at o meio do quarto.

    Ou voc abre ou conto para o seu tio. isto que voc quer, isto?Virgnia imobilizou-se. Ser cobra machucava os cotovelos, melhor ser

    borboleta. Mas quem ia ser borboleta decerto era Otvia, que era linda. Eeu sou feia e ruim, ruim, ruim!, exclamou dando murros no cho. Ergueu acabea num desafio:

    Pode contar tudo, tio Daniel no me manda, quem manda em mim meu pai, ouviu? Meu pai.

    Luciana no respondeu e Virgnia levantou-se, tomada de sbito pavor.Falara alto demais. Teria a me ouvido? Ps-se a enrolar no dedo umaponta da franja. No, no ouviu e se ouviu no entendeu. Abriu a porta eassim que a empregada entrou, sondou-lhe a fisionomia. Tranquilizou-se.S se zanga mesmo quando eu falo naquilo. Riu baixinho.

    Onde est a outra? perguntou Luciana erguendo do cho umapresilha.

    Perdi. Ento voc vai de fita. No, de fita, no! Meu cabelo liso demais, fica to feio... Ento vai sem nada disse Luciana com indiferena. Dirigiu-se

    cmoda que tinha um tom rosa encardido e puxou a gaveta. Estavaemperrada. Puxou-a com mais fora.

    D um pontap que ela abre logo. um bom sistema esse. Assim, quando arrebentar tudo, voc guarda

  • sua roupa no cho. Tirou da gaveta um par de meias brancas. Quandoestes mveis vieram de l, ainda eram novos.

    Mentira disse Virgnia em voz baixa. Falava com cuidado para quea me no ouvisse l embaixo. Bruna j me deu tudo assim mesmo. Opai deu moblia nova para ela e ento ela me deu estes. Tio Daniel disseuma vez que ia me dar uma moblia azul e no me deu nada.

    Ele tem mais em que gastar. , mas ele disse que ia me dar uma moblia e no deu nada. Bruna

    disse que ele tem obrigao de dar tudo pra minha me e pra mim. E Brunasabe.

    pouco o que ele d, no? No quero saber, s sei que ele ia me dar uma moblia azul e no deu

    nada.Luciana abriu o armrio, tirou de dentro um vestido e afrouxou-lhe o lao

    da cintura. Seus movimentos no tinham a menor pressa. Assim de costasparece branca, concluiu Virgnia fixando o olhar enviesado nos cabelos damoa. Eram lustrosos e ligeiramente ondulados, presos na nuca por umafivela. Na fivela estava pintada uma borboleta vermelha. Lembrou-se entoda formiga e instintivamente olhou para as prprias mos. As mos deConrado eram mos de prncipe. Jamais aqueles dedos esmagariamqualquer coisa.

    Escute, Luciana, voc acha mesmo que se a gente ruim nesta vidanuma outra vida a gente nasce bicho? Tenho medo de nascer cobra.

    Voc j cobra disse Luciana com brandura. E voc mulata retorquiu Virgnia no mesmo tom. E gosta dele,

    por isso faz tudo para parecer branca. Ele quem? Ele quem? repetiu Luciana. Tinha uma expresso

    zombeteira e seu tom de voz era suave. Mas havia qualquer coisa dedilacerado sob aquela suavidade.

    Ningum, eu estava brincando.Deixou-se vestir passivamente. Adiantara-se muito, adiantara-se demais.

    Agora ela sabe que eu sei. Cravou em Luciana o olhar aflito. A fisionomiada moa continuava impassvel. Ela finge que no se importa mas estcom vontade de me esganar. Quando sentiu no pescoo seus dedos friosabotoando-lhe a gola, teve um arrepio misturado a uma estranha sensaode gozo. Viu-se morta, com a grinalda da sua primeira comunho. Trazidaspor Frau Herta, vestidas de preto, chegavam Bruna e Otvia debulhadas empranto. Ns te desprezamos tanto e agora voc est morta! Aos ps docaixo, quase desfalecido de tanto chorar, o pai lamentava-se: Era a minhafilhinha predileta, a caula, a mais linda das trs!. Muito plido dentro daroupa escura, Conrado apareceu com um ramo de lrios. Ia me casar com

  • ela quando crescesse. Algum se aproximou de Frau Herta. Mas e ondeest Daniel, por que no veio ao enterro? E Frau Herta, em voz bem alta,para quem quisesse ouvir: Ele fugiu com Luciana, fugiram os dois, a estashoras esto se divertindo juntos, rindo e cantando era uma vez duas ninfasque moravam num bosque....

    Grossas lgrimas correram dos olhos de Virgnia. Como ele tiveracoragem de fugir deixando-a ali, morta?! Tapou a boca para conter ossoluos. E cantar a Balada das Duas Ninfas, justamente a balada que a megostava tanto de ouvir!

    Por que est chorando? Me deu uma dor de ouvido... Quer o remdio? J passou.Luciana impeliu-a para fora. Venha lavar a cara.Deixou-se levar em silncio, baixando os olhos ao passar diante do

    espelho do armrio. Tinha vontade de esmurrar aquela sua figura espichada,de cabelos pretos e escorridos, iguais aos da bruxa de pano que Margaridacomprara na feira. Pensou nas irms. Podia suportar a lembrana de Brunaque era morena e grandalhona como o pai, mas Otvia com aqueles cachosquase louros caindo at os ombros e com aquelas mos brancas, tobrancas...

    Agarrou-se ao avental de Luciana. Luciana, eu no quero ir hoje! Hoje no! No quer, como? No, pelo amor de Deus, hoje eu no quero que elas me vejam.

    Quando a Fraulein chegar, diga que estou doente, pelo amor de Deus, deixaeu ficar com voc, eu fao tudo que voc quiser, me ajude!

    Luciana sorriu. Claro que voc tem que ir. So suas irms, to bem

    -educadas, to bonitas. Tenho dio delas! E de Conrado? Tem dio dele tambm?Virgnia afundou os dedos no sabonete. Viu de relance, refletido no

    espelho do armarinho branco, o rosto de Luciana. Ela me detesta, pensouarqueando as sobrancelhas. Cansara-se de lutar, queria se fazer agora umacoisa pequenina, uma coisa miservel que inspirasse piedade.

    Meu cabelo horrvel, no? Quero ver se fao nele alguns cachos. Voc sabe que da no vai sair cacho nenhum, meu cabelo no se

    anela nem com papelote, voc sabe disso.

  • Acho to bonito cachos! Deve ser bom pentear o cabelo de Otvia,passar a mo nele.

    Nem com papelote... E cada vez ela est mais parecida com sua me, vai crescer igual

    sua me. J Bruna saiu parecida com doutor Natrcio, mas Otvia completamente diferente de vocs duas. To delicada, parece porcelana.

    Voc est molhando minha cabea toa, no sai cacho nenhum, deixeeu ir embora.

    Engraado que ela meio parecida com Conrado, nem que fossemirmos. H de ver que acabam se casando.

    Virgnia mordeu a afta que tinha na bochecha at sentir gosto de sanguena boca.

    Tio Daniel tem loucura por minha me. Se outra mulher gostar dele,ele faz assim na cara dessa outra, assim! repetiu cuspindo furiosamentena pia. Um laivo de sangue escorreu entre a saliva. Estou cuspindosangue! Vou morrer, Luciana, vou morrer!

    Voc mordeu a boca disse Luciana colhendo com as mos emconcha a gua da torneira entreaberta e fazendo-a escorrer sobre o fiosanguinolento. Virgnia acompanhava-lhe os movimentos com olharsuplicante.

    Luciana, eu vou morrer, ningum gosta de mim, ningum! Diga quegosta de mim, pelo amor de Deus, diga que gosta de mim!

    No chore assim alto. Quer que sua me oua?Virgnia tapou a boca com as mos. Soluos fundos sacudiam-lhe os

    ombros. Diga, Luciana... Voc est se despenteando. Quero ficar despenteada, tenho dio deles! exclamou puxando os

    cabelos. Estendeu-se no cho. Queria morrer... Voc vai sujar o vestido e no tem outro. Ningum gosta de mim, ningum. Minhas irms no se importam

    comigo e minha me s gosta de tio Daniel... Meu pai que gosta de mim,s ele me quer bem, ah, meu paizinho querido, me leva embora desta casa,eu quero ir com voc!

    Os soluos foram se espaando at cessarem num cansao. Estendidade bruos, com a fronte apoiada nas mos, ela cansou de chorar e agoraolhava a pequenina poa de lgrimas que se formara no ladrilho. Apertou osolhos para que as duas ltimas lgrimas cassem de uma vez. Quando assentiu correr, abriu os olhos novamente. Tem jeito de elefante, admitiu aov-las se aderirem s outras formando uma tromba. Corrigiu a tromba como dedo. Assim um passarinho voando. Agora uma rvore... Enjoou do

  • brinquedo e olhou em redor. Estava sozinha. Ergueu-se, passou a toalha norosto, alisou raivosamente os cabelos, cachos! e na ponta dos ps desceuas escadas. Ao passar pela porta do quarto azul, susteve a respirao. Ame dormiu. Era to bom quando ela dormia! Os loucos deviam dormir otempo todo, de dia e de noite, como as bonecas que s abrem os olhosquando tiradas da caixa. Otvia tinha uma boneca assim, sempre dormindo,as pestanas to compridas... Dirigiu-se cozinha. Luciana preparava o ch.Apanhou uma torrada e sentou-se no banco.

    Bruna disse que se minha me no tivesse se separado do meu paino estava agora assim doente. Ela acha que castigo de Deus.

    Ora, voc sabe muito bem que isso comeou quando ela aindamorava com seu pai. E ento? Se que existe castigo, eu sei quem queest sendo castigado.

    Virgnia ficou pensativa, era como se Luciana tivesse ouvido Bruna falar.Nunca mais Daniel teria uma tarde assim, por exemplo, pensou voltando oolhar para a gravura colorida do calendrio. Ali estavam dois namoradossentados debaixo de uma rvore, num piquenique com morangos e florestransbordando de um cestinho. Ela estava radiosa no seu vestidoesvoaante, os cabelos louros soltos at os ombros, o chapelo de palhaatirado na relva. O moo vestia um suter branco, calas de flanelatambm brancas e estava inclinado sobre a moa, como se lhe aspirasse operfume. Era um pouco parecido com Conrado assim com seu ar deprncipe. Mas e essa burra? Com quem ela se parece?, perguntou a simesma franzindo os lbios. Lambeu lentamente os dedos enlambuzados demanteiga. Um dia ainda esfregaria gordura naqueles cabelos. Podia aindafurar aqueles olhos. E ento, adeus piquenique! O namorado fugiria aospulos. Riu baixinho. Aos pulos. E de tudo s restariam a rvore, a relva e ocestinho de morangos. Ficou sria. Castigo, no ? Os piqueniques deDaniel teriam que ser todos dentro do quarto, com as venezianas fechadas.Nem sol, nem rvores, nem relva. E ele no encontraria nenhuma flor paraoferecer, s razes, as razes que a doente via brotar entre os dedos.

    , mas se no fosse ele, a estas horas minha me ainda estaria commeu pai e minhas irms, ns todos juntos.

    Fique quieta que voc no sabe de nada. Sei, sei murmurou sem nenhuma convico. Encolheu os ombros.

    Por que no lhe contavam direito as coisas? Ela sabe de tudo mas no diz.E mesmo que diga, vai dizer mentiras porque ama tio Daniel.

    Debruou-se na janela que dava para o quintal. As folhas do pessegueiroestavam amareladas. Verdes, mesmo, eram os pinheirais. Teriamrealmente a cor do postal? Encontrara-o na gaveta de Otvia e perguntara-lhe que casaro era aquele no meio dos pinheiros. Pois foi nesse sanatrio

  • que mame esteve internada, dissera Otvia no seu tom indiferente. Sequiser para voc, pode levar. Guardara ento o postal dentro do bolso eassim que chegou em casa, mostrou-o me. Onde era a janelinha do seuquarto? A enferma apontou uma janela no segundo andar. As grades deferro eram fios de linha preta sobre a vidraa batida de sol. Aqui. Erahorrvel, gemeu ela. Mas logo em seguida, sorriu com astcia, Um dia obesouro caiu de costas. E besouro que cai de costas no se levanta nuncamais.

