cigarras & formigas - um conto moderno

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1 C C C i i i g g g a a a r r r r r r a a a s s s & & & F F F o o o r r r m m m i i i g g g a a a s s s U U U m m m c c c o o o n n n t t t o o o m m m o o o d d d e e e r r r n n n o o o Marcos Kengo Shinozaki

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A fábula moderna da Cigarra e da Formiga

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CCCiiigggaaarrrrrraaasss &&& FFFooorrrmmmiiigggaaasss UUUmmm cccooonnntttooo mmmooodddeeerrrnnnooo

∞∞∞

Marcos Kengo Shinozaki

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Sumário PREFÁCIO 3 CAPÍTULO I 4 PRISÃO CAPÍTULO II 5 CONDICIONAMENTOS CAPÍTULO III 7 COMEÇO DA LIBERTAÇÃO CAPÍTULO IV 9 REVOLTA CAPÍTULO V 11 SARAU-RAVE DIONISÍACO CAPÍTULO VI 12 O INVERNO E O TEMPO CIRCULAR - SANSARA CAPÍTULO VII 14 SOLIDÃO E MEDO CAPÍTULO VIII 17 LAO TSU – O VELHO CAMARADA CAPÍTULO IX 20 ELUCIDAÇÕES DO MESTRE CAPÍTULO X 25 A DESPEDIDA EPÍLOGO 26 POSFÁCIO 27

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Prefácio As pessoas geralmente não lêem o prefácio antes da estória. Prefácio é uma coisa pra se ler depois, ou talvez nem lê-lo. Então se é pra ler depois coloquemo-lo como Posfácio ao final do livro. A não ser quando a literatura é muito complexa e antiga e o prefácio contiver elementos que ajudarão o entendimento da obra. Aí tudo bem, mas não é o caso. Vá direto ao que interessa! Agora se você for um leitor que está acostumado ou fizer questão de lê-lo primeiro, por qualquer razão, vá ao final e leia o Posfácio. O Autor.

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CAPÍTULO I PRISÃO Vamos contar uma história, que se passa no reino da floresta, de um relacionamento que existiu entre cigarras e formigas. As cigarras adoravam cantar, dançar, namorar, brincar, enfim curtir a vida, mas isso só era possível no verão, pois no inverno ficava praticamente impossível se quer sair de casa devido as fortes nevascas. Assim, as formigas, trabalhadoras contumaz, começavam a doutrinar as cigarras dizendo que elas não poderiam ficar só na vida boa, precisavam trabalhar e estudar para acumular reservas de comida e casa para se protegerem do inverno rigoroso. Diziam, também, que o ócio é coisa do diabo e que Deus glorifica aqueles que trabalham. Ensinavam que a promiscuidade é coisa do mal e que deveriam casar-se e ser monogâmicos. Ter uma vida de santidade no lar, no seio familiar e cumprir obrigações. Algumas cigarras ouviam e outras não. As que não ouviam fatalmente sofriam, pois o inverno chegava junto com as nevascas impiedosas e castigavam-nas. Havia vários grupos de formigas membros da igreja que promoviam o trabalho voluntário para levarem comida e roupa à população desabrigada de cigarras. Faziam campanhas, também, de doação de agasalhos. Além de construírem templos enormes para congregações e abrigos das cigarras sem tetos. O dinheiro vinha do dízimo das trabalhadoras formigas que davam na maior alegria dez por cento de seus salários acreditando estarem contribuindo para obra divina. Foi um desses grupos que auxiliou uma cigarra em particular. E é essa que acompanharemos até o final dessa estória, seu nome era Naropa. A cigarra Naropa chegou desnutrida com quadro grave de anemia e pneumonia ao abrigo Lar Divino fundado pelo bispo formiga Dhrudhona. Submeteu-se a um tratamento intensivo de medicamentos e soros, por formigas médicas muito prendadas, altruístas e competentes.Em questão de semanas já estava recuperado e em plenas condições de saúde. Foi incentivado a assistir uma palestra na congregação para ouvir a palavra do Senhor Susej Otsirc o líder maior do povo das formigas. Lá ouviu que Susej Otsirc é o Salvador. Que Ele ama a todos, não só as formigas, mas todas as criaturas do reino da selva, principalmente as cigarras que antes viviam no pecado. Mas agora que estão salvas não mais voltarão a pecar, pois seus corações agora estão limpos, puros, glorificados por Susej. Assim, todas as cigarras ali presentes devem entregar-se a Susej, pois só ele é quem salva, é só através dele que encontramos a salvação. Naropa via muitos conterrâneos convertidos e assistindo ao culto jubilosos e cheios de

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fé. Ouviu muitos testemunhos de cigarras que foram encontrados na mesma situação que ele e até em piores condições. Mas todos eles se orgulhavam de subir no palanque, dar seu testemunho em meio às lágrimas e depois se rejubilarem pela salvação gritando “Glória Deus”! ´´Glória ao Senhor Susej Otsirc!`` No final do culto todos se confraternizavam e várias formigas e cigarras vinham e chamavam Naropa de irmão dizendo: - E então, irmão? As palavras do Senhor te tocaram o coração? -Profundamente! – respondia Naropa. -Glória Deus! − Dizia um membro da congregação. -Glória ao Nosso Senhor Susej Otsirc! Vamos batizar o irmão então, como o mais novo membro desta grande família – bradou uma cigarra que se tornou preletora da igreja. Naropa realmente estava feliz, pois se sentia acolhido, protegido por essa grande família que agora o adotava. Recebia conselhos e diretrizes de como guiar sua vida de acordo com a vontade do Senhor Susej. Foi encaminhado ao departamento da igreja responsável pela inclusão social. Ofereceram-lhe uma bolsa para um curso técnico profissionalizante ao que aceitou cheio de júbilo rendendo graça ao Senhor. CAPÍTULO II CONDICIONAMENTOS Depois de um bom tempo Naropa se tornou técnico profissional, com emprego fixo, salário bom, obviamente revertendo sua gratidão em forma de dízimo para essa grande igreja essa grande obra de Deus e do Nosso Senhor Susej Otsirc. Mas uma coisa ainda o incomodava, toda vez que chegava o verão, batia aquela vontade forte de largar tudo e ir dançar, cantar, namorar... Enfim tudo aquilo que uma boa cigarra adora fazer, mas ele pensava “Óh! Deus daí-me força para superar essas tentações mundanas, sou agora seu servo Senhor! Derrama-me seu sangue óh! Amado mestre Susej! Para que eu não volte a pecar e afasta-me esses pensamentos impuros”. Houve épocas em que ele estava estudando e trabalhando sobrando apenas os finais de semana para lavar sua roupa e ocupar-se com os afazeres domésticos. Quando vinha um feriado...Uau! Era a glória... Nesse feriado iria cantar e dançar, mas no dia anterior um irmão da igreja lhe liga e pergunta o que fará no feriado ao que Naropa responde jubiloso ao telefone: - Finalmente, irmão! Vou tirar o dia pra mim. Irei ao karaokê! -O quê??- respondeu o padre – Como assim? E a obra do Senhor?

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Estamos contando com você aqui amanhã para arrumação do salão nobre. O bispo Kunti, que viajará quilômetros até aqui, fará sua preleção nos transmitindo a palavra do Senhor. -Mas é que eu já tinha ajudado domingo passado e pedi ao preletor que me dispensasse no feriado e ele disse que tudo bem - disse Naropa -Ah! Então é assim? Tudo bem, irmão! Bom divertimento amanhã. Só que eu vou te dizer uma coisa. Lembre-se, sempre e sempre que você está onde está, graças a, primeiramente a Deus, e depois ao Nosso Senhor Susej Otsirc, Ok!? Lembre-se sempre que a ingratidão é uma das coisas que mais ferem o Senhor. Lembre-se de como você chegou aqui. Naropa quis interromper – “Mas, irmão...” - “Tudo bem, Naropa”!! – não o deixando completar − “Sem problemas, vá ao seu karaokê! É que não sou eu quem está pedindo, não é a mim que você está recusando, eu sou um simples obreiro, cumpro ordens de Deus, é um pedido de Deus que você está recusando, não meu! E um pedido de Deus não se recusa. Tchau, irmão! Paz do Senhor te guie”! E desligou o telefone. Naropa sentiu um profundo remorso, imediatamente ligou para os amigos e desmarcou o karaokê. No dia de feriado, sol quente, lá estava de terno e gravata, cabelo penteado com gel, na recepção. Ao final da preleção do bispo, o pastor depois de encerrar os créditos finais começou a dizer: -Caros irmãos e irmãs! Cigarras & Formigas! Companheiros de fé, eu, em nome do Nosso Senhor Susej Otsirc agradeço profundamente a presença dos senhores. Hoje está um sol maravilhoso muitos de vocês poderiam estar na lagoa, no rio cantando, mas preferiram estar aqui ouvindo essas palavras divinas, esse relicário de luz celestial. Eu gostaria de chamar aqui no palanque um irmão especial, um irmão que tem um enlace profundo com Deus, um irmão que venceu que entregou o corpo e a alma para o Nosso Senhor Susej Otsirc, um exemplo de vitória de dedicação e amor ao próximo e pela obra de Deus, já que ele foi trazido aqui como desabrigado, sim, irmãos! Ele é uma cigarra. Meus caros, esse irmão estuda e trabalha. Hoje tem um salário acima da média. Só tem os finais de semana para lavar a roupa e limpar a casa. Hoje, irmãos, ele queria ter ido ao karaokê, mas preferiu servir a Deus. Ele é um excelente cantor, eu quero que todos os senhores saboreiem a sua música como se saboreasse a mais linda melodia entoada das alturas celestiais. Eu quero que vocês recebam com uma enorme salva de palmas a cigarra mais nobre desta Assembléia...NAAAAAAAAAAAROOOOOOOPA!!!!. Aplausos efusivos se ouviam e Naropa não conteve as emoções e começou a chorar, foi trazido ao palco quase arrastado, recompôs o fôlego agradeceu o carinho os aplausos e contou muito resumidamente sua história. Já ia descendo para voltar ao seu lugar ao que foi interceptado e compelido a cantar. Faziam até coro “Canta! Canta! Canta! Ficou muito

