cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · monografia apresentada ao curso...
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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Thamyres Ribeiro Dalethese
Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática cineclubista na universidade
Rio de Janeiro
2013
Thamyres Ribeiro Dalethese
Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática cineclubista na universidade
Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), como requisito para a obtenção do grau de
Licenciatura em Pedagogia. Orientadora: Profa. Dra. Adriana Hoffmann Fernandes
RIO DE JANEIRO
2013
UNVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCH
ESCOLA DE EDUCAÇÃO - EE
CURSO DE PEDAGOGIA
Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática
cineclubista na universidade
Thamyres Ribeiro Dalethese
Aprovada em ______/______/__________
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Adriana Hoffmann Fernandes (orientadora)
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Charles Feitosa
(examinador externo)
Rio de Janeiro 2013
Dedico este trabalho a todos os professores e professoras deste país que encontram no e com o cinema formas
outras de pensar e fazer educação.
Agradecimentos
À todas as pessoas com quem atravessei e me atravessaram nessa trajetória
que percorri na UNIRIO.
À minha querida orientadora Adriana, pela sensibilidade, carinho e por acreditar
em mim.
Ao professor Charles, pelos encontros em Nietzsche.
Aos integrantes do grupo de pesquisa Cine Narrativas, pelas reflexões,
provocações e aprendizados com e sobre cinema, cujos rastros se desdobram
nesta monografia.
Aos amigos e amigas com quem criei redes de afeto e conhecimento nesta
passagem e me formaram para além de mim: Anna Paula Anselmo, Victor
Junger, Aldenira Mota, Camila Souza, Debora Gherman, Deborah Luna, Igor
Helal, Lucia Romanholli e Tiago Ribeiro.
À Amanda e Bruna, pela amizade, parceria e cumplicidade de toda vida.
À Lia e Paulinho, por tudo e sempre.
Resumo
O texto produzido para esta monografia apresenta mais do que resultados, mas
reflexões e ações tecidas ao longo do trabalho realizado no contexto de uma pesquisa com jovens participantes de um cineclube universitário. No âmbito do projeto de pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens em diferentes
contextos educativos vinculado ao grupo de pesquisa Cine Narrativas da
Escola de Educação da UNIRIO, integrei o eixo que tinha a pretensão de compreender como esses sujeitos constroem sentidos formativos com o
cinema no contexto da formação acadêmica. Neste estudo de natureza qualitativa, situo o projeto de extensão Cine CCH que funciona na UNIRIO desde agosto de 2010 com exibição mensal de filmes seguido de debates,
como espaço em potencial para investigar possíveis relações formativas com imagens e narrativas cinematográficas fora do circuito comercial e de entretenimento. Para tanto, busco articular estudos na linha de Cinema e
Educação que contribuam na reflexão de como o cinema pode fomentar processos de formação cultural e social, bem como a importância social da prática cineclubista na consolidação de sentidos coletivos e dialógicos pelos
sujeitos envolvidos. Infere-se nisto o conceito de pesquisa-intervenção que fundamenta o percurso teórico-metodológico da pesquisa, considerando a tessitura de ações, movimentos e falas dos participantes como elementos que
atuam, interagem e intervêm continuamente na pesquisa. Com isso, reflito como essas tramas criadas no campo revelam pontes ou métodos tanto na composição do trabalho do pesquisador, quanto na estrada que os próprios
participantes do projeto atravessam na universidade. Com o fim de perceber como a participação no Cine CCH pode se traduzir em momentos de formação, recorro aos conceitos de narrativa e experiência, respectivamente dos filósofos
Walter Benjamin e Jorge Larrosa. Para tanto, entende-se o cineclube Cine CCH como espaço possível para experiências formadoras através de ações e encontros dialógicos, plurais e criativos permeados pelo cinema nos quais
diferentes olhares, vozes e saberes se perpassam e se alteram, configurando processos de permanências e (trans)formações.
Palavras-chave: Cinema; Formação; Narrativa; Experiência.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9
1- CINEMA QUE EDUCA: A DIMENSÃO FORMADORA DE FILMES E
CINECLUBES ...................................................................................................... 13
1.1 - A formação com, para e além do cinema ................................................... 14
1.2 - O sujeito-espectador de filmes .................................................................... 18
1.3 - Cineclubismo, encontros e aprendizados com o cinema ........................... 21
2 – CAMINHOS, MÉTODOS OU ATRAVESSAMENTOS – O PERCURSO
TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA ................................................... 26
2.1- O campo e os sujeitos que (se) atravessam (n)a pesquisa ........................ 27
2.2 – A Pesquisa-intervenção como conceito atravessado ................................ 31
2.3 – Narrativas e experiências como desdobramentos da pesquisa................ 35
3 – “CINEMA É UM ACONTECIMENTO”: ATRAVESSANDO NARRATIVAS E
NARRADORES .................................................................................................... 43
3.1 – Narrativas com o cinema, memórias de vida ............................................. 44
3.2 – Narrativas com o cinema e a universidade ................................................ 50
3.3 – Narrando o Cine CCH, a universidade atravessada pela experiência
cineclubista ........................................................................................................... 53
A PESQUISA COMO ACONTECIMENTO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS .... 59
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 63
ANEXOS ............................................................................................................... 66
Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite
sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista
possuem sentido e valor próprios até os desacertos da
vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os
adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada
em tarefas que ficam além d’a tarefa. Nisto se manifesta
uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência:
quando o nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo) seria a
fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se,
empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a
própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo,
viver para outros e outras coisas pode ser a medida
protetora para a conservação da mais dura subjetividade.
Nietzsche
9
INTRODUÇÃO
O homem do século XX jamais seria o que é se não tivesse entrado em contato com a imagem em movimento [...] (ela) não apenas transformou a maneira como se dá a criação, mas, também, a maneira como os seres humanos percebem a realidade (DUARTE, 2002, p.17).
Em tempos atuais, é impossível pensar as relações e práticas humanas
sem a presença de artefatos audiovisuais. A epígrafe desta introdução sublinha
o caráter intrínseco que estas mídias assumem nos modos de existência na
contemporaneidade, na medida em que elas perpassam e se entrelaçam
continuamente às nossas experiências e vivências cotidianas. De fato, vemos
como as imagens se tornaram elementos decisivos para os sentidos nas
sociedades atuais, estando as gerações mais recentes desde muito cedo
imersos num universo cultural permeado por narrativas veiculadas através de
imagens, sons e movimentos. Tais narrativas são características de nossa
época, habitam nossas vidas e intervém em nossos modos de aprender e de
existir. (FISCHER, 2007)
Neste contexto, considerar os meios audiovisuais como constituintes da
vida contemporânea significa reconhecer que estamos sob constante exigência
de dominar diferentes linguagens que operam fortemente em nossas práticas
sociais como a televisão, a Internet, o celular, a fotografia, entre outros.
Certamente, o cinema constitui um desses meios significativos em tempos de
sociedades audiovisuais, desempenhando papel relevante na vida social e
cultural das pessoas. Tomando esses pressupostos o cinema se torna foco
desta pesquisa por acreditarmos na sua força expressiva na formação dos
sujeitos no tempo em que vivemos.
Esta monografia alinha trabalhos elaborados no contexto do projeto de
pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens em diferentes contextos
educativos1 coordenado pela professora Adriana Hoffmann, desde agosto de
2010, dentro do qual investiga-se as relações formativas que crianças e jovens
1 GRUCIN (Grupo de Pesquisa Cine Narrativas) integra a linha de pesquisa “Práticas Educativas,
Linguagens e Tecnologia” do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO).
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criam com o cinema em espaços de educação formal. Neste grupo, integrei o
eixo da pesquisa realizada com jovens estudantes no espaço de um cineclube
universitário. Trata-se do projeto de extensão Cine CCH: aprendizagens com o
cinema2, onde atuei ao longo de dois anos como voluntária, pesquisadora e
estudante de Pedagogia da UNIRIO instigada a pensar e investigar os modos
com que os jovens do ensino superior constroem relações formativas com o
cinema no âmbito da formação acadêmica que atravessam.
No primeiro capítulo, procuro traçar referenciais teóricos articulando
estudos brasileiros na linha de Cinema e Educação (Duarte, 2009; Fantin,
2006; Fresquet, 2007) que contribuam na problematização do cinema na
formação geral dos sujeitos. A importância atribuída ao cinema em pesquisas
da área da educação ajuda a nortear o entendimento do papel social que ele
exerce em nossas vidas, intervindo nas dimensões cognitiva, política, afetiva,
cultural e identitária dos indivíduos. Dialogo também com pesquisas de
recepção, sobretudo autores dos Estudos Culturais Latino-Americanos
(Orozco, 2009; Martín-Barbero, 1997) para argumentar como concebo os
sujeitos da pesquisa, enfatizando o lugar de espectadores que produzem
cultura e criam sentidos com o que assistem. Para tanto, destaco estudos
(Matela, 2008; Gusmão, 2008; Silva, 2009) que discorrem sobre o papel
pedagógico dos cineclubes como espaços privilegiados na consolidação de
ações e relações coletivas de aprendizado e experiência.
No segundo capítulo, apresento o campo de pesquisa Cine CCH
delineando as estratégias teóricas e metodológicas, as motivações e
envolvimentos que empreendi nesta trajetória. De natureza qualitativa, o
presente estudo adotou a concepção de pesquisa-intervenção por considerar
que “todo dispositivo de pesquisa transforma o que se deseja pesquisar”
(CASTRO, 2010, p.29) na medida em que acaba sendo atingida direta e
indiretamente pelos movimentos dos próprios sujeitos que nela estão
envolvidos, assim como estes também são afetados pelo projeto. Assim, as
experiências construídas pelos participantes no Cine CCH constituem pistas e
2 Projeto de extensão vinculado à Escola de Educação da UNIRIO que funciona desde agosto de 2010 no
Auditório Paulo Freire no prédio de Ciências Humanas e Sociais da UNIRIO. Blog: cinecch.blogspot.com
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rastros a serem seguidos pela pesquisa, bem como imbricam no caminho de
formação pelo qual atravessam na universidade.
Junto a estas proposições, busco refletir com os conceitos de narrativa
de Walter Benjamin (2012) e a noção de experiência pensada por Jorge
Larrosa (2002). Ambos teóricos contribuem enormemente na ação de
pesquisar e analisar como os sentidos que são criados e compartilhados ao
longo do projeto e dizem respeito a formação deles e ao caminho da própria
pesquisa. Assim como os rastros produzidos nos sujeitos através do encontro
com o cinema são imprevisíveis, o caminho metodológico também não pode
ser previamente definido, sendo permanentemente construído e reconstruído
ao longo dos debates, reflexões e relações vistos, registrados e analisados. A
partir de uma discussão aprofundada, reflito a interlocução entre esses
conceitos dos autores para entender as relações possíveis com o cinema para
além do entretenimento, que consubstanciam em dimensões formadoras.
E por fim, trago no capítulo 3 as falas tecidas nas entrevistas
desenvolvidas com alguns dos freqüentadores mais assíduos do Cine CCH,
enfatizando suas experiências com o cinema ao longo da vida e as relações
construídas com o cinema na universidade. Desse modo, analiso as
interpretações de seus relatos dialogando com as reflexões traçadas nos
capítulos anteriores.
Por atalhos e pontes multivocais e multissituacionais, este estudo é o
resultado da tessitura de diferentes vozes e olhares. Portanto, antes de se
tornar uma monografia, este texto é um lugar de acontecimentos que ecoam
das inúmeras conversas, ações e reflexões que venho tecendo e que têm feito
redes em mim nesses encontros na pesquisa e na universidade permeados
pelo cinema.
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13
1- CINEMA QUE EDUCA: A DIMENSÃO FORMADORA DE FILMES E
CINECLUBES
Neste capítulo pretendo trazer algumas proposições que possam
orientar o debate sobre a pedagogia do cinema, no sentido de refletir como a
prática de assistir filmes pode se constituir em experiências formadoras.
Estudos que articulam cinema e educação vêm se ampliando no campo
acadêmico do Brasil, dando relevo à discussões que apontam para as
possíveis relações entre o cinema e a formação geral das pessoas. Para tanto,
busco dialogar com alguns desses trabalhos, traçando referenciais teóricos e
metodológicos que possam conduzir na problematização de como as imagens
fílmicas podem atuar como elementos fomentadores nesse processo.
Primeiramente, torna-se pertinente fazer uma breve distinção entre os
termos filme e cinema que serão recorrentes, intercambiando-se
constantemente ao longo de todo texto. Esta necessidade surge pela
importância sinalizada por alguns teóricos em reiterar as diferenças de
natureza e efeitos em que ambos se consolidam.
É o filme, como apropriação individual em larga escala, que viabiliza o cinema como negócio, consumo social e mídia de massa. O cinema oferece aos espectadores um cardápio de emoções codificadas através dos gêneros e autores cinematográficos. Esses cardápios são expostos por meio de sinopses dos filmes, de trailers, de reportagens – que começam a ser veiculadas antes mesmo do início das filmagens –, de comentários críticos publicados em jornais, revistas, programas de TV. (FRANCO, 2010, p.11)
Enquanto filmes são produtos de consumo, o cinema se apresenta como
algo mais abrangente, abarcando um universo muito mais amplo que pode se
estender a fenômenos sociais, teorias do cinema, celebridades, mercado.
Compreende-se que apesar do ato de assistir a um filme numa sala de
projeção e desfrutá-lo sozinho em casa constituírem modos distintos de
experienciá-lo, ambas maneiras funcionam dentro do dinamismo de uma
cultura do cinema (COELHO, 2012) na qual o sujeito se forma tanto quanto
participa e também intervém. A significação dos filmes nunca funciona
isoladamente, mas emerge de sentidos produzidos e apropriados
coletivamente, compondo-se na associação a informações em contextos
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diversos, nas conversas com outros espectadores e na própria experiência com
outros filmes.
Na impossibilidade de desassociar os conceitos de filme, cinema e
cineclube no percurso deste estudo, tomei por escolha trazer esses termos
compreendendo que é somente na relação de coexistência que os três
funcionam. Em outras palavras, filmes, linguagem cinematográfica e cineclubes
são aparatos culturais intrínsecos ao expansivo universo do cinema, portanto
falam de uma cultura de cinema. Ao comporem uma determinada dinâmica da
vida cultural de homens e mulheres, o consumo freqüente de filmes, a
participação em cineclubes também atuam na formação de valores éticos e
estéticos, de perspectivas de mundo e gostos, assim sendo, portam uma faceta
educacional.
Tendo isso esclarecido, cabe salientar que ao conectar cinema e
educação não me atenho à debates estritamente pedagógicos entorno de
atividades e propostas educativas com a arte cinematográfica. É recorrente na
área educacional o cinema ser tratado como instrumento pedagógico, ou
simplesmente colocado à margem das práticas de ensinoaprendizagem. O seu
uso reducionista como ferramenta didático-pedagógica ou mero entretenimento
já é refutado por alguns estudiosos da Educação, tais como Duarte (2009),
Fantin (2006) e Fresquet (2007) que compreendem a pedagogia do cinema
num sentido mais abrangente de criação, consumo e prática social que atua
em processos de formação dos sujeitos.
1.1 - A formação com, para e além do cinema
Quando pensamos na noção de formar sujeitos, entendemos a formação
que se dá com, para e além do cinema, de acordo com parte do que sugere
Fantin (2006) em seu estudo sobre cinema e produção audiovisual na escola.
