cidadania insurgente - legalizando o ilegal

26
 LEGALIZADO O ILEGAL: propriedade e usurpação no Brasil(*) James Holston Como podemos pensar o direito se o sistema jurídico não objetiva resolver os conflitos, se é um meio de perpetuar e obscurecer as disputas em vez de resolvê-las? Neste ensaio, revelarei o poder de uma tradição desestabilizadora: o sistema jurídico brasileiro não objetiva nem resolver os conflitos de terra de maneira justa, nem decidir sobre seus méritos legais através de procedimentos judiciais. Meus argumentos enfatizam a norma e a intenção pelas quais, no Brasil, a lei da terra, nos seus próprios termos, é tão confusa, i ndeci sa e disfu nci onal. E po ssív el suspeitar que as causas d essa s carac terísti cas não se jam somente incompetência e corrupção, mas a força de um conjunto de intenções subjacentes às suas construção e apli caçã o, i nten ções essas bem d i f erentes daq uel as vol tadas para as resolu çõe s das disputas. Assi m , argumento que a lei bra sil eira p rod uz regul armente, nos confl i tos de terra , proced i mentos e conf usão irresolúveis; que essa irresolução jurídico-burocrática às vezes dá início a soluções extrajudiciais; e que essas imposições políticas, inevitavelmente, terminam por legalizar algum tipo de usurpação. Em suma, a lei de terra no Brasil promove conflito, e não soluções, porque estabelece os termos através dos quais a grilagem é legalizada de maneira consistente. É, por isso, um instrumento de desordem calculada, através do qual  práti cas i l eg ais produ z em l ei, e sol ões extral eg ais são i nt rodu z i das cla ndes ti nam en te n o processo j udi ci al .  Nesse con tex to repl eto de paradox os, a l ei é um i ns tru m ento de m ani pul ação, com pl i cação, est rata ge m a e violência, através do qual todas as partes envolvidas - dominadoras ou subalternas, o público e o privado - fazem valer seus interesses. A lei define, portanto, uma arena de conflito na qual as distinções entre o legal e o ilegal são temporárias e sua relação é instável. Para clarear essas questões, analisarei um caso de fraude de terra na formação da periferia de São Paulo.(1)  Meus objetivos nessa análise são, em primeiro lugar, oferecer uma etnografia de um conflito de terra notável por suas muitas dimensões; em segundo lugar, entender a relação entre a lei e a sociedade que ele revela; e, em terceiro lugar, tecer considerações a respeito de aspectos da antropologia da lei que ele  probl em atiza. Es se caso i l us tra o si g nificado f u ndam en tal da ileg al i dade nas ocu pações de terras no Brasi l ,  bem com o os cam i n hos que l i g am as com pl i cações l eg ai s à l eg i ti m ação dos direitos sobre a ter ra u su rpada. Ele também nos mostra as raízes históricas dessas práticas, já que sua complexidade, titânica mas singular, nos leva através de nada menos que 400 anos de história que dão sentido às disputas atuais. Desse modo, encontramos as relações estruturantes entre terra e lei, que sustentam os conflitos, desde o desenvolvimento da política fundiária portuguesa, pensada para ser um instrumento de colonização, até as tentativas imperiais e republicanas de utilizar a reforma da propriedade da terra para trazer imigrantes europeus livres para o Brasil.(2)  Essa investigação também revela que as grilagens de terras atuais repetem velhos esquemas, com 24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade anpocs.org.br/portal/…/rbcs21 07.htm 1/25

Upload: miguel-bustamante

Post on 05-Oct-2015

7 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Propriedade e usurpação no Brasil.

TRANSCRIPT

  • LEGALIZADO O ILEGAL:

    propriedade e usurpao no

    Brasil(*)

    James Holston

    Como podemos pensar o direito se o sistema jurdico no objetiva resolver os conflitos, se um meiode perpetuar e obscurecer as disputas em vez de resolv-las? Neste ensaio, revelarei o poder de umatradio desestabilizadora: o sistema jurdico brasileiro no objetiva nem resolver os conflitos de terra demaneira justa, nem decidir sobre seus mritos legais atravs de procedimentos judiciais. Meus argumentosenfatizam a norma e a inteno pelas quais, no Brasil, a lei da terra, nos seus prprios termos, to confusa,indecisa e disfuncional. E possvel suspeitar que as causas dessas caractersticas no sejam somenteincompetncia e corrupo, mas a fora de um conjunto de intenes subjacentes s suas construo eaplicao, intenes essas bem diferentes daquelas voltadas para as resolues das disputas. Assim,argumento que a lei brasileira produz regularmente, nos conflitos de terra, procedimentos e confusoirresolveis; que essa irresoluo jurdico-burocrtica s vezes d incio a solues extrajudiciais; e que essasimposies polticas, inevitavelmente, terminam por legalizar algum tipo de usurpao. Em suma, a lei de terrano Brasil promove conflito, e no solues, porque estabelece os termos atravs dos quais a grilagem legalizada de maneira consistente. , por isso, um instrumento de desordem calculada, atravs do qualprticas ilegais produzem lei, e solues extralegais so introduzidas clandestinamente no processo judicial.Nesse contexto repleto de paradoxos, a lei um instrumento de manipulao, complicao, estratagema eviolncia, atravs do qual todas as partes envolvidas - dominadoras ou subalternas, o pblico e o privado -fazem valer seus interesses. A lei define, portanto, uma arena de conflito na qual as distines entre o legal eo ilegal so temporrias e sua relao instvel.

    Para clarear essas questes, analisarei um caso de fraude de terra na formao da periferia de SoPaulo.(1) Meus objetivos nessa anlise so, em primeiro lugar, oferecer uma etnografia de um conflito deterra notvel por suas muitas dimenses; em segundo lugar, entender a relao entre a lei e a sociedade queele revela; e, em terceiro lugar, tecer consideraes a respeito de aspectos da antropologia da lei que eleproblematiza. Esse caso ilustra o significado fundamental da ilegalidade nas ocupaes de terras no Brasil,bem como os caminhos que ligam as complicaes legais legitimao dos direitos sobre a terra usurpada.Ele tambm nos mostra as razes histricas dessas prticas, j que sua complexidade, titnica mas singular,nos leva atravs de nada menos que 400 anos de histria que do sentido s disputas atuais. Desse modo,encontramos as relaes estruturantes entre terra e lei, que sustentam os conflitos, desde o desenvolvimentoda poltica fundiria portuguesa, pensada para ser um instrumento de colonizao, at as tentativas imperiais erepublicanas de utilizar a reforma da propriedade da terra para trazer imigrantes europeus livres para oBrasil.(2) Essa investigao tambm revela que as grilagens de terras atuais repetem velhos esquemas, com

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 1/25

  • Brasil.(2) Essa investigao tambm revela que as grilagens de terras atuais repetem velhos esquemas, comuma diferena: os pobres hoje competem regularmente nas arenas legais das quais eles tinham sido excludos-no porque a lei est agora mais preocupada com a justia ou com solues, mas porque eles aprenderam,muito em funo das disputas de terra, a usar as complicaes da lei para obter vantagens extralegais.

    A razo para desenterrar essa histria complexa no somente analtica. Os conflitos de terra sotambm, explicitamente, disputas sobre o sentido da histria, porque opem interpretaes divergentes arespeito da origem dos direitos de propriedade. O centro nevrlgico desses casos a busca por um ttulo, abusca pelas origens que justificam ou desqualificam alegaes. Assim, logo descobri que a disputa emquesto no fazia sentido a menos que fosse retraada ao longo do tempo. Litigantes, advogados, juzes,moradores e grileiros: todos estudam a genealogia do conflito para basear seus argumentos atuais sobre aautoridade da histria - que, neste caso, comea em 1580. Eles operam segundo uma premissa, bsica paraos direitos de propriedade em muitas sociedades, que diz o seguinte: precedentes histricos conferemlegitimidade. Todavia, no necessariamente. Uma posio alternativa, adotada, por exemplo, por muitosmilitantes da Igreja Catlica nas disputas de terra, argumenta que a necessidade presente desqualificaprecedentes. No entanto, como veremos, as partes em disputa adotam mais comumente uma estratgiahistoricizante: elas se utilizam da lei para conferir s suas alegaes origens histricas crveis. Na maioria dasvezes, contudo, elas emergem de maneira altamente ambgua, e muitas so deliberadamente falsas.

    Se a procura por origens tem o objetivo de descobrir precedentes capazes de justificar um conjuntode alegaes que subvertem um outro conjunto de alegaes, ento minha pesquisa sobre origens tambmtem l suas intenes corrosivas. Mostro o quanto esto tomados por uma fico jurdica, no somente paradesqualificar o apelo histria que neles feito, mas tambm para questionar aquilo que ainda umprincpio, na antropologia jurdica, e que rege a idia de lei e sua explicao como funo: a lei, comoinstituio, est baseada na sua funo de manter as condies necessrias vida social. Seja considerando-a em termos de coeso, como consta na literatura mais antiga, seja, por outro lado, em termos de hegemoniae resistncia, como aparece nos escritos mais recentes, a lei responde a necessidades sociais principalmenteresolvendo conflitos e reforando a conformidade s normas, no mais das vezes segundo noes do que direito, justo e bom; e sua inaptido para tanto o resultado de algum fator estranho sua natureza, comoincompetncia, corrupo ou poltica.(3) Neste ensaio, estou especialmente atento a esse ltimo ponto e sconseqncias tericas implicadas na excluso de tudo o que desagregador do modelo explicativo.

    Para lembrar um exemplo clssico, Schapera (1985: xxv) explica por que ele exclui, de seu manualda lei de Tswana, as violaes, abusos, e "muitos subterfgios utilizados para evitar a lei", alegando que osnativos talvez ficassem ressentidos com "a incluso daquilo que constitui, no final, abusos e no partes da lei". claro que antroplogos das mais diversas filiaes tericas tm descrito esses aspectos dos sistemasjurdicos chamados extrnsecos ou latentes (ver Nader 1965, pp.18-21 para exemplos de um tipo deetnografia mais antiga). No entanto, numa observao sagaz, vlida at hoje, Nader (1965, p. 21) escreve:"Na maior parte das vezes, a incluso dessas funes extralegais na literatura antropolgica tem sidomeramente anedtica. (Essas funes extralegais) no devem ser tomadas como sendo ilustrativas da lei;mais que isso, elas so exemplo do que deve ser includo em qualquer estudo etnogrfico da lei que mereaesse nome".(4) Estudos antropolgicos mais recentes rejeitam essas vises essencialistas e funcionalistas dalei e focalizam conflitos, a poltica e os discursos.(5) Todavia, apesar desses estudos acertarem na nfasedada maneira pela qual o poder move os sistemas jurdicos, eles no problematizaram a prpria idia de leiatravs de uma reflexo sobre o seu lado mais obscuro, qual seja, a sua. relao com os fatores utpicoscontidos nas idias de justia, harmonia e resistncia. Assim, numa discusso sobre a lei brasileira, Shirley(1987, p. 89) atribui suas disfunes a um "fosso entre a lei formal e a lei aplicada". Tal dicotomizao no privilgio da antropologia, e tem conseqncias importantes. O ensino brasileiro do direito geralmente atribuio caos da lei, evidente e paralisador, ao fosso que Shirley elevou condio de conceito analtico.Estudantes de direito so ensinados a considerar a lei formal do Brasil como sendo baseada em valores

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 2/25

  • transcendentais, prprios de uma cultura jurdica liberal, corrompidos por interesses concretos, de classe edo Estado. No que segue, no ponho em dvida o fato de que princpios utpicos possam existir na lei, oumesmo que eles sejam desejveis. Minha dvida recai sobre o carter externo dos percalos da lei comrelao sua prpria estrutura.

