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Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais
Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo Costa
Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta?
Uma análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto
Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN
Natal/RN
2017
Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo Costa
Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta?
Uma análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto
Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção
do título de Mestre em Estudos Urbanos e Regionais, área de
concentração em Cidades e Dinâmicas Urbanas.
Orientador: Prof. Dr. Alexandro Ferreira Cardoso da Silva
Natal/RN
2017
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
Costa, Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo.
Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta? Uma
análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN / Suzana Carolina
dos Santos Dutra de Macedo Costa. - 2017.
110f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, 2017. Orientador: Prof. Dr. Alexandro Ferreira Cardoso da Silva.
1. Moradia. 2. Casa própria. 3. Cidadania. 4. Natal (Rio Grande do Norte). I. Silva, Alexandro Ferreira Cardoso da. II.
Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 351.778.532(813.2)
Agradecimentos
Primeiramente aos meus pais, Francisco e Sônia, por terem sido minha primeira
inspiração no campo acadêmico e pelo eterno incentivo, ensinando-me a sempre lutar e correr
atrás dos meus objetivos, por não me deixarem enfraquecer e nem olhar para baixo frente aos
obstáculos da vida.
Ao meu marido, Bruno, pelo amor, companheirismo e apoio constante em todos os
meus projetos de vida.
Ao meu filho, Marcos Bruno, que veio ao mundo durante o período de elaboração
desta pesquisa, trazendo uma alegria desmedida e o anseio de buscar o melhor para ser o seu
exemplo.
Ao amigo Pedro Galvão por te me apresentado ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Urbanos e Regionais.
Ao meu orientador, Alexsandro Cardoso, por haver me acolhido tão bem no Programa
de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, primeiramente como aluna especial;
depois, como sua orientanda; pelas conversas sobre meu tema de pesquisa, pela motivação
constante, pela compreensão em todas as fases por que passei durante os dois anos de pesquisa.
Foi um imenso privilégio tê-lo como orientador e captar um pouco dos seus ensinamentos e
conhecimentos em geral.
À Professora Dulce Bentes pelo incentivo dado para que eu percorresse o debate sobre
Cidadania e Moradia; por ter participado da construção do objeto dessa pesquisa e por suas
valiosas contribuições.
Ao professor, Patrick Le’Guirriec, por ter me apresentado aos moradores do
Residencial Vivendas do Planalto, pelos ensinamentos transmitidos, pelo material doado, pelas
conversas produtivas e ideias e sugestões tão pertinentes que contribuíram, substancialmente,
para o aprimoramento da minha pesquisa.
À Milena, Renata, Sara e Tainara, que se tornaram verdadeiras amigas,
compartilhando comigo descobertas, preocupações e conquistas durante esta caminhada.
Aos moradores do Residencial Vivendas do Planalto, pelos depoimentos concedidos,
voluntariamente, durante a pesquisa de campo, em especial, a Thaíse e a Beto, pela disposição
para me ajudar em quaisquer circunstâncias.
Resumo
A moradia é um direito social garantido pela Constituição Brasileira de 1988; sua
concretização, de acordo com tratados internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, impõe
a observância de vários outros direitos, como, por exemplo, o direito a um nível de vida
adequado com igualdade de acesso de todos aos bens públicos e serviços de qualidade. Ao
mesmo tempo em que figura como um direito social, a moradia, enquanto bem físico, se insere
no contexto de mudanças econômicas, políticas e territoriais que ocorreram, mundialmente, sob
a égide da hegemonia do pensamento e das práticas neoliberais, tornando-se, cada vez mais,
um elemento de consumo do mercado. A inversão do sentido da produção social da moradia –
de direito para mercadoria – condiciona sua concretização a um propósito quantitativo, uma
meta, substituindo a luta pela moradia pela luta ao crédito. Em face dessa dinâmica, a pesquisa
partiu da premissa de que a convergência da Moradia como mais um direito do Consumidor-
Cidadão, em vez de um Direito Social, é provocado, também, pela ênfase que as políticas
públicas assumiriam, mais recentemente, em corresponder aos interesses de mercado, isto é,
proporcionar uma acumulação do capital por meio da ampliação da mercadoria “moradia
social” como objeto de consumo. Tomando como objeto a relação entre Moradia e Cidadania,
a pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na consolidação
da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade. Os questionamentos que estão
na base da pesquisa são: Pode uma política habitacional ampliar ou prejudicar o sentido de
Cidadania de parte da população? É a moradia condição básica para a Cidadania ocorrer de
modo ampliado? Os resultados do estudo revelaram que a aquisição da casa própria por um
programa do Governo gera no indivíduo a sensação de pertencimento social, concedendo-lhe,
implicitamente, o status de ‘cidadão’, na medida em que ao sair de condições ilegais e/ou
irregulares de moradia e assumir deveres advindos de uma moradia legal e regular o indivíduo
passa a se sentir portador de direitos, com voz para reivindicá-los perante o Estado, no entanto
essa não é a cidadania plena. A condução da investigação do objeto de pesquisa foi orientada
por uma compreensão dialética da discussão sobre Cidadania e Moradia, que permitiu, com
base na revisão bibliográfica e em pesquisa de campo realizada em empreendimento da faixa
1, do Programa Minha Casa Minha Vida, captar a essência dessa relação que pretendemos
estabelecer.
Palavras-chave: Moradia. Casa própria. Cidadania. Cidade. Mercado. Consumo.
Abstract
Housing is a social right guaranteed by the 1988 Brazilian Constitution; its
implementation imposes the observance of several other rights according to international
treaties ratified by the Brazilian State, such as the right to an adequate standard of living with
equal access to all public goods and quality services. Housing is at the same time a social right
and a physical good. It is inserted in the context of economic, political and territorial changes
that occurred worldwide under the aegis of neoliberal thought and practices, becoming yet
another element of consumption in the market. The inversion of the direction in the social
production of housing - from a right to goods - conditions its realization to a quantitative
purpose, a goal, replacing the struggle for housing with the fight against credit. Given this new
dynamic, the research started from the premise that the convergence of Housing as another
Consumer-Citizen right, rather than a Social Law, is also caused by the emphasis that public
policies have more recently taken in meeting the interests of the market, that is, to provide an
accumulation of capital through the expansion of the commodity "social housing" as an object
of consumption. The research has as its subject the relationship between Housing and
Citizenship and it aims to understand the effects of housing policy on the consolidation of
Citizenship as an element of integration regarding to the Right to the City. The questions which
are the basis of the research are: Can a housing policy increase or impair the sense of citizenship
from a part of the population? Is housing the basic condition for Citizenship to occur in an
expanded way? The results of the study revealed that the acquisition of an own property through
a government program generates a sense of social belonging to the individual, implicitly
granting him/her the status of 'citizen'. When leaving illegal conditions and/or irregular housing
and assuming duties resulting from a legal and regular housing the individual becomes a holder
of rights, with a voice to claim them before the State, however this is not full citizenship. The
leading of the investigation on the research subject was guided by a dialectical understanding
of the discussion on Citizenship and Housing, which allowed capturing the essence of this
relation that we intend to establish, based on the bibliographical review and field research
carried out in a property development in phase 1 of the Housing Program Minha Casa Minha
Vida.
Keywords: Housing. Own property. Citizenship. City. Marketplace. Consumption
Siglas
AMAVEL Associação dos Moradores e Amigos do Leningrado
BACEN Banco Central do Brasil
BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BNH Banco Nacional da Habitação
CBIC Câmara Brasileira da Indústria da Construção
CDESC Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
CEF Caixa Econômica Federal
CMEI Centro Municipal de Educação Infantil
CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CRI Certificado de Recebíveis Imobiliários
DARQ Departamento de Arquitetura
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
DASPE Departamento de Ação Social e Projetos Especiais
EJA Ensino de Jovens e Adultos
FAR Fundo de Arrendamento Residencial
FDS Fundo de Desenvolvimento Social
FGHAB Fundo Garantidor da Habitação
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FHC Fernando Henrique Cardoso
FII Fundo de Investimento Imobiliário
FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
FSM Fórum Social Mundial
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
OGU Orçamento Geral da União
ONU Organização das Nações Unidas
MCIDADES Ministério das Cidades
MCMV Minha Casa Minha Vida
MCTI Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONU Organização das Nações Unidas
PAC Plano de Aceleração do Crescimento
PAR Programa de Arrendamento Residencial
PLANHAB Plano Nacional de Habitação
PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida
PNH Política Nacional de Habitação
PNHU Política Nacional de Habitação Urbana
PNHR Política Nacional de Habitação Rural
PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
PPGAU Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
RMN Região Metropolitana de Natal
SBPE Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo
SFH Sistema Financeiro de Habitação
SFI Sistema Financeiro Imobiliário
SEHARPE Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos
Estruturantes
SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Lista de Quadros
Quadro 1 Características do PMCMV por fases e faixas 56
Quadro 2 Perfil dos entrevistados 78
Lista de Imagem
Imagem 1 Localização dos Empreendimentos Faixa 1 do PMCMV no Município
de Natal 65
Imagem 2 Localização do Residencial Vivendas do Planalto no bairro Guarapes 69
Imagem 3 Configuração do empreendimento vista de cima pelo Google Earth 70
Imagem 4 Partido Urbanístico e Tipologia Habitacional do Residencial Vivendas do
Planalto 71
Imagem 5 Bloco de apartamentos 72
Imagem 6 Canteiro central 72
Imagem 7 Área Central do Conjunto Residencial Vivendas do Planalto I, II, III
e IV 73
Imagem 8 Ocupação de recuos laterais 73
Imagem 9 Inserção Urbana do Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV 74
Imagem 10 Festa Junina organizada pela AMAVEL 82
Imagem 11 Condomínio como foi entregue aos beneficiários do PMCMV em 23 maio
2014 83
Imagem 12 Condomínio após a criação de muros e portões pelos condôminos em 26 mar.
2017 83
Imagem 13 Comércio Local 84
Imagem 14 Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos 85
Imagem 15 Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos 85
Imagem 16 Placa na entrada do empreendimento 86
Imagem 17 Conteúdo da placa na entrada do empreendimento 86
Sumário
Introdução 11
1. Cidadania, Moradia e o Direito à Cidade: debates contemporâneos e fortalecimento das
Políticas Sociais 20
1.1. Cidadania: o que é e como se concretiza? 20
1.2. Direito à Moradia: definição e relações teóricas 27
1.3. Direito à Cidade: relações teóricas e lutas sociais 31
1.4. A Casa Própria e sua inscrição no modelo neoliberal – Contexto brasileiro 35
2. Construção da Moradia no Brasil: políticas e lutas pelo Direito à Cidade 40
2.1. A Moradia após a Redemocratização: políticas neoliberais e processo democrático (1988-
1998) 40
2.2. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas I
(1998-2003) 43
2.3. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas II
(2004-2015) 48
3. O Programa Minha Casa Minha Vida e a produção privada da moradia de interesse
social no Brasil 55
3.1. O Programa Minha Casa Minha Vida no contexto da política habitacional brasileira
(2009-2015) 55
3.2. O Programa Minha Casa Minha Vida e sua expressão física territorial na Região
Metropolitana de Natal e na Cidade de Natal 62
4. Pesquisa de Campo: abordagens e resultados 69
4.1. O lócus do estudo 69
4.2. Entrevista qualitativa: Unidades de Análise e Procedimento das Entrevistas 76
4.3. Resultados da Pesquisa de Campo 79
Considerações Finais 93
Referências 98
Apêndice 107
Introdução
O Minha Casa Minha Vida (MCMV) é um programa habitacional, criado pela Lei
Federal nº 11.977, de 7 de junho de 2009, (BRASIL, 2009) com a finalidade de estabelecer
mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais para famílias
com renda de até R$ 10 salários mínimos1. Embora destinado a integrar os Programas
Habitacionais do Governo Federal, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) é, na sua
origem, um programa com forte viés econômico, não apenas por representar mais crédito nas
instituições bancárias, disponível ao consumidor e às empresas, mas também, por mobilizar
desde a indústria extrativista e produtora dos materiais básicos da construção civil até a indústria
moveleira e de eletrodomésticos, que é ativada no momento de entrega das chaves2.
Para possibilitar o acesso de famílias com baixa renda à aquisição da casa própria, o
Governo Federal disponibilizou elevados subsídios e reduziu as taxas de juros; somado a esse
quadro, o Programa foi organizado em uma série de subprogramas, modalidades, fundos, linhas
de financiamento, tipologias habitacionais, agentes operadores, que facilitaram o financiamento
direto à demanda (SATO, 2010; RODRIGUES, 2010).
O sucesso quantitativo e a boa repercussão, na opinião pública, fizeram o MCMV se
consolidar na política urbana em nível nacional (BRASIL DA MUDANÇA, s/d), no entanto os
empreendimentos construídos pelo Programa, de modo geral, não garantem à população
beneficiada os aspectos legais que permitem conceituar a moradia como digna, bem como
potencializam uma série de problemas urbanos que perpassam desde a luta pela habitação de
qualidade à busca constante pelo Direito à Cidade (CARDOSO, 2013; BENTES SOBRINHA,
SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015; KRAUSE, BALBIM, LIMA NETO, 2013).
Isto porque, em grande partes dos empreendimentos do PMCMV faixa 1, há um afastamento
dos grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda a sua infraestrutura,
para as áreas periféricas, onde se evidencia uma ausência de serviços públicos (AMORE;
SHIMBO; CRUZ, 2015).
Além de problemas relativos à localização, a baixa qualidade arquitetônica e
construtiva, a descontinuidade do programa em relação ao Sistema Nacional de Habitação de
1Esse valor foi alterado em 2011 pela Lei Federal nº 12.424 para R$ 4.500,00 (quatro mil e quinhentos reais). Hoje,
o valor é de R$ 6.250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta) conforme determinação do Ministério das Cidades pela
Portaria nº 258/16, que divulga propostas apresentadas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida -
Entidades, operado com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social - FDS, na forma que especifica, e dá outras
providências. 2 Do total de 47,05 bilhões de financiamento imobiliários feitos pela Caixa Econômica Federal em 2009, 14,1
bilhões foram destinados ao Programa Minha Casa Minha Vida.
13
Interesse Social (SNHIS) e a falta de controle social sobre a implementação são críticas
correntes ao Programa. Somado a esse quadro, o Poder Público Municipal, das diversas cidades
que implementaram o Programa, demonstrou um verdadeiro descaso em implementar a
infraestrutura necessária ao novo ambiente dos empreendimentos, mostrando que não há o
acompanhamento do necessário grau civilizatório e de cidadania que os projetos exigem
(AMORE; SHIMBO; CRUZ, 2015).
Em que pese ter apresentado uma proposta aparentemente progressista de conceder o
Direito à Moradia à população de baixa renda, o PMCMV parece mais ter ampliado a cadeia
que aprisiona as populações vulneráveis e marginalizadas dentro da órbita de circulação de
acumulação de capital – gerando impactos diretos na subjetividade, identidade e sentido de
cidadania dos habitantes dessas áreas periféricas – do que ter proporcionado o acesso à moradia
adequada aos beneficiários do Programa.
Além da dimensão física, a Moradia agrega conteúdos de ordem social e simbólica
relacionados a outros direitos; sua concretização está intimamente relacionada ao direito à
cidadania e ao Direito à Cidade, na medida em que figura como elemento central a um nível de
vida adequado. Dessa forma, o olhar sobre a Moradia, como objeto de política pública setorial,
impõe que, além da facilitação do acesso ao bem casa própria, sejam observados outros
elementos, como igualdade de acesso de todos aos bens públicos e serviços de qualidade, os
quais contribuem para o sentido de Cidadania. Não obstante, a produção habitacional exerce
um papel de destaque no modo de produção capitalista, já que a produção habitacional promove
a circulação do capital por meio da produção mercantil da casa, contribuindo para o
desenvolvimento econômico. A promoção da aquisição da casa própria tem, portanto, valores
de ordem política e econômica quase sempre relacionados aos interesses capitalistas, que
escamoteiam o valor de uso da habitação e exaltam o seu valor de troca.
Em face desta dinâmica, e considerando que a relação entre ‘Moradia e Cidadania’ –
observada de modo integrado com o PMCMV – é o objeto de estudo que estabelecemos nessa
dissertação, partimos da premissa de que a convergência da Moradia como mais um direito do
Consumidor-Cidadão, em vez de um Direito Social, é provocado pela ênfase que as políticas
públicas assumiriam, mais recentemente, em corresponder aos interesses de mercado, isto é,
proporcionar uma acumulação do capital por meio da ampliação da mercadoria “moradia
social” como objeto de consumo.
A pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na
consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade. Os
14
questionamentos que deram origem à pesquisa foram: pode uma política habitacional ampliar
ou prejudicar o sentido de Cidadania de parte da população? A moradia é condição básica para
que a Cidadania ocorra de modo ampliado?
