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CIÊNCIA Armadilha de N o mundo quatro grupos empenhados em obter a partir de átomos de cálcio um estranho estado da matéria - os condensados de Bose- Einstein -, e entre eles está o da Uni- versidade Estadual de Campinas (Uni- camp) liderado por Artemio Scalabrin. Os demais grupos usam elementos da primeira coluna da tabela periódica, como sódio, lítio e rubídio. ''A vanta- gem do cálcio e de outros integrantes da segunda coluna é sua peculiar es- trutura eletrônica, que pode permitir simplificar o método de obtenção dos condensados", diz Scalabrin. Flávio Caldas da Cruz, também do Grupo de Lasers do Instituto de Física da Unicamp que desenvolve o proje- to, recorda: "Quando o primeiro con- densado foi produzido, gerou-se a ex- pectativa de que ocorreria no setor a mesma explosão pro- vocada pela criação do laser, nos anos 60. No entanto, passados quase sete anos, ape- nas um número limi- tado de grupos expe- rimentais obteve esses condensados. O principal motivo éa grande dificuldade técnica, em parti- cular a associada à armadilha magné- tica, de se obter esses objetos". "Daí o interesse no condensado de cálcio", explica Cruz. "Graças à sua es- trutura de níveis, esse elemento tem propriedades específicas que ofere- cem a perspectiva de se chegar a tal estado da matéria apenas por métodos ópticos. Para isto, um segundo tipo de armadilha, semelhante a uma pinça óptica, substituiria a armadilha mag- nética. Isso representaria um impor- tante atalho para os condensados." Átomos aprisionados - Com seu se- gundo projeto temático, em fase de conclusão, 60 trabalhos em revistas in- ternacionais, sete teses de doutora- mento e seis de mestrado concluídas nos últimos dez anos, o Grupo de Lasers acredita ter cacife para a em- preitada. "Sempre desenvolvemos os equipamentos necessários à pesqui- 58 . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 PESQUISA FAPESP sa", revela Daniel Pereira, integrante da equipe. "Somos hoje o único gru- po brasileiro com presença no restrito círculo de laboratórios internacionais capazes de realizar medidas de fre- qüência de lasers na região do tera- hertz (que corresponde a 1 trilhão de oscilações por segundo)." Equipe cria atalho para obter um estado especial da matéria JOSÉ TADEU MANTES FÍSICA Na batalha pelo condensado, o grupo já faz o mais difícil: aprisionar os átomos de cálcio. Para isso, adota o seguinte procedimento: inicialmente, um forno aquece o cálcio metálico, transformando-o em vapor e elevan- do-o para 600 graus Celsius. Com o aquecimento, os átomos alcançam a velocidade média de 700 metros por segundo (rn/s). No vácuo, os átomos são colimados - ou seja, suas trajetó- rias se tornam paralelas - e consti- tuem um feixe. Em seguida, ao deslocar-se por um tubo, o jato de átomos é desacele- rado pela pressão de radiação de um laser que aponta em sentido contrário - os fótons, partículas de luz, têm a capacidade de pressionar a matéria, o que produz um fenômeno como a cauda dos cometas. A desaceleração pelo laser - cerca de um milhão de ve- zes maior, em valor absoluto, que a aceleração da gravidade - faz a veloci- dade dos átomos cair para cerca de 0,5 m/s. Desacelerados, os átomos po- dem ser aprisionados por meio de um dispositivo composto de seis lasers- opostos dois a dois e dispostos segun- do três direções ortogonais, cada uma correspondendo a um eixo cartesiano do espaço - e um campo magnético. Com essa técnica, cerca de 10 mi- lhões de átomos são confinados numa esfera de 1 milímetro de diâmetro. A baixa mobilidade faz sua temperatura despencar para o platô de 1 milikel- vin, um milésimo de grau acima do zero absoluto (o zero kelvin corres- ponde a -273,15 graus Celsius). O tempo de permanência dos átomos na armadilha é de cerca de 20 milissegun- dos - duração que parece irrisória, mas, para a escala de tempo dos fenô- menos atômicos, é muito. "Mesmo nessa temperatura baixíssima ainda ocorrem colisões entre os átomos. É a chamada colisão ultrafria, muito pou- co estudada até o momento para ele- mentos da segunda coluna da tabela periódica", comenta Pereira. Relógios atômicos - A obtenção do condensado não é a única finalidade desse experimento. "Uma de suas im- portantes aplicações práticas é estabe- lecer padrões universais de freqüên- cia, tempo e comprimento': informa Scalabrin. "Uma transição do cálcio é atualmente utilizada como padrão de freqüência. E permite definir também padrões de tempo e comprimento, es- senciais em metrologia, redes de tele- comunicações e de energia elétrica e navegações aérea e marítima. Quando os átomos têm velocidades mais altas, esse padrão sofre variações e é pertur- bado por um número maior de coli- sões. Em temperaturas próximas ao ze- ro absoluto, a freqüência atinge uma estabilidade quase ideal. A perspectiva é construir, a partir daí, relógios atô- micos portáteis de altíssima precisão."