    A periferia fora da lei

    Desde a dcada de 40 deste sculo, a maioria dos trabalhadores de So Paulo enfrenta um duplodilema de moradia. Por falta de opes, eles tm que construir suas prprias casas; mas, para encontrar umlote que seja acessvel, eles precisam ir cada vez mais para a periferia - "para dentro do mato", como dizem -, onde a nica infra-estrutura a estrada de terra que especuladores das imobilirias e companhias detransporte que atuam na rea construram para vender as terras. Na medida que os especuladores abrem aperiferia para milhes de trabalhadores, a fora dessa dupla necessidade eleva a taxas altssimas a expansoda periferia urbana.(6) No esquema clssico de autoconstruo, os moradores primeiro levantam barracosde blocos de concreto ou madeira, e ento, durante dcadas, vo transformando-os em casas acabadas,decoradas e mobiliadas (ver Holston, 1991). Como resultado desse processo, a casa prpria quase umanorma na periferia, sendo uma realidade para 60 por cento das famlias, ao passo que 30 por cento delasalugam suas moradas, e 10 por cento vivem em casas emprestadas pelos proprietrios - muitas vezes, seusparentes (Metr 1990, p. 30). Salvo raras excees, as pessoas iniciam a autoconstruo de duas maneiras:comprando ou simplesmente invadindo os lotes. No entanto, ambas as opes acabam, quase queinvariavelmente, levando a alguma forma de residncia ilegal.(7) Aqueles que ocupam um terreno invadidono tm direitos sobre ele, embora haja na Justia uma tendncia em reconhecer a propriedade daconstruo nele erguida. Aqueles que compram os lotes, e que teriam assim suas propriedades assentadassobre alguma base legal, normalmente constatam que os mtodos ilegais de venda dos empreendedoresimobilirios - desde a grilagem at a no instalao, obrigatria por lei, dos servios urbanos - terminam porprejudicar o reconhecimento jurdico do contrato. De fato, a Secretaria de Planejamento de So Paulorecentemente estimou que nada menos do que 65 por cento do total da populao residem violando seja leisde propriedade, seja leis de moradia (Rolnik et al, 1990, p. 95)! Invadindo ou comprando a terra, a maioriadas pessoas parece entender o paradoxo central de sua situao: a ilegalidade de seus lotes faz com que aterra seja acessvel queles que no tm como pagar pelos preos mais altos, de aluguel ou venda, dasresidncias legais. Mais significativo ainda, essa ilegalidade, eventualmente, incita confrontao comautoridades legtimas, em meio qual, depois de uma longa batalha, os moradores normalmente conseguemlegalizar as suas precrias reivindicaes pela propriedade. A moradia ilegal uma maneira comum e seguraatravs da qual a classe trabalhadora pode ganhar o acesso legal terra e moradia, acesso esse que, deoutro modo, no seria possvel. Assim, uma relao fundamental entre usurpao e legalizao caracteriza odesenvolvimento da periferia: a usurpao inicia o povoamento e desencadeia o processo de legalizao dapropriedade da terra.

    importante acrescentar que essa relao se cristalizou no comeo da colonizao brasileira comouma estratgia das elites fundirias e dos especuladores imobilirios, que dela se serviram para arrancarganhos incalculveis. Durante sculos eles a usaram no somente para ampliar seus negcios comerciais, mastambm para consolidar uma enorme concentrao de propriedades. Na verdade, um dos objetivos desteensaio demonstrar que a lei da terra brasileira foi montada para ser cmplice dessa prtica, e no umobstculo a ela. Assim, por toda parte no Brasil, e especialmente entre as melhores famlias, encontramospropriedades que, apesar de serem legalmente assentes, so, no fundo, usurpaes legalizadas.

    O carter legal da propriedade depende, inicialmente, de como ela foi alienada ou adquirida, o quequer dizer, basicamente, atravs de venda ou de invaso. Segundo a lei, parcelas do territrio urbano spodem ser legalmente definidas depois de subdivididas em lotes. As legislaes Federal e Municipal regulam

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 3/25

  • os loteamentos urbanos (especialmente a Lei Federal 6766/1979), estabelecendo caractersticas fsicas, asquais incluem o tamanho mnimo do lote, ligaes com servios pblicos, e espaos livres para a circulaodo trfico e para atividades comunitrias. Estabelecem tambm normas burocrticas, que estipulam osprocedimentos para o registro das subdivises e alienaes da terra. Essas normas, por sua vez, estofundadas numa dinmica de aquisio da terra que envolve, necessariamente, uma srie de procedimentosburocrticos, estabelecidos no Cdigo Civil Brasileiro (Cdigo Civil, 1990, art. 530), atravs do qual apropriedade adquirida "pelo registro do ttulo de transferncia no Cartrio de Imveis". Desse modo, todasas transaes relacionadas com a propriedade devem ser registradas a fim de serem obtidos os direitos legaisrelevantes. Esses registros so regulados pela Lei dos Registros Pblicos (6015/1973), a qual define asformalidades que constituem o sistema brasileiro de cartrios - sistema privado, labirntico e corrupto.(8)Seuenorme poder burocrtico vem do Cdigo Civil (art. 533), o qual afirma que as transaes envolvendo bensimveis no transferem a propriedade, ou os direitos sobre ela, a no ser a partir da data na qual soregistradas nos livros dos cartrios; ou seja, como diz o ditado, "quem no registra, no possui". A possedefinitiva da terra urbana, portanto, depende de um documento legalmente registrado - a escritura - de umlote num loteamento legalmente registrado. Qualquer coisa a menos compromete a posse.

    As pessoas compram lotes em quatro tipos de loteamentos, que geralmente aparecem lado a lado namesma vizinhana: o legal, o irregular, o clandestino, e o grilado. O mais raro dos quatro tipos, o loteamentolegal, est de acordo com todas as especificaes fsicas e burocrticas. O loteamento irregular - oumelhor, parece ser-legitimamente adquirido e registrado por seu empreendedor imobilirio, mas viola, dealguma maneira, as regras de parcelamento da terra. O loteamento clandestino no registrado no cartriode imveis, apesar de a terra poder ser de posse legtima de seu empreendedor. J o loteamento grilado vendido por um grileiro, que se diz o titular da terra, e o faz atravs de uma srie de artimanhas. A negociataenvolvendo a terra, nessa situao, chamada de grilagem, e a terra, dessa maneira vendida ou adquirida,um grilo(9) Apesar do loteamento ilegal freqentemente combinar vrios desses aspectos, ele classificadosegundo a sua mais grave infrao. Assim, enquanto todos os outros tipos de loteamento estoprovavelmente violando os cdigos de planejamento urbano, o loteamento grilado enfrenta problemas a maisporque no s negociado, mas at registrado, na base de documentos fraudados.

    As pessoas que compram um terreno num loteamento clandestino no podem obter o registro legalenquanto a infrao no for solucionada. Contudo, a descoberta dos problemas pode levar dcadas, j queo pedido da escritura definitiva - outra formalidade burocrtica que favorece muitos grileiros - s pode serfeito depois da quitao das prestaes. Quando os moradores finalmente percebem as complicaesjurdicas, eles tambm ficam sabendo que todo seu investimento est correndo perigo, que seus processosno conseguem romper as ,teias burocrticas, e que suas famlias podem ser despejadas. Em 1979, Caldeira(1984, p. 70) constatou que, entre as famlias que haviam comprado terrenos no Jardim das Camlias - obairro da periferia de So Paulo que tambm estudei -, 57 por cento tinham completado o pagamento,embora somente 16 por cento declararam possuir o registro definitivo de seus lotes. Todavia, mesmo essasdeclaraes no podem ser tomadas como reflexo perfeito dos fatos, j que um bom nmero de moradoressimplesmente se recusa a admitir que suas propriedades, adquiridas com tanto sacrifcio, no esto em diacom a Justia. Ouvi muitas vezes dessas pessoas que "havia alguns-problemas por perto, mas com o meulote tudo est em ordem", o que era confirmado com documentos que me eram apresentados. A dificuldadeest no fato de o grileiro sempre fornecer calhamaos de documentos genunos s suas vtimas - porexemplo, recibos de venda, impostos, especificaes do lote, protocolos de registro. Eles resultam detransaes baseadas em irregularidades ainda no resolvidas, que por sua vez podem se transformar na basede documentos que, por isso mesmo, no so legtimos.(10)

    Esses subterfgios exemplificam a estratgia fundamental utilizada por todo tipo de grileiro de terra:complicar para enganar. Inspirados nasintrincadas formalidades das leis nos seus desdobramentos

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 4/25

  • burocrticos - assinaturas, carimbos, selos e reconhecimentos de firma -, eles modelam seus truques a partirdas mesmas leis que violam. Tentam dar s suas operaes todo tipo de fachada burocrtica e jurdica noobjetivo de conferir-lhes um ar de legalidade, e isto s vezes to bem feito que, se mesmo advogados ejuzes so enganados, o mesmo ocorre com os mais humildes, muitas vezes intimidados com documentos deaspecto oficial. O resultado disso que, geralmente, fica muito difcil determinar o carter legal da terracomprada na periferia, ou a distribuio das propriedades num dado bairro, sem uma exaustiva pesquisasobre todo e qualquer ttulo de lote. Os grileiros contam com essa dificuldade, e sabem que no s aspessoas so facilmente enganadas e as informaes sobre as terras pouco confiveis, mas tambm que amaior parte das pesquisas sobre os ttulos no chega a nada porque - e s como um exemplo - umdocumento legalmente registrado em um cartrio pode, ele mesmo, estar baseado em documentos falsos eirregulares de um outro cartrio.

    O caso a seguir ilustra esse estratagema. Invasores h muito ocupam uma rea de 29 hectares aolongo de uma margem do rio Tiet, na periferia do norte de So Paulo. Em 1987, y vendeu a terra para z,que registrou a transao no 7 Cartrio de Notas de So Paulo. Esse cartrio lavrou a escritura detransferncia com base no registro de propriedade feito naquele mesmo ms no 17 Cartrio de Imveis deSo Paulo. Esse ltimo registro afirma que a terra pertenceu a um casal nascido na dcada de 1860, casadoem 1890 em Santos, que morava em 1986 em Guarulhos, e que a vendeu naquele mesmo ano, atravs deprocurao judicial, para y. O problema que, em 1986, o casal j estava morto havia muitas dcadas, deacordo com as certides de bito. Cavando mais fundo, encontramos a fraude original: 0 17 Cartriobaseou seu registro num documento lavrado em 1986 no cartrio de uma pequena cidade do estado do.Paran, o qual atesta que um certo x apresentou-se como portador de uma procurao judicial do casal paravender a terra para y - que era, por sinal, um advogado. Creio que os processos levaro muitos anos paraconcluir que z e a herana do casal foram fraudados porx e y, que com isso ganharam muito dinheiro; tudoisso, claro, contanto que z no fizesse parte da fraude ou que as alegaes do velho casal no se revelemilegtimas - as quais, devo dizer, no configuram possibilidades muito remotas. Em todo caso, aposto que,dadas as complicaes jurdicas embutidas em todas essas possibilidades, os invasores terminaro com aposse da rea - isto se puderem mobilizar-se em torno do pedido de legalizao da ocupao alegando"interesses sociais", como previsto na Constituio.

