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Download UM ESTUDO DAS NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS …repositorio.unb.br/bitstream/10482/5339/1/Tese_Maria Luiza.pdf · RESUMO De que modo o cinema elabora a ditadura brasileira de 1964-1985

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  • MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA

    UM ESTUDO DAS NARRATIVAS

    CINEMATOGRFICAS SOBRE AS DITADURAS

    MILITARES NO BRASIL (19641985)

    E NA ARGENTINA (19761983)

    Braslia

    2007

  • MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA

    UM ESTUDO DAS NARRATIVAS

    CINEMATOGRFICAS SOBRE AS DITADURAS

    MILITARES NO BRASIL (19641985)

    E NA ARGENTINA (19761983)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados sobre as Amricas do Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobre as Amricas (CEPPAC) da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Sociais.

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Vicentini de Azevedo

    Braslia

    2007

  • MARIA LUIZA RODRIGUES SOUZA

    UM ESTUDO DAS NARRATIVAS CINEMATOGRFICAS SOBRE AS

    DITADURAS MILITARES NO BRASIL (19641985)

    E NA ARGENTINA (19761983)

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Comparados sobre

    as Amricas do Centro de Pesquisa e Ps-Graduao sobre as Amricas

    (CEPPAC) da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos para a obteno

    do ttulo de Doutor em Cincias Sociais.

    Braslia, 24 de agosto de 2007

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________ Profa. Dra. Sonia Maria Ranincheski UnB

    Presidente

    _______________________________________ Prof. Dr. Leonardo Fgoli UFMG

    Membro efetivo

    _______________________________________ Profa. Dra. Rita Laura Segato UnB

    Membro efetivo

    _______________________________________ Profa. Dra. Lia Zanotta Machado UnB

    Membro efetivo

    _______________________________________ Profa. Dra. Simone Rodrigues Pinto UnB

    Membro efetivo

    _______________________________________ Prof. Dr. Luiz Eduardo de Lacerda Abreu CEUB

    Membro suplente

  • AGRADECIMENTOS

    Esta tese s se tornou possvel porque contei com o apoio de inmeras pessoas e

    instituies.

    Agradeo

    Ao Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro, meu filho e amigo, leitor atento e crtico, por

    todas as sugestes, contribuies e ateno constante. Sem sua disponibilidade,

    este trabalho no teria sido possvel.

    Custdia Selma Sena, amiga constante, pela leitura dos primeiros escritos que

    resultaram nesta tese e por seu apoio permanente.

    Nei Clara de Lima pelo incentivo, compreenso e amizade.

    Ao Roberto Cunha Alves de Lima, amigo recm-chegado, pelas conversas

    estimulantes.

    minha orientadora, Ana Vicentini de Azevedo, pela leitura crtica e paciente de

    todas as verses do texto que resultou nesta tese.

    Suzana Oellers pela amizade, leitura atenta de todo o trabalho e valiosas

    sugestes ao texto.

    s professoras Elizabeth Cancelli e Rita Laura Segato pelas contribuies

    fundamentais quando do exame de qualificao.

    Aos professores e aos funcionrios do CEPPAC por todo o apoio.

    Ao Carlos Henrique Romo de Siqueira e Janana Carvalho, em nome dos quais

    agradeo aos demais colegas dos cursos de ps-graduao do CEPPAC.

  • Ao Pedro Clio Alves Borges, colega do Departamento de Cincias Sociais da

    UFG, pelo livro, e em nome do qual agradeo aos demais colegas do

    Departamento de Cincias Sociais da FCHF/UFG.

    Pr-reitoria de Pesquisa e Ps-graduao da UFG.

    Diana Milstein e Hector Mendes (Yoko) pela amizade e amor aos nossos pases.

    Anita Milstein, Juliana Milstein e ao pessoal do La Esquinita pelos filmes.

    Dalva, Silvia, Maria Jos e Jander pelo suporte sempre que precisei.

    Ao Jos Ruy Ribeiro, companheiro constante, que me ensina a no desistir.

  • RESUMO

    De que modo o cinema elabora a ditadura brasileira de 1964-1985 e a argentina de 1976-1983? Como os filmes constroem discursos imaginativos sobre a experincia ditatorial nestes pases? Neste trabalho, so discutidos e analisados filmes brasileiros e argentinos produzidos entre 1985 e 2005 que focalizam os respectivos perodos ditatoriais. Estes filmes so tomados como filmes-arquivo por abordar e construir imaginativamente um passado que , ao mesmo tempo, uma leitura do presente. Na primeira parte, a partir de uma discusso sobre cinema, antropologia e a questo da noo de contexto, feita uma argumentao sobre a nao como construo imaginativa, abrindo caminho para interrogar o papel das narrativas flmicas nos encadeamentos da vida social. Isso se d, inicialmente, por meio de uma abordagem da problemtica poltica na produo cinematogrfica brasileira e argentina anterior s ditaduras, em contraponto com a da realizao dos filmes a partir da dcada de 1990. Em seguida, so discutidos aspectos das ditaduras no Brasil e na Argentina e a importante questo dos arquivos ditatoriais: os dilemas em torno de tornar pblicos ou no os documentos da ditadura nestes pases e o trabalho social e histrico de interpretao que orbita tais arquivos so o horizonte da noo de filmes-arquivo, a qual ser retomada na concluso. A segunda parte apresenta os filmes argentinos tratados, assinalando sua nfase na questo da famlia e da nao por meio da anlise de dois filmes Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002) que, a partir de opes estticas diferentes, do destaque temtica dos desaparecidos polticos, presente de vrias maneiras no cinema argentino sobre a ditadura. Na terceira parte, uma discusso sobre o grupo de filmes brasileiros permite ressaltar alguns temas recorrentes nesta filmografia sobre a ditadura, destacando-se a anlise de Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005) e Cabra Cega (Toni Venturi, 2005). Esses filmes podem ser vistos como duas das principais maneiras de o cinema brasileiro discutir, reconstruir e trabalhar os eventos do perodo ditatorial: de um lado, uma nfase mais detida nas histrias sobre a luta armada contra a ditadura; de outro, a partir desse tipo de abordagem, a ateno convivncia entre setores antagnicos na vida social brasileira. Na concluso, retomando o tema da memria e do arquivo, argumenta-se que os filmes analisados, como filmes-arquivo, insinuam diferentes formas de reconhecimento das ditaduras, constituindo parte de uma memria ativa, articulada politicamente vida social, um arquivo suplementar aos arquivos ditatoriais institucionais.

    Palavras- chave: Cinema. Ditadura. Arquivos. Memria.

  • ABSTRACT A STUDY OF THE CINEMATOGRAPHIC NARRATIVES ABOUT THE MILITARY

    DICTATORSHIPS IN BRAZIL (19641985) AND IN ARGENTINA (19761983)

    How does the cinema elaborate the periods of dictatorship in Brazil (19641985) and in Argentina (19761983)? How do films build up imaginative discourses about the experience of dictatorship in these countries? In this study, the Brazilian and Argentine films produced between 1985 and 2005, focusing on their respective dictatorial periods, are discussed and analyzed. These films are taken as films-archive because they imaginatively approach and build up the past, which is, at the same time, a way to read the present. In the first part, starting with a discussion about cinema, anthropology and the notion of context, an argumentation about nation as an imaginative construction is carried out, opening the path to question the role of the film narratives in the social life enchainment. This occurs, initially, through an approach of the political matters in the Brazilian and Argentine film production before the dictatorships, in a counterpoint with the film making in the 1990s. After that, the aspects of the dictatorships in Brazil and in Argentine are discussed, as well as the important issue of the archives of the dictatorial period: the dilemmas whether making public the documents of this period in these two countries and the social and historical work of interpretation that surrounds the dictatorial archives, which are the horizon of the notion of films-archive, a subject that will be retaken in the conclusion of this study. The second part presents the Argentine films treated, signaling their emphasis on the matter of family and nation through the analysis of two films Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) and Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002) which, from different esthetic options, enhance the theme of people that disappeared due to political reasons, present in a variety of ways in the Argentine cinema about the dictatorial period. In the third part, a discussion about the Brazilian group of films permits to point out some recurrent themes in this filmography enhancing the analysis of Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005) and Cabra Cega (Toni Venturi, 2005). These films can be seen as two of the main ways in which the Brazilian cinema discusses, rebuilds and works the events of the dictatorial period: on one side, emphasizing the stories about the armed fight against the dictatorial government; on the other hand, from this kind of approach, giving attention to the presence of antagonistic sectors in the Brazilian social life. In the conclusion, returning to the theme of memory and archive, it is commented that the films analyzed, as films-archive, insinuate different forms to recognize the dictatorships, constituting part of an active memory, politically articulated to the social life, a supplementary archive to the institutional dictatorial archives.

    Key words: Movies. Dictatorship. Archives. Memory.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Fotografia 1 Fachada do prdio da Garage Olimpo no filme homnimo ....... 93

    Fotografia 2 Parte do material que Flix guarda em seu aposento ............... 96

    Fotografia 3 Pela ltima vez, o gesto de ligao entre me e filha ............... 97

    Fotografia 4 Na porta da cela, um beijo entre Mara e Flix .......................... 105

    Fotografia 5 As guas do Rio da Prata e a cidade de Buenos Aires ............. 105

    Fotografia 6 Movimento e rotina alienada nas superfcies da cidade ............ 108

    Fotografia 7 Acionar o rdio para marcar o incio de uma sesso de tortura:

    sons que encobrem outros ........................................................ 110

    Fotografia 8 Duas luminosidades, duas realidades: a cidade (acima) e o

    crcere (abaixo) ......................................................................... 113

    Fotografia 9 Durante o passeio com Flix, Mara se abaixa para arrumar os

    sapatos ...................................................................................... 115

    Fotografia 10 Mara recebe, sob o olhar de Flix, o sedativo antes de

    embarcar, juntamente com os outros prisioneiros, no

    caminho que os levar ao avio do traslado ........................... 115

    Fotografia 11 Um dos vos da morte ............................................................... 116

    Fotografia 12 Kamchatka no tabuleiro de TEG ................................................ 122

    Fotografia 13 Recriao de uma das principais demonstraes repressivas,

    comuns durante a ditadura ........................................................ 124

    Fotografia 14 O carro da famlia de Harry por detrs das grades da escola ... 127

    Fotografia 15 O carro da famlia se aproxima do cerco militar ........................ 127