    Um pardal pousou no pessegueiro, bicou uma folha e prosseguiu seu voo.Virgnia seguiu-o com o olhar. Devia ser bom, tambm, nascer passarinho.Passarinho no tem essa complicao de pai e me assim separados. Epassarinho no fica louco nunca. Franziu a testa: ou fica? Beija-flor era umque no parecia muito certo.

    Melhor ser borboleta disse ela voltando-se para Luciana, que j saacom o ch. Seguiu-a na ponta dos ps.

    O quarto estava na penumbra, impregnado de um perfume adocicado emorno. A doente estava deitada no div. O roupo azul, frouxamenteentreaberto no busto, deixava entrever o colo magro, da brancura seca dogesso. O rosto parecia tranquilo em meio cabeleira em desordem, de umlouro sem brilho.

    Voc, Luciana? perguntou, afvel. Falava baixinho, como seestivesse num concerto e se dirigisse ao vizinho nesse tom de quem noquer perturbar. Pousou o olhar em Virgnia. E quem esta menina?

    Virgnia aproximou-se. Outra vez, meu Deus, outra vez?! Sou eu, me.Laura cerrou os grandes olhos mortios. Tinha a expresso serena mas

    desatenta. Eu sou sua me, eu sou sua me repetiu como uma criana

    obediente que consegue decorar a lio sem contudo entend-la. Sorriu. Eu estava brincando...

    Ser melhor esperar, resolveu Virgnia ajoelhando-se ao lado do div. Selhe perguntassem esperar o qu, no saberia responder. Apenas esperava.Uma vez surpreendeu uma mariposa presa numa teia. Fuja depressa,fuja!, desejara sem coragem de intervir. Mas a mariposa se deixavaenvolver sem nenhuma resistncia no viscoso tecido cinzento que a aranhaia acumulando em torno de suas asas. Assim via a me, enleada em fiosque lhe tapavam os ouvidos, os olhos, a boca. No adiantava dizer-lhe nada.Nem mostrar-lhe nada. Falas e pessoas batiam naquele invlucro macio eao mesmo tempo resistente como uma carapaa, batiam e voltavam ebatiam novamente num vaivm intil. Apenas uma pessoa conseguiapenetrar no emaranhado: Daniel.

  • Tome seu ch, dona Laura, seno esfria ordenou Luciana enquantoarrumava a mesa de toalete. Apanhou no cho o arminho de p. E comaas torradas, no quero ver sobrar nenhuma.

    Laura fixou o olhar num ponto distante, como se houvesse uma pessoasentada alm de Virgnia.

    No sanatrio eles serviam ch com peixes. Mas, claro, gosto no sediscute.

    Virgnia tocou-lhe as mos descarnadas. Emagreceu e est pior, pensoucom vontade de se estender no cho e nunca mais se levantar dali.

    Seu ch, me...Delicadamente ela apanhou a xcara. Sorveu-a sem pressa: Sempre gostei de ch morno. E de peixes vermelhos. Me, ontem a dona Otlia me deu dez numa composio sobre a

    tarde. Ouviu, me?A doente pousou a xcara e durante algum tempo ficou imvel, o olhar

    fixo no teto. Depois, lentamente foi voltando a cabea. Uma expressoterna suavizou-lhe a dureza do rosto cavado. Passou a mo pelos cabelos.

    Ento, filha? Est de vestido novo?Virgnia apertou os olhos brilhantes. Era seu, me. A senhora se lembra dele? Luciana diminuiu pra mim,

    no ficou bonito?Laura acariciou-lhe o queixo num gesto vacilante. Sorriu. Sabe, filhota, eu e seu tio gostaramos de dar a voc muitos vestidos

    novos, brinquedos, tanta coisa... Mas seu tio agora no pode, ele tem gastomuito comigo, entende? Ele tem gasto demais, por isso.

    Mas, me, eu estou cheia de vestidos, no quero mais nenhum. Edetesto brinquedos!

    Eu sei, eu sei... Voc uma menina muito boazinha, ouviu? E agorame diga onde vai assim toda elegante. Hum?

    Virgnia quis dizer-lhe: Vou casa do meu pai. Mas Luciana terminaraa arrumao e j se aproximava do div:

    Vamos, Virgnia? Queria ficar mais um pouco. Seu tio no quer, voc sabe disso. S cinco minutos! Mas ela no est me incomodando disse Laura estendendo a mo

    para apertar a de Luciana. Luciana pareceu no ter entendido o gesto. E amo descarnada voltou ao regao. Nem sei mesmo como agradecer,Luciana. Agora at vestidos... Daniel j disse que no sabe o que faria semvoc. E eu, ento?

    O rosto moreno continuou impassvel. Apenas um breve fulgor iluminou-

  • lhe os olhos amendoados. A senhora no comeu as torradas observou ela. E voltando-se para

    Virgnia: Ento, s cinco minutos. E no fale muito. No fale muito, estme compreendendo?

    Vou ficar quieta prometeu com humildade. Mas assim que aempregada saiu tomou entre as suas as mos da me. Vou casa domeu pai, meu pai. Lembra-se dele?

    Laura cravou na filha o olhar penetrante. Est lcida, concluiu Virgnia.Est completamente lcida. E chegou a ter medo.

    Claro que me lembro de Natrcio, claro. Como vai ele, filhota? Tantotempo, imagine...

    Virgnia sentiu no rosto uma onda de calor. Ela ainda pedia notcias,coisa que no acontecia nunca. E mostrara-se interessada, ah, mais dia,menos dia, Daniel e Luciana seriam castigados. O mal acaba sendo vencidocomo o drago de So Jorge!, Bruna dissera. E Bruna sabia. Eles seriamesmagados e o bem triunfaria, o bem que era a me curada voltando para opai, s amando o pai.

    Todas as teras-feiras, voc sabe, passo a tarde l e ele no deixa deperguntar por voc, sempre to triste, quase no fala... Frau Herta disseuma vez que nunca mais ele vai gostar de outra porque ainda no seesqueceu de voc. Frau Herta disse isso pra copeira mas eu ouvi, juro queouvi! E a casa dele, me!... Que casa! Voc precisa ver essa nova casacom um jeito assim bem antigo, l no fundo de um gramado que no acabamais. Tem um caramancho cheio de plantas e perto do caramancho umafonte no meio de uma roda de cinco anezinhos de pedra, voc precisa verque lindo os anezinhos de mos dadas! bom beber aquela gua, togeladinha! Na semana passada ele trocou o automvel por um novo, todopreto, com almofada vermelha, uma beleza de automvel. Bruna e Otviaparecem duas princesas.

    Voc gostaria de morar l?Virgnia baixou os olhos cheios de lgrimas. Mas s se voc fosse tambm.Laura teve um sorriso cujo sentido a menina no pde alcanar. Fechou

    no peito a gola do roupo. Um dia voc tambm se vestir como uma princesa e brincar de

    roda com os anezinhos... Quer? Ah, mame, se a gente pudesse! Eles vivem to bem, tm tanta

    coisa! Bruna disse que meu pai est ficando cada vez mais rico e que omaior advogado que existe. J tem livros at no estrangeiro!

    Voc gosta muito dele, no? Adoro meu pai disse ela. Arrematou em seguida, num fio de voz:

  • Mas gosto tambm de tio Daniel.Laura ergueu-se meio ofegante para ajeitar a manta que lhe chegava at

    os joelhos. Voltou o rosto para a parede. melhor que seja assim, filha, melhor acrescentou tombando

    sobre as almofadas. E Bruna? E Otvia? No vieram mais me ver? Ouvieram?... Porque era morena ficou sendo Bruna.

    Me, escuta atalhou-a Virgnia. Era preciso no desperdiar otempo com outro assunto, tinha que aproveit-lo inteiro e depressa, antesque a carapaa se fechasse outra vez. Presta ateno, hoje vou estarcom o pai, voc quer que eu d algum recado pra ele? Quer que eu digaalguma coisa? No conto pra ningum, confie em mim! Que que vocquer que eu diga?!

    A enferma parecia no ter ouvido uma s palavra. Entrelaou as mossob a nuca e moveu doloridamente a cabea.

    Quero Daniel... Ele j vem vindo, j vem vindo, mas agora escuta, escuta! E

    Virgnia debruou-se sobre o rosto devastado, erguendo-o ansiosamente,Ainda no! Me, presta ateno, eu posso dar algum recado, eu posso...Me, sou eu, Virgnia!

    Ele no deixar que me levem, prometeu... Mas preciso que ele noentre.

    Ele quem? O besouro.A porta abriu-se sem rudo. Laura sentou-se rpida. Mas, ao ver que era

    Luciana, tornou a desabar sobre a almofada. Estava prestes a cair empranto.

    Quero Daniel, Daniel...Luciana aproximou-se, apanhou a escova e escovou-lhe os cabelos.

    Tranou-os, enrgica. Ele vai ficar triste se encontrar a senhora assim aflita. Por que no

    dorme um pouco? Vamos, ele j vem, quer ver ele triste, quer?Virgnia ps-se a roer as unhas. Daniel, Daniel! Que importava se ele

    ficasse triste? Que importava se no voltasse mais? Me, diga que noprecisa nem dela nem dele, eles mentem, chama o pai que o pai te ama,ns dois cuidamos de voc, s ns dois!

    Luciana, depressa, o meu perfume... J vou dar, mas tome antes esta plula ordenou ela tirando um

    tubo branco do bolso do avental. Despejou ch na xcara. Vamos, maisum gole...

    Tive tanto medo, Luciana, tanto medo! Mas passou, no ?

  • Vocs so to minhas queridas sussurrou ela relaxando osmsculos. Fechou os olhos. Concordam comigo que h mos e aranhas, adiferena est apenas no modo como acariciam...

    Luciana apanhou a bandeja. Est bem, mas agora durma, vamos, fique calma. Podem ir mas voltem sempre. To minhas queridas... Adeus. A

    esttua sabe.Com um pequeno movimento de cabea, Luciana indicou a porta para

    Virgnia. Saram em silncio. Frau Herta est demorando disse Virgnia debruando-se na janela

    da cozinha. No passou da hora? Ela no vir mais. Por qu? Por que, Luciana? O chofer veio avisar que suas irms foram a uma festa. No era isso

    que voc queria?Virgnia ps-se a assobiar baixinho. No, no era isso, agora no era

    mais isso. E Luciana sabia. Olhou pensativamente a unha do polegar rodaat carne. A verdade que Bruna e Otvia estavam muito bem sem ela.E nem pedem pra ver a me, faz mais de um ms que no aparecem. E ame est pior. Bruna diz que castigo. Conrado diz que mesmo doena,mas Otvia no diz nada. E Luciana? Voltou-se para a empregada e ficou aobserv-la. Trabalhava sem parar mas estava com o avental sempre limpoe os cabelos penteados. Tudo podia estar em desordem, mas ela continuavacom aquela cara lisa.

    Voc no precisa de plulas? Que plulas? Essas pra acalmar. Eu sou calma disse Luciana com um meio sorriso. Abriu a cesta de

    costura. J fez sua lio?Virgnia suspirou. Tantas plulas! Por que faziam a me tomar tantas

    plulas assim? Encolheu os ombros. Enfim, talvez fosse mesmo melhor queela dormisse noite e dia, enquanto dormia no ficava gemendo. Nem falandono besouro.

    Luciana, voc acha que minha me est melhor? Acho. Ela conversou to bem comigo! No disse nada esquisito, nada

    mesmo. Acredito.Ela sabe que estou mentindo. Mas por que tem que saber? Crispou a

    boca. Se no entrasse tantas vezes no quarto, se no entrasse mais noquarto, eu podia dizer: minha me melhorou. E ela acreditava. Se s eu

  • entrasse no quarto podia dizer isso pra todos e todos tinham que acreditarem mim. E eu mesma acabava acreditando e isso ficava sendo verdade.

