cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · monografia apresentada ao curso...

68
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Thamyres Ribeiro Dalethese Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática cineclubista na universidade Rio de Janeiro 2013

Upload: phamduong

Post on 17-Dec-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Thamyres Ribeiro Dalethese

Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática cineclubista na universidade

Rio de Janeiro

2013

Page 2: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Thamyres Ribeiro Dalethese

Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática cineclubista na universidade

Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), como requisito para a obtenção do grau de

Licenciatura em Pedagogia. Orientadora: Profa. Dra. Adriana Hoffmann Fernandes

RIO DE JANEIRO

2013

Page 3: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

UNVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS - CCH

ESCOLA DE EDUCAÇÃO - EE

CURSO DE PEDAGOGIA

Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada pela prática

cineclubista na universidade

Thamyres Ribeiro Dalethese

Aprovada em ______/______/__________

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Profa. Dra. Adriana Hoffmann Fernandes (orientadora)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Charles Feitosa

(examinador externo)

Rio de Janeiro 2013

Page 4: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Dedico este trabalho a todos os professores e professoras deste país que encontram no e com o cinema formas

outras de pensar e fazer educação.

Page 5: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Agradecimentos

À todas as pessoas com quem atravessei e me atravessaram nessa trajetória

que percorri na UNIRIO.

À minha querida orientadora Adriana, pela sensibilidade, carinho e por acreditar

em mim.

Ao professor Charles, pelos encontros em Nietzsche.

Aos integrantes do grupo de pesquisa Cine Narrativas, pelas reflexões,

provocações e aprendizados com e sobre cinema, cujos rastros se desdobram

nesta monografia.

Aos amigos e amigas com quem criei redes de afeto e conhecimento nesta

passagem e me formaram para além de mim: Anna Paula Anselmo, Victor

Junger, Aldenira Mota, Camila Souza, Debora Gherman, Deborah Luna, Igor

Helal, Lucia Romanholli e Tiago Ribeiro.

À Amanda e Bruna, pela amizade, parceria e cumplicidade de toda vida.

À Lia e Paulinho, por tudo e sempre.

Page 6: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Resumo

O texto produzido para esta monografia apresenta mais do que resultados, mas

reflexões e ações tecidas ao longo do trabalho realizado no contexto de uma pesquisa com jovens participantes de um cineclube universitário. No âmbito do projeto de pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens em diferentes

contextos educativos vinculado ao grupo de pesquisa Cine Narrativas da

Escola de Educação da UNIRIO, integrei o eixo que tinha a pretensão de compreender como esses sujeitos constroem sentidos formativos com o

cinema no contexto da formação acadêmica. Neste estudo de natureza qualitativa, situo o projeto de extensão Cine CCH que funciona na UNIRIO desde agosto de 2010 com exibição mensal de filmes seguido de debates,

como espaço em potencial para investigar possíveis relações formativas com imagens e narrativas cinematográficas fora do circuito comercial e de entretenimento. Para tanto, busco articular estudos na linha de Cinema e

Educação que contribuam na reflexão de como o cinema pode fomentar processos de formação cultural e social, bem como a importância social da prática cineclubista na consolidação de sentidos coletivos e dialógicos pelos

sujeitos envolvidos. Infere-se nisto o conceito de pesquisa-intervenção que fundamenta o percurso teórico-metodológico da pesquisa, considerando a tessitura de ações, movimentos e falas dos participantes como elementos que

atuam, interagem e intervêm continuamente na pesquisa. Com isso, reflito como essas tramas criadas no campo revelam pontes ou métodos tanto na composição do trabalho do pesquisador, quanto na estrada que os próprios

participantes do projeto atravessam na universidade. Com o fim de perceber como a participação no Cine CCH pode se traduzir em momentos de formação, recorro aos conceitos de narrativa e experiência, respectivamente dos filósofos

Walter Benjamin e Jorge Larrosa. Para tanto, entende-se o cineclube Cine CCH como espaço possível para experiências formadoras através de ações e encontros dialógicos, plurais e criativos permeados pelo cinema nos quais

diferentes olhares, vozes e saberes se perpassam e se alteram, configurando processos de permanências e (trans)formações.

Palavras-chave: Cinema; Formação; Narrativa; Experiência.

Page 7: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 9

1- CINEMA QUE EDUCA: A DIMENSÃO FORMADORA DE FILMES E

CINECLUBES ...................................................................................................... 13

1.1 - A formação com, para e além do cinema ................................................... 14

1.2 - O sujeito-espectador de filmes .................................................................... 18

1.3 - Cineclubismo, encontros e aprendizados com o cinema ........................... 21

2 – CAMINHOS, MÉTODOS OU ATRAVESSAMENTOS – O PERCURSO

TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA ................................................... 26

2.1- O campo e os sujeitos que (se) atravessam (n)a pesquisa ........................ 27

2.2 – A Pesquisa-intervenção como conceito atravessado ................................ 31

2.3 – Narrativas e experiências como desdobramentos da pesquisa................ 35

3 – “CINEMA É UM ACONTECIMENTO”: ATRAVESSANDO NARRATIVAS E

NARRADORES .................................................................................................... 43

3.1 – Narrativas com o cinema, memórias de vida ............................................. 44

3.2 – Narrativas com o cinema e a universidade ................................................ 50

3.3 – Narrando o Cine CCH, a universidade atravessada pela experiência

cineclubista ........................................................................................................... 53

A PESQUISA COMO ACONTECIMENTO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS .... 59

REFERÊNCIAS .................................................................................................... 63

ANEXOS ............................................................................................................... 66

Page 8: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite

sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista

possuem sentido e valor próprios até os desacertos da

vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os

adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada

em tarefas que ficam além d’a tarefa. Nisto se manifesta

uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência:

quando o nosce te ipsum (conhece-te a ti mesmo) seria a

fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se,

empequenecer, estreitar, mediocrizar-se torna-se a

própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo,

viver para outros e outras coisas pode ser a medida

protetora para a conservação da mais dura subjetividade.

Nietzsche

Page 9: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

9

INTRODUÇÃO

O homem do século XX jamais seria o que é se não tivesse entrado em contato com a imagem em movimento [...] (ela) não apenas transformou a maneira como se dá a criação, mas, também, a maneira como os seres humanos percebem a realidade (DUARTE, 2002, p.17).

Em tempos atuais, é impossível pensar as relações e práticas humanas

sem a presença de artefatos audiovisuais. A epígrafe desta introdução sublinha

o caráter intrínseco que estas mídias assumem nos modos de existência na

contemporaneidade, na medida em que elas perpassam e se entrelaçam

continuamente às nossas experiências e vivências cotidianas. De fato, vemos

como as imagens se tornaram elementos decisivos para os sentidos nas

sociedades atuais, estando as gerações mais recentes desde muito cedo

imersos num universo cultural permeado por narrativas veiculadas através de

imagens, sons e movimentos. Tais narrativas são características de nossa

época, habitam nossas vidas e intervém em nossos modos de aprender e de

existir. (FISCHER, 2007)

Neste contexto, considerar os meios audiovisuais como constituintes da

vida contemporânea significa reconhecer que estamos sob constante exigência

de dominar diferentes linguagens que operam fortemente em nossas práticas

sociais como a televisão, a Internet, o celular, a fotografia, entre outros.

Certamente, o cinema constitui um desses meios significativos em tempos de

sociedades audiovisuais, desempenhando papel relevante na vida social e

cultural das pessoas. Tomando esses pressupostos o cinema se torna foco

desta pesquisa por acreditarmos na sua força expressiva na formação dos

sujeitos no tempo em que vivemos.

Esta monografia alinha trabalhos elaborados no contexto do projeto de

pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens em diferentes contextos

educativos1 coordenado pela professora Adriana Hoffmann, desde agosto de

2010, dentro do qual investiga-se as relações formativas que crianças e jovens

1 GRUCIN (Grupo de Pesquisa Cine Narrativas) integra a linha de pesquisa “Práticas Educativas,

Linguagens e Tecnologia” do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de

Janeiro (UNIRIO).

Page 10: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

10

criam com o cinema em espaços de educação formal. Neste grupo, integrei o

eixo da pesquisa realizada com jovens estudantes no espaço de um cineclube

universitário. Trata-se do projeto de extensão Cine CCH: aprendizagens com o

cinema2, onde atuei ao longo de dois anos como voluntária, pesquisadora e

estudante de Pedagogia da UNIRIO instigada a pensar e investigar os modos

com que os jovens do ensino superior constroem relações formativas com o

cinema no âmbito da formação acadêmica que atravessam.

No primeiro capítulo, procuro traçar referenciais teóricos articulando

estudos brasileiros na linha de Cinema e Educação (Duarte, 2009; Fantin,

2006; Fresquet, 2007) que contribuam na problematização do cinema na

formação geral dos sujeitos. A importância atribuída ao cinema em pesquisas

da área da educação ajuda a nortear o entendimento do papel social que ele

exerce em nossas vidas, intervindo nas dimensões cognitiva, política, afetiva,

cultural e identitária dos indivíduos. Dialogo também com pesquisas de

recepção, sobretudo autores dos Estudos Culturais Latino-Americanos

(Orozco, 2009; Martín-Barbero, 1997) para argumentar como concebo os

sujeitos da pesquisa, enfatizando o lugar de espectadores que produzem

cultura e criam sentidos com o que assistem. Para tanto, destaco estudos

(Matela, 2008; Gusmão, 2008; Silva, 2009) que discorrem sobre o papel

pedagógico dos cineclubes como espaços privilegiados na consolidação de

ações e relações coletivas de aprendizado e experiência.

No segundo capítulo, apresento o campo de pesquisa Cine CCH

delineando as estratégias teóricas e metodológicas, as motivações e

envolvimentos que empreendi nesta trajetória. De natureza qualitativa, o

presente estudo adotou a concepção de pesquisa-intervenção por considerar

que “todo dispositivo de pesquisa transforma o que se deseja pesquisar”

(CASTRO, 2010, p.29) na medida em que acaba sendo atingida direta e

indiretamente pelos movimentos dos próprios sujeitos que nela estão

envolvidos, assim como estes também são afetados pelo projeto. Assim, as

experiências construídas pelos participantes no Cine CCH constituem pistas e

2 Projeto de extensão vinculado à Escola de Educação da UNIRIO que funciona desde agosto de 2010 no

Auditório Paulo Freire no prédio de Ciências Humanas e Sociais da UNIRIO. Blog: cinecch.blogspot.com

Page 11: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

11

rastros a serem seguidos pela pesquisa, bem como imbricam no caminho de

formação pelo qual atravessam na universidade.

Junto a estas proposições, busco refletir com os conceitos de narrativa

de Walter Benjamin (2012) e a noção de experiência pensada por Jorge

Larrosa (2002). Ambos teóricos contribuem enormemente na ação de

pesquisar e analisar como os sentidos que são criados e compartilhados ao

longo do projeto e dizem respeito a formação deles e ao caminho da própria

pesquisa. Assim como os rastros produzidos nos sujeitos através do encontro

com o cinema são imprevisíveis, o caminho metodológico também não pode

ser previamente definido, sendo permanentemente construído e reconstruído

ao longo dos debates, reflexões e relações vistos, registrados e analisados. A

partir de uma discussão aprofundada, reflito a interlocução entre esses

conceitos dos autores para entender as relações possíveis com o cinema para

além do entretenimento, que consubstanciam em dimensões formadoras.

E por fim, trago no capítulo 3 as falas tecidas nas entrevistas

desenvolvidas com alguns dos freqüentadores mais assíduos do Cine CCH,

enfatizando suas experiências com o cinema ao longo da vida e as relações

construídas com o cinema na universidade. Desse modo, analiso as

interpretações de seus relatos dialogando com as reflexões traçadas nos

capítulos anteriores.

Por atalhos e pontes multivocais e multissituacionais, este estudo é o

resultado da tessitura de diferentes vozes e olhares. Portanto, antes de se

tornar uma monografia, este texto é um lugar de acontecimentos que ecoam

das inúmeras conversas, ações e reflexões que venho tecendo e que têm feito

redes em mim nesses encontros na pesquisa e na universidade permeados

pelo cinema.

Page 12: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

12

Page 13: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

13

1- CINEMA QUE EDUCA: A DIMENSÃO FORMADORA DE FILMES E

CINECLUBES

Neste capítulo pretendo trazer algumas proposições que possam

orientar o debate sobre a pedagogia do cinema, no sentido de refletir como a

prática de assistir filmes pode se constituir em experiências formadoras.

Estudos que articulam cinema e educação vêm se ampliando no campo

acadêmico do Brasil, dando relevo à discussões que apontam para as

possíveis relações entre o cinema e a formação geral das pessoas. Para tanto,

busco dialogar com alguns desses trabalhos, traçando referenciais teóricos e

metodológicos que possam conduzir na problematização de como as imagens

fílmicas podem atuar como elementos fomentadores nesse processo.

Primeiramente, torna-se pertinente fazer uma breve distinção entre os

termos filme e cinema que serão recorrentes, intercambiando-se

constantemente ao longo de todo texto. Esta necessidade surge pela

importância sinalizada por alguns teóricos em reiterar as diferenças de

natureza e efeitos em que ambos se consolidam.

É o filme, como apropriação individual em larga escala, que viabiliza o cinema como negócio, consumo social e mídia de massa. O cinema oferece aos espectadores um cardápio de emoções codificadas através dos gêneros e autores cinematográficos. Esses cardápios são expostos por meio de sinopses dos filmes, de trailers, de reportagens – que começam a ser veiculadas antes mesmo do início das filmagens –, de comentários críticos publicados em jornais, revistas, programas de TV. (FRANCO, 2010, p.11)

Enquanto filmes são produtos de consumo, o cinema se apresenta como

algo mais abrangente, abarcando um universo muito mais amplo que pode se

estender a fenômenos sociais, teorias do cinema, celebridades, mercado.

Compreende-se que apesar do ato de assistir a um filme numa sala de

projeção e desfrutá-lo sozinho em casa constituírem modos distintos de

experienciá-lo, ambas maneiras funcionam dentro do dinamismo de uma

cultura do cinema (COELHO, 2012) na qual o sujeito se forma tanto quanto

participa e também intervém. A significação dos filmes nunca funciona

isoladamente, mas emerge de sentidos produzidos e apropriados

coletivamente, compondo-se na associação a informações em contextos

Page 14: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

14

diversos, nas conversas com outros espectadores e na própria experiência com

outros filmes.

Na impossibilidade de desassociar os conceitos de filme, cinema e

cineclube no percurso deste estudo, tomei por escolha trazer esses termos

compreendendo que é somente na relação de coexistência que os três

funcionam. Em outras palavras, filmes, linguagem cinematográfica e cineclubes

são aparatos culturais intrínsecos ao expansivo universo do cinema, portanto

falam de uma cultura de cinema. Ao comporem uma determinada dinâmica da

vida cultural de homens e mulheres, o consumo freqüente de filmes, a

participação em cineclubes também atuam na formação de valores éticos e

estéticos, de perspectivas de mundo e gostos, assim sendo, portam uma faceta

educacional.

Tendo isso esclarecido, cabe salientar que ao conectar cinema e

educação não me atenho à debates estritamente pedagógicos entorno de

atividades e propostas educativas com a arte cinematográfica. É recorrente na

área educacional o cinema ser tratado como instrumento pedagógico, ou

simplesmente colocado à margem das práticas de ensinoaprendizagem. O seu

uso reducionista como ferramenta didático-pedagógica ou mero entretenimento

já é refutado por alguns estudiosos da Educação, tais como Duarte (2009),

Fantin (2006) e Fresquet (2007) que compreendem a pedagogia do cinema

num sentido mais abrangente de criação, consumo e prática social que atua

em processos de formação dos sujeitos.

1.1 - A formação com, para e além do cinema

Quando pensamos na noção de formar sujeitos, entendemos a formação

que se dá com, para e além do cinema, de acordo com parte do que sugere

Fantin (2006) em seu estudo sobre cinema e produção audiovisual na escola.