    Mesmo que o intrpido pesquisador sobreviva caa dos papis, muitas vezes difcil determinar,em meio s muitas camadas de complicaes, quem o proprietrio do que. por isso que, como apareceno prximo exemplo, essas disputas so impossveis de serem resolvidas nos Tribunais. Ao contrrio, ficamcirculando sem parar atravs do sistema burocrtico, esperando impossveis evidncias mais conclusivas.No preciso repetir: a confuso vai ao encontro dos interesses dos grileiros, j que esses casos so muitasvezes resolvidos atravs de manobras polticas e extrajudiciais - como acordos peridicos - atravs das quaisas instituies executivas ou legislativas do governo intervm para declarar que o sistema jurdico est emcheque e, assim, desqualificam certas alegaes de propriedade em favor de outras. Essas intervenesterminam inevitavelmente legalizando usurpaes e, dessa forma, evidenciam prticas ilegais e extralegais nosprprios domnios da lei. Alm disso, sua ocorrncia por demais freqente na histria dos povoamentos noBrasil vem inspirando muitas operaes de terras ilegais. Como um deputado da assemblia constituinte deSo Paulo de 1935 lembrou aos seus colegas, durante o debate em torno da emenda que daria ttulo legtimoqueles que tivessem pago impostos da propriedade ao Estado, h uma velha correlao entre fazer etransgredir a lei: "A poltica de terras de So Paulo", alertou ele, "tem sempre sido a de tentar evitar futurasgrilagens legalizando grilagens anteriores" (Estado de So Paulo 1935, 2, p. 228), apontando assim para ocarter pouco conceitual, no-categrico e temporrio, da distino entre o legal e o ilegal nesse campo demuitas conseqncias sociais. Suas observaes, todavia, talvez porque simplesmente expunham o que erade costume, no tiveram qualquer efeito nas deliberaes do congresso.

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 5/25

  • Um caso de grilagem

    Para compreender a vitalidade dessa poltica de terras e sua importncia na formao da periferia,analiso, a seguir, um exemplo de grilagem no Jardim das Camlias, bairro com cerca de 7 mil pessoas,situado no distrito de So Miguel Paulista, na periferia do extremo nordeste da cidade de So Paulo. Essebairro, que s veio a se desenvolver intensamente depois de 1969, caso tpico das reas mais novas epobres da periferia urbana, nas quais os migrantes (ou os filhos dos migrantes), geralmente empregados nasocupaes mais mal-remuneradas dos setores de servios e comrcio, constroem suas prprias casas.(11) Apartir de uma minuciosa pesquisa de domiclio realizada em 1979, Caldeira (1984, pp. 60-70) estimou. asseguintes condies de moradia para um total de aproximadamente 900 domiclios e 4.650 pessoas: 60 porcento desses domiclios erguiam-se em lotes comprados, 26 por cento alugavam suas acomodaes, 12 porcento moravam em casas emprestadas (geralmente por seus parentes), e 3 por cento ocupavam lotescedidos. Os ltimos so geralmente os capangas das imobilirias, que recebem material de construo e umterreno em troca de seus servios de segurana. Quando fiz meu trabalho de campo, quase dez anos depois,uma mudana significativa nas condies de moradia tinha ocorrido: se em 1979 no havia qualquer terrainvadida, em 1988 centenas de pessoas tinham ocupado ilegalmente vrias reas no Jardim das Camlias.Essa "invaso" no bairro, como muitos a chamavam, desencadeou uma srie de hostilidades entre aquelesque compraram seus terrenos e aqueles que simplesmente os ocuparam - conflitos que evidenciaram aimportncia da titularidade da propriedade como categoria de auto-estima, e cujas conseqncias polticasdividiram os pobres segundo faces antagnicas.

    O caso envolveu 207 famlias que compraram seus lotes entre 1969 e 1972 mas nunca conseguiramseus ttulos legais definitivos porque esses lotes tinham sido vendidos de maneira fraudulenta. Isso constitui,nunca demais lembrar, apenas pequena parte de toda grilagem e de suas complicaes legais queatormentam mais de meio milho de famlias da periferia da zona leste de So Paulo. Exponho, a seguir, acronologia da disputa de terras desde a poca em que os moradores se viram nela enleados, e depois analisoas vrias alegaes de propriedade, cujas contradies tornaram-nas judicialmente insolveis. Ascomplicaes remontam ao sculo XVI.

    Em 1969, um homem chamado Rafael Garzouzi, "o turco", ou "o libans", como era chamado pelosmoradores, apareceu no ento pouco habitado Jardim das Camlias. Atravs de sua imobiliria, a AdisAdministrao de Bens S.A., ele abriu uma srie de estradas de terra, construiu no local um escritrio, dividiua terra em onze lotes de 6+20m, e comeou a vend-los. Ele exibia aos interessados um plano deurbanizao do bairro e documentos que comprovavam o registro das terras no cartrio competente. Umcontrato muito atraente era oferecido por ele aos compradores: estipulava prestaes mensais duranteperodo que variava de dois a dez anos; obrigava a imobiliria a fornecer, alm de cada recibo dasprestaes, documento de quitao depois do ltimo pagamento. Com esses recibos e o documento dequitao em mos, o comprador podia ento registrar sua compra e transferir a titularidade do imvel para oseu nome. No entanto, uma das muitas coisas que a Adis no disse a seus clientes foi que, embora asassinaturas do contrato fossem reconhecidas em tabelionato, seu plano de arruamento e loteamento no tinhasido aprovado pelas autoridades competentes - e nem poderia. O plano no s violava as posturasmunicipais de planejamento, mas tambm - o que constitui fato mais grave - subvertia outro plano para amesma rea, aprovado desde 1924 em nome de Jos Miguel Ackel.

    No incio de 1970, os herdeiros de Nadime Miguel Ackel, irmo de Jos Miguel, moveram processocontra a Adis para reaver os lotes que a ltima dizia serem seus. A Adis contra-atacou com uma ao naqual afirmava que ela tinhas todos os direitos legtimos de propriedade desde 1958, e seus predecessores,desde 1890, devido a um grande tratado de terra que inclua os referidos lotes. A Adis entrou com pedidode indenizao, alegando que a empresa de Ackel tinha de fato usurpado seus direitos, no s ao se basear

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 6/25

  • no plano de loteamento de 1924, como tambm ao vender cerca de 70 lotes. Ardilosamente, a Adis jogoucom a burocracia judiciria, tanto que as acusaes e as contra-acusaes ficaram circulando pelo sistemajurdico por muitos anos sem qualquer resultado. Todo esse tempo, no entanto, no foi desperdiado: aempresa apropriou-se do restante da rea e ainda vendeu 233 lotes, parte dos quais rebatizou com o nomede Vila Tirol. E no parou nisso. A Adis tambm vendeu duas grandes reas para scios que, por sua vez, assubdividiram para a venda sob o nome de Jardim Oriental e Jardim Eliane. A rea tinha agora quatro nomese quatro planos de loteamento diferentes, os quais desdobravam-se em distintos planos de localizao delotes, ruas irregulares e tamanhos de lote abaixo do padro - tudo isso facilitando a venda do mesmo terrenoa mais de um interessado. O plano de 1924 j estava completamente desfigurado. Coexistiam muitascamadas de planejamentos contraditrios entre si, alm de um nmero crescente de terceiros quereivindicavam a mesma propriedade. E havia mais. Para fazer frente s queixas de Ackel, a Adis e seusassociados deflagraram campanha de intimidao: capangas foram contratados, no s para demolirconstrues, desmanchar cercas e remarcar os lotes segundo suas medidas, mas tambm para desencorajaro acesso daqueles que no tinham negociado com seus patres.

    Os moradores reagiram de muitas maneiras. Muitos contrataram advogados que estavam no bairrooferecendo seus servios e que, no raro, desapareciam assim que recebiam o adiantamento. Alguns foramenganados por ambulantes que se diziam representantes das imobilirias ou mesmo da Prefeitura. Outrossimplesmente ignoraram a situao, acreditando que seus lotes estavam em dia com a lei. E, finalmente, haviacerca de oitenta pessoas que, percebendo as muitas irregularidades por todo lado, organizaram em 1972 aSociedade Amigos de Bairro para coletivamente defender seus direitos. Um grupo de advogados daUniversidade de So Paulo, a Igreja Catlica e partidos polticos de esquerda, todos conhecidos por suasatuaes junto a organizaes populares, foram procurados pela associao para darem suas orientaes.Essa ao conjunta mostrou-se duradoura, como o atesta o fato de um desses advogados estar, at hoje,envolvido com o caso.

    A partir do momento em que a disputa se tornou jurdica, o estado de So Paulo interveio, afirmandoque a terra era de fato sua, e com base nisso exigiu, em 1972, a devoluo dos onze lotes seqestrados.Com isso, Ackel moveu em 1973 novo processo, desta vez contra a Adis e o Estado, exigindo todos os 207lotes sobre os quais julgava ter direito. A resposta do Estado veio em 1975, quando simplesmente osseqestrou. Segundo essa mesma ao de seqestro, e at que fosse resolvida a disputa sobre aspropriedades, os moradores eram obrigados a depositar o restante das prestaes em juzo. Isso implicavaque, ao final das prestaes, no lhes era dado qualquer comprovante de propriedade, o que, alm de osimpedir de vender legalmente seus terrenos, tambm impedia a regularizao dos loteamentos e dasconstrues. No entanto, no tive notcia de qualquer morador que tivesse interrompido o pagamento desuas prestaes.(12) Muito pelo contrrio, todos aqueles que conheci pessoalmente saldaram suas dvidasem juzo.

    Em conseqncia da ao do Estado, a Adis no estava mais recebendo as prestaes. No entanto,como a ao de seqestro de maneira alguma a restringia, a Adis comeou a mandar avisos de despejo aosmoradores, numa tentativa de receber deles grandes somas de dinheiro vista. Foi nesse perodo que aassociao dos moradores e seus representantes aprenderam a manipular o sistema jurdico, antecipando-ses aes de despejo e mesmo complicando as atividades da Adis no Jardim das Camlias, chegando aoponto de anular suas iniciativas. At ento nenhum advogado representando os moradores tinha conseguidovencer os grileiros. No melhor dos casos, eles encontravam sadas extralegais atravs das quais seus clientes,tomados pelo pnico, pagavam para cancelar as aes de despejo; no pior dos casos seus clientes eram defato despejados. Contrastando com essa situao, o advogado da associao tinha convencido seusmembros a conter seus receios at o dia de seu comparecimento no Tribunal. E ento, em cada audincia,ele desafiava a Adis a provar definitivamente a propriedade das terras, o que era impossvel de ser feito em

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 7/25

  • qualquer instncia. Ele tambm argumentava que os moradores no tinham desonrado seus contratos ouinvadido as terras, mas eram compradores bem-intencionados, que estavam em dia com suas dvidas, e que,mesmo em juzo, pagavam suas prestaes. O resultado dessa e de outras tticas foi que a Adis se viuforada a adiar e at mesmo a retirar seus processos. No fim, e depois de gastar uma considervel quantiade dinheiro com taxas judiciais, ela foi derrotada em todos os casos. Ademais, em 1983, a associaodenunciou a Adis Prefeitura por ter deturpado o plano de loteamento de 1924; a administrao municipalento exigiu da empresa que custeasse um novo levantamento da rea e um plano de regularizao damesma. Como previsto pela associao, o novo plano foi regularizado, mas no pde ser registrado emnome da Adis. Esse fato comprometeu publicamente os argumentos de propriedade da Adis. Alm disso, aregularizao desmembrou, para efeito de cobrana de impostos, cada lote segundo suas mais precisasmedidas e localizao - o que constituiu importante reconhecimento dos direitos e deveres dos moradores.Resultou desses priplos jurdicos que a associao aprendeu no s a desarmar seus inimigos atravs demanobras legais como tambm a construir um impressionante dossi com documentos oficiais que sustentamsuas reivindicaes.