    Luciana, ela estava com medo de quem? Voc sabe. Andou falando nele, no falou? No falou, menina?No primeiro instante Virgnia ainda tentou reagir. Mas teve um

    movimento de ombros. Baixou a cabea. Falei. No comeo ela estava entendendo mas depois embaralhou tudo.

    E veio com aquela histria do besouro.O relgio em cima do guarda-loua deu cinco pancadas secas. Virgnia

    olhou-o demoradamente. Era esta a hora em que as duas costumavam irpara o caramancho. Conrado, que morava na casa vizinha, atravessava acerca de fcus e vinha brincar tambm. Ou melhor, brincar, no, que ele erasrio demais para brincadeiras, e Otvia no gostava de correr para nodesmanchar os cachos. Reconstituiu o grupo: Otvia trazia a caixa deaquarela e ficava pintando, sempre com aquele arzinho de quem no estrealmente levando a srio nem ela prpria nem os outros. Conrado quetodos os anos recebia medalha por ser o primeiro da classe no perdiatempo em conversa, vinha com um caderno ou um livro debaixo do brao el ficava a estudar, belo como um deus no verde do gramado. Bruna lia avida dos santos ou ento cosia roupinhas para as crianas da creche.Quanto a Frau Herta, ficava horas e horas entretida com seus potes deavenca, adubando a terra, arrancando folhinhas secas, observando asplantas com aquele mesmo enternecido cuidado com que observava Otvia.S para Otvia e para suas avencas tinha aquele olhar de servido. Deamor.

    Virgnia decepou a cabea de Otvia e colocou a sua no lugar. Acendeu-se o sol. Passeando pelo jardim, a flutuar como uma fada, veio vindo a mede mos dadas com o pai. Tinha o rosto corado como... como uma rom,decidiu. Era vermelho demais, sim, mas se usava nos livros dizer que aspessoas saudveis eram assim como as roms, Coradas como umarom! Conrado vestia a mesma roupa do moo do calendrio e tinhaaquela expresso de deslumbramento. Virgnia, como seus cabelos solindos! Quando eu crescer, vamos nos casar.

    Ser que voc no cansa de roer as unhas? Hem, Virgnia? E ser que no cansa de... de... De qu?Virgnia lanou-lhe um olhar turvo. Ela cerzia um leno, o leno dele.

    Desviou o olhar para o cho. Vou um pouco no porto, volto j.Na calada defronte viu Margarida. Vai passear? perguntou Margarida correndo-lhe ao encontro. Vai

  • passear? Minhas irms me convidaram pra uma festa mas estou sem vontade

    de ir. Minhas irms so muito ricas. Voc j viu prato de ouro? No. Pois na casa do meu pai tem prato de ouro. Um dia minha me e eu

    ainda vamos morar l. Sua me est melhor? Minha me sarou, no tem mais nada, est completamente curada,

    ouviu isso? Agarrou Margarida pelo pulso. Voc duvida? Eu no disse nada... Disse. Disse que sou mentirosa e agora vai ter que pedir desculpas,

    vamos, pea j desculpas. Depressa! Mas, Virgnia... Me larga, Virgnia! Pea desculpas, seno aperto mais! Desculpa gemeu a menina libertando-se num ltimo esforo. Ficou

    um momento imvel, os olhos atnitos cheios de lgrimas. Em seguida,atravessou a rua correndo.

    Margarida, volte, vem c, eu estava brincando! Margarida, eu estava...Suspirou fundo ao ver a amiga sumir pelo porto adentro. Sentou-se

    molemente no degrau de pedra e acariciou as pontas dos dedosintumescidos. Apoiou o queixo nas mos. E ficou esfregando o p numboneco desenhado a carvo na calada.

    IIDescrio de uma famlia, Virgnia escreveu no alto da pgina. Grifou ottulo e deteve a ponta do lpis na palavra famlia. Arqueou pensativamenteas sobrancelhas. A gente fala familha mas escreve famlia. Havia aindauma poro de palavras assim... Mordiscou o lpis. Podia escrever sobre umhomem do campo voltando para casa, a enxada no ombro, contente porquesabe que sua espera esto a mulher e os filhinhos. Na realidade, ohomem devia ser esfarrapado e sujo, cercado de crianas barrigudas epiolhentas, mais encardidas do que um tatu. Mas no usava escrever sobregente assim, nas composies todos tinham que ser educados e limposcomo Conrado, o homem podia mesmo se parecer com Conrado, correndoao seu encontro, Virgnia, Virgnia!.

    Ps-se a desenhar uma flor no canto da pgina. Sorriu. Conrado deenxada no ombro, imagine. Naquelas mos s podia aparecer o punho deuma espada de ouro com pedras preciosas, mas uma espada s de enfeite,desde que ele era incapaz de matar uma formiga. Se voc matar bichinhoss por gosto, um dia voc poder ser um bicho tambm... Empurrou o

  • caderno e levantou-se. Deu uma volta em redor da mesa, cantarolandodistraidamente.

    Tim-tim ferro macaquinho!L debaixo de uma rvoreum homem vende laranjaum outro vende limo...

    Calou-se assustada. Aquele gemido seria de gente? Ou do vento? Desceua escada e dirigiu-se ao escritrio. Daniel ali estava sentado numa poltrona,um pouco encolhido, como se tivesse frio. Olhou-a e sorriu.

    Quer alguma coisa?Virgnia adiantou-se constrangida. Quis perguntar pela me, correra at

    ele justamente para fazer essa pergunta e agora horrorizava-se com a ideiade ouvir uma resposta. Encarou-o. Ele tinha a roupa amarfanhada e pareciaabatido.

    Eu estava fazendo minha lio, preciso descrever uma famlia... Entome lembrei que o senhor tem um livro sobre famlia acrescentouapontando vagamente a estante. Um desses da.

    Ele lanou um olhar prateleira. E de repente riu. H tempos que ela noo via rir assim e surpreendeu-se. Era um riso forado, de quem j seesquecera de rir naturalmente.

    No, Virgnia, esses livros no servem, so livros de medicina.Nessa posio, com uma sombra de barba azulada no rosto fino e com

    aqueles cabelos crescidos, ele era igual ao cavaleiro da capa de um livro dehistrias que ela ganhara na escola, um cavaleiro plido e triste, seguindocom o olhar um cisne que nadava num lago. Lembrava Conrado, os doistinham qualquer coisa... Baixou a cabea. Assim, mesmo malvestido e debarba por fazer, ele ainda era muito mais bonito que o pai. O demniotoma vrias formas, avisara Bruna. Cravou o olhar nos ps de Daniel. Edesapontou-se, enternecida com aqueles sapatos to humanos, jdeformados pelo uso.

    No acho graa nessa descrio de uma famlia murmurou ela nummuxoxo. Uma bobagem.

    No, meu bem, o tema bom. Cada menina pode descrever suaprpria famlia, certo? Ento voc descreveria a nossa. Fez uma pausa.Parecia falar consigo mesmo. A minha famlia, Laura e Virgnia. Minhafamlia repetiu baixinho. E noutro tom: Por que voc no fala sobre acasa do seu pai, sobre suas irms?

    Boa ideia! E ponho minha me morando l tambm, faz de conta quenada mudou, que como antes.

    Daniel entrelaou as mos. Depois afrouxou-as. E ficou a olh-las,

  • abertas sobre os joelhos. Sabe, meu bem, um dia desses devo ir falar com seu pai. Dentro em

    breve voc ir morar com ele.Virgnia aproximou-se mais. Ficou imvel, perplexa, como se ele tivesse

    falado numa linguagem desconhecida. Sim, meu bem, com seu pai. L voc ficar melhor, a casa deve ser

    mais alegre do que esta, mais confortvel. E tem suas irms, tem aFraulein para cuidar de voc... De acordo?

    Ela ajoelhou-se diante da poltrona. Tomou ansiosamente as mos deDaniel. Continha-se para no gritar:

    Quando, tio? Quando? Virgnia, Virgnia, quando voc fica assim comigo, quando me olha

    como olhou h pouco, eu chego a pensar que... Enfim, que seria possvel umoutro caminho. Fez uma pausa. E contraiu dolorosamente a fisionomia. Mas no, eu teria que ser muito egosta, est compreendendo? S para voch esperana.

    Que esperana?Ele soltou-lhe as mos e acendeu um cigarro. Sacudiu a cabea. No importa. Quero que guarde apenas uma coisa, Virgnia: voc est

    sendo um menininha maravilhosa porque ama seu pai e fiel a ele. Haja oque houver, nunca se esquea disso.

    Como se a impelissem violentamente, ela agarrou-lhe os joelhos. Mas a me no vai pro sanatrio! Laura ficar comigo. Um dia, quando ela melhorar... acrescentou

    ele evasivamente. Afundou na poltrona. Parecia ter sobre os ombros umaenorme carga. O olhar fatigado denunciava-lhe o peso mas a boca contradadizia que ele haveria de suport-la sozinho. Ergueu a mo em concha paraafagar a cabea de Virgnia. Mas interrompeu o gesto. A mo tombou. Minha menininha...

    Ela tem tanto medo do sanatrio, tanto medo! O senhor no acha queela pode ser tratada aqui mesmo? A gente pode dar mais daquelas plulas,ela pode dormir mais tempo, no pode? No pode, tio?

    Pode. Acredite em mim, meu bem, eu prometo que no vou permitirque ela saia daqui. Est satisfeita agora?

    Virgnia ergueu-se. Quis beij-lo. E esta simples ideia a fez corar devergonha.

    Vou fazer minha lio disse, dando-lhe as costas. Diante da portado quarto da enferma, parou, olhou furtivamente para os lados e emseguida, torcendo o trinco, entrou sem rudo. Ela estava sentada defronte mesa de toalete e tranava os cabelos. Vestia-se como se fosse sair. Comsofreguido, Virgnia buscou-lhe o olhar. Parecia lcido.

  • Que linda voc est, me! Mas que linda!O vestido, de um tom azul-acinzentado, caa-lhe to frouxo e cheio de

    pregas que se tornava impossvel adivinhar-lhe o feitio. Hoje vou jantar com vocs segredou ela olhando para a filha

    atravs do espelho. Havia ruge no rosto devastado, apenas um toque leve.Assim mesmo ele se chocava com a pele cor de cera. Olheiras fundascavavam-se em torno dos olhos brilhantes.

    Voc est to bonita, me. Verdade? Est linda! Quero fazer uma surpresa a Daniel, j pedi a Luciana que ponha flores

    na mesa, jantaremos juntos, um jantar especial, s ns trs! Comeremos luz de velas, j mandei tirar da mala o candelabro.

    Que candelabro? Um candelabro de prata, filhota. Apagaremos tudo, s ficaro acesas

    as velas.Virgnia apertou ferozmente os maxilares. Ela estava bonita, sim, e no

    parecia to magra, o vestido que era largo demais, estava tudo emordem, tudo bem, at o quarto com a cama arrumada e o div intacto,como se nunca ningum tivesse se deitado ali. A nica coisa esquisita, masa nica, era aquela veneziana fechada e a luz acesa quando havia sol lfora. Mordiscou um fiapo de unha do polegar. E que tem isso? O sol fazdoer os olhos dela, muita gente prefere assim, faz de conta que anoiteceu.

    Me, por que voc no pe o seu colar de prolas? Pe o colar, me!Faz de conta que uma festa.

    Laura firmava com grampos as tranas torcidas na nuca. Seus dedosfinos tateavam trmulos por entre a massa emaranhada dos cabelos.Concordou num tom de conspirao.

    , faz de conta, pegue minha caixinha de joias, a no armrio... Penaque minhas mos estejam um pouco inchadas, no posso pr os anis.

    Virgnia afundou o rosto nos vestidos dependurados. Havia neles oresqucio melanclico de um perfume doce. Apanhou a caixinha. Eraprateada e trazia na tampa uma inscrio, Laura, oferece Natrcio. Eis a.Tudo de melhor que ainda restava tinha vindo dele. Mas se o pai lhe deratudo, por que, meu Deus, por que ento ela o deixara? Lanou em torno umolhar desolado, nunca o quarto azul lhe parecera to miservel. Abriu acaixa. Enrodilhado na almofada de veludo, o colar de prolas.