Nesta pesquisa, a autora discute sobre possibilidades educativas na relação

entre crianças e cinema, propondo diferentes modos de lidar e trabalhar com o

cinema no âmbito da educação escolar como meio de comunicação, objeto de

estudo ou instrumento pedagógico. No entanto, partindo de uma perspectiva

ecológica de mídia-educação, Fantin (idem) defende a inter-relação dessas três

possibilidades que se entende numa proposta de educar com o cinema

Page 15: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

15

enquanto recurso em atividades educativas que, mesmo sendo utilizado como

objeto de apoio, implique também no trabalho de educar para a linguagem

cinematográfica estimulando a produção audiovisual dos sujeitos, permitindo

assim que estes desenvolvam posturas participativas e criativas de interagir e

intervir ativa e criticamente sobre as múltiplas facetas e percepções que o

cinema atinge e permeia.

Puxando alguns fios desta perspectiva, compreende-se o potencial

formativo do cinema enquanto meio e prática social de uso, consumo,

produção e fruição possíveis de ampliar e transformar modos de interação e

criação com a realidade. Assim, penso, sobretudo, na formação que permite ir

além do cinema, entendendo que a relação construída com imagens fílmicas

possibilita a construção significativa de sentidos, olhares e afetos para outras

dimensões da vida, fiando e desfiando redes outras de saberes.

Compartilho da ideia de que a experiência com o cinema que cria

significações e sentidos para pensar e agir no mundo, que intervém, inquieta e

afeta valores, gostos, memórias, sentimentos e ideias produzidos e partilhados

coletivamente é a que nos (trans)forma. Como prática social, o cinema

promove aprendizados, interações e experiências das mais variadas naturezas,

estabelecendo profundas relações afetivas, políticas, culturais e sociais com as

pessoas. Debater sobre o sentido pedagógico do cinema repousa neste

entendimento de que imagens cinematográficas participam de modo

significativo na constituição de formas de ver e se relacionar com o mundo,

tecendo fios de suas narrativas nas redes culturais que nos enredam e que

também enredamos.

Ao colocar o cinema ao lado de obras filosóficas e literárias, Duarte

(2009) argumenta em favor do papel significativo dos filmes na formação

cultural e educacional dos sujeitos, admitindo-os como expressão legítima de

conhecimento. Para ela, tão necessário quanto o domínio de códigos da

escrita, o contato com filmes também pressupõe uma prática de leitura, de

interpretar e desenvolver habilidades com códigos e estruturas próprios da

“gramática” cinematográfica como planos de câmera, iluminação, som e

edição. Por isso a relação com o cinema não se reduz apenas a prática de

assistir filmes, mas se configura, sobretudo, na apropriação de significados de

Page 16: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

16

uma linguagem, na ampliação e construção de formas de leitura e experiências

com o cinema e com o mundo.

Em tempos de culturas midiáticas (FANTIN, 2007), a noção de leitura é

tomada dentro de uma perspectiva em que múltiplas linguagens de

representação escrita, visual, digital e musical interagem e transitam

expressivamente pelos meios e práticas da vida contemporânea. Certamente

os filmes circulam fortemente nesse repertório de mídias no qual estamos

imersos, considerando o valor expressivo que elementos veiculados em

imagem e som têm para as gerações mais recentes. No entanto, estar inserido

numa cultura protagonizada pelas mídias não implica numa participação e

recepção necessariamente ativa e interativa com artefatos audiovisuais que

nos chegam.

[...] parece urgente pensar em uma outra possibilidade de ensinar as crianças a ver filmes, tendo como objeto construir com elas os conhecimentos necessários para a avaliação da qualidade do que veem e para a ampliação de sua capacidade de julgamento estético, partindo do princípio de que o cinema é uma das mais importantes artes visuais da atualidade, com um imenso poder de atração e indiscutível potencial criativo. (DUARTE & ALEGRIA, 2008, p.73)

Se uma parte significativa de nossas práticas e relações são permeadas

pelas imagens, é necessário educar gostos e olhares, ampliar repertórios e

exercitar a capacidade de análise e reflexão sobre o que assistimos. A

preocupação de Duarte & Alegria (2008) também é pertinente neste estudo, ao

entender que a postura com que nos relacionamos e lidamos com filmes, de

analisar e criar com as imagens cinematográficas implicam numa experiência

de cidadania, ou seja, de saber transitar, pertencer e participar da cultura na

qual estamos inseridos e que também construímos. Dessa forma, o

desenvolvimento e a capacidade de apreciar e perceber ativamente filmes é

parte do processo da formação estética, na compreensão de que a leitura

crítica e reflexiva de narrativas imagéticas constitui também uma leitura da

realidade.

Considerar o cinema em sua dimensão formadora é reconhecer seu

potencial para produzir sentidos e significados para além do imediatismo

vivenciado nos instantes de exibição de um filme. Como é visto por Fantin

(2006), o caráter narrativo do cinema repousa no sentido benjaminiano de

como a experiência com um filme pode marcar, deixar rastros nos

Page 17: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

17

ouvintes/espectadores. Quando a relação com o filme se prolonga para além

do que foi assistido/narrado, ele não se esgota em si, mas encontra

repercussões nos imaginários, nas memórias e nas subjetividades dos sujeitos.

Aquilo que provoca o sujeito a ir além de si, aquilo que o sucede produzindo

vestígios e efeitos é o que Larrosa (2002) reconhece como experiência. Assim,

a prática habitual de assistir um filme somente torna-se uma experiência

quando o filme é vivido significativamente, adentra o mundo do sujeito, altera

seu estado de espírito e, tanto filme quanto o espectador se formam e se

transformam.

Neste sentido, dizer que a narrativa fílmica “pode atuar no âmbito da

consciência do sujeito e no âmbito sócio-político-cultural” (FANTIN, 2006), é

contestar a prática de ver filmes como mero entretenimento e lazer, conferindo

ao cinema a capacidade de atravessar os sujeitos (LARROSA, 2002). A

experiência com o cinema é um encontro de significações e ressignificações da

vida e de nós mesmos.

É interessante notar no trabalho de Gusmão e Santos (2010) como o

encontro com a sétima arte pode marcar a existência dos sujeitos,

perpassando trajetórias de vida que se “potencializam em aprendizados

individuais e coletivos, veiculando padrões de comportamento e sentimentos”

(p.35). No trabalho destas autoras são destacadas as historias de vida do

cineasta francês Alain Bergala3 e do videomaker Jorge Luiz Melquisedeque da

Silva4, refletindo como as vivências marcadas pelo cinema podem ser

determinantes para traçar nosso percurso no mundo. Observa-se em ambos os

relatos, práticas características de cinéfilos, frequencias a cineclubes e salas

de cinema desde a infância que lhes propiciaram a formação de gostos e

apreciação a determinadas estéticas de filmes.

Tomando estas menções, vemos como a exposição e o contato

frequente a esse tipo de contexto cultural podem condicionar uma inclinação

duradoura que não diz respeito apenas ao consumo de filmes, mas que

3 Diretor, professor de cinema em Sorbonne Nouvelle, Paris III; Lyon II e Rennes II, crítico de cinema e autor do livro A hipótese cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola, no qual Bergala propõe o encontro com o cinema na escola como experiências de criação. 4 Responsável pela implantação da produção de vídeos na Universidade do Sudoeste da Bahia e pela criação do projeto Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, na cidade de Vitória da Conquista.

Page 18: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

18

mobiliza saberes e fazeres relacionados ao cinema repercutindo para outras

tramas tecidas ao longo da vida.

Outra autora que nos ajuda a pensar o cinema como integrante na

formação dos sujeitos é Fabris (2008) cujo trabalho discorre sobre o sentido

pedagógico dos textos fílmicos. A autora parte da análise de alguns filmes

previamente selecionados para refletir sobre o papel do educador e da escola

no cinema nacional e hollywoodiano. Para ela, a prática de assistir filmes

pressupõe um aprendizado tanto nos modos de se relacionar com a linguagem

cinematográfica, como na construção de estilos de vida, valores e concepções

de mundo, na medida em que os filmes produzem sentidos e discursos criados

e compartilhados na cultura em que estão inseridos.

Ao largo de concepções simplórias de que filmes podem veicular

conteúdos ideológicos para produzir e manipular identidades, comportamentos

e valores morais, entende-se que nenhum filme produz efeito isoladamente,

quando opera a partir do ambiente simbólico das pessoas (FANTIN, 2006). O

que quer dizer que a relação com o cinema nunca será individual e exclusiva,

mas permeada constantemente por diversos fatores sociais, culturais e

políticos que formamos e nos formam ao longo desse encontro e de nossas

experiências de vida.

1.2 - O sujeito-espectador de filmes

Ao falarmos da relação entre leitor/espectador e imagens fílmicas, é

preciso refletir como estou considerando esse sujeito que assiste a filmes, mas

que também deles se apropria e se forma. Admitindo-se que os filmes não

atuam isoladamente, algumas questões surgem no momento de problematizar

o lugar e o papel do espectador ao estabelecer com o cinema uma relação

formativa. Quem é esse espectador de que falo? Como o concebo nessa

relação? Como se criam sentidos para o filme e com o filme?

Tomando como reflexão o que escreve Orozco Gómez (2009), podemos

dizer que espectadores na exibição de um filme são sujeitos interagentes, uma

vez que toda relação com a tela cinematográfica incide numa intervenção

contínua, colocando audiências no lugar de usuárias, produtoras e emissoras.

Nesta perspectiva, rejeita-se a posição neutra e meramente contemplativa do

Page 19: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

19

espectador, quando o olhar para o filme é sempre atravessado por mediações

(Martín-Barbero, 1997), sejam do contexto em que o filme é exibido, da

atmosfera cultural do sujeito, das reações de outras pessoas na sala de

cinema, entre outras tantas.

Como bem lembra Xavier (1983), o espectador não é sujeito iludido e

sabe que participa ativamente do jogo. Assim como o filme também parece se

aproximar e confiar no espectador, o sentido e a fruição criados pelo filme

dependem da disposição e abertura do sujeito. É um jogo de reciprocidade e

entrega de ambos os lados. Por isso o filme não é fechado em si, mas repleto

de fissuras e janelas que se abrem e se revelam conforme a entrega e

participação de quem o assiste. O filme não se apresenta e nem quer se

revelar por inteiro, ele precisa da imaginação de seu espectador e, por isso, o

convida a fantasiar, criar e se aventurar para contribuir na composição de sua

narrativa, preencher de sentidos seus arranjos e desdobramentos. O filme que

forma é o filme que provoca, desafia, amedronta e inquieta.

E nessa relação, nesse jogo, o espectador parece aceitar abandonar sua

realidade provisoriamente pelo prazer da experiência de assistir a um filme. O

que pode ser visto como prática descompromissada se torna muitas vezes

válvula de escape da vida cotidiana e suas exigências e tarefas

predeterminadas. Assim, entende-se que a fantasia do cinema “é um

relacionar-se com o mundo que mais interroga, vê e ouve do que explica”

(MIGLIORIN, 2010, p.106), na medida em que no movimento de nos

distanciarmos da vida prática temos a possibilidade de questionar e repensar a

realidade em que vivemos e as supostas certezas da vida. Um olhar filosófico

cabe nesta reflexão:

Existem diversas formas de se desconectar provisoriamente do mundo, tais como o êxtase sexual, o estado de embriaguez provocado por substâncias narcóticas, ou, ainda, o prazer estético intenso provocado pela contemplação de uma paisagem ou uma obra de arte. [...] Distanciar do mundo pode ser muito agradável e sedutor. O distanciamento filosófico não busca meramente a distração ou o divertimento, mas sim permitir que o homem ganhe mais consciência da sua relação com o mundo e com os outros (FEITOSA, 2004, p. 28).

A experiência com o cinema ao permitir esse afastamento provoca a

instabilidade das verdades que carregamos e possibilita a invenção de novas

Page 20: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

20

perspectivas e significações da realidade a nossa volta. Essa parece ser a

condição formadora do cinema, convidar o sujeito a se desvincular do real para

adentrar, atravessar o real do filme num exercício de estranhamento, dúvida e

desequilíbrio no qual espectador e filme se envolvem, sofrem, perdem-se e se

(trans)formam. O cinema que educa, faz pensar, circular as ideias no sentido

de uma experiência que se potencializa no movimento de aprender,

desaprender e reaprender (FRESQUET, 2007) permanentemente nossos

desejos, anseios, valores, escolhas, atitudes e crenças. Nesse sentido, o olhar

para o filme nos distancia da realidade ao mesmo tempo em que propicia

ampliar o olhar e o conhecimento sobre e com ela. Vejamos como Robert Stam

(2003) se refere ao espectador:

As posições espectatoriais são multiformes, fissuradas, esquizofrênicas, desigualmente desenvolvidas, descontínuas dos pontos de vista cultural, discursivo e político, formando parte de um território mutante de diferenças e contradições que se ramificam. (p.259)

Com esta citação, entendo a experiência cinematográfica como lugar de

diálogo e luta, onde filme e espectador se encontram num campo de disputa,

negociação, troca e criação dentro do qual o sujeito é simultaneamente

constituidor do filme, ao mesmo tempo que este o constitui.

Como nos ensina Benjamin (2012), o cinema é a expressão e linguagem

que fala mais próximo a humanidade na era moderna, “retrógrada diante de

Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin”. (p.202) A linguagem do

cinema é rica e complexa, mas poucas formas de linguagem são tão íntimas e

estão ao alcance de todos quanto a cinematográfica, que parece colocar na

realidade da tela o mundo concreto, afetando mulheres e homens em suas

vivências e práticas do cotidiano. É nessa perspectiva que o filósofo elege o

cinema como a arte mais significativa para os indivíduos, alterando

definitivamente os modos de percepção e reação com a arte e a cultura.

A partir disso que entendo que o cinema concorre para a educação de

novas formas de sensibilidade, de experimentar e criar sentidos para o mundo

por olhares e escutas que se realizam em práticas e experiências criadas e

compartilhadas coletivamente. Como produtor de cultura, o cinema atua em

redes simbólicas e de socialização promovendo a produção, a troca e a

transformação de conhecimentos e identidades. É nesse exercício de olhar,

Page 21: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

21

ouvir e ver o outro na tela e em ambientes em que esta arte é valorizada e

estimulada que os sentidos, as relações e as experiências com as narrativas

cinematográficas ganham significados e interpretações, podendo modificar e

recriar novos modos de se relacionar com os filmes, com a própria linguagem

do cinema e com nossas formas de ver e pensar o mundo e a nós mesmos.

1.3 - Cineclubismo, encontros e aprendizados com o cinema

Dentre as ações pedagógicas e coletivas desempenhadas pelo cinema

na era da reprodutibilidade técnica, destacamos o papel dos cineclubes como

espaços significativos na formação social e cultural de seus participantes.

Entendemos que a dinâmica de reunir grupos para assistir e debater filmes é

uma prática fundamentalmente educativa que se consolida pela criação de

ambientes socializadores, dialógicos e coletivos. Para pensar como a prática

cineclubista pode se constituir numa experiência, encontro apoio nos estudos

de Gusmão (2008), Matela (2008) e Silva (2009) que tecem considerações

teóricas sobre a importância social e cultural dos cineclubes no país.

Esses poucos estudos identificados no campo da educação, apontam o

caráter relacional entre esta prática e o processo de formação cultural dos

sujeitos envolvidos. Como ambientes favoráveis à socialização e difusão

cultural, os cineclubes comparecem como espaços privilegiados de

“aprendizagem informal de cinema, de troca de saberes e informações, de

leitura e discussão de artigos sobre o assunto” (DUARTE, 2009, p.66) atuando

assim em redes de produção e consumo relacionados à arte cinematográfica,

nos quais determinados valores, saberes e gostos são atribuídos

coletivamente, criando sentidos e maneiras de ver e pensar sobre cinema.