Nesta pesquisa, a autora discute sobre possibilidades educativas na relação
entre crianças e cinema, propondo diferentes modos de lidar e trabalhar com o
cinema no âmbito da educação escolar como meio de comunicação, objeto de
estudo ou instrumento pedagógico. No entanto, partindo de uma perspectiva
ecológica de mídia-educação, Fantin (idem) defende a inter-relação dessas três
possibilidades que se entende numa proposta de educar com o cinema
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enquanto recurso em atividades educativas que, mesmo sendo utilizado como
objeto de apoio, implique também no trabalho de educar para a linguagem
cinematográfica estimulando a produção audiovisual dos sujeitos, permitindo
assim que estes desenvolvam posturas participativas e criativas de interagir e
intervir ativa e criticamente sobre as múltiplas facetas e percepções que o
cinema atinge e permeia.
Puxando alguns fios desta perspectiva, compreende-se o potencial
formativo do cinema enquanto meio e prática social de uso, consumo,
produção e fruição possíveis de ampliar e transformar modos de interação e
criação com a realidade. Assim, penso, sobretudo, na formação que permite ir
além do cinema, entendendo que a relação construída com imagens fílmicas
possibilita a construção significativa de sentidos, olhares e afetos para outras
dimensões da vida, fiando e desfiando redes outras de saberes.
Compartilho da ideia de que a experiência com o cinema que cria
significações e sentidos para pensar e agir no mundo, que intervém, inquieta e
afeta valores, gostos, memórias, sentimentos e ideias produzidos e partilhados
coletivamente é a que nos (trans)forma. Como prática social, o cinema
promove aprendizados, interações e experiências das mais variadas naturezas,
estabelecendo profundas relações afetivas, políticas, culturais e sociais com as
pessoas. Debater sobre o sentido pedagógico do cinema repousa neste
entendimento de que imagens cinematográficas participam de modo
significativo na constituição de formas de ver e se relacionar com o mundo,
tecendo fios de suas narrativas nas redes culturais que nos enredam e que
também enredamos.
Ao colocar o cinema ao lado de obras filosóficas e literárias, Duarte
(2009) argumenta em favor do papel significativo dos filmes na formação
cultural e educacional dos sujeitos, admitindo-os como expressão legítima de
conhecimento. Para ela, tão necessário quanto o domínio de códigos da
escrita, o contato com filmes também pressupõe uma prática de leitura, de
interpretar e desenvolver habilidades com códigos e estruturas próprios da
“gramática” cinematográfica como planos de câmera, iluminação, som e
edição. Por isso a relação com o cinema não se reduz apenas a prática de
assistir filmes, mas se configura, sobretudo, na apropriação de significados de
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uma linguagem, na ampliação e construção de formas de leitura e experiências
com o cinema e com o mundo.
Em tempos de culturas midiáticas (FANTIN, 2007), a noção de leitura é
tomada dentro de uma perspectiva em que múltiplas linguagens de
representação escrita, visual, digital e musical interagem e transitam
expressivamente pelos meios e práticas da vida contemporânea. Certamente
os filmes circulam fortemente nesse repertório de mídias no qual estamos
imersos, considerando o valor expressivo que elementos veiculados em
imagem e som têm para as gerações mais recentes. No entanto, estar inserido
numa cultura protagonizada pelas mídias não implica numa participação e
recepção necessariamente ativa e interativa com artefatos audiovisuais que
nos chegam.
[...] parece urgente pensar em uma outra possibilidade de ensinar as crianças a ver filmes, tendo como objeto construir com elas os conhecimentos necessários para a avaliação da qualidade do que veem e para a ampliação de sua capacidade de julgamento estético, partindo do princípio de que o cinema é uma das mais importantes artes visuais da atualidade, com um imenso poder de atração e indiscutível potencial criativo. (DUARTE & ALEGRIA, 2008, p.73)
Se uma parte significativa de nossas práticas e relações são permeadas
pelas imagens, é necessário educar gostos e olhares, ampliar repertórios e
exercitar a capacidade de análise e reflexão sobre o que assistimos. A
preocupação de Duarte & Alegria (2008) também é pertinente neste estudo, ao
entender que a postura com que nos relacionamos e lidamos com filmes, de
analisar e criar com as imagens cinematográficas implicam numa experiência
de cidadania, ou seja, de saber transitar, pertencer e participar da cultura na
qual estamos inseridos e que também construímos. Dessa forma, o
desenvolvimento e a capacidade de apreciar e perceber ativamente filmes é
parte do processo da formação estética, na compreensão de que a leitura
crítica e reflexiva de narrativas imagéticas constitui também uma leitura da
realidade.
Considerar o cinema em sua dimensão formadora é reconhecer seu
potencial para produzir sentidos e significados para além do imediatismo
vivenciado nos instantes de exibição de um filme. Como é visto por Fantin
(2006), o caráter narrativo do cinema repousa no sentido benjaminiano de
como a experiência com um filme pode marcar, deixar rastros nos
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ouvintes/espectadores. Quando a relação com o filme se prolonga para além
do que foi assistido/narrado, ele não se esgota em si, mas encontra
repercussões nos imaginários, nas memórias e nas subjetividades dos sujeitos.
Aquilo que provoca o sujeito a ir além de si, aquilo que o sucede produzindo
vestígios e efeitos é o que Larrosa (2002) reconhece como experiência. Assim,
a prática habitual de assistir um filme somente torna-se uma experiência
quando o filme é vivido significativamente, adentra o mundo do sujeito, altera
seu estado de espírito e, tanto filme quanto o espectador se formam e se
transformam.
Neste sentido, dizer que a narrativa fílmica “pode atuar no âmbito da
consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural” (FANTIN, 2006), é
contestar a prática de ver filmes como mero entretenimento e lazer, conferindo
ao cinema a capacidade de atravessar os sujeitos (LARROSA, 2002). A
experiência com o cinema é um encontro de significações e ressignificações da
vida e de nós mesmos.
É interessante notar no trabalho de Gusmão e Santos (2010) como o
encontro com a sétima arte pode marcar a existência dos sujeitos,
perpassando trajetórias de vida que se “potencializam em aprendizados
individuais e coletivos, veiculando padrões de comportamento e sentimentos”
(p.35). No trabalho destas autoras são destacadas as historias de vida do
cineasta francês Alain Bergala3 e do videomaker Jorge Luiz Melquisedeque da
Silva4, refletindo como as vivências marcadas pelo cinema podem ser
determinantes para traçar nosso percurso no mundo. Observa-se em ambos os
relatos, práticas características de cinéfilos, frequencias a cineclubes e salas
de cinema desde a infância que lhes propiciaram a formação de gostos e
apreciação a determinadas estéticas de filmes.
Tomando estas menções, vemos como a exposição e o contato
frequente a esse tipo de contexto cultural podem condicionar uma inclinação
duradoura que não diz respeito apenas ao consumo de filmes, mas que
3 Diretor, professor de cinema em Sorbonne Nouvelle, Paris III; Lyon II e Rennes II, crítico de cinema e autor do livro A hipótese cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola, no qual Bergala propõe o encontro com o cinema na escola como experiências de criação. 4 Responsável pela implantação da produção de vídeos na Universidade do Sudoeste da Bahia e pela criação do projeto Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, na cidade de Vitória da Conquista.
18
mobiliza saberes e fazeres relacionados ao cinema repercutindo para outras
tramas tecidas ao longo da vida.
Outra autora que nos ajuda a pensar o cinema como integrante na
formação dos sujeitos é Fabris (2008) cujo trabalho discorre sobre o sentido
pedagógico dos textos fílmicos. A autora parte da análise de alguns filmes
previamente selecionados para refletir sobre o papel do educador e da escola
no cinema nacional e hollywoodiano. Para ela, a prática de assistir filmes
pressupõe um aprendizado tanto nos modos de se relacionar com a linguagem
cinematográfica, como na construção de estilos de vida, valores e concepções
de mundo, na medida em que os filmes produzem sentidos e discursos criados
e compartilhados na cultura em que estão inseridos.
Ao largo de concepções simplórias de que filmes podem veicular
conteúdos ideológicos para produzir e manipular identidades, comportamentos
e valores morais, entende-se que nenhum filme produz efeito isoladamente,
quando opera a partir do ambiente simbólico das pessoas (FANTIN, 2006). O
que quer dizer que a relação com o cinema nunca será individual e exclusiva,
mas permeada constantemente por diversos fatores sociais, culturais e
políticos que formamos e nos formam ao longo desse encontro e de nossas
experiências de vida.
1.2 - O sujeito-espectador de filmes
Ao falarmos da relação entre leitor/espectador e imagens fílmicas, é
preciso refletir como estou considerando esse sujeito que assiste a filmes, mas
que também deles se apropria e se forma. Admitindo-se que os filmes não
atuam isoladamente, algumas questões surgem no momento de problematizar
o lugar e o papel do espectador ao estabelecer com o cinema uma relação
formativa. Quem é esse espectador de que falo? Como o concebo nessa
relação? Como se criam sentidos para o filme e com o filme?
Tomando como reflexão o que escreve Orozco Gómez (2009), podemos
dizer que espectadores na exibição de um filme são sujeitos interagentes, uma
vez que toda relação com a tela cinematográfica incide numa intervenção
contínua, colocando audiências no lugar de usuárias, produtoras e emissoras.
Nesta perspectiva, rejeita-se a posição neutra e meramente contemplativa do
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espectador, quando o olhar para o filme é sempre atravessado por mediações
(Martín-Barbero, 1997), sejam do contexto em que o filme é exibido, da
atmosfera cultural do sujeito, das reações de outras pessoas na sala de
cinema, entre outras tantas.
Como bem lembra Xavier (1983), o espectador não é sujeito iludido e
sabe que participa ativamente do jogo. Assim como o filme também parece se
aproximar e confiar no espectador, o sentido e a fruição criados pelo filme
dependem da disposição e abertura do sujeito. É um jogo de reciprocidade e
entrega de ambos os lados. Por isso o filme não é fechado em si, mas repleto
de fissuras e janelas que se abrem e se revelam conforme a entrega e
participação de quem o assiste. O filme não se apresenta e nem quer se
revelar por inteiro, ele precisa da imaginação de seu espectador e, por isso, o
convida a fantasiar, criar e se aventurar para contribuir na composição de sua
narrativa, preencher de sentidos seus arranjos e desdobramentos. O filme que
forma é o filme que provoca, desafia, amedronta e inquieta.
E nessa relação, nesse jogo, o espectador parece aceitar abandonar sua
realidade provisoriamente pelo prazer da experiência de assistir a um filme. O
que pode ser visto como prática descompromissada se torna muitas vezes
válvula de escape da vida cotidiana e suas exigências e tarefas
predeterminadas. Assim, entende-se que a fantasia do cinema “é um
relacionar-se com o mundo que mais interroga, vê e ouve do que explica”
(MIGLIORIN, 2010, p.106), na medida em que no movimento de nos
distanciarmos da vida prática temos a possibilidade de questionar e repensar a
realidade em que vivemos e as supostas certezas da vida. Um olhar filosófico
cabe nesta reflexão:
Existem diversas formas de se desconectar provisoriamente do mundo, tais como o êxtase sexual, o estado de embriaguez provocado por substâncias narcóticas, ou, ainda, o prazer estético intenso provocado pela contemplação de uma paisagem ou uma obra de arte. [...] Distanciar do mundo pode ser muito agradável e sedutor. O distanciamento filosófico não busca meramente a distração ou o divertimento, mas sim permitir que o homem ganhe mais consciência da sua relação com o mundo e com os outros (FEITOSA, 2004, p. 28).
A experiência com o cinema ao permitir esse afastamento provoca a
instabilidade das verdades que carregamos e possibilita a invenção de novas
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perspectivas e significações da realidade a nossa volta. Essa parece ser a
condição formadora do cinema, convidar o sujeito a se desvincular do real para
adentrar, atravessar o real do filme num exercício de estranhamento, dúvida e
desequilíbrio no qual espectador e filme se envolvem, sofrem, perdem-se e se
(trans)formam. O cinema que educa, faz pensar, circular as ideias no sentido
de uma experiência que se potencializa no movimento de aprender,
desaprender e reaprender (FRESQUET, 2007) permanentemente nossos
desejos, anseios, valores, escolhas, atitudes e crenças. Nesse sentido, o olhar
para o filme nos distancia da realidade ao mesmo tempo em que propicia
ampliar o olhar e o conhecimento sobre e com ela. Vejamos como Robert Stam
(2003) se refere ao espectador:
As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, descontínuas dos pontos de vista cultural, discursivo e político, formando parte de um território mutante de diferenças e contradições que se ramificam. (p.259)
Com esta citação, entendo a experiência cinematográfica como lugar de
diálogo e luta, onde filme e espectador se encontram num campo de disputa,
negociação, troca e criação dentro do qual o sujeito é simultaneamente
constituidor do filme, ao mesmo tempo que este o constitui.
Como nos ensina Benjamin (2012), o cinema é a expressão e linguagem
que fala mais próximo a humanidade na era moderna, “retrógrada diante de
Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin”. (p.202) A linguagem do
cinema é rica e complexa, mas poucas formas de linguagem são tão íntimas e
estão ao alcance de todos quanto a cinematográfica, que parece colocar na
realidade da tela o mundo concreto, afetando mulheres e homens em suas
vivências e práticas do cotidiano. É nessa perspectiva que o filósofo elege o
cinema como a arte mais significativa para os indivíduos, alterando
definitivamente os modos de percepção e reação com a arte e a cultura.
A partir disso que entendo que o cinema concorre para a educação de
novas formas de sensibilidade, de experimentar e criar sentidos para o mundo
por olhares e escutas que se realizam em práticas e experiências criadas e
compartilhadas coletivamente. Como produtor de cultura, o cinema atua em
redes simbólicas e de socialização promovendo a produção, a troca e a
transformação de conhecimentos e identidades. É nesse exercício de olhar,
21
ouvir e ver o outro na tela e em ambientes em que esta arte é valorizada e
estimulada que os sentidos, as relações e as experiências com as narrativas
cinematográficas ganham significados e interpretações, podendo modificar e
recriar novos modos de se relacionar com os filmes, com a própria linguagem
do cinema e com nossas formas de ver e pensar o mundo e a nós mesmos.
1.3 - Cineclubismo, encontros e aprendizados com o cinema
Dentre as ações pedagógicas e coletivas desempenhadas pelo cinema
na era da reprodutibilidade técnica, destacamos o papel dos cineclubes como
espaços significativos na formação social e cultural de seus participantes.
Entendemos que a dinâmica de reunir grupos para assistir e debater filmes é
uma prática fundamentalmente educativa que se consolida pela criação de
ambientes socializadores, dialógicos e coletivos. Para pensar como a prática
cineclubista pode se constituir numa experiência, encontro apoio nos estudos
de Gusmão (2008), Matela (2008) e Silva (2009) que tecem considerações
teóricas sobre a importância social e cultural dos cineclubes no país.
Esses poucos estudos identificados no campo da educação, apontam o
caráter relacional entre esta prática e o processo de formação cultural dos
sujeitos envolvidos. Como ambientes favoráveis à socialização e difusão
cultural, os cineclubes comparecem como espaços privilegiados de
“aprendizagem informal de cinema, de troca de saberes e informações, de
leitura e discussão de artigos sobre o assunto” (DUARTE, 2009, p.66) atuando
assim em redes de produção e consumo relacionados à arte cinematográfica,
nos quais determinados valores, saberes e gostos são atribuídos
coletivamente, criando sentidos e maneiras de ver e pensar sobre cinema.