    Este colar foi de minha me murmurou Laura, prendendo-o nopescoo. Ela morreu com ele, sabia disso? Representava Romeu e Julietae parece que foi um sucesso, mas no me lembro de quase nada, acho queeu era muito criana... Fez uma pausa. Girava entre o polegar e o

  • indicador a prola maior do fio e parecia ler no espelho o que ia dizendo. curioso, mas quase no me lembro de minha me. No entanto, me lembroperfeitamente de um chapu preto que ela usava, um chapu de abas largascom plumas vermelhas. Eu gostava de passar a mo nas plumas... Nemretrato tenho dela, tudo deve ter-se queimado naquela noite, sobrou estecolar... Lembro-me melhor do meu pai, parece que era alto, magro epassava os dias ensaiando no espelho. Brincvamos s vezes de coruja, umbrinquedo engraado, ficvamos no sei quanto tempo com as testasjuntas, um olhando para o outro, bem srios. Perdia quem piscasseprimeiro. Eu perdia todas as vezes.

    Calou-se baixando o olhar. E da? Da, nada. Naquela noite do incndio no dormi no teatro, estava na

    casa de tia Gabriela, uma amiga deles. Foi assim que escapei. Minha famliaficou sendo ento essa mulher. Sem dvida, minha me foi uma grandeatriz, mas tia Gabriela deve ter sido pssima, nem ao menos era bonita...Fiquei pensando nisso mais tarde, mas quando eu era menina e morvamosjuntas, achava que ela era encantadora naqueles vestidos j comidos pelastraas, representando para mim, s para mim, os papis que representouquando moa. Quer dizer, os papis que gostaria de ter representado... Eragorda e tinha um vozeiro de pera. s vezes punha nos ombros a cobertada cama e ficava andando de um lado para o outro, grande e imponentecomo um bicho do mar, Laura, preste ateno, agora sou uma rainha!.

    O olhar de Virgnia fixou-se com avidez no espelho. Sabia que de fato osavs tinham sido artistas. Mas que histria era aquela do incndio? Senunca ouvira falar em nenhum incndio... Tambm nunca ouvira antes essenome: Gabriela. Seria tudo inveno? Baixou o olhar e viu, num espanto, quea me estava descala.

    Essa... essa tia Gabriela... Morreu? No sei, sumiu completamente. Completamente. s vezes as pessoas

    somem, no? , somem.O silncio se prolongou e Virgnia comeou a ficar com medo. Agora ela

    vai falar na festa, naquilo... Foi com este colar que conheci Daniel. Voc j me contou... Meu vestido era preto, a cinturinha fina assim e aquela saia rodada,

    enorme! repetiu fazendo um movimento brusco. Dois dos pentes carame a trana resvalou-lhe pelas costas. Fiz um penteado alto e a nica joiaque resolvi pr foi este colar... Minhas luvas eram brancas e branca amantilha, ah, eu me senti to feliz quando me olhei no espelho! To feliz...

  • Quando j ia saindo, no ltimo instante, vi na caixa o cravo vermelho e nosei por que tive vontade de lev-lo tambm, era um cravo de um tomviolento, profundo. Ento Natrcio me olhou demoradamente, um olhar quefez murchar meu vestido, meus cabelos, minha flor... Por que essa flor?,perguntou ele. Qualquer prima-dona de subrbio gostaria de usar uma florassim.

    Me, fale mais na tia Gabriela, conta como ela fazia! Punha nosombros a coberta da cama, eu sou uma rainha! E depois, o que aconteciadepois?

    Seu olhar era mais frio ainda do que suas palavras. Descobri entoque ele estava morto, era um morto que me dizia aquelas coisas, que meolhava daquele jeito... Pela primeira vez no tive mais medo. Enfrentei-o. Sequiser, v sozinha, ele disse com um sorriso que era de morto tambm.Vamos, ponha essa flor no peito e v sozinha! repetiu apontando a porta.Ento sa correndo, chego a pensar que fugi correndo, antes que ele mesegurasse... Fazia anos que eu no ia a nenhuma festa, a parte alguma, eledetestava sair comigo, nosso passeio era visitar a famlia, ficar horas ehoras na saleta dourada, cheia de mortos e de retratos de mortos, ouvindoas gmeas to iguais! Uma recitava, depois a outra cantava, depois a outrarecitava, alternadamente... Voc tem suas filhas!, ele costumava me dizer.Minhas filhas... Eram minhas? Bruna, que parecia uma inimiga, prontasempre para me julgar. To dura. E Otvia sempre to distante, l longecom seus cachos... Era graciosa a minha Otvia com aqueles seus cachos,abracei-a tanto, fica comigo, s tenho voc! Ento ela choramingava, no,mam, num quelo, c dismancha meu tachinho...

    Virgnia apertou-lhe o brao. No, aquele pedao, no! Me, j sei, voc j me contou tudo isso, tio Daniel estava na festa,

    j ouvi isso, no precisa repetir!Laura falava agora num tom velado. Ardente. Ele me olhou. Ento vi minha beleza refletida nos olhos dele. Havia na

    festa tanta gente, tanto espelho, tanto lustre! Mas s ns dois vivos, tudo omais era to falso, to vazio, sem sentido como papelo pintado... S nsdois vivendo. Nos espelhos, nos lustres, em toda parte eu via o reflexo dosmeus cabelos brilhando, como eles estavam brilhantes... No nosseparamos mais. Amanhecia quando ele apertou minha mo e antes mesmode ouvir sua voz j sabia o que ele ia dizer: Laura, eu te amo. s vezespenso que ele nem me disse nada, Laura, eu te amo, eu te amo, eu teamo...

    Calou-se a olhar para o espelho como se ali ainda estivesse a imagemda antiga face. Riscos de lgrimas foram manchando docemente o coloridode mscara. Respirava com dificuldade.

  • Me, a Otvia est aprendendo desenho, outro dia ela fez o retrato deConrado, ficou to parecido! Frau Herta disse que ela tem muito jeito, podiaser pintora se quisesse. Podia tambm ser pianista...

    Ento eu fechei os olhos e me deixei levar, tocavam uma valsa. E oslustres todos rodavam e os espelhos rodavam e eu sa rodando tambmcomo um pio, rodando e rindo porque era engraado no poder parar mais,um pio! repetiu cobrindo o rosto. Os ombros foram sacudidos porsoluos. Um pio.

    Podia tambm ser cantora...Laura levantou a cabea. Os olhos borrados sorriam envelhecidos,

    astutos. Eu sabia que se parasse caa no cho, perto do besouro. E besouro

    que cai de costas no se levanta nunca mais.Virgnia levantou-se de um salto. Daniel entrava. Rpido, tomou entre as

    suas as mos da doente. Inclinou-se. Ento, minha querida? Daniel, Daniel...Ele dirigiu a Virgnia o olhar consternado. Eu j lhe pedi que no entrasse aqui sozinha. Mas, tio Daniel, ela chamou... Voc devia ter-me avisado, eu estava no escritrio, dormia na

    poltrona, por isso no vim antes. Daniel, o besouro... Que que tem o besouro? Ele voltou, Daniel, ele voltou. Eu quis me defender mas as razes

    esto muito fundas, olhe a, nem posso mais mexer os dedos... No possomais mexer os dedos...

    Gravemente, Daniel examinou-lhe as mos crispadas. E devagar foialisando dedo por dedo, tirando algo invisvel de cada um e atirando longe.

    Agora esta raiz aqui... Agora esta... Pronto, j arranquei todas, estvendo? Todas!

    Ela levantou as mos num gesto lnguido. Baixou-as de novo, as palmasvoltadas para cima.

    Ah, que alvio! Estou to cansada, queria me deitar um pouco, vocsabe, Daniel, voc sabe como elas so vorazes.

    So vorazes, sim repetiu ele tomando-a nos braos como se fosseuma criana. Levou-a para a cama.

    To cansada... Voc j vai descansar, agora o besouro fugiu, estamos sozinhos, nem

    besouro nem razes, meu amor.Virgnia foi recuando. Tinha os olhos assombrados, fixos em Daniel. Ele

  • falava como se estivesse louco tambm. Saiu atropeladamente e dirigiu-se cozinha. Sentiu a boca seca. Bebeu gua na concha das mos.

    Agora toma gua que nem ndio? perguntou Luciana.Debruando-se na janela, Virgnia lanou um olhar interrogativo ao cu.

    Anoitecia. Ento lembrou-se. E as flores? Que flores? As flores pra enfeitar a mesa, ela vai jantar na mesa e encomendou

    flores.No rosto cor de bronze de Luciana havia uma expresso de dolo

    paciente e irnico. No h dinheiro para flores, menina. E voc sabe que ela no pode

    jantar na mesa.Virgnia fechou os punhos. Pode, pode!, quis gritar-lhe. Baixou a cabea

    e numa corrida desenfreada, foi para a rua. Chamou Margarida: Quero brincar, vamos brincar! suplicou segurando sfrega nos

    pulsos da menina. Que tal um corrupio daqueles bem fortes, vamos,fora, estique mais os braos, um dois e...

    O quarto azul no existia, Daniel era uma figura de livro, nada daquiloexistia, nada, Mais depressa, Margarida, mais depressa!.

    J estou tonta, vou cair! Mais um pouco, vamos, tim-tim ferro macaquinho! L debaixo de uma

    rvore... cantou aos berros. E atirou a cabea para trs num risoestridente, desesperado.

    III No fique assim espetada, pode encostar observou Frau Herta batendode leve nas costas de Virgnia. Na sua voz havia indulgncia e ao mesmotempo uma certa irritao. E tire a mo da boca.

    Virgnia corou ao afundar-se na almofada do automvel. Por que FrauHerta lhe falava sempre naquele tom? No era assim nem com Bruna nemcom Otvia. Mas nenhuma delas se senta como eu, pensou numdesconsolo. Puxou o vestido sobre os joelhos. Elas eram to naturais, seminibies, com um ar assim de donas do automvel, donas de tudo massem constranger as pessoas. Jamais Frau Herta lhes precisaria dizer:Estejam vontade.

    O carro ia vagaroso e Virgnia comeou a ficar com medo do silncio.Agora ela vai perguntar, pensou girando o olhar em busca de um assunto.Chegou a sentir os lbios da mulher formulando a frase, como fazia sempreantes de diz-la. E preferiu ir ao seu encontro.

  • Minha me est melhor. Ah, que curioso, eu j ia mesmo pedir notcias dela. Ento melhorou? J est quase boa.Houve uma pausa de suspeita. Quase boa? Enfim, louvado seja Deus acrescentou sem muita

    convico.O casaro cinzento e largo ficava no fundo de um espaoso gramado em

    declive, sinuosamente cortado por estreitas alamedas de pedregulhos.Quatro ciprestes inflexveis pareciam montar guarda casa. Alm dessesciprestes, nenhum arbusto, nenhuma flor na grama que tinha o aspecto deter sido recentemente podada, Podada demais, pensava Virgnia a olharpesarosa as folhinhas tenras, ceifadas ferozmente. No extremo esquerdo dogramado, em meio da roda dos anes de pedra, jorrava a fonte. Um poucoadiante, j quase encostado cerca de fcus, erguia-se o caramancho,ninho fresco e verdejante de avencas, a planta bem-amada de Frau Herta.

    Virgnia parou no meio da alameda e lanou um olhar demorado casavizinha. Aquele vulto que espiava atravs da cortina da janela... SeriaConrado?

    Frau Herta guardou no armrio do vestbulo seu desbotado chapu defeltro azul-marinho. Ajeitou os cabelos curtos e ralos e examinou-se noespelho com olhos severos, como se a imagem refletida fosse a de umainimiga a quem devesse imparcialmente inspecionar. Esses eram seusgestos habituais sempre que chegava e Virgnia j os sabia de cor, masdesta vez sentiu vontade de rir. Tem cara de bruxa. Se tivesse um cabo devassoura podia sair voando pela janela afora.