    Essa habilidade com as regras do jogo foi, para aqueles protagonistas vindos das classes mais baixas,conquista fundamental. Serviu para contrariar a norma segundo a qual, mesmo quando bem representados,os pobres perdem as disputas com especuladores imobilirios e com os bares da terra. O sucesso daassociao, nesse caso, deveu-se muito s habilidades de seu presidente e de seu advogado, sobretudo desua inovadora concepo tanto da lei - como uma fonte de estratgias -quaneo do sistema legal-tomadocomo um jogo de tticas a ser dominado e explorado. A partir dessa abordagem, eles conseguiram superaruma srie de posturas essencialistas que vm, h muito, caracterizando a atitude reverente, alienada esubordinada dos pobres diante da lei. Essas posturas aceitam a evidente explorao do sistema legal,praticada pelas elites e pela burocracia, como algo acidental, deturpao daquilo que , em si mesmo, umcorpo de princpios de justia a ser venerado, de procedimentos definidos e de relaes sacramentadas quedevem ser seguidos risca, de um conhecimento complexo e de axiomas morais feitos para as elites letradase compreendidas somente por elas, ou mesmo - no caso de movimentos revolucionrios ou milenaristas - deideologias polticas a serem prontamente rejeitadas.(13) Apesar de no constituir uma vitria definitiva, osucesso da associao at aqui conseguido denota uma nova relao perante a lei daquelas suas vtimastradicionais, uma relao que podemos definir como oportunismo estratgico, j que considera a justia umrecurso que funciona, no de acordo com princpios fixos, mas segundo as circunstncias. De fato, esseinovao redistribui para as classes mais baixas a estratgia jurdica utilizada pela elite brasileira durante operodo colonial.

    A interveno do governo federal no Jardim das Camlias completou o imbrglio jurdico da disputa.Ele tambm se dizia o proprietrio das terras, que considerava patrimnio federal, alm de no reconhecer alegitimidade das transaes e dos procedimentos judiciais relativos rea nos quais no tivera participao.O governo federal, dessa maneira, negava a maior parte da histria do conflito ao longo dos ltimos sculos.Sua interveno obstruiu e tornou confusa toda a ao judicial anterior que objetivava deixar clara atitularidade das terras: seguindo suas deliberaes, foram interrompidas as demarcaes e todos osprocessos jurdicos em andamento, alm de proibida toda expropriao, legalizao e regularizao dasterras atravs das administraes municipal e estadual. At que, em 1975, o caso chegou ao SupremoTribunal Federal (STF), o nico tribunal com poderes para julgar o conflito entre os governo federal eestadual. Para iniciar o processo, todavia, o STF tinha que, antes de mais nada, avaliar cada alegaoseparando os interesses de propriedade pblicos daqueles privados. O fato que, com isso, o caso aindahoje se arrasta no STF por falta de evidncias, fontes e, provavelmente, iniciativa para decidir qual, entre asmuitas alegaes de propriedade, a mais fundamentada.

    Com o passar dos anos, as partes envolvidas optaram por estratgias extrajudiciais. Em 1983, a Adis

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 8/25

  • e a empresa de Nadime Miguel Ackel assinaram um acordo para a anulao dos processos em que seacusavam. Ackel concedeu os 207 lotes em disputa para a Adis, a qual, por sua vez, concedeu um nmeroequivalente para Ackel em outras reas do Jardim das Camlias. As lideranas do bairro consideram oacordo nada mais que um pacto de ladres, que visa estabelecer uma frente unida contra as cada vez maisintensas atividades dos invasores na rea. Mesmo assim, e um ano depois, a Sociedade Amigos de Bairroassinou um acordo com ambos. Ela aceitava os termos de seu acordo de 1983 se, em troca, a Adis e Ackelsuspendessem as ameaas de "despejo", prometessem no mais processar os membros da associao,concordassem que aqueles que tinham completado seus pagamentos em juzo haviam cumprido seu contrato,e aceitassem uma srie de outras exigncias que asseguravam um mnimo de tranqilidade aos moradores.Baseadas nessas concesses, as trs partes concordaram sobre a viabilidade da sada extrajudicial, achamada soluo amigvel. E por que cada parte aceitou o acordo? A Adis e Ackel queriam o mximopossvel de reconhecimento de suas alegaes de propriedade, enquanto que os moradores queriam definir,de maneira inequvoca, os donos da terra para os quais pudessem pagar suas prestaes e, em troca,receber o ttulo de propriedade definitivo. Os moradores queriam pagar; de fato, sua moralidade assim exigiae, para eles, os distinguia dos invasores. A questo era: pagar para quem?

    O acordo reconhecia que a soluo amigvel implicava que tanto o governo do Estado quanto 0Federal renunciassem aos seus interesses de propriedade na disputa. Todavia, o Estado negou o pedido eaproveitou a oportunidade para instruir o procurador geral a formar uma comisso como objetivo de analisaro problema das disputas de terra em toda a periferia da zona leste da cidade. Essa comisso deprocuradores do Estado reuniu-se periodicamente durante todo o ano de 1986, concluindo, segundo osdizeres do procurador geral, que "a j catica situao jurdica da rea, abandonada por tantos anos aosmpetos dos "grileiros", tornou-se praticamente insolvel dada a sua complexidade processual, caracterizadapelo simples fato de que um nmero enorme de antigos reivindicantes e seus descendentes alegam ter asevidncias jurdicas que comprovam suas alegaes". Dada a impossibilidade da sada judicial, a comissoprops uma soluo atravs de "aes poltico-administrativas" regidas por um decreto presidencial, no qualo governo federal renunciaria aos seus interesses em favor do Estado de So Paulo. O Estado, por sua vez, equando possvel, renunciaria aos seus direitos em favor dos "acordos amigveis", como aqueles do Jardimdas Camlias; e, quando tal atitude no fosse possvel, desapropriaria a terra em disputa e a concederia aosseus moradores.(14)

    Apesar dos governadores Montoro e Qurcia terem assinado o compromisso de formar umacomisso estadual e federal para tratar dos detalhes dessa proposta, no houve qualquer ao, partindo dequalquer instncia, no sentido de implement-la. Quando perguntados a esse respeito, os moradoreslamentam a falta de vontade poltica e a corrupo. No entanto, no parecem muito surpresos, sobretudodepois de vinte anos de confuso. A associao dos moradores continua tentando acordos amigveis entrenovos grileiros e novos habitantes da regio, alm, claro, de lanar mo de outras estratgias. Enquantoisso, por toda So Paulo, e de fato por todo o pas, as transaes fraudulentas sobrevivem sob a proteodas complexidades processuais, o que implica dizer, sob a proteo da lei.

    Uma histria de origens dbias

    Casos similares a esse sugerem que a lei brasileira est carregada de muitas irresolues. Apesar defocalizar, neste ensaio, a lei de terra e sua burocracia, minha experincia no Brasil mostra que essa umacaracterstica fundamental de todo o sistema jurdico. Infelizmente, no encontrei pesquisas sobre esseproblema conceituai em outras reas do direito, apesar da insistncia de DaMatta sobre a importncia crucialque tem a ambigidade na sociedade brasileira.(15) Em todo caso, quero deixar claro o seguinte: apesar deestar tratando de questes advindas especificamente de conflitos de terras concretos, pretendo dar umcarter mais amplo s minhas concluses.

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 9/25

  • O sistema jurdico brasileiro apresenta irresolues ad hoc atravs das quais todo tipo de pessoa,das mais diversas reputaes, procura vantagens utilizando-se de estratagemas para interferir na burocraciaque facilmente manipulvel. Todavia, como uma construo do direito, esse sistema, em seus prpriostermos, por demais inoperante, contraditrio e confuso para ser fruto somente da corrupo,incompetncia e manipulaes individuais. Essas disfunes previsveis, a meu ver, indicam um modo deirresoluo mais sistmico. Isso nos sugere que o sistema jurdico incorpora habilmente intenes deperpetuar as irresolues judicirias atravs de complicaes legais. por essa razo que a lei facilita osestratagemas e a fraudulncia. No entanto, como j vimos, no somente o mau uso, ou a utilizaoinescrupulosa da lei, que gera essa complicao. O uso correto da lei tambm cria "complexidade processualpraticamente insolvel" e de fato invariavelmente o faz em conflitos importantes.

    Apesar dessa irresoluo jurdica certamente promover e beneficiar a corrupo, creio que ela trazconseqncias mais profundas para a sociedade brasileira: a irresoluo tambm um instrumento dedominao atualizado pelo sistema jurdico; ou seja, os princpios da lei no Brasil produzem,sistematicamente, irresolues para uma sociedade na qual a irresoluo um princpio de ordem. Claro queessa ambigidade jurdica no leva necessariamente incerteza administrativa. H pases mais ou menos bemgovernados que tambm tm sistemas jurdicos - como so os casos da cornnzon law americana e britnica- que produzem irresolues.(l6) Alm disso, h no Brasil outros meios de dominao e as solues judiciaisno so de todo desconhecidas. Todavia, no caso brasileiro, quanto mais importante a disputa,especialmente quando h terras envolvidas, menor a possibilidade de tais solues. As classes dominantesutilizam-se da lei para evitar as decises dos tribunais, sempre sujeitas s incertezas da justia. Seuprocedimento segue o caminho das manobras jurdico-burocratas, as quais so elaboradas no sentido demanter os conflitos sob o controle das teias da burocracia at que uma soluo extrajudicial, poltica eoportuna possa ser garantida. O julgamento, no Tribunal, de um impasse entre elites, seria considerado umato de desespero, de conseqncias muito temidas por elas, j que significa que suas redes de poderes efavores se esgotaram - ou seja, que no foi possvel dar um jeitinho - e, sendo assim, estariam sujeitos derrota. No entanto, a ida ao Tribunal contra aqueles que a elite domina uma oportunidade para estamostrar seu poder de controle sobre o processo judicial, que, geralmente, humilha os pobres ao for-los aaceitar julgamentos ou procedimentos orquestrados de antemo. O fato de os moradores do Jardim dasCamlias e seu advogado terem aprendido a manipular esse processo, a fim de evitar decises e desenvolversadas extrajudiciais, significa nada mais, nada menos, que eles esto redefinindo a arena jurdica. No estomudando as regras do jogo, mas simplesmente utilizando-as para fazer frente exclusividade que delastinham os participantes mais poderosos. Assim, as complicaes da lei no so evocadas exclusivamentepara fins fraudulentos, mas tambm com o intuito de trazer o conflito para a arena jurdica, numa tentativa demant-lo irresoluto mas contido, e dessa maneira controlando-o, embora de maneira frgil, at que seconstitua a vontade poltica necessria soluo. Ao perpetuar o conflito, portanto, a irresoluo jurdico-burocrtica pode ser considerada politicamente funcional - embora sem qualquer conotao funcionalista.(l7)

    Para demonstrar a fora da irresoluo dentro da lei, tentarei separar os fios do enleado conjunto dealegaes de propriedade de terra no Jardim das Camlias. Suas histrias nos levam s fundaes coloniaisdo Brasil e revelam o grau impressionante segundo o qual tanto a ocupao territorial quanto a lei da terradesenvolveram-se a partir da necessidade de legalizar direitos usurpados - primeiro para avolumar asfortunas dos colonos brasileiros em detrimento daqueles ligados a Portugal, e mais tarde, aps aindependncia, para consolid-las. medida que retraamos no passado os argumentos dos prprioslitigantes, percebemos que o assim chamado grileiro no a nica parte envolvida que utiliza a lei paraconstruir origens histricas. Tornase, desta maneira, extremamente difcil determinar que origem, entre todasaquelas apresentadas, a menos questionvel.(18)

    Os fundamentos do direito propriedade do governo federal: sesmarias e ndios

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 10/25

  • O governo federal afirma que as terras do Jardim das Camlias lhe pertencem porque esto dentro dasfronteiras do antigo aldeamento indgena de So Miguel e Guarulhos, estabelecido a partir de uma concessode terra real em 1580 e oficialmente extinto em 1850. Encontrei dois argumentos que embasam a afirmao.Um deles diz que a Lei de Terras imperial de 1850 e a legislao seguinte incorporaram os aldeamentosindgenas ao patrimnio nacional. Todas as Constituies Federais, exceo da primeira, de 1891,reafirmam essa incorporao. A Constituio Republicana de 1891 anexa as terras indgenas ao patrimniode cada estado, deciso revertida em 1934. O segundo argumento do governo federal reconhece que aprimeira Constituio transferiu aos estados a partir de 1891 direitos sobre os antigos aldeamentos indgenas,declarados abandonados - e por isso constituindo "terra devoluta" -; no entanto, tambm afirma que as terrasem questo nunca pertenceram a essa categoria. Ao contrrio, o argumento estabelece que o governo federalmanteve a propriedade porque, desde o sculo XVII, e pautado por uma srie de intervenes executivas ejurdicas, vem arrendando essas terras a no-ndios.