Conforme apontado na pesquisa de Gusmão (2008), os primeiros
cineclubes surgiram na França, no início do século XX e se consolidaram como
espaços alternativos nos quais se reuniam intelectuais e amantes da sétima
arte para assistir filmes e discutir a qualidade do cinema, seu valor de mercado,
artístico e estético. No Brasil, o primeiro registro de cineclube que se tem é o
Chaplin Club, fundado em 1928 por jovens da burguesia carioca com interesse
nos filmes mudos. Essa experiência impulsionou o surgimento de outros
movimentos cineclubistas que começam a se organizar e espalhar por diversas
22
regiões do país, ganhando força a partir da década de quarenta. Destacam-se
também o Clube de Cinema de São Paulo fundado na Faculdade de Filosofia
da USP, o Clube de Cinema na Bahia, as sessões da Aliança Francesa e o
Cinemateca do MAM, como alguns dos cineclubes mais representativos no
cenário nacional, por terem se consolidado como ambientes favoráveis para
novas maneiras de exibir e apreciar filmes para os frequentadores desses
clubes.
Segundo estas autoras, os cineclubes funcionavam como importantes
fontes de articulação entre grupos e informações, configurando uma prática
cultural que pode ser definida como educativa. Desse modo, esses clubes
contribuíram na formação cinematográfica e na “competência para ver” dos
sujeitos envolvidos, assegurados pelo ambiente cultural e político que
privilegiava determinadas cinematografias, como o cinema francês, italiano,
soviético sob uma concepção de “cinema arte” que rejeitava a indústria
hollywoodiana, legitimando maneiras de ver filmes aprendidas socialmente.
Percebe-se com isto, a importância da prática cineclubista na formação
e socialização das pessoas que encontraram nestes espaços a possibilidade
de ampliar e transformar sua relação com o cinema. Muitos intelectuais e
artistas tiveram seus percursos de vida atravessados por esta prática, de modo
que podemos acreditar que esta foi constitutiva em suas vidas. Segue abaixo
um interessante relato do cantor Caetano Veloso (1997) em seu livro Verdade
Tropical sobre sua experiência no Clube de Cinema da Bahia:
Houve colaboração também com o crítico de cinema Walter da Silveira na transformação da rampa [...] belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara. As sessões ali consistiam sobretudo em grandes filmes mudos, [...] ou velhos filmes falados que já não se veriam nos cinemas normais [...] mas que reapareciam ali comentados pelo próprio Walter da Silveira ou por um ser convidado. Lembro de uma noite em que o ainda muito jovem mas já com fama de gênio Glauber Rocha comentou (desfavoravelmente) Umberto D., de Des Sica: sua fala que precedia a projeção, como era hábito no clube, foi brilhantemente irreverente e opôs a secura de Rossellini, seu favorito entre os diretores neo-realistas [...]. (p.59)
Compreende-se assim que os cineclubes compareceram como
expressivos agentes sociais na formação de um intenso cenário intelectual e
artístico marcando significativamente trajetórias e práticas culturais
relacionadas não apenas ao cinema, mas que se estendem também á musica,
ao teatro, a poesia, entre outros. O cineclubismo marcou as gerações das
23
décadas de 50 e 60 de tal forma que impactou movimentos de renovação e
mudanças culturais no país, como o Cinema Novo e o Tropicalismo.
É neste sentido que Silva (2009) atribui o cineclubismo como lugar de
“significação e ressignificação de conhecimentos variados” (p.146),
possibilitando aos participantes tecerem aprendizados e relações que
encontram permanências em outros contextos sociais, culturais e históricos.
Isto significa que a convivência e participação em cineclubes podem deixar
traços constituintes nos sujeitos.
Em outro trabalho sobre o cineclubismo no Brasil, Matela (2008) faz uma
análise de como as atividades cineclubistas ganharam uma nova dimensão
político-cultural durante o regime militar. Apesar do declínio da prática
decorrente do clima de repressão e medo que dominou este período, sabe-se
que alguns grupos e lugares persistiram se organizando em meio à censura e
perseguições. Para a autora, os sujeitos envolvidos encontravam nos
cineclubes a possibilidade de produzir e manifestar ações coletivas de
resistência, fazendo destes espaços lugares de engajamento e articulação
política. Neste sentido, reconhece-se a importância do movimento cineclubista
na formação de uma geração cujo envolvimento nestes ambientes viabilizou a
construção de ações e relações sociais de participação e criação de sentidos e
aprendizados como ela mesma nos diz:
Movimentos que apesar de manterem suas pronúncias camufladas, andaram na contra-mão da ordem ditatorial, produzindo novas táticas de enfrentamento, tecendo redes que escaparam das armadilhas silenciadoras de uma história oficial e ficaram presentes na memória daqueles que experimentaram vive-las (ibdem, p.34).
Mesmo velados, os cineclubes atuaram expressivamente como espaços
para o exercício da cidadania, de formação coletiva de seus protagonistas,
traduzidos nos momentos de debate, pesquisa e troca que valorizavam a
pluralidade de olhares e saberes compartilhados, em detrimento da atmosfera
autoritária e opressora que vivenciavam. Desse modo, as experiências
cineclubistas se caracterizaram por práticas de reflexão, discussão e criação de
sentidos configurando-se em experiências transformadoras da realidade e do
papel de cada um frente a ela.
É nesta perspectiva que se compreende a dimensão educativa dos
cineclubes, na medida em que a frequencia e participação nessa ambiência
24
fortemente cultural e crítica contribui no aprendizado informal de se relacionar
com filmes. A apreciação por cinema, a sensibilidade estética e a capacidade
criteriosa de julgar e avaliar certas obras cinematográficas são formas de
aprendizado que se constroem em contextos que propiciem o contato com
filmes de diversos tipos, que valorizem a diversidade de formatos artísticos,
narrativos e culturais das obras, garantindo assim a pluralidade de relações e
ideias.
Ao que parece, foi mais eficiente o trabalho de formação realizado no âmbito dos clubes de cinema, especialmente no que diz respeito aos gostos e preferências cinematográficas dos atores sociais que foram formando uns aos outros, de geração em geração, numa rede que pressupôs a troca de saberes e a produção/reprodução de valores, crenças por meio de práticas compartilhadas. [...] Esse fator funcionou tanto como elemento articulador de grupos quanto como fonte de conhecimento e informação, configurando uma prática cultural que pode ser definida como „”pedagógica” (GUSMAO, 2008, p.13)
Para tanto, a ação pedagógica desses clubes de formar “sólida prática
de crítica cinematográfica, de falares e olhares sobre os filmes” (SILVA, 2009,
p. 142) exige muitas vezes de seus participantes investimentos mais amplos no
que tange a sétima arte. Muitos grupos e organizações ligados a cineclubes
sentem a necessidade e vontade em aprofundar seus conhecimentos e
informações sobre os filmes, diretores, teoria do cinema e técnicas
cinematográficas. Percebe-se com isto que os cineclubes não contemplam
apenas exibições e comentários de filmes, mas abrangem uma rede mais
ampla de atividades de estudo, leitura e pesquisa e até mesmo cursos e
palestras, festivais e mostras culturais que possibilitem a tessitura de redes
mais íntimas com o universo do cinema.
Tais estudos orientam e contribuem no percurso da presente pesquisa
que se propõe a investigar as experiências de jovens no ensino superior dentro
de um projeto cineclubista universitário. Trabalho com a compreensão de que
os cineclubes podem atuar como lugares que potencializam processos de
significação, aprendizados e socialização desencadeando redes de ações e
movimentos que formam os sujeitos ao serem tecidas. Estas reflexões
possibilitam construir e pensar dentro desse campo de pesquisa como a
formação dos jovens envolvidos no projeto pode ser atravessada pela
experiência cineclubista.
25
26
2 – CAMINHOS, MÉTODOS OU ATRAVESSAMENTOS – O PERCURSO
TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA
O presente estudo surgiu na pesquisa realizada no contexto de um
cineclube universitário, o projeto de extensão Cine CCH: aprendizagens com o
cinema com sessões mensais de filmes seguidos de debate. Este projeto
constitui um dos eixos da pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens
em diferentes contextos educativos coordenada pela professora Adriana
Hoffmann dentro da qual procura-se investigar os modos de relações
construídos com o cinema em espaços de educação formal como o ensino
fundamental, o ensino médio e o superior.
A partir do que discutem autores que articulam cinema e educação,
compreende-se o cinema como bem cultural e social expressivo no processo
de formação dos jovens. Sendo assim, este trabalho entende - assim como o
projeto maior do qual faz parte - que a imagem, principalmente em movimento,
configura-se em maneiras outras de ver, pensar, imaginar e compreender a
realidade a nossa volta, bem como de ampliar possibilidades de agir, pertencer
e se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Situando o Cine CCH como
campo de investigação, a pretensão aqui é perceber e problematizar o valor
formativo das relações construídas pelos jovens no ensino superior através da
frequencia e atuação nesse cineclube.
O primeiro contato com o campo foi em outubro de 2010 na sessão do
filme O Leitor, quando o projeto ainda estava no início. Como o Cine CCH
estava vinculado à pesquisa na qual me integrava, minha entrada na equipe
organizadora foi um movimento voluntário e espontâneo, pela vontade e
interesse de participar e contribuir na realização de um projeto que viabilizava a
prática cineclubista na universidade. Ao longo das sessões, debates, encontros
e reuniões percebi que aquele grau de envolvimento com o campo e seus
participantes ultrapassava as demandas pertinentes do trabalho de
organização, afetando minha relação com a vida acadêmica, com a realidade e
com o cinema na aproximação com pessoas de diferentes cursos, na
ampliação de relações dialógicas e críticas e na exigência de pesquisas,
leituras e seminários sobre filmes, diretores, técnicas e produção audiovisual.
Quando me dei conta, minha trajetória como estudante do curso de Pedagogia
27
da UNIRIO estava significativamente atravessada pelo Cine CCH. Não tive
escolha neste trabalho de pesquisa do objeto a ser investigado, fui escolhida.
É nessa perspectiva que compreendo como minha atuação como
frequentadora do cineclube estava decididamente inseparável à ação
metodológica, na medida em que os sentidos e ações criados em ambas por
vezes se confundiam, da mesma forma que se co-afirmavam. O método ou
caminho percorrido no campo surgiam na imbricação de situações, falas,
olhares, gestos e pessoas com as quais me deparei nas sessões que, assim
como as experiências, são sempre imprevisíveis e nunca se repetem.
As proposições trazidas pelos autores Walter Benjamin (2012) e Jorge
Larrosa (2002) em seus conceitos de narrativa e experiência, respectivamente,
orientam na problematização do papel do cinema nesse processo de formação
dos jovens frequentadores do Cine CCH, junto com os fundamentos de
pesquisa-intervenção.
A articulação desses pensadores junto ao conceito teórico-metodológico
adotado ajuda a traçar algumas questões que serão debatidas com e sobre o
campo: quais as pistas que os relatos dos sujeitos podem trazer para
refletirmos sobre os sentidos que se produzem na relação que eles
estabelecem com o cinema fora do circuito comercial? É possível entender o
cinema para além da dimensão do entretenimento e do consumo, como
experiência formadora que deixa marcas? (FANTIN, 2006)
2.1- O campo e os sujeitos que (se) atravessam (n)a pesquisa
De natureza qualitativa, foram utilizadas nesta pesquisa estratégias
metodológicas de observações e registros de diários de campo de cada
sessão, fotos, filmagens dos debates, cadernos de assinaturas e entrevistas
com alguns participantes. Foi necessária a delimitação de alguns critérios na
organização dos materiais construídos para a fase posterior de análise diante
dos dados obtidos ao final do trabalho de campo no que tange as sessões a
serem enquadradas na pesquisa, a seleção de entrevistados e a elaboração do
questionário para realização das entrevistas.
Primeiramente, falarei sobre a escolha e o recorte estabelecido das
sessões do Cine CCH, sabendo que até o final de 2012 foram realizadas 16
28
sessões. Tendo em vista a dificuldade e densidade de um trabalho de campo
que contemplasse todas essas sessões e os materiais delas obtidos, a
presente pesquisa se refere ao período de outubro de 2010 à outubro de 2011
que totalizam oito exibições de filmes (O Leitor, Filhos do Paraíso, Valentin,
Minha vida em cor-de-rosa, Crianças Invisíveis, Mary e Max, Edifício Master e
Adeus, Lenin) e debates, entendendo que esta definição torna o estudo mais
seguro e claro sobre o campo investigado. Para iniciar a análise das sessões,
foram utilizados os diários de campo e transcrições. Em cada sessão duas ou
três pessoas da equipe de extensão e de pesquisa ficavam responsabilizadas
por registrar suas observações, relatando os momentos de chegada do público,
as reações e interações percebidas no decorrer dos filmes e, principalmente,
nas discussões sobre o que foi assistido. Além desse material, foram feitas as
transcrições das filmagens de quatro sessões realizadas: O leitor, Filhos do
paraíso, Valentin e Adeus, Lenin!, que nos permitiram um olhar mais direto às
falas dos sujeitos nos debates mesmo não sendo trazidas nesta monografia.5
Os cadernos de assinatura na entrada do auditório eram preenchidos
conforme as pessoas iam chegando colocando o nome e qual a relação com a
5 Essas sessões foram analisadas no artigo FERNANDES, A. H. ; FONSECA, M. J ; DALETHESE, T. O
cinema e a narrativa de jovens universitários: um diálogo com Walter Benjamin e Jorge Larossa (2012),
apresentado no IV Colóquio Internacional de Filosofia da Educação (UERJ) e no IV Congresso
Internacional Diálogos sobre Diálogos (UFF).
29
UNIRIO, o curso ou visitante. Com base nesses cadernos, pudemos perceber
que o número médio de participantes por sessão está entre 80 e 100
participantes, com a ressalva de que grande parte desse público não fica para
o debate, apenas assiste o filme, conforme as gravações em vídeo e os diários
de campo nos dizem.
Junto a isso, para conhecer melhor e traçar um perfil sobre os
participantes do Cine CCH, o que os levavam a frequentá-lo, as relações que já
tinham com cinema, quais os suportes que mais utilizavam para ter acesso a
filmes, (TV, cinema, DVD, Internet), entre outras, foi formulado um
questionário6 durante uma sessão do qual tivemos 70 retornos. O gráfico
abaixo nos revela que desses questionários respondidos, cerca de 68 são
estudantes do Curso de Pedagogia, um aluno do Mestrado de Educação e um
do curso de Música.
Público respondente do questionário aplicado em 2012.7
Assim como os cadernos de assinatura, estes questionários confirmam o
que já havia sido constatado que a maior parte dos freqüentadores do Cine
CCH são estudantes do Curso de Pedagogia, com participação esporádica e
bem menor de pessoas de outros cursos e até mesmo de fora da UNIRIO.