    A senhora hoje est bonita, Frau Herta. vestido novo? No sou bonita e isto no vestido, um tailleur. Sabe pronunciar

    essa palavra? Mas no tem importncia, tambm pode dizer costume concedeu complacente. Impeliu-a para a escada. Vamos subir que suasirms esto l em cima.

    Ela resistiu, voltando-se para a porta do escritrio. Estava fechada. Queria antes ver o pai... Agora ele est trabalhando e no gosta de ser interrompido, na sada

    voc fala com ele. E deixe essas meias! O elstico est frouxo desculpou-se Virgnia esticando-as at os

    joelhos. Sentiu a vermelhido invadir-lhe o rosto. Agora est olhando paraminhas unhas. Por que no me deixa em paz?

    Sons abafados de um piano romperam a quietude da casa. Frau Hertadeteve-se na escada e inclinou a cabea. Sua fisionomia abrandou-se,deliciada.

    Otvia. Tem tanto talento para a msica como para pintura. Uma

  • artista! suspirou. E dirigindo-se a Virgnia: Vou tomar a lio dela,espere com Bruna na saleta.

    Conrado tambm est l? Que foi que voc disse? perguntou a mulher segurando-lhe o

    queixo. Quando se dirigir a algum, no fique assim, olhando o cho,vamos, levante esta cabea! Bruna e Otvia falam to corretamente, elastm tanta classe. Preste mais ateno nelas, menina, precisa aprender!

    Virgnia recuou. O marido de Frau Herta fora um oficial prussiano queacabou morrendo na guerra. Um homem terrvel, Bruna dissera, umverdadeiro soldado de bigodes vermelhos e voz de trovo. Pela primeira vezvia agora os olhos da mulher, frios como bolinhas de vidro azul: era comose estivesse diante do oficial.

    Eu dizia que Otvia toca bem.A mulher concordou com certa impacincia. No conteve um suspiro de

    alvio ao introduzi-la na saleta: Pronto, fiquem a conversando, no demoro.Bruna estava ajoelhada no tapete, arrumando os livros nas prateleiras da

    estante. Era morena e rolia. A franja compacta que lhe cobria a testa davauma certa agressividade ao rosto de traos bem-feitos mas pesados.

    Puxe a almofada e sente-se aqui ordenou ela irm. Deu-lhe umrpido beijo. E ento? Como vai mame?

    Virgnia sentou-se e enlaou as pernas. A voz saiu sussurrante: No diga a ningum, Bruna, mas acho que ela est pior. Nestes

    ltimos dias quase no sai da cama, nem a luz ela deixa acender, fica lencolhida na escurido sem dizer uma palavra, sem comer nada, olhandono se sabe o qu... S confia nele. J faz no sei quantas semanas que elenem vai mais ao consultrio, fica o tempo todo cuidando dela, voc precisaver, Bruna, voc precisa ver! s vezes ela pede que ele cante e ele comeaento a cantar. E fala como se tambm estivesse... Calou-se. Teve osentimento de que aquilo era uma traio. Mas s vezes ela melhora derepente e se lembra de tudo e conversa to bem, voc precisa ver comoela conversa!

    Bruna girou sobre a almofada. Ento est pior disse num tom em que no havia nem surpresa

    nem consternao. Apenas verificava um fato. Eu j sabia. Quem disse?Pensativamente ela colocou o livro na prateleira e tirou o seguinte, mas

    ficou com ele esquecido sobre os joelhos. Os olhos escuros parecerammenores.

    No podia deixar de acontecer isso, Virgnia. Nossa me est pagandoum erro terrvel, ser que voc no percebe? Abandonou o marido, as filhas,

  • abandonou tudo e foi viver com outro homem. Esqueceu-se dos seusdeveres, enxovalhou a honra da famlia, caiu em pecado mortal!

    Virgnia quis saber o que era enxovalhar. Conteve-se. Bruna seria capazde se irritar com sua ignorncia. Puxou um fiapo de linha solto na almofadae ps-se a enrol-lo no dedo. Mas por que a me tinha que pagar? Por ques ela?

    Foi sem querer, Bruna, foi sem querer. Que que foi sem querer? Isso que ela fez... Isso de enxovalhar.Bruna arregaou at os cotovelos a manga do suter, subitamente

    invadida por uma onda de calor. Cruzou os braos sombreados por umapenugem densa.

    Como sem querer? Como? Apertou os lbios e dilatou as narinas: J est em tempo de voc ficar sabendo certas coisas, no temcabimento falar a vida inteira como uma criana, preste ateno: nosso paiadorava a mame, sempre lhe deu tudo, ela vivia como uma rainha, simsenhora, como uma rainha! Depois que Otvia nasceu, recomendado por nosei quem, entrou em casa um novo mdico, um moo bonito, de boasmaneiras... Fez uma pausa. Um sorriso entreabriu-lhe os lbios polpudos. Era o doutor Daniel. Nosso pai descobriu logo quem ele era e expulsou-ode casa como se expulsa o demnio. Durante algum tempo andou sumido,parece que viajando. Quando voltou, voc tinha acabado de nascer e mamej estava meio esquisita, com umas manias, papai teve que intern-la nosanatrio. Ento ele tambm foi para o sanatrio e ficou tratando dela,chegou a alugar um chal ali perto e todos os dias ia visit-la no quarto.Voc est me entendendo, no? Quando ela melhorou, est claro que nossopai no podia mais aceit-la, imagine um escndalo desses.

    Ento ela foi embora porque ele mandou? Mas o que que voc queria que ele fizesse? O qu? Apaixonada

    como estava por outro homem, todo mundo comentando o escndalo. Apanhou o livro que esquecera nos joelhos e comeou a limp-lo devagar. Ainda me lembro como se fosse hoje, quando entrei no escritrio de papaipara perguntar se era mesmo verdade que mame ia viajar com voc,quando entrei ele estava to triste, mas to triste que comecei a chorar.Disse me abraando que mame precisava ir embora, mais tarde eu saberiao motivo, mas por enquanto era melhor no falar mais nela. Eu era umacriana, mas juro que nesse instante senti que ela devia ter feito algumacoisa horrvel, juro que senti isso e senti tambm que nosso pai queestava certo.

    Virgnia entrelaou as mos e deixou-as cair desconsoladamente noregao. Imaginava a cena igual capa daquele folhetim que fora distribudo

  • na rua: um homem com roupa de pera devia ser um conde expulsavafurioso pela porta afora uma bela mulher desgrenhada, que soluavaapertando contra o peito uma criancinha. A neve caa densa, em grandesflocos azulados. Estremeceu.

    Fazia muito frio? perguntou. E ao ver que Bruna voltara-seexasperada, acrescentou rapidamente: Ela chorava muito?

    At que no. Estava era muito bonita comeou Bruna num tommais brando. Seu vestido era de l verde e o chapeuzinho era preto comum vu. Quando me abraou, vi de perto sua orelha descoberta e melembro que achei a orelha delicada como as conchinhas cor-de-rosa queOtvia guardava num balde. Vou viajar, disse. E l se foi levando voc pelamo. A tarde toda a sala ainda ficou com o perfume dela...

    Virgnia comoveu-se, Bruna no confessava, mas bem que sentiasaudade da me. Tocou-lhe no brao, tentando uma carcia:

    Decerto ela j estava arrependida, no? Arrependida por qu? Pois no era isso que ela queria? Por acaso o

    outro j no estava na esquina, espera? Um segundo ao menos ela pensouem mim, em Otvia, em voc? Pensou no pai?

    Baixando o olhar, Virgnia tateou procura de um caminho diferente.Sentia-se terrivelmente culpada.

    Mas ela estava doente, no sabia o que estava fazendo!Bruna apertou os lbios. E voltando-se para a estante, apanhou um

    volume de capa preta quase tombado na penltima prateleira. Folheou-oimpaciente.

    Sabe o que isto? a Bblia. A Bblia... Mas diz que pecado ler a Bblia, Bruna! Pecado voc ler, que voc ainda criana. Eu j posso

    acrescentou detendo-se na pgina onde havia um trecho marcado com umtrao de lpis vermelho. Leu em tom solene:

    Se um homem dormir com a mulher do outro, morrero ambos, isto , oadltero e a adltera, e tu arrancars o mal do seio de Israel.

    Fechou o livro com um baque seco e recolocou-o na estante. Virgniaconcentrou-se. E de repente empalideceu. Agarrou o pulso da irm.

    Mas a me, no! S ele, no ? S ele!Com um gesto brusco, Bruna desprendeu-se e recomeou a limpar os

    livros. Parecia perturbada. O castigo j caiu sobre ela disse num tom vacilante. Franziu a

    boca em forma de pirmide. Mas ele no escapa. Ah, Virgnia, s eu seio que o nosso pai tem sofrido! Voc a caula, ficou l com os dois, nocompreende certas coisas. Otvia, a bela Otvia, s pensa nos seuscachos, nos seus desenhos, d mais ateno a Alice do que ao pai.

  • Alice? uma gata que apareceu por aqui. S comigo que meu pai conta.

    Como posso ter pena deles? E do pai? Quem tem pena do pai?Virgnia remexeu-se na almofada. A conversa ia tomando novamente um

    rumo perigoso. Bruna, o av e a av, os artistas... Eles morreram no incndio, no

    morreram? Que incndio? O incndio do teatro... No houve um incndio? Calou-se. Os sons

    dbeis do piano recomearam no exerccio. Ouvi dizer que elesmorreram queimados...

    Com um gesto impaciente, Bruna empurrou a almofada e ergueu-se. Que bobagem, menina! No houve incndio nenhum, eles morreram

    naturalmente, que ideia essa agora? Quem disse isso? Ningum, acho que sonhei desculpou-se ela enquanto esticava as

    meias. Notou ento que Bruna j usava meias compridas. Os sapatos semsalto eram os mesmos, os tanques de subir montanha, como Otvia oschamava. Mas as meias j eram compridas. Olhou-a de baixo para cima,com respeito. Ainda capaz de ser freira.

    Voc esquisita, Virgnia. Precisa deixar dessas tolices acrescentou fazendo-lhe uma carcia desajeitada. Seria bom se viessemorar aqui.

    Tio Daniel disse que vai falar com o pai, Bruna! J sabia disso? Euvenho pra c, ele disse ainda outro dia que logo-logo vai falar com o pai!

    timo. Voc precisa de ns.Frau Herta entrou empurrando o carrinho de ch. Atrs vinha Otvia toda

    vestida de branco, os sapatos brancos tambm, rigorosamente limpos. Anica nota colorida do vesturio era o lao de fita verde que lhe prendia oscabelos alourados, caindo em fartos cachos at os ombros. Ao contrrio deBruna, seu ar era vago e frgil. Delicadamente apanhou a jarra de laranja.

    Como vai esta Virgnia? Por que no tem aparecido? perguntoucom voz polida mas fria. Inclinou-se para afagar uma gata malhada que seinsinuava pela porta entreaberta: Voc conhecia esta lindura? Vamos,Alice, cumprimenta sua irm.

    Bruna empurrou a gata com o p. Com um gesto enrgico, cortou o bolo. No pede notcias da mame?Otvia pousou o copo e limpou cuidadosamente os cantos da boca com

    a ponta do guardanapo. Voltou para Virgnia o olhar sereno. Eu bem que gostaria de visit-la, voc sabe, mas papai no tem

    deixado, achei melhor no insistir... Como vai ela?Virgnia baixou a cabea. Pensou no pobre rosto com aquele sinistro

  • colorido de mscara. Pensou no corpo sumido sob as roupas. E tentouengolir o pedao de bolo que se esfarinhava na boca.

    Melhorou disse num fio de voz. Emagreceu um pouco, mas estto bonita.

    Frau Herta apanhou do cho uma torrada que Otvia atirara para a gata.Inclinou-se e tocou no ombro de Virgnia:

    No fale nunca com a boca assim cheia.Sentindo o rosto em brasa, ela ficou espera do risinho cascateante de

    Otvia ou do olhar severo de Bruna. Mas Otvia folheava uma revista eBruna tirava da sacola as agulhas de tric. Nenhuma das duas deu a menordemonstrao de ter ouvido a censura. Ento emocionou-se. Ficaram compena de mim.