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embaraçado, pois as músicas de que gostava tinha letras com forte conotação erótica e definitivamente não seria apropriado ao local. Começou então a entoar o hino da igreja, deixando todos os adeptos muito emocionados. E assim se prosseguiu a vida da nossa cigarra que aprendeu tudo sobre como levar uma vida reta de acordo com a vontade do Pai Supremo. Casou-se com outra cigarra, obviamente da mesma igreja. Segundo a doutrina, cigarras só poderiam se casar com cigarras e formigas somente com formigas a mistura seria um ultraje, um pecado mortal contra a lei da natureza e, portanto a lei de Deus, embora fossem da mesma igreja partilhassem do mesmo ideal, nesse aspecto eles não eram iguais, ninguém sabe dizer a razão disso, a escritura diz que tem que ser assim e ponto final não se discute. Relacionamento homossexual também era algo ultrajante, coisa do Maligno. Quaisquer membros que tivessem essas tendências eram sumariamente exorcizados e isolados. Teve filhos e educou-os segundo os preceitos que aprendeu. E assim foi caminhando para velhice com a certeza de missão cumprida, mas também com a sensação de que deixou de viver muitas coisas. E isso passou como um flashback, um lampejo de sua vida inteira desde que nasceu, de todos os desejos que não foram satisfeitos de tudo que queria ter vivido e não viveu, num segundo enquanto estava tendo um ataque cardíaco preparando-se para deixar esse corpo... CAPÍTULO III COMEÇO DA LIBERTAÇÃO Transcorreram-se séculos e a cigarra de nossa história, Naropa, teve milhares de reencarnações, com diferentes nomes, ora como cigarra fêmea ora como cigarra macho, ora cigarra pobre, ora cigarra rica, as roupagens os nomes, as classes sociais iam mudando, só a mente condicionada dessa pobre cigarra é que não mudava, sempre repetindo os mesmos padrões tentando viver como formiga. Na atual reencarnação da nossa cigarra que coincidentemente recebeu novamente o nome de Naropa, jovem casado e com filho pequeno, vamos encontrá-lo saindo no meio de um culto e indo para um barzinho tomar umas biritas e pensar nesta angústia que o assola a cada dia, essa crise existencial. Quem eu sou? Qual é a razão de viver? Será que a vida é só trabalho, um pouco de diversão, depois mais trabalho para ter mais diversão, acumular mais coisa, mais bens, mais casas, mais carros e mais coisas para esposa e filhos, e quando agente acha que já está suficiente, aí já está velho, idoso pronto pra morrer de novo, pagamos o convênio funerário para ter um velório digno, com um caixão, compramos um

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pedaço de terra no cemitério, quer dizer, as nossas preocupações, os nossos desejos são tantos, que até pra depois da morte agente acumula coisas, se já não bastasse acumular coisas pra vida, acumulamos coisa pra quando tiver morto!É mole!? Por que agente sofre tanto? Por que tanta desilusão? Por que tanto desentendimento? Perguntas das quais a doutrina de sua igreja já não respondiam plenamente. As respostas das doutrinas religiosas são muito formatadas e a vida não é uma coisa formatada, possui muitas nuanças, muitas faces, muitas mudanças, muitas transformações. O que era resposta suficiente ontem, hoje já não é mais. Bebeu, começou a cantar, coisas que não fazia há muito tempo. Só que se empolgou demais no álcool e teve que ser levado carregado pra casa. No dia seguinte teve que agüentar o sermão da esposa: - Como assim? Que aconteceu? - Indagou a esposa. Naropa manteve-se calado. - Olha, você teve uma decaída, o anjo Gabriel também teve, vários irmãos tiveram, olha meu bem, nós vamos começar a ir todos os dias pra igreja, táh? Já falei com o reverendo e você iniciará um tratamento espiritual intensivo a base de corrente de oração 24h por dia pelos obreiros, ok? -Eu não vou mais a igreja – respondeu Naropa quebrando o silêncio. - Você VAI SIM! Diz a esposa no auge do desespero e quase entre lágrimas começa a gritar: “Sai deste corpo que ele não te pertence... SAI! SAI! Sai em nome do Senhor Susej Otsirc!” Estava quase sufocando Naropa, quando este se soltou e gritou: - QUE ISSO MULHER!!???TÁH LÔCA???Quem tá possuída é você agora, mulher!Táh...lôko, meu!!Sai fora! Saiu de casa batendo a porta e essa noite não voltou pra casa. Dormiu fora, no meio da floresta na escuridão, só a lua brilhante, sentiu medo e desconforto, nunca tinha dormido na mata, mas algo no seu inconsciente lhe dizia que aquela mata era o seu lar, aquelas árvores, aquele cheiro de mato, de chuva, de sereno, de orvalho, aquela lua linda há muito esquecida. Era época de primavera, mas o medo era uma constante poderia vir bichos de tudo quanto é tipo, predadores que poderiam papá-lo a qualquer momento, poderia chover forte e ele morreria ali mesmo afogado ou vítima de alguma doença, ao pensar nisso veio um desespero enorme, parecia uma recordação antiga de algo horrível que lhe aconteceu, ficou se imaginando enfermo a beira da morte, moribundo, sentiu ímpetos de levantar e voltar pra casa, mas ele não queria voltar. Sentia-se numa prisão dentro da própria casa. Pensou e pensou... A hora passou e ele acabou adormecendo. - “Psiu, ooi! Acorda, mano!!!””

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Naropa sentiu a água de uma garrafa caindo na sua cara, mal conseguia abrir os olhos, devido ao solzão que estava e aí começou a vislumbrar uma cigarra hippie, lenço vermelho na cabeça, calça de algodão larga florida, camisa de algodão sem gola e sandália, óculos redondo de lente marrom, cabelo comprido e barba por fazer. -“Ae, mano, tomou todas, hein...rsss!!? Óh, hoje tem mais, a noitada promete, vai vim umas mina de longe, pra esse sarau-rave, imperdível cara! Levanta ae tomá umas erva pra melhorá essa ressaca e turbiná pra hoje a noite, bora!!” Nossa cigarra foi levada para uma aldeia hippie e lá encontrou uma tribo pra lá de diferente...Todos com trajes esfarrapados, semi-nus, alguns até fedidos, sentiu certa aversão de momento, mas acabou se enturmando. Na hora de ir embora, foi convidado vivamente para a festa noturna. - Óh, mano, táh intimado a vim, heim, meu??nóis vai te busca lá se cê num vim, bele!!?? - disse um deles. -“Beleza, pode deixa! Eu só não venho se tiver morto”- respondeu. -“Memo morto, nóis qué ocê aki pá ti ressuscita, morô!!tá vendo essa galera aki??então!! Era tudinho cadáver, mano, nóis ressuscito tudo, oh o milagra ae”!!- riram todos em gargalhada. -Falow!- Despediu-se, entre risos e pensou “Que galerinha doida, pagã, se souberem com quem eu me meti capaz de me isolarem pra sempre na congregação” CAPÍTULO IV REVOLTA Ao abrir a porta de casa Naropa de deparou com a esposa em prantos e vários clérigos ao lado dela. -“ Glória Deus!!Aleluia!! O irmão voltou! A força de Nosso Senhor Susej Otsirc! Opera milagres! Querido, irmão Naropa, Susej te ama e não te abandonará” − Disse um dos vigários cigarra e abraçou Naropa. E continuou: – “Olha, irmão, eu sei exatamente o que você está passando, eu sou cigarra, sei como é difícil o caminho da integridade o caminho que Susej nos ensinou, mas você vai superar. Confie no Senhor! -“Olha, Vossa Eminência nunca se perguntou qual é o motivo de toda essa dedicação de todo esse esforço em negar a nossa natureza?” – indagou. - “Naropa, meu filho!! “O meu Reino não é deste mundo” é o que o Nosso Senhor sempre nos diz e você está cansado de saber disso. - Tem razão, doutrinador! – concordou - estou cansado de ouvir essa mesma ladainha durante séculos e nada acontecer, para mim chega, tô arrumando minhas coisas.