    Fotografia 16 Os irmos se voltam para trs a fim de ver os militares em

    ao ........................................................................................... 128

  • Grfico 1. Participao (em porcentagem), a cada ano, do total de casos

    documentados de desaparecidos entre 1976 e 1983 na

    Argentina ................................................................................... 130

    Fotografia 17 Viso que Harry tem de seus pais conversando na penumbra

    do quarto .................................................................................... 131

    Fotografia 18 Os pases em disputa no jogo derradeiro entre pai e filho ........ 136

    Fotografia 19 Harry conta ao av as mudanas que enfrentou com seus pais

    nos ltimos dias ......................................................................... 139

    Fotografia 20 Pssaro ferido, pas retido ......................................................... 140

    Fotografia 21 Gesto de aliana entre geraes na despedida ........................ 142

    Fotografia 22 A ltima viso de Harry .............................................................. 142

    Fotografia 23 Os trs diferentes tempos de Quase dois irmos ...................... 163

    Fotografia 24 Baile funk em que jovens se divertem portando armas ............. 168

    Fotografia 25 Olhar da me de Miguel em dia de visita ao filho na Ilha

    Grande ....................................................................................... 172

    Fotografia 26 Mulheres sendo conduzidas para o presdio em um dia de

    visita ........................................................................................... 174

    Fotografia 27 Miguel e Jorge presos na Ilha Grande ....................................... 176

    Fotografia 28 Alimento e guerra, vida e violncia ............................................ 179

    Fotografia 29 Paisagem que Thiago pode ver sem ser visto ........................... 180

    Fotografia 30 Companheira de militncia de Thiago sendo torturada ............. 185

  • SUMRIO

    APRESENTAO ........................................................................................... 11

    Sobre comparao e escolhas ........................................................................ 22

    PARTE I CONSIDERAES A RESPEITO DE CINEMA E

    ANTROPOLOGIA ........................................................................................... 30

    Encenao ....................................................................................................... 41

    Notas sobre as ditaduras e a questo dos arquivos ........................................ 50

    Polticas flmicas .............................................................................................. 62

    PARTE II ARGENTINA ................................................................................ 76

    Famlias e desaparecidos ................................................................................ 76

    A poltica em La historia oficial ........................................................................ 79

    Cinema e terror: Garage Olimpo ..................................................................... 88

    Kamchatka: lugar de resistncia ...................................................................... 116

    PARTE III BRASIL ....................................................................................... 144

    Brasil derrota e esquecimento: por que lembrar o passado? ....................... 144

    Temas brasileiros no contar da ditadura ......................................................... 151

    Passado e ao poltica em Ao entre amigos .............................................. 153

    Quase dois irmos: incomunicabilidade e dualismo ........................................ 159

    Cabra cega: isolamento e luta ......................................................................... 176

    PARTE IV CONTRASTES ENTRE FILMES BRASILEIROS E

    ARGENTINOS ................................................................................................. 188

  • Los rubios e o trabalho da memria ................................................................ 192

    Potestad e as diferentes verses sobre o passado ......................................... 194

    Filmes e testemunho ....................................................................................... 195

    CONCLUSO .................................................................................................. 199

    Filmes-arquivo e memria ............................................................................... 199

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................... 216

    FILMOGRAFIA ................................................................................................ 229

    Argentina ......................................................................................................... 229

    Brasil ................................................................................................................ 231

    Outros pases .................................................................................................. 233

  • APRESENTAO

    [...] as construes e codificaes do mundo artstico no excluem referncias a uma vida social comum. Fices cinematogrficas inevitavelmente trazem tona vises da vida real no apenas sobre o tempo e o espao, mas tambm sobre relaes sociais e culturais (SHOHAT; STAM, 2006, p. 263).

    [...] a constituio de um objeto narrativo, por mais anormal ou inslito que seja sempre um ato social por excelncia e como tal carrega atrs ou dentro de si a autoridade da histria e da sociedade (SAID, 1995, p. 117).

    Neste trabalho proponho pensar como os cinemas brasileiro e argentino

    contribuem para a disseminao de narrativas que esto imbricadas no fazer

    histrico e poltico. Meu objetivo tratar os filmes brasileiros e argentinos que

    elaboram e trabalham os respectivos perodos ditatoriais desses pases, a fim de, ao

    analis-los, discutir os inter-relacionamentos do cinema sobre a ditadura e as

    reescritas, rearticulaes e dinmicas das narrativas da nao, enquanto

    socialidade. Tomo a noo de socialidade tal como abordada por Viveiros de Castro

    (2002) em artigo dedicado a rastrear como a antropologia vem trabalhando o

    conceito de sociedade. Contemporaneamente, a antropologia tem preferido negar

    concepes essencialistas, passando a adotar a noo de socialidade: sociedade

    como ordem (instintiva ou institucional) dotada de uma objetividade de coisa,

    preferem-se noes como socialidade, que exprimiriam melhor o processo

    intersubjetivamente constitutivo da vida social (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.

    313).

    Utilizo os termos ditadura, mquina ditatorial e governo militar em lugar de

    outras denominaes, como autoritarismo e Estado burocrtico-autoritrio,

    privilegiando o fato de que o poder poltico passou a ser exercido por setores de

    comando hierarquicamente superiores das Foras Armadas, com ativa participao

  • 12

    de setores no-militares. As questes conceituais, ao se tratar dos processos

    ditatoriais na Amrica Latina, so amplas e, para inserir tal problemtica no bojo

    desta apresentao, recorro s contribuies de Fausto e Devoto (2004) e Pascual

    (2004).

    Tais discusses indagam qual o tipo de organizao assumida pelo Estado no

    decorrer dos governos ditatoriais implantados na Amrica Latina nos anos 60 e 70.

    Assim que, nos lembram Fausto e Devoto (2004, p. 395), Guillermo ODonnell

    conceituou os Estados militares brasileiro e argentino como representantes de um

    tipo especfico de Estado autoritrio o Estado burocrtico [...]. A inteno do

    Estado burocrtico autoritrio era organizar a dominao de classe em favor de

    fraes superiores de uma burguesia altamente oligopolista e transnacional

    (FAUSTO; DEVOTO, 2004, p. 395). Para atingir tal objetivo, as ditaduras, como

    estados desse tipo, ainda segundo os mesmos autores, tomaram medidas

    repressivas sobre setores populares politicamente organizados, empreenderam

    reordenaes econmicas e utilizaram amplamente a violncia, a censura e a

    supresso dos direitos constitucionais.

    A nfase no modelo de organizao do Estado pode encobrir outras

    dimenses, tais como as da vida social durante a vigncia das ditaduras. As aes

    dos Estados ditatoriais provocaram, entre outros efeitos, a disseminao de uma

    cultura poltica do medo no mbito da vida social. esse o panorama que informa

    parte das crticas dirigidas ao modelo explicativo contido na idia de Estado

    burocrtico autoritrio. Considerando que todo Estado , em sua medida, autoritrio

    e que age burocraticamente, quais seriam, ento, as caractersticas dessas

    ditaduras?

  • 13

    Ao tratar da ditadura argentina, Pascual (2004, p. 19) critica a conceituao

    de Estado burocrtico autoritrio e insere a idia da prtica do terrorismo de Estado

    como constitutiva da qualidade desses governos. Todos os sucessivos golpes de

    Estado impetrados pelas Foras Armadas nos pases latino-americanos, nas

    dcadas de 1960 e 1970, inspiravam-se e justificavam suas aes em doutrinas de

    segurana nacional. O que a autora enfatiza para tratar do tipo de regime instaurado

    na Argentina vale tambm para o Brasil e outros pases:

    O regime militar do qual padeceu a Argentina entre 1976 e 1983 no foi apenas mais um exemplo do autoritarismo latino-americano. O que aconteceu l foi o resultado de um plano deliberado e consciente, elaborado e executado pelas prprias Foras Armadas do pas, no intuito de proporcionar mudanas profundas nas estruturas sociais e nas formas de organizao poltica, baseadas na represso violenta, e conseguir uma relao entre o Estado e o homem mediada pelo terror (PASCUAL, 2004, p. 31-32).

    A doutrina de segurana nacional insere a tnica de os governos ditatoriais

    verem o perigo no interior da prpria sociedade: os inimigos so elementos internos

    que, em nome da segurana nacional, se deve combater. Assim, valorizar a ao do

    Estado ditatorial como uma ao de terror permite incluir a esfera da vida social e a

    organizao do Estado nas discusses acerca do que caracterizaria as ditaduras do

    perodo. A considerao das configuraes de sentido que os processos culturais

    nessas sociedades passaram a assumir ganha importncia para a definio do tipo

    de ditadura instaurada nesses pases.

    As aes ditatoriais induzem a formao de uma cultura do terror que passa a

    cobrir a vida social. Nessa perspectiva, as ditaduras produzem, pela extrema

    violncia de suas aes, eventos traumticos, rupturas. Nos perodos ps-ditatoriais,

    ocorre um processo de releitura sobre o passado ditatorial, o qual procura reelaborar

    sentidos ao dar vazo a disputas de memria e insere a discusso sobre a

    necessidade de aes de reparo e justia. Esse processo articula narrativas e

  • 14

    memrias anteriormente postas margem, reprimidas. Essa articulao se faz

    conflitualmente, pois alguns grupos procuram impor hegemonicamente suas verses

    sobre as de outros grupos. Um dos campos de manifestao em que as narrativas

    so dialogicamente trabalhadas o cinematogrfico: as histrias que os filmes

    elaboram sobre o perodo esto vinculadas aos encadeamentos da vida social nas

    ps-ditaduras.

    Cinema aqui tomado como uma complexa elaborao artstica que envolve

    produo, distribuio, exibio, desempenho e criao de peas especficas, cujo

    resultado, o filme, pode ser trabalhado em seu mbito interno, sem perder de vista a

    relao que h entre essas esferas. Interessam-me, no conjunto cinema, os seus

    produtos, ou seja, os filmes, buscando delinear a maneira como as histrias, as

    tramas, os personagens, alm do modo como as cenas so montadas e os sons

    utilizados, so endereados ao pblico espectador. A matria dos filmes, seus

    enredos, a maneira como so filmados, os temas postos em cena so relacionados

    com os locais em que se realizam, na medida em que, como matria artstica, os

    filmes formulam tpicos imaginativos relacionados com as coletividades em que so

    produzidos. Como sublinha Benjamin (1994, p. 172), em seu estudo sobre a

    reprodutibilidade tcnica da imagem, o filme uma criao da coletividade.