Em face da necessidade de trabalhar elementos concretos da manifestação da política
habitacional e os possíveis efeitos na subjetividade, identidade e sentido de cidadania que se
deseja encontrar, não podemos renegar o contexto histórico e os símbolos que a moradia carrega
consigo especificamente no caso brasileiro. Podemos afirmar, categoricamente, que, no Brasil,
há um sentimento enraizado de que uma forma de aquisição da cidadania é a obtenção da casa
própria; a propriedade está intrínseca ao ideal de moradia digna, ela é retratada ao mesmo tempo
como um símbolo de segurança social, bem como de segurança econômica (a conquista de um
bem valioso) (MILANO, 2013; ARANTES; FIX, 2009). Corroborando o entendimento de
Milano (2013, p.33) o ideal de casa própria, no Brasil, não é apenas uma ideologia, ele incorpora
e traduz experiências de vida, transmitidas de geração em geração, tratando-se, pois, de um fato
social.
Entendemos que a aquisição da casa própria, na sociedade contemporânea, também se
relaciona com a busca de uma uniformidade simbólica, representada pelo acesso a certos bens
e serviços. Nesse sentido, as pessoas reclamam o direito de ser tratado como igual ou, ao menos,
de não ser definitivamente classificado em uma posição de inferioridade por meio de marcações
sociais, isto é, de elementos de distinção ou rejeição sociais, que podem definir a inserção do
indivíduo na sociedade, tanto pelo seu “lugar” no mundo do trabalho como pela significação
(subjetiva) dada a este pelo restante do grupo social. Quando há uma sobreposição de tais
marcas (laboral e simbólica), existe um forte estabelecimento de vínculo com o grupo – seja de
modo a ser acolhido, ou rejeitado.
Nesse aspecto, recorrendo às reflexões de Zygmunt Bauman (2008), o consumo
assume a dianteira nessa marcação social, atrelando a obtenção de produtos de mercado (a
roupa, o carro, o telefone móvel, a casa etc.) à obtenção da própria distinção social3. Fenômeno
reconhecido desde a formação da modernidade, o consumismo se estabelece, também, como
marca programática do Estado ao alcançar expressivas massas empobrecidas por meio do
crédito facilitado.
Um dos problemas fundamentais dessa viragem social – inclusão à sociedade pelo
consumo – é que alguns “objetos” sociais ou equipamentos de reprodução social passam a ser
3 Sobre o processo de diferenciação social Cf. Bourdieu (2007), embora neste trabalho não tenhamos utilizado
seu conceito.
15
vistos não como direitos, em si, mas como marcas de sucesso ou aumento de objetos de
consumo. Perguntamo-nos se isso poderá retirar da Moradia seu aspecto de luta social e
reposicioná-lo na arena de um “individualismo possessivo”4 – enfraquecedor das vinculações
sociais mais amplas.
Contrariamente a esse pensamento de uniformidade social permitido por meio do
acesso a bens de consumo, entendemos que a moradia é parte de um direito maior, o chamado
Direito à Cidade, o qual, corroborando o entendimento de Henri Lefebvre (2016),
compreendemos ser uma plataforma aberta de vida a que todas as pessoas devem ter o direito
de vivenciar e experimentar a cidade, os locais de encontro e de trocas, o uso pleno e inteiro de
momentos e locais.
Em face dessa lógica, partimos da hipótese de que a moradia social, mesmo quando
construída de fato, mas, sem seguir os elementos de fundo que compõem o seu conceito amplo,
pode prejudicar o sentido de cidadania. A facilitação do acesso da dimensão física (material)
da casa pode até ser positiva quanto aos elementos patrimoniais (acesso à parte do capital fixo
existente na cidade) mas, negativa quanto ao atendimento do Direito à Cidade. Assim, à medida
que dificulta o desenvolvimento do indivíduo, ao negar-lhe o acesso aos outros direitos que
constituem o Direito à Cidade, prejudica, diretamente, o direito de cidadania do indivíduo.
Considerando as problemáticas expostas, a pesquisa tem como objetivo compreender
os efeitos da política de moradia na consolidação da Cidadania como elemento de integração
ao Direito à Cidade. Como objetivos específicos, pretendemos: a) identificar sinais – ou
tendências – da relação entre a obtenção da moradia e o sentido de cidadania existente; b)
estabelecer o papel da política setorial de moradia para um sentido de contribuição à Cidadania;
c) entender a manifestação da política habitacional e sua expressão efetiva na produção espacial
com os possíveis efeitos na subjetividade, identidade e sentido de cidadania da população
enquadrada na faixa 1 do PMCMV.
Para alcançar os objetivos propostos, procuramos perseguir dois caminhos básicos
nesta pesquisa: a) a discussão sobre Cidadania, Moradia e Direito à Cidade no Brasil
4 A tese de Macpherson é que a democracia liberal tem suas raízes históricas e sociais unidas ao individualismo
possessivo, ele traça o surgimento e o desenvolvimento das linhas deste individualismo possessivo na Filosofia
Política do séc. XVII (de Hobbes a Locke). O individualismo possessivo compreende o ser humano, tendo como
pressuposto a “sociedade possessiva de mercado”. Para Macpherson (1979) a essência humana é ser livre da
dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. A sociedade torna-se uma porção
de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias capacidades. A sociedade
consiste de relações de troca entre proprietários. E a sociedade política terá a função de proteger a propriedade e a
troca entre proprietários. Cf. BAVARESCO, 2011. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/download/1005/230. Acesso em março de 2017.
16
contemporâneo, a partir de uma revisão da bibliografia e da reflexão conceitual dos termos; b)
uma pesquisa de campo, tendo, como foco, a cidade do Natal-RN, em especial no
empreendimento do PMCMV (faixa 1), Residencial Vivendas do Planalto, localizado no bairro
Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal.
Para tanto, algumas leituras foram observadas no decorrer da pesquisa. David Harvey
abriu caminho para o trabalho intelectual, despertando para a percepção da ética neoliberal e
seus desdobramentos. Na leitura de sua vasta literatura, em especial A condição pós-moderna
(1989), A produção capitalista do espaço (2001), O neoliberalismo: histórias e implicações
(2005), O Direito à Cidade (2008), Cidades rebeldes (2012), Harvey permite compreender
como a cidade se torna uma verdadeira mercadoria sob essa ética em que o individualismo
possessivo e a renúncia política às formas de ação coletiva tornaram-se o padrão para a
socialização humana. O referido Geógrafo nos permite alcançar a ideia de consumismo como
um dos principais aspectos da economia política urbana, na medida em que detalha a tendência
pós-moderna de encorajar a formação de nichos de mercado – tantos hábitos de consumo quanto
formas culturais – envolvendo a experiência urbana contemporânea com uma aura de liberdade
de escolha atrelada ao poder econômico do indivíduo.
Quanto à percepção de Direito à Cidade, a força motora desta pesquisa se alinha com
à concepção apresentada por Henri Lefebvre (2016). Para o referido filósofo, a cidade é um
direito em formação que compreende a vida urbana, entendida como os locais de encontro e de
trocas, os ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses
momentos e locais. Nesse sentido, o Direito à Cidade se manifesta como forma superior de
outros direitos como o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e
habitar5, o direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto de
direito à propriedade)6 (URIARTE, 2012). Para Lefebvre (2016), assim como o Direito à Cidade,
direitos como o trabalho, a instrução, a educação, a saúde, a habitação, o lazer e a vida são
direitos em formação que abrem caminho para a participação social da classe operária, vítima
de segregação.
5 Lefebvre propôs uma distinção conceitual entre habitar e habitat. Habitar é participar, se apropriar: “Até então,
‘habitar’ era participar de uma vida social, de uma comunidade, de uma aldeia ou cidade. A vida urbana detinha,
entre outras, essa qualidade, esse atributo. Ela deixava habitar, permitia que os citadinos-cidadãos habitassem”.
Habitar é uma prática ao mesmo tempo funcional, multifuncional, transfuncional. Já o habitat é uma imposição,
uma “soma de coações”, algo “instaurado pelo alto”; um atentado à diversidade de maneiras de viver; uma redução
do ser humano a algumas de suas funções elementares (comer, dormir, reproduzir). 6 A apropriação é um conceito-chave para entender como, no meio de uma anti-cidade, a vida urbana pode não só
sobreviver como se intensificar. Apropriar-se de espaços (e tempos) é não aceitar o imposto, é metamorfosear o
imposto em obra (1969: 106), é a capacidade de transformar a realidade, logo, é a apropriação que restitui à cidade
o seu sentido de obra e não apenas produto.
17
As conclusões alcançadas nesta pesquisa foram fruto de um trabalho que incorpora o
espírito dialético. A dialética trata da “coisa em si”, mas não daquela que se manifesta
diretamente ao homem. Kosik (1976) explica que a atitude primordial e imediata do homem,
em face da realidade, é a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico
que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens tendo em vista
a consecução dos seus próprios fins e interesses num determinado conjunto de relações sociais.
Dessa forma, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um
objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente; ela se apresenta como o campo
em que exerce sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá uma imediata
intuição prática da realidade, de modo que o indivíduo cria sua própria representação das coisas
e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da
realidade. Todavia, “a existência real” e as formas fenomênicas da realidade são diferentes e
muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, a estrutura da coisa, portanto,
com o seu núcleo essencial e o seu conceito correspondente.
Ao sair do plano das hipóteses, criadas com base no mundo da pseudoconcreticidade
– ou seja, no mundo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da
vida humana – e analisar, in loco, a essência da relação entre a obtenção da casa própria e a
formação da cidadania na população de baixa renda, foi possível revelar elementos, por vezes,
ocultos dessa relação permitindo se chegar à conclusão explicitada ao final da pesquisa.
A pesquisa foi realizada em quatro empreendimentos contíguos (cuja configuração
urbana sugere ser um único empreendimento), denominado Residencial Vivendas do Planalto
I, II, III, IV, localizado no bairro Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal.
O empreendimento abriga uma população que se enquadra na faixa 1 do PMCMV, originária
de dois grupos: um de sorteados (demanda aberta), e outro oriundo de assentamentos com
expressivos níveis de insalubridade e precariedade da habitação7. Em virtude da metodologia
adotada na seleção da demanda aberta, o Residencial reúne pessoas com perfis de renda
diversos, o que gera diversos conflitos internos. O empreendimento foi construído em uma área
com alto nível de precariedade na oferta de equipamentos e serviços públicos. São constantes
os relatos de homicídios, vandalismo e tráfico de drogas pela mídia local.
Para alcançar o objetivo proposto foram realizadas entrevistas qualitativas do tipo
semiestruturado com moradores do referido Residencial. O registro das entrevistas foi feito por
7 Anatália, 8 de Outubro e Monte Celeste.
18
meio de gravações com posterior transcrição. Para interpretação dos dados coletados, a pesquisa
levou a efeito uma análise de conteúdo, mais especificamente uma análise categorial simples.
O estudo foi organizado da seguinte maneira: o primeiro capítulo do trabalho consiste
na análise da cidadania levando em conta o processo histórico brasileiro de formação de uma
cidadania excludente até o momento de consolidação da lógica neoliberal que levou ao
paulatino esquecimento da teoria de cidadania envolvendo mudanças sociais para inserir o
acesso ao consumo como forma de participação social; utiliza como referência a teoria de
cidadania proposta por Thomas Marshall (1967), que considera a aquisição de direitos civis,
políticos e sociais pelo indivíduo necessários para garantia de uma cidadania plena. Aborda,
ainda, as relações teóricas entre Direito à Moradia e Direito à Cidade, mostrando que os
aspectos que caracterizam o Direito à Moradia adequada constituem partes de um direito maior
denominado de Direito à Cidade, o qual se concretiza por meio de uma série de direitos e
garantias fundamentais aos indivíduos, sendo a cidade o espaço da prática dinâmica da
cidadania e da sua ampliação além da mera titularidade de um status jurídico perante o Estado.
No segundo capítulo, há uma preocupação em trazer à tona as relações de construção
da moradia no Brasil, no período pós Constituição de 1988 até o momento atual. Para tanto,
precedeu-se a um breve histórico da maneira como os governos de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) desenharam a intervenção do Estado na
situação habitacional do país até a consolidação do Programa Minha Casa Minha Vida na
política urbana em nível nacional. Esse capítulo permite que o leitor observe como o avanço e
a financeirização da terra e da moradia no país marcaram uma inflexão nas políticas de
habitação deixando de equacionar o problema habitacional no âmbito de um projeto nacional
de desenvolvimento relacionado à inclusão social.
O terceiro capítulo consiste na análise do PMCMV, sua finalidade, modalidades e
formas de execução, demonstrando que este é um Programa voltado para superação do déficit
quantitativo do problema da moradia, mas que, em sua articulação, tem sido incapaz de
apresentar resultados no enfrentamento da grande dívida social com a questão da moradia digna
em nosso país, que articule moradia com as demandas pelo Direito à Cidade. Por fim, é feita
uma análise do PMCMV na Região Metropolitana de Natal, e mais especificamente, no
município de Natal/RN.
O quarto capítulo é destinado à exposição das abordagens e técnicas para a pesquisa
empírica, descrevemos os procedimentos de pesquisa, com destaque para a abordagem
qualitativa e o estudo de caso, incluindo o lócus da investigação, as unidades e procedimentos
19
de análise das entrevistas. A pesquisa empírica foi utilizada como forma de captar a essência
da percepção dos entrevistados sobre suas moradias, suas reivindicações e o modo de
compreender a cidadania relacionada a obtenção da casa própria pelo PMCMV. Ao final,
apresentamos os resultados da pesquisa de campo.
Por fim, nas considerações finais, serão abordadas algumas reflexões sobre o
desenvolvimento do trabalho, bem como as principais conclusões da pesquisa. Esclarecemos
que essa pesquisa não pretendeu, em momento algum, esgotar as possibilidades de análise que
envolvem a relação entre Moradia e Cidadania, mas visou chamar a atenção para essa relação
nos estudos sobre o PMCMV, haja vista termos observado a escassez de pesquisas sobre o
Programa que abordem o aspecto aqui examinado.
20
1. Cidadania, moradia e o direito à cidade: debates contemporâneos e fortalecimento das
políticas sociais
1.1. Cidadania: o que é e como se concretiza
Podemos observar que os direitos do Homem se modificam permanentemente em
virtude da mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses das
classes no poder, dos meios disponíveis para a sua realização, das transformações técnicas, etc.
Assim, o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é
fundamental em outras épocas e/ou em outras culturas (BOBBIO, 2004). Nesse sentido,
compreendemos que o estudo dos direitos do homem não pode estar dissociado dos problemas
históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização.
Obedecendo a essa lógica, a conceituação de qualquer direito, seja qual for, vai
incorporar os significados que lhe foram dados ao longo da história, sendo preciso analisar o
contexto em que se desenvolveu a noção de determinado direito para poder conceituá-lo. No
presente capítulo, nos propomos a conceituar o direito à cidadania, bem como discorrer sobre
sua forma de concretização.
A análise do direito à cidadania tem como principal ponto de partida o discurso do
sociólogo inglês de matriz liberal, Thomas Humphrey Marshall, em 1949, que se tornou um
marco no estudo da cidadania. Para Marshall, a cidadania seria formada, inicialmente, pelos
direitos civis, depois pelos políticos e, por fim, pelos sociais, compondo, assim, as denominadas
três gerações de direitos. Esse conjunto de Direitos é a forma de garantir ao cidadão a plena
participação política nos assuntos do seu país. Portanto, o conteúdo decisivo para a relação entre
cidadania e direitos civis é a obtenção dos direitos (MARSHALL, 1967).
O tradicional discurso Marshalliano sobre a cidadania foi marcado por um momento
de transição entre o liberalismo e o Estado Social, tendo, como referencial analítico, a Inglaterra
de meados do século XX. Tal discurso justificou e preencheu as lacunas lançadas pelo
liberalismo por muito tempo, no entanto, no quadro de referência do neoliberalismo, as bases
históricas de Marshall encontraram-se em crise e risco. A conjunção dos direitos, enquanto
feixe de relações historicamente construídas, se ajusta tanto a certa ordem Liberal (propriedade,
liberdade e segurança), quanto a uma ordem Social (justiça, igualdade, solidariedade), visto que
comungam de objetivos de base histórica comum, isto é, a libertação da burguesia do julgo
aristocrático da nobreza medieval (POLANYI, 2000). Suas diferenças, entretanto, surgem
quando perguntamos como garantir tais direitos, sendo que dois caminhos históricos se
21
apresentaram: a) pela via da Reforma Social (em que o trabalhismo britânico demonstrou sua
importância nos “30 gloriosos” anos do pós-Guerra), e da Revolução Social (cuja fracassada
experiência soviética se transformou em uma outra forma de capitalismo de Estado).
Desse modo, o neoliberalismo, em sentido estrito, retorna com muito mais força
quando, em meados dos anos de 1970, a pactuação Social-Democrata (a relação pacificada entre
Capital e Trabalho, fruto dos arranjos do welfare state) começou a ser fragilizada pelo mercado
financeiro, pela Globalização e pelas práticas concorrenciais (HARVEY, 2008). A pactuação
histórica, na convergência do acesso aos Direitos Sociais, revela, para Marshall, essa terceira
etapa do acesso à cidadania; e, ainda, indica a fronteira máxima do Welfare State (como
conhecemos) pois limita a ordem econômica a um quadro de maior segurança e menor
instabilidade do capitalismo. Tal quadro é abalado por uma outra ordem liberal que se opõe aos
Direitos Sociais reclamando maior eficiência e eficácia do gasto público.