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- Olha aqui! - Encolerizou-se o cardial – Que você esteja cansado de freqüentar a igreja isso é compreensível, ou melhor, tolerável, porque não se pode compreender alguém que vira as costas para Deus que tanto o ajudou e amparou, portanto toleramos que você tire umas “férias” da congregação. Mas o que não toleramos é o abandono que está prestes a fazer com relação aos seus familiares, sua esposa e seu filho que tanto precisam de você. -“Ok! Arcebispo! Então se vocês´toleram´ que eu tire umas férias da igreja, então conlicença eu estou tirando as minhas, ok”?? - Retrucou. -Espere aí, aonde você vai? -Como assim, aonde eu vou? Te interessa? Não é férias? – redargüiu. -Calma, não precisa morder, nós estamos apenas te perguntando aonde você vai, só isso, custa dizer? - Reverendo! Eu não mordo, eu nunca mordi ninguém, não tenho dentes nem ferrão pra isso, se o senhor não sabe cigarra não tem dentes nem ferrões, diferente de formiga. Ok. Dito isso, se os senhores fazem tanta questão de saber aonde eu vou, eu vou para uma Rave que vai ter hoje à noite na floresta. Satisfeitos, agora? - Rave? Francamente! Não imaginei que você tivesse tão possuído!! - exclamou um dos monges inconformados. - Tá vendo!?- redargüiu – Falem direito, isso não é férias é liberdade condicional... Entendeu porque eu chamo esse contrato social chamado casamento, família e igreja, de prisão? - Francamente! Exclamou inconsolável o Papa Pio XII. Naropa arrumou as malas e saiu de casa, sob forte pressão psicológica, ameaçado no mais íntimo de seus medos, toda aquela ameaça sobre passar fome, necessidade, enfermidade e por final a morte como desfecho de um grande castigo imputado a um deus perverso autoritário que não permite que seus filhos vivam a Vida que Ele mesmo lhes deu. Nossa cigarra rebelde adentrava a floresta cheio de peso na consciência, cheio de culpas por ter dito aquelas palavras duras de ingratidão, e por um momento, sentiu-se o mais malévolo, o mais rebelde e mal criado dos filhos de Deus, haveria de pagar por isso, haveria de queimar no fogo do inferno ao lado dos hippies pagãos, haveria de sofrer como jamais havia sofrido numa vida inteira. Foi surpreendido novamente com uma jorrada de água fria, dessa vez foram três baldes de água muito gelada, era uma fêmea e dois machos hippies que o surpreenderam, deixando-o ensopado.Os hippies gargalhavam efusivamente e um deles gritou: - “Acorda!!zumbi, *humano”!! * O termo “humano” foi utilizado propositalmente para reforçar a característica do modus vivendi dos humanos que vivem como zumbis.

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-“Pra tá na nossa festa o bicho tem que tá ligado no 220, fique esperto, mano!!!”” Naropa ia soltar um palavrão xingando, mas se conteve - O CARALH......QUE MÉ.....MEU ceis são loko??? Gritou Naropa. -Fala brother, desembucha, aki cê naum tá na igreja naum...fala em alto e bom som “CAAAAAAARAAAAAAAAAALHO!!!QUE MEEEEEEEEEEERDA!!SEUS FILHO DA PUTA!!! VAI TACAR ÁGUA NA MÃE!! – Gritou efusivamente um dos Hippie – “Grite, Naropa!! Xingue!! Tá reprimido!? Mutilaram você, reprimiram você durante séculos. Dividiram a sua personalidade. Enfim... chega de filosofia e vamos se trocar, considere esse banho nosso batismo. CAPÍTULO V SARAU – RAVE DIONISÍACO A festa chegou junto com a cantoria e a dança, Naropa se chocou um pouco, porque viu dois machos se beijando e depois duas fêmeas e a festa era assim todo mundo se beijando, parecia um bacanal, eles diziam que era a festa Dionisíaca, a festa do deus do vinho, que reunia as Ninfas que dançavam em torno dele celebrando a colheita da uva, Dionísio é conhecido pelo nome de Baco, para outros povos, daí a origem do nome bacanal para referir-se as festas “surubas” da galerinha de hoje, as orgias. Dionísio é muito evocado pelos atores também, por suas festas serem um ritual de pura celebração à vida, assim como o teatro que brinca com a vida, faz dela um ritual de jogos de emoções. O teatro é uma brincadeira muito séria, mas isso são outros quinhentos, a técnica o comprometimento a entrega a disciplina nos ensaios, isso é a seriedade do teatro. Mas no dia da estréia, momentos antes das cortinas se abrirem, isso tudo tem que ser jogado fora e virar uma grande brincadeira. A grande Brincadeira da Vida. A balada rave ia se esquentando cada vez mais, por incrível que pareça, só tinha cigarras e uma delas com uma taça de vinho nas mãos e vestida de ninfa, ou melhor desvestida, porque estava seminua, agarrou Naropa pelo pescoço e disse: - “”Oh gracinha, tá tão quietinho bébe um pouco de vinho, bébe!!?? Vamos curtir este momento. E foi enlaçado, seduzido pela Nimpha, ao sabor do vinho, dançou, cantou e pela primeira vez em séculos sentiu-se sem passado em sem futuro, estava num eterno aqui e agora nos braços da nimpha, nunca tinha sentido um sabor de beijo tão gostoso, tão extasiante, sua pele seu tórax roçando nos dela, os membros em ereção, um corpo adentrando outro numa cópula, cheia de êxtase, cheia de energia da terra da

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kundaline, tal qual a abelha que deposita o pólen na flor, Naropa se entrelaçou naquela ninpha depositando seu pólen com um fluxo de energia tão grande, um fluxo orgásmico tão grande que a abelha se tornou flor e a flor tornou-se abelha, já não havia separação. Não havia duas cigarras fazendo amor, mas a manifestação do Amor nas duas cigarras que se fundiram uma na outra e se tornaram o Todo. CAPÍTULO VI O INVERNO E O TEMPO CIRCULAR - SANSARA Assim, os dias da primavera e do verão foram se passando e o inverno se aproximava. Nosso querido Naropa, já era outra cigarra, com os olhos mais brilhantes, mais integrado, com mais sabor de vida no seu suor, na sua pele, parece que estava mais saudável, tinha mais tônus. De um índio ou de um caboclo. Mas o fantasma do inverno ainda o assombrava, de súbito vinham aqueles pensamentos da doutrina, dos bispos, padres, pastores, preletores, reverendos e cardeais, os pais, esposa e toda vez que estava imerso nesses pensamentos profundos levava um balde de água fria. Naropa não agüentou e gritou colérico: -Escuta, qual que é o problema, hein? Várias vezes você fez isso, no começo, tudo bem era o tal do “batismo”, já peguei até uma gripe com isso. Mas e agora? -Olha Naropa, está chegando o inverno e vamos nos despedir, então nada mais justo te deixar preparadinho para o Velho. Este balde de água jogamos, pra te trazer pra cá, pro aqui agora que é só o que existe.Esse seus pensamentos anseios, medos, angústias, devaneios, não existem, o passado já foi não existe mais e o futuro ainda não aconteceu. Sua mente foi condicionada durante séculos a transitar por esses dois pontos passado e futuro. O presente, que é só o que existe, que é a eternidade, se perdia. Então, nessa reta final do outono, fique esperto, porque vai ter bastante balde de água fria. – disse rindo o hippie. Naropa achou meio sem graça essa brincadeira e achou muita estranheza no papo do hippie, já ouvira várias coisas estranhas, mas esse papo da mente, de passado, futuro e presente era o cúmulo da confusão. Tudo bem, entendia que nós ficamos às vezes lembrando-se das coisas boas e ruins que tivemos na vida e fazemos planos para o futuro isso é absolutamente normal e necessário até, se não como sobreviveríamos? Como evoluiriam? - “Muitas perguntas, né, mano?”– Disse o hippie como se adivinhasse os pensamentos de Naropa – É assim mesmo! A mente, o intelecto é bastante