Conforme apontado na pesquisa de Gusmão (2008), os primeiros

cineclubes surgiram na França, no início do século XX e se consolidaram como

espaços alternativos nos quais se reuniam intelectuais e amantes da sétima

arte para assistir filmes e discutir a qualidade do cinema, seu valor de mercado,

artístico e estético. No Brasil, o primeiro registro de cineclube que se tem é o

Chaplin Club, fundado em 1928 por jovens da burguesia carioca com interesse

nos filmes mudos. Essa experiência impulsionou o surgimento de outros

movimentos cineclubistas que começam a se organizar e espalhar por diversas

Page 22: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

22

regiões do país, ganhando força a partir da década de quarenta. Destacam-se

também o Clube de Cinema de São Paulo fundado na Faculdade de Filosofia

da USP, o Clube de Cinema na Bahia, as sessões da Aliança Francesa e o

Cinemateca do MAM, como alguns dos cineclubes mais representativos no

cenário nacional, por terem se consolidado como ambientes favoráveis para

novas maneiras de exibir e apreciar filmes para os frequentadores desses

clubes.

Segundo estas autoras, os cineclubes funcionavam como importantes

fontes de articulação entre grupos e informações, configurando uma prática

cultural que pode ser definida como educativa. Desse modo, esses clubes

contribuíram na formação cinematográfica e na “competência para ver” dos

sujeitos envolvidos, assegurados pelo ambiente cultural e político que

privilegiava determinadas cinematografias, como o cinema francês, italiano,

soviético sob uma concepção de “cinema arte” que rejeitava a indústria

hollywoodiana, legitimando maneiras de ver filmes aprendidas socialmente.

Percebe-se com isto, a importância da prática cineclubista na formação

e socialização das pessoas que encontraram nestes espaços a possibilidade

de ampliar e transformar sua relação com o cinema. Muitos intelectuais e

artistas tiveram seus percursos de vida atravessados por esta prática, de modo

que podemos acreditar que esta foi constitutiva em suas vidas. Segue abaixo

um interessante relato do cantor Caetano Veloso (1997) em seu livro Verdade

Tropical sobre sua experiência no Clube de Cinema da Bahia:

Houve colaboração também com o crítico de cinema Walter da Silveira na transformação da rampa [...] belo cineminha exclusivo do clube de cinema que ele fundara. As sessões ali consistiam sobretudo em grandes filmes mudos, [...] ou velhos filmes falados que já não se veriam nos cinemas normais [...] mas que reapareciam ali comentados pelo próprio Walter da Silveira ou por um ser convidado. Lembro de uma noite em que o ainda muito jovem mas já com fama de gênio Glauber Rocha comentou (desfavoravelmente) Umberto D., de Des Sica: sua fala que precedia a projeção, como era hábito no clube, foi brilhantemente irreverente e opôs a secura de Rossellini, seu favorito entre os diretores neo-realistas [...]. (p.59)

Compreende-se assim que os cineclubes compareceram como

expressivos agentes sociais na formação de um intenso cenário intelectual e

artístico marcando significativamente trajetórias e práticas culturais

relacionadas não apenas ao cinema, mas que se estendem também á musica,

ao teatro, a poesia, entre outros. O cineclubismo marcou as gerações das

Page 23: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

23

décadas de 50 e 60 de tal forma que impactou movimentos de renovação e

mudanças culturais no país, como o Cinema Novo e o Tropicalismo.

É neste sentido que Silva (2009) atribui o cineclubismo como lugar de

“significação e ressignificação de conhecimentos variados” (p.146),

possibilitando aos participantes tecerem aprendizados e relações que

encontram permanências em outros contextos sociais, culturais e históricos.

Isto significa que a convivência e participação em cineclubes podem deixar

traços constituintes nos sujeitos.

Em outro trabalho sobre o cineclubismo no Brasil, Matela (2008) faz uma

análise de como as atividades cineclubistas ganharam uma nova dimensão

político-cultural durante o regime militar. Apesar do declínio da prática

decorrente do clima de repressão e medo que dominou este período, sabe-se

que alguns grupos e lugares persistiram se organizando em meio à censura e

perseguições. Para a autora, os sujeitos envolvidos encontravam nos

cineclubes a possibilidade de produzir e manifestar ações coletivas de

resistência, fazendo destes espaços lugares de engajamento e articulação

política. Neste sentido, reconhece-se a importância do movimento cineclubista

na formação de uma geração cujo envolvimento nestes ambientes viabilizou a

construção de ações e relações sociais de participação e criação de sentidos e

aprendizados como ela mesma nos diz:

Movimentos que apesar de manterem suas pronúncias camufladas, andaram na contra-mão da ordem ditatorial, produzindo novas táticas de enfrentamento, tecendo redes que escaparam das armadilhas silenciadoras de uma história oficial e ficaram presentes na memória daqueles que experimentaram vive-las (ibdem, p.34).

Mesmo velados, os cineclubes atuaram expressivamente como espaços

para o exercício da cidadania, de formação coletiva de seus protagonistas,

traduzidos nos momentos de debate, pesquisa e troca que valorizavam a

pluralidade de olhares e saberes compartilhados, em detrimento da atmosfera

autoritária e opressora que vivenciavam. Desse modo, as experiências

cineclubistas se caracterizaram por práticas de reflexão, discussão e criação de

sentidos configurando-se em experiências transformadoras da realidade e do

papel de cada um frente a ela.

É nesta perspectiva que se compreende a dimensão educativa dos

cineclubes, na medida em que a frequencia e participação nessa ambiência

Page 24: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

24

fortemente cultural e crítica contribui no aprendizado informal de se relacionar

com filmes. A apreciação por cinema, a sensibilidade estética e a capacidade

criteriosa de julgar e avaliar certas obras cinematográficas são formas de

aprendizado que se constroem em contextos que propiciem o contato com

filmes de diversos tipos, que valorizem a diversidade de formatos artísticos,

narrativos e culturais das obras, garantindo assim a pluralidade de relações e

ideias.

Ao que parece, foi mais eficiente o trabalho de formação realizado no âmbito dos clubes de cinema, especialmente no que diz respeito aos gostos e preferências cinematográficas dos atores sociais que foram formando uns aos outros, de geração em geração, numa rede que pressupôs a troca de saberes e a produção/reprodução de valores, crenças por meio de práticas compartilhadas. [...] Esse fator funcionou tanto como elemento articulador de grupos quanto como fonte de conhecimento e informação, configurando uma prática cultural que pode ser definida como „”pedagógica” (GUSMAO, 2008, p.13)

Para tanto, a ação pedagógica desses clubes de formar “sólida prática

de crítica cinematográfica, de falares e olhares sobre os filmes” (SILVA, 2009,

p. 142) exige muitas vezes de seus participantes investimentos mais amplos no

que tange a sétima arte. Muitos grupos e organizações ligados a cineclubes

sentem a necessidade e vontade em aprofundar seus conhecimentos e

informações sobre os filmes, diretores, teoria do cinema e técnicas

cinematográficas. Percebe-se com isto que os cineclubes não contemplam

apenas exibições e comentários de filmes, mas abrangem uma rede mais

ampla de atividades de estudo, leitura e pesquisa e até mesmo cursos e

palestras, festivais e mostras culturais que possibilitem a tessitura de redes

mais íntimas com o universo do cinema.

Tais estudos orientam e contribuem no percurso da presente pesquisa

que se propõe a investigar as experiências de jovens no ensino superior dentro

de um projeto cineclubista universitário. Trabalho com a compreensão de que

os cineclubes podem atuar como lugares que potencializam processos de

significação, aprendizados e socialização desencadeando redes de ações e

movimentos que formam os sujeitos ao serem tecidas. Estas reflexões

possibilitam construir e pensar dentro desse campo de pesquisa como a

formação dos jovens envolvidos no projeto pode ser atravessada pela

experiência cineclubista.

Page 25: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

25

Page 26: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

26

2 – CAMINHOS, MÉTODOS OU ATRAVESSAMENTOS – O PERCURSO

TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA

O presente estudo surgiu na pesquisa realizada no contexto de um

cineclube universitário, o projeto de extensão Cine CCH: aprendizagens com o

cinema com sessões mensais de filmes seguidos de debate. Este projeto

constitui um dos eixos da pesquisa O cinema e a narrativa de crianças e jovens

em diferentes contextos educativos coordenada pela professora Adriana

Hoffmann dentro da qual procura-se investigar os modos de relações

construídos com o cinema em espaços de educação formal como o ensino

fundamental, o ensino médio e o superior.

A partir do que discutem autores que articulam cinema e educação,

compreende-se o cinema como bem cultural e social expressivo no processo

de formação dos jovens. Sendo assim, este trabalho entende - assim como o

projeto maior do qual faz parte - que a imagem, principalmente em movimento,

configura-se em maneiras outras de ver, pensar, imaginar e compreender a

realidade a nossa volta, bem como de ampliar possibilidades de agir, pertencer

e se relacionar com o mundo e consigo mesmo. Situando o Cine CCH como

campo de investigação, a pretensão aqui é perceber e problematizar o valor

formativo das relações construídas pelos jovens no ensino superior através da

frequencia e atuação nesse cineclube.

O primeiro contato com o campo foi em outubro de 2010 na sessão do

filme O Leitor, quando o projeto ainda estava no início. Como o Cine CCH

estava vinculado à pesquisa na qual me integrava, minha entrada na equipe

organizadora foi um movimento voluntário e espontâneo, pela vontade e

interesse de participar e contribuir na realização de um projeto que viabilizava a

prática cineclubista na universidade. Ao longo das sessões, debates, encontros

e reuniões percebi que aquele grau de envolvimento com o campo e seus

participantes ultrapassava as demandas pertinentes do trabalho de

organização, afetando minha relação com a vida acadêmica, com a realidade e

com o cinema na aproximação com pessoas de diferentes cursos, na

ampliação de relações dialógicas e críticas e na exigência de pesquisas,

leituras e seminários sobre filmes, diretores, técnicas e produção audiovisual.

Quando me dei conta, minha trajetória como estudante do curso de Pedagogia

Page 27: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

27

da UNIRIO estava significativamente atravessada pelo Cine CCH. Não tive

escolha neste trabalho de pesquisa do objeto a ser investigado, fui escolhida.

É nessa perspectiva que compreendo como minha atuação como

frequentadora do cineclube estava decididamente inseparável à ação

metodológica, na medida em que os sentidos e ações criados em ambas por

vezes se confundiam, da mesma forma que se co-afirmavam. O método ou

caminho percorrido no campo surgiam na imbricação de situações, falas,

olhares, gestos e pessoas com as quais me deparei nas sessões que, assim

como as experiências, são sempre imprevisíveis e nunca se repetem.

As proposições trazidas pelos autores Walter Benjamin (2012) e Jorge

Larrosa (2002) em seus conceitos de narrativa e experiência, respectivamente,

orientam na problematização do papel do cinema nesse processo de formação

dos jovens frequentadores do Cine CCH, junto com os fundamentos de

pesquisa-intervenção.

A articulação desses pensadores junto ao conceito teórico-metodológico

adotado ajuda a traçar algumas questões que serão debatidas com e sobre o

campo: quais as pistas que os relatos dos sujeitos podem trazer para

refletirmos sobre os sentidos que se produzem na relação que eles

estabelecem com o cinema fora do circuito comercial? É possível entender o

cinema para além da dimensão do entretenimento e do consumo, como

experiência formadora que deixa marcas? (FANTIN, 2006)

2.1- O campo e os sujeitos que (se) atravessam (n)a pesquisa

De natureza qualitativa, foram utilizadas nesta pesquisa estratégias

metodológicas de observações e registros de diários de campo de cada

sessão, fotos, filmagens dos debates, cadernos de assinaturas e entrevistas

com alguns participantes. Foi necessária a delimitação de alguns critérios na

organização dos materiais construídos para a fase posterior de análise diante

dos dados obtidos ao final do trabalho de campo no que tange as sessões a

serem enquadradas na pesquisa, a seleção de entrevistados e a elaboração do

questionário para realização das entrevistas.

Primeiramente, falarei sobre a escolha e o recorte estabelecido das

sessões do Cine CCH, sabendo que até o final de 2012 foram realizadas 16

Page 28: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

28

sessões. Tendo em vista a dificuldade e densidade de um trabalho de campo

que contemplasse todas essas sessões e os materiais delas obtidos, a

presente pesquisa se refere ao período de outubro de 2010 à outubro de 2011

que totalizam oito exibições de filmes (O Leitor, Filhos do Paraíso, Valentin,

Minha vida em cor-de-rosa, Crianças Invisíveis, Mary e Max, Edifício Master e

Adeus, Lenin) e debates, entendendo que esta definição torna o estudo mais

seguro e claro sobre o campo investigado. Para iniciar a análise das sessões,

foram utilizados os diários de campo e transcrições. Em cada sessão duas ou

três pessoas da equipe de extensão e de pesquisa ficavam responsabilizadas

por registrar suas observações, relatando os momentos de chegada do público,

as reações e interações percebidas no decorrer dos filmes e, principalmente,

nas discussões sobre o que foi assistido. Além desse material, foram feitas as

transcrições das filmagens de quatro sessões realizadas: O leitor, Filhos do

paraíso, Valentin e Adeus, Lenin!, que nos permitiram um olhar mais direto às

falas dos sujeitos nos debates mesmo não sendo trazidas nesta monografia.5

Os cadernos de assinatura na entrada do auditório eram preenchidos

conforme as pessoas iam chegando colocando o nome e qual a relação com a

5 Essas sessões foram analisadas no artigo FERNANDES, A. H. ; FONSECA, M. J ; DALETHESE, T. O

cinema e a narrativa de jovens universitários: um diálogo com Walter Benjamin e Jorge Larossa (2012),

apresentado no IV Colóquio Internacional de Filosofia da Educação (UERJ) e no IV Congresso

Internacional Diálogos sobre Diálogos (UFF).

Page 29: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

29

UNIRIO, o curso ou visitante. Com base nesses cadernos, pudemos perceber

que o número médio de participantes por sessão está entre 80 e 100

participantes, com a ressalva de que grande parte desse público não fica para

o debate, apenas assiste o filme, conforme as gravações em vídeo e os diários

de campo nos dizem.

Junto a isso, para conhecer melhor e traçar um perfil sobre os

participantes do Cine CCH, o que os levavam a frequentá-lo, as relações que já

tinham com cinema, quais os suportes que mais utilizavam para ter acesso a

filmes, (TV, cinema, DVD, Internet), entre outras, foi formulado um

questionário6 durante uma sessão do qual tivemos 70 retornos. O gráfico

abaixo nos revela que desses questionários respondidos, cerca de 68 são

estudantes do Curso de Pedagogia, um aluno do Mestrado de Educação e um

do curso de Música.

Público respondente do questionário aplicado em 2012.7

Assim como os cadernos de assinatura, estes questionários confirmam o

que já havia sido constatado que a maior parte dos freqüentadores do Cine

CCH são estudantes do Curso de Pedagogia, com participação esporádica e

bem menor de pessoas de outros cursos e até mesmo de fora da UNIRIO.

Dentre as hipóteses para tal constatação, acreditamos que isso se deva pela

maior divulgação nas disciplinas deste curso e o vínculo com a própria Escola

6 O questionário em anexo foi produzido pelo grupo de pesquisa com base no questionário realizado por

Rosa Fischer em sua pesquisa Educação do Olhar e Formação ético-estética (PPGEDU-UFRGS), sendo aplicado por Nilcéia Lopes e Marcos Pizarro, integrantes do grupo de pesquisa e do projeto de extensão, respectivamente. Esse mesmo questionário traz elementos que geraram análise da participação do público apresentada no artigo FERNANDES, A. H. ; LEMOS, N. S. L. . O cineclube Cine CCH e a produção de vídeos por universitários: reflexões iniciais. In: Seminário Internacional Redes Educativas e as Tecnologias, 2013, Rio de Janeiro. 7 Gráfico produzido por Nilcéia Lopes e Marcos Pizarro.

Page 30: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

30

de Educação que facilita maior proximidade com professores e estudantes de

Pedagogia.

Tais resultados nos mostraram a importância de realizar entrevistas para

entender melhor esta participação dos sujeitos no Cine CCH relacionando aos

registros dos diários de campo, dos cadernos e do questionário. O critério de

seleção dos entrevistados se baseou na assiduidade e expressividade notórias

de modo que foram escolhidos e convidados 10 participantes.