Nessa dinâmica política no contexto da Europa Ocidental, o conceito de cidadania foi
um instrumento poderoso para estabelecer o universal como modo de contrabalancear e, até
mesmo, acabar com e/ou compensar a teia de privilégios que se cristalizavam em diferenciações
e hierarquias locais. Contrariamente, na dinâmica política no contexto da América Latina,
especificamente do Brasil do século XX, o conceito de cidadania não possibilitou um caráter
nivelador e igualitário do indivíduo, visto que o poder político estava, em primeiro lugar, a
serviço dos grupos econômicos e, secundariamente, a serviço de um projeto nacional, cessando
a golpes e quarteladas uma possível participação democrática do indivíduo.
Nesse sentido, Roberto da Matta (2011) comenta que o processo histórico brasileiro se
deu engendrando leis que estabeleciam espaços sociais e políticos para manifestações
individuais e locais, renegando totalidades maiores e mais inclusivas que os sistemas locais. Tal
modo de organização tornou a hierarquia fundamental para a definição do papel das instituições
e dos indivíduos, levando a uma sociedade em que os direitos são concedidos não como
prestações legítimas para cidadãos livres e iguais perante a lei, mas como benesses para
protegidos, tutelados, clientelas.
Ao discorrer sobre cidadania e democracia, Benevides (1994) afirma que a
modernização conservadora do Brasil empreendeu reformas institucionais (ampliação de
direitos políticos e liberdades de associação partidária), reformas econômicas (no setor
financeiro) e reformas sociais (leis trabalhistas impostas pela ditadura Vargas), mas que não
houve uma mudança, no sentido democrático, do acesso à justiça e à segurança, a distribuição
de rendas, a estrutura agrária, a previdência social, educação, saúde, habitação etc, mantendo,
22
assim, um histórico de cidadania parcial, desequilibrada, excludente, em que os direitos são
entendidos como privilégios só para alguns e sob determinadas condições. Continua a referida
socióloga:
No quadro da democracia liberal, cidadania corresponde ao conjunto das
liberdades individuais ‒ os chamados direitos civis de locomoção, pensamento
e expressão, integridade física, associação, etc. O advento da democracia
social acrescentou, àqueles direitos do indivíduo, os direitos trabalhistas, ou
direitos a prestações de natureza social reclamadas ao Estado (educação,
saúde, seguridade e previdência). Em ambos os casos o cidadão, nesta
concepção, é titular de direitos e liberdades em relação ao Estado e a outros
particulares ‒ mas permanece situado fora do âmbito estatal, não assumindo
qualquer titularidade quanto a funções públicas. Mantém-se, assim, a
perspectiva do constitucionalismo clássico: direitos do homem e do cidadão
são exercidos frente ao Estado, mas não dentro do aparelho estatal
(BENEVIDES, 1994, p. 8).
O Brasil se desenvolveu como Nação burocrática, operada a partir de instituições e leis
criadas pelo próprio Estado como seus instrumentos de progresso, de forma que as pessoas não
faziam a relação de seus direitos com a ideia de cidadania; era como se os direitos existissem à
parte, conferidos por outros estatutos, como o de trabalhador, por exemplo. Holston (2013)
explica que a palavra cidadão quase sempre tinha um sentido diferente para os brasileiros de
todas as classes, significava uma pessoa qualquer, destituída de direito, alguém numa
circunstância infeliz ou desvalorizada, indicava, em suma, distância, anonimato e nada em
comum. Nessa formulação, afirma esse antropólogo que a cidadania era uma medida de
diferença e uma forma de distanciar as pessoas umas das outras, na medida em que o termo
‘cidadão’ lembrava as pessoas do que elas não eram, embora, paradoxalmente, elas próprias
fossem cidadãs, definindo, assim, os cidadãos como ‘os outros’, e continua:
Esse esquema de cidadania é, em resumo, um mecanismo de distribuição de
desigualdade. As cidadanias não criam diretamente a maioria das diferenças
que usam. Elas são, antes, os meios fundamentais pelos quais os Estados-
nações reconhecem e administram algumas diferenças como sistematicamente
proeminentes, ao legitimá-las para propósitos diversos. Em geral, um regime
de cidadania legitima e iguala diferenças ao mesmo tempo, e suas
combinações específicas lhe conferem caráter histórico. A formulação
brasileira iguala as diferenças sociais no que se refere à afiliação nacional,
porém legaliza algumas dessas diferenças como bases para distribuir de
maneira diferenciada direitos e privilégios entre os cidadãos. Assim, no início
da república, ela negava educação como um direito dos cidadãos e usava o
alfabetismo e gênero para restringir a cidadania política. Ao legalizar essas
diferenças, ela consolida suas desigualdades e as perpetua em outras formas
por toda a sociedade. Devido a esta perpetuação foram negados direitos
políticos à maioria dos brasileiros, que tiveram seu acesso à propriedade
fundiária limitado, foram forçados a condições de residência segregadas e
muitas vezes ilegais, postos à margem da lei e reduzidos a trabalhar como
23
serviçais. Tais discriminações não resultam da exclusão dos brasileiros da
própria cidadania. Se fosse esse o caso, seria difícil explicar o sentimento de
pertencimento à nação. Em vez disso, eles são discriminados por fazerem
parte de certa espécie de cidadãos (HOLSTON, 2011, p. 28-29).
Podemos falar em uma mudança de perspectiva, de acordo com Marilena Chauí
(1984), a partir da ascensão dos movimentos sociais pela reivindicação dos direitos humanos
nas décadas de 1970 e 1980. Esclarece Chauí que foi, a partir dessas décadas, que a concepção
de cidadania passou a envolver demandas por distribuição socioeconômica (igualdade) e
reconhecimento político-cultural (diferença); a cidadania passou a ser definida pelos princípios
da democracia, significando, necessariamente, conquista e consolidação social e política,
exigindo instituições, mediações e comportamentos próprios na criação de espaços sociais de
lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes
para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. Nesse sentido,
distingue a referida autora a cidadania passiva − aquela que é outorgada pelo Estado, com a
ideia moral do favor e da tutela − da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como portador
de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de
participação política.
Só a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o relacionamento entre
obtenção de direitos e a ideia de cidadania é mais difundido. A referida Carta Magna afirmou
uma série de direitos sociais e foi amplamente reconhecida como importante avanço jurídico
em direção à inclusão social e à diminuição de desigualdades históricas, consolidando um
avanço na construção de um Estado Democrático de Direito. Já a disseminação da cidadania,
como pressuposto básico da manifestação dos direitos, é um processo mais longo e incompleto.
Por outro lado, no quadro histórico dos anos de 1990, a ascensão ideológica do
neoliberalismo e a consolidação de sua lógica de predomínio da economia de mercado
impactaram a figura do ‘cidadão’ investido de uma responsabilidade coletiva que desaparece
aos poucos, dando lugar ao empreendedor, abrindo caminho para que o consumo se desloque
para o centro do debate público, rivalizando com o tema da participação social. É com esse
sentido que compreendemos as assertivas de Pierre Dardot e Christian Laval ao afirmar que:
O acesso a certos bens e serviços [com o neoliberalismo] não é mais
considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado
de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um
custo direto para o usuário. A figura do ‘cidadão’ investido de uma
responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem
empreendedor. [...] A referência da ação pública não é mais o sujeito de
direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos
24
privados com outros atores autoempreendedores. [...] Longe de ser neutra, a
reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica
democrática de cidadania social; reforçando desigualdades sociais na
distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego,
saúde e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um
número crescente de ‘subcidadãos’ e ‘não cidadãos’ (DARDOT; LAVAL,
2016, p. 381).
O pensamento liberal renovado volta a insistir na importância do mercado como
mecanismo autorregulador da vida econômica e social. Como consequência da redução do
papel do Estado, têm-se a aceleração da globalização, a formação de blocos internacionais, o
salto para a tecnologia digital, o advento de uma sociedade da informação, a reestruturação
produtiva, bem como a precarização do emprego e a fragmentação da crítica social, conduzindo,
assim, a uma etapa do capitalismo travejada por novas problemáticas (CARVALHO, 2002).
Desse modo, a erosão do “social” não afeta, apenas, os direitos ligados à solidariedade
(último estágio do modelo de Marshall sobre cidadania), mas também os demais direitos
políticos e civis por abrir um perigoso trajeto da crítica à reivindicação de uma ampla reforma
no pacto social do bem-estar social; a própria noção de cidadania entra em risco pois a erosão
do espaço público (arena política) diminuído pelo consumo e pelo poder do dinheiro nas
relações, esvazia as trocas sociais e favorece as trocas econômicas. Ainda mais incisivos,
Dardot e Laval (2016, p. 382) comentam que essa racionalidade neoliberalizante “[...] vê as leis
e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da
realização de objetivos [...]”, de metas, de prazos, de base quantitativa que afeta a dimensão
política, portadora também de subjetividades.
Nessa nova conjuntura, o Estado, o mercado e os movimentos sociais passam a
disciplinar e estimular práticas de consumo nem sempre conscientes e politizadas. O acesso ao
consumo passa a se tornar uma forma de inserção social, na medida em que a propriedade de
determinados produtos e o acesso a determinados serviços tornam-se instrumentos para a
construção e reforço de identidades sociais, e consequentemente, para o reconhecimento de um
indivíduo como cidadão. A cidadania, mais do que pertencimento a uma determinada
comunidade ou nação, passa a se conectar com reconhecimento da humanidade de um indivíduo
e de sua aceitação, não apenas como membro de uma comunidade, mas também como um par,
um igual, um ser visível, digno de respeito. Nos estratos menos favorecidos, esse consumo
passa a ser pensado como inclusão, estabelecendo uma relação de congruência entre consumo
e cidadania.
25
Vidal (2003) esclarece que a necessidade de reconhecimento do pobre brasileiro
remete ao ideal de ser tratado como igual e essa igualdade está diretamente relacionada ao
sentimento de respeito. Explica o autor que essa noção de respeito apresenta subjetividades
distintas, entre elas, a de que o respeito supõe que a identidade absoluta dos indivíduos seja
reconhecida, em que a esperança de ascensão social confirma esse anseio de mobilidade por
parte de uma sociedade onde nenhuma diferença essencial impede o acesso a uma posição
desejada. Assim, algumas identificações culturais da sociedade como, por exemplo, o desejo de
consumir, atestam a busca de uma uniformidade simbólica, marcando a semelhança de todos
acima das desigualdades econômicas. É, exatamente, essa forma de igualdade que permite a
mobilidade social que está no princípio da ideia de cidadania na democracia da sociedade
contemporânea. No entanto, corroborando com o entendimento de Carvalho (2002) se o direito
de comprar um telefone celular, um tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir
entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político, as perspectivas de avanço
democrático se veem diminuídas.
Assim, da antiga “ordem” social expressa pela participação no bem-estar social, restam
fragmentos de uma cidadania cindida pela lógica do consumo e do mercado que não diminuem
o Estado, mas o submetem a uma racionalidade de resultados – especialmente de curto prazo.
A “velha” social democracia entra em choque com a “nova ordem” de um liberalismo cada vez
mais solto de amarras (quadros) normativos ou a “[...] ‘social-democracia’ é direta e
radicalmente contestada, já que essa denominação desvia seu sentido à possibilidade de
estender a democracia política mediante o reconhecimento de direitos sociais” que, agora, não
existem mais (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 390).
A base territorial dessa transformação (do cidadão ao consumidor) se insere em um
quadro mais amplo de transformações do próprio capitalismo (enquanto Sistema) e do Capital
(enquanto feixe de relações), em sua necessidade de modificar o quadro regulador das
condições sociais da produção (trabalho, terra e dinheiro). Esse passo é necessário antes de
entrarmos no campo do Direito à Moradia, pois tal moradia será compreendida à luz do modelo
neoliberal de produção.
David Harvey é um dos mais profícuos pensadores contemporâneos que insiste na
leitura do Capitalismo como um disjuntor perpétuo de crises, objetivando a continuada
circulação do Capital e o continuado processo de Acumulação – nisso, altera o espaço
geográfico, as relações de trabalho (enquanto mercadoria) e o poder do dinheiro (na sua
reificação permanente). Harvey (2005) estabelece uma forte relação entre os movimentos das
26
políticas territoriais e os interesses do Capital – em que a “lógica territorial” está presente no
Estado e a “lógica capitalista” presa ao campo da Produção e Circulação do Capital.
Dito de modo mais específico, parte do Capital precisa se fixar à terra na forma de
dispositivos fixos (construções e infraestrutura), enquanto outra parcela alimenta as máquinas
e equipamentos móveis. Entretanto, outra parcela do capital busca, no circuito das despesas
sociais (educação e saúde, por exemplo), sua imobilização garantida pelo Estado. Para Harvey,
o “segredo”, a chave de disjunção é o chamado “ajuste espaço-tempo”, a operação articulada
das duas lógicas (Estado e Capital) na superação das crises de sobreacumulação (HARVEY,
2005).
Giovani Arrighi, comentando essa passagem de Harvey, resume que “[...] essas
observações indicam que os spatial fix [ajustes espaciais] são restringidos não só pela
resistência à relocalização econômica e aos realimentos geopolíticos a ele associados, mas
também pela resistência à mudança social” (ARRIGHI, 2008, p. 231, grifo nosso); ou seja, o
Estado deve remover (a bem do Capital) as amarras ligadas aos Direitos Sociais que restringem
a livre circulação do capital no território, no social e no simbólico, ampliando, desse modo, sua
capacidade perpétua de acumulação. Esse é o sentido teórico do neoliberalismo, enquanto
dimensão Política. Desse modo, a Cidadania – ou a noção de cidadania social – é o maior
empecilho a esse avanço, por conjugar os direitos civis, políticos e sociais como um feixe de
relações progressistas, portanto, libertadoras.
Aproximando-nos da moradia, se esta é vista como Direito Social, está ligada,
portanto, à ordem marshalliana de conquistas civis, políticas e sociais, monumento progressista
construído pela associação de interesses particulares e coletivos – mesmo que dentro de uma
ordem liberal. Por outro lado, se ela passa a ser vista como elemento de mercado, de consumo,
como objeto de relação contratual privada – substituindo o Direito Social pelo Direito Privado,
etc. logo, suas amarras legais são postas a serviço de um objetivo, de uma meta e de um
propósito quantitativo, isto é, produzir mais e em maior escala – entrando assim na ordem
Neoliberal, conforme denunciada por Dardot e Laval (2016).
Essa sutil diferença – liberal para neoliberal – é a marca de distinção de uma política
de promoção do consumo, revestida como política social, mas que opera uma inversão de
sentidos básica, isto é, da igualdade de acesso à liberdade do consumo. É esclarecedor, nesse
sentido, a percepção de Bauman (2008) quanto à mudança de “tom” entre sociedade liberal e
neoliberal ao comentar que
27
[...] o ambiente existencial que se tornou conhecido como ‘sociedade de
consumidores’ se distingue por uma reconstrução das relações humanas a
partir do padrão, e à semelhança, das relações entre consumidores e objetos
de consumo. Esse feito notável foi alcançado mediante a anexação e
colonização, pelos mercados de consumo, do espaço que estende entre os
indivíduos – esse espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os
seres humanos e se erguem as cercas que os separam (BAUMAN, 2008, p.
19).
Assim, a inversão de sentido da produção social da moradia opera em dois eixos
principais: a) a substituição da luta pela moradia pela luta ao crédito e b) a submissão desse
crédito à lógica financeira da valorização. Mas quais alterações são propostas e quais aquelas
que já ameaçam ocorrer? Para tanto, precisamos do conceito de Direito à Moradia de modo
mais claro.
1.2. Direito à Moradia: definição e relações teóricas
A moradia adequada é um dos direitos humanos reconhecido, em 1948, pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948) como integrante do
direito a um padrão de vida adequado, e também, em 1966, pelo Pacto Internacional de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)8, tornando-se um direito humano
universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais
para a vida das pessoas (BRASIL, 2013).
Além da DUDH e do PIDESC, vários tratados internacionais reafirmam a promoção e
proteção desse direito; atualmente são 13 (treze) textos diferentes da Organização das Nações
Unidas (ONU) que reconhecem o Direito à Moradia adequada9. No Brasil, o reconhecimento
8Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) é um tratado multilateral adotado
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e em vigor desde 3 de janeiro de 1976; é
parte da Carta Internacional dos Direitos Humanos, juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), incluindo o primeiro e o segundo
protocolos opcionais deste último. 9Os tratados internacionais de direitos humanos têm abordado o direito à moradia adequada de diferentes maneiras.
Alguns são de aplicação geral, enquanto outros cobrem os direitos humanos de grupos específicos, como mulheres,
crianças, povos indígenas, trabalhadores imigrantes e membros das suas famílias, ou pessoas com deficiência: 1.
DUDH (Art. 25, parágrafo 1º); 2. PIDCP (Art. 17, § 1º); 3. PIDESC (Art.11, §1º); 4. Comentário Geral nº 4 do
Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – CDESC; 5. Comentário Geral Nº 7 do CDESC. 6.