    O grupo dos filmes que elaboram histrias a respeito das ditaduras no Brasil e

    na Argentina parte integrante dos modos como certas narratividades da nao

    esto sendo disseminadas. Inscrevo tais narratividades em articulao com trs

    vetores temticos: memria e arquivo, violncia e crueldade e reelaboraes do

    poltico na fico. Ao trabalhar o passado ditatorial, os filmes esto, sobretudo,

    elaborando o que est fora dele e, ao mesmo tempo, naquele passado imbricado, o

    que eleito e construdo diegeticamente constitui uma evocao do e para o

  • 15

    presente. Nessa perspectiva, proponho tratar os filmes que tm como tema o

    passado ditatorial como filmes-arquivo, no sentido dado noo de arquivo proposta

    por Derrida (2001, p. 48): material que, por organizar e conter itens do passado,

    voltado ao presente e, assim, pode pr em questo a chegada do futuro. A

    indagao que esta noo de arquivo propicia poltica.

    Os filmes-arquivo trabalham com memria, que matria construda no

    presente. Memria aqui entendida, em primeiro lugar, a partir das contribuies de

    Halbwachs (2004), que ressalta seu papel nos processos de coeso social. Para o

    autor, a solidariedade social enfatizada; a lembrana do passado est associada

    s construes sociais realizadas no presente e depende das relaes em uma

    comunidade afetiva.

    Como esses aspectos so uma das caractersticas dos trabalhos da memria,

    prossigo as discusses a partir de Pollak (1989; 1992), o que permite evidenciar as

    complexas interaes entre memria e polticas da diferena. Desse modo,

    importante tratar da participao dos atores que intervm na constituio das

    memrias e, assim, perceber o conflito que h entre memrias concorrentes.

    Por se tratar aqui das narrativas cinematogrficas sobre as ditaduras, as

    contribuies de Jelin (2002) a respeito dos encadeamentos conflituosos da

    memria nas etapas ps-ditatoriais so importantes. Para a autora, nas ps-

    ditaduras se enfrentam mltiplos atores, diferentes grupos sociais e polticos que

    relatam os acontecimentos do passado, assim expressando seus projetos, seus

    anseios.

    Por reunirem temtica relativa s ditaduras, os filmes organizam

    imaginativamente, pela emoo, uma memria suplementar, a qual se refere tanto

    quele passado como aos momentos posteriores, nas formas em que o cinema

  • 16

    pensa os eventos da ditadura. Relacionam-se a uma disputa entre a memria

    articulada e posta em cena e as outras memrias relativas ao perodo. Alm do

    mais, na condio de filmes-arquivo, so matrias que articulam o poltico,

    independentemente da condio de suas narrativas estarem ou no presas a formas

    mais tradicionais, como as predominantes no cinema comercial.

    Ao olhar o perodo da ditadura e procurar trabalhar artisticamente por meio de

    imagens e sons a experincia social vivida naquela ocasio, o cinema est tambm

    propagando falas e proposies sobre as etapas ps-ditatoriais, contribuindo, assim,

    para refazer e repensar a esfera da experincia poltica que foi reprimida e desfeita

    naquela poca. Trata-se de uma relao entre o passado e o presente que se

    mostra tensa e na qual os temas escolhidos e que predominam em uma e em outra

    cinematografia esto, de modo indelvel, formatados pelas contingncias que essas

    duas sociedades encontram nas prticas ps-ditatoriais. Tais prticas so tambm

    decorrentes das opes e dos acontecimentos daqueles anos.

    Os filmes argentinos tratados aqui abordam o tema da ditadura por meio do

    foco das histrias na famlia. A famlia opera como um significado conhecido que se

    estende ao universo da experincia ditatorial, a qual aparece como uma opacidade,

    a princpio. Como hiptese, ao falar da ditadura atravs da famlia, os filmes esto

    tratando alegoricamente da nao. No caso dos filmes brasileiros, surge outro tipo

    de questo: as histrias que se debruam sobre o passado ditatorial so construdas

    por intermdio da nfase nos grupos de militantes que se opuseram e que lutaram

    contra a ditadura. Tal nfase remete s discusses em aberto no Brasil, questes

    no solucionadas a respeito das impunidades cometidas no passado ditatorial.

    Os filmes participam de uma dinmica narrativa que envolve a cultura em um

    mundo internacionalizado, exigindo, desse modo, reconhecer aquilo que Bhabha

  • 17

    (s.d.; 2001) chama de the right to narrate. Essa proposio possibilita pensar a

    complexa rede narrativa em que estamos inseridos, seus encadeamentos e disputas

    por legitimar algumas narrativas e no outras. No interior dessas disputas, as artes,

    entre outras esferas, desempenham importante papel:

    The arts and humanities contribute to such a national enterprise by developing the "right to narrate" the authority to tell stories that create the web of history and change the direction of its flow. To talk of narrative as the moving spirit of "culture" is to recognize that whether culture is elite or popular, Don Giovanni or Star Wars, it is the very soul of cultural creativity to place upon us the burden of historical representation and the responsibility of aesthetic and ethical interpretation.

    [...]

    The right to narrate is not simply a linguistic act; it is also a metaphor for the fundamental human interest in freedom itself, the right to be heard, to be recognized and represented. Such a right might inhabit an artist's hesitant brush stroke, be glimpsed in a gesture that fixes a dance movement or become visible in a camera angle that stops your heart. Suddenly, in painting, dance or cinema you renew your very senses of personhood and perspective, and in that process, you understand something profound about yourself, about your historical moment, about what gives value to a life lived in a particular town, at a particular time, in particular social and political conditions (BHABHA, s.d.).

    comum em antropologia a utilizao da noo de narrativa como a fala que

    o/a antroplogo/a obtm em suas interlocues nos grupos com os quais trabalha.

    Narrativas so, ento, atos socialmente simblicos e mltiplos que se disseminam

    por meio de formas escritas e orais, elaboram modos de ver e viver no mundo e se

    articulam em campos de disputa. Nas configuraes socioculturais das naes,

    algumas narrativas preponderam e se disseminam hegemonicamente. Neste

    trabalho, procuro chamar a ateno para as articulaes dialgicas1 das narrativas

    flmicas sobre o passado ditatorial com outras narrativas em que a nao horizonte

    ou mesmo foco principal.

    Os filmes que abordam histrias da ditadura manejam, de alguma forma, a

    violncia que o passado evoca. Com relao crueldade, penso na proposta do

    1 Conforme Bakhtin (2002), do carter socialmente constitudo e dialgico de todo ato enunciativo.

  • 18

    filsofo Rosset (1989, p. 17) de ressaltar a natureza intrinsecamente dolorosa e

    trgica da realidade e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de descrev-la e

    abarc-la inteiramente. Esse um ponto importante nos filmes sobre a ditadura que

    tentam exprimir artisticamente eventos de ordem extrema: torturas, seqestros,

    desaparecimentos, guerra. Na expresso cruel de eventos extremos j est

    presente, tambm, a opo mais ou menos declarada de trabalhar o encadeamento

    cnico de modo a explicitar a violncia daqueles eventos ou, ento, como acontece

    em algumas obras, de referir-se a eles por meio de artifcios indiretos.

    O ponto central , pois, como os filmes elaboram discursos imaginativos

    sobre a experincia ditatorial no Brasil e na Argentina. Contedos de saber e afeto

    da vida comum, nossas disposies e capacidades, a forma como nos inserimos e

    como vemos a ns e aos outros, o modo como percebemos o mundo, nos so

    inculcados por meios simblicos variados. Dentre esses, as histrias de um modo

    geral, sejam as que fazem parte do que consideramos nosso espectro mais ntimo,

    sejam as que fazem parte das redes em que nos encontramos, so formas pelas

    quais nossos pertencimentos e apegos, assim como nossas disjunes e cises,

    tomam forma. Um considervel conjunto dessas histrias gerado pelas prticas

    miditicas massivas, que podem incluir formas artsticas variadas, entre as quais

    encontra-se o cinema narrativo comercial, campo do qual os filmes para esta

    pesquisa foram extrados.

    Para chegar a esta proposta, parti de um levantamento geral, com cerca de

    80 filmes. Destaquei, ento, aqueles que elaboravam histrias focalizando aspectos

    do passado recente no Brasil e na Argentina, o que conduziu as minhas indagaes

    para as relaes entre poltica e fico.

  • 19

    A inteno de trabalhar com filmes a respeito das ditaduras foi instigada pela

    percepo de certas continuidades das prticas violentas e autoritrias nas ps-

    ditaduras. Desse modo, a leitura do trabalho de Huggins (2004), a respeito da

    memria de torturadores e agentes policiais que participaram da represso durante

    a ditadura brasileira, foi inspiradora. Em suas concluses, a autora aborda as

    continuidades entre passado e presente percebidas nos depoimentos de

    torturadores:

    Assim, embora o discurso dos policiais sobre a tortura e o assassinato tenha mudado na medida em que o Brasil autoritrio foi substitudo pela redemocratizao formal e a guerra contra a subverso por uma guerra contra o crime , a autonomia dos policiais continua a permitir que profissionais da polcia no Brasil cometam graves violaes dos direitos humanos. Em outras palavras, a violncia policial de um perodo anterior no perdeu o vigor nem mesmo durante a redemocratizao do Brasil (HUGGINS, 2004, p. 201-202)2.

    Entendo que as experincias entre os anos de 1964 e 1985, no Brasil, e entre

    1976 e 1983, na Argentina, provocaram rupturas e constrangimentos no mundo civil

    e nas esferas da convivncia poltica; foram perseguidas todas as formas de

    diferena existentes em relao s propostas que iam sendo alinhadas pelos

    governos ditatoriais, com o propsito preciso de extermin-las e, assim, consolidar

    os projetos poltico-econmicos de mercado nos quais estavam envolvidos os

    grupos militares e seus aliados civis.

    Nas etapas ps-ditatoriais, as fices cinematogrficas so uma das formas

    de produo de novos sentidos em face da experincia passada; cada

    cinematografia, a seu modo, oferece termos em que as socialidades so

    reconstrudas e relidas por intermdio da leitura que o cinema faz daquele passado.

    2 Nesse sentido, cito a ao policial desmedida a partir dos acontecimentos envolvendo presos organizados e policiais em So Paulo-SP no incio de 2006.