O projeto do Cine CCH tem como propostas assegurar a experiência

estética e sensível, ampliar o repertório cinematográfico com a oferta de

diferentes gêneros, nacionalidades e temáticas e promover momentos de troca

e o pensar coletivo. É importante dizer que os debates funcionam de acordo

com as questões levantadas pelo próprio público, sem a mediação de

especialistas ou direcionamento explícito para determinado conteúdo, de

maneira que os participantes possam se manifestar livremente sobre suas

impressões a partir dos filmes assistidos, compondo entre eles mesmos a

dinâmica dos debates.

Considero que a relação do projeto com a pesquisa ocorre de maneira

articulada na medida em que os participantes do Cine CCH revelam-se sujeitos

em potencial para a pesquisa. Por isto eu entendo que os acontecimentos, as

ações e falas tecidos e compartilhados pelos jovens traduzem-se em

elementos que perpassam a sua formação e, ao mesmo tempo em que

enredam o campo, desdobravam-se em elementos também para a pesquisa.

Isto é, os sujeitos envolvidos no projeto estão em permanente construção e

articulação de experiências coletivas que compõem indissociavelmente o

campo constitui a pesquisa. Assim, o processo investigativo resulta de

questões apreendidas dos movimentos, das relações e ações que se

construíram no e com o campo e se revelavam integrantes do processo de

formação pelo qual os sujeitos atravessaram.

Neste sentido, o estudo não pretende inscrever considerações sobre

experiências, mas com as experiências e a partir das experiências vividas e

compartilhadas num campo do qual fiz parte da equipe organizadora,

acompanhei por dois anos todas as sessões, assisti filmes de diferentes

contextos e linguagens, “matei” algumas aulas para participar, convidei alguns

Page 31: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

31

professores e colegas, sugeri filmes, ouvi, concordei, discordei, compartilhei

ideias, gostos, desgostos, risos e emoções.

2.2 – A Pesquisa-intervenção como conceito atravessado

Mesmo admitindo o precioso amparo dos referenciais teóricos nos

procedimentos de organização, realização e análise de dados do campo

estudado, seria inviável em um trabalho de natureza qualitativa deixar-se

cristalizar por abordagens metodológicas, em detrimento da flexibilidade e

imprevisibilidade inerentes ao processo de investigação. É inevitável que uma

parte das questões previamente colocadas no momento de entrada no campo

seja alterada, ou até mesmo anulada pelos sentidos e significações que vão

sendo produzidos e revelados pelas redes de sujeitos e relações tecidas ao

longo das sessões do Cine CCH. Assim como a pesquisa acontece em

consonância com os movimentos apreendidos no campo, a relação

pesquisador/pesquisado só seria viável pela estreiteza do olhar, da fala e da

escuta entre ambos os lugares.

Tomando esse entendimento é que o presente estudo adotou a

concepção de pesquisa-intervenção como fundamento teórico-metodológico

por acreditar no caráter dialógico e horizontal que este tipo de pesquisa abarca.

[...] pesquisa que não se esgota na tarefa de investigar ou conhecer o outro como um “objeto” exterior, mas abrir caminhos para um diálogo [...] em que cada um do seu ângulo específico de visão sobre o tema em pauta, negocia sentidos e elabora um conhecimento compartilhado sem negar os conflitos que tal confronto discursivo necessariamente desencadeia. (JOBIM E SOUZA, 2005, p.2)

A escolha dessa metodologia justifica-se pela inevitável aproximação

entre pesquisador e pesquisado(s) na medida em que “todos os participantes

da atividade estão envolvidos nesse movimento” (CASSAB & CASSAB, 2008,

p.248), tornando-se parceiros e cúmplices no processo de investigar e de se

formar. O ato investigativo consiste intrinsecamente em ato formativo, na

compreensão de que a pesquisa e os sujeitos estabelecem relações de afeto,

alteração e formação incessantes.

Infere-se nisto a noção de uma investigação que exige do pesquisador a

sensibilidade da escuta e abertura ao que os sujeitos dizem, o que criam, como

agem e se relacionam entre si e com o campo, num exercício constante de

negociação, interação e transformação mútuas. É neste sentido que esta

Page 32: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

32

pesquisa assume a dimensão de um fazer metodológico que vai sendo

construído e interpelado na ação contínua e coletiva dos sujeitos que nela

estão envolvidos. Na medida em que admito que as ações e movimentos

produzidos e compartilhados entre os jovens do Cine CCH são elementos

fomentadores desta pesquisa, concebo-os como atores e autores desta

pesquisa. As experiências construídas e compartilhadas pelos participantes

produzem motivações e sentidos para a pesquisa, portanto, a intervenção

consiste no reconhecimento de que os jovens deixam de ser meros objetos a

se investigar assumindo junto ao pesquisador o lugar de sujeitos que

produzem, criam e transformam experiências no, com e a partir do outro.

Da rede de relações e experiências é por onde empreendo o trabalho de

observar, registrar e analisar a fim de mapear o caminho de problematização e

entendimento das dimensões formativas que estes jovens constroem no e com

o Cine CCH. Junto a isso, persigo as narrativas, ações, movimentos,

sentimentos e reações marcadas pelos filmes na possibilidade da percepção

desses elementos como as tramas que tecem o campo e trazem pistas para o

percurso investigativo. O convívio dos freqüentadores do Cine CCH, as

reações do público durante os filmes, as reflexões e relações construídas nos

momentos de debates são elementos que norteiam a pesquisa, criando

sentidos e significados inerentes tanto no processo de investigação quanto no

processo de formação dos sujeitos envolvidos.

A pesquisa-intervenção entende o ato de pesquisar como o próprio

processo de construção de sentidos para a experiência de um, de outro, ou de

ambos (CASTRO, 2010). Pesquisar configura um processo contínuo de intervir

nas práticas e relações que se tecem no campo, da mesma forma que é na

apreensão dessas experiências que os caminhos da investigação são

construídos e (re)significados. Em outras palavras, nossa investigação é

marcada de algum modo pelos sujeitos ali envolvidos, assim como estes

sujeitos têm suas experiências “contaminadas” pela pesquisa, elas trazem

dados e argumentos para a investigação. Por esta perspectiva entende-se que

o campo vinculado à pesquisa atravessa os sujeitos em sua formação e

simultaneamente é afetado pelas ações e movimentos empreendidos por eles.

Intervir é desencadear saberes, provocar olhares e fazeres outros, dar

vozes e visibilidades aos jovens que no Cine CCH participam e interagem,

Page 33: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

33

permitindo a eles que possam reconhecer seu lugar de atuação, integração e

pertencimento no campo/pesquisa que lhes atravessa e que é por eles

atravessado. Desse modo, os sentidos e significações que os jovens criam e

compartilham no Cine CCH se enredam inevitavelmente para o processo de

pesquisa assim como para o processo de formação que atravessam como

estudantes da graduação.

Embora a relação dialógica e horizontal explicite a ruptura da postura

neutra e distante do pesquisador para com o pesquisado, percebe-se com isso

também certa perda de controle por parte do pesquisador de seu próprio

trabalho cujo percurso sofre continuamente interferência dos sujeitos do campo

que investiga. Pesquisar com a concepção de intervenção é uma escolha de

risco e desafio. O trabalho que busca nas ações e relações construídas pelos

sujeitos, as pistas para seguir na investigação, nem sempre nos apontam

caminhos diretos e seguros. É um desafio porque podemos ser levados para

diversas direções que de tão múltiplas e emaranhadas se tornam uma parede

de tijolos, e um risco porque alguns indícios são fugidios, revelam-se e perdem-

se no momento dos acontecimentos. Por isso a pesquisa-intervenção é um

campo de tensões e conflitos entre a imprevisibilidade dos acontecimentos e os

sentidos e os questionamentos revelados ao longo do seu processo. Perscrutar

e interpretar o que os sujeitos envolvidos indicam é uma busca paciente,

delicada e sensível aos fatos, aos movimentos e marcas deixados pela

experiência no e com o Cine CCH. Processo que instiga e instabiliza sem

esvaziar de sentido, visto que no balanço e desequilíbrio imprescindíveis no

percurso de investigar, torna-se possível criar significações, questões e

descobertas outras sobre o campo e sobre o próprio trabalho de pesquisar.

Mesmo estando num espaço familiar, freqüentado tantas vezes, é

preciso vasculhar com outros olhares e criar um modo diferente de pensar

(DUARTE, 2002) o campo de trabalho no intuito de construir e percorrer

caminhos e possibilidades para a pesquisa. Minha localização enquanto

universitária e colega dos participantes do Cine CCH não está indissociável do

papel de atuação de pesquisadora do campo, na medida em que ambos os

lugares se formam em processos de significação mútuos e constantes.

Contudo, é preciso descortinar e apreender os aspectos breves e fugidios que

Page 34: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

34

se perdem ou se escondem pelo olhar habituado do “nativo” que, de certa

maneira, é também o lugar que me encontro.

A partir da leitura do estudo de Travancas (2006) no qual ela apresenta

diferentes trabalhos antropológicos para pensar a pesquisa etnográfica,

percebo a tenuidade em ocupar e assumir essas duas posições que ao mesmo

tempo se encontram e se transpassam, mas por vezes também se chocam. A

relação estreita com o campo e com os sujeitos com quem nele compartilho

determinados códigos e sentidos no contexto do Cine CCH e da própria

graduação, levam-me a procurar outros caminhos de reflexão para evitar a

“descrição superficial dos fatos e compreender como as piscadelas são

produzidas, percebidas e interpretadas” (p.2). Segundo a autora, o trabalho do

etnógrafo consiste em buscar a diferença, aquilo que lhe é estranho e

desconhecido.

Neste sentido, o antropólogo persegue e tenta interpretar o que é

distante, exótico e incompreensível à sua cultura, seu grupo ou classe social,

aproximando-se do outro, do diferente. O trabalho de pesquisar sobre um

universo no qual me reconheço “nativa” acontece, portanto, no movimento de

me deslocar sem sair do lugar, num exercício de estranhamento do jogo de

signos e regras familiares ao campo e seus sujeitos. Despir-se provisoriamente

do papel de membro do campo, não o anula. Pelo contrario, permite-me ser

conduzida para outros lugares, criar novos olhares e sensações sobre o campo

que vivencio, seus participantes e minha própria postura e atuação.

É no esforço de se distanciar temporariamente do próprio grupo que

torna-se possível refletir e discutir os ditos e os não-ditos, desvendar nos

gestos ocultos, nos subterrâneos das falas e nos mínimos afetos os sentidos

produzidos que não são claros e visíveis e nos escapam como piscadelas.

Assim, ao assumir o lugar de pesquisadora procuro nas vozes dos sujeitos

outras vozes, que nos são próprias e ao mesmo tempo externas, descobrindo o

exótico em nós mesmos, o outro que nos constitui.

Neste sentido que me reporto aos conceitos de narrativa e experiência,

respectivamente do filósofo Walter Benjamin (2012) e do educador Jorge

Larrosa (2002), para discutir como esses elementos são fomentadores dos

movimentos de formação que se estabelecem no Cine CCH. Os debates, a

sensibilização pelos filmes, pela escuta e fala do outro como ações e posturas

Page 35: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

35

que integram são alguns aspectos do Cine CCH que, junto aos dois teóricos,

nos levam a refletir como este espaço pode atravessar os seus participantes, e

por eles ser transpassado.

2.3 – Narrativas e experiências como desdobramentos da pesquisa

É para mim evidente a pluralidade de dizeres, perspectivas, identidades,

gostos e gestos que se encontram e, por vezes, se estranham nos debates do

Cine CCH, lugar de sujeitos narradores e criadores, que contam e

compartilham olhares e histórias entremeadas pelos filmes assistidos. Contar

histórias é criar narrativas que são sempre carregadas de sentidos afetivos,

políticos, culturais e subjetivos que no ato de narrar se inventam e inventam o

outro, contadores e ouvintes. Essa noção de narrativa é trazida para este

estudo a partir do pensamento de Walter Benjamin (2012) que entende

narração como arte milenar de contar e transmitir oralmente histórias que são

expressões mais vivas de intercambiar experiências, entrelace de histórias de

vida e memórias.

Para o filósofo, a narrativa tem caráter eminentemente coletivo e

dialógico visto que sua existência se constitui em movimentos compartilhados,

assim como os sentidos e ações que conduzem o processo de pesquisa-

intervenção e as sessões do Cine CCH. O que constato pelas vivencias e

observações neste campo é que os debates realizados podem se configurar

como espaçostempos possíveis para os sujeitos experienciarem a figura do

narrador, conforme Benjamin (2012) conceitua:

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as historias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a historia. [...] É uma inclinação dos narradores começar sua historia com uma descrição das circunstancias em que foram informados dos fatos que vão contar a seguir, isso quando não atribuem essa historia simplesmente a uma vivencia própria. (p.221)

Como o narrador em Benjamin, os participantes nos debates do Cine

CCH constroem seus relatos e os compartilham através das marcas e vestígios

deixados pelos filmes em si, marcas que respingam da tela tanto em quem

conta quanto em quem escuta. Para chegar a tal reflexão, no entanto, há que

se fazer um mergulho profundo e denso na filosofia benjaminiana dada a

Page 36: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

36

complexidade e radicalidade com que tais aspectos são apresentados em seus

escritos.

Nesta parte do estudo, busco sistematizar argumentos trazidos a partir

da leitura dos ensaios de O narrador e Experiência e pobreza nos quais

Benjamin fundamenta o laço existente entre narração e experiência, dialogando

com o entendimento de Jorge Larrosa (2002). A questão da narrativa aparece

em Benjamin (2012) em sua crítica à uma cultura na qual as formas tradicionais

de narrar e transmitir oralmente histórias tornaram-se antiquadas, portanto,

perdeu-se a capacidade de compartilhar experiências. O declínio e

empobrecimento da experiência são constatados pelo fim da narração

tradicional nos tempos modernos. A arte de narrar se define como arte de dar

conselhos e sabedoria, por isso ela se constitui numa comunidade dentro da

qual o narrador é aquele que tem, na sua experiência, a autoridade de

conselheiro. Isto é, a narração não é algo para ser simplesmente contada e

ouvida, mas pressupõe um narrador interessado em atravessar o ouvinte com

suas experiências e um ouvinte disposto a ser atravessado pela coisa narrada.

Em sua afirmação que o narrador “não está absolutamente presente

entre nós, em sua eficácia viva”, o autor admite o abandono progressivo do ato

de contar histórias uma vez que a narrativa é “para nós algo de distante, e que

se distancia cada vez mais”. (p.213) A preocupação de Benjamin com o

desaparecimento do dom de narrar revela-se em sua denúncia ao advento da

imprensa e do romance - formas genuinamente burguesas e urbanas de

comunicação – que determinam novos meios de prática e relação destituídos

de experiência. A dinâmica da modernidade trazida pelo capitalismo condiciona

mulheres e homens a hábitos, valores, comportamentos e estilos de vida

incompatíveis com as formas tradicionais de narração. Ou melhor dizendo, a

tradição de contar histórias oralmente com a finalidade de transmitir um

ensinamento foi sendo substituída progressivamente por novos modos de

narrativa, porem mais condizentes aos modos de vida moderna.

Para Benjamin, o romance se caracteriza como tipo de instrumento

narrativo próprio de indivíduos solitários. Enquanto a narração tradicional tem

seu valor em experiências coletivas, o romance “está essencialmente vinculado

ao livro” (p.217), já que não exige a preservação e perpetuação de

experiências. A produção e consumo do romance são eminentemente

Page 37: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

37

individualistas e efêmeras, tornam desnecessário o encontro coletivo para

contar, ouvir e recontar histórias. Tanto o romancista como o leitor do romance

são sujeitos isolados e a relação com o livro se esgota ao final da escrita e

leitura. Em contrapartida, a narração tem sua existência determinada dentro de

uma comunidade, pois precisa da relação direta e interessada entre narradores

e ouvintes, num processo coletivo de entrega e abertura em que os sujeitos

recorrem às suas experiências e às experiências de outros para tecer as

narrativas. Por isso, elas nunca se esgotam, narrar é perpetuar, passar adiante,

fiando e desfiando artesanalmente histórias de vida, memórias e

conhecimentos.