    Muitos argumentos contrrios foram apresentados. Alguns afirmam que os estados adquiriramdireitos reais sobre as terras indgenas em 1891, o que no pode ser anulado por Constituies posteriores.Outros sustentam que o governo federal, apesar de ter interesses nas propriedades, no tem de fato osdireitos sobre elas porque, afinal, ele nunca discriminou, como exigido, as terras indgenas remanescentes daspropriedades privadas. Seja como for, o importante a ser notado nessa situao que todas as partesenvolvidas tm argumentos juridicamente plausveis, o que vem dificultando 0 trabalho at mesmo doSupremo Tribunal Federal. O impasse uma conseqncia direta do caos jurdico que o Brasil ps-colonialherdou do sistema portugus de concesses de terras reais. O aldeamento indgena de So Miguel partedessa herana. Assim, a fim de compreender o poder das complicaes jurdico-burocrticas e o conjuntode alegaes no Jardim das Camlias, temos que investigar essa herana.

    Uma das premissas fundantes do colonialismo portugus est no ato de descobrimento ou conquistado emissrio real, o qual incorporou a terra ao patrimnio pessoal do rei. Essa incorporao estabeleceu asbases legais para a poltica imperial de dominao da Colnia, constituda a partir da criao de uma elitefundiria. Dessa maneira ficaram definidos os poderes e os direitos do Rei, que deveria distribuir as terrasaos seus sditos com o duplo objetivo de explorao econmica e cristianizao. Esse ltimo projeto foraassumido pela Coroa quando o Papa ordenou Dom Joo Ill Mestre da Ordem de Cristo em 1522, fazendodele o responsvel pela propagao da f entre os povos descobertos ao longo das exploraes martimaseuropias. Resultou disso que a Coroa portuguesa apossou-se de todo o territrio descoberto por Cabralem 1500 e estabeleceu uma organizao jurdico-poltica atravs do Regimento de Tom de Souza, de 1548,segundo o qual distribui terras para empreendimentos comerciais e religiosos.

    A fim de regular essa distribuio, os portugueses empregaram um sistema medieval de concesso deterras conhecido como sesmarias. No final do sculo XIV, a Coroa tinha elaborado uma srie demecanismos legais para forar o cultivo de terras inabitadas, improdutivas ou abandonadas. Tais medidasforam consolidadas nas sesmarias e incorporadas nas ordenaes nas quais, por sua vez, pautavam osgovernos tanto de Portugal quanto de suas colnias. O objetivo central da Coroa era conciliar a ocupaodas terras com sua utilizao agrcola. Por esse motivo, a legislao imperial autorizava a expropriao dasterras improdutivas, tornando-as concesses no-hereditrias em troca de uma quantia equivalente a umsexto da produo anual. O tamanho das concesses era limitado capacidade de cultivo dos colonos; e otempo de usufruto dos direitos sobre elas era limitado, findo o qual as sesmarias no cultivadas retornavam Coroa. Ambas restries estavam destinadas a causar muito conflito no Brasil.

    Essa poltica, vinda para as Amricas com as instrues reais de 1548, tornou-se o nico meio legalde fixar pessoas na terra. Essas pessoas eram fundamentais para os projetos de lavouras comerciais einstruo religiosa, ambos baseados na agricultura sedentria, a qual constitua alternativa crist aos hbitos

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 11/25

  • nmades dos brbaros pagos. Por esses motivos, a Coroa autorizou seus representantes no Novo Mundo adistribuir sesmarias somente queles que tinham condies de desenvolv-las segundo essas orientaes.Isso, todavia, introduziu uma mutao na poltica. A fim de atrair tais colonizadores e, em especial, parainiciar as plantaes de cana-de-acar movidas a trabalho escravo, a Coroa ofereceu generosos incentivose extinguiu as restries hereditrias e os pagamentos anuais (exceto, claro, o dzimo divino) que incidiamsobre as concesses de terras. Alm disso, e apesar das lavouras ainda serem fundamentais, seu sentidomodificou-se. No Brasil colonial, a terra tinha pouco valor. Contribua para tanto no s a abundncia, mastambm, e sobretudo, a enorme quantidade de capital que era necessrio sua explorao lucrativa, j queesta dependia do fornecimento de escravos que era, por sua vez, dispendioso e complexo. A produo deacar, gado, e mais tarde caf, dependia da constante incorporao de novos escravos e terras. Por essemotivo a Coroa muitas vezes utilizou suas concesses de sesmarias para garantir futuros investimentos naproduo destinada exportao, em vez de assegurar sua efetiva ocupao. Assim, a terra podia serlegitimamente possuda sem ser imediatamente cultivada ou ocupada, bastando, para tanto, que fossefuturamente utilizada- o que, obviamente, constituaumaperverso dos objetivos originais da lei da sesmaria.

    A partir dessas mudanas, os representantes da Coroa utilizaram-se das concesses reais pararepartir o Brasil em enormes latifndios. As concesses usuais de 10, 20 e at 100 lguas (quecorrespondem aproximadamente a 432, 868 e 4.342 quilmetros quadrados, respectivamente), de acordocom um observador da poca, eram to grandes que era possvel nelas "perder de vista Itlia" (citado emLima 1988, p. 58). Essa distribuio consolidou seus beneficiados, que se tornaram uma classe dominantearistocrtica, escravagista e orientada para o comrcio. Em 1822, no ano da independncia, a instituio dassesmarias j havia produzido uma perverso: depois de trs sculos de colonizao, o pas era uma terra sempovo e um povo sem terra.(19)

    Alm disso tudo, o sistema de sesmarias tinha muitas conseqncias jurdicas que persistiram por umbom tempo. A primeira era com relao ao papel do governo, que legitimava a propriedade privada comoalgo subtrado do domnio pblico. Esse papel foi se modificando medida que tambm ia se transformandoa noo da propriedade das sesmarias. Inicialmente parte do patrimnio real, elas foram cedidas aosinteressados sob a forma de concesses administrativas com direito de usufruto. No havia mercadoimobilirio porque a terra no podia ser nem vendida e nem comprada. O historiador das leis de terra RuyCirne Lima argumenta que a posse das sesmarias pela Coroa comeou a ser vista sob um prisma distintodepois que exigiu, em 1695, um imposto anual, o foro, baseada na lei de propriedade comum (1988, pp. 41-43). Depois disso, as sesmarias foram gradativamente sendo pensadas menos como restriesadministrativas sobre a apropriao da terra por indivduos privados ou por entidades pblicas e mais comoalienaes de propriedades subtradas do domnio real, sobre as quais os beneficiados tinham direitos depropriedade comuns, direitos que eram simbolizados na sua obrigao de pagar os impostos da propriedade.Essa transformao conceitual no foi completada at que a Constituio de 1824 garantiu a propriedadeprivada e a Lei de Terra de 1850 consolidou seus fundamentos jurdicos e de mercado. Os ltimosestabeleciam, primeiro, que os beneficiados pelas concesses poderiam requerer ao governo oreconhecimento de sua condio de proprietrios; e, segundo, que daquele momento em diante as terraspblicas s poderiam ser adquiridas mediante a compra.

    A segunda conseqncia do sistema de sesmarias foi a confuso jurdica, a qual tornou-se umaestratgia de dominao dos dois lados do Atlntico. A Coroa distribuiu muitas concesses de terra semfronteiras definidas, o que produziu infindveis litgios e violncia em torno de direitos contestados.2 Osdebates no Congresso em 1824 a respeito da legislao da terra nos mostram que alguns juristassuspeitavam que a Coroa deliberadamente concedia sesmarias pouco definidas no por ignorncia nem porfalta de mapas precisos do territrio e muito menos devido carncia de tcnicas de pesquisa, mas paramanter os agricultores "nervosamente brigando entre si, em vez de brigar contra a Coroa" (Dean,1971, p.

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 12/25

  • 607). Mas no ficou s nisso. Os prprios brasileiros desenvolveram mais ainda as estratgias de confusojurdica, atingindo nveis de elaborao nunca dantes vistos. Tendo se apossado das melhores terras, a eliterural atravessou o sculo XVIII no somente aumentando suas riquezas, mas tambm aprendendo a dominaro sistema de distribuio de terras, tornando o seu acesso cada vez mais difcil para os outros. Sem dvida,seus meios no excluam de forma alguma a violncia. No entanto, e talvez mais importante, ela controlou adistribuio da terra criando tamanha complexidade na legislao sobre as sesmarias que somente aquelesque j estavam no poder podiam domin-la. Sua estratgia no foi a de negar a lei - como freqentementeassumido nas afirmaes de que "o Brasil sempre foi terra sem lei". Ao contrrio, o intuito era criar umexcesso de leis, de modo a aplicar minuciosamente o fundamento jurdico Teuto-Romano segundo o qual "alei no tem lacunas".(21) Essas mesmas elites mandavam seus filhos para a Universidade de Coimbra, emPortugal, onde estudavam Direito. Ao retornarem, iam completar os alto escales das carreiras polticas ejurdicas, o que ocorreu tanto antes quanto depois da Independncia.22 Como juzes, legisladores, polticos,administradores e dirigentes de Estado, essas elites formavam os quadros dos governos locais e dostribunais, arranjavam leis para impor perdas s propriedades de seus oponentes, manipulavam as regras queincidiam sobre a herana, obtinham concesses a mais atravs de discretos e longnquos contatos familiares -atravs dos quais tambm arranjavam casamentos - e apossavam-se de terras, fossem elas devolutas,estivessem elas sob disputa. Em suma, a elite tinha aprendido a complicar o sistema jurdico e disso tirarvantagens. Lima (1988, p. 46) conclui que, depois de um sculo subordinando as transferncias de terra srestries jurdicas e aos procedimentos administrativos, essa eli te criou, com sucesso, uma "trama invencvelda incongruncia dos textos, da contradio dos dispositivos, do defeituoso mecanismo das reparties eofcios de governo, tudo reunido num amontoado constrangedor de dvidas e tropeos".