  • 20

    Entre as diferentes ordens de coexistncia que interagem e constituem essas

    socialidades, quais questes e aspectos relativos s ditaduras so levados para as

    telas? Qual o campo entre filme e pblico que as obras permitem vislumbrar?

    Como?

    A noo de modo de endereamento proposta por Ellsworth (2001), ao

    discutir teorias do cinema e sua aplicao nas prticas educacionais, crucial na

    discusso dos filmes sobre a ditadura por apontar uma relao entre filme e pblico.

    Ellsworth (2001, p. 11) parte do tpico quem este filme pensa que voc ? para

    explicitar o modo de endereamento como um conceito que se refere a algo que

    est no texto do filme e [...] age de alguma forma sobre seus espectadores

    imaginados ou reais, ou ambos. Segundo Ellsworth (2001, p. 13), o evento do

    endereamento ocorre, em um espao que social, psquico, ou ambos, entre o

    texto do filme e os usos que o espectador faz dele. Assim, a noo mais um

    evento e um processo que abarca um entre-lugar, uma instncia que no est

    situada nem no filme nem na platia, mas entre estas esferas. Esse evento se faz

    notar, entre outras, nas obras que procuram abordar o perodo ditatorial.

    Ao apresentar as principais correntes que estudam e valorizam o/a

    espectador/a nas teorias do cinema, Stam (2003, p. 256) nos lembra que os

    espectadores moldam a experincia cinematogrfica e so por ela moldados, em um

    processo dialgico infinito. Mesmo que seja de modo no explicitado, os filmes

    pensam em um/a espectador/a ideal, so obras realizadas para certo pblico.

    Assim, poderamos dizer tambm que pensam a nao.

    So vrias as instncias que permeiam a relao proposta entre cinema e

    ditadura. Uma delas diz respeito construo, pelos filmes, dos tipos de

    experincias que as telas dizem captar do passado. Outro eixo o da elaborao

  • 21

    das tramas e, na forma como so filmadas, como seus temas e protagonistas so

    concebidos, como certas representatividades sociais esto presentes no material

    flmico, reinscritas e recicladas. As possibilidades de leitura so mltiplas e a que

    escolhi diz respeito imaginao (aqui entendida no como quimera ou conjetura

    enganosa, mas como construo que permite viver e ver o mundo) da nao como

    espao retalhado, no naturalmente coeso, que se refaz nas telas e a partir delas ao

    tratar de rupturas, rearranjos e articulaes que as ditaduras ocasionaram.

    A noo de imaginao adotada aqui se refere de horizontes imaginativos

    desenvolvida por Crapanzano (2004). Ressalto sua proposio de considerarmos a

    imaginao, por intermdio da diferena cultural, como instncia propiciadora de

    sentidos para a experincia humana, ao articular possibilidades e impossibilidades,

    fechamentos e aberturas. A imaginao produz o possvel e o impossvel, produz e

    limita modos de a experincia fazer sentido. Os horizontes imaginativos, trabalhados

    pelo autor como categorias de anlise histrica, intercultural e psquica relacionam,

    assim, a experincia e suas interpretaes:

    My concern is with openness and clousure, with the way in which we construct, wittingly or unwittingly, horizons that determine what we experience and how we interpret what we experience (if, indeed, we can ever separate experience from interpretation) (CRAPANZANO, 2004, p. 2).

    Interpretaes de eventos do passado ditatorial, ao serem construdas visual

    e sonoramente, permitem pensar sobre os vnculos entre o cinema e outras

    narrativas em que a imaginao articulada memria opera como leitura da

    experincia das ditaduras no Brasil e na Argentina.

  • 22

    Sobre comparao e escolhas

    Comparar um atributo bastante comum a uma gama variada de fazeres

    disciplinares. A rigor, sempre que um dado, uma forma, uma idia mencionada,

    surgem no horizonte intelectivo/sensitivo seus outros pares opostos e/ou

    complementos. Um tpico, um tema sempre carrega um rastro e esse movimento

    que permite percebermos o processo comparativo como uma ao mais freqente

    do que se possa suspeitar. No campo das cincias sociais, a comparao tem

    destaque e parte integrante das propostas dos clssicos fundadores: para

    Durkheim (1996), a sociologia no pode ser dissociada da comparao, e todas as

    demonstraes e os argumentos do autor so elaborados a partir de uma

    proposio analtica comparativa.

    Horizonte freqente na antropologia, a comparao recebe diferentes

    tratamentos, metodologias e propsitos. Nesse sentido, devemos ter em mente que

    a constituio do saber antropolgico, da interpretao sobre outros povos e culturas

    procedimentos comparativos de vrios feitios e intenes um movimento

    atrelado s formaes coloniais e imperiais. Said (1995) mostra que os esforos

    comparativos da antropologia e de outras formas de conhecimento, como a filologia,

    a lingstica e a histria, se constituram ao longo dos anos como formas de

    representao das sociedades tratadas, formas essas atreladas e comprometidas

    com sistemas polticos de subjugao e dominao. O autor chama a ateno para

    o risco de entendermos a prtica cultural e a atividade intelectual como se a

    interpretao de outras culturas pudesse ocorrer num vazio atemporal, to

    complacente e permissivo que remete a interpretao diretamente a um

    universalismo isento de vnculos, de restries ou de interesses (SAID, 1995, p. 92-

    93).

  • 23

    Nesses esforos comparativos, a antropologia contribui para a elaborao de

    discursos sobre os outros, na qual pares como civilizado/primitivo, sociedades

    simples/complexas, sociedades sem histria/com histria participam de todo projeto

    de constituio disciplinar desde o sculo XIX, ecoando at o presente. As intenes

    metodolgicas comparativas, em suas vrias acepes, esto, de um modo ou de

    outro, envolvidas com relaes de fora e de dominao. Por um lado, contribuem

    para reforar idias sobre superioridade ocidental e, por outro, acionam um sentido

    contraditrio entre um desejo de entender e conhecer o outro e uma determinao

    poltica baseada na fora (SAID, 1995).

    No h procedimento comparativo isento e, como qualquer outra atitude de

    conhecimento, a comparao tambm um ato poltico. Em seu artigo sobre

    representaes raciais no Brasil, Siqueira (2002) desenvolve uma demonstrao

    sobre a moldura da comparao como a instncia que dissimula a questo poltica

    envolvida no prprio gesto comparativo. Seu ponto de partida uma discusso

    sobre os procedimentos comparativos nas cincias sociais, principalmente entre os

    autores considerados clssicos. Ao trabalhar o texto de Max Weber, A tica

    protestante e o esprito do capitalismo, Siqueira (2002, p. 157) destaca que a

    comparao cria uma espcie de modelo paradigmtico. Esse um modelo para o

    julgamento, na medida em que, no exemplo mencionado, Weber recorre, em sua

    escrita, a comparaes que vo elaborando um Ocidente detentor de bens culturais

    e econmicos em detrimento de um Oriente sem tais caractersticas. Para Siqueira

    (2002, p. 157), tal modelo resulta e se desdobra em efeitos de poder: a

    comparao um mecanismo eficiente e recorrente de construo de discursos

    polticos sobre a alteridade. Tomo as implicaes acima ao buscar comparar Brasil

    e Argentina por meio do cinema que trata a ditadura nesses dois pases. A produo

  • 24

    cinematogrfica deve ser entendida como parte de implicaes culturais e polticas

    no sentido de um mapeamento daquilo que Said (1995, p. 95) denomina territrio

    que se encontra por trs da fico.

    Em adio a isso, como o tema abordado para a escolha dos filmes a

    ditadura, faz-se necessrio tomar certos cuidados ao compar-las. No possvel

    falar em ditadura mais ou menos benevolente. Todo o processo repressivo, as

    alteraes provocadas na vida cultural, a conduo de toda a sociedade para a

    experincia de mercado tornam as ditaduras no Brasil e na Argentina, nestes

    aspectos, muito semelhantes. As diferenas dizem respeito ao tipo de conexo que

    os militares permitiram e incentivaram em cada sociedade, aos planos de cada

    governo golpista. poltica de extermnio adotada na Argentina da ditadura

    corresponderia, em outro plano, a estratgia de conteno da sociedade civil por

    longos anos na experincia brasileira, que tambm foi hbil em polticas de

    extermnio e tortura. Em ambos os casos, os efeitos de desarticulao foram

    precisos.

    Optei por trabalhar filmes desses dois pases porque esto situados em

    pontos estratgicos, simbolicamente, nas pontas (Argentina, cujo territrio faz

    fronteira com o Brasil e atinge o extremo sul do continente) e bordas (fronteiras

    brasileiras no interior e seu grande litoral) da Amrica do Sul, e tm certas

    semelhanas em seus problemas socioeconmicos. Entre eles, h certas afinidades,

    como o fato de pertencerem a uma parte da Amrica que apresenta caractersticas

    comuns em sua histria (foram colnias da Espanha e de Portugal), o que os inclui

    no sistema-mundo colonial (DUSSEL, 2002; MIGNOLO, 2003), participando da

    constituio do capitalismo e da construo da Europa como centro, alm de

    partilharem uma condio subalterna neste sistema.

  • 25

    So pases que apresentam ciclos de crises polticas e econmicas

    constantes, as quais so abordadas distintamente nos filmes argentinos e

    brasileiros. No primeiro caso, h dilogos freqentes que indagam que pais es

    este, vea como estamos nosotros, assim como temticas recorrentes sobre

    desemprego, crise institucional, entre outras. No caso brasileiro, essas abordagens

    so de outro tipo: filma-se a favela, o serto e a periferia das grandes cidades, mas

    os personagens pouco falam explicitamente sobre o pas. Em adio a isso, o Brasil

    e a Argentina tiveram regimes ditatoriais intensos e isso trabalhado em suas

    cinematografias com graus de dedicao diferenciados. Na Argentina, entre 1983 e

    2002 foram produzidos cerca de 40 filmes tendo a ditadura como tema3; no Brasil,

    cerca de 20 filmes enfocam a experincia do perodo.

    Em comum aos dois pases, registra-se uma pequena participao das

    mulheres como diretoras e/ou roteiristas. H tambm de ser mencionado o fato de

    que em um pas como o Brasil ainda pequena a participao da populao negra

    no cinema, seja na realizao, seja na temtica. Recentemente, foi lanado no pas

    o filme Filhas do vento (Joel Zito Arajo, 2005), que conta com atores/atrizes

    negros/as no elenco e trabalha uma histria centrada na vida de mulheres em que

    ecoam questes da escravido e do racismo. A participao da populao indgena

    na produo e realizao de filmes no atinge o sistema de mercado

    cinematogrfico tradicional, sendo, entretanto, intensa entre aldeias e nos circuitos

    acadmicos4.