Dentre as hipóteses para tal constatação, acreditamos que isso se deva pela
maior divulgação nas disciplinas deste curso e o vínculo com a própria Escola
6 O questionário em anexo foi produzido pelo grupo de pesquisa com base no questionário realizado por
Rosa Fischer em sua pesquisa Educação do Olhar e Formação ético-estética (PPGEDU-UFRGS), sendo aplicado por Nilcéia Lopes e Marcos Pizarro, integrantes do grupo de pesquisa e do projeto de extensão, respectivamente. Esse mesmo questionário traz elementos que geraram análise da participação do público apresentada no artigo FERNANDES, A. H. ; LEMOS, N. S. L. . O cineclube Cine CCH e a produção de vídeos por universitários: reflexões iniciais. In: Seminário Internacional Redes Educativas e as Tecnologias, 2013, Rio de Janeiro. 7 Gráfico produzido por Nilcéia Lopes e Marcos Pizarro.
30
de Educação que facilita maior proximidade com professores e estudantes de
Pedagogia.
Tais resultados nos mostraram a importância de realizar entrevistas para
entender melhor esta participação dos sujeitos no Cine CCH relacionando aos
registros dos diários de campo, dos cadernos e do questionário. O critério de
seleção dos entrevistados se baseou na assiduidade e expressividade notórias
de modo que foram escolhidos e convidados 10 participantes.
O projeto do Cine CCH tem como propostas assegurar a experiência
estética e sensível, ampliar o repertório cinematográfico com a oferta de
diferentes gêneros, nacionalidades e temáticas e promover momentos de troca
e o pensar coletivo. É importante dizer que os debates funcionam de acordo
com as questões levantadas pelo próprio público, sem a mediação de
especialistas ou direcionamento explícito para determinado conteúdo, de
maneira que os participantes possam se manifestar livremente sobre suas
impressões a partir dos filmes assistidos, compondo entre eles mesmos a
dinâmica dos debates.
Considero que a relação do projeto com a pesquisa ocorre de maneira
articulada na medida em que os participantes do Cine CCH revelam-se sujeitos
em potencial para a pesquisa. Por isto eu entendo que os acontecimentos, as
ações e falas tecidos e compartilhados pelos jovens traduzem-se em
elementos que perpassam a sua formação e, ao mesmo tempo em que
enredam o campo, desdobravam-se em elementos também para a pesquisa.
Isto é, os sujeitos envolvidos no projeto estão em permanente construção e
articulação de experiências coletivas que compõem indissociavelmente o
campo constitui a pesquisa. Assim, o processo investigativo resulta de
questões apreendidas dos movimentos, das relações e ações que se
construíram no e com o campo e se revelavam integrantes do processo de
formação pelo qual os sujeitos atravessaram.
Neste sentido, o estudo não pretende inscrever considerações sobre
experiências, mas com as experiências e a partir das experiências vividas e
compartilhadas num campo do qual fiz parte da equipe organizadora,
acompanhei por dois anos todas as sessões, assisti filmes de diferentes
contextos e linguagens, “matei” algumas aulas para participar, convidei alguns
31
professores e colegas, sugeri filmes, ouvi, concordei, discordei, compartilhei
ideias, gostos, desgostos, risos e emoções.
2.2 – A Pesquisa-intervenção como conceito atravessado
Mesmo admitindo o precioso amparo dos referenciais teóricos nos
procedimentos de organização, realização e análise de dados do campo
estudado, seria inviável em um trabalho de natureza qualitativa deixar-se
cristalizar por abordagens metodológicas, em detrimento da flexibilidade e
imprevisibilidade inerentes ao processo de investigação. É inevitável que uma
parte das questões previamente colocadas no momento de entrada no campo
seja alterada, ou até mesmo anulada pelos sentidos e significações que vão
sendo produzidos e revelados pelas redes de sujeitos e relações tecidas ao
longo das sessões do Cine CCH. Assim como a pesquisa acontece em
consonância com os movimentos apreendidos no campo, a relação
pesquisador/pesquisado só seria viável pela estreiteza do olhar, da fala e da
escuta entre ambos os lugares.
Tomando esse entendimento é que o presente estudo adotou a
concepção de pesquisa-intervenção como fundamento teórico-metodológico
por acreditar no caráter dialógico e horizontal que este tipo de pesquisa abarca.
[...] pesquisa que não se esgota na tarefa de investigar ou conhecer o outro como um “objeto” exterior, mas abrir caminhos para um diálogo [...] em que cada um do seu ângulo específico de visão sobre o tema em pauta, negocia sentidos e elabora um conhecimento compartilhado sem negar os conflitos que tal confronto discursivo necessariamente desencadeia. (JOBIM E SOUZA, 2005, p.2)
A escolha dessa metodologia justifica-se pela inevitável aproximação
entre pesquisador e pesquisado(s) na medida em que “todos os participantes
da atividade estão envolvidos nesse movimento” (CASSAB & CASSAB, 2008,
p.248), tornando-se parceiros e cúmplices no processo de investigar e de se
formar. O ato investigativo consiste intrinsecamente em ato formativo, na
compreensão de que a pesquisa e os sujeitos estabelecem relações de afeto,
alteração e formação incessantes.
Infere-se nisto a noção de uma investigação que exige do pesquisador a
sensibilidade da escuta e abertura ao que os sujeitos dizem, o que criam, como
agem e se relacionam entre si e com o campo, num exercício constante de
negociação, interação e transformação mútuas. É neste sentido que esta
32
pesquisa assume a dimensão de um fazer metodológico que vai sendo
construído e interpelado na ação contínua e coletiva dos sujeitos que nela
estão envolvidos. Na medida em que admito que as ações e movimentos
produzidos e compartilhados entre os jovens do Cine CCH são elementos
fomentadores desta pesquisa, concebo-os como atores e autores desta
pesquisa. As experiências construídas e compartilhadas pelos participantes
produzem motivações e sentidos para a pesquisa, portanto, a intervenção
consiste no reconhecimento de que os jovens deixam de ser meros objetos a
se investigar assumindo junto ao pesquisador o lugar de sujeitos que
produzem, criam e transformam experiências no, com e a partir do outro.
Da rede de relações e experiências é por onde empreendo o trabalho de
observar, registrar e analisar a fim de mapear o caminho de problematização e
entendimento das dimensões formativas que estes jovens constroem no e com
o Cine CCH. Junto a isso, persigo as narrativas, ações, movimentos,
sentimentos e reações marcadas pelos filmes na possibilidade da percepção
desses elementos como as tramas que tecem o campo e trazem pistas para o
percurso investigativo. O convívio dos freqüentadores do Cine CCH, as
reações do público durante os filmes, as reflexões e relações construídas nos
momentos de debates são elementos que norteiam a pesquisa, criando
sentidos e significados inerentes tanto no processo de investigação quanto no
processo de formação dos sujeitos envolvidos.
A pesquisa-intervenção entende o ato de pesquisar como o próprio
processo de construção de sentidos para a experiência de um, de outro, ou de
ambos (CASTRO, 2010). Pesquisar configura um processo contínuo de intervir
nas práticas e relações que se tecem no campo, da mesma forma que é na
apreensão dessas experiências que os caminhos da investigação são
construídos e (re)significados. Em outras palavras, nossa investigação é
marcada de algum modo pelos sujeitos ali envolvidos, assim como estes
sujeitos têm suas experiências “contaminadas” pela pesquisa, elas trazem
dados e argumentos para a investigação. Por esta perspectiva entende-se que
o campo vinculado à pesquisa atravessa os sujeitos em sua formação e
simultaneamente é afetado pelas ações e movimentos empreendidos por eles.
Intervir é desencadear saberes, provocar olhares e fazeres outros, dar
vozes e visibilidades aos jovens que no Cine CCH participam e interagem,
33
permitindo a eles que possam reconhecer seu lugar de atuação, integração e
pertencimento no campo/pesquisa que lhes atravessa e que é por eles
atravessado. Desse modo, os sentidos e significações que os jovens criam e
compartilham no Cine CCH se enredam inevitavelmente para o processo de
pesquisa assim como para o processo de formação que atravessam como
estudantes da graduação.
Embora a relação dialógica e horizontal explicite a ruptura da postura
neutra e distante do pesquisador para com o pesquisado, percebe-se com isso
também certa perda de controle por parte do pesquisador de seu próprio
trabalho cujo percurso sofre continuamente interferência dos sujeitos do campo
que investiga. Pesquisar com a concepção de intervenção é uma escolha de
risco e desafio. O trabalho que busca nas ações e relações construídas pelos
sujeitos, as pistas para seguir na investigação, nem sempre nos apontam
caminhos diretos e seguros. É um desafio porque podemos ser levados para
diversas direções que de tão múltiplas e emaranhadas se tornam uma parede
de tijolos, e um risco porque alguns indícios são fugidios, revelam-se e perdem-
se no momento dos acontecimentos. Por isso a pesquisa-intervenção é um
campo de tensões e conflitos entre a imprevisibilidade dos acontecimentos e os
sentidos e os questionamentos revelados ao longo do seu processo. Perscrutar
e interpretar o que os sujeitos envolvidos indicam é uma busca paciente,
delicada e sensível aos fatos, aos movimentos e marcas deixados pela
experiência no e com o Cine CCH. Processo que instiga e instabiliza sem
esvaziar de sentido, visto que no balanço e desequilíbrio imprescindíveis no
percurso de investigar, torna-se possível criar significações, questões e
descobertas outras sobre o campo e sobre o próprio trabalho de pesquisar.
Mesmo estando num espaço familiar, freqüentado tantas vezes, é
preciso vasculhar com outros olhares e criar um modo diferente de pensar
(DUARTE, 2002) o campo de trabalho no intuito de construir e percorrer
caminhos e possibilidades para a pesquisa. Minha localização enquanto
universitária e colega dos participantes do Cine CCH não está indissociável do
papel de atuação de pesquisadora do campo, na medida em que ambos os
lugares se formam em processos de significação mútuos e constantes.
Contudo, é preciso descortinar e apreender os aspectos breves e fugidios que
34
se perdem ou se escondem pelo olhar habituado do “nativo” que, de certa
maneira, é também o lugar que me encontro.
A partir da leitura do estudo de Travancas (2006) no qual ela apresenta
diferentes trabalhos antropológicos para pensar a pesquisa etnográfica,
percebo a tenuidade em ocupar e assumir essas duas posições que ao mesmo
tempo se encontram e se transpassam, mas por vezes também se chocam. A
relação estreita com o campo e com os sujeitos com quem nele compartilho
determinados códigos e sentidos no contexto do Cine CCH e da própria
graduação, levam-me a procurar outros caminhos de reflexão para evitar a
“descrição superficial dos fatos e compreender como as piscadelas são
produzidas, percebidas e interpretadas” (p.2). Segundo a autora, o trabalho do
etnógrafo consiste em buscar a diferença, aquilo que lhe é estranho e
desconhecido.
Neste sentido, o antropólogo persegue e tenta interpretar o que é
distante, exótico e incompreensível à sua cultura, seu grupo ou classe social,
aproximando-se do outro, do diferente. O trabalho de pesquisar sobre um
universo no qual me reconheço “nativa” acontece, portanto, no movimento de
me deslocar sem sair do lugar, num exercício de estranhamento do jogo de
signos e regras familiares ao campo e seus sujeitos. Despir-se provisoriamente
do papel de membro do campo, não o anula. Pelo contrario, permite-me ser
conduzida para outros lugares, criar novos olhares e sensações sobre o campo
que vivencio, seus participantes e minha própria postura e atuação.
É no esforço de se distanciar temporariamente do próprio grupo que
torna-se possível refletir e discutir os ditos e os não-ditos, desvendar nos
gestos ocultos, nos subterrâneos das falas e nos mínimos afetos os sentidos
produzidos que não são claros e visíveis e nos escapam como piscadelas.
Assim, ao assumir o lugar de pesquisadora procuro nas vozes dos sujeitos
outras vozes, que nos são próprias e ao mesmo tempo externas, descobrindo o
exótico em nós mesmos, o outro que nos constitui.
Neste sentido que me reporto aos conceitos de narrativa e experiência,
respectivamente do filósofo Walter Benjamin (2012) e do educador Jorge
Larrosa (2002), para discutir como esses elementos são fomentadores dos
movimentos de formação que se estabelecem no Cine CCH. Os debates, a
sensibilização pelos filmes, pela escuta e fala do outro como ações e posturas
35
que integram são alguns aspectos do Cine CCH que, junto aos dois teóricos,
nos levam a refletir como este espaço pode atravessar os seus participantes, e
por eles ser transpassado.
2.3 – Narrativas e experiências como desdobramentos da pesquisa
É para mim evidente a pluralidade de dizeres, perspectivas, identidades,
gostos e gestos que se encontram e, por vezes, se estranham nos debates do
Cine CCH, lugar de sujeitos narradores e criadores, que contam e
compartilham olhares e histórias entremeadas pelos filmes assistidos. Contar
histórias é criar narrativas que são sempre carregadas de sentidos afetivos,
políticos, culturais e subjetivos que no ato de narrar se inventam e inventam o
outro, contadores e ouvintes. Essa noção de narrativa é trazida para este
estudo a partir do pensamento de Walter Benjamin (2012) que entende
narração como arte milenar de contar e transmitir oralmente histórias que são
expressões mais vivas de intercambiar experiências, entrelace de histórias de
vida e memórias.
Para o filósofo, a narrativa tem caráter eminentemente coletivo e
dialógico visto que sua existência se constitui em movimentos compartilhados,
assim como os sentidos e ações que conduzem o processo de pesquisa-
intervenção e as sessões do Cine CCH. O que constato pelas vivencias e
observações neste campo é que os debates realizados podem se configurar
como espaçostempos possíveis para os sujeitos experienciarem a figura do
narrador, conforme Benjamin (2012) conceitua:
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as historias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a historia. [...] É uma inclinação dos narradores começar sua historia com uma descrição das circunstancias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, isso quando não atribuem essa historia simplesmente a uma vivencia própria. (p.221)
Como o narrador em Benjamin, os participantes nos debates do Cine
CCH constroem seus relatos e os compartilham através das marcas e vestígios
deixados pelos filmes em si, marcas que respingam da tela tanto em quem
conta quanto em quem escuta. Para chegar a tal reflexão, no entanto, há que
se fazer um mergulho profundo e denso na filosofia benjaminiana dada a
36
complexidade e radicalidade com que tais aspectos são apresentados em seus
escritos.
Nesta parte do estudo, busco sistematizar argumentos trazidos a partir
da leitura dos ensaios de O narrador e Experiência e pobreza nos quais
Benjamin fundamenta o laço existente entre narração e experiência, dialogando
com o entendimento de Jorge Larrosa (2002). A questão da narrativa aparece
em Benjamin (2012) em sua crítica à uma cultura na qual as formas tradicionais
de narrar e transmitir oralmente histórias tornaram-se antiquadas, portanto,
perdeu-se a capacidade de compartilhar experiências. O declínio e
empobrecimento da experiência são constatados pelo fim da narração
tradicional nos tempos modernos. A arte de narrar se define como arte de dar
conselhos e sabedoria, por isso ela se constitui numa comunidade dentro da
qual o narrador é aquele que tem, na sua experiência, a autoridade de
conselheiro. Isto é, a narração não é algo para ser simplesmente contada e
ouvida, mas pressupõe um narrador interessado em atravessar o ouvinte com
suas experiências e um ouvinte disposto a ser atravessado pela coisa narrada.