    Virgnia, pare de roer as unhas, filha! pediu a Fraulein em meio aum suspiro, enquanto levava o carrinho.

    Quando voc crescer ser uma moa de mos feias. No faz mal,querida? perguntou Otvia. Tinha os olhos voltados para a revista, comose falasse com algum que estivesse ali. Ficam uns dedos grossos,tortos...

    Bruna sentou-se na poltrona. Ajeitou no colo os novelos de l. Examinouas agulhas.

    E o que tem se ela crescer de mos feias? H coisas maisimportantes do que as mos, no ?

    Virgnia afundou na poltrona e piscou repetidas vezes para disfarar aslgrimas. Mais do que tudo perturbara-a a defesa de Bruna. Ah, Otvia,Otvia!... Lanou-lhe um olhar. Mas agora Otvia retomara aquelaexpresso desligada de quem no ouve nem v. Parece a me, pensou,sentindo arrefecer o rancor. Era intocvel quando ficava assim. E tevevontade de se esmurrar nas faces que coravam por qualquer motivo, nosolhos que facilmente se enchiam de lgrimas. Delatores era a palavracom a qual a professora repudiava os que denunciavam os companheiros.Delatores.

    E como vai Daniel? quis saber Otvia fechando a revista. Acaricioua gata. Ele bonito, no? Tem umas mos...

    Otvia! atalhou-a Bruna. A boca em tringulo crispava-se feroz. Papai no quer que se fale nesse nome, voc sabe disso.

    Ela voltou para a irm a face inocente. Mas papai no est aqui agora. No estou brincando! Voc se esquece, Otvia, que nossa me perdeu

    o cu por causa dele. Mas ela no pensa assim, querida.Fazia agora parte do silncio o atrito frio das agulhas de tric. Virgnia

  • sorriu veladamente. Sentia-se solidria com Bruna mas, ao mesmo tempo,provava de um secreto prazer todas as vezes que Otvia falava em Daniel.Voltara a elogiar-lhe as mos... Por que tinha mania com mos? Que nema me, pensou voltando o olhar apreensivo para o armrio envidraado, aolado da estante.

    Atravs do vidro podia ver parte dos brinquedos que Frau Herta guardavaali. H muito as duas j no brincavam. Mas os brinquedos aindacontinuavam como que espera que viesse algum para despert-los: umaboneca de porcelana dormia sobre um trem eltrico, a mais bonita bonecade Otvia, parecia mesmo com Otvia. Virgnia sorriu para a boneca earranhou o brao da poltrona num afago dissimulado. Aconteceu ento oimprevisto: como se lhe tivesse adivinhado o pensamento, Otvia foi aoarmrio, tirou de l a boneca e colocou-lhe no regao.

    Fique com ela, querida murmurou no seu tom desatento. Einclinando-se para Bruna: Que perfeio de casaquinho! para os rfosda creche? E sem esperar resposta, apanhando um caderno de desenho: Gostaria tanto de ajudar, mas sou uma desajeitada, s consigo fazer essesrabiscos...

    Bruna inclinou a cabea para o ombro. Modstia.Virgnia teve um risinho. Era maravilhoso quando as duas rompiam.

    Sentia-se ento mais forte, quase integrada no grupo. Se no fosse Conrado viver me animando... prosseguiu Otvia

    como se no tivesse havido a interrupo. Apoiou o caderno nos joelhos ecomeou a desenhar. Sabia que ele entrou em exames? Letcia tambm.

    Bruna no respondeu. Virgnia apertou a boneca contra o peito. E se elechegasse ali agora?

    Que exames? perguntou, s para dizer alguma coisa. Ora, exames... disse Otvia com frieza. Afastou o caderno para

    examinar o desenho a uma certa distncia. Letcia est com medo derepetir o ano, mas Conrado j est garantido.

    Virgnia franziu as sobrancelhas. Letcia. Lembrava-se meio vagamentedessa irm de Conrado: era alta, ossuda e tinha dentes amarelos.

    Ela ainda est no colgio interno? Ficou semi-interna como ns respondeu Bruna sem erguer o olhar

    do tric. Agora nossa vizinha.Otvia recomeou a desenhar. Um cacho fofo de cabelo resvalou-lhe

    pelo rosto. Conrado est cada vez mais bonito e ela cada vez mais feia... E

    acrescentou com uma vozinha polida: Ningum acredita que aqueles doisso irmos, incrvel. Cada dia que passa ela vai ficando mais magra, parece

  • sabonete. Mas ela j era to magrinha arriscou Virgnia habilmente. Notou

    que Bruna, h pouco to ressentida, animara-se de repente. Piorou ento? Piorou gemeu Otvia mordiscando a ponta do lpis. Virou um

    menino to sem graa, ih!Virgnia desviou o olhar para a boneca. Ento descobriu: Bruna no

    gostava de Letcia, devia ter havido alguma coisa entre ambas. E Otviavalia-se disso na tentativa da reconciliao.

    No acho que tenha piorado propriamente comeou Bruna afetandocansao. De fato, emagreceu e est alta demais, parece um rapazinho.

    Ah, Bruna! exclamou Otvia abrindo mais os olhos claros. Noexiste no mundo ningum to sem graa, voc sabe disso. Voltou-se paraVirgnia: Domingo fomos chcara de Afonso e inventamos umasdanas. Voc precisava ver a pobre a rodar com aqueles braos e pernasque no acabam nunca, se enrascando inteira como uma aranha... Oscabelos so bonitos, concordo. E joga bem tnis. Mas no lhe pea maisnada.

    Bruna tentou recuperar a expresso dignamente magoada. Noconseguiu. Deliciava-se.

    Afonso no gostaria de ouvir voc falar assim... Afonso? Por que Afonso no gostaria? repetiu Otvia

    candidamente. Mas se ele foge o tempo todo dela!... Eu sei em quem eleest interessado, eu sei.

    Houve uma pausa. Furtivamente, Virgnia lanou um olhar a Bruna queagora tricotava com mais rapidez. Ento no havia mesmo dvida: elagostava de Afonso e tinha cime de Letcia. Mas como era possvel algumgostar de Afonso estranhou abotoando o vestido da boneca. Eradesengonado, burro, vivia chateando todo mundo com aquele queixopontudo sempre erguido. E o sorriso detestvel. Morava com os avs numachcara e dizia-se poeta. Eu sou Afonso, foi logo dizendo na primeira vezem que a encontrara. J ouviu falar muito em mim, no? Se ainda noouviu, ainda ouvir, minha menina. Ainda ouvir.

    Voc precisa conhecer a chcara murmurou Otvia tocando com olpis em Virgnia. Teve um olhar para o desenho. Arrancou a folha,amassou-a devagar at transform-la numa pequena bola. Recomeou adesenhar na pgina seguinte. Lembra, Bruna, que delcia aquelepiquenique? Sabe, Virgnia, na beira do rio tem uma rvore enorme, osgalhos mais baixos quase tocam a gua. A gente ento se dependura nelese fica com os ps na correnteza, mas isso quando Frau Herta est longe,porque seno ela tem um ataque, nunca vi ningum com mais medo de seafogar, parece a Alice.

  • Quem foi ao piquenique? Ns... Eu, Bruna, Conrado, Letcia e Afonso. Estvamos abrindo o

    lanche quando Conrado subiu na rvore, foi at o ltimo galho e ficou naponta dos ps, de braos abertos, ateno, vou voar! Um, dois, trs... e poftna gua! Caiu vestido, com sapato e tudo!

    Riram-se as duas e Virgnia acompanhou-as com um sorriso. Era essa aespcie de conversa que temia e ao mesmo tempo desejava. Por queAfonso nunca se lembrara de convid-la? Por qu? Fechou nas mos oscachos louros da boneca. De todo o grupo, s Conrado a tratava com amesma paciente doura com que tratava Otvia e Bruna. Mas Conradoestava sempre com eles, acompanhava-os o tempo todo, jamais selembraria de perguntar por ela, de exigir sua presena, Mas por que vocsno convidam Virgnia?. Sentiu-se abandonada, largada l atrs.

    No fosse ele um bom nadador observou Bruna. E quando tecoroou, lembra? Que loucura...

    Coroou? repetiu Virgnia como um eco. Pois ele fez uma linda coroa de heras e no sossegou enquanto no

    conseguiu coroar Otvia em pleno galope, os dois galopando como doidos,foi uma loucura, os cavalos podiam se assustar... E noutro tom: Porque Letcia no quis entrar no rio com vocs? Aquele trecho era raso, at aFraulein tinha deixado... Nem o mai ela vestiu.

    Fraulein no deixou? Claro que deixou. Mas a dona Letcia Sabonete no quis que o Senhor

    Afonso Queixo-Fino descobrisse que na hora em que ela tira a roupa, nosobra nada, um fio de macarro dentro dgua... Pequena esperta, hem?

    Bruna concordou gravemente. E como se obedecessem ao mesmo sinal,desataram a rir. Virgnia esboou um sorriso. A verdade que quando asduas se uniam, ela teria mesmo que ficar de fora.

    Frau Herta entrou de chapu enterrado at as sobrancelhas. Trouxe umlivro, que entregou a Bruna.

    Preparem-se, meninas, que est na hora da aula de francs. Dirigiu-se a Virgnia. Vamos, minha filha, o carro est esperando. Deixea a boneca, vamos.

    Mas Otvia me deu...As sobrancelhas ralas se contraram sob a aba do chapu. No escondia

    um cime feroz de tudo quanto era de Otvia. Voc deu, Otvia? Claro. A senhora pensa ento que ainda brinco com bonecas?

    perguntou ela com sua voz delicada. Pousou a mo no ombro de Virgnia. No prximo sbado a gente vai fazer um piquenique na chcara. Vocgostaria de ir tambm?

  • Virgnia voltou para a irm o rosto iluminado. Se gostaria? Ela aindaperguntava? Se gostaria!

    Posso mesmo?Otvia no respondeu. Apanhou o caderno e mostrou-lhe o desenho. Adivinha quem .Havia no papel um rosto oval e frgil, emergindo em meio da cabeleira

    esvoaante. Os olhos eram plcidos mas havia qualquer coisa de terrvelsob aquela placidez.

    voc, Otvia? No, mame. Somos parecidas, no? murmurou ela examinando o

    desenho com uma expresso insondvel. E j ia amarfanhar a folha quandoVirgnia a impediu. Ofereceu-lhe ento o desenho com um gesto indiferente.E deixou-se beijar na face. Diga a mame que penso sempre nela.Quando ficar melhor, a gente vai fazer uma visita, agora no adianta nada.

    Os cabelos de Otvia eram perfumados e frescos como se tivessemsido lavados h pouco. Num impulso de entusiasmo, Virgnia quis apert-lanos braos, como fizera com a boneca, mas Otvia j se esquivava. Brunadespediu-se com um aceno.

    No esquea de dizer a mame que tenho rezado muito por ela.Todas as noites rezo um tero. Deus te acompanhe.

    Virgnia seguiu Frau Herta em silncio. Mas ao passar pela porta doescritrio tocou-lhe no brao, suplicante.

    Posso? Est bem, mas s um instante, seu pai est fazendo um trabalho

    importantssimo, no deve ser incomodado.O escritrio era espaoso mas sombrio, com estantes que forravam as

    paredes at o teto. As cortinas cor de vinho estavam descerradas. Contudo,embora o dia estivesse luminoso, a luz que chegava at a mesa era tmidae frouxa. Virgnia aproximou-se na ponta dos ps, respirando compenetradaaquele cheiro morno de livros, fumo e couro. Natrcio pousou a caneta eergueu a cabea. Estendeu a mo morena e peluda.

    Como vai, Virgnia? Deus te abenoe acrescentou, recostando-se nacadeira. Acendeu o cachimbo e encarou-a com firmeza. Parecia procuraralguma coisa nela.