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questionador, indagador e isso é bom! Muito bom! Somente através da dúvida é que a vida faz sentido, pois a vida é descoberta.” Aquelas palavras, tocaram fundo. Nunca tinha pensado que um hippie que leva a vida só na brincadeira, se veste como um mendigo e enche a cara com umas “birita”, que fala em gíria às vezes e nem toma banho direito, pudesse ter tamanha sabedoria. Ficou curioso para onde eles iriam, não agüentou a curiosidade e perguntou: - “Pra onde vocês vão quando começar a nevar?” O hippie olhou-o nos olhos, por um momento Naropa sentiu um calafrio, um misto de sentimentos, uma sensação de morte e então o hippie lhe respondeu: - “É isso mesmo! Estamos indo para morte!” E começou a gargalhar. Naropa não entendeu nada “Bicho doido”!- pensou. E começou a rir junto. - “Suicídio coletivo?”- perguntou, em tom de brincadeira. - “Eu não diria isso – respondeu o hippie serenamente – o suicídio é pra aqueles que estão fugindo. E nós não estamos fugindo de nada.” -Não estão fugindo do inverno? – indagou. -Não! Absolutamente! - Disse categoricamente o hippie. -Ué! Então por que vão se matar? – questionou novamente. -Mas eu não disse que íamos nos matar, você é quem está dizendo isso!Eu disse que íamos para morte, isso não significa que vamos nos suicidar. - “Ah! táh! Entendi” – disse, com um sorriso e que não estava entendendo bulhufas – “mais filosofias!” meu, como você ficou misterioso ultimamente, hein, brother!? Nem fala mais em gírias!!cê tem uma personalidade em cada estação do ano, éh?? - “Não só tenho uma personalidade em cada estação do ano, como em todos os dias da minha vida. Sabe por quê? Porque eu estou vivo e a vida é constante mudança, a vida é um rio e *``nós nunca entramos no mesmo rio duas vezes``. Só os mortos não mudam nunca, aqueles que vivem a mesma rotina durante anos, são cadáveres ambulantes, são robôs, são formigas. Sabe, Naropa, eu até te convidaria para onde vamos, mas eu acho que você deve conhecer o Grande Velho, o Velho Camarada, assim que ele é chamado, por nós.Todos nós o conhecemos, tivemos o prazer enorme de compartilhar um inverno com ele, foi o inverno mais sublime de nossas vidas. -Uau!! Deve ser um velho especial mesmo, pra conseguir ensinar a você uma coisa dessas... O cara é um gênio!! -Filha da mãe!!- o hippie dando uma chave de braço no pescoço de Naropa de brincadeira. Os dois saíram abraçados e rindo...

* Heráclito.

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CAPÍTULO VII SOLIDÃO E MEDO Estava numa gruta com uma fogueirinha acesa para se proteger do frio intenso que estava lá fora. Havia aprendido com os hippies a acender fogo, e os lugares onde havia gravetos e madeiras secas no inverno. O medo era uma constante, estava sozinho novamente. Como naquela noite em que fugira de casa, mas agora havia força maior em seu interior, algo no seu inconsciente lhe dizia que já passara por isso várias vezes, que aquilo não era novo. Na realidade era, pois nunca tinha ousado enfrentar um inverno sozinho, sem abrigo. Nessa encarnação nascera em família que já eram membros da igreja e cresceu com essa ideologia doutrinária, ouvira na palestra, histórias de cigarras que chegam desnutridas e com quadro grave de pneumonia. Achou que desta vez seria ele. Os hippies lhes deram um golpe, não havia velho nenhum, somente a espera da morte. Agora caiu as fichas.....agora entendeu o que o hippie queria dizer com “Estamos indo para morte”. Claro! Tão óbvio! Eles devem estar em algum lugar no meio da floresta, entre neves, aguardando a morte como ele e esperando ser levados pelo grupo de voluntários obreiros. Mas por que eles falariam tanto desse velho?Velho Camarada? Estava se lembrando da última recomendação que o hippie lhe dera “Brother, só não faz muita pergunta pra ele, bele??Ele é como a vida, também, não tolera muitas indagações, porque tem razão de existir no mistério”. A fogueira lentamente foi se apagando e adormeceu. Passou uma noite mal dormida pelo intenso frio, amanheceu o dia, mas estava cansado, sonolento. Precisava trabalhar para sua sobrevivência, ir catar gravetos e madeiras, bastante dessa vez, para que a fogueira não se apague antes do amanhecer, precisava encontrar alimentos. Anoiteceu e estava só pó, andou o dia inteiro atrás dos provimentos. Tinha bastante madeira dessa vez, mas nem conseguia direito se levantar para alimentar o fogo. Estava espirrando e com inflamação nas vias respiratórias. Pensou “Puta merda!!agora fudeu, tô doente!...é agora que vou bater as botas....Ai..meu deus!...caramba!!quê que eu fiz com a minha vida”! Estava um turbilhão de mix emoções, todas eles juntas, sentimento de culpa, de raiva, de frustração, de autopunição. A noite adentrava e ia ficando pior de saúde, tosse, febre, dores intensas pelo corpo, no máximo conseguia cochilar. E foi num desses cochilos que sonhou.

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Sonhou com uma reencarnação antiga em que estava na mesma situação, quadro grave de doença em meio à neve, sozinho e prostrado. Quando surgiu um grupo de formigas que o ajudaram a levantar-se, deram-lhe algo quente para ingerir e cobertores, deitaram-no em uma maca e o levaram a um abrigo. E foi assim... de cochilo em cochilo, entrava cada vez mais em seu subconsciente e desvendava a história de várias vidas pregressas. Amanheceu e estava ensopado de suor, vista turva. Achou que já estava tendo alucinações, pois via um vulto de uma cigarra velha, barba branca e túnica alva. Pensou “Ah!! Então esse é o tal Velho!!uma alucinação!” - Ué! E se for uma alucinação também, qual o problema, não é mesmo? – respondeu o Velho, que visivelmente lera seus pensamentos. – “Olha! – vou aproveitar que você está meio dopado pela gripe, fraco, não consegue falar muito, ou melhor, não vai perguntar muito, e vou falar um pouco. Os sonhos que você teve realmente são vidas passadas, embora tua igreja não concordasse muito com isso, você teve a prova. Esse acesso da memória ao teu passado foi para te elucidar sobre os condicionamentos que criaram em você. Essa idéia de Deus que te ensinaram, do papai do céu onipotente, onisciente e onipresente que está sempre vigiando suas ações, foi criado por uma única razão: o medo. O medo é a raiz. Nós temos medo de ser e ficar sozinhos. Rejeitamos veementemente o fato de que no fundo no fundo todos nós estamos sozinhos e não existe algo mais solitário que a morte. Por isso essa tal de morte é tão temida. Mas, como você pôde observar ela não existe! Não há o que temer! Morte é renascimento. Vida e morte são dois lados de uma mesma moeda, elas não são coisas separadas, são duas faces de uma mesma moeda. É cíclico! Como tudo na natureza. Dia e Noite. Noite e dia. Depois do dia vem a noite e depois da noite vem o dia. Juntos eles formam as 24 horas.Verão e inverno. Inverno e verão. Depois do inverno vem o verão e depois do verão vem o inverno. É claro que temos as estações intermediárias, mas você entende a idéia do ciclo? Juntos eles formam o ano. Eu já falei demais por hoje e já me vou. Você pode até achar que foi apenas um sonho ou uma alucinação, daqui a pouco os voluntários vão vir aqui, exatamente como você sonhou. Aí você pode escolher, continuar sonhando e ir com eles, aí o resto da história você já sabe, ou ficar e ver o que acontece. Cochilou de novo e foi acordado dessa vez pelo grupo de formigas obreiras de seu sonho, estava acontecendo exatamente como havia sonhado. Um grupo lhe dando algo quente para beber, estavam deitando-o numa maca ao que foram interrompidos. − “Esperem”! – tirando forças de um lugar que nem ele sabia de onde vinha – “Obrigado, irmãos! mas eu vou ficar, estou bem aqui.” − Vejam! ele disse “irmãos” é um dos nossos da congregação – disse um deles feliz – qual o seu nome irmão??