Em sua afirmação que o narrador “não está absolutamente presente
entre nós, em sua eficácia viva”, o autor admite o abandono progressivo do ato
de contar histórias uma vez que a narrativa é “para nós algo de distante, e que
se distancia cada vez mais”. (p.213) A preocupação de Benjamin com o
desaparecimento do dom de narrar revela-se em sua denúncia ao advento da
imprensa e do romance - formas genuinamente burguesas e urbanas de
comunicação – que determinam novos meios de prática e relação destituídos
de experiência. A dinâmica da modernidade trazida pelo capitalismo condiciona
mulheres e homens a hábitos, valores, comportamentos e estilos de vida
incompatíveis com as formas tradicionais de narração. Ou melhor dizendo, a
tradição de contar histórias oralmente com a finalidade de transmitir um
ensinamento foi sendo substituída progressivamente por novos modos de
narrativa, porem mais condizentes aos modos de vida moderna.
Para Benjamin, o romance se caracteriza como tipo de instrumento
narrativo próprio de indivíduos solitários. Enquanto a narração tradicional tem
seu valor em experiências coletivas, o romance “está essencialmente vinculado
ao livro” (p.217), já que não exige a preservação e perpetuação de
experiências. A produção e consumo do romance são eminentemente
37
individualistas e efêmeras, tornam desnecessário o encontro coletivo para
contar, ouvir e recontar histórias. Tanto o romancista como o leitor do romance
são sujeitos isolados e a relação com o livro se esgota ao final da escrita e
leitura. Em contrapartida, a narração tem sua existência determinada dentro de
uma comunidade, pois precisa da relação direta e interessada entre narradores
e ouvintes, num processo coletivo de entrega e abertura em que os sujeitos
recorrem às suas experiências e às experiências de outros para tecer as
narrativas. Por isso, elas nunca se esgotam, narrar é perpetuar, passar adiante,
fiando e desfiando artesanalmente histórias de vida, memórias e
conhecimentos.
A informação jornalística inaugura uma forma ainda mais condizente ao
imediatismo e brevidade dos meios de vida na sociedade moderna. No cenário
das grandes cidades “em seus edifícios, quadros e histórias, a humanidade se
prepara, se necessário, para sobreviver à cultura” (BENJAMIN, 2012, p.128). A
cultura da novidade e do excesso na qual homens e mulheres sobrevivem
imersos a uma exposição maciça de anúncios, cartazes, manchetes e notícias
e acabam impossibilitados de criar vínculos, habituados a formas de
comunicação fragmentadas e desconexas. A informação vigora em tempos de
saciedade eterna pelo novo nos quais as pessoas vivem atropeladas de
trabalho, eventos, tarefas e compromissos funcionais. Por isso é raro a pausa
para se contar e ouvir histórias, para escutar e ser escutado pelo outro, na
intenção de ser interpenetrados e compartilhar experiências/aprendizados. A
comunicação íntima, direta, ritualística e duradoura torna-se ínfima numa
esfera de vida em que os fatos chegam e logo são descartados sob a forma da
informação, morrem no instante que são lidos.
Numa análise sobre o pensamento de Walter Benjamin a respeito da
narrativa, Jorge Larrosa aponta o periodismo e a falta de tempo como
elementos que destroem a experiência. De acordo com este autor, o
periodismo é “a aliança perversa entre informação e opinião”, que fazem do
sujeito um ser incapaz de experiência, pois ele se informa a respeito de algo
sobre o qual deve opinar– o que geralmente fica reduzido a estar contra ou a
favor de algo. Como um “consumidor voraz e insaciável de notícias, de
novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito” (LARROSA, 2002,
p.23), o sujeito moderno não tem tempo suficiente para uma experiência
38
compartilhada e prolongada (Erfahrung), pois o mundo moderno, onde os
acontecimentos ocorrem como um choque e as vivências são instantâneas e
fragmentadas (Erlebnis), nada toca este sujeito, tudo o agita, o excita, o choca,
mas nada lhe atravessa.
Entender a oposição entre esses dois termos é o fio condutor para a
problemática central de Benjamin acerca da experiência. A Erlebnis vem do
verbo alemão erleben que significa vivenciar e pressupõe viver fatos no
momento em que eles ocorrem. Desse modo, configura-se como experiências
particulares vividas isolada e fugazmente como as exigências práticas do
cotidiano nas quais nos acomodamos e não deixam rastros, pois são
passageiras que não se perpetuam para além delas e de nós mesmos. Por
outro lado, a Erfahrun se constitui como experiências vividas que encontram
permanências nos sujeitos que nelas se integram. É neste sentido que a vida,
as experiências dos sujeitos se impõem de alguma forma ao que é narrado.
Toda narrativa é atravessada pelas experiências construídas pelos sujeitos
dentro de uma comunidade, ao mesmo tempo em que a narrativa os atravessa.
Para entender o caráter artesanal de comunicação, há uma bela
metáfora de Benjamin (2012) ao aludir o narrador na figura do oleiro de vaso de
argila. Tal como a narrativa carrega marcas das experiências, histórias e
lembranças “se não na qualidade de quem as viveu, ao menos na de quem as
relata” (p.222), o vaso de argila traz vestígios e impressões do artesão que
imprime no objeto as marcas de suas mãos. A condição do trabalho manual é
como a arte de narrar, pressupõe esquecer provisoriamente de si para se
entregar ao tédio do processo lento e paciente de moldar/narrar. Neste ponto,
fica-se claro a incompatibilidade e contradição entre a composição e relação
abreviada e momentânea da informação com a narrativa que precisa da
disposição, entrega, leveza e esquecimento para ser contata, ouvida, fruída e
atravessada cujo sentido está na intencionalidade de criar e conservar elos
entre narradores e ouvintes.
Assim como o vaso de argila, cada narrativa é única porque traz as
experiências de quem a compôs. E ao ser contada e recontada, a narrativa vai
sendo tecida a outras experiências e por isso é narrada de outras formas,
escutada por outros ouvidos, sendo sempre única e múltipla a cada narração e
a cada experiência que cruza. Sobre isso, Benjamin (2012) nos fala que uma
39
história “se liga à outra, como demonstraram todos os grandes narradores” e
por isso em “cada um deles vive uma Scherazade”. (p.228) Uma narrativa é
sempre um fio de outra narrativa, ou de várias ao mesmo tempo. Uma rede de
infinitos nós constituídos por diferentes olhares, saberes, sentimentos e
ensinamentos que se entrelaçam permanentemente.
Se nos reportarmos ao que nos diz Benjamin, surgem indagações se
estaríamos vislumbrando novos modos de experiências nos dias de hoje, que
nos levam a problematizar como a narrativa sobrevive em tempos atuais. Sob o
diagnóstico de uma sociedade decadente e vazia de experiências (erfahrung),
o filosofo denuncia a extinção da arte de narrar pelo rompimento com a
tradição. Contudo, esse lamento não parece alertar para o resgate de uma
antiga tradição, mas nos convida a refletir sobre a necessidade de inventarmos
formas novas de narrativas, possibilidades e perspectivas outras de produzir e
intercambiar narrativas coletivas e significativas em meio às experiências
fragmentadas e efêmeras da contemporaneidade.
Tal assertiva nos conduz a problematizar o lugar do Cine CCH como
espaço possível para a Erfahrung, na medida em que ele propicia a criação de
conhecimentos e sentidos coletivos e formadores para os sujeitos envolvidos.
Se a experiência é substrato para a narrativa, isto é, o narrador traz à tona
suas experiências ao narrar, podemos afirmar que a participação no Cine CCH
se constitua em movimentos de narração tendo em vista as discussões que
explicitam permanências para além do imediatamente vivido no filme assistido.
Ao abrir o debate sobre suas impressões a partir do que foi narrado no
filme, os jovens têm a oportunidade de experienciar o que é ser um narrador.
Enquanto falam sobre o que os filmes exibidos, eles trocam experiências,
contam um pouco de suas vidas, relembram momentos já esquecidos, refletem
sobre a realidade em que vivem e reavivam, de certa forma, a arte de narrar na
dimensão coletiva de que nos fala Benjamin.
A experiência – fonte a que recorrem todos os narradores – é algo que
nos passa, nos acontece e nos toca (LARROSA, 2002). Portanto, o saber de
experiência deve ser desvinculado do saber coisas, pois este último depende
apenas da informação. O ser informado não possui necessariamente
experiência que, consequentemente, alimenta a sabedoria do verdadeiro
narrador.
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Apoiando-se na ideia de Larrosa (2002, p. 21) de que experiência é o
que “nos acontece, o que nos toca”, reconhecemos o Cine CCH como lugar
para a experiência. Toda vivencia que deixa traços, marcam expressivamente
os sujeitos que nela atravessam é uma experiência. Desse modo, entende-se
que o projeto de apresentar filmes em um espaço acadêmico e viabilizar
debates permite às pessoas a possibilidade de construir e articular ações
coletivas que possam se constituir em experiências.
Sabendo que as sessões ocorrem nos horários das aulas, professores
e estudantes interrompem suas tarefas acadêmicas, desmarcam atividades
previstas, permitem-se uma parada. A participação dos sujeitos no Cine CCH
nos remete ao que o autor considera imprescindível à experiência:
[...] a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempo que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar. (LARROSA, 2002, p. 24)
Com isso, entendemos que a simples chegada despretensiosa ao
auditório, a curiosidade em assistir ao filme e a presença e participação no
debate são indicativos que configuram o sujeito da experiência por sua
receptividade, abertura e disponibilidade. Infere-se nisto a dimensão de
experiência como travessia e perigo analisada por Larrosa. Para que algo
aconteça ao indivíduo, que algo lhe suceda ele precisa estar disposto a
atravessar “um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e
buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”. (LARROSA, 2002, p.25). Como
o autor nos lembra, o termo Erfahrung contém a palavra alemã fahren que
significa viajar. A experiência é como uma viagem, uma aventura na qual o
sujeito renuncia a segurança das certezas e previsibilidade dos acontecimentos
práticos do cotidiano e aceita viver os riscos do desconhecido, permite-se
percorrer um caminho estranho e exterior ao que ele é, o que ele faz. Em
contraposição ao que nós somos, o que executamos, a experiência é o que nos
acontece porque vem de fora de nós, ela nos atinge e arrebata, marcando e
alterando significativamente os sentidos e sem-sentidos que construímos ao
longo de nossas vivências.
Ao narrar sobre o filme exibido, o sujeito cria um sentido para o que foi
assistido, falando sobre e através dos traços e efeitos provocados neste
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contato cinematográfico. Por isso a narração é sempre um contar-de-si, contar
e compartilhar com o outro sua própria experiência. E ao falar sobre o que lhe
tocou, o que lhe marcou no filme, narradores e ouvintes não apenas trocam
experiências com o filme, com o cinema, como também as inventam e se
inventam. Quem narra, relata seu ponto de vista ou o que lhe chamou atenção
no filme, constrói sua relação com o que foi visto na tela e cria significados para
a própria experiência, ao mesmo tempo que afeta outros sentidos e
experiências. Os relatos ou narrativas deslizam umas sobre as outras,
modificam sentidos, ressignificam olhares, atravessam pensamentos e
(trans)formam os sujeitos. É neste movimento de interação que os debates
potencializam experiências fomentadas por ações e encontros dialógicos,
plurais, reflexivos e formativos nos quais diferentes olhares, vozes e saberes se
perpassam e se alteram, configurando processos de permanências e
mudanças.
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3 – “CINEMA É UM ACONTECIMENTO”: ATRAVESSANDO NARRATIVAS E
NARRADORES
Nesse capítulo tenho como objetivo trazer a análise dos materiais da
pesquisa referentes à relação dos jovens participantes do CINE CCH com o
cinema discutindo alguns dos aspectos que sobressaíram nas entrevistas. Para
isso, procurarei apresentar inicialmente a relação que eles tem com 1) o
cinema como experiência formativa na vida (na família, nos círculos que
frequentam, nos acessos via cinema, Tv ou internet), em seguida procuro
perceber como os entrevistados abordam 2) a relação com o cinema na
universidade associadas ao projeto do CINE CCH. Busco analisar, a partir
da fala dos sujeitos, como se formaram como espectadores na vida e na
universidade pensando sobre as dimensões trazidas por eles acerca de sua
experiência com o cinema.
Para essa análise, articulo os conceitos de narrativa e experiência,
conforme as proposições trazidas no capítulo anterior. A narração que é
entendida por Benjamin como a capacidade de criar e perpetuar histórias com
e através de experiências coletivas. Em diálogo com esse pensamento que
Larrosa (2002) compreende a experiência como um fato que não se esgota ao
final de seu ocorrido, mas produz efeitos contínuos e modificadores nas
pessoas. Narrativas são sempre carregadas de experiências, nunca se
esvaziam no imediatismo do dito, mas se prolongam como uma viagem (Farht)
pela qual nos deslocamos das vivencias e saberes fixos e previsíveis para
alcançar outras experiências. Dessa maneira e com intuito de analisar as falas
dos sujeitos nesse diálogo que trago a seguir o que percebi nesses dois
aspectos anteriormente enfocados nessa pesquisa. Isto é, como os relatos e as
histórias tecidas ao longo das entrevistas se revelam narrativas? Em que
medida os sujeitos se revelam narradores?
Foram realizadas ao final do ano de 2012 cerca de 10 entrevistas com
frequentadores assíduos do Cine CCH até aquele momento, as quais nos
permitiram ampliar a percepção das relações construídas com o cinema ao
longo da vida que em certa medida são constituintes dos sujeitos. Ao elaborar
o roteiro da entrevista (em anexo) visávamos nos aprofundar nas redes de
44
conhecimentos e culturas relacionadas ao universo cinematográfico dentro das
quais os participantes se formaram espectadores. Redes que revelam os
sentidos e sentimentos com e nas quais esses estudantes construíram suas
culturas de cinema, mediando suas relações com o mundo e com o outro e que
vão se entrelaçar de alguma forma com a própria experiência cineclubista na
universidade.
3.1 – Narrativas com o cinema, memórias de vida
Os entrevistados quando questionados sobre a relação com o cinema, a
falar sobre suas histórias de vida com o cinema, a maior parte demonstra
grande envolvimento e interesse, revelando a presença expressiva do cinema
em suas vidas desde a infância. Algumas falas são entretecidas por muita
emoção, desejos e perspectivas de vida, conotando valores significativamente
afetivos e sensíveis com o cinema.