    3 Diferentemente do Brasil, possvel encontrar uma relao de 35 filmes produzidos no perodo em um site governamental, do Ministrio de Educacin, Cincia y Tecnologia de la Nacin Argentina (http://www.me.gov.ar/). 4 No Brasil, o projeto Vdeo nas Aldeias vem formando cineastas entre os povos indgenas e divulgando as realizaes entre aldeias e para os no-ndios com o intuito de promover a devoluo da imagem para o prprio ndio. Mais informaes podem ser obtidas em: .

  • 26

    Dentro da variada produo cinematogrfica dos dois pases em anlise

    nesta pesquisa, alguns critrios foram usados para decidir com quais filmes

    trabalhar. O primeiro deles foi o acesso pessoal aos filmes. Apesar de crticos e

    cineastas afirmarem a existncia de um crescimento, um incremento significativo na

    produo cinematogrfica no Brasil e na Argentina, a distribuio das fitas no

    mercado latino-americano bastante deficiente5. Muitos dos filmes no chegam ao

    circuito comercial, ou sequer aos crculos mais cinfilos, como os dos festivais.

    Vrios no so encontrados em locadoras. Por isso, selecionei filmes que tivessem

    participado de festivais no Brasil, que fossem comercializados em locadoras e/ou

    tivessem sido exibidos no circuito nacional. Nem sempre isto foi possvel, pois

    alguns filmes argentinos no chegam ao mercado brasileiro e tiveram de ser obtidos

    por intermdio de amigos moradores naquele pas. O segundo critrio foi o impacto

    pessoal aliado ao tema da ditadura. A escolha foi guiada pelas marcas e sensaes

    que os filmes aos quais tive acesso foram me provocando. Ademais, no caso da

    Argentina, encontrei discusses mais detidas na relao entre o cinema e as

    interpretaes sobre a ditadura. No o que acontece no Brasil, em que os textos

    crticos a respeito dos filmes relativos ao perodo tratam pouco das leituras que o

    cinema faz da ditadura. Por isso, este trabalho tem muito de exploratrio.

    Eis a relao dos filmes argentinos sobre a ditadura aos quais tive acesso: La

    republica perdida I (Miguel Prez, 1983); La historia oficial (Luis Puenzo, 1985); La

    noche de los lpices (Hctor Oliveira, 1986); La republica perdida II (Miguel Prez,

    1986); Aluap (Hernn Beln e Tatiana Mereuk, 1997); Garage Olimpo (Marco

    Bechis, 1999); Botn de guerra (David Blaustein, 2000); Potestad (Luis Csar

    5 Para uma discusso sobre produo, distribuio e exibio do cinema nos e entre os pases que integram o bloco do Mercosul, o trabalho de Silva (2007) apresenta dados importantes acerca dos problemas ali enfrentados. Apesar de maiores em produo e circulao, Brasil e Argentina no escapam das questes enfrentadas em maior grau por seus vizinhos, o Uruguai e o Paraguai.

  • 27

    DAngiolillo, 2001); Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002); Sol de noche (Pablo

    Milstein e Norberto Ludin, 2002); Los rubios (Albertina Carri, 2003); Hermanas (Julia

    Solomonoff, 2004); Paco Urondo, la palabra justa (Daniel Desaloms, 2004).

    Alm desses, fao referncia a vrios outros filmes que tratam de outras

    temticas ao longo do texto e que constam da relao geral de filmes apresentada

    ao final desta tese. Resolvi tratar mais detidamente de Kamchatka (Marcelo Pieyro,

    2002) por ver neste filme a expresso clara de como a famlia geradora de

    discursividades na cinematografia argentina sobre a ditadura; a obra corresponderia

    a um caso extremo de sntese no qual o tema da famlia percorre toda a trama.

    Outro filme que mereceu destaque Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e est

    inserido em uma discusso acerca dos modos como a arte pode tratar da dor e da

    violncia. Nesta obra h certa diluio do enfoque na famlia em razo da histria

    dar nfase quase documental priso, tortura e ao desaparecimento da

    protagonista.

    No caso dos filmes brasileiros, a relao a seguinte: Que bom te ver viva

    (Lcia Murat, 1989); Corpo em delito (Nuno Csar de Abreu, 1990); Lamarca (Srgio

    Rezende, 1994); O que isso, companheiro? (Bruno Barreto, 1997); Ao entre

    amigos (Beto Brant, 1998); Dois crregos (Carlos Reinchenbach, 1999); Cabra cega

    (Toni Venturi, 2005); Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005); Vlado, trinta anos

    depois (Joo Batista de Andrade, 2005).

    Destaco nesta anlise Cabra cega (Toni Venturi, 2005), por corresponder

    tendncia mais caracterstica do trato que o cinema brasileiro d ditadura, ou seja,

    trabalhar a clandestinidade radical e o seu extermnio. Outro filme brasileiro tambm

    mais detidamente analisado Quase dois irmos (Lcia Murat, 2005), pelo fato de

    reunir duas condies interessantes na discusso sobre fico e poltica, sobre

  • 28

    cinema e narrativas da nao: o enfoque na vivncia do evento ditatorial por meio da

    relao de dois amigos ao longo de vrias dcadas e o discurso sobre as relaes

    entre ricos e pobres, brancos e negros. Nessa relao, fica salientada a

    problemtica pungente da convivncia na diferena cultural, to presente nas

    interpretaes que o cinema brasileiro d nao.

    Este trabalho est dividido em seis partes: esta apresentao, as Partes I, II,

    III e IV e a concluso.

    Na Parte I conduzo uma discusso envolvendo o cinema, a antropologia, e a

    a noo de contexto. Trato, ento, dos temas da nao como construo imaginativa

    para abarc-los dentro do enfoque que me interessa, a saber, do papel das histrias

    que os filmes elaboram nos encadeamentos da vida social. Abordo, a seguir, a

    problemtica poltica na produo cinematogrfica brasileira e argentina anterior s

    ditaduras em contraponto com a da realizao dos filmes a partir da dcada de

    1990. Encerro essa parte destacando aspectos das ditaduras no Brasil e na

    Argentina e os arquivos ditatoriais como reflexes que nortearam, tambm, minha

    leitura dos filmes.

    Na Parte II apresento os filmes argentinos tratados e o enfoque destes nas

    temticas famlia e nao. Para tanto, destaco a anlise crtica de dois filmes:

    Garage Olimpo (Marco Bechis, 1999) e Kamchatka (Marcelo Pieyro, 2002). Essas

    obras me permitiram discutir alguns aspectos da ditadura entre 1976 e 1983 e dar

    destaque problemtica dos desaparecidos polticos, presente de vrias maneiras

    no cinema argentino sobre a ditadura. So tambm trabalhos que se vinculam a

    opes estticas diferentes, embora ambos trabalhem a violncia da ditadura em

    suas tramas.

  • 29

    Na Parte III trato do grupo de filmes brasileiros e comento os temas

    recorrentes na filmografia sobre a ditadura pondo em destaque duas obras: Quase

    dois irmos (Lcia Murat, 2005) e Cabra cega (Toni Venturi, 2005). Esses filmes

    podem ser vistos como duas das principais maneiras do cinema brasileiro discutir,

    reconstruir e trabalhar o evento do perodo ditatorial compreendido entre 1964 e

    1985. Uma, se acercando mais detidamente das histrias sobre a luta armada contra

    a ditadura; outra, que, partindo desse tipo de abordagem, termina por discutir a

    questo da convivncia entre setores antagnicos na vida social brasileira.

    Na Parte IV apresento outros contrastes entre os filmes brasileiros e

    argentinos que julguei importantes para caracterizar certas propostas flmicas dos

    dois pases no trabalho sobre a ditadura e discuto alguns pontos a respeito do

    testemunho nos filmes analisados.

    Na concluso, retomo a problemtica da memria e a noo de filmes-arquivo

    para caracterizar o tipo de trabalho artstico realizado pelos cinemas que narram a

    ditadura. Foi exatamente a polmica sobre tornar pblicos ou no os documentos da

    ditadura na Argentina e no Brasil que me fez pensar na condio arquvica dos

    filmes sobre esse perodo da histria dos dois pases.

  • 30

    PARTE I

    CONSIDERAES A RESPEITO DE CINEMA E ANTROPOLOGIA

    Ao tomar contato com as teorias do cinema, notei certas similaridades entre

    elas e a perspectiva sob a qual coloco meu prprio pensar em antropologia: a

    necessidade de um descentralizar, de sair do familiar em direo a outro lugar de

    percepo. Em antropologia, requisita-se um estranhamento das categorias

    familiares e habituais de quem faz a pesquisa: relativiza-se o que dado como

    certo, natural, essencial. Tambm, consagrou-se como um procedimento

    metodolgico o que se denomina trabalho de campo, o qual, em tese, requer uma

    mudana de postura e do lugar de onde se olha, de onde se indaga; uma mudana,

    na maioria das vezes, geogrfica e subjetiva. Em que pese uma tendncia

    mistificadora do mtodo do trabalho de campo, o quanto de um tipo de autoridade

    etnogrfica (CLIFFORD, 1995) ele pode conferir ao trabalho, a questo poltica

    inserida na proposta de desnaturalizao pode e deve ser ampliada. Trata-se de

    deslocamento calcado em uma reflexo mais crtica sobre essencialismos e pr-

    conceitos.

    Dessa forma, h uma congruncia entre antropologia e cinema, uma vez que

    a necessidade de deslocamento condio tanto em uma como no outro. Em

    antropologia, estranhar o familiar ou tornar familiar o que se encontra distante

    necessrio para desnaturalizar, relativizar. No cinema, preciso transportar-se para

    dentro do mundo construdo pelo filme; viaja-se e, depois, retorna-se. Tanto a

    etnografia quanto a cinematografia requerem um processo de viagem e retorno, de

    imerso em uma alteridade, em um outro lugar, em um outro mundo. Ao

  • 31

    deslocamento exigido pela elaborao etnogrfica, e tambm no exerccio de assistir

    e pensar um filme, segue-se o retorno necessrio, inscrito desde o incio do

    processo. No h uma imerso absoluta na alteridade, mas h uma desestabilizao

    necessria, um deslocamento, se a experincia flmica, etnogrfica, ou flmico-

    etnogrfica nos tocar de alguma forma6.