    Virgnia sentia as meias escorregando pelas pernas abaixo mas no tevecoragem de pux-las. Que ser que ele procura em mim?

    Estava com saudades do senhor, pai. Eu tambm estava com saudades. Quais so as notcias? Ainda sou a terceira da classe, mas dona Otlia j avisou que no ms

    que vem vou passar para o segundo lugar. Verdade? Que bom disse ele acariciando-lhe a cabea. O gesto era

  • pesado, duro. Voc bem mais estudiosa do que suas irms. Otvia,ento, caiu muito.

    Virgnia baixou os olhos brilhantes. Ele me ama, sim, ele me ama! No gosto de fazer contas.Ele franziu a boca num sorriso para fora. Mordiscou o cachimbo. Quero que tenha boas notas porque logo voc vai frequentar o mesmo

    colgio das suas irms. um colgio de freiras, um excelente colgio. Sersemi-interna como elas, vai cedo, almoa l. Esse regime vai ser bom paravoc.

    O senhor est falando srio?! Ah, papai, estou to contente! Eu queriatanto... Calou-se, emocionada demais para poder prosseguir. Viu-se nouniforme de larga saia pregueada, cor de azeitona. E a blusa branca. E assolenes meias pretas, fascinavam-na aquelas meias compridas e pretas. O almoo mesmo no colgio?

    No colgio. tarde o carro ir busc-las.Virgnia encarou-o. Tremia de emoo. No canto direito da boca, ele

    tinha um sulco mais profundo, denunciando o lugar onde ficava o cachimbo.Reparou ento que esse lado do rosto era mais velho do que o outro. E dopai? Quem tem pena do pai?

    Um dia desses minha me perguntou pelo senhor.Ele baixou a cabea. Tinha cabelos negros e luzidios. Pousou o polegar na

    brasa amortecida do cachimbo. No lhe falta nada, Virgnia? Nada.Frau Herta torcia impaciente a maaneta da porta. Vamos, queridinha? V com Deus, filha disse ele estendendo-lhe a mo. E s ento

    notou o rolo que ela apertava debaixo do brao. Que isso?Virgnia desenrolou o desenho. Durante algum tempo ele ficou a olhar a

    folha. Mas a fisionomia continuou impassvel. o retrato da mame. Eu sei. Otvia desenha bem comentou com voz neutra. Retomou a

    caneta. Ento voc j pode avisar sua professora para que providencie oboletim, precisamos do seu boletim. E de um atestado para a transferncia,a professora sabe como fazer.

    Virgnia quis perguntar-lhe quando ele iria busc-la, quis dizer-lhe aindacomo esperava pelo instante em que se mudaria, Pai, estou to contentede vir morar aqui!. Mordeu o lbio. Saiu. Era errado ir embora e contudosentia que seria errado tambm se ficasse. Encontraram Otvia que vinhavindo do jardim.

    Que que voc est fazendo, Otvia? indagou Frau Herta. Devia

  • estar preparando sua lio, no devia? Pensei que tivesse esquecido minha gramtica l fora...Esgueirando-se por entre a coluna de fcus, Conrado passou para o

    jardim da outra casa. Virgnia empalideceu. Tinha certeza de que agovernanta o notara tambm. Mas a mulher no demonstrou ter visto nada.

    Ah, essa cabecinha! V lendo os verbos que volto j. Vite, vite!Otvia inclinou-se numa reverncia graciosa. Sorriu candidamente ao se

    voltar para Virgnia. Ia-me esquecendo de uma coisa... comeou baixinho. Alargou o

    sorriso num risinho sonoro. Imagine que todas as manhs um anjo vemacordar Bruna com um beijo, j pensou? Abriu os braos num movimentolerdo de asas. Um anjo...

    A cara de Frau Herta se tingiu de um vermelho feliz. Afastou-sesimulando irritao e Virgnia seguiu-a, rindo s para lhe ser agradvel. Masde repente lembrou-se da chcara.

    Ento, ns vamos l no sbado, hem, Otvia?Otvia encostara-se no umbral da porta. Enrolava distraidamente no

    dedo um anel de cabelo. Vamos aonde? Na chcara!Ela inclinou-se para acariciar a gata que se insinuara por entre suas

    pernas. Alice, estenda esta patinha e diga adeus a nossa irm, assim... Adeus,

    Virgnia, adeus! Talvez te escreva, oh, sim, talvez... cantarolou tomandoa gata ao colo.

    Virgnia afundou na almofada do automvel. Sbado ningum mais selembraria de convid-la. Lanou um ltimo olhar s duas casas toprximas quanto parecidas. E Conrado? Quis vislumbrar a cerca de fcuspor onde ele fugira. A solido baixara em torno como uma cortina. Alideixava o pai, as irms, os vizinhos Conrado e Letcia todos os que maisa fascinavam, embora sentisse medo em meio desse fascnio. Ali ficavamos chs com bolos fofos e xcaras de florinhas azuis, tudo to perfumado,to calmo. Os jantares. O pai ocupava a cabeceira da mesa. E o copeiro dejaqueta engomada vinha trazendo os pratos. O apetite que sentia e oesforo que precisava fazer para no demonstrar a voracidade com que seatirava s tortas douradas que Otvia aceitava com ar enfastiado e Brunarecusava, No quero engordar. Falavam pouco, sim, mas nos intervalos desilncio ningum esperava, em suspense, o grito que poderia vir de um dosquartos. As noites eram suaves, entremeadas de conversas e brincadeiras.Conrado aparecia quase todas as tardes e agora havia ainda Letcia paraaumentar a roda. Afonso, embora morando na chcara, estava presente a

  • tudo. E os assuntos comuns. Os jogos. s vezes Otvia cantava com vozfraca mas melodiosa, Au clair de la lune, Mon ami Pierrot....

    Viu-se no meio do grupo. Falava desembaraadamente e todos ouviam,deslumbrados. Conrado podia tocar piano, mas desta vez no era Otviaquem cantava. Canta mais, Virgnia!, pediam. E Frau Herta concordaria:Uma artista!. O sbado na chcara. Tinha o mesmo chapelo de palha damoa da folhinha e o mesmo vestido, a longa saia aberta sobre a relvaflorida. Conrado chegaria a galope, trazendo triunfante a coroa de heras...Fechou os olhos. Agora ele subia no galho mais alto da rvore, Vou voar,Virgnia, vou voar!....

    Frau Herta pousou no seu joelho a mo ossuda: Estava dormindo? Chegamos.

    IVO boto de rosa desabrochava dentro do copo dgua. Roubou de algumjardim, concluiu Virgnia ao se lembrar das mos morenas de Lucianamergulhando a haste dentro do copo. Sempre traz uma flor pra mesa dele.

    Percorreu com olhar atento o pequeno cmodo que era o escritrio deDaniel. Tudo continuava exatamente igual ao dia em que entrara ali pelaprimeira vez. No entanto, nos mveis, no tapete pudo, nos livros, pareciahaver uma poeira muito fina, quase impercept-brvel de to fina, massuficiente para dar a tudo uma embaada atmosfera de abandono. Desdeque Laura piorara ele no saa quase do quarto e h muito no o via estirar-se naquela velha poltrona, como sempre fizera depois do jantar e ali ficarouvindo msica. Deixava a porta aberta para atender enferma caso elachamasse. Mas nesse tempo ela dormia cedo, disciplinada como umacolegial. E ele se punha a ler pela noite adentro, a msica em surdina navitrola. Os discos que punha para tocar eram sempre os mesmos e tinhamum som um pouco gasto, como se estivessem esgotados. Mas ele osrepetia dez, vinte vezes sem parar. Da cama, Virgnia habituara-se quelamsica remota e contudo ntida. A princpio, achara-a sem sentido. Mascerta noite, na escurido do quarto, ao ouvir os discos que j sabia fazeremparte do lbum de Beethoven, recebera-os com um obscuro sentimento decumplicidade. A msica tinha um enredo e desfiava esse enredo como umapessoa amiga que entrava para uma visita, uma pessoa muito amiga masmuito estranha, que ora chorava, ora ria, repetindo de vez em quando ocomeo da historinha: Sabe, Virgnia, eu vou contar, era uma vez.... Ashistrias comeavam bem, mas de repente tomavam um rumo imprevistoe vinha um assunto que nada tinha a ver com o incio, ramificavam-se.Eram queixas, protestos, ela j os conhecia de cor, Agora vem a raiva,

  • mas j vai passar. E de fato, logo aps vinham sons brandos, lentos, comoque cansados devido ao acesso. E a histria recomeava numa obsesso,Sabe, Virgnia, mas eu estava contando... Era um amigo difcil, triste, porisso mesmo era preciso ter pacincia com ele.

    Virgnia deslizou a mo pelo lbum de discos. Contornou com as pontasdos dedos, uma por uma, as letras douradas: Beethoven. Assobiou baixinhoo comeo daquela histria que ele nunca conseguia terminar: Parece a mefalando. Vai ver que era louco tambm.

    Desviou o olhar para o boto de rosa em cima da mesa. E suafisionomia enrijeceu-se. Via na corola que se entreabria a face escura deLuciana. Aproximou-se mais. Ao lado da pasta de couro, de um verdeamadurecido, estava o porta-retrato tambm verde, com raminhos de trevonas cantoneiras da moldura. Em outros tempos as folhas deviam ter sidodouradas mas agora lhes restavam vestgios apenas de um ouro j sembrilho. Na fotografia ensolarada, Laura sorria para o fotgrafo invisvel.Tinha o tronco teso e as mos docemente pousadas nos braos da cadeirade vime. Parecia despreocupada como uma menina de cabeleira solta esuter. Virgnia ainda olhava o retrato mas pensava agora na manhanterior, quando encontrara a enferma assim tranquila, a blusa abotoada ato pescoo e os cabelos puxados levemente para trs, desatados na nuca.Animara-se ao v-la to bem, chegara a acreditar ser mesmo possvel. Epor que no? pensou tomando entre as suas as mos descarnadas. Asfaces estavam macilentas e o olhar tinha qualquer coisa de estagnado,visto mais de perto. Contudo, na voz, nos gestos, no olhar havia algo que afazia mais real, mais palpvel, ela que se tornara uma figura tnue comoum sonho na escurido. Mezinha, escuta! comeou sofregamente. Houve uma festa to bonita na escola, voc precisava ver! acrescentaraajoelhando-se ao lado do div. E contara-lhe os ltimos acontecimentos,exagerando alguns, inventando outros, dando narrativa um tom febril dealegria. Cada menina representava uma estao do ano. Eu... reviu-seentre as rejeitadas no fundo da sala, os olhos pregados no palco, as mostorcendo o programa. Eu fui a Primavera. Dona Otlia fez nossos vestidosde papel crepom, o meu era cor-de-rosa, todo cheio de flores, e na cabeaeu tinha... Num galope desenfreado passou Conrado coroando Otvia. Nacabea eu tinha uma coroa de heras! Minha colega Natividade foi o Outono,entrou danando na pontinha dos ps com uma bandeja de frutas. Mas derepente escorregou numa papoula e caiu com bandeja e tudo em cima dosconvidados, ah! me, voc no faz ideia como foi engraado! Laura riuinclinando a cabea para o peito, mas quando ergueu novamente o rostotinha uma expresso desamparada. Torceu as mos: Meu amor, vocprometeu! O sanatrio, no, voc prometeu, diga que me ama e que vai

  • ficar comigo, diga!, suplicara com voz quente de paixo. Decerto meconfundiu com tio Daniel, pensou Virgnia recolocando o porta-retrato namesa. Mas por que com ele? Por qu? Encolheu os ombros. Os loucostm umas coisas, nunca se sabe.

    Abriu o tinteiro. Estava seco. Evasivamente, contornou a pasta de couro,raspando de leve os pingos de tinta percept-brveis num dos cantos. Emseguida fez girar o cinzeiro de vidro riscado no meio por um profundoracho. Revolveu superficialmente a cinza e avanou at tocar no copo.Ento, num gesto rpido, preciso, agarrou o boto de rosa e escondeu-o nobolso do avental. Foi quando sentiu que havia algum atrs, parado na porta.Estremeceu. Luciana. Resistindo ao desejo de se voltar para ver, ps-sea assobiar baixinho, fingindo examinar os livros da estante. Digo queguardei o boto para pr dentro de um livro, resolveu e voltou-se para aporta. Era Daniel. Tinha as mos metidas nos bolsos e uma expressoansiosa no olhar. A barba crescida punha uma sombra azulada na pele corde cera.