Os relatos dos sujeitos nas entrevistas expressam sempre experiências
coletivas, situações, hábitos compartilhados com familiares ou círculos de
amizade entremeados por lembranças afetivas e filmes marcantes. Em
determinados relatos, os próprios sujeitos parecem reconstruir suas trajetórias
de vida permeadas pelo cinema, reconhecem o papel relevante do outro - de
um parente próximo, de amigos - na formação dessas tramas, como apontam
as falas seguintes:
Eu sempre gostei muito de cinema, sempre fui envolvida de alguma forma. Quando eu era criança, assim, eu ficava perturbando o meu pai, ia na locadora toda semana, alugava os mesmos filmes toda semana, aquela coisa de criança. Um hábito lá em casa. Porque bem ou mal meu pai me levava toda semana na locadora, a gente ia, alugava os filmes, então... Eu acho que eu tinha essa aproximação com a linguagem desde cedo, então pode ter influenciado pra fazer as escolhas que eu fiz depois. (Vanessa) Mas eu ia muito ao cinema antes de entrar na faculdade, aí sim, eu ia pra filmes hollywoodianos, assistir filmes de cartaz, com amigos da escola, amigas da escola, assistir, por exemplo, a série “Harry Potter”, assisti a todos os filmes, desde o primeiro. Depois com o pessoal do ensino médio, mas com quem eu ia mesmo era com meu irmão e minha cunhada. A gente ia sempre, assim, uma vez por mês ao cinema. Eles me levavam. Mas pra ver filmes do grande circuito. Eles me chamavam. Mas eu sempre gostei de cinema e queria ir e eles, por saberem que eu gostava de cinema, e que a minha mãe não saía e tudo, eles me chamavam e acabavam me levando. (Tiago) Eu nasci numa família que ia periodicamente ao cinema, então quando eles iam eles me levavam. Então na minha infância eu ia pra esses filmes que tão em cartaz, infantis, Disney, essas coisas, eu sempre ia com os meus
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pais. Depois que a gente se desprende desse núcleo familiar, de programinhas tão familiares e, digamos, mais próprio da infância e da criança, eu comecei a ir ao cinema, claro, por conta própria e fui diminuindo um pouco o ritmo. (Igor) Eu lembro que pequena, uma vez minha mãe levou a gente ao cinema para poder ver Xuxa (risos). Todo mundo, eu e minhas irmãs pequenas indo ver Xuxa. A lembrança que eu tenho melhor da minha infância no cinema. E depois eu já lembro muito vendo filme, que lá em casa todo mundo gosta muito de ver filme. (Sinara)
Na compreensão da narrativa em Benjamin (2012), os relatos
compartilhados nas entrevistas apresentam sentidos intencionalmente criativos
e inventivos de contar e pensar a própria história. A função interventora da
pesquisa surge nesse momento, ao convidar os sujeitos a revisitar suas
histórias de vida. As memórias trazidas de espaçostempos passados são
entrelaçadas com o hoje, intercambiando experiências de diferentes tempos e
lugares. No processo de rememorar os sujeitos desencavam, selecionam,
imaginam e refletem sobre filmes, pessoas, gestos, comportamentos e
sentimentos que perpassaram suas trajetórias de vida com o cinema. O valor
narrativo nesse movimento de contar suas histórias reside na possibilidade de
confrontar experiências passadas com os sentidos atribuídos no presente.
Desse modo, as lembranças quando narradas vão sendo elaboradas através
dos olhares de hoje, o que configura movimentos de reconstruir essas
trajetórias.
Entende-se assim como a narração implica em processos
eminentemente formativos para os sujeitos. Na medida em que contam/narram,
eles puxam fios da memória, desfiando as lembranças que se emaranham em
novas tessituras, criando novas tramas da vida e de si. Os relatos se revelam
narrativas quando ao contar suas histórias, elas ganham novos sentidos e,
portando, são recontadas e inventadas, potencializando outros aprendizados e
experiências com o cinema.
Nesse caminho narrativo, as falas também apontam outros indícios
pelos quais podemos seguir na apropriação de sentidos criados na relação com
o cinema. A narrativa não se constrói apenas da rememoração de experiências
longínquas, de uma época distante do contexto e momento em que é narrada.
Para Benjamin, a arte de narrar busca na experiência sua matéria, a fonte para
ser tecida e compartilhada. Com isso é que entendemos que toda coisa
narrada sempre traz marcas significativas que atravessaram e ainda
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atravessam as identidades e subjetividades dos sujeitos produzidas em
experiências com filmes, com o cinema que se desdobram em espaços e
tempos mais recentes. A recorrência nos relatos dos entrevistados em assistir
determinados filmes diversas vezes instiga a necessidade em compreender os
sentimentos, ideias e significados envolvidos nessa forma de consumo. A
prática de rever é significativa nos modos como eles se relacionam com filmes.
Essa necessidade da “repetição” aparece associada a filmes marcantes, que
lhes tocam ou referem-se a um tipo de filme de suas preferências:
Tem essa coisa de ver várias vezes. Então, eu alugava sempre o mesmo filme e agora se eu gosto muito de um filme eu compro e fico vendo de novo e ninguém aguenta ver comigo. Eu vejo sozinha, várias vezes.
(Vanessa) Filme que me toca eu não consigo assistir uma vez só. Não consigo
cansar. Aquela coisa da experiência que você tem começo, meio e fim e acabou. Não. Quando eu assisto de novo eu acabo me emocionando, me atentando para as mesmas partes. (Igor)
Eu gosto muito de filmes da Jane Austen. Conhece a Jane Austen? Orgulho e Preconceito, Persuasão, Emma... Todos esses filmes eu vejo, revejo.
Todo mundo que vai lá em casa eu boto para ver, meu namorado tem que ver também. É tanto filme que eu gosto. (Sinara) Os filmes que eu acho clássicos e que eu vejo nas Lojas Americanas que está baratinho, tipo doze reais, eu levo para casa. Aí, eu posso ver, rever,
eu empresto. (Mariana)
E falar de cinema é também falar de filmes que assim como as redes de
amigos e a família, as culturas de cinema também se formam nas práticas de
consumir e interagir com as imagens e narrativas fílmicas. Recorro à definição
de Nestor Canclini (2010) de consumo que o entende como “conjunto de
processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos
produtos”. (p. 60) Na compreensão de que os filmes constituem elementos
culturais fomentadores de significações e sentidos do mundo, o consumo
desses bens também integra e intervém em modos de pensar, criar e agir na
vida coletiva em sociedade. Tomando essas ideias que questiono, qual o
sentido atribuído em assistir novamente, ou várias vezes, partes já conhecidas
de filmes? Que relação eles parecem ter com o consumo de filmes na ótica da
repetição?
Esse tipo de prática, costume de rever determinados filmes várias vezes,
que é sinalizada na maioria das falas, sugere um consumo na contramão do
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sendo comum que o reduz a gastos supérfluos e irracionais. Dessa forma, este
estudo entende como o consumo de um filme não se esgota ao ato imediato
em que é assistido, quando está imbricado em processos de significações. Um
filme como objeto de consumo pode se transformar através dos usos e
apropriações que o espectador constrói ao assisti-lo, bem como o espectador
se transforma ao descobrir-se sujeito/consumidor nas relações construídas
com o filme.
É interessante notar, por exemplo, a necessidade de Igor em retomar
cenas que lhe causaram emoção, de estar atento às mesmas cenas como ele
mesmo afirma. Essa repetição é sem dúvida associada a filmes que lhes
tocaram, provocaram vestígios que podem se configurar em experiências no
sentido que Larrosa (2002) nos fala. Parece então que no retorno ao filme,
àquela cena há uma tentativa de ser novamente tocado, alcançado pelas
marcas deixadas outrora, de apreender o efeito produzido. Mesmo na
impossibilidade da experiência se repetir, é preciso sempre um reencontro que
reafirme os valores, sentidos e sentimentos construídos naquela relação.
A partir das referências cinematográficas que aparecem nas entrevistas
como filmes que mais gostam ou que mais lhe marcaram, como os próprios
sujeitos dizem, os filmes são concebidos como produtos culturais que na
interação com os espectadores, eles se constituem consumidores e produtores
singulares e múltiplos de culturas de cinema. Isto é, filmes que marcam são
filmes que deixam rastros e se desdobram em experiências, imaginários,
emoções, afetos e histórias carregados de sentidos coletivos e formadores. Tal
como Larrosa (2002) conceitua o sujeito da experiência como território de
passagem, o espectador se define pela disposição e receptividade para ser
atravessado pelo filme que assiste. Assim, penso que quando dizem que algum
filme lhes marcou, os sujeitos admitem a condição de entrega e abertura para
serem transpassados pelo filme e nele transpassar.
Os motivos apresentados para justificar suas preferências fílmicas
também são bastante variados como, por exemplo, Juliana relaciona a
intervenção da literatura nas suas escolhas de filmes: “Ah, isso é uma coisa
interessante, mas eu gosto de ver filmes que vieram de livros que eu goste
muito.” enquanto Vanessa atribui um critério mais subjetivo para essa seleção:
“Eu gosto de filme que não me dá respostas prontas, assim. Eu gosto de estar
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impactada, de alguma forma. De ficar remoendo aquilo, um tempo. Não gosto
de filme fácil.”
Alguns não chegam a citar filmes específicos, trazendo nomes de atores
e diretores como elementos motivadores na relação com os filmes como a
estudante Mariana: “Eu tenho dois autores que eu sou completamente
apaixonada que é o Woody Allen e o Pedro Almodóvar. Eu sou apaixonada por
eles, eu vejo tudo que eles fazem.” E Juliana: “Eu tenho uma relação com
atores também, atores que eu preciso acompanhar sempre.”
Outro ponto relevante que surge na maioria das entrevistas é a distinção
entre filmes fora do circuito industrial e filmes comerciais que aponta para uma
forma significativa de consumo, como compreendem e se relacionam com
filmes. Algumas denotam certo desprezo pelas produções hollywoodianas ou
blockbuster, apresentando esse tipo de conhecimento para discriminar filmes
bons e filmes ruins.
Eu tento me informar mais sobre esses filmes alternativos porque eu não costumo gostar muito do que está passando nas salas. Eu amo cinema, mas não gosto de ver Lanterna Verde, Hulk, Batman. (Mariana) Como a gente mora afastado desse eixo zona sul/centro, lá perto de casa é difícil a gente ter filmes mais assim... É mais pastelão, blockbuster. Então, meu namorado, ás vezes tá com preguiça de ir pra longe e aí a gente vai ver, sabe, esses filmes. E aí eu acho um saco. (Vanessa) Quando eu digo “ir ao cinema”, não necessariamente numa sala de cinema com essas apresentações de filmes hollywoodianos que também não são os que mais me apetecem, mas algo alternativo, né? Estação, Cine Santa, deixa eu ver... Arteplex. (Tiago)
Percebe-se como a criação desses critérios é decisiva nos modos de
escolher e avaliar filmes, constituindo assim uma forma de ser espectador.
Duarte (2009) fala que a criação dessas categorias repousa numa concepção
de cinefilia (p.64) com a qual os sujeitos tendem a valorizar produções que
abordem temáticas mais complexas, experimentais que envolvem também
práticas de pesquisa e investimento intelectual sobre cinema. A grande maioria
dos entrevistados faz referência ao cinema como um programa social, evento
ou passeio fazendo distinção do filme em si. Alguns entrevistados admitem a
baixa frequencia a salas de cinema, denotando outros hábitos adquiridos para
se relacionar com a arte cinematográfica.
É uma espécie de ritual, né? Um ritual de você ir ao cinema, de estar ali no
coletivo, partilhando daquela experiência de ver aquele filme, enfim, tem todo um ritual que em casa não tem. (Tiago)
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Hoje em dia, eu ir ao cinema é um pouco difícil, eu assisto filme em casa mesmo, baixo na internet ou pego filme com alguém e assisto no meu computador. É bem diferente né cara, a sensação é outra, na verdade
eu não tenho ido muito ao cinema porque eu moro em Niterói e as salas de cinema que tinham lá praticamente todas fecharam, (Aghatha) Cinema virou um lazer um pouco difuso. É um pouco disperso hoje em dia, na minha experiência atual. Não sei se cabe falar aqui, mas eu baixo muitos filmes na internet (fala rindo com certa “vergonha”), acho que não cabe, né? É pra falar de cinema? Eu baixo muitos filmes em alta definição, coloco no meu HD externo, assisto o filme e a experiência é outra. Não digo nem que é melhor ou pior, mas é outra experiência. (Igor)
O acesso a filmes pela internet, através de compra, locação de filmes
em DVD e cópias não autorizadas sobressaem como as formas que os sujeitos
buscam para assistir filmes. Evidencia-se com isto um consumo de filmes muito
mais relacionado com esses suportes do que a frequencia de salas de cinema,
vista como um “ritual”. Por outro lado, vemos uma parte deles ainda frequentam
com alguma regularidade as salas de cinema tanto quanto buscam e utilizam
outros meios e recursos para consumo de filmes. No entanto, essa frequencia
ao cinema tem um objetivo específico como nos aponta a fala seguinte que
corrobora com a de outros entrevistados:
O cinema é mais um acontecimento. Estou querendo comemorar alguma coisa, tive uma semana muito estressante, então eu vou ao cinema. (Juliana)
Essa imagem trazida por Juliana remete inevitavelmente às palavras de
Larrosa (2002) que chama o sujeito da experiência de “espaço onde tem lugar
os acontecimentos”. (p.24) Ponto de chegada, território de passagem ou lugar
do acontecer são termos que o autor utiliza para se referir ao sujeito no qual a
experiência passa. Isso supõe que a experiência não é o acontecimento, mas o
que torna o sujeito vulnerável a habitar acontecimentos. Sendo assim, o
acontecimento é sempre exterior a nós, algo que não resulta das nossas ideias,
projeções, vontades e poderes. O acontecer não depende da ação e
planejamento da pessoa, apenas de sua ex-posição ao que é diferente do que
ela pensa, diferente do que ela sabe, diferente dos discursos e práticas nos
quais está acomodada. Neste sentido, a prática de ir a salas de cinema é
sentida e tratada pela maioria como ocasião especial, um ritual como disse
Tiago, que não deve ser reduzida a uma situação corriqueira. A noção do
cinema como acontecimento repousa neste entendimento de escapar
temporariamente dos regulamentos e linearidade da vida cotidiana e se lançar
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ao que está fora de nós, abrir em si um caminho para que o novo e inesperado
ganhe passagem.
Assim como os diálogos e reflexões partilhados nos debates do Cine
CCH, as entrevistas também configuram movimentos de narração no sentido
benjaminiano. Nas entrevistas individuais, no entanto, o exercício de escuta e
fala adquire uma dimensão metodológica mais aberta e dialógica que visa
compreender os sentidos que esses sujeitos já produzem com o cinema. Na
medida em que os entrevistados/narradores são convidados a colaborar com a
pesquisa a contar de si, isto é, ao voltar na memória, resgatam histórias de vida
debruçando-se sobre sentidos, valores, crenças e saberes estabelecidos com o
cinema.
A tarefa de motivar os entrevistados a narrar sobre suas historias não se
restringe apenas na apreensão de pensamentos, memórias de suas trajetórias
de vida com o cinema. O que se torna significativo nesse processo é a
possibilidade de repensar memórias vividas e imaginadas relacionadas com o
cinema. Ao narrar, eles narram e inventam a si mesmos, entrelaçando e
ressignificando as experiências de diferentes tempos e lugares que os
constituem sujeitos.
3.2 – Narrativas com o cinema e a universidade
Num segundo momento, procuramos focalizar nas entrevistas as
relações que existem e que podem existir entre o cinema e a universidade pela
percepção dos estudantes, qual o lugar do cinema, dos filmes no espaço
acadêmico.