    Tendo em vista as articulaes entre antropologia e cinema, preciso

    abordar alguns pontos concernentes noo de cultura para indicar o campo a partir

    do qual se pode pensar uma antropologia do cinema comercial. A palavra cultura ,

    de acordo com Williams (1985, p. 87), one of the two or three most complicated

    words in the English language, devido aos usos variados e porque utilizada para

    expressar diferentes conceitos em diversas disciplinas e distintos e incompatveis

    sistemas de pensamento. A origem da palavra colere, em latim, que pode significar

    habitar, cultivar, cultuar. Foi o sentido de habitar que originou colonos, o que remete

    a um entrelaamento de cultura com colonizar, colecionar. Bosi (1992, p. 11) afirma

    que as palavras cultura, culto e colonizao derivam do mesmo verbo latino colo,

    cujo particpio passado cultus e particpio futuro culturus. De qualquer forma,

    ambas as discusses a de Williams (1985) e a de Bosi (1992) a respeito da

    origem da palavra cultura tocam no que importante ressaltar, ou seja, a relao

    entre cultura e colnia.

    A concepo de cultura em antropologia est relacionada com os

    envolvimentos histricos e polticos sobre os quais o pensamento antropolgico se

    desenvolveu, e portadora de uma ampla variao de sentido, dependendo de sua

    6 A questo do deslocamento exigido pela antropologia e pelo cinema me foi sugerida em discusso e informao pessoal com o mestrando em antropologia social, Marcelo R. S. Ribeiro.

  • 32

    afiliao matriz disciplinar7. Grosso modo, h uma relao histrica, nem sempre

    explicitada, da antropologia com a poltica colonial, envolvimento esse que aparece

    nas atividades profissionais. Alguns/mas antroplogos/as, cuja obra considerada

    clssica, trabalharam para governos coloniais em vrios lugares do mundo, como

    o caso de Evans-Pritchard, no Sudo de colonizao inglesa, inserido na escola

    britnica; outros foram convidados e aceitaram participar como consultores polticos

    em pocas de guerra. Nesta ltima situao, encontra-se Benedict (1997), com seu

    trabalho sobre os padres culturais japoneses, realizado a pedido do governo dos

    Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial.

    Nesses termos, pode-se perceber um comprometimento interno prpria

    disciplina, que se relaciona, tambm, com as tecnologias de reprodutibilidade das

    imagens, o mtodo de trabalho de campo e a idia de cultura como cultivo.

    O impulso antropolgico de coletar informaes e objetos das chamadas

    sociedades primitivas vincula-se a essa relao entre cultura e colnia. A

    antropologia consolida-se como um dos saberes ocidentais dentro do que Dussel

    (2002) denomina sistema-mundo (p. 17), estabelecendo a Europa como centro

    (p. 24) e o resto do mundo como sua periferia (p. 51). A atividade antropolgica

    inicia-se com a coleta de informaes e de materiais ao redor do globo, formulando

    uma antropologia cujo sentido intelectual vincula-se empresa colonial, assim como

    contribui para a imaginao ocidental sobre o outro.

    preciso dizer que, mais ou menos at a segunda metade do sculo XX, a

    antropologia ocupava-se, preferencialmente, das chamadas sociedades exticas

    e/ou primitivas; s depois que passou a voltar seus instrumentos de pesquisa e

    suas questes para a alteridade prxima. Ainda assim, conservou certo sabor 7 Estou partindo da proposta de Cardoso de Oliveira (1997), mas entendo a matriz disciplinar como uma articulao tensa de um conjunto de paradigmas constitutivos da antropologia.

  • 33

    colonial, uma vez que freqente percebermos que, ao estudar a sociedade dita

    complexa, dedicamos ateno aos grupos menores: camponeses, favelados,

    pobres, marginais, mulheres, entre outros. A expresso sociedade complexa surge

    para marcar uma diferena entre as sociedades tradicionalmente estudadas na

    antropologia, as chamadas sociedades primitivas, simples ou sem escrita, e as

    do/a prprio/a antroplogo/a. Indica, alm da simples nomeao, um julgamento,

    uma qualificao discriminatria, pois a complexidade de qualquer forma social se

    impe a toda tentativa de apreenso.

    No desenvolvimento desse saber ocidental a respeito do outro, arte e

    antropologia conectam-se e se, por um lado, categorias ocidentais do mundo da arte

    so usadas para tratar das outras sociedades, por outro, a arte ocidental se serve do

    trabalho antropolgico para reorientar e rediscutir suas prprias atividades. Clifford

    (1995, p. 260) mostra a intrincada relao entre a descrio e a coleta material que

    muitas vezes a acompanha, como uma forma colecionadora que, analogamente,

    pode ser aproximada de fetichismo como exibio, uma vez que [e]n Occidente, sin

    embargo, la recoleccin ha sido desde hace mucho una estrategia para el despliege

    de un sujeto, una cultura y una autenticidad posesivas.

    Ao lado das descries e anlises culturais a respeito de outros povos, houve

    preocupao varivel e importante com o que chamo de visualidade reveladora

    sobre eles. Essa visualidade, por um lado, aparece na coleta de material das

    sociedades, na montagem de colees, na exibio de peas (como material

    etnogrfico e/ou artstico, pois as categorias podem se confundir) e, por outro, est

    envolvida com as tecnologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia e cinema)

    que acompanham as atividades do trabalho de publicao e exibio antropolgicas.

  • 34

    No desenvolvimento da tarefa observadora da antropologia, com sua nfase

    no desenvolvimento do trabalho de campo na primeira metade do sculo XX,

    ocorreu o estabelecimento do mtodo denominado observao participante. Foi

    tambm quando se constituiu, de modo mais amplo e definido, um tipo especfico de

    autoridade etnogrfica, um modo de escrita e registro dos dados obtidos em que

    prevalece um estilo de representao legitimado pela idia de que assim, desse

    modo, porque eu estive l e pude ver/observar. Esse modo de autoridade

    etnogrfica se insinua na forma intensiva do trabalho de campo como norma

    metodolgica da antropologia, com sua tcnica correlata de obteno de dados por

    intermdio da observao no local (CLIFFORD, 1995).

    Se atentarmos para os significados de observar no dicionrio, verificaremos

    um destaque para as aes de ver, olhar e espiar. Do latim observare, a definio

    cobre, por exemplo, examinar minuciosamente, olhar com ateno; espiar, espreitar;

    fazer ver; examinar atenta e minuciosamente e vigiar (HOUAISS; VILLAR; FRANCO,

    2001). Chamo a ateno para a interface entre coletar e ver que permeia a prtica

    antropolgica. As tecnologias de reprodutibilidade da imagem (fotografia e cinema)

    surgiram e se desenvolveram na mesma poca em que a antropologia comeava a

    tornar-se disciplina acadmica, e essa concomitncia histrica vem sendo celebrada

    de modo a destacar a habilidade da antropologia captar, descrever e entender,

    porque observa. Desse modo, pode trazer o outro para ser conhecido, discutido e

    exibido/mostrado. Nessa acepo, a intrincada conexo entre coleo e descrio

    (tanto no texto escrito como no visual) vai em direo ao mpeto de figurar e fixar o

    outro.

    Os aparecimentos da antropologia e das tcnicas de reprodutibilidade da

    imagem deram-se juntamente com a expanso da Europa e dos Estados Unidos na

  • 35

    explorao de novas reas a serem inseridas nas atividades de mercado. Nesse

    processo de partilha e explorao do mundo, todas as sociedades do planeta foram

    atingidas. Viajantes, exploradores/as, comerciantes, artistas, naturalistas e

    antroplogos/as partiam dos centros europeus e norte-americanos para os quatro

    cantos do planeta. A fotografia e o cinema, junto com a antropologia, em uma ao

    conjunta, contriburam (e contribuem) para registrar e fixar as singularidades e as

    diferenas do outro, as quais, registradas, podiam ser transportadas a fim de

    conservar a imagem dessas sociedades.

    A necessidade de ver, de observar, correlata de descrever e mostrar.

    Vrios dos clssicos em antropologia apresentam, alm das descries etnogrficas,

    registros em fotografia e/ou cinema. Como exemplo, destaco as monografias

    Argonautas do Pacfico Ocidental (1922), de Malinowski (1978), Os Nuer (1940), de

    Evans-Pritchard (1978) e Balinese character (1942), de Mead e Bateson (1976), esta

    ltima inteiramente dedicada a revelar, por meio de fotografias, o carter de uma

    cultura, de uma sociedade. A edio com fotos, desenhos, ilustraes, fortalece a

    autoridade da pesquisa.

    Nos trabalhos que a antropologia dedica ao cinema, este tem sido tratado

    como instrumento da pesquisa, como modo de chegar ao contexto cultural com o

    qual se est trabalhando. Em um texto sobre metodologia e cinema, Ribeiro (2006)

    faz um rastreamento dos usos que a antropologia deu e, na maioria dos casos vem

    dando, ao cinema, ressaltando trs principais abordagens. Em primeiro lugar, um

    estudo do cinema atravs de uma antropologia da produo flmica (RIBEIRO,

    2006, p. 4), ou seja, o estudo da produo dos filmes, a abordagem da comunidade

    dos realizadores, quem so, o que fazem, o que pensam e como o fazem; de acordo

    com o comentrio do autor, essa modalidade insere-se no campo dos estudos

  • 36

    antropolgicos de mdia e comunicao de massa (RIBEIRO, 2006, p. 4). Em

    segundo lugar, destaca o estudo interessado nos processos de recepo dos filmes,

    ou como determinados produtos cinematogrficos so compreendidos socialmente

    em contextos especficos, por sujeitos situados em diferentes posies (RIBEIRO,

    2006, p. 4); o foco ainda no reside no filme em si. Como terceira possibilidade,

    menciona o estudo do cinema atravs de uma antropologia da narrativa e da

    representao flmicas (RIBEIRO, 2006, p. 4), em que o filme funciona como uma

    base de dados sobre a esfera sociocultural trabalhada pela pesquisa. Lembra o

    trabalho sobre a cultura japonesa de Benedict (1997), para o qual a autora utilizou,

    entre outras fontes, filmes para tratar do assunto; seu livro, posteriormente, foi

    discutido como um esforo de realizao de uma antropologia distncia

    (RIBEIRO, 2006, p. 5).