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Percebeu o quanto estava condicionado, robotizado em dizer aquela palavra “irmãos”, disse tanto essa palavra, durante, séculos, que saíra automaticamente da boca, naquela hora.Não tinha mais usado durante o verão, mas bastou reencontrar o passado distante que automaticamente como uma máquina proferiu a palavra, denunciando-o. Não queria dizer seu nome, mas para não ser indelicado disse “Naropa” a contra-gosto. - Naropa!! Claro! – disse um deles – o esposo sumido! Puxa! Glória Deus! Graças ao Nosso Senhor Susej Otsirc, encontramos o irmão!” Vendo que teria trabalho com eles, levantou-se. Auriu uma força gigantesca, da qual não tinha consciência. Tônus de um Deus só seu, interior, vinda do cosmo. Neste momento desapareceu febre, dores, cansaço, tudo! Uma grande consciência e lucidez tomaram-lhe a alma e com voz firme que jamais usara disse: - Olha! Eu vou ser bem claro e direto!!EU NÃOOO PEDI E NEM PRECISO DA AJUDA DE VOCÊS! Deixem-me em paz aqui, vão embora e procurem outro escravo, porque esse aqui já está liberto. EU SÓ SAIO DAQUI MORTO! Entendeu ou qué que eu repita? Diante de uma paulada dessa, acho que nem um búfalo ficaria. E foi assim que os obreiros saíram humilhados. Digo humilhados, porque a humilhação só existe para o ego. O ego é que se ofende. E é nos ditos humildes é que se encontram o mais perverso dos egos, que não saem de maneira alguma por baixo, sempre querem sair por cima. Óbvio! O ego nunca sai por baixo. - Ok! Irmão – disse um deles – nós fizemos a nossa parte. Deus tenha misericórdia de tua alma arrogante!! Sentiu ímpetos de responder àquele ultraje, quem esse doutrinador pensa que é pra chamá-lo de arrogante? “Só por ter recusado a ajuda, eu sou arrogante, então?”.Mas, resolveu ficar quieto, pois continuar aquela discussão seria se igualar e eles. As formigas samaritanas, saíram e no meio do caminho estavam proseando e uma delas disse: -“”Éh! Realmente existem irmãos que são possuídos fortemente pelo maligno e não tem mais cura, já diz nas escrituras que havia anjos decadentes que se revoltaram contra o PAI, porque queriam se igualar a ELE. Foram expulsos do Éden e formaram uma legião. São os demônios que habitam o inferno tendo como líder o satã, são plêiades de almas penadas que se queimam no fogo da própria soberba e caçam na Terra os que se assemelham a eles. Somente os que vivem uma vida reta e maculada de acordo com os preceitos da nossa igreja é que estão salvos e protegidos desses males” - Glória a Deus!!Aleluia, Senhor!! – responderam em coro os demais.

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CAPÍTULO VIII LAO TSU – O VELHO CAMARADA Enquanto isso na gruta vamos encontrar nossa cigarra Naropa, de pé, olhando fixamente por onde os voluntários foram embora, quase que incrédulo no que tinha feito e falado. Subitamente se deu conta que não mais sentia os sintomas da gripe, a garganta ainda estava inflamada, mas as dores musculares, a febre, o mal-estar, haviam simplesmente desaparecido. Sentiu uma sensação de poder. Havia acessado alguma coisa dentro do ser que tinha efetuado uma autocura, mas não fazia a mínima idéia do que era. Subitamente ouviu uma voz atrás dele. Pulou de susto. -“É a segunda camada! - disse o Velho, que estava sentado perto da fogueirinha que já estava quase apagando. Naropa, quase teve um enfarto, “dá onde esse velho apareceu”?- pensou. Sem deixar que Naropa indagasse, continuou: - “Nós temos * três camadas de forças, a primeira é aquela que usamos para trabalhar 8 horas por dia 40 ou 48 horas semanais, ela se esgota fácil, por isso precisamos recompô-la através de mais ou menos 8 horas de sono e três refeições diárias. A segunda camada é a chamada camada reserva de energia e é acionada geralmente nos momentos de emergência, de grande tensão. Vamos supor que depois de uma jornada de trabalho você jante, tome banho e se prepara para dormir, nesse momento a casa pega fogo. Família desesperada tentando salvar as crianças, você não pensa duas vezes, começa a apagar o fogo que se espalha cada vez mais rápido, nesse momento você acessa a segunda camada de energia e passa a noite em claro tentando conter o fogo, sem nenhum pingo de cansaço. A terceira camada é a chamada camada de energia cósmica, energia infinita. Você acessou essa segunda camada de energia.” *(Gurdjieff) A Cigarra não tinha palavras para descrever a satisfação de entrar em contato com conhecimentos tão profundos. Aproximou-se do velho, sentou ao seu lado e perguntou: - Se aquilo que eu sonhei era realmente uma vida passada, por que você não apareceu pra me esclarecer essas coisas? Tive que ficar reencarnado durante todo esse tempo? - Você estava muito adormecido naquela época, inacessível. - Inacessível? - Sim! Tudo isso aqui é um sonho, a grande maioria vive nele e pensa que está na realidade. O sonho não é só quando você está dormindo de olho fechado. Continua quando você abre o olho, se levanta e vai fazer a sua rotina, só que você não tem consciência disso, você não tem consciência de que ainda continua sonhando, mesmo de olho aberto.

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- ????????????- na cabeça de Naropa, mas evitou ficar perguntando muito. O velho continuou: - “Vou esclarecer melhor, quando você nasce, está no Tao, ou seja, existência pura, você não tem individualidade, não distingue pai, mãe, macho ou fêmea, pobreza ou riqueza. Para o nascituro tanto faz um berço de ouro ou um montinho de palha, ele é pura existência. Depois de uns anos, você começa a ter consciência de que sua mãe é o seu amparo ela é tudo pra você, pois te dá carinho e alimento. Mas o que você vai construir na sua personalidade vai ser baseado na reação dela em relação ao seu comportamento. Já é o nascimento de um “eu” falso o Ego. E aí vem o contato com os seus familiares, com os coleguinhas da escola e você vai construindo um EU a partir do outro. Você não é você. Você é o outro. Uma persona se forma, uma máscara se forma para você ser aceito e querido na sociedade. E nesse processo de desenvolvimento vem a cultura a civilização que vão deixando você cada vez mais antinatural. Você é mutilado para se ajustar na sociedade, proíbem você de fazer o que quer, tiram a sua liberdade através do medo e vão criando condicionamentos em você. Quando na vida adulta, você criou tantas máscaras que não tem nem idéia de quem você é. O perfil que você traça sobre você é superficial, é baseado primeiramente nos seus pais e familiares, depois no que a sociedade diz sobre você. Mas eu digo que o ego é absolutamente necessário é um mecanismo de sobrevivência sem o qual não conseguiríamos viver por muito tempo. Nós precisamos passar um bom tempo no falso para entender o verdadeiro. Tampouco devemos nos esforçar em acabar com o Ego, tentar matá-lo. Isto é perda de tempo. O ego não se mata, ele morre por si só. E assim transcendê-lo-emos. Se ficarmos lutando com ele cairemos num armadilha. “Bom!! Agora que você está melhor, vou te dar uma tarefa! Primeiramente vá buscar mais lenha e um rango, enquanto você vai andando buscar as coisas, eu quero que você fique alerta com seu corpo, prestar atenção onde pisa, prestar atenção na postura da sua coluna enquanto carrega a lenha, prestar atenção na sua respiração. A respiração deve ser diafragmática, pela barriga, você deve respirar a cada esforço que faz, a cada passo. Entende? Naropa fez que sim com a cabeça. - ‘’Tá esperando o quê, então?” Já ia saindo, não resistiu e perguntou: - O senhor vai ficar por aqui??ou vai embora?? -Olha! Você tem uma cota de perguntas diárias comigo, não importa quantas, isso não interessa. Então se você começar a fazer perguntas absolutamente fúteis e desnecessárias, quando chegar a vez das perguntas importantes, eu não vou poder te responder, porque já vai ter excedido o limite de cotas...então, eu sugiro que você comece a prestar mais atenção