A gente está na universidade, só lê texto, vira uma coisa maçante, não que isso seja chato, também adoro ler. Mas também é tão legal ir numa aula, diferenciar, em vez de ler, ver um filme. A gente está ganhando tanto quanto, aprendendo tanto quanto, mas de uma maneira diferente, de outra forma de expressão. (Mariana) Bem, acho que já tá começando com essa proposta do Cine CCH, essas películas de diferentes tempos, de diferentes temáticas, eu acho que de diferentes direcionamentos. Elas já trazem, inevitavelmente trazem uma dinâmica nova pra universidade. Eu não digo que aquela dinâmica vá se perdurar após o filme, mas durante o filme, o que que pode agregar de experiência? Bastante! Que contribuições ou que diálogos possa haver da universidade com o cinema? Eu acho que poderia ter muito mais do que já tem. Fazer uma relação com a disciplina, com o que tá escrevendo, uma discussão em sala de aula, para tentar flexibilizar, eu acho, um pouco, do que é prescrito, do que é pensado e projetado por um professor. Eu não
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posso criticar e jogar nada, mas eu penso que poderia ser diferente. E o cinema, um grande canal pra se pensar outras coisas. Então, o dialogo é esse: de agregar experiências, de trazer questões que possam dialogar com a disciplina. (Igor) Uma vez eu falei isso lá na UNIRIO, diante dos professores, uns adoraram, outros ficaram com a cara meio torta, mas eu falo. Eu posso estar totalmente enganado, mas é meu ponto de vista! Eu acho que o cinema é um... Não gosto da palavra dispositivo, mas na falta de outra eu vou falar: é um dispositivo formativo privilegiado. E qual é a crítica que eu faço? Que na universidade, na UNIRIO, no curso de Pedagogia mesmo, muitos professores, a despeito de ter uma discussão de cinema no curso de Pedagogia não entendem, do meu ponto de vista, o cinema como essa possibilidade de formação. Ainda tem – isso do meu ponto de vista – um ranço de achar que o cinema é pra discutir a matéria. Porque vai quando o filme tem a ver com a minha disciplina, se não tem, vou perder o tempo da aula, como se a aula garantisse a pessoa discutir questões... Entendeu? E aí você perde uma experiência que é formativa do ponto de vista estético, do ponto de vista ético, e do ponto de vista epistemológico mesmo. (Tiago)
Os relatos acima apontam sob diferentes perspectivas a constatação de
um tratamento escasso e distante que o cinema encontra no contexto de
formação universitária e defendem o seu valor como possibilidade de
aprendizado, diálogo e experiência. Assim como Mariana, Tiago também
contesta a maneira secundária com que o cinema é contemplado nas práticas
curriculares, ressaltando sua potencialidade formativa tanto quanto a prática
recorrente de leitura de textos no curso que frequentam. Tiago acredita que,
em geral, os professores tenham ainda receios e dificuldades em trabalhar com
o cinema em suas diversas vertentes de abordagem, como ele mesmo cita,
que podem ser pelo ponto de vista epistemológico, estético, ético, em
detrimento de reduzir um filme como ferramenta de apoio disciplinar. Por outro
lado, para Igor o cinema pode operar como objeto catalisador para as
disciplinas, contribuindo na ampliação de debates e reflexões trazidas pelo
professor.
Ao mesmo tempo, o estudante também aponta outro modo de relação
do cinema possível no âmbito acadêmico e questiona as formas
hegemonicamente pensadas e praticadas da pesquisa na universidade.
Eu não iria evitar em citar o próprio filme numa dissertação, num trabalho. Eu já fiz isso! Uma música, alguma obra de arte... Por que não um filme? Então, se eu estou assistindo um filme na universidade que possa ter me tocado e que eu posso fazer uma relação com a minha vida e com a minha pesquisa, com o que eu leio, por que não? Eu acho que a gente tem que ter o livre arbítrio e a universidade tem romper... Não romper, apenas, com alguns modelos, mas deixar com que a própria vida entre na formação. E quando começa a pesquisa, será que você não pode trazer um pouco do que você vê, do que você faz atualmente para a pesquisa? (Igor)
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Sua fala deixa transparecer como o cinema já é referência na vida
cotidiana dele e essa forma de ver e pensar o mundo com e através de filmes
esbarra nas lógicas convencionais acadêmicas. Essa postura é um desafio a
se pensar em possibilidades outras de produzir, refletir e circular o saber
científico elaborado no âmbito da formação acadêmica, pelas quais também
sejam legitimados processos discursivos e investigativos promovidos com a
linguagem cinematográfica. É interessante notar pelo relato de Igor o
reconhecimento de como a relação com filmes pode tomar rumos
transformadores. Como o próprio estudante afirma, um filme pode
desestabilizar o pensamento, subverter formas rígidas e naturalizadas de
conceber o mundo que são formas também de ser e estar na universidade. Se
é na abertura e exposição ao outro que a experiência nos acontece, como nos
fala Larrosa (2002), um filme é um possível outro para nos atingir, nos
arrebatar e formar.
Essa percepção do caráter formador do cinema construída dentro da
universidade é evidenciada em outras falas, como Sinara e Lucia que sinalizam
para o que já havia sido apontado pelos outros colegas, o cinema como parte
inerente ao cotidiano e, portanto, já atravessa o meio universitário.
Faz parte, da universidade, da escola, da nossa vida como um todo. O cinema também é uma forma de aprendizagem. As pessoas não enxergam dessa forma. E a gente está aprendendo, está crescendo, amadurecendo. (Sinara) É uma arte, né. É uma leitura, uma construção, uma linguagem que o homem fala do seu cotidiano, do que afeta, dos seus incômodos, inventa, inventa tanta coisa... É muito bonito. Tem a literatura que já é uma loucura, né, e o cinema... então, a gente aprende muito com o cinema. (Lucia)
Apropriando-se das palavras de Lucia, esta pesquisa entende que o
cinema que afeta é o que nos forma e incomodados nos afetamos e nos
(co)movemos para formar o outro, a nossa realidade que são constituintes de
nós. Nesse exercício de narrar o cinema dentro da universidade, eles não só
problematizam o lugar que ele ocupa no âmbito acadêmico, como buscam
pensar nas pontes e diálogos entre o cinema e a própria formação.
Eu acredito que ele (cinema) deve ser incorporado na universidade de uma forma planejada e sistematizada mesmo, mas sem com isso perder a participação coletiva, espontaneidade, atendendo a demanda das pessoas. Mas ser sistematizado mesmo, porque faz parte da construção cultural ali e tal, você ter isso como formação. Até porque, por exemplo, na faculdade de Pedagogia, sobretudo, você vai trabalhar com professores, não o professor para desenvolver uma demagogia da leitura, ele tem que ler. E, hoje em dia
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você já tem que ler, ler o mundo, você lê diversas linguagens, inclusive cinema, então o professor nos processos de letramento de mundo é ideal que ele trabalhe com o audiovisual porque as crianças estão sendo bombardeadas por isso o tempo todo. Então, assim, é bom que tenha isso, em ter espaço sistematizado para você enriquecer a sua experiência com o cinema, é importante. (Aghatha)
Vejamos que Aghatha defende a integração do cinema com a
universidade na formação dos sujeitos assim como seus colegas. Contudo, seu
olhar focaliza a experiência com o cinema, isto é, como a universidade pode
contribuir na formação com e para a linguagem cinematográfica. O cinema não
aparece em sua fala apenas como elemento potencializador de questões e
debates para os cursos acadêmicos, como recurso de aprendizado a ser
contemplado nas práticas disciplinares. O que ela propõe é a importância da
universidade incorporar o cinema através de atividades, projetos e recursos
materiais, no reconhecimento do valor coletivo e acolhedor das imagens
fílmicas na formação cultural das pessoas.
3.3 – Narrando o Cine CCH, a universidade atravessada pela experiência
cineclubista
No terceiro momento das entrevistas, buscamos trazer dos entrevistados
seus olhares e dizeres para o projeto Cine CCH e para a própria experiência
construída enquanto espectador/estudante. Nas falas a seguir, eles contam
como conheceram o projeto, suas motivações e expectativas para participar e
continuar a frequentá-lo.
“O leitor”, a “Janela da alma” e “Carregadoras de sonhos” foram três filmes em que a professora deixou a gente ir assistir o filme e discutir depois em sala. Ela pediu pra gente assistir, fazer uma relação com a disciplina. Sobre a questão da leitura e da escrita. Discutir um pouco o
filme, o que a gente compreendeu e como a gente enxergaria, como a gente poderia se situar naquele contexto da menina que não sabia ler e pedia pra outra pessoa ler. (Igor) Foi num dia que eu não tinha aula e eu fui assistir. Depois as professoras das disciplinas também levavam. E depois eu gostei. E tinha disciplina que você conseguia negociar: o professor não vai, mas deixa que você vá, e tem outras que não dava pra negociar e aí não tinha jeito. No início era porque era disciplina. As disciplinas pediam pra levar, pra ir. Depois eu comecei a gostar. Assim, vivendo na experiência mesmo de ver o filme e depois discutir sobre o filme, aí comecei a gostar. Alguns
professores não levavam, mas aí eu falava que ia, eles deixavam e eu ia. E quando não deixavam... Teve dois... Teve uma vez que uma professora disse que não podia abrir mão da aula, eu tinha direito a falta, faltei. E acabou! (Tiago)
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Foi com uma atividade de sala de aula. A professora sugeriu que a gente assistisse. Porque na verdade, professor não leva, ele sugere. Tem
gente que assina e foge, né. O aluno não fica se não quiser, por isso que eu disse que não leva. Ele assina, foge, entra e sai pela outra porta. Eu fui para participar do debate porque eu acho interessante essa coisa do filme com debate. (Lucia)
O que dizer da experiência desses sujeitos com o CINE CCH? É claro
nesses relatos como o papel do professor que permite a ida ou sugere, nas
palavras de Lucia, uma determinada sessão para seus alunos e alunas se
mostrou fundamental para a entrada desses sujeitos no projeto, mesmo que
seja em favor de sua própria disciplina. Neste ponto, torna-se relevante
ressaltar que o Cine CCH sempre funcionou a partir das 18h, portanto, em
consonância com as aulas dos cursos no horário noturno. Como projeto de
extensão, o Cine CCH não possui vínculo com qualquer disciplina específica
dos Cursos oferecidos pela UNIRIO, apesar do caráter articulador com práticas
de ensino e pesquisa. Dessa forma, quando há o desejo de estar presente em
algum filme e debate, os estudantes também sugerem a seus professores que
levem a turma, ou como diz Tiago criam argumentos e estratégicas de
negociação.
Já Aghatha e Mariana demonstram um outro aspecto de envolvimento
com o cinema que revela o interesse e curiosidade em vivenciar uma atividade
nova na universidade, uma experiência cineclubista, elementos que as
impulsionaram a frequentar o Cine CCH.
É uma coisa que estava faltando, uma coisa que eu acho maravilhosa e que estava faltando. Tudo de bom! Ela faz sessões de cinema, não com filmes de cinema que passam no cinema... A maioria dos filmes eu já vi, aí eu quero rever e chamo o Pedro e a gente vem para uma sessão de cinema. É muito bom! Na universidade e podendo ainda conversar sobre o filme depois. Eu acho muito legal a ideia do projeto. A gente sempre passa pela primeira UNIRIO e lá tem sempre um cartaz do Cinema e Psicanálise e eu sempre queria ir lá, só que é lá, é longe e é sempre nos horários de aula. Aqui (prédio do CCH), por mais que seja no horário de aula, além de alguns professores liberarem, é aqui, aqui embaixo, é pertinho, dá para a gente ir, matar aula se for o caso... para ver um filme acho que vale a pena. (Mariana) Eu comecei a participar quando veio a ideia de sala de exibição lá no prédio do CCH, achei superinteressante, foi produtivo e aí geralmente você vem para aula e os professores quando liberam para ver o filme, “pô”, não tem porque você não ir, você já tá aqui, você vem para a aula, então vai acontecer um filme, vamos ver o filme, é super enriquecedor sim, parar e ver o filme ali, todo mundo e, discutir depois. (Aghatha)
Ao narrar suas participações no projeto, eles avaliam o lugar e
significado do projeto na UNIRIO, percebendo-o como espaço alternativo de
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vivenciar a travessia enquanto universitário. A proposta de assistir e debater os
filmes em meio à práticas de formação acadêmica surge como possibilidade de
ampliar, diversificar e pluralizar a trajetória na universidade. Isis e Juliana
explicitam que buscam e encontram no Cine CCH a exercitar olhares e fazeres
outros para além da previsibilidade das disciplinas curriculares.
Eu gosto dessa coisa de ter esse espaço na universidade porque há um tempo não tinha. É uma que eu sinto falta na universidade, é falar de questões atuais ou questões que não são ligadas à educação. Então no Cine CCH, nos debates, eu vou pelo filme também, que eu gosto de ver filme, mas nos debates, eu acho que essa coisa não que venha ser tão forte assim, mas às vezes eu consigo falar mais sobre o que está acontecendo hoje em dia do que só o mundo à parte e sobre outras coisas. Eu posso debater sobre outras coisas e que a gente não fala na sala de aula ou na universidade e o filme é bom. (Isis)
Eu acho interessante se criar esse espaço. Se a gente for pensar nisso, a gente não tem espaço na UNIRIO que se utilize de outra forma. E o Cine CCH é mais ou menos isso, é uma opção de você estar na faculdade e você debater, não é só assistir o filme e ir embora. É você discutir sobre alguma coisa, não necessariamente na sala de aula, não necessariamente sobre educação. Discutir outras coisas que são importantes também. Aí se trata da questão da universidade, né, que é
faculdade-pesquisa-extensao-ensino, né. Não é só ensino, não é só sala de aula. É utilizar o espaço de diversas maneiras. Quando eu entrei no Cine CCH foi uma coisa completamente diferente porque a única maneira de utilizar o espaço da universidade diferente é ou em festa, que agora nem é mais tão permitido assim, ou então em sarau que na maioria das vezes as pessoas do CCH não são convidadas porque é organizado pelo pessoal da música ou do teatro. Então, eu penso nas pessoas novas que estão entrando agora, como elas vão ter uma relação diferente. Não é como você ser obrigado a assistir a uma palestra chata com alguém que você não conhece. É para você ir assistir um filme, debatendo, construindo. (Juliana)
Os relatos anteriores tomam o Cine CCH como campo de embrenhar
questões e territórios poucos explorados do cotidiano acadêmico, favorecendo
a expressão e construção de sentidos e conhecimentos desalojados da
segurança e exigências típicas da graduação. Não por acaso estas últimas
entrevistadas fizeram também depois de conhecer o projeto parte da equipe
que o organizava, tais eram suas identificações com a proposta. Essa postura
que se revela em suas atitudes e falas que é impulsionada pela escolha,
abertura e disponibilidade ao diferente, que escapa das situações impostas e
instituídas é o que Larrosa (2002) chama de gesto de interrupção. A vontade
de parar, suspender os rituais e obrigatoriedades de sala de aula, como coloca
Igor, pressupõe um gesto de busca e risco. Se retomarmos ao que Lucia disse,
o professor nunca leva, ele sugere que seus alunos participem do Cine CCH. O
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que os instiga é a descoberta do novo, de renovar e experimentar formas
diferentes de estar e ser estudante na UNIRIO.
Assim, ao arriscar-se abdicar temporariamente das demandas
disciplinares do dia a dia, os sujeitos procuram intencionalmente deslocar e
reinventar olhares e relações na e com a universidade, que não sejam
vinculados ao saber vivenciado, produzido, habilitado, mas o saber da
experiência. Por isso o sujeito da experiência se define como “superfície
sensível que aquilo que acontece lhe afeta de algum modo” (p.19), pois
somente quando rompe com as práticas calculáveis centradas na ação e
produção de conteúdos, na competência e execução de tarefas é que torna-se
um território de passagem para que o outro lhe atravesse e lhe altere.
Nessa perspectiva, destacam-se relatos nos quais os sujeitos
reconhecem a participação no Cine CCH como lugar possível para que algo
lhes aconteça, isto é, espaço onde podem emergir outros sentidos e caminhos
para a própria formação. Como bem lembra Vanessa o Cine CCH “contribui pra
formação e, além disso, formação cultural, assim, formação como pessoa, te
dá mais repertório”.