    No possvel fazer uma completa separao entre o que ficcional e o que

    no . Um exemplo que o primeiro filme etnogrfico assim considerado, Nanook of

    the North (1922), foi feito com a atuao de Nanook e sua famlia a pedido do diretor

    Robert Flaherty. Assim, pode-se perceber a contingncia e o carter construdo da

    etnografia visual. O mesmo j foi dito para o texto etnogrfico. Para Geertz (2002), o

    texto produzido em antropologia est mais prximo dos discursos literrios, da seu

    carter de convencimento e persuaso, de ficcional, construdo. Na atividade de

    criao e produo do filme etnogrfico, as fronteiras entre arte e cincia se

    confundem e a caracterstica construda do texto visual e sonoro fica mais evidente.

    Gostaria de mencionar, nesse sentido, o filme de 1995, Ykwa, o banquete dos

    espritos, dirigido por Virgnia Valado (1995), um documentrio sobre o ritual dos

    Enawen Naw, que anualmente reverenciam e homenageiam os espritos com

    alimentos, danas e cantos durante sete meses. Ao buscar trazer para a tela o

  • 37

    complexo ritual, a diretora tratou as imagens, as cenas e a participao dos

    Enawen Naw com uma atitude em que a arte se soma ao registro do dado

    etnogrfico.

    Quanto ao entrelaamento de arte e cultura, a perspectiva de Geertz (1997, p.

    13), ao propor tomar os fenmenos sociais colocando-os em estruturas locais de

    saber, importante para se pensar, tambm, o cinema. No ensaio A arte como

    sistema cultural, Geertz (1997) procede apresentando exemplos relativos a

    sociedades e temporalidades distintas: escultores iorub; os Abelan da Nova Guin;

    a pintura do quattrocento; e a poesia islmica. Em todos, vai procurar mostrar que a

    unidade da forma e do contedo , onde quer que ocorra, e seja em que grau

    ocorra, um feito cultural e no uma tautologia filosfica (GEERTZ, 1997, p. 154). Em

    sua exposio, o autor mostra a conexo da arte nessas diversas formas sociais

    com o modo de ver o mundo entrelaado com os sentidos da prpria arte para os

    atores especificados, sejam eles escultores iorub, o sistema da pintura

    renascentista ou os poetas islmicos. Para Geertz (1997, p. 179), arte e cultura

    relacionam-se porque a participao no sistema particular que chamamos de arte

    s se torna possvel atravs da participao no sistema geral de formas simblicas

    que chamamos cultura, pois o primeiro sistema nada mais que um setor do

    segundo. Assim, a teoria da arte , para o autor, uma teoria da cultura. E, como

    recorrente em seus textos, em uma aluso crtica ao que considera ser a maneira

    estruturalista de abordagem do social, completa: [...] se nos referimos a uma teoria

    semitica da arte, esta dever descobrir a existncia desses sinais na prpria

    sociedade, e no em um mundo fictcio de dualidades, transformaes, paralelos e

    equivalncias (GEERTZ, 1997, p. 165).

  • 38

    Ao chamar a ateno para a inter-relao entre arte e experincia cultural, em

    que parte do entendimento da obra deve ser endereada ao universo cotidiano em

    que os seres humanos olham, nomeiam, escutam e fazem (GEERTZ, 1997, p. 179),

    como o autor mesmo esclarece, surge o problema de como comparar diferentes

    manifestaes artsticas: o cuidado extremo com essa inegvel vinculao que

    obriga a que a comparao entre diferentes sociedades seja feita com cuidado.

    Se a proposta de Geertz (1997) conduz a um cuidado no trato da relao

    entre arte e cultura, por outro lado, sua insistncia nesta relao tem como horizonte

    a noo de contexto cultural. A antropologia tem se constitudo em direo a uma

    discursividade que toma o contexto como algo ao qual o trabalho de campo deve

    se remeter. Nas tentativas de relativizar as singularidades e as especificidades

    culturais, a disciplina corre o risco de atar em demasia uma dada experincia a um

    determinado contexto. A importncia do contexto para a antropologia foi tratada e

    problematizada por Taussig (1992, p. 44-45):

    Thus I want to stress context not as a secure epistemic nest in which our knowledge eggs are to be safely hatched, but context as this sort of connectedness incongruously spanning times and juxtaposing spaces so far apart and so different to each other. I want to stress this because I believe that for a long time now the notion of contextualization has been mystified, turned into some sort of talisman such that by contextualizing social relationships and history, as the common appeal would have it, significant mastery over society and history is guaranteed as if our understandings of social relations and history, understandings which constitute the fabric of such context, were not themselves fragile intelectual constructs posing as robust realities obvious to our contextualizing gaze. Thus the very fabric of the context into witch things are to be inserted, and hence explained, turns out to be that which most needs understanding! This seems to me the first mistake necessary for faith in contextualization. The second one is that the notion of context is so narrow. It turns out in Anthropology and History that what is invariably meant by appeals to contextualize is that it is social relationships and history of the Other that are to form this talisman called the context that shall open up as much as it pins down truth and meaning.

    Essa proposta de repensar a noo de contexto deve conduzir a anlise

    antropolgica do filme a uma busca das co-implicaes, das interferncias entre

    uma ordem e outras possveis, de uma experincia e outra, entre um texto e outros

  • 39

    textos. Tal preocupao tem implicaes no trato dos filmes que olham o passado

    ditatorial, uma vez que articulam uma memria suplementar sobre o passado e, ao

    realizar este ato, dialogam com o presente. No h possibilidade de conter o texto

    do filme em um nico referente de origem. Tais referentes podem variar desde as

    memrias no-oficiais do perodo at os materiais divulgados pela imprensa ou pela

    academia, ou ainda as possibilidades so mltiplas e as combinaes tambm

    as marcas materiais relacionadas quela experincia. Tampouco possvel remeter

    esses filmes apenas ao dilogo que, certamente, mantm com outras modalidades

    artsticas. No h uma nica abordagem que anteceda aquilo que foi filmado.

    Existem mltiplas facetas que esto em dilogo em cada um dos filmes.

    A proposta de Taussig (1992) mencionada envolve repensar tambm as

    fronteiras entre o eu e o outro, entre pesquisador e pesquisado, permitindo romper

    os limites entre quem olha e quem olhado. Ao buscar uma reconceitualizao da

    noo de contexto, evidencia um entrelaamento das mltiplas instncias que

    envolvem a vida cultural. A abordagem etnogrfica da narrativa flmica deve voltar-

    se para a relao entre o filme e a multiplicidade de instncias envolvidas. Um filme

    est relacionado com uma srie ampla de outros filmes; a histria que conta se

    insere em um espectro amplo de outras histrias advindas de variadas fontes. Alm

    do mais, h uma conexo de influncias entre cinema, TV, Internet, propaganda. A

    relao entre filme e literatura outra esfera que mostra as mltiplas conexes do

    fazer flmico com a palavra escrita.

    As noes de dialogismo e plurilingismo que Bakhtin (2002) desenvolveu

    para tratar da estilstica dos romances podem ser aplicadas ao estudo do cinema e

    tambm cultura entendida como uma srie de enunciados em constante interao.

    Para o autor, o romance uma diversidade social de linguagens organizadas

  • 40

    artisticamente (BAKHTIN, 2002, p. 74), uma vez que trabalha em seu interior com a

    diversidade das falas e dos discursos existentes.

    A estratificao interna de uma lngua nacional nica em dialetos sociais, maneirismos de grupos, jarges profissionais, linguagens de gneros, fala de geraes, das idades, das tendncias, das autoridades, dos crculos e das modas passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulrio, seus acertos) enfim, toda estratificao interna de cada lngua em cada momento dado de sua existncia histrica constitui premissa indispensvel do gnero romanesco. E graas a este plurilingismo social e ao crescimento em seu solo de vozes diferentes que o romance orquestra todos os seus temas, todo seu mundo objetal, semntico, figurativo e expressivo (BAKHTIN, 2002, p. 74).

    O cinema narrativo-comercial plurilnge ao articular as instncias, os nveis

    e os tipos de uma lngua e tambm um meio artstico que trabalha com a diversidade

    de imagens dispostas e propostas por outros meios massivos e artsticos e com a

    multiplicidade sonora e musical existente: dialoga com a lngua, a imagtica e a

    sonoridade sociais. Stam (2003, p. 226) fala em dialogismo intertextual ao propor a

    aplicao da proposta de Bakhtin ao cinema, evidenciando:

    [...] as possibilidades infinitas e abertas produzidas pelo conjunto das prticas discursivas de uma cultura, a matriz inteira de enunciados comunicativos no interior do qual se localiza o texto artstico, e que alcana o texto no apenas por meio de influncias identificveis, mas tambm por um sutil processo de disseminao.

    Assim, dualidades, transformaes, paralelos e equivalncias no so

    mundos fictcios, a no ser como construes da antropologia que devem ser

    buscadas para tratar da relao entre arte e sociedade e evidenciam-se na extrema

    habilidade que a cultura e a arte tm de, em um processo dialgico, construir e, ao

    mesmo tempo, ser construdas.

  • 41

    Encenao

    Como discutido por Reis (1988) em um artigo no qual aborda a ideologia do

    Estado no Brasil, as definies de nao tendem a mesclar a esfera da autoridade

    do Estado e a da sociedade em uma s aliana conceitual. Tal tendncia realaria o

    fato de as construes do Estado e da nao serem processos dinmicos que

    interagem continuamente com as prticas concretas de classes e grupos (REIS,

    1988, p. 188). Tendo em vista esses processos que procuro destacar a dimenso

    social da vida na nao. Assim, no estou pensando na nao como totalidade

    poltica que se confunde com o Estado-nao, mas entendo que mais apropriado

    falar de pertencimentos e diferenas, de socialidade.

    No interior das narrativas flmicas, delineiam-se formas mltiplas de construir

    noes vinculadas ao social da nao como comunidade imaginada, no sentido que

    Anderson (1983) d expresso. Como a nfase do Estado-nao a

    homogeneizao das diferenas somos todos um s, uma s lngua, uma s

    cultura , conjuntos de feitios e intenes diferentes so agrupados e impelidos a

    portar caractersticas gerais que so, em um sentido, uniformizadoras. Como outras

    formas narrativas, os filmes podem, em um plano, mostrar-se favorveis

    discursividade homognea, repeti-la ou referend-la. Como no h fala sem fissura,

    os filmes tambm podem atuar de modo conflituoso com as narrativas ligadas

    memria oficial.