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no que vai perguntar para não desperdiçar.Indague somente o que for de grande utilidade para o seu despertar. Beleza? -“Sim, senhor!” – Assentiu militarmente. Saiu para cumprir sua tarefa e enquanto andava pensou “Nossa! Mas que véio meio grosseirão! E ele falou’ beleza’usando a gíria do hippie? Talvez ele que tenha ensinado o hippie a falar daquele jeito ou foi o hippie que ensinou ao véio essa gíria? Talvez o próprio véio já tenha sido uma hippie”, enfim... não importava, o fato é que não podia deixar de admitir sua imensa sabedoria. Era um velho realmente diferente sentia algo imenso, uma energia que transbordava quando estava ao seu lado, nunca sentira isso por ninguém em toda sua vida. Queria perguntar-lhe várias coisas, como lera seus pensamentos? Como aparece de repente? Mas lembrou-se do fato que ele não tolerava muitas perguntas. Utilizou uma artimanha genial para isso, estabelecendo uma cota diária de perguntas. Subitamente escorregou num buraco e torceu a pata, gritou vorazmente e sentiu uma imensa raiva de si mesmo. Contorcia de dor, ficou assim durante uns 20 minutos. Tentou levantar-se, mas a dor era imensa e já estava inchado, sentiu ímpetos de gritar para que o véio o socorresse, mas sentiu-se envergonhado. Lembrou que havia se curado de uma gripe, quase que repentinamente, deu-se conta de que poderia fazer muitas coisas sozinho. O que aconteceu, foi culpa exclusivamente sua. O velho havia dito para olhar onde pisa, tomou consciência de que havia esquecido completamente as recomendações de prestar atenção na respiração, ficar alerta com o corpo. Desistiu de ir buscar as lenhas, pois nesse estado era impossível, mal conseguia se levantar, não estava muito longe da gruta, mas não sentia desespero em voltar, pois o que faria lá? Talvez o velho já nem estivesse mais lá. E mesmo que estivesse, não tava a fim de ouvir sermão, pois certamente ele iria falar da sua desatenção, estava farto de ouvir reprimenda e esse véio parecia bravo. Resolveu, ficar lá, encaixadinho no buraco que caíra, que não era tão fundo, ficou encaixado, sentado como se estivesse numa banheira. E lá passou o dia ora com uma sensação boa, ora com dores. Em alguns momentos chegava a se lembrar dos baldes de água fria que tanto tomou dos hippies durante o verão, agora caiu as fichas, entendeu o propósito da brincadeira e agora ria. Estava entregue a natureza, como uma folha que vai onde o vento leva, o medo da morte ia gradativamente se esvaindo à medida que se entregava. Estava anoitecendo e o frio aumentava, pegou um galho que estava a sua frente e foi se apoiando nele pra tentar voltar à caverninha nem que seja mancando, pois pensou bem, e se fosse pra morrer, gostaria de morrer naquela gruta que o acolheu, que agora sentia como se fosse sua casinha, seu aconchego.

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No caminho de volta estava mais alerta, estava escuro e não queria outro tropicão, foi mancando apoiado num pau de madeira que achara e usava como bengala, foi observando mais ao redor, procurou prestar atenção na respiração a cada esforço e se deu conta de que nunca tinha prestado atenção nisso, vivera de uma forma tão robotizada que até esquecera que respirava. E finalmente entendeu a finalidade do exercício. Chegou à caverna e teve uma surpresa, o velho estava lá, não só com a fogueira acesa e bastante lenha, como um delicioso rango. O velho olhou-o nos olhos e sorriu. Era o sorriso mais lindo que jamais tinha visto. Neste momento esqueceu completamente as suas preocupações a respeito das reprimendas que pensara à tarde. Aquele velho emitia uma energia que lhe inundava. Foi ajudado por ele a sentar-se e muito carinhosamente lhe ministrou um curativo enfaixando, o local torcido, com algumas ervas medicinais e lhe deu o alimento. Estava faminto e devorou-o. Nesta noite não trocaram se quer uma palavra, o êxtase do silêncio era tão sublime que não ousaram quebrá-lo. CAPÍTULO IX ELUCIDAÇÕES DO MESTRE Na manhã seguinte, sentia-se tão revigorado que quase não sentia mais dores, mas ainda não podia andar, queria muito buscar a lenha para retribuir tamanha generosidade, mas o máximo que podia fazer era agradecer. Começou a sentir um respeito tão grande por aquele velho que não conseguia mais chamá-lo assim, resolveu, então denominá-lo mestre: - Mestre, não tenho palavras para agradecer por ontem, mas eu queria dizer de coração Muito Obrigado! - “Filho! Quem tem que agradecer sou eu, por você ter aceitado minhas ervas e minha comida, quem dá é quem deve agradecer, você poderia muito bem não ter aceitado. A sociedade ensina que quem recebe é que deve agradecer, mas é o oposto.Vamos entender a psicologia profunda disso. Se eu dou algo pra você e você não me agradece e eu ficar ofendido, então eu não dei nada pra você, eu troquei com você, eu troquei o meu presente pelo seu obrigado. Mas aí a sociedade inventou uma desculpa dizendo ser uma questão de “educação”. É, concordo, realmente é uma questão de educação, porque educação foi uma coisa inventada pela sociedade civilizada para cultivar o ego. Quanto mais educada uma sociedade ou alguém, mais inflado é o seu ego.

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Aí, dizem: ‘É só uma questão de educação!’ Para dissimularem o egocentrismo, óbvio! O ego quer pelo menos um obrigado! Ele não aceita a idéia de não receber absolutamente nada. “Ah!!Eu estou cansado de me doar na obra voluntária! Estou cansado de dar e nada receber!” Isso se dá, porque não estão realmente dando ou se doando, estão barganhando.Tem outros que dizem não querer nada nem um obrigado, só o reino dos céus pra ela tá bom. Não é nem o reino da Terra, é o Reino dos Céus! É o cúmulo da ambição! Não há nenhum problema em dar ou agradecer. A civilização já os condicionou muito a isso, mas o importante é conscientizar-se disso, ficar alerta. - Uau! Nunca tinha pensado dessa forma – disse Naropa – Sabe, mestre, ontem, enquanto eu estava sentado machucado, andei pensando bastante sobre essa questão de reencarnação e lembrei-me de um amigo que me levou num reunião que abordava esse tema, na época, rejeitei completamente, pois como o senhor mesmo disse, meu antigo dogma repele essa idéia, mas os sonhos foram muito significativos para mim e depois dessa experiência,aqui neste inverno, não restou mais dúvidas. Lembro-me vagamente de ter ouvido que no mundo espiritual eles têm uma vida muito semelhante a nossa e que trabalham e até estudam enquanto esperam reencarnar e que há uma hierarquia espiritual entre eles também. Isso procede? − Sim, eles estudam e trabalham enquanto esperam reencarnar da mesma maneira que nós estudamos e trabalhamos enquanto esperamos desencarnar e isso não termina nunca é um ciclo infinito de encarnação e desencarnação

como o símbolo matemático do infinito ∞ de um lado encarnação de outro desencarnação. Encarnação, desencarnação, encarnação, desencarnação...E não tem fim nunca. Agora a questão da hierarquia espiritual, há alguns pontos que precisam ser entendidos. A própria palavra hierarquia nos trás a idéia de superior e inferior, acima e abaixo, melhor e pior e essas palavras são extremamente atraentes para o ego. Então a adoção dos termos, espíritos inferiores e espíritos superiores ou espíritos evoluídos e não evoluídos, mais evoluídos e menos evoluídos, são um tanto perigosa. Veja bem! Quem quer ser um espírito inferior? Qual ego não aspira ser espírito superior, um espírito mais evoluído? Aí começamos todo processo de reforma íntima, começamos a caridade, a trabalhar para doutrinar os espíritos inferiores e os obsediados, ajudá-los, auxiliá-los na prática da educação mediúnica, a fim de se evoluírem, se depurar, sob argumento de que estão resgatando ou expiando algo de um passado longínquo para tornar-se um espírito de luz, superior. E aí já caímos na armadilha do ego, que possui, artimanhas sutis, muito sutis para se alimentar. Muitos começam o trabalho mediúnico sob

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pressão de uma ameaça que diz “Se não for pelo amor vai ser pela dor.” Essa frase é de uma crueldade tão grande, pois toca no ponto mais fraco de todos os seres.Toca profundamente no MEDO, a raiz de tudo, já disse e torno a repetir.Você tem medo DA DOENÇA, de encarar sozinho os seus próprios fantasmas, os seus próprios espíritos trevosos, tem certeza que não consegue sozinho, vai precisar de ajuda. E aí foi aprisionado e se aprisionou. Falaram que você tem uma mediunidade muito aflorada, muito ostensiva, forte e que se não “educá-la” vai ficar constantemente obsediado, desequilibrado e doente. Portanto “precisa” trabalhar! E aí você começa a fazer os cursos de evangelização, educação mediúnica e curso para dirigentes e monitores e começa a toda semana durante anos a trabalhar como, médium vidente ou clariaudiente ou médium de incorporação ou doutrinador ou médium de doação de fluído vital, passista, existem inúmeros tipos de mediunidade não cabe aqui citá-los todos. O que importa é que você faz disso uma rotina, uma prática e tudo na vida que é uma prática se torna maçante, enjoativo, porque a vida não é rotineira, a vida é mudança constante como um rio que está fluindo na correnteza. Tem dias que você está com uma preguiça danada pra ir à reunião, mas você acha que são espíritos ociosos que estão “encostado” em você. Você não pode se dar ao luxo de ter preguiça, afinal é o dirigente, ou exerce um papel importante lá. Qual é o problema de ter preguiça? Mente vazia é oficina do diabo? Contrário, mente cheia é que atormenta, a mente cheia não importa de quê. De doutrina ou de sexo dá na mesma, eu diria que a mente cheia de doutrina é até pior, porque ela já se acha superior, há um ego inflado bem sutil lá, a mente cheia de sexo é apenas pervertida. A cabeça cheia não pára, ela se entope de atividades, desperdiça uma quantidade enorme de energia. Assim é a mente cheia, faz tudo no automático, como um robô, esquece até do corpo, esquece até que respira. É por isso que você não consegue ficar sentado em silêncio.Sua mente grita muito, os pensamentos vem a toda e isso reverbera no seu corpo e você não consegue relaxar, dá coceira, dá dores, tique nervoso com as pernas, dá de tudo e você acaba se levantando e ir fazer alguma coisa. O ócio é insuportável. Portanto, a mente cheia é que é o inferno! Se você está contente e feliz por estudar e servir, através da mediunidade, ótimo! Então vá! E desfrute do júbilo que é o ato de servir por si, só! Agora, não vá por obrigação, não vá barganhar uma colônia espiritual paradisíaca ou resgatar, expiar qualquer karma que você tenha cometido na outra vida, não vá com medo de ter que pagar pela dor, só o fato de você tá indo por obrigação já é uma dor. Ou tentar ser superior ou evoluído, isso não vai adiantar nada, é indiferente. Você está apenas barganhando, está