Tudo o que acontece na universidade faz parte da minha formação. As vezes a gente acha que não, que são coisas isoladas, um evento que a gente participa, um filme, ou uma oficina que tem como essas do Tic Tac. Está tudo ligado, é o processo de formação da gente como estudante universitário. Por isso eu acho tao bacana. Eu acho que deveria
ate ter outras coisas também. Além do cine CCH deveria ter outras coisas. Sair um pouco da sala de aula. (Sinara)
O gesto de interrupção que requer a abertura e disposição para escutar,
olhar, abrir e se expor ao outro é evidenciado em muitos relatos. Reconhecem
o lugar do outro como aquele que lhe é externo, diferente, mas também
constituidor da sua experiência, quem provoca, incita e contribui na construção
de olhares e significados novos sobre o filme. Contudo, algumas falas deixam
expressar como a diversidade de sentidos apropriados e partilhados a partir
dos filmes podem causar incômodos, que é próprio também do que nos afeta.
Você discute com pessoas que você conhece, outras que você não conhece, e sempre surge uma questão nova, que te faz pensar, e isso me motivou a ir ao encontro. Porque se for só pelo filme, eu não sei se eu iria. Não vou nem dizer que eu gosto dos debates, porque a gente não sabe como vão ser, mas a possibilidade de ter o debate. Eu mesmo quase não participo, mas ouvir o outro... (Igor) Sinceramente, a parte que eu mais gosto (os debates) – sem contar o filme, que é uma experiência ótima. Mas eu gosto muito dos debates. Porque
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você tem a possibilidade de compartilhar pontos de vista, ouvir o ponto de vista do outro que, muitas vezes, te mostra ou te convida a pensar em uma coisa que você nem tinha pensado. Agora, claro que tem aquelas pessoas que falam umas coisas que você fica arrepiado. Né? Eu fico arrepiado, me dá um frio na espinha, mas faz parte, é lidar com o outro, né, com a diferença. (Tiago)
Todos os entrevistados admitiram participar e gostar dos momentos de
debate após os filmes. Como o Cine CCH é sempre aberto, sem temas e
debatedores direcionados, as discussões que se seguem aos filmes são
compostas conforme as articulações e movimentos criados pelos próprios
frequentadores. Para além de expor opiniões e explicações sobre o filme, os
sujeitos percebem os debates como momento de troca, escuta, confronto de
ideias, ampliação do olhar e da reflexão. Assim como Tiago e Igor, os demais
entrevistados também valorizam a fala do outro, mesmo que controversa, como
legítima na dinâmica dos debates. Isso sugere uma compreensão do olhar do
outro que também constitui o olhar que construímos com o filme.
Os relatos tecidos ao longo dos debates podem ser entendidos como
narrativas criadas a partir das marcas provocadas pelo filme. No movimento de
narrar e escutar os sujeitos dialogam, aprendem, refletem e compartilham com
as experiências trazidas pelo filme. Afinal, o filme nunca é um lugar fechado em
si, mas habita possibilidades e experiências. Os olhares que se revelam em
narrativas são abertos e receptivos ao outro, assim ao narrar e escutar a
experiência com o filme se recria. E é exatamente isso que se denota pelos
entrevistados, a busca nos debates de outro sentido com o filme, a
possibilidade de ampliar as tramas na relação com o que foi exibido.
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A PESQUISA COMO ACONTECIMENTO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma luz se ascendeu para mim: é de companheiros de viagem que
eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres, que carrego comigo para onde quiser ir.
Mas é de companheiros vivos que eu preciso, que me sigam porque querem seguir a si próprios – e para onde eu quero ir.
Nietzsche
Este trabalho teve início junto com minha chegada ao projeto de
extensão Cine CCH no qual atuei e me encontrei no lugar de voluntária,
estudante do curso de Pedagogia da UNIRIO e bolsista de Iniciação
Científica/UNIRIO da pesquisa vinculada ao projeto. Os diferentes papéis e
posições que assumi nesse caminho se enredaram entre si me enredando para
outras redes de saberes e fazeres na trajetória que estava percorrendo na
universidade. Percebi no Cine CCH outras possibilidades de estar na UNIRIO
para além dos dispositivos e práticas prescritos e previstos no currículo do
curso de graduação. As relações e aprendizados que me formavam nesse
espaço iam aos poucos revelando maneiras mais criativas e inventivas de
desenhar essa trajetória, criando outros significados no percurso a ser traçado.
Tomando esta percepção que fui instigada a questionar os modos com
que os estudantes freqüentadores do Cine CCH se relacionam com o projeto,
isto é, em que medida essa participação criava pontes significativas na estrada
que também percorriam na formação universitária. Ao empreender o olhar de
pesquisadora no campo, procurei problematizar como os sujeitos estabeleciam
dimensões formadoras com uma atividade cineclubista dentro da universidade.
A busca pelo diálogo com Walter Benjamin (2012) se deu por evidenciar
como os debates se constituem potencialmente férteis para emergir possíveis
narrativas. Na medida em que o filósofo compreende a arte de narrar como
forma de compartilhar e transformar experiências, conseguimos pensar o
sentido do cineclube que extrapola a mera exibição e discussão em torno dos
filmes exibidos. Sentidos que são criados conforme as ações e movimentos
que os sujeitos constroem coletivamente num trançar de olhares, gestos e
vozes que atravessam os debates. Eis o seu caráter de formar: a capacidade
dos participantes de criar e partilhar significados coletivos e dialógicos com os
filmes e para além deles, significados que irrompem como rastros em si e para
além de si mesmo.
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Para chegar a tal entendimento, no entanto, procurei primeiro articular
diferentes autores que analisam as relações do cinema com a educação para
argumentar a importância social das imagens fílmicas na formação das
pessoas. Ao longo das discussões e estudos no grupo de pesquisa Cine
Narrativa, pude problematizar a relação entre formação e o cinema, de que
maneira nós a concebíamos e como ela podia ser pensada dentro de um
espaço cineclubista no contexto acadêmico. Assim, as leituras e reflexões
produzidas no grupo se cruzando aos passos e aos olhares que trazíamos dos
campos de trabalho, alimentavam ainda mais nossas trocas, inquietações e
questionamentos. Apesar de atuarmos em campos diferentes, eu e minhas
colegas de pesquisa compartilhávamos o objetivo de investigar as relações
formativas que os sujeitos criam com o cinema no âmbito da educação formal.
Neste caminhar teórico, priorizei estudos como o de Duarte (2009) e Fantin
(2006) que sustentam o valor do cinema como prática social expressiva na
construção de aprendizados e interações das mais variadas naturezas, o que
significa entender o seu potencial em fomentar processos de significação da
realidade, do mundo.
Do mesmo modo que o sentido pedagógico do cineclube não repousa
nele em si, o cinema não atua isoladamente na formação dos sujeitos que com
ele se envolvem. Para verificar como essas relações se estabeleciam, o olhar
curioso e analítico de pesquisador não era direcionado ao filme, ou
simplesmente às impressões que os sujeitos manifestavam sobre ele, mas era
preciso vasculhar as redes criadoras e coletivas de vozes, olhares e
conhecimentos que emergiam com e para além dos filmes. A partir desta
percepção, compreendemos que o sentido formativo não estava no filme em si,
não eram os filmes que formavam os sujeitos, ou as discussões que
viabilizavam uma compreensão mais ampla do que havia sido assistido. Mas a
formação residia nos momentos de interação com o filme, nas relações que
eles criavam com o filme e com os momentos de debates.
O sujeito-espectador capaz de participar e apreciar ativa e criativamente
do filme, no ato de ver transforma-se em sujeito-autor que se apropria e cria
significados com o filme. Entender o cinema que vai além dos instantes do
filme exibido, para além das restrições do espetáculo e do lazer, infere nesta
noção do espectador que na interação que constrói com o filme, ambos se
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formam. Entender como esses jovens se constituíam narradores e narradoras
se dava no olhar e na escuta de pesquisador atento e aberto para captar uma
possível experiência na fala sobre uma cena emocionante, na reflexão sobre o
destino de um personagem, ou na avaliação sobre a fotografia do filme.
As entrevistas também se revelaram momentos de narração tecidos
pela conversa e encontro entre diferentes espaços e tempos que provoca
outros afetos, inquietações, reflexões e desejos com o cinema, com a
universidade e com a vida. Destaco das falas dos entrevistados a importância
atribuída ao Cine CCH em suas formações ao reconhecê-lo como atividade
que possibilita redimensionar a estrada que percorrem como universitários.
Como futuros pedagogos, esta constatação denota não apenas o valor que
percebem da prática cineclubista no contexto da graduação, mas
implicitamente compreendem o cineclube como alternativa para os espaços
tradicionais de aprendizado formal, como possibilidade de produção e interação
de conhecimentos. Assim, o Cine CCH como atividade cineclubista propicia
processos de construção e circulação de saberes entre seus participantes
favoráveis à sociabilidade, à ampliação do repertório e formação do
espectador. Neste sentido, percebo como a experiência com o cinema na
universidade possibilita outras maneiras de construir esse percurso de
formação, isto é, de ver, pensar, agir, criar e se relacionar com os espaços que
não estão prescritos nas ementas curriculares.
O sentido de experiência segundo o pensamento de Jorge Larrosa
(2002) fulgurou para mim como elemento propulsor na tessitura das redes
teóricas e metodológicas da pesquisa, criando nós entre as ações e
perspectivas que nelas insurgiam. Sendo o Cine CCH entendido como um
deslocamento do modo de estar e ser na formação universitária, os jovens que
participam do projeto buscam um encontro diferente nesta travessia para que
algo lhes atravessa como experiência. Aquilo que nos toca, nos afeta e nos
acontece é o que nos move para além dos saberes estabelecidos, da
fugacidade das informações e fatos cotidianos, das supostas essências da
vida, para além de nós mesmos. Por isso, a experiência (erfahung) é o que
determina nossa capacidade de se (trans)formar. A formação, portanto, é
pensada como uma viagem pela qual atravessamos sob o risco do
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indeterminado e do perigo de algo que nos possa acontecer, nos desdobrar em
uma experiência.
Essas considerações me levam a acreditar nas ações e relações
construídas coletivamente no Cine CCH como irrupção de acontecimentos nos
sujeitos envolvidos. Ao concebê-lo como lugar propiciador de trocas, diálogos,
disputas e exposição, julgo que o Cine CCH constitui espaço possível para a
experiência, para atravessar e ser atravessado pelas experiências de seus
atores.
A travessia ou método que percorri neste trabalho me sucedeu como
pesquisa-intervenção, na medida em que as situações, pessoas, narrativas e
movimentos apreendidos no Cine CCH me insurgiam como acontecimentos.
Minha posição de pesquisadora no campo se mostrou mínima diante da
potência de rastros, afetos e marcas suscitados pelos seus participantes nesta
pesquisa. Então, a pesquisa se afirmou como ponto de chegada, ou território
de passagem para receber os sentidos ou sem-sentidos produzidos pelos
sujeitos (LARROSA, 2002), exposta e atenta aos gestos, posturas, emoções,
saberes e vozes nela atravessavam e se desdobraram em acontecimentos.
Este não é um trabalho sobre experiências com o cinema na UNIRIO,
mas um estudo com experiências que se atravessaram na universidade com o
cinema. Assim como para muitos dos sujeitos cujas participações no Cine CCH
se transformaram em experiências, esta monografia é o que se desdobrou de
mim nesta travessia de pesquisa. É a tessitura de rastros e vestígios que se
formaram ao me formar para além de mim. É o meu acontecimento.
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XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 1983.
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ANEXOS
PERFIL DOS PARTICIPANTES DO CINE CCH
Data: _____ / _____ / _______
1) Identificação:
1.1) Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino 1.2) Idade: ____________
2) Qual seu curso? ______________________Período:_______ Turno: ___________
3) De que sessões do Cine CCH você já participou?
2010 ( ) Janela da Alma ( ) Carregadoras de sonhos ( ) O Leitor
2011
( ) Filhos do Paraíso ( ) Edifício Master ( ) Valentin ( ) Mary e Max ( ) Minha vida em cor de rosa ( ) Crianças Invisíveis ( ) Adeus Lenin
4) Você permanece nas sessões do Cine CCH até o final do debate?
( ) sim ( ) não ( ) às vezes
4.1) Motivos por NÃO participar dos debates:
( ) o horário de saída ( ) não gosto de debates ( ) tenho aula no horário do debate ( ) outros: ____________________________________________________________
5) Por que você participa das sessões do Cine CCH? (pode marcar mais de uma resposta)
( ) gosto do filme ( ) é de graça ( ) não tenho oportunidade de ir ao cinema em outras ocasiões ( ) o professor leva a turma ( ) o professor pediu um trabalho sobre o filme ( ) outros: ____________________________________________________________
6) Como você ficou sabendo das sessões do Cine CCH? (pode marcar mais de uma resposta)
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( ) cartazes ( ) recebeu e-mail ( ) entrou no blog do projeto ( ) recebeu convite pelo Facebook ( ) indicação de amigos ( ) indicação de professores ( ) viu no site da UNIRIO ( ) outros: ____________________________________________________________ 7) Com que frequência você costuma ver filmes nesses suportes? (pode marcar mais de uma resposta)
MUITO POUCO QUASE NUNCA NUNCA
Cinema
TV
DVD
Internet
8) Que critérios influenciam na escolha dos filmes que você vê? (pode marcar mais de uma resposta) ( ) indicação de amigos/familiares ( ) indicação de professores ( ) indicação ao Oscar ( ) ser sucesso de bilheteria ( ) notícias que viu ou leu na TV, sites, revistas ( ) filmes em lançamento ( ) atores do filme ( ) diretor do filme ( ) assunto do filme ( )outros ____________________________________________________________ 9) Na sua opinião, o cinema faz parte da sua formação como professor?
( ) muito ( ) pouco ( ) nada
Justifique:
_______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
_________________________________________________________________
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Questões/entrevista – Cine CCH
Bloco 1: Relação do entrevistado com o cinema, filmes e modos de assistir e viver essa relação em sua história
1) Como é sua relação com o cinema? Com que frequencia você vai ao cinema? Você costuma ir sozinho ou acompanhado?
2) Fale um pouco da sua história com o cinema. Tem alguém que, na sua opinião, fez parte dessa história? Fale o que você pensa a respeito.
3) Fale sobre seus filmes preferidos, que mais lhe marcaram.
4) De que modo você mais assiste filmes: TV, cinema, internet, computador?
Para você qual é a diferença entre esses modos de assistir?
Bloco 2: Participação do entrevistado no CINE CCH e outros cineclubes
5) Como você começou a participar do Cine CCH?
6) Dos filmes que você assistiu no cineclube, qual lhe marcou mais? Por
quê?
7) O que traz você ao Cine CCH? O que você acha dos debates? 8) Você participa ou já frequentou outro cineclube ou espaços alternativos
de cinema? Em caso positivo, fale um pouco dessa experiência.
Bloco 3: Relação entre cineclube e formação (dentro da universidade e
fora dela)
9) Você acha que um cineclube fora do espaço acadêmico aborda questões diferentes deste?
10) De que forma você relaciona sua participação no cineclube com sua formação na universidade? Fale um pouco sobre isso.
11) Na sua perspectiva, quais as relações que a universidade pode estabelecer com o cinema?
12) Como você poderia descrever sua trajetória de vida até chegar a produzir vídeos/ participar desse cineclube/ organizar um cineclube?