    O destino do aldeamento indgena de So Miguel um caso ilustrativo. Formado pelos nativosGuaianases por volta de 1560, ele foi logo transformado pelos jesutas em um modelo de aldeia, de acordocom as propostas contidas nas Regras de Governo. Em 1580, os jesutas obtiveram uma sesmaria para aaldeia de mais ou menos 270 quilmetros quadrados, transformando a rea numa reserva oficial de ndioscristianizados. Suas intenes eram no s separar os convertidos e demarcar as terras necessrias agricultura - fundamental para o ensino civilizatrio -, como tambm obter a garantia legal da Coroa para quea concesso protegesse os ndios da escravido e suas terras da invaso por colonos da vila de So Paulo,que rapidamente se expandia. Intenes somente no bastaram: os ndios acabaram perdendo tanto sua terraquanto sua liberdade. Essas perdas, no surpreendentemente, ocorreram sob a cobertura da lei.Aprendemos, atravs desse episdio, de que maneira as complicaes e as ambigidades jurdicas servem sprticas ilegais e ainda como essas prticas redundam em mais leis.

    A escravizao dos ndios cristianizados foi um travestimento jurdico. O governo local arrogou a si ocontrole sobre suas atividades seculares e depois criou ambigidades jurdicas e complicaes processuaiscom relao s responsabilidades sobre o trabalho coletivo, complicaes e ambigidades estas queterminaram permitindo sua efetiva servido.(23) Motivado pelo ouro, pela ganncia e expanso, o governotambm usurpou terras indgenas atravs da legalizao de atos ilegais. Primeiro vieram os confiscosgeneralizados de terra. Depois, no comeo do sculo XVII, o governo local cedeu sesmarias legalmente acolonizadores, sesmarias estas, todavia, que incluam ilegalmente terras indgenas. Tais "irregularidades",como eram descritas pelos funcionrios do governo, ficaram sem soluo durante meio sculo at 1660,quando a Cmara Municipal conseguiu autorizar-se a distribuir terra dentro das reas proibidas aoscolonizadores "desde que estes no fossem prejudicados" (Bomtempi, 1970, p. 64). Apesar dessacontradio, estavam assim juridicamente regularizadas as concesses irregulares e sendo criadas maisalgumas. Em 1679, o desembargador sindicante e ouvidor geral Joo da Rocha Pitta veio a So Paulo "emdiligncia de correio" - como era chamado o procedimento - para tratar de descompassos entre a lei daletra e a lei da prtica. A fim de resolver o problema de terra, ele simplesmente reescreveu a primeira paraencaixar a segunda. Para tanto, foi oficialmente reconhecido aquilo que a Cmara Municipal j tinha

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 13/25

  • usurpado, ou seja, sua autoridade sobre a aldeia indgena e o direito de distribuir a terra nela contida semqualquer restrio estavam agora juridicamente assentadas. O desembargador ainda ordenou que a Cmararecolhesse um imposto anual de todos os invasores da aldeia. Ficavam assim regularizados os sequestros deterras pblicas, tornados desse modo arrendamentos, e transformada a condio dessas pessoas, de simplesinvasores, em arrendatrios juridicamente reconhecidos. Esses arrendamentos, os chamados aforamentos,conferiam aos beneficiados o pleno gozo do imvel, tornando-o alienvel e transmissvel aos herdeiros.Como eram muito mais facilmente arranjados do que as concesses reais, e alm disso, como deram incio aum mercado privado de direitos sobre a terra, eles possibilitaram ao Conselho dispor, rpida e judicialmente,do restante das terras indgenas - todas, vale lembrar, supostamente inviolveis pelo ttulo de sesmaria que,ento, ainda valia.

    De tempos em tempos a Coroa atentava para essa contradio aparente, mas sempre protelavasolues a favor de medidas temporrias que indiretamente reconheciam a validade desses aforamentos. Suadeclarao de 1703, decretando que somente seus representantes tinham a autoridade para recolher osforos, um exemplo disso. Quando, em 1733, a Coroa finalmente anulou o controle da Cmara Municipalsobre a reserva e ordenou que a terra fosse devolvida aos aborgenes, a Cmara apelou dizendo que aolongo de mais de um sculo ela havia acumulado suporte jurdico para sua poltica de terras junto anumerosas administraes regionais, coloniais e reais. Como todo bom grileiro, a Cmara apresentou seudossi de documentos (ttulos de sesmarias, recibo de impostos, levantamento de terra, aforamentos eoutros) para sustentar sua posio e atravs de complicaes processuais conseguiu travar o litgio at 1745.Foi quando deu um desfecho sua causa, afirmando que a apropriao de terras indgenas era irrevogvelporque havia poucos ndios remanescentes para reav-las.

    Durante o regime de sesmarias, a elite brasileira desenvolveu habilidades para usar a lei, o governo ea burocracia, a fim de criar "uma trama invencvel" de regulaes da terra (Lima, 1988, p. 46). Esseimbrglio paralisou as aes judiciais da Coroa no conflito de terras, permitindo a efetiva legitimao, porparte das autoridades locais, de prticas ilegais que iam ao encontro de seus interesses. Dessa maneira, acomplicao jurdica se tornou uma arma contra as imposies portuguesas, alm de constituir um meioeficaz de assalto ao patrimnio real. Portanto, quando, em 1822, o Conselho de Apelaes no Rio deJaneiro aboliu a poltica de sesmarias e suspendeu o aforamento de terras da Coroa, ele estava apenasformalizando a extino daquilo que j estava havia muito subvertido e usurpado.

    O fundamento do direito propriedade de Ackel: posse e direitos do invasor

    A ancestralidade das alegaes de famlia Ackel sobre o Jardim das Camlias pode ser retraadadesde o conturbado perodo marcado pela abolio das sesmarias. Para uma gerao inteira, e at a Lei deTerras de 1850, no houve acordo possvel a respeito de um substituto legal para a alienao de terraspblicas. Na sua ausncia, o efeito da deciso do Conselho de Apelaes foi o de obscurecer mais ainda ocarter das ocupaes com mais uma grossa camada de complicaes: ela no s tornou a invaso ilegal onico meio de obter terra, como tambm automaticamente transformou aquisies posteriores em atos deusurpao. Desde os primrdios da colonizao, as invases de terras da Coroa constituam prticas comunsde colonos que, se por um lado no tinham os recursos exigidos para pleitear sesmarias, por outroconseguiam sobreviver com culturas de subsistncia e em meio s circunstncias mais adversas. Dadas asdimenses continentais do pas e as vastas faixas de terra no cultivadas e em disputa no interior das reasreservadas s plantaes, as invases eram uma alternativa sempre presente, tolerada, e at ignorada- a noser quando algum conseguia uma concesso que inclua a terra invadida. As posses, assim, tornavampossvel a condio de colonos livres queles que no podiam participar da economia comercial, e aindaserviam de trunfo para os imigrantes mais pobres-os habitantes das fronteiras, os meeiros e os pequenosagricultores-contra o regime dos latifundirios.(24)

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 14/25

  • Durante o perodo colonial, a invaso de terras tinha um status jurdico ambguo. Apesar de seremconsideradas ilegais, as posses eram, segundo costume, reconhecidas como legtimas se fossem cultivadasintensamente durante um longo perodo de tempo - e conquanto apresentassem uma produo evidente eregular. Desta maneira, os invasores produtivos gozavam de certos direitos consuetudinrios. 25 Estesderivam da idia j presente na Lei das Sesmarias de Portugal medieval, segundo a qual toda propriedadetem uma funo social e todo proprietrio tem a obrigao de produzir algum benefcio social, seja na formade alimentos, seja atravs de colonizao. Apesar dessa justificativa explicar o interesse do governo por darum ttulo legal queles que ocupavam a terra ilegal mas produtivamente, em especial as terras pblicas, emesmo se isso ameaava os direitos daqueles que as ocupavam legal mas improdutivamente, at hojepersistem ambigidades a respeito do que seja uma posse produtiva ou improdutiva, invaso e propriedade.Essas ambigidades se manifestam segundo vrias formas jurdicas e culturais as quais, nunca demaislembrar, vo constituindo o solo frtil sobre o qual vicejam os perenes conflitos de terra. Os Tribunaiscoloniais geralmente determinavam que os direitos dos invasores sobre as terras cultivadas podiam serconcretizados se seus pedidos fossem registrados e os impostos e taxas pagos dentro de um perodoespecificado. A essncia dessa deciso era converter a posse numa sesmaria ou num aforamento. Todavia,para muitos invasores, tais despesas eram proibitivas; ocorria ento que procedimentos favorveisfreqentemente tinham efeitos perversos: os invasores eram expulsos das terras ou, no mnimo, viam-sedefinitivamente na ilegalidade. Era por isso que os invasores mais modestos dificilmente almejavam alegalizao de suas posses. As elites latifundirias, por sua vez, no encontravam dificuldades em bancar aconverso, o que, numa estratgia efetiva para aumentar suas propriedades, as encorajava a invadir maisterras pblicas. Elas podiam assim tirar vantagens das ambigidades contidas nos incentivos ao cultivo dasterras, anexando grandes reas s suas propriedades, as quais eram posteriormente legalizadas. Antecipandodessa maneira um novo mecanismo de legalizao, posterior extino das sesmarias, os invasores da elitereivindicavam posses enormes, maiores at que as concesses reais, e marcavam seu empenho nasatividades agrcolas com uma carroa e um curral, quando muito. Nas terras mais afastadas, os invasoresreivindicavam o quanto sua imaginao permitia; nas reas mais povoadas, a pretenso ia at ondeconseguiam lev-la.(26) Esses invasores da elite assim consagraram uma estratgia fundamental e duradourade aquisio de terra no Brasil: como ausurpao geralmente dava incio legalizao, elas confirmaram ainvaso de terra como uma maneira segura de obter direitos legais de propriedade.

    Expanso econmica, avidez e ambio familiar moviam o arrebatamento de terras, o qual se tornouuma batalha campal quando novos piratas de terras apareceram para competir com os latifundirios jestabelecidos. As reas no vigiadas estavam sujeitas a invases: com isso, todas as partes envolvidascontratavam capangas para defender suas posies e anexar outras. Os pequenos proprietrios que de fatohaviam se estabelecido em suas posses eram ameaados como intrusos e delas expulsos. Completando ocrculo vicioso, os destitudos eram recrutados como capangas. Na ausncia de qualquer meio legal paraestabelecer ttulos de propriedade, os assassinatos tornaram-se rotina na mesma proporo em que asreivindicaes de terras conflituosas permaneciam sem qualquer tipo de apreciao.(27)

    Durante esse perodo, os arrebatadores de terra refinaram suas tcnicas de manipulao da lei, o queidentifiquei acima como sendo a marca registrada da grilagcm: envolvendo as terras invadidas no quepareciam ser transaes legtimas, davam a elas uma fachada de legalidade. O objetivo duplo dessa tcnica montar um dossi de documentos que atestam, em cada caso, o que seria uma transao legal se fossebaseada em direitos de propriedade legtimos e, desse modo, envolver o maior nmero possvel de pessoasnesse aparente reconhecimento das alegaes do usurpador. A quantidade de verses desse estratagema to grande quanto a variedade de dispositivos a respeito da terra. Para envolver a propriedade numa teia detransaes legtimas, o invasor pode pagar os impostos da sua posse, vender uma de suas partes, doar umafrao a uma organizao religiosa, pedir seu levantamento, us-la como garantia em um emprstimo, deix-la como herana, ou d-Ia como dote. Seus herdeiros e scios continuariam a honrar essa transaes,

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 15/25

  • tomando o cuidado de pagar em dia os impostos e taxas. Mais importante ainda, eles devero sem demoraregistr-las nos livros da parquia mais prxima, a qual em muitos lugares servia de cartrio. Todos ospapis acumulados nessas transaes - recibos, promissrias, procuraes, levantamentos, acordos,contabilidade etc. - eram utilizados para provar que o Estado e a Igreja as haviam sancionado. umatcnica, como vemos, que requer um conhecimento jurdico considervel. Sua utilizao dissimula, no interiorde uma teia de alegaes legtimas, a usurpao e a fraude. O objetivo sobrecarregar essa teia comrelaes sociais a tal ponto que, e mesmo com a passagem do tempo, seu desmantelamento se tornaimpossvel, de maneira tal que a legitimao, por um decreto do executivo ou um ato do legislativo, se tornainevitvel. Nesse tipo de complicao, a fraude encontra na lei seu cmplice.