    Nao pode, ento, ser percebida como lugar de origem, de nascimento, de

    memria, espao compartilhado, conhecido: sabem-se seus nomes, os acentos das

    falas, as comidas, as cores das gentes. Sentimentos de pertena. Pas, paisagem,

    nao, localidade, domus, lar, casa e ptria. Uma estranha sensao de conhecer e,

    ao mesmo tempo, estranhar aqueles/as que so do mesmo lugar. Terreno

  • 42

    artificialmente repartido e delimitado: o que os olhos conhecem como o lugar nem

    sempre coincide com as fronteiras polticas dos estados. Quintais, ruas, aldeias, rios,

    florestas so repartidos e divididos pelo vetor da nao sob a forma do Estado-

    nao.

    Nesses espaos, construmos e entendemos partilhar sentidos, gostos,

    falares. Pensamos que qualquer pessoa nascida na mesma grande rea um pouco

    como ns mesmos porque tambm portadora de certas caractersticas comuns.

    Imaginamos e inventamos tradies que so continuamente manipuladas por

    diferentes grupos. Nao e ptria: ser que estas noes se equivalem? Nao

    como sentimento de estar em casa, de pertencer, provocado por prticas cotidianas.

    Essa noo rene ou permite evocar outras: nascimento, ptria, pas, terra-me.

    Certos modos e processos identitrios so construdos, certos pertencimentos

    evocados, temporalidades vividas.

    Algumas implicaes do vocabulrio envolvido mais diretamente com as

    noes de ptria, pas e nao podem elucidar aspectos imaginativos em pauta.

    Segundo Benveniste (1995, p. 312), o vocabulrio indo-europeu deu origem,

    primeiramente, noo de hestia, o lar, tambm chamado domus (casa, no como

    edificao, mas em seu sentido social); depois, thmis, como o conjunto de

    costumes que constituem o direito, para, a seguir, aparecer a noo de fratria, ou

    seja, a reunio de irmos (homens) que se reconhecem descendentes de um

    mesmo antepassado, em uma noo profundamente indo-europia de parentesco

    mtico. Ao lado da idia de fraternidade que, em um certo sentido, est presente na

    noo de nao, h o adjetivo patrius, derivado de pai, vinculando patrius ao poder

    do pai em geral. Aproximo ptria e nao para destacar entre essas noes a idia

    de coletividade, de socialidade. No entanto, como se reforando um vis que

  • 43

    encobre a idia de nao como predomnio do poder do pai, no existe um termo

    equivalente que seja derivado de me. Tal vis participa das reflexes dedicadas a

    analisar a nao e o nacionalismo, como lembra Walby (2000, p. 249): a literatura

    sobre as naes e o nacionalismo raramente aborda a questo do sexo a despeito

    do interesse geral na participao diferencial dos vrios grupos sociais nos projetos

    nacionalistas. Na apreenso do passado ditatorial, discuto as possveis simbologias

    que personagens femininas e referncias distintas a homens e mulheres podem ter

    nas escolhas em cena.

    Origem comum, certa camaradagem e predomnio paterno so algumas das

    implicaes contidas nas idias que cercam o sentido dado idia de nao. No

    entanto, preciso mencionar que essas implicaes no so totais, pois, ao lado

    dessa inflexo, encontramos noes correlatas que carregam outros sentidos. Falo

    dos termos lngua materna, ptria-me, terra me, por exemplo, que interagem

    com as idias relacionadas ao conjunto da nao. So conotaes ambivalentes: a

    referncia me insere noes de pertencimentos, lngua, ptria e terra; as

    referncias ao pai, como entrada na regra, na lei, em uma heteronomia. No conjunto

    das imagens e sons que os filmes nos trazem, vrios lados de uma mesma idia vo

    surgir e, buscando trabalhar com essas tnicas, que a narrativa flmica sobre a

    nao, considerada em suas contradies, vai aparecer. Os filmes que tomam a

    ditadura como tema falam socialidade da nao e tambm manipulam memrias

    muitas vezes em conflito com narrativas oficiais que se aliam nao como fora da

    lei homogeneizadora.

    Na vivncia da nao, as diferenas culturais e polticas provocam

    apropriaes distintas do passado ditatorial. No processo de apropriao do

    passado, ocorre uma luta por tornar preponderantes algumas narrativas em

  • 44

    detrimento de outras. Os muitos grupos da diferena, constitudos segundo variveis

    de gnero, idade, classe, etnia, lutas raciais, disporas exercem uma disputa pela

    validao de suas narrativas. Nenhum dos grupos homogneo: as questes de

    gnero, por exemplo, esto imbricadas em condies de classe e etnia; afiliaes

    econmicas implicam modos diversos de viver e perceber as noes raciais;

    categorias etrias so valorizadas diferentemente segundo condies econmicas,

    tnicas e de gnero. Bhabha (2003, p. 207) discute a importncia da fora narrativa

    da nao na projeo poltica em que a diferena requer que percebamos a

    ambivalncia como estratgia discursiva:

    Os fragmentos, retalhos e restos da vida cotidiana devem ser repetidamente transformados nos signos de uma cultura nacional coerente, enquanto o prprio ato da performance narrativa interpela um crculo crescente de sujeitos nacionais. Na produo da nao como narrao ocorre uma ciso entre a temporalidade continusta, cumulativa, do pedaggico e a estratgia repetitiva, recorrente do performativo. [] O povo no nem o princpio nem o fim da narrativa nacional; ele representa o tnue limite entre os poderes totalizadores do social como comunidade homognea, consensual, e as foras que significam a interpelao mais especfica a interesses e identidades contenciosos, desiguais, no interior de uma populao.

    Os jogos de esteretipos das mais diversas ordens e opes poticas no

    menos diversificadas compem as narrativas visuais, em uma complexidade

    segundo a qual se vo constituindo como comentrios consensuais ou crticos sobre

    a ditadura. Desse modo, a multiplicidade de sentidos dos filmes, como textos que se

    referem ao passado, envolve-se com discusses de temas voltados aos processos

    ps-ditatoriais. A imaginao toma a ditadura por tema para reverberar outras falas,

    e me leva a indagar: o que, nos filmes e atravs deles, est sendo ensinado?

    Pensando na lngua espanhola, lembremos que ensear verbo empregado para

    indicar as aes de mostrar, assim como para ensinar, doutrinar. Essa nuance

    relaciona-se com o aspecto pedaggico das narrativas da nao: para o caso em

    pauta, aquilo que o cinema mostra (ensea) e coloca em cena, tambm propaga,

  • 45

    dissemina e ensina. Esse processo acontece via modo de endereamento que,

    como sublinhado por Ellsworth (2001), uma estruturao (p. 17) entre filme e

    espectador/a, entre o texto de um filme e a experincia do espectador (p. 12).

    Quando ressalto o tema da nao, no me refiro aos filmes como narrativas fixas e

    fixantes, mas quero destacar os aspectos que concorrem para a constante criao e

    recriao de um imaginrio relativo a esses lugares (comunidades imaginadas, de

    tradies inventadas).

    Anderson (1983) demonstra que as naes so comunidades imaginadas e

    lembra ainda que, de alguma forma, toda comunidade o , seja por laos de

    parentesco, por descendncia de um ancestral mtico, por creditar uma origem

    comum, por entender-se portadora de qualidades que a tornam distinta e peculiar.

    Muitas dessas caractersticas se combinam e preciso distinguir o estilo pelo qual

    comunidades so imaginadas, o que resulta de uma combinao entre artifcios

    imaginativos e estruturas sociais. Anderson (1983) explica que, no caso das naes

    modernas, esse estilo pressupe que sejam limitadas, que tenham fronteiras

    definidas e guardadas e que sejam soberanas. Alm disso, [] the nation is always

    conceived as a deep, horizontal comradeship (ANDERSON, 1983, p. 15-16).

    essa caracterstica que me faz associar fratria e ptria, pois entendo que

    constituem sentidos que se interconectam no funcionamento da nao. Mas h, ao

    lado e no interior dessas caractersticas, convivendo de modo antagnico, outras

    esferas, outros modos de relao. Se a nao imaginada, ela o de modo a

    articular tensamente alteridades em seu interior.

    Anderson (1983) mostra que crenas de origem e evoluo das naes

    modernas cristalizam-se na forma de histrias. A nao deve mais a uma unidade

    fictcia imposta e que se tornou possvel graas a uma combinao entre

  • 46

    capitalismo, queda dos reinos dinsticos e crescimento das linguagens vernculas:

    What, in a positive sense, made the new communities imaginable was a half-fortuite,

    but explosive interrelation (capitalism), a technology of communications (print) and

    the fatality of human linguistic diversity (ANDERSON, 1983, p. 46). O sentido de

    compartilhar com outros um espao limitado e soberano foi possvel graas ao papel

    desempenhado, por um lado, pelos romances e, por outro, pela imprensa, conjunto

    que Anderson (1983) chama de print capitalism (capitalismo da imprensa ou

    capitalismo editorial8). Ambos permitem experincias de simultaneidade: a leitura

    diria de jornais, o conhecimento de tramas e personagens de fico faz com que

    pessoas vivenciem simultaneamente experincias dispostas em diferentes locais.

    Essa simultaneidade provoca a ocorrncia de um tempo homogneo vazio, a forma

    da temporalidade nacional, ou seja, todos em um s.

    A leitura de romances e jornais , predominantemente, uma atividade de

    certas elites letradas, as quais procuram impor, por meios variados persuaso pela

    fora um deles , as narrativas de fundao e de identificao da nao.

    Atualmente, formas massivas de entretenimento e mdia, como TV, cinema e rdio,

    suplementam ou se adicionam ao print capitalism na formao dos sentimentos de

    simultaneidade e pertena. Pode-se, assim, denominar os meios massivos de

    disseminao de imagens, histrias e padres comportamentais, que atingem uma

    enorme quantidade de pessoas,como media capitalism (capitalismo da mdia).

    No caso da formao das naes na Amrica espanhola, que tem

    implicaes diretas com esta pesquisa, Anderson (1983) menciona, alm dessas,

    8 A expresso de Anderson (1983) print capitalism, difcil de ser traduzida, expressa a idia de que, juntamente com o capitalismo, houve