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Art. 5); 7. Convenção
Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher Artigo 14,2; 8. Convenção sobre os
Direitos das Crianças (Art. 16, 1; Art. 27, 3); 9. Princípios das Nações Unidas para moradia e restituição de posses
para refugiados e pessoas deslocadas; 10. Convenção sobre o status dos refugiados (Artigo 21); 11. Convenção
169 da OIT; Convenção de Genebra (quarta) sobre proteção de civis em tempo de Guerra 1949 (Artigo 49, 53,
85,134); 12. Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e
Membros de suas Famílias, 1990 (Art. 43, 1, d); 13. Declaração do Direito dos Indígenas, 2008.
28
do Direito à Moradia, de modo oficial, se deu pela adesão ao PIDESC, em 6 de julho de 1992
(BRASIL, 1992). Além desse Pacto, nosso País também ratificou as Convenções sobre a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965); a Eliminação de todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); e a Convenção sobre os Direitos das
Crianças (1989). Todas reafirmaram a condenação de qualquer tipo de discriminação, seja de
gênero, idade, raça e nível socioeconômico, referente ao direito de moradia adequada.
Em razão das obrigações assumidas perante a comunidade internacional, o Brasil
incluiu, no Texto Constitucional, especificamente, no Título II, Capítulo II, Dos Direitos
Sociais, artigo 6º10, com o advento da Emenda Constitucional nº 26/2000, o Direito à Moradia
como um direito social fundamental. Todavia, antes mesmo da criação da citada Emenda
Constitucional, a Constituição Federal de 1988 já fazia menção expressa à moradia em outros
dispositivos, tais como: artigo 23, inciso IX, que dispõe sobre a competência comum da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para “[...] promover programas de
construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico [...]”;
e, artigo 7º, inciso IV, que define o salário mínimo como aquele “[...] capaz de atender às suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, [...]” (BRASIL,
1988).
A concepção de adequação é particularmente significante em relação ao Direito à
Moradia, visto que serve para realçar um número de fatores que devem ser levados em
consideração para constituir ‘moradia adequada’. Assim, a definição de adequação é detalhada
no Comentário Geral nº 4, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ‒ CDESC ‒
(BRASIL, 2013), que interpreta o artigo 11.1 do PIDESC, determinando uma série de condições
que devem ser atendidas para que tal direito seja satisfeito. Dispõe o art. 11.1 do PIDESC:
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a
um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria
continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas
apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse
sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no
livre consentimento (BRASIL, 1992, grifo nosso).
10Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 13.02.2017.
29
Segundo o CDESC, item 8, enquanto a adequação é determinada em parte por fatores
sociais, econômicos, culturais, climáticos, ecológicos e outros, o Comitê acredita, contudo,
que é possível identificar certos aspectos do direito que devem ser levados em consideração
para esse propósito em qualquer contexto particular, quais sejam: segurança legal da posse;
disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; custo acessível;
habitabilidade; acessibilidade; localização; assim definidos:
a. Segurança legal de posse: A posse toma uma variedade de formas,
incluindo locação (pública e privada), acomodação, habitação cooperativa,
arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência e
assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou propriedade.
b. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura: Uma
casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde,
segurança, conforto e nutrição.
c. Custo acessível: Os custos financeiros de um domicílio associados à
habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de outras
necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas. Passos
deveriam ser tomados pelos Estados-partes por uma cultura de direitos
humanos para assegurar que a porcentagem dos custos relacionados à
habitação seja, em geral, mensurada de acordo com os níveis de renda.
d. Habitabilidade: A habitação adequada deve ser habitável, em termos de
prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade,
calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de
doença.
e. Acessibilidade: Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com
titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total
e sustentável a recursos de habitação adequada, aumentando o acesso à terra
àqueles que não a possuem ou a segmentos empobrecidos da sociedade,
deveriam constituir uma meta central de políticas. Obrigações
governamentais precisam ser desenvolvidas, objetivando substanciar o
direito de todos a um lugar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo
o acesso ao terreno como um direito reconhecido.
f. Localização: A habitação adequada deve estar em uma localização que
permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e
outras facilidades sociais. Isso é válido para grandes cidades, como também
para as áreas rurais, em que os custos para chegar ao local de trabalho podem
gerar gastos excessivos sobre o orçamento dos lares pobres. Similarmente,
habitações não deveriam ser construídas em locais poluídos nem nas
proximidades de fontes de poluição que ameacem o direito à saúde dos
habitantes.
g. Adequação cultural: A maneira como a habitação é construída, os
materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem
possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural
da habitação. Atividades tomadas a fim do desenvolvimento ou
modernização na esfera habitacional deveriam assegurar que as dimensões
culturais da habitação não fossem sacrificadas, e que, entre outras,
facilidades tecnológicas modernas sejam também asseguradas (NAÇÕES
UNIDAS, 1992 apud BRASIL, 2013, p. 35-37)
30
Além das condições elencadas pelo Comentário Geral nº 4 do CDESC, para que o
Direito à Moradia adequada seja satisfeito, a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação
e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III)11 dispõe que a moradia adequada figura
como elemento integrante ao direito a um nível de vida adequado, sem discriminação, com
acesso universal à água potável e ao saneamento, assim como a igualdade de acesso de todos
aos bens públicos e serviços de qualidade em esfera, como a segurança alimentar e a nutrição,
a saúde, a educação, as infraestruturas, a mobilidade e o transporte, a energia, a qualidade do
ar e aos meios de vida.
A observação da legislação sobre o Direito à Moradia nos permite compreender que
moradia adequada não significa ter, apenas, um teto e quatro paredes, ou, ainda, a propriedade
da casa, mas que o indivíduo tenha garantia de um lugar seguro, com paz e dignidade para
viver e se desenvolver como pessoa. Esse lugar pressupõe que o indivíduo tenha a garantia de
acesso a serviços adequados, de forma que não apenas a estrutura da moradia deve ser
adequada, mas também, o acesso sustentável e não discriminatório às infraestruturas
essenciais para a saúde, educação, transporte, lazer, alimentação, etc. Só assim é que o
indivíduo vai ter condições de desenvolver suas liberdades individuais, bem como pôr em
prática seus direitos políticos e sociais.
Entendemos, portanto, que a moradia adequada está relacionada àquelas três gerações
de direitos postas por Marshall, as quais garantem ao indivíduo a cidadania plena. Conforme
exposto no primeiro capítulo, Marshall relaciona a cidadania plena diretamente à conquista de
direitos civis, políticos e sociais. Conforme nos ensina Paulo Bonavides (2012), os direitos
civis e políticos são os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, são os
direitos da liberdade, que têm por titular o indivíduo; tais direitos,
[...] são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da
pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico,
enfim são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. [...] São
por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das
liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a
chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual (BONAVIDES,
2012; p. 582).
Já os direitos sociais conforme esse jurista, são os direitos coletivos ou de
coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social,
depois que germinaram por obra da ideologia e reflexão antiliberal do século XX; possuem
11 Realizada de 17 a 20 de outubro de 2016 em Quito, Equador, a Habitat III adotou a Nova Agenda Urbana como
documento que vai orientar a urbanização sustentável pelos próximos 20 anos.
31
natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre
resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. Segundo
Bonavides (2012, p. 582), “[...] nasceram abraçados a igualdade, do qual não se podem
separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”.
Podemos dizer que os direitos sociais são aqueles que respondem às necessidades
humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo, e estão
relacionados, principalmente, com o direito ao salário, saúde, educação, habitação e
alimentação.
Nesse aspecto, corroboramos as ideias de Sugai (2003; p. 50) quando afirma que “[...]
existe uma ligação entre Direito à Moradia e o direito à vida, à dignidade da pessoa humana,
à integridade física, à educação, à assistência, à inviolabilidade do domicílio, à função social
da propriedade, etc.”, demonstrando que esse é um direito interdependente, não isolado,
portanto, conjugado a outros direitos também fundamentais.
A moradia constitui, portanto, elemento essencial na caracterização do cidadão pleno,
na medida em que proporciona sua existência, sua participação e seu reconhecimento pela
sociedade, estando diretamente relacionada à identidade pessoal, cultural e política do
indivíduo.
Em face de tais considerações podemos observar que os aspectos que caracterizam o
Direito à Moradia constituem partes de um direito maior, denominado ‘Direito à Cidade’, que
será objeto de nossa análise a partir de agora.
1.3. Direito à Cidade: relações teóricas e lutas sociais
A cidade consiste no espaço por excelência da prática da cidadania; nela se produz a
política, se realizam as atividades econômicas, se organiza a vida institucional, se formam
novos sujeitos sociais e se modifica o direito; portanto, é o espaço urbano o grande referencial
para se refletir sobre a cidadania (BELLO, 2013). A ideia imediata de Direito à Cidade,
geralmente, está atrelada à garantia de provisão de serviços – como saúde, educação,
alimentação, vestuário, moradia, transporte coletivo, entre outros – ou, ainda, à gestão urbana
democrática e de abertura dos processos de planejamento da cidade à participação direta, no
entanto seu conceito é muito mais abrangente.
Partindo de uma reflexão sobre o direito à cidade proposto por Henri Lefebvre (2016),
entendemos que o direito à cidade não se refere à mera provisão de serviços ou de mais um
direito a ser institucionalizado no arcabouço jurídico do Estado, mas a uma plataforma aberta
32
de vida em que todas as pessoas devem ter o direito à prática social de outros direitos, como
o direito à vida urbana, isto é, a possibilidade de vivenciar e experimentar a cidade, os locais
de encontro e de trocas, o uso pleno e inteiro de momentos e locais.
O conceito de Direito à Cidade, com base em Lefebvre (1967), se dá no contexto do
desenvolvimento do capitalismo industrial, em que a lógica de produção do espaço urbano
passa a se subordinar ao valor de troca e não ao valor de uso, rompendo com a unidade de
cidade constituída como uma totalidade orgânica e impondo uma extrema segregação aos
grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo, morfologicamente, a cidade e ameaçando
a vida urbana para as classes operárias12. O modelo de organização social inerente à ordem
urbana capitalista13 passou a organizar os espaços de forma racional, expulsando os
trabalhadores para as periferias, criando grandes conjuntos habitacionais que constituíam
verdadeiras máquinas de morar, intensificando as segregações por meio da separação
funcional das atividades e da sociedade no espaço e retirando da cidade tudo que o que ela
tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível, em suma: o valor de uso14.
Em face dessa dinâmica, Lefebvre (1967) afirma que o Direito à Cidade é o direito à
vida urbana, transformada, renovada, ou seja, esse direito não permite que o trabalhador,
apenas, passe o dia na cidade da qual foi expulso e volte para dormir no subúrbio; esse direito
engloba o direito à vida cotidiana na cidade, uma cidade feita de satisfação e prazer, de
encontros, ludicidade e imprevisibilidade; o direito a habitá-la, a praticá-la, a moldá-la em
função dos valores de uso.
Apesar de a noção de Direito à Cidade de Lefebvre (1967) se relacionar com a
conjuntura histórica da França em 1968, sua visão sobre esse direito constitui uma chave de
interpretação e transformação do mundo atual (embora com efeitos no futuro) haja vista que
o descolamento propiciado pelas frações do capital, presentes na cidade e, depois, definidoras
da cidade, entre o valor de uso e valor de troca, estabeleceu em tempos recentes – dos anos de
1960 para cá – uma maior autonomia do mais-valor como expressão definidora do acesso à
cidade. No aspecto específico da moradia, podemos afirmar que insurgiu uma ordem
12 A classe operária foi remanejada do tecido espacial parisiense como resposta da classe dominante às jornadas
operárias de junho de 1848. Lefebvre afirma que a segregação dos trabalhadores foi uma estratégia da burguesia
de Paris para frear a democracia urbana nascente impulsionada pelas lutas populares, uma vez que, naquele
momento, essa ordem política embrionária representava uma ameaça real aos interesses políticos das classes
dominantes (LEFEBVRE, 2016). 13Na visão de Lefebvre (2016), o urbanismo é uma ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade
fragmentadora. 14 Essa visão de Lefebvre não é absoluta, uma vez que se relaciona, em parte, com a conjuntura histórica da França
em 1968.
33
neoliberal que, cada vez mais, garante à moradia sua característica fundamental como valor
de troca, afetando profundamente o exercício do Direito à Moradia adequada, uma vez que a
ideia de moradia como meio de acesso à riqueza leva a sua transformação de bem de uso a
capital fixo, sujeito ao ritmo de alteração dos preços do solo urbano, tanto nos subcentros
(bairros de maior renda e oferta de serviços), quanto nas periferias, implicando na
fragmentação do espaço urbano e na segregação socioespacial.
No plano do cotidiano, o local da moradia exprime referência e capacidade de acessar
as partes “mais nobres” ou está associado aos bairros vulgares, concentradores de pobreza. E
não é de hoje; quando Engels abre seu capítulo sobre “As grandes cidades”, faz questão de
lembrar, ao seu leitor, da época que o local dessa moradia fazia parte do luxo e da riqueza da
cidade como um todo, visto que:
[...] depois de pisarmos, por uns quatro dias, as pedras das ruas principais,
depois de passar a custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos
e carroças, depois de visitar os “bairros de má fama” desta metrópole – só
então começamos a notar que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor
parte de sua condição de homens para realizar todos esses milagres da
civilização de que é pródiga a cidade, só então começamos a notar que mil
forças nelas latentes permanecem inativas e foram asfixiadas para que só
alguns pudessem desenvolver-se mais e multiplicar-se mediante a união com
as de outros (ENGELS, [1845] 2010, p.67-68).
A expressão da qualidade e da inserção urbana da moradia é reveladora do quadro de
maior ou menor desigualdade social presente na sociedade, o acesso a oportunidades para
alcançar um padrão adequado de viver para as comunidades vulneráveis e pobres está
diretamente relacionado à sua localização no território da cidade, os equipamentos urbanos
comunitários funcionam como suporte material para a prestação de serviços básicos de saúde,
educação, recreação, esporte, entre outros. Concomitante à infraestrutura, os edifícios
industriais, comerciais e de moradias constituem os componentes físicos básicos para a
existência de um bairro ou de uma cidade. A existência desses componentes físicos é
considerada um fator importante de bem-estar social e de apoio ao desenvolvimento econômico,
bem como de ordenação territorial e de estruturação dos aglomerados humanos. Assim, a
carência deles mostra as desigualdades sociais presentes em um dado território (MORAES;
GOUDARD; OLIVEIRA, 2008).
Em face do exposto, a luta pelo Direito à Cidade, tal qual se impõe na atualidade,
refere-se ao direito a uma vida melhor e mais digna dentro da lógica da cidade movida pelo
modo capitalista de produção para que a cidade seja um direito coletivo de todos os seus
34
habitantes, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos. Em 2006, o Fórum Social
Mundial (FSM)15, organizado por movimentos sociais de muitos continentes, com objetivo de
elaborar alternativas para uma transformação social global deu origem a uma Carta Mundial
pelo Direito à Cidade16. Nos termos da referida Carta, o Direito à Cidade é definido como o
usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade
e justiça social; nesse sentido é um direito
[...] interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos
civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão
regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a
inclusão do direito ao trabalho em condições eqüitativas (sic.) e satisfatórias;
de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde
pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água
potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma
educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à
participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de
organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência
pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial,
sexual e cultural, e o respeito aos migrantes (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL,
2006).
Os anseios dos movimentos sociais por uma cidade inclusiva compatibilizam com o
ideal de cidade perseguido pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
(ONU-Habitat) que, na Nova Agenda Urbana17, resultado da Habitat III, consagra o ideal de
uma cidade para todos, onde todas as pessoas possam gozar de igualdade de direitos e
oportunidades com respeito a suas liberdades fundamentais. Isso impõe a garantia a todos os
cidadãos, da presente e futuras gerações, cidades e assentamentos humanos justos, seguros,
saudáveis, com preços acessíveis, fortes e sustentáveis.
De acordo com a referida Agenda (objetivo 13) o ideal de cidades para todos pressupõe
o cumprimento da função social e ecológica da terra, visando alcançar, progressivamente, a
plena realização do Direito à Moradia adequada como componente do direito a um padrão de
vida direito, sem discriminação, com acesso universal à água potável e ao saneamento, e
15 O FSM é uma organização que se contrapões à globalização neoliberal e busca alternativas para favorecer o
desenvolvimento humano e a superação da dominação dos mercados em cada país e nas relações internacionais.
Se reuniu pela primeira vez na cidade de Porto Alegre/RS, entre 25 e 30 de janeiro de 2001, com o objetivo de se
contrapor ao Fórum Econômico Mundial de Davos, assumindo, nesta data, o desafio de construir um modelo
sustentável de sociedade e vida urbana baseado nos princípios da solidariedade, liberdade, igualdade, dignidade e
justiça social, fundamentado no respeito às diferenças culturais urbanas e o equilíbrio entre o urbano e o rural,. Cf
http://forumsocialportoalegre.org.br/forum-social-mundial/ 16Publicada em 12/06/2006, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade é resultado do Fórum Social Mundial
Policêntrico de 2006. 17 Objetivos 11, 12 e 13 da Nova Agenda.
35
igualdade de acesso de todos aos bens e serviços públicos de qualidade em áreas como a
segurança alimentar e nutrição, saúde, educação, infraestrutura, mobilidade e transportes,
energia, qualidade do ar e meios de subsistência.