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alimentando sua ambição, está indo por “amor” a ela e de ser melhor que os outros. Ambição não é só por coisas materiais, por coisas espirituais também, aliás, por coisas espirituais ela é maior ainda, pois aprendemos que são eternas. Primeiro você precisa saber quem você é. Despertar! E depois florescer, algo que vem de dentro, nunca de fora, de uma prática. Se não, você sempre será dividido, personalidades divididas, as doutrinas criam uma cisão em você, um mecanismo de repressão. E é impossível transcender com a personalidade dividida. Se você tem uma relação conturbada com seus familiares, principalmente os pais, não fique tentando melhorar a relação só porque está escrito no livro Verdade da Vida ou na Sutra Sagrada, procure entender primeiramente você. Seja sincero com você mesmo, não tente ser perfeito, perfeição é uma meta e a vida não é meta. Seja inteiro, seja honesto com você, mesmo que ache que esteja errado, não tenha medo, pois a vida é erros também, procure saber o que é liberdade, ser livre e deixar livre, pois sem liberdade não existe mais nada, nem amor. A liberdade é o valor supremo, abaixo dele vem o amor, se você não for livre nunca vai amar de verdade. Voltando no começo da conversa que tratava das terminologias dada aos espíritos superiores, inferiores, puros, impuros, evoluídos, não evoluídos, semi- evoluídos, adiantados, atrasados, ignorantes, errantes, trevosos, Exus, pomba- giras e todos das 7, 14 e 21 linhas. A sugestão poderia ser chamá-los de espíritos conscientes, inconscientes e o intermediário semi-conscientes. Ou despertos, não despertos e semi-despertos.O ego agora vai ter que pesquisar e saber o que é consciência o que é despertar.

Os espíritos despertos são aqueles que pararam aqui ∞ bem no meio

do ciclo, não estão em nenhum dos dois lados. E ao mesmo tempo estão nos dois lados. Para eles não existe mais passado nem futuro, somente um eterno aqui agora, um eterno presente. Pararam o tempo cronológico que caminha na horizontal, como os trilhos de um trem, o trem caminhando sobre os trilhos como se fosse a passagem do tempo, ou seja, nascimento, crescimento e morte. Estão num tempo vertical ascendente. São como um espelho, pura consciência, sem mente, a gota que virou oceano e o oceano que se perdeu na gota. Os semi despertos estão caminhando para o centro de si mesmo, já sabem que vivem um sonho, compreenderam o que é o sono e os condicionamentos.Vislumbraram a encruzilhada dos tempos e começam a tomar o caminho vertical, só que antes precisam descer primeiro,

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mergulhar nas profundezas, no abismo de seu ser, nos vales sombrios, para depois ascender ao cume. Os não despertos estão em total inconsciência, vivem automaticamente, como um robô, estão totalmente identificados com a mente e não vislumbram se quer a idéia de ser algo, além dela. De tal maneira que não existe hierarquia somente estados. - Já que o senhor tocou no assunto – interrompeu Naropa - Aproveito para levantar uma questão que nunca consegui conversar a vontade com ninguém e as doutrinas sempre me davam respostas que não me satisfaziam. Os pensamentos e desejos sexuais são muito intensos na minha vida, não tive muitas parceiras e a questão da bissexualidade também me aflige. É algo que eu ainda não consigo superar de mim mesmo. - “No passado o sexo foi muito reprimido pela igreja, que tinha seus próprios interesses políticos para isso, contenção da taxa de natalidade e outras coisas. No mundo moderno a questão é outra. Carregamos ainda os reflexos dessa repressão sexual. Hoje, vivemos um liberalismo geral. É como se fosse um pêndulo, na mesma intensidade que reprimimos algo essa coisa se explode no outro extremo. Não tem jeito de não ser assim. Portanto é preciso entender o que é o sexo. Sexo é energia. Não adianta sufocar essa energia para se livrar dela, ela vai continuar ali e voltará com mais intensidade. Portanto, se quer se ver livre dela, expresse-a. Bote pra fora. Com relação à bissexualidade e a homossexualidade, é o que eu tinha dito pra você em relação ao ego. O ego você construiu a partir do outro, a máscara social que você criou para ser aceito na sociedade, a opinião do outro faz parte do ego. E às vezes essa opinião ficou tão enraizada em você, no seu condicionamento que você o tomou para si, passou agora a ser sua opinião, passou agora a ser o seu conceito. Qual é o conceito que o outro tem dos homossexuais? Você foi condicionado a repelir a idéia de dois seres do mesmo sexo se copulando, você aprendeu o conceito de que isso é antinatural. Mas assim mesmo você observa isso no reino animal e no reino dos homens. Casais homossexuais felizes. E o que é pior, você começa a se interessar por isso, começa a se sentir atraído pelo mesmo sexo. Ou se dá conta de que sempre se interessou, mas foi reprimido e se reprimiu. E aí você se divide, uma personalidade que está atraída e outra condenando, se sente envergonhado. Entendeu? É o outro, olha a opinião do outro ai, o que os outros vão falar? Vão caçoar!E aí você não suporta a idéia de ser caçoado. Mas, qual é o problema, não é? Independente de ser gay ou não! Hetero, homo, bi, a galera zoa mesmo, com qualquer um e com qualquer uma, existe piada pra tudo, pra todos os gostos e assim é a vida também, uma grande zueira, uma grande piada! A vida levada muito a sério fica muito intelectual, fica muito mental.

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Então a tarefa que eu te dou para o próximo verão é: “Trepe bastante!!, com preservativo, e não escolha sexo não...pega o que vier...seja um útero totalmente receptivo, aberto, pegue o que o vento te trouxer como uma flor que dá, mas também recebe polens.” Naropa, não se agüentava de rir. Nunca tinha conhecido uma pessoa de tão rara beleza, que mestre!! CAPÍTULO X A DESPEDIDA E assim se passaram as semanas e já estava totalmente recuperado, fazendo suas tarefas, caminhadas bem mais alerta, o mestre lhe havia explicado sobre a meditação, dissera que a melhor definição que deram para ela é *TESTEMUNHAR. Não há necessidade de ficar horas sentado com o traseiro formigando para dizer que está meditando.Ela pode ser feita andando, trabalhando, comendo. No começo o mestre havia lhe dado alguns exercícios físicos para que através da exaustão corporal a mente pudesse parar um pouco. Depois foi lhe ensinando a observar seus pensamentos e não se identificar com eles, observá-los como nuvens no céu e ele um viajante voando, as nuvens vem e vão, assim deve ser os pensamentos vem e vão, tampouco devemos expulsá-los se forem ruins ou apegar-se se forem bons, devemos apenas observá-los, como uma testemunha, sem julgá-los. O inverno já se findava e não acreditava que pudesse ter superado uma temporada inteira sem casa, está certo que devia grande parte de seu sucesso ao querido mestre. E é com ele que vamos encontrá-lo proseando: -“Meu querido, Naropa, o verão se aproxima e você tem tarefas, espero ter contribuído um pouco para sua libertação e despertado em você a força da liberdade para que você não seja mais prisioneiro, primeiramente de você mesmo e de qualquer instituição social nem de ninguém e eu estou incluso nisso, eu quero que você se livre também de mim, hoje é o nosso último dia e eu quero que você saiba que foi muito bom ter você como um sanyasim, você foi o único pra mim, assim como todos os outros, cada um é único pra mim. E eu os amo todos”. Naropa estava em prantos, lágrimas de muita emoção escorriam de seus olhos, voz embargada, não conseguia falar nada. E também não era necessário nenhuma palavra naquele momento. Somente um forte abraço. * Definição de Gautama Buda.