    Entre 1822 e 1850, os pais de Gabriela Fernandes estabeleceram uma grande posse dentro da aldeiaindgena de So Miguel. Quando Gabriela se casou com Felisbino Santana, recebeu deles 243 hectaresdessa rea como dote. Desde 1886, quando Gabriela morreu, essa propriedade constava do registro daparquia local e estava legalizada segundo os termos da Lei de Terras de 1850.(28) Seus quatro filhosherdaram, cada um, uma parte igual do todo. Em 1924 um deles vendeu sua parte de 60,73 hectares a JosMiguel Ackel e seu scio. No mesmo ano, o primeiro comprou a parte do segundo, desenvolveu um planopara lotear a terra em cerca de mil lotes, registrou o loteamento aprovado como Jardim das Camlias, ecolocou os terrenos venda. O empreendimento no deu certo. Com certeza, poucos compradores foramatrados, j que na poca So Miguel Paulista era um subrbio de So Paulo, distante e isolado, semempregos e transporte. Foi somente na dcada de 1930 que a situao mudou. Indstrias por ali seinstalaram e linhas de trem e nibus foram criadas. Nesse perodo de crescimento do local, Jos Miguelvendeu 207 de seus lotes ao seu irmo Nadime Miguel, o que foi registrado em 1935 no 7 Cartrio deImveis de So Paulo.

    Percebemos assim como, na origem da propriedade de Ackel, est a venda de terras indgenasinvadidas e a legitimao das alegaes dos invasores. Sua histria demonstra que, apesar de seus ttulos eregistros, as alegaes de Ackel no diferem daquelas dos outros litigantes, j que revela uma estratgiaperante a lei que, na sua essncia, compartilhada por todos: uma mistura de costume, fraude e complicaojurdica que torna a mera posse da terra - resultante de concesso, arrendamento, invaso, proclamao, eat mesmo compra - uma propriedade. Se a histria de Ackel evidencia a importncia do costume nessaestratgia, a que exponho a seguir revela a fraude.

    Os fundamentos do direito de propriedade da Adis e do Estado de So Paulo

    As origens das alegaes da Adis no Jardim das Camlias, comuns s outras reivindicaes noestado de So Paulo, constituem o centro nevrlgico de um dos casos de terra mais notrios e complexos nahistria brasileira, o que, de fato, no deixa de ser uma distino. Frente sua complexidade sem limites, noposso afirmar que o entendo por inteiro, tampouco seria prudente dirimir de erros e distores a anlise deseus contornos que a seguir exponho e analiso. Todavia, uma coisa certa: no h verso isenta dedistoro, j que essas mesmas distores estruturam o uso da lei ao longo dos processos. As manipulaesda lei foram buriladas no intuito de criar verses mltiplas e plausveis, apesar de incompletas e discordantesentre si. com relao a essas mesmas verses que tanto a noo de verdade jurdica desaparece, quanto apossibilidade de resoluo surge dependente de imposies polticas conjunturais. A exemplo dos outroslitigantes, o argumento principal da Adis de fundo genealgico: ela justifica sua alegao apresentando umarvore genealgica, supostamente legtima, que remonta a 1890 atravs de sete geraes de direitos depropriedade, cada qual asseverado por documentos registrados, os quais, por sua vez, referem-se a outrosdocumentos mais antigos que dariam origens legtimas s suas alegaes. No entanto, quando examinamosessa genealogia de propriedade, torna-se evidente que a Adis e seus predecessores vm desde h muitocriando origens as quais, apesar de nunca inteiramente falsas, so sempre ilcitas.(29)

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 16/25

  • Quando o governo imperial promulgou a primeira lei detalhada de terra no Brasil, em 1850, suainteno era no s estabelecer os meios legais para regular os ttulos de terras e prevenir invases doterritrio pblico como tambm utilizar a poltica de terras para atrair imigrantes europeus para o Brasil, deincio como trabalhadores livres para substituir os escravos nas plantaes e mais tarde como colonos livresproprietrios de suas terras. Com essa finalidade, em 1890 0 primeiro governo republicano concedeu aoengenheiro Ricardo Medina 50 mil hectares de terras devolutas, divididas em duas partes iguais, cada qualem uma das margens do rio Tiet, no leste de So Paulo. A parcela meridional dessa enorme concessoinclua So Miguel Paulista e, de fato, o que hoje a Zona Leste da cidade. O contrato de Medinaapresentava uma srie de condies: ele tinha que fundar, num perodo de dois anos, uma colnia agrcolacom 500 famlias de cada lado do rio Tiet; fazer um levantamento da rea a fim de discriminar as terrasdevolutas daquelas j adquiridas por outros e sobre as quais ele no tinha direitos; e pagar um preo fixopelas primeiras, as quais podia revender aos imigrantes. O no cumprimento de qualquer uma dessascondies rescindia contrato. Nesse caso, todavia, o beneficiado ficaria com a metade das terras cedidassegundo os termos do contrato e a outra metade seria restituda ao governo. Em 1891, Medina transferiu suaconcesso, com todas as suas condies, para o Banco Evolucionista - do qual era o fundador e que era umdos muitos precrios bancos de empreendimentos imobilirios que pipocaram com a nova poltica de terra.O banco no conseguiu colonizar as reas no tempo exigido e com isso perdeu o contrato. Ele conseguiu, noentanto, fazer um levantamento da parcela mais ao sul e chegou a oferecer pagamento por ela, mas nodiscriminou, dentro dessa parcela, e muito significativamente, as terras devolutas daquelas que no 0 eram.Nessas condies, em 1892 o governo republicano concedeu ao banco o ttulo de 25 mil hectares. Apesardisso estabelecer os direitos de propriedade do banco, estes ficavam subordinados a todas as condiesestipuladas na concesso original.

    Um ano mais tarde, o Banco Evolucionista hipotecou esse ttulo condicional ao Banco de CrditoReal do Brasil, o qual ficou definitivamente com o ttulo quando o primeiro foi falncia em 1900. Apesar doBanco de Crdito Real tambm ter falido em 1909, seu presidente, Eugnio Hanold, comprou o ttulo emleilo realizado durante a liquidao do banco. Vendeu-o em 1917 para a Predial, uma companhiaimobiliria. Nesse interregno, todavia, outros credores do Banco Evolucionista entraram com processospedindo as partes das propriedades do banco que lhes cabiam. O estado de So Paulo tambm interveio,alegando que ele, e no o banco falido, e de acordo com a Constituio de 1891, detinha as terras devolutasem questo. O caso foi para o Supremo Tribunal Federal. Todavia, sua deciso, em 1928, mais pareceucomplicar do que resolver a disputa: apesar de o Supremo reafirmar a validade dos direitos do BancoEvolucionista, negando que a Constituio os havia esvaziado, contudo, ela estabeleceu, com base naclusula da reaquisio, constante no contrato inicial de 1890, que o estado de So Paulo tinha direitos sobrea metade dos 25 mil hectares. A Corte definiu o Estado, e no a Unio, o beneficiado com a devoluo dapropriedade, argumentando, para tanto, que na poca em que o banco rompeu o contrato j estava em vigora Constituio que determinava que as terras devolutas eram dos estados. Assim, o Supremo TribunalFederal reconhecia que o banco e o Estado tinham, cada um, direito sobre 12.500 hectares, os quaisestavam sujeitos mesma condio original, qual seja, a discriminao das terras devolutas daquelas que noo eram.

    A sentena gerou, entre outros, dois efeitos importantes. Primeiro, ela deu o fundamento originrioaos interesses de propriedade do estado de So Paulo em lugares como o Jardim das Camlias. Segundo, oreconhecimento do ttulo do banco por parte do Supremo, e apesar desse ficar valendo apenas para ametade da rea total anteriormente compreendida, permitiu aos seus herdeiros continuar a usar esse mesmottulo em transaes bancrias e comerciais. Porque as terras nunca foram claramente discriminadas e porquehavia muitos herdeiros, o ttulo foi envolvido - sempre de maneira ambgua, s vezes de modo fraudulento -em inmeras transaes. Assim, em 1958, quando a Predial vendeu-o para Nagib Jafet, um ex-presidente daAdis, constava no contrato uma clusula que dizia o seguinte: o vendedor "no responsvel por qualquer

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 17/25

  • perda de direitos". Nesse mesmo esprito, em 1966 Jafet vendeuo para Garzouzi, que por sua vez, em 1968,e assim que se tornou seu nico acionista, transferiu-o para a Adis.

    Dessa maneira, ao longo de todo um sculo, um sem-nmero de bancos, firmas imobilirias eterceiros estiveram utilizando-se desse ttulo para completar vrias transaes de propriedades - algumasenvolvendo o prprio ttulo juntamente com outras tantas terras de fato, mas todas, fundamentalmente,comprometidas por sua natureza condicional. Os negociantes desse quase fetiche dependeram de duascoisas para levar adiante sua transao: seu acmulo de complicaes e fraudes. A fora desse ttulo vem desua complexidade, a qual impossibilita aos Tribunais resolver uma das disputas sem resolver todas as outras.Como isso praticamente impossvel, nunca declaram o esgotamento da validade do ttulo. dessa maneiraque se multiplicam as oportunidades para a prtica da grilagem. A nica soluo regularizar, atravs deinterveno extrajudicial, todo hectare citado no ttulo, de tal forma que esse mesmo ttulo perde seu poder jque, assim, ficam sem objeto, a saber, terras devolutas ou de posse duvidosa. A comisso de procuradoresdo Estado convocada em 1986 para examinar o problema chegou exatamente a essa concluso -recomendando nada menos que um decreto presidencial para resolver as disputas de terras no Jardim dasCamlias.

    Ao investigar a perpetuao do ttulo do Banco Evolucionista, encontrei dezesseis tipos diferentes defraudes. Algumas so gritantes, como a falsificao de documentos, adulterao de marcas de divises,corrupo de funcionrios e destruio de registros. Outras so sutis, estratagemas de longo prazo que seutilizam da lei para estabelecer precedentes a favor do grileiro. Por exemplo, um grileiro se utiliza dedocumentos falsos, relativos a um pedao de terra, para abrir um processo para reaver sua posse; umcmplice, todavia, faz as vezes de ocupante ilegal. Ele se defende de maneira pouco convincente e expulsoda terra. Resultam disso tudo muitas aes no Tribunal e uma srie de precedentes constituindo uma espciede jurisprudncia, a qual o grileiro apresentar mais tarde para sustentar suas alegaes de propriedade. Afraude mais impressionante, contudo, talvez tenha ocorrido justamente quando tudo comeou. Ao executar ahipoteca do Banco Evolucionista, o Banco de Crdito Real alegou ter adquirido com isso um imvelespecificado em uma "carta de adjudicao" extrajudicial. O problema que a hipoteca s podia se referir apossveis direitos sobre hectares ideais, e no a direitos reais sobre terras discriminadas - um detalhe que, deminha perspectiva, condena tanto as alegaes de propriedade da Unio quanto as do Estado. No entanto, areferida "carta" inclua um levantamento que definia uma rea de 21.600 hectares. Essa transformao mgicado ideal em real um exemplo de um tipo de trapaa envolvendo a hipoteca um tanto quanto comum entregrileiros bem relacionados. De um jeito ou de outro, o grileiro acaba obtendo documentos que lhe do direitosobre terras ideal ou vagamente definidas. Ele ento as hipoteca a um parceiro como garantia de umemprstimo que, deliberadamente, no cumprido. Como a execuo da hipoteca requer um inventrio debens, o parceiro contrata um inspetor para produzir um levantamento da propriedade hipotecada, o qual,todavia, impossvel de ser verificado em funo de sutis omisses tcnicas. Esse levantamento torna-separte de uma carta de acordo privado ou de leilo para a liquidao da dvida, a partir da qual a negociao resolvida juridicamente. Como os documentos so agora parte de um procedimento judicial, os grileirostm pouca dificuldade para obter a escritura das terras - terras estas que talvez nem existam mas que forampor eles definidas a partir de uma rede de operaes perfeitamente legais. Nos documentos da Adis e deseus predecessores, esse tipo de alquimia envolvendo hipotecas, cartas de acordos e levantamentos aparecesistematicamente na origem de suas alegaes.