Em face de todo o exposto, entendemos que a moradia possui uma importância central
no debate sobre o Direito à Cidade. Veremos, a seguir, o papel da produção da moradia na
estruturação do espaço urbano.
1.4. A Casa Própria e sua inscrição no modelo neoliberal ‒ Contexto brasileiro
Para o pensamento liberal, propriedade, direito e cidadania se entrelaçam18. Conforme
esclarece Holston:
Muitos dos textos fundamentais sobre sociedade e Estado modernos, tanto
próprios do liberalismo como contrários a este derivam os atributos éticos e
pessoais essenciais da cidadania, assim como seus direitos e suas obrigações,
do direito à propriedade. Essa discussão em geral não se limita à propriedade
da terra, mas considera os próprios direitos uma espécie de propriedade
(HOLSTON, 2013, p.157).
No Estado Liberal, tanto para os que remetem a justificativa de direito à propriedade
da terra a John Locke (Segundo tratado sobre o governo civil), como para aqueles que a
remetem à Hegel (Filosofia do direito), o direito de propriedade é a exteriorização e
corporificação do livre-arbítrio, de forma que um indivíduo é livre à medida que for proprietário
de sua própria pessoa e de suas capacidades, o que se expressa na propriedade da terra e das
coisas. A apropriação de propriedade é essencial para o desenvolvimento do respeito pelas
pessoas e esse respeito é fundante no que se refere à cidadania (HOLSTON, 2013).
Não obstante as significativas diferenças dessas duas linhagens filosóficas, ambas
relacionam propriedade e cidadania, na medida em que entendem que a propriedade está ligada,
diretamente, à liberdade, capacidade, dignidade, respeito e senhorio de si – qualificações
fundamentais para a concepção de cidadania do Estado liberal. Ademais, para essas linhas de
pensamento a propriedade gera cidadãos responsáveis, com “verdadeiro interesse” no futuro do
país, uma vez que os donos de propriedades tendem mais a pensar de forma responsável sobre
as consequências de suas ações, já que desejam perpetuar suas propriedades. Ao sintetizar os
pensamentos de Locke e Hegel relativos à propriedade e cidadania, Holston esclarece que:
18 O pensamento liberal aqui esposado tem, como referência, as tradições filosóficas de Locke e Hegel, que, não
obstante se tratarem de linhas de pensamento distintas, com importantes diferenças de pensamento, concordam
quanto à relação direta entre o que pode ser chamado de propriedade interna (o eu) e de propriedade externa (terra
e coisas).
36
Para Locke, o indivíduo sem propriedade fundiária na qual investir seu
trabalho perde o pleno domínio de sua própria pessoa, que é o fundamento de
sua igualdade. Como resultado a sua cidadania se torna diferenciada dos que
são proprietários de terra e seus direitos, desiguais. Locke considerava esses
cidadãos sem propriedades e diferenciados incapazes de participar de decisões
políticas. Como governados e não governantes, além disso, eles são menos
livres. Para Hegel, indivíduos sem propriedade perdem a possibilidade de se
desenvolver plenamente como pessoas, o que é também o fundamento de sua
posição no mundo social. Como resultado os que não têm propriedade não são
apenas cidadãos inferiores, mas também cidadãos menores (HOLSTON,
2013, p. 159).
Observa-se que, no contexto do Estado Liberal, a propriedade privada configura forma
de autodesenvolvimento do indivíduo e meio de estabelecer qualificações fundamentais para a
cidadania, cabendo ao Estado responsável pela liberdade de seus cidadãos garantir a
propriedade como uma de suas principais obrigações.
Esse pensamento se enraizou na sociedade do Estado Liberal e emergiu, sob novas
nuances, na expansão do modelo econômico capitalista em sua fase neoliberal. Pautada na égide
do neoliberalismo, a propriedade passou a representar dignidade humana, honra pelo trabalho
e ascensão social.
Nesse sentido, a moradia no modelo neoliberal foi convertida em elemento estruturante
de um processo de transformação da forma de ação do capitalismo em sua mais recente versão,
marcada pela hegemonia das finanças, do capital fictício e do domínio crescente da extração de
renda sobre o capital produtivo, levando a mobilização de uma série de políticas com o objetivo
de ampliar a mercantilização da habitação e confrontando os sistemas nacionais de bem-estar e
as composições econômico-políticas em torno da moradia previamente existente em cada país
(ROLNIK, 2015).
Em face dessa dinâmica, entre as décadas de 70 e 80, sob a égide do neoliberalismo,
ocorre de modo generalizado, a reforma dos sistemas de habitação de diferentes países,
culminando, assim, no desmonte das políticas de habitação pública e social, na desestabilização
da segurança da posse e na conversão da casa em mercadoria e ativo financeiro (ROLNIK,
2015). A mudança da conjuntura que inseriu a casa própria no modelo neoliberal se deu ao
longo de três décadas, mais precisamente entre 1980 e 2010. Tal mudança teve início com a
superacumulação de ativos financeiros mundiais por grandes corporações e a busca por novos
campos de aplicação do lucro acumulado. A criação, reforma e fortalecimento dos sistemas
financeiros de habitação representaram um novo e interessante campo de aplicação dos
excedentes com garantia de qualidade.
37
A intensidade com que essas mudanças ocorreram transformou a moradia, até então
inerte, imóvel e ilíquida do período de Bretton Woods (1941-1944), em ativo capaz de produzir
transformações velozes e constantes. Esse movimento transformou o sentido e o papel da
moradia, passando de ‘necessidade básica da população’ para um ‘bem altamente
transacionável no mercado’, capaz de incluir consumidores de média e baixa rendas que, até
então, deles estiveram excluídos.
Segundo Rolnik (2015), os pontos de partida para a mercantilização da moradia, bem
como do uso crescente da habitação como um ativo integrado a um mercado financeiro
globalizado foram o relatório do Banco Mundial de 1993, o Housing: Enabling Markets to
Work, e a crise do subprime em 2007. Esta, fruto de uma política clara e progressiva de
destruição de alternativas de acesso à moradia para os mais pobres, não resultou em uma
mudança de paradigma, contrariamente, levou à injeção de recursos públicos nos bancos
privados e nas instituições de crédito para evitar sua bancarrota, bem como a uma nova rodada
de estímulos à produção de moradia pelo setor privado, com unidades vendidas, via crédito
hipotecário, visando à dinamização econômica. Já aquele sintetizou um novo pensamento sobre
a política habitacional, com argumentos amplamente desenvolvidos sobre como o setor
habitacional seria importante para a economia e com diretrizes que orientavam os governos a
formular melhor suas políticas, ao dispor o que segue:
Este artigo apresenta a política habitacional do Banco Mundial tal como ela
se desenvolveu ao longo dos anos 1980 até o início dos anos 1990 e propõe
uma série de novas orientações importantes, tanto para o Banco quanto para
os tomadores de empréstimo. Ele defende a reforma de políticas
governamentais, instituições e leis para permitir que os mercados
habitacionais funcionem de forma mais eficiente, bem como o afastamento de
apoios limitados e baseados em projetos por parte das agências públicas
envolvidas na produção e no financiamento da habitação. Aconselhamos os
governos a abandonar seu antigo papel de produtores de habitação e a adotar
um papel facilitador da gestão do setor habitacional como um todo. Essa
mudança fundamental é necessária se quisermos que os problemas
habitacionais sejam tratados numa escala proporcional à sua magnitude – para
melhorar as condições habitacionais dos pobres de forma substantiva – e se
quisermos que o setor habitacional seja gerido como ele é – um setor
econômico de grande relevância (BANCO MUNDIAL, 1993, p. 3)
Não obstante a relevância desses eventos, podemos afirmar que a mercantilização da
moradia, no Brasil, já havia iniciado desde a época do BNH, que, sob a justificativa de estar
construindo casas acessíveis aos milhões de trabalhadores, o Governo Federal estava criando
uma política habitacional com o papel econômico de dinamizar a política econômica por meio
da geração de empregos e fortalecimento do setor da construção civil. Foi, a partir da criação
38
do BNH, que se estabeleceu, até os nossos dias, um campo de convergência entre três
dimensões, decorrentes da definição de um organismo financeiro como lócus de formulação e
implementação de uma política habitacional que optou por fazer de cada brasileiro um
proprietário (ROLNIK, 2015).
A atividade do BNH representou um período de intensa produção de casas, atividade
imobiliária e financiamento habitacional que, após a sua extinção (1986), só foi retomado em
meados dos anos 1990, quando as reformas no modelo de regulação do crédito habitacional e
na estrutura e composição do capital das empresas, envolvidas no mercado imobiliário
residencial, passaram a ser implementadas.
Entre as mudanças ocorridas na década de 1990 que permitiram a mercantilização da
habitação, podemos citar o lançamento do Plano Real, em 1994, por facilitar a abertura do
mercado para bancos estrangeiros e trazer mais eficiência para o sistema financeiro após um
ciclo de privatizações de bancos estaduais e de fusões e aquisições; e a criação de um Sistema
Financeiro Imobiliário, em 1997, inspirado no modelo de mercado de hipotecas norte–
americano, que levou a introdução de produtos financeiros, criando um ambiente propício para
vincular o mercado de títulos ao mercado imobiliário.
Assim, a criação de Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), de um fundo de
investimento imobiliário (FII), de regras para o estabelecimento de companhias securitizadoras
de créditos e do regime de alienação fiduciária permitiu uma maior captação de recursos para a
produção financeira imobiliária a longo prazo, reduzindo, assim, os custos de crédito para o
desenvolvimento do mercado de capitais no país. Ademais, colaboraram, para esse quadro de
mudanças no setor imobiliário, o declínio dos juros e o aumento da disponibilidade de
financiamento para produtor e comprador, pois permitiram o aumento substancial nas ofertas
ou o chamado boom imobiliário (ROLNIK, 2015).
Esse conjunto de mecanismos regulatórios, financeiros e institucionais que ocorreu,
especialmente, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), criou condições para
um novo desenho do sistema financeiro imobiliário, sobretudo por meio da criação de um
mercado secundário, baseado em garantias hipotecárias, e preparou o terreno para o crescimento
exponencial e a consolidação do mercado imobiliário residencial a partir de 2006 (SHIMBO,
2012). Assim, conforme explica Shimbo:
Seja pela entrada de recursos provenientes de financiamento habitacional, pela
institucionalização de novos marcos regulatórios que favoreceram a
incorporação privada, pela injeção de recursos de investidores estrangeiros ou
pela tendência de crescimento e de concentração de capital no setor
imobiliário, a atuação das empresas construtoras e incorporadoras de capital
39
aberto foi potencializada, vertiginosamente, a partir de 2006 (SHIMBO, 2012,
p. 73).
Não obstante toda a mudança na conjuntura do sistema financeiro de habitação para
introdução da moradia no mercado financeiro, faltava, até 2006, um estímulo para que o setor
privado atuasse na produção de moradia para baixa renda. Após 2006, com a injeção de recursos
públicos e semipúblicos, disponibilizados a essas faixas de renda, o mercado imobiliário criou
um segmento econômico transformando a produção de moradia de baixa renda em nicho de
mercado, quando a habitação de mercado passou a se confundir com habitação de interesse
social.
O período entre 2004 e 2008 foi marcado pela estabilização e crescimento da economia
brasileira e aumento do poder de consumo da população. O governo de Lula (2003-2010)
enfatizou ganhos significativos de poder aquisitivo às classes trabalhadoras, perdurando no
primeiro governo de sua sucessora, Dilma Rousseff (2011). O incentivo ao consumo não se
deu, apenas, na área da habitação, mas também em diversos campos que permitiram o aumento
do poder de consumo da população de baixa renda, entre eles, a criação do Programa Bolsa
Família, a expansão continuada do salário mínimo e a introdução de concessões de incentivos
para a produção e aquisição de bens duráveis. Ao discorrer sobre esse processo, Rolnik afirma:
A mercantilização da moradia, bem como o uso crescente da habitação como
um ativo integrado a um mercado financeiro globalizado, afetou,
profundamente, o exercício do Direito à Moradia adequada pelo mundo. A
crença de que os mercados poderiam regular a alocação da moradia, aliada ao
desenvolvimento de produtos financeiros experimentais e criativos, levou ao
abandono de políticas públicas em que a habitação é considerada um bem
social, parte dos bens comuns que uma sociedade concorda em compartilhar
ou prover para aqueles com menos recursos – ou seja, um meio de distribuição
de riqueza. Na nova economia política centrada na habitação como um meio
de acesso à riqueza, a casa transforma-se de bem de uso em capital fixo – cujo
valor é a expectativa de gerar mais valor no futuro, o que depende do ritmo do
aumento do preço dos imóveis no mercado (ROLNIK, 2015, p.32-33).
A ênfase no consumo mistifica as profundas desigualdades que continuam
caracterizando o Brasil e desmobilizando o envolvimento político das classes de baixa renda
em busca de verdadeira mudança social. Isso, porém, ainda é um ponto muito controverso e
discutiremos adiante.
40
2 ‒ Construção da moradia no Brasil: políticas e lutas pelo Direito à Cidade
2.1. A Moradia após a Redemocratização: políticas neoliberais e processo democrático (1988-
1998)
A questão da moradia se insere na grande mudança econômica, política e territorial
que ocorre nas cidades do planeta sob a égide da hegemonia do pensamento e das práticas
neoliberais. Como anteriormente explicitado (item 1.3), no final do século XX e início do século
XXI, ocorreram diversas transformações políticas, econômicas e sociais no Brasil, as quais
levaram a um novo processo de mercantilização da moradia e do solo urbano. Este período
ficou marcado, também, pelo processo de redemocratização política do país, estagnação e
retomada do crescimento econômico, bem como pelo avanço da hegemonia dos circuitos
globalizados do capital e das agendas neoliberais, especialmente nas políticas habitacionais e
urbanas.
No período de redemocratização, ocorreu um esvaziamento da política nacional de
habitação. A ascensão do consenso neoliberal forçou os países a adotar reformas sociais
ortodoxas. Isso resultou em uma retração generalizada nos gastos públicos no que diz respeito
aos direitos sociais, levando a não concretização das mudanças sinalizadas pela nova
Constituição, que exigiam pôr em prática políticas públicas que só poderiam ser satisfeitas com
elevados gastos públicos e uma reforma radical nas políticas de caráter excludente.
Como resposta neoliberal à crise econômico-política do modelo do Estado provedor,
e críticas constantes na plataforma da reforma urbana, penetraram, no país, a partir de 1990, o
ideário e as práticas do chamado “empreendedorismo urbano” (VAINER, 2000), levando o
governo nacional na direção oposta à expansão de políticas redistributivas. Somado a esse
cenário, a consolidação de um governo de direita, em 199019, e a implantação de uma agenda
conservadora fizeram com que o projeto neoliberal triunfasse. Decisões políticas equivocadas
e marcadas por suspeitas de corrupção, como uma liberação de contratos acima da capacidade
do FGTS no governo Collor, levaram a uma paralisação total dos financiamentos com recursos
do FGTS entre 1991 e 199520 (VALENÇA, 2008).
19 Fernando Collor de Melo ganhou as eleições de 1989. 20 A distribuição de recursos do FGTS, entre Estados e Municípios, passou a ser pautada muito fortemente por
fatores políticos como um dos instrumentos de viabilização dos precários acordos partidários na Nova República.
Durante o governo Collor de Mello (1990-1992), essa tendência se agravou, o que levou o sistema a uma quase
falência em 1993.
41
Em face desse contexto, o Direito à Cidade se tornou uma das mais importantes
demandas dos movimentos sociais e de outros atores progressistas no processo de
democratização que seguiu os anos da ditadura militar. Do ponto de vista da política urbana,
um intenso debate no seio da sociedade civil acerca do papel dos cidadãos e de suas
organizações na gestão das cidades levou a avanços legais no campo da moradia e da cidade
em geral; a Constituição de 1988 incorporou um capítulo sobre a política urbana estruturado
em torno da função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse
dos milhões de moradores das favelas e periferias das cidades do país e da incorporação direta
dos cidadãos aos processos decisórios relacionados a essa política.
Não obstante, após a Constituinte de 1988, as três esferas de governo (União, Estados
e Municípios) passaram a implementar programas e projetos habitacionais sem coordenação
tampouco planejamento em nível nacional, de maneira totalmente desarticulada, criando
sistemas específicos de financiamento, programas concorrentes e gerando, consequentemente,
desperdício de recursos.
Nesse quadro, emerge um amplo conjunto de experiências municipais de habitação de
interesse social. Os municípios administrados pelo PT, em particular, passaram a desenvolver
programas habitacionais alternativos ao modelo adotado pelo BNH, utilizando recursos
orçamentários, adotando uma perspectiva mais social e utilizando práticas tradicionais da
população mais pobre. Bonduki (2008) esclarece que, nessa fase, surgem, concomitantemente
às intervenções tradicionais, programas que adotam pressupostos inovadores como
desenvolvimento sustentável, diversidade de tipologias, estímulo a processos participativos e
autogestionários, parceria com a sociedade organizada, reconhecimento da cidade real, projetos
integrados e a articulação com a política urbana. Essa postura diferenciava-se, claramente, do
modelo que orientou a ação do BNH e com esses pressupostos emergem programas alternativos,
como urbanização de favelas e assentamentos precários, construção de moradias novas por
mutirão e autogestão, apoio à autoconstrução e intervenções em cortiços e em habitações nas
áreas centrais. Emerge, assim, o embrião de uma nova postura de enfrentamento do problema
habitacional adotada por gestões municipais de vanguarda, que se tornaram referências
nacionais para outros municípios.