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CIÊNCIA

Armadilha de

Nomundo há quatro

grupos empenhadosem obter a partir deátomos de cálcio umestranho estado da

matéria - os condensados de Bose-Einstein -, e entre eles está o da Uni-versidade Estadual de Campinas (Uni-camp) liderado por Artemio Scalabrin.Os demais grupos usam elementos daprimeira coluna da tabela periódica,como sódio, lítio e rubídio. ''A vanta-gem do cálcio e de outros integrantesda segunda coluna é sua peculiar es-trutura eletrônica, que pode permitirsimplificar o método de obtenção doscondensados", diz Scalabrin.

Flávio Caldas da Cruz, também doGrupo de Lasers do Instituto de Físicada Unicamp que desenvolve o proje-to, recorda: "Quando o primeiro con-densado foi produzido, gerou-se a ex-pectativa de que ocorreria no setor amesma explosão pro-vocada pela criaçãodo laser, nos anos 60.No entanto, passadosquase sete anos, ape-nas um número limi-tado de grupos expe-rimentais obteve essescondensados. O principal motivo é agrande dificuldade técnica, em parti-cular a associada à armadilha magné-tica, de se obter esses objetos".

"Daí o interesse no condensado decálcio", explica Cruz. "Graças à sua es-trutura de níveis, esse elemento tempropriedades específicas que ofere-cem a perspectiva de se chegar a talestado da matéria apenas por métodosópticos. Para isto, um segundo tipo dearmadilha, semelhante a uma pinçaóptica, substituiria a armadilha mag-nética. Isso representaria um impor-tante atalho para os condensados."

Átomos aprisionados - Com seu se-gundo projeto temático, em fase deconclusão, 60 trabalhos em revistas in-ternacionais, sete teses de doutora-mento e seis de mestrado concluídasnos últimos dez anos, o Grupo deLasers acredita ter cacife para a em-preitada. "Sempre desenvolvemos osequipamentos necessários à pesqui-

58 . NOVEMBRO/DEZEMBRO DE 2001 • PESQUISA FAPESP

sa", revela Daniel Pereira, integranteda equipe. "Somos hoje o único gru-po brasileiro com presença no restritocírculo de laboratórios internacionaiscapazes de realizar medidas de fre-qüência de lasers na região do tera-hertz (que corresponde a 1 trilhão deoscilações por segundo)."

Equipe cria atalhopara obter um estadoespecial da matéria

JOSÉ TADEU MANTES

FÍSICA

Na batalha pelo condensado, ogrupo já faz o mais difícil: aprisionaros átomos de cálcio. Para isso, adota oseguinte procedimento: inicialmente,um forno aquece o cálcio metálico,transformando-o em vapor e elevan-do-o para 600 graus Celsius. Com oaquecimento, os átomos alcançam avelocidade média de 700 metros porsegundo (rn/s). No vácuo, os átomossão colimados - ou seja, suas trajetó-rias se tornam paralelas - e consti-tuem um feixe.

Em seguida, ao deslocar-se porum tubo, o jato de átomos é desacele-rado pela pressão de radiação de umlaser que aponta em sentido contrário- os fótons, partículas de luz, têm acapacidade de pressionar a matéria, oque produz um fenômeno como acauda dos cometas. A desaceleraçãopelo laser - cerca de um milhão de ve-zes maior, em valor absoluto, que aaceleração da gravidade - faz a veloci-dade dos átomos cair para cerca de

0,5 m/s. Desacelerados, os átomos po-dem ser aprisionados por meio de umdispositivo composto de seis lasers-opostos dois a dois e dispostos segun-do três direções ortogonais, cada umacorrespondendo a um eixo cartesianodo espaço - e um campo magnético.