A informação jornalística inaugura uma forma ainda mais condizente ao

imediatismo e brevidade dos meios de vida na sociedade moderna. No cenário

das grandes cidades “em seus edifícios, quadros e histórias, a humanidade se

prepara, se necessário, para sobreviver à cultura” (BENJAMIN, 2012, p.128). A

cultura da novidade e do excesso na qual homens e mulheres sobrevivem

imersos a uma exposição maciça de anúncios, cartazes, manchetes e notícias

e acabam impossibilitados de criar vínculos, habituados a formas de

comunicação fragmentadas e desconexas. A informação vigora em tempos de

saciedade eterna pelo novo nos quais as pessoas vivem atropeladas de

trabalho, eventos, tarefas e compromissos funcionais. Por isso é raro a pausa

para se contar e ouvir histórias, para escutar e ser escutado pelo outro, na

intenção de ser interpenetrados e compartilhar experiências/aprendizados. A

comunicação íntima, direta, ritualística e duradoura torna-se ínfima numa

esfera de vida em que os fatos chegam e logo são descartados sob a forma da

informação, morrem no instante que são lidos.

Numa análise sobre o pensamento de Walter Benjamin a respeito da

narrativa, Jorge Larrosa aponta o periodismo e a falta de tempo como

elementos que destroem a experiência. De acordo com este autor, o

periodismo é “a aliança perversa entre informação e opinião”, que fazem do

sujeito um ser incapaz de experiência, pois ele se informa a respeito de algo

sobre o qual deve opinar– o que geralmente fica reduzido a estar contra ou a

favor de algo. Como um “consumidor voraz e insaciável de notícias, de

novidades, um curioso impenitente, eternamente insatisfeito” (LARROSA, 2002,

p.23), o sujeito moderno não tem tempo suficiente para uma experiência

Page 38: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

38

compartilhada e prolongada (Erfahrung), pois o mundo moderno, onde os

acontecimentos ocorrem como um choque e as vivências são instantâneas e

fragmentadas (Erlebnis), nada toca este sujeito, tudo o agita, o excita, o choca,

mas nada lhe atravessa.

Entender a oposição entre esses dois termos é o fio condutor para a

problemática central de Benjamin acerca da experiência. A Erlebnis vem do

verbo alemão erleben que significa vivenciar e pressupõe viver fatos no

momento em que eles ocorrem. Desse modo, configura-se como experiências

particulares vividas isolada e fugazmente como as exigências práticas do

cotidiano nas quais nos acomodamos e não deixam rastros, pois são

passageiras que não se perpetuam para além delas e de nós mesmos. Por

outro lado, a Erfahrun se constitui como experiências vividas que encontram

permanências nos sujeitos que nelas se integram. É neste sentido que a vida,

as experiências dos sujeitos se impõem de alguma forma ao que é narrado.

Toda narrativa é atravessada pelas experiências construídas pelos sujeitos

dentro de uma comunidade, ao mesmo tempo em que a narrativa os atravessa.

Para entender o caráter artesanal de comunicação, há uma bela

metáfora de Benjamin (2012) ao aludir o narrador na figura do oleiro de vaso de

argila. Tal como a narrativa carrega marcas das experiências, histórias e

lembranças “se não na qualidade de quem as viveu, ao menos na de quem as

relata” (p.222), o vaso de argila traz vestígios e impressões do artesão que

imprime no objeto as marcas de suas mãos. A condição do trabalho manual é

como a arte de narrar, pressupõe esquecer provisoriamente de si para se

entregar ao tédio do processo lento e paciente de moldar/narrar. Neste ponto,

fica-se claro a incompatibilidade e contradição entre a composição e relação

abreviada e momentânea da informação com a narrativa que precisa da

disposição, entrega, leveza e esquecimento para ser contata, ouvida, fruída e

atravessada cujo sentido está na intencionalidade de criar e conservar elos

entre narradores e ouvintes.

Assim como o vaso de argila, cada narrativa é única porque traz as

experiências de quem a compôs. E ao ser contada e recontada, a narrativa vai

sendo tecida a outras experiências e por isso é narrada de outras formas,

escutada por outros ouvidos, sendo sempre única e múltipla a cada narração e

a cada experiência que cruza. Sobre isso, Benjamin (2012) nos fala que uma

Page 39: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

39

história “se liga à outra, como demonstraram todos os grandes narradores” e

por isso em “cada um deles vive uma Scherazade”. (p.228) Uma narrativa é

sempre um fio de outra narrativa, ou de várias ao mesmo tempo. Uma rede de

infinitos nós constituídos por diferentes olhares, saberes, sentimentos e

ensinamentos que se entrelaçam permanentemente.

Se nos reportarmos ao que nos diz Benjamin, surgem indagações se

estaríamos vislumbrando novos modos de experiências nos dias de hoje, que

nos levam a problematizar como a narrativa sobrevive em tempos atuais. Sob o

diagnóstico de uma sociedade decadente e vazia de experiências (erfahrung),

o filosofo denuncia a extinção da arte de narrar pelo rompimento com a

tradição. Contudo, esse lamento não parece alertar para o resgate de uma

antiga tradição, mas nos convida a refletir sobre a necessidade de inventarmos

formas novas de narrativas, possibilidades e perspectivas outras de produzir e

intercambiar narrativas coletivas e significativas em meio às experiências

fragmentadas e efêmeras da contemporaneidade.

Tal assertiva nos conduz a problematizar o lugar do Cine CCH como

espaço possível para a Erfahrung, na medida em que ele propicia a criação de

conhecimentos e sentidos coletivos e formadores para os sujeitos envolvidos.

Se a experiência é substrato para a narrativa, isto é, o narrador traz à tona

suas experiências ao narrar, podemos afirmar que a participação no Cine CCH

se constitua em movimentos de narração tendo em vista as discussões que

explicitam permanências para além do imediatamente vivido no filme assistido.

Ao abrir o debate sobre suas impressões a partir do que foi narrado no

filme, os jovens têm a oportunidade de experienciar o que é ser um narrador.

Enquanto falam sobre o que os filmes exibidos, eles trocam experiências,

contam um pouco de suas vidas, relembram momentos já esquecidos, refletem

sobre a realidade em que vivem e reavivam, de certa forma, a arte de narrar na

dimensão coletiva de que nos fala Benjamin.

A experiência – fonte a que recorrem todos os narradores – é algo que

nos passa, nos acontece e nos toca (LARROSA, 2002). Portanto, o saber de

experiência deve ser desvinculado do saber coisas, pois este último depende

apenas da informação. O ser informado não possui necessariamente

experiência que, consequentemente, alimenta a sabedoria do verdadeiro

narrador.

Page 40: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

40

Apoiando-se na ideia de Larrosa (2002, p. 21) de que experiência é o

que “nos acontece, o que nos toca”, reconhecemos o Cine CCH como lugar

para a experiência. Toda vivencia que deixa traços, marcam expressivamente

os sujeitos que nela atravessam é uma experiência. Desse modo, entende-se

que o projeto de apresentar filmes em um espaço acadêmico e viabilizar

debates permite às pessoas a possibilidade de construir e articular ações

coletivas que possam se constituir em experiências.

Sabendo que as sessões ocorrem nos horários das aulas, professores

e estudantes interrompem suas tarefas acadêmicas, desmarcam atividades

previstas, permitem-se uma parada. A participação dos sujeitos no Cine CCH

nos remete ao que o autor considera imprescindível à experiência:

[...] a possibilidade de que algo nos aconteça, ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempo que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar. (LARROSA, 2002, p. 24)

Com isso, entendemos que a simples chegada despretensiosa ao

auditório, a curiosidade em assistir ao filme e a presença e participação no

debate são indicativos que configuram o sujeito da experiência por sua

receptividade, abertura e disponibilidade. Infere-se nisto a dimensão de

experiência como travessia e perigo analisada por Larrosa. Para que algo

aconteça ao indivíduo, que algo lhe suceda ele precisa estar disposto a

atravessar “um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e

buscando nele sua oportunidade, sua ocasião”. (LARROSA, 2002, p.25). Como

o autor nos lembra, o termo Erfahrung contém a palavra alemã fahren que

significa viajar. A experiência é como uma viagem, uma aventura na qual o

sujeito renuncia a segurança das certezas e previsibilidade dos acontecimentos

práticos do cotidiano e aceita viver os riscos do desconhecido, permite-se

percorrer um caminho estranho e exterior ao que ele é, o que ele faz. Em

contraposição ao que nós somos, o que executamos, a experiência é o que nos

acontece porque vem de fora de nós, ela nos atinge e arrebata, marcando e

alterando significativamente os sentidos e sem-sentidos que construímos ao

longo de nossas vivências.

Ao narrar sobre o filme exibido, o sujeito cria um sentido para o que foi

assistido, falando sobre e através dos traços e efeitos provocados neste

Page 41: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

41

contato cinematográfico. Por isso a narração é sempre um contar-de-si, contar

e compartilhar com o outro sua própria experiência. E ao falar sobre o que lhe

tocou, o que lhe marcou no filme, narradores e ouvintes não apenas trocam

experiências com o filme, com o cinema, como também as inventam e se

inventam. Quem narra, relata seu ponto de vista ou o que lhe chamou atenção

no filme, constrói sua relação com o que foi visto na tela e cria significados para

a própria experiência, ao mesmo tempo que afeta outros sentidos e

experiências. Os relatos ou narrativas deslizam umas sobre as outras,

modificam sentidos, ressignificam olhares, atravessam pensamentos e

(trans)formam os sujeitos. É neste movimento de interação que os debates

potencializam experiências fomentadas por ações e encontros dialógicos,

plurais, reflexivos e formativos nos quais diferentes olhares, vozes e saberes se

perpassam e se alteram, configurando processos de permanências e

mudanças.

Page 42: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

42

Page 43: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

43

3 – “CINEMA É UM ACONTECIMENTO”: ATRAVESSANDO NARRATIVAS E

NARRADORES

Nesse capítulo tenho como objetivo trazer a análise dos materiais da

pesquisa referentes à relação dos jovens participantes do CINE CCH com o

cinema discutindo alguns dos aspectos que sobressaíram nas entrevistas. Para

isso, procurarei apresentar inicialmente a relação que eles tem com 1) o

cinema como experiência formativa na vida (na família, nos círculos que

frequentam, nos acessos via cinema, Tv ou internet), em seguida procuro

perceber como os entrevistados abordam 2) a relação com o cinema na

universidade associadas ao projeto do CINE CCH. Busco analisar, a partir

da fala dos sujeitos, como se formaram como espectadores na vida e na

universidade pensando sobre as dimensões trazidas por eles acerca de sua

experiência com o cinema.

Para essa análise, articulo os conceitos de narrativa e experiência,

conforme as proposições trazidas no capítulo anterior. A narração que é

entendida por Benjamin como a capacidade de criar e perpetuar histórias com

e através de experiências coletivas. Em diálogo com esse pensamento que

Larrosa (2002) compreende a experiência como um fato que não se esgota ao

final de seu ocorrido, mas produz efeitos contínuos e modificadores nas

pessoas. Narrativas são sempre carregadas de experiências, nunca se

esvaziam no imediatismo do dito, mas se prolongam como uma viagem (Farht)

pela qual nos deslocamos das vivencias e saberes fixos e previsíveis para

alcançar outras experiências. Dessa maneira e com intuito de analisar as falas

dos sujeitos nesse diálogo que trago a seguir o que percebi nesses dois

aspectos anteriormente enfocados nessa pesquisa. Isto é, como os relatos e as

histórias tecidas ao longo das entrevistas se revelam narrativas? Em que

medida os sujeitos se revelam narradores?

Foram realizadas ao final do ano de 2012 cerca de 10 entrevistas com

frequentadores assíduos do Cine CCH até aquele momento, as quais nos

permitiram ampliar a percepção das relações construídas com o cinema ao

longo da vida que em certa medida são constituintes dos sujeitos. Ao elaborar

o roteiro da entrevista (em anexo) visávamos nos aprofundar nas redes de

Page 44: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

44

conhecimentos e culturas relacionadas ao universo cinematográfico dentro das

quais os participantes se formaram espectadores. Redes que revelam os

sentidos e sentimentos com e nas quais esses estudantes construíram suas

culturas de cinema, mediando suas relações com o mundo e com o outro e que

vão se entrelaçar de alguma forma com a própria experiência cineclubista na

universidade.

3.1 – Narrativas com o cinema, memórias de vida

Os entrevistados quando questionados sobre a relação com o cinema, a

falar sobre suas histórias de vida com o cinema, a maior parte demonstra

grande envolvimento e interesse, revelando a presença expressiva do cinema

em suas vidas desde a infância. Algumas falas são entretecidas por muita

emoção, desejos e perspectivas de vida, conotando valores significativamente

afetivos e sensíveis com o cinema.

Os relatos dos sujeitos nas entrevistas expressam sempre experiências

coletivas, situações, hábitos compartilhados com familiares ou círculos de

amizade entremeados por lembranças afetivas e filmes marcantes. Em

determinados relatos, os próprios sujeitos parecem reconstruir suas trajetórias

de vida permeadas pelo cinema, reconhecem o papel relevante do outro - de

um parente próximo, de amigos - na formação dessas tramas, como apontam

as falas seguintes:

Eu sempre gostei muito de cinema, sempre fui envolvida de alguma forma. Quando eu era criança, assim, eu ficava perturbando o meu pai, ia na locadora toda semana, alugava os mesmos filmes toda semana, aquela coisa de criança. Um hábito lá em casa. Porque bem ou mal meu pai me levava toda semana na locadora, a gente ia, alugava os filmes, então... Eu acho que eu tinha essa aproximação com a linguagem desde cedo, então pode ter influenciado pra fazer as escolhas que eu fiz depois. (Vanessa) Mas eu ia muito ao cinema antes de entrar na faculdade, aí sim, eu ia pra filmes hollywoodianos, assistir filmes de cartaz, com amigos da escola, amigas da escola, assistir, por exemplo, a série “Harry Potter”, assisti a todos os filmes, desde o primeiro. Depois com o pessoal do ensino médio, mas com quem eu ia mesmo era com meu irmão e minha cunhada. A gente ia sempre, assim, uma vez por mês ao cinema. Eles me levavam. Mas pra ver filmes do grande circuito. Eles me chamavam. Mas eu sempre gostei de cinema e queria ir e eles, por saberem que eu gostava de cinema, e que a minha mãe não saía e tudo, eles me chamavam e acabavam me levando. (Tiago) Eu nasci numa família que ia periodicamente ao cinema, então quando eles iam eles me levavam. Então na minha infância eu ia pra esses filmes que tão em cartaz, infantis, Disney, essas coisas, eu sempre ia com os meus

Page 45: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

45

pais. Depois que a gente se desprende desse núcleo familiar, de programinhas tão familiares e, digamos, mais próprio da infância e da criança, eu comecei a ir ao cinema, claro, por conta própria e fui diminuindo um pouco o ritmo. (Igor) Eu lembro que pequena, uma vez minha mãe levou a gente ao cinema para poder ver Xuxa (risos). Todo mundo, eu e minhas irmãs pequenas indo ver Xuxa. A lembrança que eu tenho melhor da minha infância no cinema. E depois eu já lembro muito vendo filme, que lá em casa todo mundo gosta muito de ver filme. (Sinara)

Na compreensão da narrativa em Benjamin (2012), os relatos

compartilhados nas entrevistas apresentam sentidos intencionalmente criativos

e inventivos de contar e pensar a própria história. A função interventora da

pesquisa surge nesse momento, ao convidar os sujeitos a revisitar suas

histórias de vida. As memórias trazidas de espaçostempos passados são

entrelaçadas com o hoje, intercambiando experiências de diferentes tempos e

lugares. No processo de rememorar os sujeitos desencavam, selecionam,

imaginam e refletem sobre filmes, pessoas, gestos, comportamentos e

sentimentos que perpassaram suas trajetórias de vida com o cinema. O valor

narrativo nesse movimento de contar suas histórias reside na possibilidade de

confrontar experiências passadas com os sentidos atribuídos no presente.

Desse modo, as lembranças quando narradas vão sendo elaboradas através

dos olhares de hoje, o que configura movimentos de reconstruir essas

trajetórias.