Não obstante a crescente força de sindicatos e movimentos sociais e de sua articulação
em partidos de esquerda como o PT, eles permaneceram atores marginais na arena política do
país ao longo dos anos 1990, especialmente nos primeiros anos do governo de Fernando
Henrique Cardoso, quando a agenda governamental estava mais focada em redirecionar os
42
gastos públicos em direção à aceleração do mercado do que promover os direitos sociais,
reconhecidos pela Constituição de 1988 ou as demandas dos movimentos sociais.
Assim, após vários anos de paralisação dos financiamentos, num contexto de
alterações significativas na concepção vigente sobre política habitacional, o governo de
Fernando Henrique Cardoso retomou os financiamentos de habitação e saneamento com base
nos recursos do FGTS. Em que pese não ter estruturado, de fato, uma política habitacional,
rejeitou o financiamento direto à produção de grandes conjuntos habitacionais e processos
centralizados de gestão, como ocorrera no período do BNH, e se baseou em princípios, tais
como: flexibilidade, descentralização, diversidade, reconhecimento da cidade real, entre outros,
compatíveis com o ambiente e o debate neoliberal.
O documento da Política Nacional de Habitação, realizado no contexto da preparação
para a 2ª Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II),
divulgado em 1996, incluiu, então, novos programas, tanto voltados ao beneficiário final, como
a Carta de Crédito, individual e associativa, que ampliou o poder de barganha dos tomadores
de empréstimos frente às empresas construtoras e aos vendedores de imóveis em geral, como
voltado para o poder público, focado na urbanização de áreas precárias, a exemplo do programa
Pró-Moradia, paralisado em 1998 com a proibição do financiamento para o setor público21.
Bonduki (2008) esclarece que as alterações promovidas, embora, à primeira vista,
pudessem expressar uma renovação na maneira como a questão da habitação passou a ser
tratada pelo governo federal, rompendo a rígida concepção herdada dos tempos do BNH, não
conseguiram alavancar, de fato, uma nova política, acabando por gerar um conjunto de efeitos
perversos, do ponto de vista social, econômico e urbano. Nesse sentido o texto de Bonduki
(2008) é bastante pertinente:
O financiamento para aquisição de imóvel usado, que absorveu 42% do total
de recursos destinados à habitação (cerca de 9,3 bilhões), é um programa com
escasso impacto, não gerando empregos e atividade econômica. O
financiamento para material de construção, embora tenha o mérito de apoiar
o enorme conjunto de famílias de baixa renda que auto-empreeende a
construção da casa própria e de gerar um atendimento massivo (567 mil
beneficiados no período, a de maior alcance quantitativo), tende a estimular a
produção informal da moradia, agravando os problemas urbanos. Ademais, o
baixo valor do financiamento e a ausência de assessoria técnica não permitem
21 Entre 1994 e 2002, a ocorrência de crises financeiras internacionais que atingiram a economia brasileira levou
o governo federal à adoção de medidas de austeridade fiscal, seguindo as prescrições do Fundo Monetário
Internacional, incluindo-se aí a limitação ao endividamento do setor público. Isso teve como consequência forte
restrição dos empréstimos do FGTS para a produção de moradias por Estados e Municípios, o que levou à redução
quase absoluta dos financiamentos previstos no Programa Pró-Moradia, que se delineou, até 1997, como o
principal programa para apoio à atuação dos governos locais no setor habitacional (OLIVEIRA, 2000).
43
que as famílias beneficiadas alcancem condições adequadas de habitabilidade
(BONDUKI, 2008, p.79).
A preponderância dessas modalidades de acesso ao crédito estava vinculada à
consolidação de uma visão bancária no financiamento habitacional, personificado no papel
central que a Caixa Econômica Federal passou a ter como o único agente financeiro a operar os
recursos destinados à habitação. Preocupada em evitar rombos nos fundos destinados à
habitação, sobretudo o FGTS, a Caixa passou a privilegiar a concessão de créditos em condições
de maior garantia e de mais fácil acompanhamento, o que justifica a preferência pelo
financiamento do imóvel usado. Pela mesma razão de natureza financeira, a implementação
desses programas não significou interferir positivamente no combate ao déficit habitacional,
em particular nos segmentos de baixa renda, que se agravou no período compreendido entre
1991 e 2000. A população favelada cresceu 84%, enquanto a população geral teve uma elevação
de apenas 15,7%, mostrando que não houve nenhum impacto da ação governamental, do ponto
de vista da redução das necessidades habitacionais (BONDUKI, 2008).
Observamos que, no período compreendido entre 1988 a 1998, o Estado, no lugar de
promover os direitos sociais reconhecidos pela Constituição de 1988 ou as demandas dos
movimentos sociais, redirecionou os gastos públicos em direção à aceleração do Market
friendly22. As decisões dos formuladores de políticas públicas e os padrões de intervenção
passaram a ser cada vez mais ligados aos princípios estabelecidos por instituições financeiras
internacionais e as respostas às necessidades sociais passaram a se calcar na promoção do
acesso a bens e serviços por meio de relações de mercado, o assalariamento recuou de forma
contínua e as promessas de extensão de direitos e igualdade de oportunidades, expressas na
constituição de 1988, foram abortadas, refletindo diretamente nas camadas de baixa renda da
população, que sentiram na pele o aumentou drástico da pobreza. Esse processo não foi
totalmente interrompido na década seguinte, conforme veremos a seguir.
2.2. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas I (1998-2003)
No final dos anos 1990, o país entrou de vez em compasso com o capitalismo
contemporâneo. Ao consolidar uma agenda neoliberal compromissada com a abertura de
mercados aos capitais globalizados, reestruturação produtiva, introdução de novas tecnologias,
mudanças nas práticas gerenciais e flexibilização do contrato de trabalho, levou ao aumento do
22 Expressão utilizada por Rolnik (2015, p. 270).
44
desemprego de longa duração, a precarização do trabalho e a contingentes crescentes de
sobrantes do mercado de trabalho.
No âmbito das lutas pelo Direito à Cidade, podemos dizer que se manteve ou mesmo
se acentuou uma característica tradicional das políticas habitacionais no Brasil, ou seja, um
atendimento privilegiado para as camadas de renda média, a título de exemplo, “[...] entre 1995
e 2003, 78,84% do total dos recursos foram destinados a famílias com renda superior a 5 SM,
sendo que apenas 8,47% foram destinados para a baixíssima renda (até 3 SM) onde se
concentravam 83,2% do déficit quantitativo” (BONDUKI, 2008, p.80).
As conquistas – conseguidas em sua maioria por movimentos sociais – foram pontuais,
como o reconhecimento constitucional do Direito à Moradia, em 2000, como um direito
fundamental, e a aprovação do Estatuto da Cidade23 ‒ Lei nº. 10.257/01 (BRASIL, 2001). Neste
sentido, vejamos as afirmações de Bonduki:
As ações de política macroeconômica, implementadas pelo governo FHC,
redundaram numa escalada que acabou por reduzir o espaço de intervenção
dos agentes do setor público na execução das políticas de habitação, sobretudo
no que se refere à urbanização de áreas precárias, ação que somente pôde ser
realizada pelo setor público. As restrições impostas à concessão de créditos a
esse setor, em contrapartida à rolagem de dívidas de Estados, Municípios e
Distrito Federal, eliminaram a possibilidade de acesso a operações de
financiamento nas áreas de saneamento e habitação com recursos oriundos do
FGTS. Dessa forma, o ajuste fiscal consolidou-se como principal obstáculo à
realização de investimentos voltados à urbanização e à produção de moradias,
destinadas ao atendimento dos segmentos de mais baixa renda, onde se
encontra concentrado o grosso das necessidades habitacionais do país
(BONDUKI, 2008, p. 81).
Em 2001, o governo FHC criou o Programa de Arrendamento Residencial (PAR)24,
para “substituir” o Pró-Moradia, que continuou apenas formalmente ativo, mas ficou
inviabilizado do ponto de vista operacional. Esse programa foi implementado como alternativa
para o financiamento da produção de novas unidades habitacionais para as faixas de 3 a 6
salários mínimos, no entanto os primeiros estudos avaliativos mostraram que as populações
23 A aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, depois de treze anos de debates no Congresso Nacional, criou
novos instrumentos urbanísticos para viabilizar a regularização fundiária e fazer cumprir a função social da
propriedade, constituindo um marco importante para o equacionamento da questão habitacional no Brasil 24 Contando com um mix de recursos do FGTS e do OGU, o programa permitiu certo grau de subsídios, reduzindo
o valor das prestações dos financiamentos, sem prejudicar a saúde financeira do FGTS. Do ponto de vista
institucional, o programa era operado pela Caixa Econômica Federal e o crédito era repassado para companhias
construtoras que, após a produção, entregavam os empreendimentos para a Caixa, responsável pela alocação da
população a ser beneficiada.
45
atendidas se concentravam nos limites superiores da faixa a que estava destinado. (ARAUJO;
AMORIM; HILGERT; MARQUES, 2003).
Em meio à crise e à retração do financiamento, o setor privado buscou manter a
atividade de produção habitacional com base no chamado “autofinanciamento”, que atendia,
por um lado, aos setores de alta renda, através de estratégias denominadas pelas empresas como
“preço de custo” (CARDOSO, 2000), e, por outro lado, aos setores de renda média baixa, pelo
sistema de cooperativas.
Em 2002, a insatisfação de grande parte da população brasileira com os resultados das
administrações do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC era generalizada.
Esse descontentamento, junto à proposta de reformismo de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido
dos Trabalhadores (PT), que adotou um discurso político moderado capaz de conciliar interesses
políticos de partidos conservadores e antigos rivais, bem como representantes de grandes
empresas que estavam em lados opostos em eleições anteriores, deram ensejo a sua vitória nas
eleições de 2002.
A vitória de Lula teve um significado histórico e simbólico, haja vista que representou
justiça social para os pobres, a vontade de que o Brasil desse certo para os trabalhadores –
frustrados pela falta de reconhecimento social em toda a história do país –, a possibilidade de
se refazer um país deteriorado pela convergência de uma grande riqueza com uma desigualdade
gritante. No entanto, em que pese ter representado um triunfo histórico para os trabalhadores,
migrantes, pobres e marginalizados da sociedade brasileira, a vitória de lula só foi possível em
virtude da conciliação de interesses e intenções conflitantes, resultando, assim, num equilíbrio
político frágil que exigiu concessões reiteradas para ser mantido, levando a uma política de
governo comprometida com o respeito a instituições de mercado e a manutenção da estabilidade
macroeconômica (SINGER, 2012).
Durante todo o seu mandato, Lula buscou conciliar a agenda do crescimento
econômico ao combate à pobreza, incluindo no mercado parcelas até então totalmente alijadas
dele e ampliando a capacidade de consumo por meio da valorização dos salários e a ampliação
de crédito para as famílias. No âmbito das políticas sociais, Lula implementou políticas públicas
dirigidas à população mais miserável, com o objetivo de retirá-las do nível de subsistência
precário em que se encontravam, por meio de programas de transferência de renda, como o
Bolsa Família, e de um conjunto de ações sociais, destinadas a aumentar as oportunidades de
empreendedorismo e desenvolvimento econômico (ALMEIDA, 2004). No plano habitacional,
não foi diferente; a proposta da política para esse setor também se pautou na conciliação de
46
uma política de desenvolvimento que conciliasse o enfrentamento da questão social ao
crescimento econômico e à geração de empregos.
Bonduki (2008) esclarece que, desde 1999, o Instituto Cidadania25, coordenado por
Lula, visava elaborar um projeto para equacionar o problema habitacional no país associado ao
crescimento econômico e à geração de emprego. O projeto moradia26, criado para esse fim,
propôs a criação do Sistema Nacional de Habitação, formado pelos três entes da Federação, que
atuariam de forma estruturada sob a coordenação de um novo ministério, o futuro Ministério
das Cidades. O controle social seria exercido pelo Conselho Nacional das Cidades e órgãos nos
estados e municípios, aos quais caberia gerir fundos de habitação, que deviam concentrar
recursos para subsidiar a baixa renda. Assim, explica ainda o Autor:
A política de subsídios previa um mix de recursos não onerosos – do
Orçamento Geral da União (OGU) e do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS) – com recursos retornáveis, para viabilizar o crédito e o
acesso à moradia digna para a população de baixa renda. Para concentrar o
FGTS na baixa renda, seria indispensável a retomada da produção
habitacional pelo mercado, para atender a classe média, reativando o crédito
imobiliário, particularmente do SPBE (recursos da poupança), que não vinha
cumprindo os dispositivos legais que exigem a aplicação dos seus fundos em
habitação, pois o governo FHC, baseado no rigor monetarista, enxergava o
financiamento habitacional como inflacionário. A criação de um fundo de aval
era considerada estratégico para reduzir os riscos de crédito e os juros. O
Projeto Moradia enfatizava a necessidade de aprovação do Estatuto da Cidade
para facilitar e baratear o acesso à terra, combatendo a especulação com
imóveis ociosos (BONDUKI, 2008, p.09).
Em 2003, o Ministério das Cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador,
gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Sua função era a de
formular a política urbana em nível nacional e fornecer apoio técnico e financeiro a governos
locais, integrando as arenas institucionais das políticas federias de habitação, saneamento e
transportes, que, desde o início da Nova República, haviam transitado por diversos ministérios
e secretarias27 (ROLNIK, 2015).
25 O Instituto Cidadania é uma organização não governamental dirigida por Lula e que, com o apoio de especialistas
de diferentes áreas, desenvolveu uma série de propostas para o país no longo período em que o Presidente se
preparou para governar (1990-2002). 26 Este Projeto, realizado entre 1999 e 2000, ouviu diferentes segmentos da sociedade relacionados com a questão
da moradia (movimentos populares, entidades empresariais e profissionais, Universidades, centrais sindicais etc.),
sintetizou um grande conjunto de propostas dispersas e elaborou uma estratégia para, num prazo de quinze anos,
equacionar o problema em torno de uma diretriz estabelecido no projeto: um país com os recursos de que dispõe
o Brasil não pode admitir que milhões de famílias morem em condições precárias de habitação e infraestrutura,
como em favelas e cortiços. O Projeto Moradia se tornou a base do programa eleitoral do futuro Presidente para a
área da habitação e desenvolvimento urbano. 27 Após a extinção do BNH a política habitacional foi subordinada à diversos órgãos: Ministério da Habitação,
Urbanismo e Meio Ambiente – MHU (1987), Ministério de Habitação e do Bem-Estar Social – MBES (1988),
47
O novo ministério marcava o reconhecimento da agenda de reforma urbana como
prioridade política. Seus integrantes, inicialmente oriundos de membros do PT e de assessorias
e lideranças de movimentos sociais urbanos surgidos nos anos 1980 e 1990, levariam para o
governo federal práticas e políticas que haviam sido experimentadas nos governos pelos quais
o PT havia passado; entre elas o processo participativo para a elaboração de políticas, como as
conferências e as experiências de autogestão na produção da habitação que, a partir da primeira
administração do PT em São Paulo (1989-1992), ganharam escala e força política entre os
movimentos de moradias.
Ainda em outubro de 2003, o Ministério das Cidades realizou a primeira Conferência
Nacional das Cidades, com 2,5 mil delegados eleitos num amplo processo de mobilização
social, em mais de 3 mil municípios. A eleição do Conselho Nacional das Cidades foi fruto
desse processo, sendo 56% de seus representantes oriundos da sociedade civil (movimentos
sociais, entidades empresariais, entidades profissionais, acadêmicas e ONGs) e 42%, do
governo (esferas federal, estadual e municipal). Os movimentos sociais ganharam grande peso
na composição do conselho, ocupando quase metade da representação da sociedade civil. Nessa
conferência, além da criação e composição do Conselho Nacional das Cidades foram propostas
as diretrizes para a política habitacional do governo (ROLNIK, 2015). A Secretaria Nacional
de Habitação, ao longo do ano de 2003, desenvolveu as bases normativas e institucionais da
política de habitação, propondo a estruturação do Sistema Nacional de Habitação, cuja versão
inicial é discutida na Primeira Conferência das Cidades.
Apesar do avanço que a criação do Ministério das Cidades representou para a criação
da política habitacional preconizada pelo novo Governo, a Caixa Econômica Federal – agente
operador e principal agente financeiro dos recursos do FGTS – continuou subordinada ao
Ministério da Fazenda, tirando o poder daquele novo Ministério de decidir sobre a aprovação
dos pedidos de financiamentos e acompanhamento dos empreendimentos municipais. Ademais,
o impasse e as limitações, presentes na ação habitacional do governo FHC, continuaram
presentes no início do governo Lula, transformando-se em desafios difíceis de ser superados
para colocar, em prática, a política habitacional proposta no Projeto Moradia.
Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária – SEAC (1989), Ministério da Ação Social – MAS (1990),
Ministério do Bem-Estar Social – MBES (1992), Secretaria de Política Urbana – SEPURB (1995) e Secretaria de
Desenvolvimento Urbano – SEDUR/PR (1999-2003).
48
2.3. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas II (2004-2016)
Em 2004 várias medidas importantes, tomadas por inciativa do governo federal,
marcam a intenção e compromisso do governo em subsidiar a produção da moradia para as
camadas de baixa renda. A edição da Medida Provisória nº 252 trouxe vários mecanismos de
renúncia fiscal que beneficiaram em grande parte o setor imobiliário, a ampliação da segurança
dos investidores do setor imobiliário através dos mecanismos da alienação fiduciária nas
transações imobiliárias e da instituição do princípio do “patrimônio de afetação”. O saque do
FGTS passou a ser permitido em intervalos de quatro anos, caso o recurso fosse utilizado na
aquisição de imóvel residencial ou na amortização de financiamento habitacional contraído
anteriormente. A Resolução 460 do Conselho Gestor do FGTS, que entrou em vigência a partir
de maio de 2005, permitiu criar um sistema de “descontos” que reduziu o custo de
financiamentos com recursos do fundo, beneficiando os setores de menor renda sem
comprometer a saúde financeira do FGTS. Essa medida teve um forte impacto na ampliação dos
financiamentos com recursos do FGTS para as famílias com renda de até 3 SM, até então pouco
beneficiadas pelos empréstimos lastreados em recursos do Fundo (CARDOSO; ARAGÃO,
2013).
Atendendo à reivindicação dos movimentos sociais, em 2004 foi criado o Programa
Crédito Solidário, voltado ao atendimento de necessidades habitacionais da população de baixa
renda organizadas em cooperativas e/ou associações, visando a produção e aquisição de novas
habitações ou a conclusão e reforma de moradias existentes, mediante concessão de
financiamento diretamente ao beneficiário. Este programa aproveitou-se da existência do Fundo
de Desenvolvimento Social – FDS, criado em 1993 para financiar programas sociais locais e
que estava praticamente inoperante. O programa representou uma grande conquista dos
movimentos de moradia, que passou a contar com recursos federais para apoiar as ações de
provisão habitacional baseadas na autogestão.
Com o objetivo de ampliar o mercado para atingir os setores populares e permitir a
otimização econômica dos recursos públicos e privados investidos no setor habitacional, foi
elaborada, ainda em 2004, a nova Política Nacional de Habitação (PNH). A PNH especificou
dois subsistemas de habitação: O Subsistema de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o
Subsistema de Habitação de Mercado, separados de acordo com o perfil da demanda, cada um
com suas fontes de recursos específicas. Visava ampliar maciçamente os recursos de FGTS e
do SBPE, para os financiamentos habitacionais e arregimentar outros fundos para esse fim, na
perspectiva de aumentar a produção subsidiada de habitação (para faixas de até três salários
49
mínimos) e de fomentar o mercado privado de habitação. O pleno funcionamento do SNHIS
ficaria condicionado à adesão de estados e municípios, que, para isso, deveriam constituir seus
próprios fundos e conselhos e elaborar planos de habitação (SHIMBO, 2012).
A PNH incorporava grande parte das propostas do Projeto Moradia, porém várias
foram as dificuldades de implementação desse projeto: Em primeiro lugar, a política econômica
adotada pelo governo até 2006 dava continuidade às linhas gerais do período FHC – mantidas
as altas taxas de juros e as fortes restrições à utilização de fontes fiscais, com a fixação de um
superávit primário superior ao adotado por FHC, ficando reduzidas as possibilidades de
implementação de um fundo de subsídio significativo para viabilizar o atendimento à população
de baixa renda (BONDUKI, 2008). Em segundo, o Fundo Nacional de Moradia (FNM),
idealizado pelo Projeto Moradia, foi aprovado no Congresso, em 2005, como Fundo Nacional
de Habitação de Interesse Social, e, em vez de ser institucionalizado como fundo financeiro, foi
instituído como um fundo orçamentário, sujeito ao contingenciamento e às rígidas regras de
licitação, além de contar com recursos insignificantes para viabilizar o atendimento à população
de baixa renda. Em terceiro, no ano de 2005 vários técnicos comprometidos com a agenda de
reforma urbana e com o programa original do governo Lula deixaram o governo, fragilizando
o avanço institucional numa perspectiva mais progressista. O ministro Olívio Dutra, indicado
pelo PT, foi substituído por um ministro apoiado por um partido conservador da base governista,
sem histórico com a luta pela reforma urbana.
A partir de 2005, também ocorreram alterações relevantes na área de financiamento
habitacional, tanto no que se refere ao subsistema de interesse social como ao de habitação de
mercado. A melhoria do cenário macroeconômico, a relativa flexibilização da política
econômica, que gerou uma redução do superávit primário, bem como as medidas tomadas pelo
governo para desonerar a construção civil e estimular o crédito imobiliário permitiram uma
substancial elevação dos investimentos, de todas as fontes de recursos, uma ampliação do
subsídio dirigido para a população de baixa renda, a destinação crescente de recursos ao poder
público e ampla captação de recursos de mercado. A partir daí o mercado habitacional
experimentou uma fase de crescimento constante, com ampliação dos preços, configurando um
boom imobiliário. Esse quadro de expansão das atividades do mercado habitacional resultou
em profunda reestruturação do setor e não apenas em mais uma fase de crescimento.
Em 2006, a entrada de Guido Mantega – economista desenvolvimentista do núcleo
histórico do PT e com grande relação com os sindicalistas – no Ministério da Fazenda, acentuou
o processo de desarticulação da política habitacional, comprometida com a reforma urbana e se
50
voltou apenas para a estratégia de crescimento econômico, passando a ser política dominante a
ampliação do consumo dos trabalhadores. Assim, houve uma progressiva liberação dos gastos
públicos, viabilizada pela ampliação internacional de reservas que, por sua vez, foram
possibilitadas pela ampliação da exportação de commodities e pelo aumento progressivo do seu
preço internacional.
Nesse cenário, o crescimento econômico que se desenha, a partir de então, irá ter
reflexos na redução dos indicadores de pobreza e desigualdade, resultado, em parte dos
programas de transferência de renda (o Bolsa Família), em parte da elevação real do valor do
salário mínimo e na emergência e consolidação da Classe C, que passará a ser considerada um
“nicho de mercado” com importância crescente, passando a fazer parte das estratégias
empresariais do setor imobiliário (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Em virtude dessas
transformações, entre 2006 e 2008 os recursos do FNHIS foram destinados, basicamente, para
apoiar a elaboração de planos municipais e estaduais de habitação, além de algumas poucas
ações nas áreas de urbanização de favelas (ROLNIK, 2015).
Essas mudanças representaram o início do processo de desarticulação do Ministério
das Cidades, que ainda buscava se estruturar para exercer seu papel de formulador da política
urbana para o país. Em 2007, com a substituição de todos os secretários nacionais indicados
por Dutra, com exceção da Secretaria Nacional de Habitação, esse processo se completou. Não
obstante as dificuldades internas ao Ministério, as condições econômicas tornaram-se muito
mais favoráveis para implementar as propostas da PNH e, em 2007, o governo lançou o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que objetivava implantar grandes obras de
infraestrutura e incluir, entre seus componentes, um programa de caráter social, a Urbanização
de Assentamentos Precários, prevendo-se recursos inusitados para o setor da habitação.
O aumento exponencial da disponibilidade de crédito, inclusive de crédito imobiliário,
uma das medidas centrais do modelo econômico desenvolvimentista, incidiu, de forma intensa,
sobre o preço dos imóveis e, entre 2008 e 2014, o índice Fip-Zap apontou uma valorização de
quase 200% dos imóveis, os aluguéis subiram quase na mesma proporção, muito acima dos
ganhos salariais e de renda dos mais pobres. Isso se deu particularmente após 2009, quando já
vigorava a crise financeira internacional detonada pela arrancada do crédito subprime no
mercado hipotecário norte-americano (ROLNIK, 2015).
Em 2008, quando eclodiu a crise hipotecária e financeira nos Estados Unidos os
investidores começaram a vender suas ações. No final de 2008, estas já estavam sendo
negociadas por uma fração do seu valor patrimonial. Rolnik (2015) esclarece que a situação de
51
crise internacional e ameaça de quebradeira do setor poderia contaminar a cadeia produtiva e,
consequentemente, a estratégia econômica do governo brasileiro, motivo pelo qual os
empresários atingidos, liderados pela Gafisa e apoiados pela Câmara Brasileira de Indústria e
Comércio (CBIC), passam a intensificar o lobby junto à Fazenda para implementar um “pacote
habitacional” nos moldes do programa mexicano, que, por sua vez, havia sido inspirado no
modelo chileno. Nos termos desses programas, o governo ofertaria subsídios diretos ao
comprador para viabilizar a compra de 200 mil unidades que as construtoras capitalizadas
estavam preparadas para lançar no mercado – operação que estaria ameaçada pela crise se não
houvesse essa intervenção estatal. Esses subsídios seriam dados na forma de aportes para os
compradores finais, além de maior facilidade nos créditos hipotecários, com a introdução de
um fundo garantidor dos empréstimos28.
As negociações iniciais entre os empresários do setor e o Ministério da fazenda se
deram sem a participação do Ministério das Cidades ou da equipe que estava formulando o
Plano Nacional de Habitação, sem nenhuma interlocução com o Conselho das Cidades e com
o Conselho gestor do FNHIS. Nesse sentido, explicam Arantes e Fix:
[...] o pacote foi elaborado pela Casa Civil e pelo Ministério da Fazenda, em
diálogo direto com representantes dos setores imobiliários e da construção,
como uma política de governo em resposta à crise, desconsiderando diversos
avanços institucionais na área de desenvolvimento urbano bem como a
interlocução com outros setores da sociedade civil. O Ministério das Cidades,
que foi uma inovação do primeiro mandato do governo Lula, com toda uma
nova estrutura operacional – que articula as políticas de habitação,
saneamento, transportes e desenvolvimento urbano –, foi posto de lado na
concepção do programa. Vale lembrar que, de todo modo, já havia sido
entregue em 2005 ao PP de Maluf e Delfim, com o afastamento de Olívio
Dutra e de parte da sua equipe, como forma de reduzir as pressões dos
escândalos do ‘mensalão’ e do ‘mensalinho’, de Severino Cavalcanti. Mas
ainda assim, a Secretaria de Habitação havia sido parcialmente preservada e
seguia atuante, inclusive com a elaboração do Plano Nacional de Habitação,
entregue alguns meses antes do anúncio do pacote – que o ignorou em sua
quase totalidade. O Estatuto da Cidade, de 2001, resultado da luta pela reforma
urbana no Brasil e que até o momento foi pouquíssimo implementado, não é
um elemento definidor dos investimentos (municípios que o aplicam poderiam
ser priorizados ou ter condições mais favoráveis). O Conselho das Cidades,
órgão deliberativo mais importante do Ministério, sequer foi consultado a
respeito do pacote. O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
(FNHIS), que até então deveria concentrar todos os recursos da política
habitacional, de modo a uniformizar os critérios de acesso, bem como seu
Conselho, foram dispensados (ARANTES; FIX, 2009a, p. 10-11).
28“Quando o pacote foi apresentado ao Presidente Lula, no final de 2008, ele ‘politizou’ as medidas, propondo o
aumento do número de unidades produzidas e a parcela do programa que deveria ser dirigida aos setores de mais
baixa renda. Propôs ainda uma ideia que já vinha sendo proposta pela Caixa, a de acrescentar uma faixa totalmente
subsidiada e por fora do crédito hipotecário, para baixíssima renda, a chamada “faixa 1” na qual prefeitos e
governadores indicariam os beneficiários” (ROLNIK, 2015, p. 301).
52
Como o objetivo era salvar as empresas da débâcle e ao mesmo tempo funcionar como
medida contra cíclica para garantir empregos e crescimento num cenário internacional
desfavorável, as ações apresentadas deveriam ser imediatas, portanto deveriam desviar de
qualquer política complexa que exigisse longo tempo de maturação ou que encontrasse
resistências, como é o caso de uma política fundiária. Assim, atropelando o Plano Nacional de
Habitação – pactuado como uma estratégia de longo prazo – o “pacote” foi lançado, em 2009,
com o nome de Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e deveria se tornar a mais
importante ação no campo econômico-social, articulando a oferta de moradia com uma
estratégia keynesiana de crescimento e geração de empregos (ROLNIK, 2015).
O referido Programa, apresentado como uma das principais ações do governo em
reação à crise econômica internacional, e também, como uma política social de grande escala,
iria atender a imperativos econômicos e sociais, já que, por um lado possibilitaria a criação de
empregos no setor da construção, e por outro, a provisão de moradias. Articulado a um
programa de subsídios diretos, proporcional à renda das famílias, para a compra de 1 milhão de
unidades residenciais produzidas pelo mercado privado, o PMCMV lançou 100 bilhões de reais
em crédito imobiliário residencial no período de dois anos. Além dos subsídios e do aumento
do volume de créditos, o Programa reduziu os juros e criou o Fundo Garantidor da Habitação
para aportar recursos para pagamento das prestações em caso de inadimplência por desemprego
ou outras eventualidades (BRASIL, 2016).
As apresentações oficiais que acompanharam o lançamento do programa se apoiavam
nos dados quantitativos do déficit habitacional, que àquela altura era calculado em 7,2 milhões
de moradias, 90% delas concentradas nas faixas de renda inferiores a três salários mínimos,
70% nas regiões Sudeste e Nordeste, quase 30% nas regiões Metropolitanas – para afirmar que
o Programa o reduziria em 14% (AMORE, 2015). Conforme Amore (2015), uma importante
novidade do PMCMV em relação às práticas do BNH, que se caracterizou por desvios
sistemáticos no atendimento das chamadas “demandas sociais”, era a preocupação com a
produção para as rendas inferiores:
400 mil unidades (40% da meta) deveriam ser destinadas a famílias com renda
de até 3 salários mínimos, o que se viabilizaria com o aporte de 16 bilhões de
reais em recursos da União (70% de todo o investimento). Tratava-se de um
nível de subsídio que nem mesmo o PlanHab previra em seus cenários mais
otimistas. Havia ainda a intenção de distribuição regional, concentrando a
produção nos estados do Sudeste e do Nordeste, com prioridade para
municípios com mais de 100 mil habitantes e excluindo aqueles com menos
de 50 mil, acompanhando a distribuição do déficit. O Programa fazia uma
53
leitura bastante simplificada do ‘problema habitacional’, que, por exemplo, o
PlanHab pretendia atacar por meio de uma grande diversidade de programas
e produtos habitacionais, adequados para as onze tipologias de municípios que
o Plano havia organizado em função das características demográficas e das
dinâmicas econômicas (AMORE, 2015, p. 17).
O sucesso quantitativo e a boa repercussão na opinião pública fizeram o Programa se
consolidar na política urbana em nível nacional, transformando-o no carro-chefe da política
habitacional brasileira. O Programa, porém, se pautou mais pela urgência em flexibilizar o
acesso aos recursos, o que garante a sua eficácia dentro do ponto de vista dos efeitos econômicos
anticíclicos pretendidos, do que pela necessidade de garantir a sua eficácia do ponto de vista
dos objetivos habitacionais, remetendo os mesmos problemas do BNH, como a ausência de
mecanismos de política fundiária que permitam evitar que os recursos disponibilizados para o
financiamento habitacional gerem uma pressão de demanda sobre a terra, aumentando,
consequentemente, o preço dos imóveis produzidos numa escalada ascendente. No caso do
BNH, a produção de novas casas foi inviabilizada, já no caso do PMCMV a produção de novas
unidades se deslocou para as áreas mais distantes das centralidades urbanas e com maior
precariedade de infraestrutura.
Em setembro de 2011, o governo federal lançou a segunda fase do programa habitacional
Programa Minha Casa Minha Vida, alocando novos recursos e ajustando as ações, com base
em críticas realizadas em sua primeira etapa. Em março de 2016, foi lançada a terceira fase do
programa, com a meta de entregar 2 milhões de moradias populares até 2018. Segundo informações
do governo, as duas primeiras etapas do programa já entregaram cerca de 2,6 milhões de residências,
havendo, ainda, mais 1 milhão de casas em construção para ser entregues aos beneficiários do Minha
Casa, Minha Vida. Em resumo, segundo o Ministério das Cidades, em seis anos, o governo entregou
2,6 milhões de casas. De acordo com a pasta, ainda há 1,4 milhão de moradias para ser entregues na
fase 2 do Minha Casa, Minha Vida, que teve orçamento de R$ 125,7 bilhões. O investimento total
no programa ultrapassa a R$ 270 bilhões (PORTAL BRASIL, 2016).
Uma reflexão crítica do período compreendido entre 1988 a 2009 nos permite observar
que o Partido dos Trabalhadores, que se constituiu e cresceu politicamente resistindo ao
neoliberalismo, promove o avanço e a financeirização da terra e da moradia no país, agravando
à crise urbana. Com avanços e recuos, o governo Lula marca um ponto de inflexão nas políticas
de habitação do país. A publicitação do Programa Minha Casa Minha Vida, antes mesmo da
apresentação do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), levou o governo a perder uma
54
excelente oportunidade de equacionar o problema habitacional no âmbito de um projeto
nacional de desenvolvimento com inclusão social.