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Epílogo Naropa acabava de sair de um gostoso banho de rio, se trocou, blusa branca de algodão, calça larga, sandálias de couro, lenço na cabeça, cabelo comprido e barba. Havia adquirido tamanha sensibilidade com o barulho da floresta que era capaz de distinguir há distância, os animais que se aproximavam. Mas esse barulho não era muito comum, andou em direção ao som, conforme se aproximava viu o corpo de uma cigarra com calça e camisa social toda encardida e estirada no meio da floresta, roncando feito um mendigo bêbado. Pegou o cantil de água e começou a jogar no rosto da cigarra e disse: - “cóorda, meu! A noitada foi boa, hein??! Tomou todas? - disse rindo – Olha! Vô te dizê uma coisa, a noitada de hoje promete! Será inesquecível pro resto da tua vida. É o seguinte... E assim viveu muitos verões, invernos, primaveras e outonos. Reza a lenda que ele viveu até ficar bem velhinho, embora tivesse tentado, nunca mais encontrou seu mestre, mas dizem que se tornou o próprio. FIM

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Posfácio Sempre sonhei em escrever um livro, mas nunca consegui se quer passar do primeiro parágrafo, ficava perdido no tema. Ambicionava escrever um romance magnífico, com uma riqueza lingüística e gramatical perfeita, somente utilização do vernáculo sofisticado e refinado da nobreza. Pretendia escrever um romance sobre as famílias ricas de Nova York do século XIX ao estilo de Edith Wharton, teria que ter muitas páginas umas 300 no mínimo. Passavam-se os anos, lendo, lendo, lendo, assistindo a filmes para inspiração, mas na hora de sentar-se e escrever o texto não passava de algumas linhas. Também! Com tamanha pretensão, fica difícil escrever até mesmo um conto de uma página de 30 linhas! Outros temas foram surgindo, mas a preocupação em escrever certinho, sem erros, segundo a norma culta, ainda bloqueava-me. Enfim, desisti de escrever. Foi numa tarde de Setembro de 2009, em que estava na casa de uma pessoa papeando sobre as trivialidades do cotidiano, foi que ela me falou que seu filho, Ryen então com sete anos de idade, precisava fazer uma tarefa de casa, escrever a estória da cigarra e da formiga com suas próprias palavras. No caminho de volta achei muito interessante a proposta e vim pensando, rememorando a estória da cigarra que vivia cantarolando no verão enquanto as formigas davam o duro, só ‘ralando’ o dia inteiro. Chegava o inverno a cigarra não tinha pra onde ir, sem casa, sem lenço nem documento, batia na porta das formigas, mas elas fechavam na cara. Assisti ao desenho animado dessa fábula na TV nos programas infantis da minha época e até hoje lembro-me claramente desta cena. Fora o que ouvi na escolinha também. Eu sei que no dia seguinte durante minhas meditações, tive um ``Insight.`` Por que não reescrever esse conto, singelamente, despretensiosamente, em linguagem informal, como se estivesse escrevendo um e-mail ou num blog de amigos? Desde que comecei a ler, com assiduidade, em meados de 2008, os livros do Osho ou Bagwan Shree Rajneesh para os mais íntimos, passei por uma significativa transformação. Era como se a cada livro começasse a me entender cada vez mais, já havia entrado em contato com seus ensinamentos na escola de Teatro (entre 2004~2006) com um professor que nos ministrava exercícios físicos desenvolvidos por esse grande mestre do nosso século, para nós ocidentais. Era dada a aula da importância que tem o ator de conhecer bem o seu corpo, ter grande consciência sobre ele uma vez

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que é a sua principal ferramenta de trabalho. Fizemos várias atividades e workshops de autoconhecimento, para inclusive saber lidar com as emoções, outra ferramenta de trabalho do ator.Vários exercícios de desmecanização cuja finalidade e o objetivo vim a entender só agora. Após me formar em artes cênicas, fiquei afastado da minha profissão, a fim de me aventurar. E só depois dessas experiências que muitas “fichas” caíram, coisas que aprendi nas aulas que só agora entendi. Igual Naropa que começou a entender só depois de um tempo. Portanto essa singela obra que nem sei se será publicada algum dia, eu dedico à Vida, ao mestre Osho, a pessoa e seu filho que me inspiram o tema. Já vou me adiantando nas referências bibliográfica. E vou indicando vivamente as seguintes obras, todas do OSHO: CONSCIÊNCIA- A CHAVE PARA SE VIVER EM EQUILÍBRIO O que é dito sobre consciência nessa estória, através das falas do Velho, são muito superficiais, sugiro ao leitor que pesquise mais, diretamente com o mestre OSHO. Nesse livro o tema Consciência é esmiuçado com detalhes mais profundos. E de quebra eu já recomendo: -CORAGEM – O PRAZER DE VIVER PERIGOSAMENTE. -LIBERDADE – A CORAGEM DE SER VOCÊ MESMO. -A HARMONIA OCULTA – fragmentos de Heráclito. -EU SOU A PORTA – esgotado na editora. -ENCONTRO COM PESSOAS NOTÁVEIS. -GUERRA E PAZ INTERIOR – BHAGAVAD GITA -O LIVRO DOS SEGREDOS Outro ponto pertinente a comentar da obra é a utilização do anagrama Susej Otsirc. A imagem e o conceito desse grande mestre que foi Jesus Cristo foi tão distorcida pelas doutrinas que o adotam como líder, que o viraram do avesso, assim, seu nome também está inverso nesse livro. Jesus foi um homem comum que amava imensamente a vida, amava-a tanto que transcendeu os limites da vida e da morte e se budificou em Cristo. Osho nos explica no livro ENCONTRO COM PESSOAS NOTÁVEIS quem foi essa figura magnífica chamada Jesus Cristo . Naropa é o discípulo de Tilopa, juntos, eles formam o diálogo da canção de Mahamudra, minuciosamente explanada pelo mestre no livro TANTRA – A SUPREMA COMPREENSÃO. O uso do “e” comercial (&) no título do livro Cigarras & Formigas, foi usado com o propósito de passar uma idéia de mundo corporativo dos dias de hoje. Foi proposital, também, o uso misturado das palavras: pastor, preletor, reverendo, cardeal, bispo, vigário, padre, doutrinador, obreiro,

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samaritano, médiuns e outros. Designações essas, usadas nas diversas igrejas, porquanto a intenção do Conto é abranger todas essas doutrinas e não focar em uma. Finalmente gostaria de salientar que esta obra despretensiosa, de caráter absolutamente informal, se lida muito ao pé da letra, muito intelectualmente, você encontrará muitas contradições e absurdos. Abro um parênteses aqui me desculpando, também, de eventuais erros gramaticais, incluindo, pontuação, ortográficos, morfológicos, sintáticos, semânticos e regenciais. Frases e orações da linguagem falada pelos jovens, em total desacordo com a norma culta e o uso de gírias e até de palavras chulas, de baixo calão (palavrões e xingamento). E, eu, autor, tomo a liberdade de admitir quaisquer contradições, e exímo-me de quaisquer pretensões moralísticas, pois a vida é moralidade e imoralidade. Mestre Lao Tsu certa vez disse a Confúcio que a moralidade só existe por causa da imoralidade. É o giz branco que consegue riscar o quadro negro fazendo-se visível a palavra ou o desenho. Uma é contraponto da outra. Convivem juntas. Negar uma em prol da outra é cair nas armadilhas do julgamento. Do Sansara. O mesmo podemos falar da amizade, também. Toda amizade tem um fundo de inimizade e toda inimizade tem um fundo de amizade. Todo momento de amizade precede um momento de inimizade. É apenas uma questão de tempo do amigo se tornar inimigo, da amiga se tornar inimiga. Todo inimigo esconde um amigo. É a harmonia dos opostos!

Assim, palavras são só palavras, nós é que damos o sentido moral ou imoral a cada uma delas. Ainda no gancho de LAO TSU, o TAO não pode ser dito em palavras, o TAO ( Natureza Suprema) é inexprimível, se tentar expressá-lo, já não será mais o TAO puro, já o terá matado, ao usar as palavras já matamos a verdade, mas não tem jeito. É o único canal possível para, pelo menos, despertar o desejo de buscar a verdade, pois quando a encontramos, um grande silêncio nos invade, somente o silêncio fica. Os grandes mestres dizem que, no máximo, você pode tentar cantar ou dançar a verdade, poetizá-lo, como a Canção de MAHAMUDRA de Tilopa. E foi o que Lao Tsé fez, escreveu poemas a pedido de seus discípulos, no livro TAO TE CHING. Cigarras & Formigas também é necessário ser lido com o coração, caso contrário será mais um conto absurdo. De caráter socialista e reacionário.

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