Com essa técnica, cerca de 10 mi-lhões de átomos são confinados numaesfera de 1 milímetro de diâmetro. Abaixa mobilidade faz sua temperaturadespencar para o platô de 1 milikel-vin, um milésimo de grau acima dozero absoluto (o zero kelvin corres-ponde a -273,15 graus Celsius). Otempo de permanência dos átomos naarmadilha é de cerca de 20 milissegun-dos - duração que parece irrisória,mas, para a escala de tempo dos fenô-menos atômicos, é muito. "Mesmonessa temperatura baixíssima aindaocorrem colisões entre os átomos. É achamada colisão ultrafria, muito pou-

co estudada até o momento para ele-mentos da segunda coluna da tabelaperiódica", comenta Pereira.

Relógios atômicos - A obtenção docondensado não é a única finalidadedesse experimento. "Uma de suas im-portantes aplicações práticas é estabe-lecer padrões universais de freqüên-cia, tempo e comprimento': informaScalabrin. "Uma transição do cálcio éatualmente utilizada como padrão defreqüência. E permite definir tambémpadrões de tempo e comprimento, es-senciais em metrologia, redes de tele-comunicações e de energia elétrica enavegações aérea e marítima. Quandoos átomos têm velocidades mais altas,esse padrão sofre variações e é pertur-bado por um número maior de coli-sões. Em temperaturas próximas ao ze-ro absoluto, a freqüência atinge umaestabilidade quase ideal. A perspectivaé construir, a partir daí, relógios atô-micos portáteis de altíssima precisão."

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o pesquisador fala em transiçãodo cálcio. Para entender, é preciso re-cordar o modelo quântico do átomo,formulado pelo dinamarquês NielsBohr em 1912. Quando recebe umaporte externo de energia, o elétronsalta de um nível relativamente próxi-mo ao núcleo para outro mais distante.Transcorrido um intervalo de tempoindeterrninado, a partícula deixa essacondição excitada e retoma ao estadofundamental, devolvendo ao meio ex-terior a energia excedente. Bohr ela-borou seu modelo para o átomo dehidrogênio, o mais simples de todos,constituído por apenas um próton eum elétron. Mas ele pode ser genera-lizado para átomos mais complexos.No caso do cálcio, que tem 20 elétronsdistribuídos por várias camadas, sãoas duas partículas da última camadaque transitam para níveis diferentesquando excitadas.

A energia para isso é conferida pe-los fótons, partículas ligadas à intera-ção eletromagnética, que compõem aemissão do laser. Para produzir essastransições, o laser precisa ser altamen-te monocromático, com uma cor mui-

o PROJETO

Espectroscopia Atômica e Molecularcom Lasers

MODALIDADEProjeto temático

COORDENADORARTEMIO SCALABRIN - Instituto de Físicada Unicamp

INVESTIMENTOR$ 199.624,98 e US$ 336.494,00

to bem definida. A freqüência asso-ciada a cada transição é a do laser-idêntica à da luz emitida pelo átomoquando seus elétrons voltam ao esta-do fundamental. "Entre as muitastransições possíveis de um átomo,aquelas que realmente interessam são

as que envolvem os chamados níveismetaestáveis, nos quais o elétron é ca-paz de permanecer durante um lon-go tempo, antes de decair", afirmaCruz. "Isso se deve ao fato de que,quanto maior o tempo de permanên-cia do elétron num nível, mais defini-da é a energia necessária para produ-zir essa excitação. Quando o tempo depermanência é curto, há uma grande

indefinição no valor daenergia - o que é uma de-corrência direta do Prin-cípio da Incerteza, um dospilares da física quântica."

Três transições são es-pecialmente interessantes no cálcio.Duas são estimuladas pela radiaçãoeletromagnética na faixa do infraver-melho longínquo, em 1,6 e 3,2 tera-hertz (THz). Outra, ainda mais ener-gética, é produzida pela luz visível em456 THz. Essas transições tornam ocálcio extremamente promissor para odesenvolvimento de relógios atômi-cos de altíssima precisão. "O motivo é

Bem perto do zero absoluto

A pesquisa do Grupo de Lasersda Unicamp envereda por um cam-po recente: a produção experimen-tal de um condensado de Bose-Eins-tein foi conseguida pela primeiravez em 1995 e seus autores - osamericanos Eric Cornell e Carl Wie-man, da Universidade do Colorado,

em Boulder, e o alemão WolfgangKetterle, do Massachusetts Instituteof Tecnology (MIT) - receberam oNobel de Física de 200 l.