Entende-se assim como a narração implica em processos

eminentemente formativos para os sujeitos. Na medida em que contam/narram,

eles puxam fios da memória, desfiando as lembranças que se emaranham em

novas tessituras, criando novas tramas da vida e de si. Os relatos se revelam

narrativas quando ao contar suas histórias, elas ganham novos sentidos e,

portando, são recontadas e inventadas, potencializando outros aprendizados e

experiências com o cinema.

Nesse caminho narrativo, as falas também apontam outros indícios

pelos quais podemos seguir na apropriação de sentidos criados na relação com

o cinema. A narrativa não se constrói apenas da rememoração de experiências

longínquas, de uma época distante do contexto e momento em que é narrada.

Para Benjamin, a arte de narrar busca na experiência sua matéria, a fonte para

ser tecida e compartilhada. Com isso é que entendemos que toda coisa

narrada sempre traz marcas significativas que atravessaram e ainda

Page 46: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

46

atravessam as identidades e subjetividades dos sujeitos produzidas em

experiências com filmes, com o cinema que se desdobram em espaços e

tempos mais recentes. A recorrência nos relatos dos entrevistados em assistir

determinados filmes diversas vezes instiga a necessidade em compreender os

sentimentos, ideias e significados envolvidos nessa forma de consumo. A

prática de rever é significativa nos modos como eles se relacionam com filmes.

Essa necessidade da “repetição” aparece associada a filmes marcantes, que

lhes tocam ou referem-se a um tipo de filme de suas preferências:

Tem essa coisa de ver várias vezes. Então, eu alugava sempre o mesmo filme e agora se eu gosto muito de um filme eu compro e fico vendo de novo e ninguém aguenta ver comigo. Eu vejo sozinha, várias vezes.

(Vanessa) Filme que me toca eu não consigo assistir uma vez só. Não consigo

cansar. Aquela coisa da experiência que você tem começo, meio e fim e acabou. Não. Quando eu assisto de novo eu acabo me emocionando, me atentando para as mesmas partes. (Igor)

Eu gosto muito de filmes da Jane Austen. Conhece a Jane Austen? Orgulho e Preconceito, Persuasão, Emma... Todos esses filmes eu vejo, revejo.

Todo mundo que vai lá em casa eu boto para ver, meu namorado tem que ver também. É tanto filme que eu gosto. (Sinara) Os filmes que eu acho clássicos e que eu vejo nas Lojas Americanas que está baratinho, tipo doze reais, eu levo para casa. Aí, eu posso ver, rever,

eu empresto. (Mariana)

E falar de cinema é também falar de filmes que assim como as redes de

amigos e a família, as culturas de cinema também se formam nas práticas de

consumir e interagir com as imagens e narrativas fílmicas. Recorro à definição

de Nestor Canclini (2010) de consumo que o entende como “conjunto de

processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos

produtos”. (p. 60) Na compreensão de que os filmes constituem elementos

culturais fomentadores de significações e sentidos do mundo, o consumo

desses bens também integra e intervém em modos de pensar, criar e agir na

vida coletiva em sociedade. Tomando essas ideias que questiono, qual o

sentido atribuído em assistir novamente, ou várias vezes, partes já conhecidas

de filmes? Que relação eles parecem ter com o consumo de filmes na ótica da

repetição?

Esse tipo de prática, costume de rever determinados filmes várias vezes,

que é sinalizada na maioria das falas, sugere um consumo na contramão do

Page 47: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

47

sendo comum que o reduz a gastos supérfluos e irracionais. Dessa forma, este

estudo entende como o consumo de um filme não se esgota ao ato imediato

em que é assistido, quando está imbricado em processos de significações. Um

filme como objeto de consumo pode se transformar através dos usos e

apropriações que o espectador constrói ao assisti-lo, bem como o espectador

se transforma ao descobrir-se sujeito/consumidor nas relações construídas

com o filme.

É interessante notar, por exemplo, a necessidade de Igor em retomar

cenas que lhe causaram emoção, de estar atento às mesmas cenas como ele

mesmo afirma. Essa repetição é sem dúvida associada a filmes que lhes

tocaram, provocaram vestígios que podem se configurar em experiências no

sentido que Larrosa (2002) nos fala. Parece então que no retorno ao filme,

àquela cena há uma tentativa de ser novamente tocado, alcançado pelas

marcas deixadas outrora, de apreender o efeito produzido. Mesmo na

impossibilidade da experiência se repetir, é preciso sempre um reencontro que

reafirme os valores, sentidos e sentimentos construídos naquela relação.

A partir das referências cinematográficas que aparecem nas entrevistas

como filmes que mais gostam ou que mais lhe marcaram, como os próprios

sujeitos dizem, os filmes são concebidos como produtos culturais que na

interação com os espectadores, eles se constituem consumidores e produtores

singulares e múltiplos de culturas de cinema. Isto é, filmes que marcam são

filmes que deixam rastros e se desdobram em experiências, imaginários,

emoções, afetos e histórias carregados de sentidos coletivos e formadores. Tal

como Larrosa (2002) conceitua o sujeito da experiência como território de

passagem, o espectador se define pela disposição e receptividade para ser

atravessado pelo filme que assiste. Assim, penso que quando dizem que algum

filme lhes marcou, os sujeitos admitem a condição de entrega e abertura para

serem transpassados pelo filme e nele transpassar.

Os motivos apresentados para justificar suas preferências fílmicas

também são bastante variados como, por exemplo, Juliana relaciona a

intervenção da literatura nas suas escolhas de filmes: “Ah, isso é uma coisa

interessante, mas eu gosto de ver filmes que vieram de livros que eu goste

muito.” enquanto Vanessa atribui um critério mais subjetivo para essa seleção:

“Eu gosto de filme que não me dá respostas prontas, assim. Eu gosto de estar

Page 48: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

48

impactada, de alguma forma. De ficar remoendo aquilo, um tempo. Não gosto

de filme fácil.”

Alguns não chegam a citar filmes específicos, trazendo nomes de atores

e diretores como elementos motivadores na relação com os filmes como a

estudante Mariana: “Eu tenho dois autores que eu sou completamente

apaixonada que é o Woody Allen e o Pedro Almodóvar. Eu sou apaixonada por

eles, eu vejo tudo que eles fazem.” E Juliana: “Eu tenho uma relação com

atores também, atores que eu preciso acompanhar sempre.”

Outro ponto relevante que surge na maioria das entrevistas é a distinção

entre filmes fora do circuito industrial e filmes comerciais que aponta para uma

forma significativa de consumo, como compreendem e se relacionam com

filmes. Algumas denotam certo desprezo pelas produções hollywoodianas ou

blockbuster, apresentando esse tipo de conhecimento para discriminar filmes

bons e filmes ruins.

Eu tento me informar mais sobre esses filmes alternativos porque eu não costumo gostar muito do que está passando nas salas. Eu amo cinema, mas não gosto de ver Lanterna Verde, Hulk, Batman. (Mariana) Como a gente mora afastado desse eixo zona sul/centro, lá perto de casa é difícil a gente ter filmes mais assim... É mais pastelão, blockbuster. Então, meu namorado, ás vezes tá com preguiça de ir pra longe e aí a gente vai ver, sabe, esses filmes. E aí eu acho um saco. (Vanessa) Quando eu digo “ir ao cinema”, não necessariamente numa sala de cinema com essas apresentações de filmes hollywoodianos que também não são os que mais me apetecem, mas algo alternativo, né? Estação, Cine Santa, deixa eu ver... Arteplex. (Tiago)

Percebe-se como a criação desses critérios é decisiva nos modos de

escolher e avaliar filmes, constituindo assim uma forma de ser espectador.

Duarte (2009) fala que a criação dessas categorias repousa numa concepção

de cinefilia (p.64) com a qual os sujeitos tendem a valorizar produções que

abordem temáticas mais complexas, experimentais que envolvem também

práticas de pesquisa e investimento intelectual sobre cinema. A grande maioria

dos entrevistados faz referência ao cinema como um programa social, evento

ou passeio fazendo distinção do filme em si. Alguns entrevistados admitem a

baixa frequencia a salas de cinema, denotando outros hábitos adquiridos para

se relacionar com a arte cinematográfica.

É uma espécie de ritual, né? Um ritual de você ir ao cinema, de estar ali no

coletivo, partilhando daquela experiência de ver aquele filme, enfim, tem todo um ritual que em casa não tem. (Tiago)

Page 49: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

49

Hoje em dia, eu ir ao cinema é um pouco difícil, eu assisto filme em casa mesmo, baixo na internet ou pego filme com alguém e assisto no meu computador. É bem diferente né cara, a sensação é outra, na verdade

eu não tenho ido muito ao cinema porque eu moro em Niterói e as salas de cinema que tinham lá praticamente todas fecharam, (Aghatha) Cinema virou um lazer um pouco difuso. É um pouco disperso hoje em dia, na minha experiência atual. Não sei se cabe falar aqui, mas eu baixo muitos filmes na internet (fala rindo com certa “vergonha”), acho que não cabe, né? É pra falar de cinema? Eu baixo muitos filmes em alta definição, coloco no meu HD externo, assisto o filme e a experiência é outra. Não digo nem que é melhor ou pior, mas é outra experiência. (Igor)

O acesso a filmes pela internet, através de compra, locação de filmes

em DVD e cópias não autorizadas sobressaem como as formas que os sujeitos

buscam para assistir filmes. Evidencia-se com isto um consumo de filmes muito

mais relacionado com esses suportes do que a frequencia de salas de cinema,

vista como um “ritual”. Por outro lado, vemos uma parte deles ainda frequentam

com alguma regularidade as salas de cinema tanto quanto buscam e utilizam

outros meios e recursos para consumo de filmes. No entanto, essa frequencia

ao cinema tem um objetivo específico como nos aponta a fala seguinte que

corrobora com a de outros entrevistados:

O cinema é mais um acontecimento. Estou querendo comemorar alguma coisa, tive uma semana muito estressante, então eu vou ao cinema. (Juliana)

Essa imagem trazida por Juliana remete inevitavelmente às palavras de

Larrosa (2002) que chama o sujeito da experiência de “espaço onde tem lugar

os acontecimentos”. (p.24) Ponto de chegada, território de passagem ou lugar

do acontecer são termos que o autor utiliza para se referir ao sujeito no qual a

experiência passa. Isso supõe que a experiência não é o acontecimento, mas o

que torna o sujeito vulnerável a habitar acontecimentos. Sendo assim, o

acontecimento é sempre exterior a nós, algo que não resulta das nossas ideias,

projeções, vontades e poderes. O acontecer não depende da ação e

planejamento da pessoa, apenas de sua ex-posição ao que é diferente do que

ela pensa, diferente do que ela sabe, diferente dos discursos e práticas nos

quais está acomodada. Neste sentido, a prática de ir a salas de cinema é

sentida e tratada pela maioria como ocasião especial, um ritual como disse

Tiago, que não deve ser reduzida a uma situação corriqueira. A noção do

cinema como acontecimento repousa neste entendimento de escapar

temporariamente dos regulamentos e linearidade da vida cotidiana e se lançar

Page 50: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

50

ao que está fora de nós, abrir em si um caminho para que o novo e inesperado

ganhe passagem.

Assim como os diálogos e reflexões partilhados nos debates do Cine

CCH, as entrevistas também configuram movimentos de narração no sentido

benjaminiano. Nas entrevistas individuais, no entanto, o exercício de escuta e

fala adquire uma dimensão metodológica mais aberta e dialógica que visa

compreender os sentidos que esses sujeitos já produzem com o cinema. Na

medida em que os entrevistados/narradores são convidados a colaborar com a

pesquisa a contar de si, isto é, ao voltar na memória, resgatam histórias de vida

debruçando-se sobre sentidos, valores, crenças e saberes estabelecidos com o

cinema.

A tarefa de motivar os entrevistados a narrar sobre suas historias não se

restringe apenas na apreensão de pensamentos, memórias de suas trajetórias

de vida com o cinema. O que se torna significativo nesse processo é a

possibilidade de repensar memórias vividas e imaginadas relacionadas com o

cinema. Ao narrar, eles narram e inventam a si mesmos, entrelaçando e

ressignificando as experiências de diferentes tempos e lugares que os

constituem sujeitos.

3.2 – Narrativas com o cinema e a universidade

Num segundo momento, procuramos focalizar nas entrevistas as

relações que existem e que podem existir entre o cinema e a universidade pela

percepção dos estudantes, qual o lugar do cinema, dos filmes no espaço

acadêmico.

A gente está na universidade, só lê texto, vira uma coisa maçante, não que isso seja chato, também adoro ler. Mas também é tão legal ir numa aula, diferenciar, em vez de ler, ver um filme. A gente está ganhando tanto quanto, aprendendo tanto quanto, mas de uma maneira diferente, de outra forma de expressão. (Mariana) Bem, acho que já tá começando com essa proposta do Cine CCH, essas películas de diferentes tempos, de diferentes temáticas, eu acho que de diferentes direcionamentos. Elas já trazem, inevitavelmente trazem uma dinâmica nova pra universidade. Eu não digo que aquela dinâmica vá se perdurar após o filme, mas durante o filme, o que que pode agregar de experiência? Bastante! Que contribuições ou que diálogos possa haver da universidade com o cinema? Eu acho que poderia ter muito mais do que já tem. Fazer uma relação com a disciplina, com o que tá escrevendo, uma discussão em sala de aula, para tentar flexibilizar, eu acho, um pouco, do que é prescrito, do que é pensado e projetado por um professor. Eu não

Page 51: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

51

posso criticar e jogar nada, mas eu penso que poderia ser diferente. E o cinema, um grande canal pra se pensar outras coisas. Então, o dialogo é esse: de agregar experiências, de trazer questões que possam dialogar com a disciplina. (Igor) Uma vez eu falei isso lá na UNIRIO, diante dos professores, uns adoraram, outros ficaram com a cara meio torta, mas eu falo. Eu posso estar totalmente enganado, mas é meu ponto de vista! Eu acho que o cinema é um... Não gosto da palavra dispositivo, mas na falta de outra eu vou falar: é um dispositivo formativo privilegiado. E qual é a crítica que eu faço? Que na universidade, na UNIRIO, no curso de Pedagogia mesmo, muitos professores, a despeito de ter uma discussão de cinema no curso de Pedagogia não entendem, do meu ponto de vista, o cinema como essa possibilidade de formação. Ainda tem – isso do meu ponto de vista – um ranço de achar que o cinema é pra discutir a matéria. Porque vai quando o filme tem a ver com a minha disciplina, se não tem, vou perder o tempo da aula, como se a aula garantisse a pessoa discutir questões... Entendeu? E aí você perde uma experiência que é formativa do ponto de vista estético, do ponto de vista ético, e do ponto de vista epistemológico mesmo. (Tiago)

Os relatos acima apontam sob diferentes perspectivas a constatação de

um tratamento escasso e distante que o cinema encontra no contexto de

formação universitária e defendem o seu valor como possibilidade de

aprendizado, diálogo e experiência. Assim como Mariana, Tiago também

contesta a maneira secundária com que o cinema é contemplado nas práticas

curriculares, ressaltando sua potencialidade formativa tanto quanto a prática

recorrente de leitura de textos no curso que frequentam. Tiago acredita que,

em geral, os professores tenham ainda receios e dificuldades em trabalhar com

o cinema em suas diversas vertentes de abordagem, como ele mesmo cita,

que podem ser pelo ponto de vista epistemológico, estético, ético, em

detrimento de reduzir um filme como ferramenta de apoio disciplinar. Por outro

lado, para Igor o cinema pode operar como objeto catalisador para as

disciplinas, contribuindo na ampliação de debates e reflexões trazidas pelo

professor.

Ao mesmo tempo, o estudante também aponta outro modo de relação

do cinema possível no âmbito acadêmico e questiona as formas

hegemonicamente pensadas e praticadas da pesquisa na universidade.