    Tornando legal o ilegal

    Passados 400 anos de colonizao, uma coisa certa: no Jardim das Camlias no h ningum quetenha um ttulo de propriedade isento de ambigidades - o que, alis, ocorre em muitas reas do Brasil.Resulta disso, e apesar das vrias alegaes contrrias, que no h um nico, indiscutvel proprietrio de

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 18/25

  • quem os moradores podem receber uma escritura incontestvel para qualquer um desses 207 lotes de cujahistria de disputa aqui nos ocupamos. Cada litigante no conflito, no intuito de encontrar uma origem quesustente sua alegao, utilizou-se da lei para criar uma verso dessa histria. Essas origens so invenes delei; literalmente: fices jurdicas. O governo central de incio criou para os ndios de So Miguel um santuriolegalmente inviolvel e depois, atravs de suas vrias encarnaes - colonial, imperial e federal -, legalizousua usurpao. Parece indiscutvel que, apesar de ~o governo federal ter, com isso, adquirido interessesdominiais na rea, tais interesses no so legtimos porque ele nunca chegou a discriminar as terras indgenasresiduais de outros tipos de propriedade. Assim o governo federal no tem o ttulo registrado e com isso -numa dessas reviravoltas da histria que nos surpreendem de maneira agradvel - no pode provar suatitularidade nos termos de sua prpria Lei dos Registros Pblicos. A situao do estado de So Paulo parecida: seus interesses permanecem presos s condies no cumpridas no contrato de 1890 de Medina,o que tambm o deixa sem um registro. Apesar de as alegaes da famlia Ackel e da Adis estarem calcadasem ttulos e registros, estes tm procedncia duvidosa. As alegaes dos Ackel advm da venda de terrasindgenas invadidas e da legalizao das posses dos invasores. Ironicamente, estes ltimos so os que maistm reconhecimento oficial, que aparece nos recibos de impostos, registros pblicos e documentos detribunais - tudo porque esses invasores so, afinal, os fraudadores mais hbeis e ambiciosos. A pergunta,todavia, persiste: que alegao tem mais mritos legais?

    Uma resposta definitiva parece ser impossvel, no s por causa da importncia da ilegalidade emcada uma das alegaes, mas tambm devido relao instvel que h entre o legal e o ilegal. De fato, sepor um lado nosso estudo histrico mostrou que a usurpao uma das principais foras motrizes daocupao territorial brasileira, por outro lado ele tambm revelou que a prpria lei da terra se desenvolveu,em grande medida, a partir da necessidade de legalizar invases. Esse desenvolvimento redundou numadensa massa de complexidades jurdicas, por sua vez gerada como uma estratgia para iniciar manobrasextrajudiciais visando precipitar a legalizao das invases, e tambm para, ao longo desse processo,interferir em outras reas da lei e da burocracia. Durante o perodo colonial, os direitos sobre a terratornaram-se arena de contestao da dominao portuguesa, na qual esses mesmos direitos eramcomplicados ao ponto de torn-los inativos. Era, pois, um meio de atingir a autonomia da colnia. Noentanto, essa forma de resistncia tambm era de hegemonia local: as complicaes jurdicas sustentavam osconflitos de terra para a elite que tinha todas as vantagens extrajurdicas e que podia legalizar o ilegal. Assimcomo ocorre hoje, as invases ajudavam os mais pobres a ganhar acesso terra, j que, de acordo com osdireitos consuetudinrios, eram reconhecidos como proprietrios legtimos se fossem produtivos. Apesardessa mistura de lei e costume ajudar os mais humildes, ela tambm permitia, e numa proporo maior, aosgrileiros camuflar suas fraudes dentro de uma rede de transaes legtimas. A apropriao ilegal, assim,tornou-se um meio bsico de aquisio de terras; a ilegalidade, uma dimenso fundamental da organizaosocial brasileira, perpassando-a por inteiro.

    Ao longo destes sculos, portanto, as irresolues orquestradas pela prpria lei incentivaram asinvases de terras, j que tambm criaram a confiana na sua legalizao. No decorrer desse processo,prticas ilegais produzem lei, solues extralegais so incorporadas no processo judicial, e a lei confirmadacomo um canal de desordem estratgica. Resultou disso que a ilegalidade e a irresoluo jurdico-burocrticatornaram-se a norma nos casos envolvendo terras. Nessas circunstncias, a lei difere completamente dasnoes americanas de regulao neutra e imperativa, ou de separao da lei e da sociedade, na qual asegunda produz a primeira mas , todavia, controlada por ela. No contexto brasileiro, a lei assegura umanorma diferente: a manuteno do privilgio para aqueles que possuem poderes extralegais para manipular apoltica, a burocracia e a prpria histria. Nesse sentido, a irresoluo jurdica um meio de dominaoefetivo, embora perverso. Atualmente, o campo jurdico modifica-se, no atravs de reformas legais - arespeito das quais, infelizmente, h pouco a dizer -, mas atravs de movimentos sociais populares. Suasaes coletivas, durante as duas ltimas dcadas, produziram um crescimento generalizado, apesar de

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 19/25

  • instvel, da idia do direito a direitos - acesso Justia -, o qual est transformando, numa freqncia cadavez maior, os brasileiros pobres em estrategistas jurdicos. No lapso de uma gerao, alguns aprenderam ausar as complicaes da lei para intricar os conflitos de terras a seu favor. Sem dvida, tais iniciativaspovoam com novas foras ticas, polticas e mesmo pessoais uma instituio antiga e opressiva. Esses novosatores, no entanto, esto mais propensos a reproduzir o sistema do que a mud-lo. Se os moradores doJardim das Camlias ganham a causa, isso se dar porque tero derrotado 0 mestre do jogo. Em muitossentidos, eles j foram vitoriosos ao utilizar a lei em vez de serem vtimas dela. Contudo, ao aprender a gerarirresoluo legal, eles aceitam a premissa do jogo segundo a qual a irresoluo permite aos mais poderosostransformar o ilegal em legal - um poder que ainda lhes falta. Eventualmente o sistema jurdico podertransformar-se, pressionado por esse tipo de engajamento: uma participao ampliada, ou mesmo universal,talvez dificulte demais as solues extra judiciais para os conflitos judiciais, fazendo com que esse usoprivilegiado da legalizao do ilegal, e o tipo de dominao que se atualiza junto com ele, termine de vez. Ese existe a esperana de que tal transformao j esteja em curso, os seus desdobramentos so aindaincgnitos: as duradouras distopias da lei so tanto constitutivas quanto sintomas de um interregno mrbido.

    otas

    (*)Este artigo foi previamente publicado como "The misrule of law: land and usurpation in Brazil." Comparative Studies inSociety and History. 33 (4) pp. 695-725, 1991. 1. Parte de um estudo mais amplo sobre a terra, trabalho, lei e movimentos sociais no Brasil, este ensaio baseia-se numtrabalho de campo e de arquivos de dois anos, realizado entre 1987 e 1990, financiado por um Fullbright Hays FacultyResearch Award, um CIES Fullbright Regional Award, e pela University of Southern California. Agradeo s pessoas doJardim das Camlias por sua inestimvel ajuda na coleta e anlise dos dados apresentados neste artigo. A AntnioBenedito Margarido, advogado da associao de bairro, Jos Nogueira Souza, seu presidente durante meu trabalho decampo, e a Teresa Caldeira, colega antroploga, meus agradecimentos especiais. 2. Em outras publicaes, mostro com mais detalhes que as periferias urbanas brasileiras devem sua formao s polticasde terra elaboradas para regular o fornecimento de trabalho, o que era feito atraindo, fixando e disciplinando um tipodesejado de fora de trabalho (Holston 1989: caps. 6-8; e Holston s.d.) Esse regulamento estabelece no somente padresbsicos de migrao e assentamento, mas tambm as condies nas quais ocorrem os conflitos de terras, e que constituemo foco deste ensaio. 3. Muitos estudos antropolgicos reiteram esse princpio. Ele aparece ao longo do espectro terico, tpico e regional, comouma nfase, por exemplo, na manuteno do controle social atravs do costume ou da coero (Malinowski 1926, Radcliffe-Brown 1933), na resoluo de desarranjos sociais (Llewllyn e Hoebel 1941), para refrear abusos (Gluckman 1955), naproduo de coerncia social atravs do conflito (Gluckman 1956), na mediao de disputas (Gulliver 1963), no incentivo aocompromisso e ao equilbrio (Nader 1969), e na eliminao da ambigidade (Leach 1977). Uma exceo o polmico masnegligenciado artigo de Leach (1963), no qual ele argumenta, contra os funcionalistas malinowskianos e os funcionalistasanti-malinowskianos, que na sociedade primitiva a lei serve para proteger privilgios. 4. Mesmo Barnes (1961, pp. 193), em um de seus primeiros estudos da "lei como algo politicamente ativo", conclui queapesar de as "instituies jurdicas (onde no h tribunais) ... de fato fornecerem as regras atravs das quais ocorrem asdisputas (polticas) ... a lei, todavia, pode ser vista como um conjunto duradouro e consistente de regras aplicadasimparcialmente". 5. Por exemplo, ensaios recentes sugerem que os sistemas jurdicos criam conflitos (Starr e Collier 1988); que a legislao uma arena de disputas entre faces, e que a lei nativa contesta a dominao colonial (Vincent 1989); que a assim chamadalei dos costumes uma inveno do colonialismo (Cohn 1989 e Moore 1989); que as disputas podem ser dirigidas eutilizadas para a promoo da harmonia, por uma estratgia poltica especfica (Nader 1989); e que o discurso jurdico podeintroduzir hierarquia em relaes a princpio iguais (Greenhouse 1989); ver tambm Santos 1988 sobre a lei como discurso). 6. Apesar das caractersticas geogrficas e demogrficas da periferia estarem em constante mutao, estimo sua populaoatual em 5,5 milhes de pessoas, o que corresponde a um pouco mais da metade do total de moradores do municpio de SoPaulo (Seade 1989: tabela 12.15). A intensidade da taxa de expanso da periferia pode ser captada nos seguintes dados: area urbana da Grande So Paulo cresceu 53 por cento entre 1977 e 1987 (Metr 1990, p. 16), enquanto a populao daregio perifrica de So Miguel Paulista, nas dcadas de 1950, 1960 e 1970, registrou taxas de crescimento anual de 15,2 por

    24/06/2010 LEGALIZANDO O ILEGAL: propriedade

    anpocs.org.br/portal//rbcs21_07.htm 20/25