    Posso ajudar, Virgnia?Nos lbios dela o assobio era agora um soprozinho sem melodia.

    Surgindo assim inesperadamente, Daniel parecera-lhe uma outra pessoa, umdesconhecido, mas to cansado que seu primeiro impulso fora correr paraabra-lo e retribuir-lhe a pergunta: Posso ajudar?. Reparou na gravataverde que ele trazia frouxamente retorcida. O drago esverdinhado que SoJorge esmagou pode ficar s vezes to branco como um cordeiro. precisoenfrent-lo, advertira-lhe, a boca em forma de pirmide. Enfrent-lo!

    Eu queria o dicionrio mentiu ela cravando as unhas na corola daflor. Tem uma palavra que no sei o que quer dizer.

    Lentamente ele deslizou a mo pelas lombadas dos livros. Apanhou um eabriu-o.

    Qual a dvida? Deixa, tio Daniel, eu mesma encontro interveio rpida. Ps-se a

    folhear afobadamente o volume, procurando uma palavra qualquer queservisse de pretexto para sua presena ali. E de repente lanou a Daniel umolhar malicioso. Comea com e... A palavra enxovalhar, enxovalhar... Estaqui! E leu triunfante: Sujar, manchar, enodoar.

    Voc precisava desta palavra? Uma palavra to pesada, ruim. Mas tem gente que faz isso com os outros. Bruna disse que conhece

    algumas pessoas que enxovalham as outras. E Bruna no mente.Daniel sentou-se na poltrona. Baixou os olhos para os sapatos

    embaados. Virgnia, voc uma menininha ainda e no devia... Bateu as mos

    espalmadas sobre os joelhos. Parecia agora falar consigo mesmo, abstrato

  • e exausto. O Senhor sabe que eu faria tudo para que ao menos ela sesalvasse. Tudo, meu Deus, tudo.

    Calou-se apertando os maxilares. Virgnia aproximou-se cautelosa. E viuento que os olhos dele estavam cheios de lgrimas. Ah! como era difcilodi-lo naquele momento. Bruna, ele est to aflito, eu no estou maiscom raiva, depois posso ficar, mas agora no! Dentro do bolso, suas mosse abriram e se fecharam em torno da corola dilacerada da flor. Umespinho picou-lhe o dedo. Foi o sinal. Profunda como a dor da picada, a vozde Bruna voltou implacvel: E do pai? Quem tem pena do pai?.Retrocedendo, ela desviou de Daniel a face enrijecida. Vagou o olhar pelamesa e acabou por fix-lo no retrato de Laura, que parecia esperarpacientemente por um sinal do fotgrafo para ento se levantar e irembora.

    Ela piorou? Voc ia me dizer outra coisa, Virgnia. No quer dizer mais? Hum?O vento descerrou a janela. Agitaram-se as cortinas emurchecidas. Ela

    inclinou a cabea para o ombro e abriu as mos. No sei, tio Daniel, no sei o que eu ia dizer antes.Ele recostou a cabea no espaldar da poltrona. No? Virgnia, voc fez agora um gesto que fazia quando era

    pequenina assim... Quando qualquer pessoa se despedia e ia embora, vocficava olhando para o lado por onde a pessoa tinha desaparecido, abria osbraos e repetia, ah!... cabou!... cabou!... Ento dava uma certa tristezaporque a gente ficava com a impresso de que a pessoa no voltaria nuncamais, que estava mesmo tudo acabado, acabou-se! Pois , acabou-se.

    Acabou-se o qu?Ele abriu os braos, imitando-lhe o gesto. Em seguida, acendeu um

    cigarro. Sorria ainda. Nada, meu bem, eu estava pensando noutra coisa.Virgnia aproximou-se. Baixou o tom de voz: Ela piorou, sim. E Bruna disse que... que depois de um certo ponto... Eu sei. Mas ela no vai chegar a esse ponto. Ento vai sarar?Ele demorou para responder. Encarou-a: Tambm no.Inclinando-se dolorosamente, Virgnia agarrou-o pelos ombros. Mas no vai morrer, hem, tio Daniel? No isso?! Fala, tio Daniel,

    fala!Uma lufada de vento escancarou a janela. As cortinas quase tocaram no

    teto. E no mesmo instante tudo se aquietou novamente. Ele voltou o olharpara o cu de ao.

  • Que que voc entende por morrer?A pergunta f-la vacilar. Levou o polegar boca e ficou passando a

    ponta da lngua na unha roda. Morrer, morrer... Pensou em Isabel, a irmgmea de Margarida. Tinha morrido um ms depois da primeira comunho etodas as alunas do catecismo foram v-la. Estava vestida de branco, com acoroa de lrios de pano no alto da cabea e um ramo de jasmins na mo.Parecia mais branca e to satisfeita no seu caixo cor-de-rosa que ningumtinha vontade de chorar ao v-la assim. a vontade de Deus, dizia a meassoando-se no leno limpo, nesse dia tudo pareceu-lhe mais limpo e maiscalmo naquele poro. Tambm a morte lhe pareceu uma coisa clara.Simples. Era a vontade de Deus. E essa uma vontade forte, pensou. Mashavia a andorinha que sepultara certa manh numa caixa de sapatos,debaixo do pessegueiro: desenterrara-a alguns dias depois para ver o quehavia acontecido. Aquilo era a morte.

    Os bichos comem a gente.Ele tocou-lhe a mo. Mas a gente no s isso, entende? Dentro desse corpo, Virgnia, h

    como que um sopro, isso o que a gente de verdade. E isso no morrenunca. Com a morte esse sopro se liberta, vai-se embora varando asesferas todas, completamente livre, to livre... O corpo se apaga como umalmpada, esfria como... E Daniel fez uma pausa, vagando o olhar emredor. Exatamente como um ferro de engomar que voc desliga: assimque a tomada arrancada, o ferro vai esfriando, esfriando e se transformaapenas num peso morto, sem calor, sem vida. A diferena que o calor doferro eltrico se perde quando desligado, ao passo que esse calor dassuas mos, esse brilho dos seus olhos, esse sopro, esse alento... Calou-se. Apertou um pouco os olhos que refletiam uma intensa paz. Ah, meubem, se eu pudesse faz-la entender! Triste o que est acontecendoagora e no o que vem depois.

    Entendo, tio Daniel, entendo. O senhor quer dizer que a morte, para aminha me, ser muito melhor do que a vida. Mas... e se ela sarar, sepuder viver como todo mundo?

    Ele deixou cair no cinzeiro o cigarro que se apagara. Uma vez, quando eu era menor ainda do que voc, brincava com um

    espelhinho beira de um poo da minha casa, eu morava numa fazendameio selvagem. O poo estava seco e era bonito o reflexo do espelhinhocorrendo como uma lanterna pela parede escura, sabe como , no? Mas derepente o espelho caiu e se espatifou l no fundo. Fiquei desesperado, tinhavontade de me atirar l dentro para ir buscar os cacos de meu espelho.Ento algum acho que foi meu pai levou-me pela mo e me consoloudizendo que no adiantava mais nada porque mesmo que eu juntasse um

  • por um os cacos todos nunca mais o espelho seria como antes. Sabe,Virgnia, vejo Laura como aquele espelho despedaado: a gente pode ir l nofundo e colar os cacos, mas tudo ento que ele vier a refletir, o cu, asrvores, as pessoas, tudo, tudo estar como ele prprio, partido em milpedaos. Veja bem, triste no o que possa vir a acontecer... A morte, porexemplo. Triste o que est acontecendo neste instante. Ela tem a cabeadoente, o corao doente. E no h remdio. S o sopro l dentro quecontinua perfeito como o espelho antes de cair no cho.

    E ele vai at Deus? Depois da morte? Sim, vai at Deus.Virgnia fixou o olhar no cu. No catecismo, o padre chamava aquilo de

    alma. Se era pura, ia diretamente para o jardim divino que resplandeciacomo um sol, com anjos corados e gordos voando em bandos pelo espaoafora, com flores e mais flores brotando dos canteiros de nuvens dispostasem crculos em redor de um trono de ouro. Harpas eram tocadas pelosanjos maiores. Concentrou-se. Como seria o som das harpas? No, harpano servia, violino mesmo, que este conhecia bem. Anjos maiores tocavamviolinos. E em meio dos resplendores, a me linda, linda, ajoelhada aos psde Deus.

    Voltou-se para Daniel. Mas ele agora parecia absorto na leitura de umlivro que apanhara na mesa. Leu brandamente:

    Last night I flew into the tree of death;Sudden an outer wind did me sustain;And I, from feathered poppet on its swing,Wrapt-br in my element, was bird again.

    Calou-se, fechou o livro e teve um sorriso para o pequeno rostointerrogativo e grave.

    Esses versos, Virgnia, so de um poeta ingls, um dia voc ainda vaiconhecer tudo isso acrescentou estendendo-lhe o livro. Fique desde jcom ele, esse um autor que voc vai amar.

    Ela recebeu o livro e apertou-o contra o peito. Bruna no a perdoarianunca se a visse assim. Mas Bruna estava longe. Ningum saber, Danielparecia lhe dizer com um olhar de conspirao. Sorriu para si mesma. E deualguns passos vacilantes em direo porta. Deteve-se e indicou o lbumde discos:

    Tio Daniel, ele tambm era louco?Daniel levantou-se. Acendeu um cigarro. Beethoven? No, no era louco. que todos eles eram assim

    diferentes, entende? Principalmente Beethoven, que era muito infeliz. Surdo,feio...

  • Ela atalhou-o com vivacidade: Ento foi por isso. Por isso o qu? Ele era feio, tio Daniel. Por isso ficava s vezes to furioso, como se

    quisesse xingar... Ento tocava. muito ruim ser feio.Daniel tomou-lhe o queixo. Acariciou-o. Mas, meu bem, por que voc fala assim? Eu sou feia. Voc, feia? Que ideia! Oua, Virgnia, agora voc uma menininha

    ainda e nada disso tem a menor importncia, as meninas precisam serboas e saudveis, s isso importante. Mas quando voc crescer, ento,sim, ento vai ficar bonita, eu tenho certeza que vai ficar uma moa tobonita! Passou de leve a mo pela cabea desalinhada. Ser morena equieta como a tarde, de uma beleza quase velada. E ter olhos de espanto,lustroso, como os da gazela.

    Gazela? um bichinho de pernas compridas e olhos grados assim como os

    seus. Amar a msica e a poesia. E um belo dia conhecer um prncipe quese ajoelhar aos seus ps. Virgnia, meu reino te espera!

    No, no! exclamou ela em meio a um riso estridente. Eu digoque no e o prncipe vira um sapo!

    No silncio que se seguiu ela pde ouvir o prprio riso ir-se desfazendoaos poucos. A me pairando entre nuvens de anjos, o prncipe montado numcavalo branco, a fascinante imagem do seu rosto futuro tudodesapareceu como uma bolha ao tocar o cho.

    E Luciana?Ele desviou o olhar do pequenino rosto que se recompunha, desconfiado.

    Astuto. Quebrara-se o encantamento. Que que tem Luciana? Ela vai continuar aqui com vocs? Quero dizer, depois que eu for

    embora... Sim, continuar aqui, se quiser. Tem sido to nossa amiga, no

    mesmo? Mas oua, Virgnia, no se preocupe mais com os outros, eucuidarei da sua me, Luciana cuidar de mim, algum h de cuidar dela, nopense tanto em ns, pense agora em voc morando com suas irms e seupai naquela casa to bonita, pense na sua vida l com eles, nos seusestudos, nas suas festas... Ns nos arrumaremos, fique tranquila. Faa deconta que isto um barco que est querendo afundar, voc precisa irdepressa para um outro, entendeu?