Eu não iria evitar em citar o próprio filme numa dissertação, num trabalho. Eu já fiz isso! Uma música, alguma obra de arte... Por que não um filme? Então, se eu estou assistindo um filme na universidade que possa ter me tocado e que eu posso fazer uma relação com a minha vida e com a minha pesquisa, com o que eu leio, por que não? Eu acho que a gente tem que ter o livre arbítrio e a universidade tem romper... Não romper, apenas, com alguns modelos, mas deixar com que a própria vida entre na formação. E quando começa a pesquisa, será que você não pode trazer um pouco do que você vê, do que você faz atualmente para a pesquisa? (Igor)

Page 52: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

52

Sua fala deixa transparecer como o cinema já é referência na vida

cotidiana dele e essa forma de ver e pensar o mundo com e através de filmes

esbarra nas lógicas convencionais acadêmicas. Essa postura é um desafio a

se pensar em possibilidades outras de produzir, refletir e circular o saber

científico elaborado no âmbito da formação acadêmica, pelas quais também

sejam legitimados processos discursivos e investigativos promovidos com a

linguagem cinematográfica. É interessante notar pelo relato de Igor o

reconhecimento de como a relação com filmes pode tomar rumos

transformadores. Como o próprio estudante afirma, um filme pode

desestabilizar o pensamento, subverter formas rígidas e naturalizadas de

conceber o mundo que são formas também de ser e estar na universidade. Se

é na abertura e exposição ao outro que a experiência nos acontece, como nos

fala Larrosa (2002), um filme é um possível outro para nos atingir, nos

arrebatar e formar.

Essa percepção do caráter formador do cinema construída dentro da

universidade é evidenciada em outras falas, como Sinara e Lucia que sinalizam

para o que já havia sido apontado pelos outros colegas, o cinema como parte

inerente ao cotidiano e, portanto, já atravessa o meio universitário.

Faz parte, da universidade, da escola, da nossa vida como um todo. O cinema também é uma forma de aprendizagem. As pessoas não enxergam dessa forma. E a gente está aprendendo, está crescendo, amadurecendo. (Sinara) É uma arte, né. É uma leitura, uma construção, uma linguagem que o homem fala do seu cotidiano, do que afeta, dos seus incômodos, inventa, inventa tanta coisa... É muito bonito. Tem a literatura que já é uma loucura, né, e o cinema... então, a gente aprende muito com o cinema. (Lucia)

Apropriando-se das palavras de Lucia, esta pesquisa entende que o

cinema que afeta é o que nos forma e incomodados nos afetamos e nos

(co)movemos para formar o outro, a nossa realidade que são constituintes de

nós. Nesse exercício de narrar o cinema dentro da universidade, eles não só

problematizam o lugar que ele ocupa no âmbito acadêmico, como buscam

pensar nas pontes e diálogos entre o cinema e a própria formação.

Eu acredito que ele (cinema) deve ser incorporado na universidade de uma forma planejada e sistematizada mesmo, mas sem com isso perder a participação coletiva, espontaneidade, atendendo a demanda das pessoas. Mas ser sistematizado mesmo, porque faz parte da construção cultural ali e tal, você ter isso como formação. Até porque, por exemplo, na faculdade de Pedagogia, sobretudo, você vai trabalhar com professores, não o professor para desenvolver uma demagogia da leitura, ele tem que ler. E, hoje em dia

Page 53: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

53

você já tem que ler, ler o mundo, você lê diversas linguagens, inclusive cinema, então o professor nos processos de letramento de mundo é ideal que ele trabalhe com o audiovisual porque as crianças estão sendo bombardeadas por isso o tempo todo. Então, assim, é bom que tenha isso, em ter espaço sistematizado para você enriquecer a sua experiência com o cinema, é importante. (Aghatha)

Vejamos que Aghatha defende a integração do cinema com a

universidade na formação dos sujeitos assim como seus colegas. Contudo, seu

olhar focaliza a experiência com o cinema, isto é, como a universidade pode

contribuir na formação com e para a linguagem cinematográfica. O cinema não

aparece em sua fala apenas como elemento potencializador de questões e

debates para os cursos acadêmicos, como recurso de aprendizado a ser

contemplado nas práticas disciplinares. O que ela propõe é a importância da

universidade incorporar o cinema através de atividades, projetos e recursos

materiais, no reconhecimento do valor coletivo e acolhedor das imagens

fílmicas na formação cultural das pessoas.

3.3 – Narrando o Cine CCH, a universidade atravessada pela experiência

cineclubista

No terceiro momento das entrevistas, buscamos trazer dos entrevistados

seus olhares e dizeres para o projeto Cine CCH e para a própria experiência

construída enquanto espectador/estudante. Nas falas a seguir, eles contam

como conheceram o projeto, suas motivações e expectativas para participar e

continuar a frequentá-lo.

“O leitor”, a “Janela da alma” e “Carregadoras de sonhos” foram três filmes em que a professora deixou a gente ir assistir o filme e discutir depois em sala. Ela pediu pra gente assistir, fazer uma relação com a disciplina. Sobre a questão da leitura e da escrita. Discutir um pouco o

filme, o que a gente compreendeu e como a gente enxergaria, como a gente poderia se situar naquele contexto da menina que não sabia ler e pedia pra outra pessoa ler. (Igor) Foi num dia que eu não tinha aula e eu fui assistir. Depois as professoras das disciplinas também levavam. E depois eu gostei. E tinha disciplina que você conseguia negociar: o professor não vai, mas deixa que você vá, e tem outras que não dava pra negociar e aí não tinha jeito. No início era porque era disciplina. As disciplinas pediam pra levar, pra ir. Depois eu comecei a gostar. Assim, vivendo na experiência mesmo de ver o filme e depois discutir sobre o filme, aí comecei a gostar. Alguns

professores não levavam, mas aí eu falava que ia, eles deixavam e eu ia. E quando não deixavam... Teve dois... Teve uma vez que uma professora disse que não podia abrir mão da aula, eu tinha direito a falta, faltei. E acabou! (Tiago)

Page 54: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

54

Foi com uma atividade de sala de aula. A professora sugeriu que a gente assistisse. Porque na verdade, professor não leva, ele sugere. Tem

gente que assina e foge, né. O aluno não fica se não quiser, por isso que eu disse que não leva. Ele assina, foge, entra e sai pela outra porta. Eu fui para participar do debate porque eu acho interessante essa coisa do filme com debate. (Lucia)

O que dizer da experiência desses sujeitos com o CINE CCH? É claro

nesses relatos como o papel do professor que permite a ida ou sugere, nas

palavras de Lucia, uma determinada sessão para seus alunos e alunas se

mostrou fundamental para a entrada desses sujeitos no projeto, mesmo que

seja em favor de sua própria disciplina. Neste ponto, torna-se relevante

ressaltar que o Cine CCH sempre funcionou a partir das 18h, portanto, em

consonância com as aulas dos cursos no horário noturno. Como projeto de

extensão, o Cine CCH não possui vínculo com qualquer disciplina específica

dos Cursos oferecidos pela UNIRIO, apesar do caráter articulador com práticas

de ensino e pesquisa. Dessa forma, quando há o desejo de estar presente em

algum filme e debate, os estudantes também sugerem a seus professores que

levem a turma, ou como diz Tiago criam argumentos e estratégicas de

negociação.

Já Aghatha e Mariana demonstram um outro aspecto de envolvimento

com o cinema que revela o interesse e curiosidade em vivenciar uma atividade

nova na universidade, uma experiência cineclubista, elementos que as

impulsionaram a frequentar o Cine CCH.

É uma coisa que estava faltando, uma coisa que eu acho maravilhosa e que estava faltando. Tudo de bom! Ela faz sessões de cinema, não com filmes de cinema que passam no cinema... A maioria dos filmes eu já vi, aí eu quero rever e chamo o Pedro e a gente vem para uma sessão de cinema. É muito bom! Na universidade e podendo ainda conversar sobre o filme depois. Eu acho muito legal a ideia do projeto. A gente sempre passa pela primeira UNIRIO e lá tem sempre um cartaz do Cinema e Psicanálise e eu sempre queria ir lá, só que é lá, é longe e é sempre nos horários de aula. Aqui (prédio do CCH), por mais que seja no horário de aula, além de alguns professores liberarem, é aqui, aqui embaixo, é pertinho, dá para a gente ir, matar aula se for o caso... para ver um filme acho que vale a pena. (Mariana) Eu comecei a participar quando veio a ideia de sala de exibição lá no prédio do CCH, achei superinteressante, foi produtivo e aí geralmente você vem para aula e os professores quando liberam para ver o filme, “pô”, não tem porque você não ir, você já tá aqui, você vem para a aula, então vai acontecer um filme, vamos ver o filme, é super enriquecedor sim, parar e ver o filme ali, todo mundo e, discutir depois. (Aghatha)

Ao narrar suas participações no projeto, eles avaliam o lugar e

significado do projeto na UNIRIO, percebendo-o como espaço alternativo de

Page 55: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

55

vivenciar a travessia enquanto universitário. A proposta de assistir e debater os

filmes em meio à práticas de formação acadêmica surge como possibilidade de

ampliar, diversificar e pluralizar a trajetória na universidade. Isis e Juliana

explicitam que buscam e encontram no Cine CCH a exercitar olhares e fazeres

outros para além da previsibilidade das disciplinas curriculares.

Eu gosto dessa coisa de ter esse espaço na universidade porque há um tempo não tinha. É uma que eu sinto falta na universidade, é falar de questões atuais ou questões que não são ligadas à educação. Então no Cine CCH, nos debates, eu vou pelo filme também, que eu gosto de ver filme, mas nos debates, eu acho que essa coisa não que venha ser tão forte assim, mas às vezes eu consigo falar mais sobre o que está acontecendo hoje em dia do que só o mundo à parte e sobre outras coisas. Eu posso debater sobre outras coisas e que a gente não fala na sala de aula ou na universidade e o filme é bom. (Isis)

Eu acho interessante se criar esse espaço. Se a gente for pensar nisso, a gente não tem espaço na UNIRIO que se utilize de outra forma. E o Cine CCH é mais ou menos isso, é uma opção de você estar na faculdade e você debater, não é só assistir o filme e ir embora. É você discutir sobre alguma coisa, não necessariamente na sala de aula, não necessariamente sobre educação. Discutir outras coisas que são importantes também. Aí se trata da questão da universidade, né, que é

faculdade-pesquisa-extensao-ensino, né. Não é só ensino, não é só sala de aula. É utilizar o espaço de diversas maneiras. Quando eu entrei no Cine CCH foi uma coisa completamente diferente porque a única maneira de utilizar o espaço da universidade diferente é ou em festa, que agora nem é mais tão permitido assim, ou então em sarau que na maioria das vezes as pessoas do CCH não são convidadas porque é organizado pelo pessoal da música ou do teatro. Então, eu penso nas pessoas novas que estão entrando agora, como elas vão ter uma relação diferente. Não é como você ser obrigado a assistir a uma palestra chata com alguém que você não conhece. É para você ir assistir um filme, debatendo, construindo. (Juliana)

Os relatos anteriores tomam o Cine CCH como campo de embrenhar

questões e territórios poucos explorados do cotidiano acadêmico, favorecendo

a expressão e construção de sentidos e conhecimentos desalojados da

segurança e exigências típicas da graduação. Não por acaso estas últimas

entrevistadas fizeram também depois de conhecer o projeto parte da equipe

que o organizava, tais eram suas identificações com a proposta. Essa postura

que se revela em suas atitudes e falas que é impulsionada pela escolha,

abertura e disponibilidade ao diferente, que escapa das situações impostas e

instituídas é o que Larrosa (2002) chama de gesto de interrupção. A vontade

de parar, suspender os rituais e obrigatoriedades de sala de aula, como coloca

Igor, pressupõe um gesto de busca e risco. Se retomarmos ao que Lucia disse,

o professor nunca leva, ele sugere que seus alunos participem do Cine CCH. O

Page 56: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

56

que os instiga é a descoberta do novo, de renovar e experimentar formas

diferentes de estar e ser estudante na UNIRIO.

Assim, ao arriscar-se abdicar temporariamente das demandas

disciplinares do dia a dia, os sujeitos procuram intencionalmente deslocar e

reinventar olhares e relações na e com a universidade, que não sejam

vinculados ao saber vivenciado, produzido, habilitado, mas o saber da

experiência. Por isso o sujeito da experiência se define como “superfície

sensível que aquilo que acontece lhe afeta de algum modo” (p.19), pois

somente quando rompe com as práticas calculáveis centradas na ação e

produção de conteúdos, na competência e execução de tarefas é que torna-se

um território de passagem para que o outro lhe atravesse e lhe altere.

Nessa perspectiva, destacam-se relatos nos quais os sujeitos

reconhecem a participação no Cine CCH como lugar possível para que algo

lhes aconteça, isto é, espaço onde podem emergir outros sentidos e caminhos

para a própria formação. Como bem lembra Vanessa o Cine CCH “contribui pra

formação e, além disso, formação cultural, assim, formação como pessoa, te

dá mais repertório”.

Tudo o que acontece na universidade faz parte da minha formação. As vezes a gente acha que não, que são coisas isoladas, um evento que a gente participa, um filme, ou uma oficina que tem como essas do Tic Tac. Está tudo ligado, é o processo de formação da gente como estudante universitário. Por isso eu acho tao bacana. Eu acho que deveria

ate ter outras coisas também. Além do cine CCH deveria ter outras coisas. Sair um pouco da sala de aula. (Sinara)

O gesto de interrupção que requer a abertura e disposição para escutar,

olhar, abrir e se expor ao outro é evidenciado em muitos relatos. Reconhecem

o lugar do outro como aquele que lhe é externo, diferente, mas também

constituidor da sua experiência, quem provoca, incita e contribui na construção

de olhares e significados novos sobre o filme. Contudo, algumas falas deixam

expressar como a diversidade de sentidos apropriados e partilhados a partir

dos filmes podem causar incômodos, que é próprio também do que nos afeta.

Você discute com pessoas que você conhece, outras que você não conhece, e sempre surge uma questão nova, que te faz pensar, e isso me motivou a ir ao encontro. Porque se for só pelo filme, eu não sei se eu iria. Não vou nem dizer que eu gosto dos debates, porque a gente não sabe como vão ser, mas a possibilidade de ter o debate. Eu mesmo quase não participo, mas ouvir o outro... (Igor) Sinceramente, a parte que eu mais gosto (os debates) – sem contar o filme, que é uma experiência ótima. Mas eu gosto muito dos debates. Porque

Page 57: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

57

você tem a possibilidade de compartilhar pontos de vista, ouvir o ponto de vista do outro que, muitas vezes, te mostra ou te convida a pensar em uma coisa que você nem tinha pensado. Agora, claro que tem aquelas pessoas que falam umas coisas que você fica arrepiado. Né? Eu fico arrepiado, me dá um frio na espinha, mas faz parte, é lidar com o outro, né, com a diferença. (Tiago)

Todos os entrevistados admitiram participar e gostar dos momentos de

debate após os filmes. Como o Cine CCH é sempre aberto, sem temas e

debatedores direcionados, as discussões que se seguem aos filmes são

compostas conforme as articulações e movimentos criados pelos próprios

frequentadores. Para além de expor opiniões e explicações sobre o filme, os

sujeitos percebem os debates como momento de troca, escuta, confronto de

ideias, ampliação do olhar e da reflexão. Assim como Tiago e Igor, os demais

entrevistados também valorizam a fala do outro, mesmo que controversa, como

legítima na dinâmica dos debates. Isso sugere uma compreensão do olhar do

outro que também constitui o olhar que construímos com o filme.

Os relatos tecidos ao longo dos debates podem ser entendidos como

narrativas criadas a partir das marcas provocadas pelo filme. No movimento de

narrar e escutar os sujeitos dialogam, aprendem, refletem e compartilham com

as experiências trazidas pelo filme. Afinal, o filme nunca é um lugar fechado em

si, mas habita possibilidades e experiências. Os olhares que se revelam em

narrativas são abertos e receptivos ao outro, assim ao narrar e escutar a

experiência com o filme se recria. E é exatamente isso que se denota pelos

entrevistados, a busca nos debates de outro sentido com o filme, a

possibilidade de ampliar as tramas na relação com o que foi exibido.

Page 58: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

58

Page 59: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

59

A PESQUISA COMO ACONTECIMENTO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma luz se ascendeu para mim: é de companheiros de viagem que

eu preciso, e vivos – não de companheiros mortos e cadáveres, que carrego comigo para onde quiser ir.

Mas é de companheiros vivos que eu preciso, que me sigam porque querem seguir a si próprios – e para onde eu quero ir.