Previsto teoricamente em 1924pelo indiano Satyendra Nath Bose(1894-1974) e pelo judeu-alemãoAlbert Einstein (1879-1955), o con-

densado foi buscado por décadas,até ser obtido independentementepela dupla Cornell e Wieman e porKetterle. A presteza da premiaçãoindica a importância do feito.

O condensado é um estado damatéria em que os átomos perdemsuas individualidades e passam a secomportar como entidade única.Ocorre quando os corpúsculos es-tão em um nível excepcionalmente

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que, quanto mais elevada a freqüênciado oscilado r, maior a estabilidade dos'tique-taques' do relógio': explica Cruz.

"Os relógios atômicos convencio-nais, baseados no césio e no rubídio,utilizam oscilações geradas na faixa demicroondas do espectro eletromag-nético, no patamar do gigahertz (1 bi-lhão de oscilações por segundo). Umeventual relógio de cálcio, alimentadopelas oscilações do campo eletromag-nético de lasers, operaria com freqüên-cias milhares de vezes mais altas."

A idéia de produzir um relógio decálcio no infravermelho longínquo, tro-cando os geradores de microondas por

baixo de energia, em temperaturaalguns bilionésimos de grau acimado zero absoluto. A situação prova-velmente não existe na natureza,pois nem mesmo o espaço interga-láctico é tão frio, mas pode ser obti-da em laboratório.

A técnica para isso consiste em re-duzir drasticamente a agitação tér-mica dos átomos, aprisionando-osnum volume muito pequeno por

Aparelhagem feitapelo próprio grupo e

o resultado: umátomo de cálcio

imobilizado

lasers como fonte excitatória, existe hácerca de 30 anos e tem sido incrernen-tada. Verificou-se,por exemplo, que, es-friando-se os átomos, era possível ob-ter freqüências mais estáveis. E que ocálcio apresentava aquela outra transi-ção, na faixa visível do espectro, comfreqüência ainda mais alta. Tudo issogerou grande expectativa, mas haviaum problema: até há dois anos, medir

meio de uma armadilha de lasers ede um campo magnético. E, depois,usar uma armadilha magnética ma-nipulada com radiofreqüência, demodo a expelir os átomos maisenergéticos, deixando ficar apenasos impecavelmente quietos.

A coerência de comportamentodesse gás de átomos ultrafrios é talque faz com que ele esteja para umgás à temperatura ambiente assim

freqüências na faixa do terahertz pare-cia impossível.De pouco adiantava pro-duzir uma transição de freqüência tãoelevada se não havia como mensurá-la.

Foi quando se descobriu que umlaser de pulsos ultracurtos poderia ser-vir para medir a freqüência de outrolaser. Ao contrário do laser usado paraexcitar o átomo, cuja emissão deve sercontínua e altamente monocromática,esse laser medidor emite pulsos des-contínuos e policromáticos - isto é,compostos por radiações de diferen-tes freqüências. E sua emissão poli-cromática é o chamado "pente de fre-qüências" - algo que funciona comouma régua para a aferição de outrasfreqüências. Isso, por si, já parecia mui-to bom. Mas o impressionante era operíodo de cada pulso: algo da ordem

do femtossegundo (1 qua-~ trilhonésimo de segundo).

Com pulsações tão rápi-das, esse laser pode balizartranqüilamente freqüênciasde centenas de terahertz.

Esse laserpulsante mu-dou o cenário e forneceu oingrediente que faltava aorelógio atômico de cálcio.Pois, em princípio, tudo oque se precisa para fazer o .

relógio é um oscilado r estável e ummedidor de oscilações. O oscilado r,no caso, é o laser monocromático es-tabilizado à transição atômica docálcio. E o medidor, o laser de pulsosultracurtos. Daí até o relógio efetivoé uma questão de vencer obstáculostécnicos, o que também pode ser ditoquanto à obtenção dos condensados.Mas o caminho já foi aberto. •

como o laser está, num exemplo tri-vial, para a luz de uma lanterna.

Uma das possíveis aplicações docondensado é justamente a criaçãode "lasers' atômicos. Há equipes quetrabalham nessa direção, mas o pro-cesso está em fase muito preliminar.No momento, a pesquisa se concen-tra no estudo das propriedades físicasdos condensados, ainda largamentedesconhecidas.

PESQUISA FAPESP • NOVEMBRO/OEZEMBRO DE2001 • 61