Nietzsche

Este trabalho teve início junto com minha chegada ao projeto de

extensão Cine CCH no qual atuei e me encontrei no lugar de voluntária,

estudante do curso de Pedagogia da UNIRIO e bolsista de Iniciação

Científica/UNIRIO da pesquisa vinculada ao projeto. Os diferentes papéis e

posições que assumi nesse caminho se enredaram entre si me enredando para

outras redes de saberes e fazeres na trajetória que estava percorrendo na

universidade. Percebi no Cine CCH outras possibilidades de estar na UNIRIO

para além dos dispositivos e práticas prescritos e previstos no currículo do

curso de graduação. As relações e aprendizados que me formavam nesse

espaço iam aos poucos revelando maneiras mais criativas e inventivas de

desenhar essa trajetória, criando outros significados no percurso a ser traçado.

Tomando esta percepção que fui instigada a questionar os modos com

que os estudantes freqüentadores do Cine CCH se relacionam com o projeto,

isto é, em que medida essa participação criava pontes significativas na estrada

que também percorriam na formação universitária. Ao empreender o olhar de

pesquisadora no campo, procurei problematizar como os sujeitos estabeleciam

dimensões formadoras com uma atividade cineclubista dentro da universidade.

A busca pelo diálogo com Walter Benjamin (2012) se deu por evidenciar

como os debates se constituem potencialmente férteis para emergir possíveis

narrativas. Na medida em que o filósofo compreende a arte de narrar como

forma de compartilhar e transformar experiências, conseguimos pensar o

sentido do cineclube que extrapola a mera exibição e discussão em torno dos

filmes exibidos. Sentidos que são criados conforme as ações e movimentos

que os sujeitos constroem coletivamente num trançar de olhares, gestos e

vozes que atravessam os debates. Eis o seu caráter de formar: a capacidade

dos participantes de criar e partilhar significados coletivos e dialógicos com os

filmes e para além deles, significados que irrompem como rastros em si e para

além de si mesmo.

Page 60: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

60

Para chegar a tal entendimento, no entanto, procurei primeiro articular

diferentes autores que analisam as relações do cinema com a educação para

argumentar a importância social das imagens fílmicas na formação das

pessoas. Ao longo das discussões e estudos no grupo de pesquisa Cine

Narrativa, pude problematizar a relação entre formação e o cinema, de que

maneira nós a concebíamos e como ela podia ser pensada dentro de um

espaço cineclubista no contexto acadêmico. Assim, as leituras e reflexões

produzidas no grupo se cruzando aos passos e aos olhares que trazíamos dos

campos de trabalho, alimentavam ainda mais nossas trocas, inquietações e

questionamentos. Apesar de atuarmos em campos diferentes, eu e minhas

colegas de pesquisa compartilhávamos o objetivo de investigar as relações

formativas que os sujeitos criam com o cinema no âmbito da educação formal.

Neste caminhar teórico, priorizei estudos como o de Duarte (2009) e Fantin

(2006) que sustentam o valor do cinema como prática social expressiva na

construção de aprendizados e interações das mais variadas naturezas, o que

significa entender o seu potencial em fomentar processos de significação da

realidade, do mundo.

Do mesmo modo que o sentido pedagógico do cineclube não repousa

nele em si, o cinema não atua isoladamente na formação dos sujeitos que com

ele se envolvem. Para verificar como essas relações se estabeleciam, o olhar

curioso e analítico de pesquisador não era direcionado ao filme, ou

simplesmente às impressões que os sujeitos manifestavam sobre ele, mas era

preciso vasculhar as redes criadoras e coletivas de vozes, olhares e

conhecimentos que emergiam com e para além dos filmes. A partir desta

percepção, compreendemos que o sentido formativo não estava no filme em si,

não eram os filmes que formavam os sujeitos, ou as discussões que

viabilizavam uma compreensão mais ampla do que havia sido assistido. Mas a

formação residia nos momentos de interação com o filme, nas relações que

eles criavam com o filme e com os momentos de debates.

O sujeito-espectador capaz de participar e apreciar ativa e criativamente

do filme, no ato de ver transforma-se em sujeito-autor que se apropria e cria

significados com o filme. Entender o cinema que vai além dos instantes do

filme exibido, para além das restrições do espetáculo e do lazer, infere nesta

noção do espectador que na interação que constrói com o filme, ambos se

Page 61: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

61

formam. Entender como esses jovens se constituíam narradores e narradoras

se dava no olhar e na escuta de pesquisador atento e aberto para captar uma

possível experiência na fala sobre uma cena emocionante, na reflexão sobre o

destino de um personagem, ou na avaliação sobre a fotografia do filme.

As entrevistas também se revelaram momentos de narração tecidos

pela conversa e encontro entre diferentes espaços e tempos que provoca

outros afetos, inquietações, reflexões e desejos com o cinema, com a

universidade e com a vida. Destaco das falas dos entrevistados a importância

atribuída ao Cine CCH em suas formações ao reconhecê-lo como atividade

que possibilita redimensionar a estrada que percorrem como universitários.

Como futuros pedagogos, esta constatação denota não apenas o valor que

percebem da prática cineclubista no contexto da graduação, mas

implicitamente compreendem o cineclube como alternativa para os espaços

tradicionais de aprendizado formal, como possibilidade de produção e interação

de conhecimentos. Assim, o Cine CCH como atividade cineclubista propicia

processos de construção e circulação de saberes entre seus participantes

favoráveis à sociabilidade, à ampliação do repertório e formação do

espectador. Neste sentido, percebo como a experiência com o cinema na

universidade possibilita outras maneiras de construir esse percurso de

formação, isto é, de ver, pensar, agir, criar e se relacionar com os espaços que

não estão prescritos nas ementas curriculares.

O sentido de experiência segundo o pensamento de Jorge Larrosa

(2002) fulgurou para mim como elemento propulsor na tessitura das redes

teóricas e metodológicas da pesquisa, criando nós entre as ações e

perspectivas que nelas insurgiam. Sendo o Cine CCH entendido como um

deslocamento do modo de estar e ser na formação universitária, os jovens que

participam do projeto buscam um encontro diferente nesta travessia para que

algo lhes atravessa como experiência. Aquilo que nos toca, nos afeta e nos

acontece é o que nos move para além dos saberes estabelecidos, da

fugacidade das informações e fatos cotidianos, das supostas essências da

vida, para além de nós mesmos. Por isso, a experiência (erfahung) é o que

determina nossa capacidade de se (trans)formar. A formação, portanto, é

pensada como uma viagem pela qual atravessamos sob o risco do

Page 62: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

62

indeterminado e do perigo de algo que nos possa acontecer, nos desdobrar em

uma experiência.

Essas considerações me levam a acreditar nas ações e relações

construídas coletivamente no Cine CCH como irrupção de acontecimentos nos

sujeitos envolvidos. Ao concebê-lo como lugar propiciador de trocas, diálogos,

disputas e exposição, julgo que o Cine CCH constitui espaço possível para a

experiência, para atravessar e ser atravessado pelas experiências de seus

atores.

A travessia ou método que percorri neste trabalho me sucedeu como

pesquisa-intervenção, na medida em que as situações, pessoas, narrativas e

movimentos apreendidos no Cine CCH me insurgiam como acontecimentos.

Minha posição de pesquisadora no campo se mostrou mínima diante da

potência de rastros, afetos e marcas suscitados pelos seus participantes nesta

pesquisa. Então, a pesquisa se afirmou como ponto de chegada, ou território

de passagem para receber os sentidos ou sem-sentidos produzidos pelos

sujeitos (LARROSA, 2002), exposta e atenta aos gestos, posturas, emoções,

saberes e vozes nela atravessavam e se desdobraram em acontecimentos.

Este não é um trabalho sobre experiências com o cinema na UNIRIO,

mas um estudo com experiências que se atravessaram na universidade com o

cinema. Assim como para muitos dos sujeitos cujas participações no Cine CCH

se transformaram em experiências, esta monografia é o que se desdobrou de

mim nesta travessia de pesquisa. É a tessitura de rastros e vestígios que se

formaram ao me formar para além de mim. É o meu acontecimento.

Page 63: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

63

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

CANCLINI, Néstor Garcia. O Consumo Serve Para Pensar. In: Consumidores

e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2010, p. 61-73.

CASSAB, Maria Aparecida Tardin; CASSAB, Clarice. Juventude: Técnica e

Território. In: CASTRO, Lucia Rabello; BESSET, Vera Lopes. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de janeiro: Rio

de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008.

CASTRO, Lucia Rabello. Conhecer, transformar(-se) e aprender: pesquisando

com crianças e jovens. IN: CASTRO, Lucia Rabello; BESSET, Vera Lopes. (Orgs.). Pesquisa-interveção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa/FAPERJ, 2008.

COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política cultural: cultura e imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2012.

DUARTE, Rosália. Cinema e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

______________. Pesquisa qualitativa: reflexões sobre o trabalho de campo.

Em: Cadernos de pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. Nº 115, p.139-154, março/2002.

______________; ALEGRIA, João. Formação estética audiovisual: um outro

olhar para o cinema a partir da educação. Educação e Realidade: Dossiê Cinema e Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 59-80, jan./jun. 2008.

FABRIS, Elí Henn. Cinema e Educação: um caminho metodológico. Revista

Educação e Realidade. vol.33, n.1, jan./jun. 2008, p117-134.

FANTIN, Mônica. Mídia-educação, cinema e produção de audiovisual na escola. In: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2006, Brasília. Anais do XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,

2006.

____________. Alfabetização midiática na escola. In: Anais do XVI Congresso de Leitura do Brasil COLE, Campinas, 2007.

FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com Arte. São Paulo: EDIOURO,

2004.

FRANCO, Marília. Hipótese-cinema: múltiplos diálogos. Revista Contemporânea de Educação, Rio de Janeiro, v.5, n. 9, p. 9-23, 2010

Page 64: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

64

FRESQUET, Adriana Mabel. Cinema para aprender e desaprender. In: Adriana Fresquet. (Org.). Imagens do desaprender: Uma experiência de aprender com cinema. 1ed. Rio de Janeiro: Booklink/ UFRJ-LISE-CINEAD, 2007, v. 1, p. 21-

70.

GUSMÃO, Milene. O desenvolvimento do cinema: algumas considerações sobre o papel dos cineclubes para formação cultural. In: IV Encontro de

Estudos Mulidisciplinares em Cultura, 2008, Salvador-Ba. IV ENECULT, 2008.

______________; SANTOS, Raquel Costa. O gosto pelo cinema e o encontro de duas histórias. Revista Contemporânea de Educação, v. 10, p.

34-48, 2010.

JOBIM E SOUZA, Solange. A pesquisa como intervenção nas relações entre crianças e adultos no âmbito da cultura da mídia. Trabalho apresentado no XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação,

UERJ, 5 a 9 de setembro de 2005.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.

MARTIN-BARBERO, Jésus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.

MATELA, Rose Clair. Cineclubismo, memória dos anos de chumbo, Editora Luminária Academia, Rio de Janeiro, 2008.

MIGLIORIN, Cezar. Cinema e escola, sob o risco da democracia. In: Revista de Educação Contemporânea. Rio de Janeiro, v. 5, n. 9. janeiro/julho 2010, p.104-110.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

______________. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

OROZCO GÓMEZ, Guillermo. Entre Telas: Novos Papéis Comunicativos das Audiências. In: BARBOSA, Marialva, FERNENDES, Márcio & MORAIS, Osvaldo José (orgs.). Comunicação, educação e cultura na era digital. São

Paulo: INTERCOM, 2009. p.167-181.

SILVA, Veruska Anacirema Santos. Cinema e cineclubismo como processos de significação social. Domínios da imagem (UEL), v. 2, p. 137-147, 2009.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando

Mascarello. Campinas: Papirus, 2003.

Page 65: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

65

TRAVANCAS, Isabel. Fazendo etnografia no mundo da comunicação. In: BARROS, A. e DUARTE, J. (orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. SP, Cia. das Letras, 1997.

XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal/Embrafilme, 1983.

Page 66: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

66

ANEXOS

PERFIL DOS PARTICIPANTES DO CINE CCH

Data: _____ / _____ / _______

1) Identificação:

1.1) Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino 1.2) Idade: ____________

2) Qual seu curso? ______________________Período:_______ Turno: ___________

3) De que sessões do Cine CCH você já participou?

2010 ( ) Janela da Alma ( ) Carregadoras de sonhos ( ) O Leitor

2011

( ) Filhos do Paraíso ( ) Edifício Master ( ) Valentin ( ) Mary e Max ( ) Minha vida em cor de rosa ( ) Crianças Invisíveis ( ) Adeus Lenin

4) Você permanece nas sessões do Cine CCH até o final do debate?

( ) sim ( ) não ( ) às vezes

4.1) Motivos por NÃO participar dos debates:

( ) o horário de saída ( ) não gosto de debates ( ) tenho aula no horário do debate ( ) outros: ____________________________________________________________

5) Por que você participa das sessões do Cine CCH? (pode marcar mais de uma resposta)

( ) gosto do filme ( ) é de graça ( ) não tenho oportunidade de ir ao cinema em outras ocasiões ( ) o professor leva a turma ( ) o professor pediu um trabalho sobre o filme ( ) outros: ____________________________________________________________

6) Como você ficou sabendo das sessões do Cine CCH? (pode marcar mais de uma resposta)

Page 67: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

67

( ) cartazes ( ) recebeu e-mail ( ) entrou no blog do projeto ( ) recebeu convite pelo Facebook ( ) indicação de amigos ( ) indicação de professores ( ) viu no site da UNIRIO ( ) outros: ____________________________________________________________ 7) Com que frequência você costuma ver filmes nesses suportes? (pode marcar mais de uma resposta)

MUITO POUCO QUASE NUNCA NUNCA

Cinema

TV

DVD

Internet

8) Que critérios influenciam na escolha dos filmes que você vê? (pode marcar mais de uma resposta) ( ) indicação de amigos/familiares ( ) indicação de professores ( ) indicação ao Oscar ( ) ser sucesso de bilheteria ( ) notícias que viu ou leu na TV, sites, revistas ( ) filmes em lançamento ( ) atores do filme ( ) diretor do filme ( ) assunto do filme ( )outros ____________________________________________________________ 9) Na sua opinião, o cinema faz parte da sua formação como professor?

( ) muito ( ) pouco ( ) nada

Justifique:

_______________________________________________________________________

_______________________________________________________________________

_________________________________________________________________

Page 68: Cinema, narrativas e experiências: a formação atravessada ... · Monografia apresentada ao Curso de Pedagogia, Escola de Educação do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

68

Questões/entrevista – Cine CCH

Bloco 1: Relação do entrevistado com o cinema, filmes e modos de assistir e viver essa relação em sua história

1) Como é sua relação com o cinema? Com que frequencia você vai ao cinema? Você costuma ir sozinho ou acompanhado?

2) Fale um pouco da sua história com o cinema. Tem alguém que, na sua opinião, fez parte dessa história? Fale o que você pensa a respeito.

3) Fale sobre seus filmes preferidos, que mais lhe marcaram.

4) De que modo você mais assiste filmes: TV, cinema, internet, computador?

Para você qual é a diferença entre esses modos de assistir?

Bloco 2: Participação do entrevistado no CINE CCH e outros cineclubes

5) Como você começou a participar do Cine CCH?

6) Dos filmes que você assistiu no cineclube, qual lhe marcou mais? Por

quê?

7) O que traz você ao Cine CCH? O que você acha dos debates? 8) Você participa ou já frequentou outro cineclube ou espaços alternativos

de cinema? Em caso positivo, fale um pouco dessa experiência.

Bloco 3: Relação entre cineclube e formação (dentro da universidade e

fora dela)

9) Você acha que um cineclube fora do espaço acadêmico aborda questões diferentes deste?

10) De que forma você relaciona sua participação no cineclube com sua formação na universidade? Fale um pouco sobre isso.

11) Na sua perspectiva, quais as relações que a universidade pode estabelecer com o cinema?

12) Como você poderia descrever sua trajetória de vida até chegar a produzir vídeos/ participar desse cineclube/ organizar um cineclube?