55
3. O Programa Minha Casa Minha Vida e a produção privada da moradia de interesse
social no Brasil
3.1. O Programa Minha Casa Minha Vida no contexto da política habitacional brasileira
(2009-2015)
O Programa Minha Casa Minha Vida foi aprovado pela Medida Provisória nº 459/09,
convertida na Lei nº 11.977/09 e regulamentada pelo Decreto nº 6962/09. Posteriormente, essa
lei foi alterada pela Lei nº 12.424/11, e regulamentada pelo Decreto nº 7.499/11, sendo mais
uma vez alterada pela lei nº 13.274/16. As sucessivas alterações se deram com o fim de
melhorar a adequação do Programa à sua concretização prática e melhorar as críticas
observadas após o início de sua implementação, como, por exemplo: a mudança do critério de
distribuição das unidades por faixa de renda para adoção de valores nominais nas propostas; a
criação de especificações mínimas para os projetos e para as construções; a instituição de
parâmetros para implantação de trabalho social nos empreendimentos; a definição de metas e
responsabilidades federativas para a implantação dos equipamentos públicos que deveriam
acompanhar os empreendimentos.
Criado com a finalidade de instituir mecanismos de incentivo à produção e à aquisição
de novas unidades habitacionais, bem como para requalificação de imóveis urbanos e produção
ou reforma de habitações rurais para famílias com renda mensal de até dez salários mínimos29
(BRASIL, 2009), o programa se estruturou, operacionalmente, nos seguintes subprogramas: o
Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e Programa Nacional de Habitação Rural
(PNHR) (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016); que compreendem as seguintes modalidades:
MCMV Faixa 1, MCMV Entidades, MCMV Financiamento e Minha Casa Minha Vida Sub 50.
As concessões de benefícios pelo Minha Casa Minha Vida são feitas por faixa de
renda, que variaram de acordo com as modificações legais do programa, conforme podemos
verificar no Quadro abaixo:
29 Esse teto foi mudado pela Lei 12.424/2011 para de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais).
56
Quadro 1
Características do PMCMV por fases e faixas
FASES FAIXA DO
MCMV
RENDA BRUTA
MENSAL FAMILIAR CARACTERÍSTICAS
1
De março de 2009 a
junho 2011
1 Até 3 salários mínimos
Subsídio integral com isenção do
seguro. Para quem tem renda de até R$
500,00 o pagamento da prestação é de
R$ 50,00, acima disso será cobrado 10%
da renda
2 De 3 a 6 salários mínimos
Subsídio parcial que varia de R$ 2 mil a
R$ 23 mil, de acordo com a faixa de
renda do interessado. Redução dos
custos do seguro e acesso ao Fundo
Garantidor. O pagamento da prestação
corresponde a 10% da renda
3 De 6 a 10 salários mínimos
Estímulo à compra com redução dos
custos do seguro e acesso ao Fundo
Garantidor. O pagamento da prestação
corresponde a 10% da renda
2
De junho de 2011 a
março de 2016
1 Até R$ 1.600,00
Subsídio (retorno equivalente e 10% da
renda do beneficiário) e Regime
Especial de Tributação para imóveis
avaliados em até R$ 85.000,00.
2 De R$ 1.601,0 a 3.100,00
Subsídio parcial, redução dos custos do
seguro, acesso ao Fundo Garantidor;
Regime Especial de Tributação. Juros
de 6%
3 De R$ 3.101 a 5.000,00 Acesso ao fundo garantidor e redução
dos custos de seguro. Juros de 7,5%.
3
De abril de 2016 a
dezembro de 2018
1 Até R$ 1.800,00
Subsídio de até 90% do valor do imóvel.
Até 120 prestações mensais (10 anos),
com parcela mínima de R$ 80,00 e
máxima de R$ 270,00. Não tem juros. O
valor máximo do imóvel é de R$
96.000,00, dependendo da localização
1,5 De R$ 1.801,00 a 2.350,00
Subsídio de até R$ 45.000,00 com juros
são de 5% ao ano. O valor máximo do
imóvel é de R$ 135.000,00,00,
dependendo da localização
2 De R$ 2.351,00 a 3.600,00 Subsídio até R$ 27.500,00 com 6% a 7%
de juros ao ano.
3 De R$ 3.601,00 a 6.500,00
Sem subsídio e 8,16% de juros ao ano. O
valor máximo do imóvel é de R$
225.000,00 dependendo da localização. O
candidato não pode ter recebido nenhum
benefício do Poder Público, tais como:
parte de pagamento do imóvel ou redução
das taxas de juros.
Fonte | Elaboração própria com base nos sites do Ministério das Cidades, Senado Federal; Caixa Econômica Federal
e Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação.
Observação: O valor do imóvel tem tetos distintos por cidades.
57
O subprograma PNHU é destinado aos moradores de centros urbanos, de acordo com
as faixas de renda bruta mensal das famílias, agrupados nas seguintes formas de atendimento:
Renda de até R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais) podem ser atendidas pelas modalidades da
FAIXA 1, quais sejam, MCMV Faixa 1, MCMV Entidades, ou MCMV Financiamento; renda de
até R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais) podem ser atendidas apenas pela modalidade
MCMV Financiamento, dividida em FAIXA 1,5, FAIXA 2 ou FAIXA 330.
As modalidades ‘Minha Casa Minha Vida Entidades’ e ‘Minha Casa Minha Vida Sub
50’ foram criadas em face das reivindicações de quatro movimentos nacionais de moradia
(UNMP, MNLM, CMP e CONAM) antes de seu lançamento em 2009. A primeira modalidade
– fruto da reivindicação do movimento de moradia do Fórum Nacional de Reforma Urbana31 –
é destinada a faixa 1, para a produção de moradias por associações e cooperativas
autogestionadas; essa modalidade permite que famílias organizadas de forma associativa, por
uma Entidade Organizadora habilitada, produzam suas unidades habitacionais. A segunda
modalidade é destinada a municípios com menos de 50 mil habitantes (ROLNIK, 2015).
Já o PNHR visa subsidiar a produção ou reforma de imóveis aos agricultores familiares
e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse de recursos do orçamento geral
da União ou de financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço - FGTS. Nessa modalidade não valem os critérios de corte por renda familiar mensal,
mas pela renda anual da família, que deve ser de até R$ 78.000,00, valor esse determinado em
grande medida pela sazonalidade das safras ou produção agropecuária.
Não obstante o foco principal do Programa ser facilitar a conquista da casa própria
para as famílias de baixa renda (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016), o Minha Casa Minha Vida
Financiamento, também conhecido como Minha Casa Minha Vida Empresas32, é o núcleo duro
dessa política, o que se verifica pelo fato de apenas 1 bilhão de reais, de 34 bilhões investido
no Programa, ter sido destinado às modalidades MCMV Entidades e PNHR, quando do seu
lançamento. Importante ressaltar que as modalidades e MCMV Entidades, PNHR e MCMV Sub
50 representavam menos de 10% do total de unidades e recursos previstos no lançamento do
Programa (ROLNIK, 2015).
30 Valores a partir de 2016, conforme informações do Senado Federal. 31 O FNRU é uma articulação nacional que reúne movimentos populares, sociais, ONGs, associações de classe e
instituições de pesquisa com a finalidade de lutar pelo Direito à Cidade, modificando o processo de segregação
social e espacial para construção de cidades verdadeiramente justas, inclusivas e democráticas. Cf.
http://forumreformaurbana.org.br/quem-somos/. Último acesso em 15.02.2017. 32 Denominação utilizada por Raquel Rolnik (2015, p. 303) e alguns Urbanistas para se referir a modalidade Minha
Casa Minha Vida Urbano sem a inclusão das modalidades MCMV Faixa 1, MCMV-Entidades e MCMV- Sub 50.
58
Na faixa 1, a execução do Programa se dá por meio do Fundo de Arrendamento
Residencial – FAR, um fundo público alimentado pelo orçamento federal. Nessa modalidade, a
construtora define o terreno e o projeto, aprova-o junto aos órgãos competentes e vende,
integralmente, o que produzir para a Caixa, sem gastos de incorporação imobiliária e
comercialização, e sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. A
Caixa define o acesso às unidades a partir de listas de demanda, elaboradas pelas prefeituras.
Os municípios têm, como incumbência, cadastrar as famílias com rendimentos estabelecidos
até a faixa 1, entre outros requisitos33, além da participação por meio da doação de terrenos,
isenção tributária e desburocratização nos processos de aprovação e licenciamento e também
na flexibilização das normas urbanísticas para permitir aumentar os índices de utilização do
solo nos empreendimentos do MCMV (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Rolnik explica que:
Em suma, esta modalidade oferece um produto quase totalmente subsidiado,
construído por empresas privadas, mas distribuído pelos governos locais. Os
moradores são obrigados a pagar uma taxa mensal, que corresponde a 5% da
renda familiar (o valor foi fixado posteriormente em 50 reais mensais para
essa faixa) – para a Caixa, uma vez que é a instituição responsável por comprar
as unidades da empresa encarregada da construção. A diferença entre o custo
da unidade e a quantia total paga pelos moradores é coberta por recursos do
FAR (ROLNIK, 2015, p. 303).
Na faixa 1,5, também, há a concessão de subsídios, porém, em menor grau que na
Faixa 1, pois os compradores dispõem de um subsídio direto que vai até R$ 45.000,00 (quarenta
e cinco mil reais). Na faixa 2, o subsídio direto vai até 27.500 (vinte e sete mil e quinhentos
reais), cerca de 20% do valor da unidade no momento da assinatura do contrato. Nessas duas
faixas, os compradores também são beneficiados por linhas de crédito com taxas de juros abaixo
das condições de mercado e pela concessão de garantia pelo Fundo Garantidor da Habitação –
FGHAB. Na faixa 3, não há a concessão de subsídios, apenas de créditos mais baratos e a
garantia do FGHAB (ROLNIK, 2015).
Nas faixas 1,5; 2 e 3, o financiamento se dá com recursos do FGTS e tanto a construção
como a comercialização das unidades habitacionais são feitas diretamente pela empresa privada
que construiu os imóveis (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016). A produção ocorre por oferta,
ou seja, as construtoras/ incorporadoras apresentam projetos de empreendimentos à Caixa, que
realiza a pré-avaliação e autoriza o lançamento e comercialização; após a conclusão da análise
33 A família não pode ser proprietária de outro imóvel, não pode ter sido atendida em outro programa habitacional,
não ter restrições cadastrais. Tem prioridade a família que tem mulher como chefe, com presença de deficientes
físicos na família, e que vivam em área de risco. A isto somam-se requisitos adicionais definidos por cada
município, seguindo parâmetros próprios de vulnerabilidade e territorialidade.
59
e comprovação da comercialização mínima exigida, é assinado o Contrato de Financiamento à
Produção (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Nesse caso, a Caixa financia a produção e fornece
subsídios para quem quiser comprar as unidades, mas os riscos e responsabilidades são
assumidos pela empresa (ROLNIK, 2015). A comercialização é feita pelas construtoras ou
através dos “feirões” da Caixa, havendo a possibilidade de que os pretendentes à aquisição
consigam uma carta de crédito na Caixa para ir ao mercado buscar uma moradia para aquisição.
Em todos os casos, existe um teto de preço para que o projeto se beneficie dos subsídios e
condições de credito, esse teto tem valor distinto em cada cidade.
A modalidade MCMV Entidades é, também, direcionada para a faixa 1, mas o
financiamento se dá por meio do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS)34. Cardoso e Aragão
(2013) explicam que as entidades sem fins lucrativos como cooperativas e associações de
moradia apresentam projetos à Caixa, que efetua as análises e, após sua conclusão, envia ao
Ministério das Cidades a relação de projetos para seleção. O Ministério das Cidades faz a
seleção e reencaminha para a Caixa que aguarda o envio, pela entidade selecionada, da lista de
beneficiários a serem atendidos. A Caixa efetua a análise de enquadramento dos beneficiários
indicados, contrata a operação e acompanha a execução da obra. Nessa modalidade, pode haver,
ou não, parceria com Estados e Municípios.
Na modalidade MCMV Sub 50, Cardoso e Aragão (2013) explicam que o
financiamento é operado por meio de agentes financeiros privados, e não pela Caixa
Econômica. A operacionalização dessa modalidade é feita por meio de oferta pública de
recursos. As instituições financeiras se inscrevem e são selecionadas pela Caixa, que, em
conjunto com o Ministério das Cidades, define e publica o volume de recursos destinado a cada
agente financeiro, ficando cada agente responsável por uma determinada região. O Ministério
das Cidades também recebe, via site, o cadastro de propostas dos entes federados, que são então
selecionadas tendo, como referência, o déficit habitacional municipal. Os agentes financeiros
são os responsáveis pela análise de risco e contratação das propostas selecionadas, e por manter
o Ministério das Cidades informado sobre as contratações.
A análise das modalidades que estruturam o PMCMV leva a percepção que esse é um
programa de crédito tanto ao consumidor quanto ao produtor, mas que concede excessivo
privilégio ao setor privado, tanto em termos de recursos, uma vez que 90% dos recursos
destinados ao Programa são para o MCMV-Empresas, como por deixar ao livre alvedrio desse
34Segue-se nesse caso o mesmo modelo anteriormente adotado no Programa Crédito Solidário.
60
setor a localização, escala e qualidade arquitetônica e construtiva de novos empreendimentos
(ROLNIK, 2015).
O MCMV se revelou um grande Programa para resolver, em parte, o problema do
déficit quantitativo de moradias, no entanto retroagiu no sentido de construir políticas públicas
para garantir o Direito à Moradia digna, que é o que se persegue desde o Projeto Moradia. Na
ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o PMCMV negligenciou em
vários eixos. Diversos estudos, efetivados em âmbito nacional, evidenciam que o PMCMV tem
produzido significativa construção de conjuntos e condomínios habitacionais com localizações
periféricas nas cidades, com escassez de infraestrutura, equipamentos sociais e transporte
público (SHIMBO, 2011; CARDOSO, 2013; ROLNIK, 2015; BENTES SOBRINHA, SILVA,
TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015).
Não obstante a disposição normativa de o art. 5º, da Lei nº 11.977/09 (BRASIL, 2009),
determinar que os empreendimentos no âmbito do PNHU deverão observar: I) a localização do
terreno na malha urbana e as disposições do plano diretor, II) a adequação ambiental do projeto,
III) infraestrutura básica incluindo vias de acesso, iluminação pública, solução de esgotamento
sanitário e de drenagem de águas pluviais, ligações domiciliares de abastecimento de água e
energia elétrica; IV) a existência ou compromisso do poder público local de instalação ou de
ampliação dos equipamentos e serviços relacionados à educação, saúde, lazer e transporte
público; na prática, observamos que os empreendimentos do PMCMV, faixa 1, geram um
afastamento dos grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda a sua
infraestrutura, para as periferias, onde se evidencia a ausência de serviços públicos.
As soluções arquitetônicas, que são convencionais e se repetem no Brasil inteiro, não
se adaptam às necessidades regionais da população. Neste sentido, Cardoso (s/d) explica que
“foram feitos projetos com custos condominiais relativamente altos, fato que irá gerar
implicações para a família com renda mais baixa. Ou seja, o governo dá o subsídio para a família
– que não precisa pagar prestação ou apenas uma prestação pequena -, mas ela tem de pagar um
condomínio caro”, e continua o referido urbanista:
Outro problema é que dentre as soluções construtivas que estão sendo usadas
nas habitações do Minha Casa, Minha Vida, sobretudo para reduzir custos,
muitas delas não são adequadas, visto que não permitem ao morador uma
flexibilidade de adaptação ao seu modo de vida. Por exemplo, algumas
construtoras usam “forma túnel” – paredes de concreto -, mas se o morador
quiser furar um buraco para colocar um quadro ou abrir uma porta, ele não
consegue. Em outros casos, são utilizadas alvenarias de tão baixa qualidade
que quando o morador vai furar, cai tudo – temos estudos de casos em São
Paulo que confirmam isso (CARDOSO, s/d)
61
Em face destas e outras inúmeras falhas, fica explicitada a falta de regulação e de
diretrizes do MCMV com relação à qualidade e a sua adaptação à população de baixa renda.
Este quadro se agrava quando se constata que, na prática, os outros programas existentes35
deixaram de ser ofertados pelas unidades gestoras da Caixa Econômica Federal, não havendo
alternativas habitacionais a custos mais reduzidos, como lotes urbanizados e/ou material de
construção com assistência técnica, tampouco há um estimulo a outras formas de acesso à
moradia, como a ocupação de imóveis construídos vagos.
As críticas feitas ao Programa, em âmbito nacional, permitem observar que os
empreendimentos do MCMV, faixa 1, potencializam uma série de problemas urbanos que leva
os contemplados a uma luta constante pela habitação de qualidade e pelo Direito à Cidade,
confirmando haver uma priorização da quantidade em detrimento da qualidade dos
empreendimentos. Não obstante o exposto, os discursos dos gestores sobre o PMCMV, são
permeados de afirmações que levam ao entendimento de que as casas oferecidas são o
passaporte para a cidadania dos novos moradores. Nesse sentido, vejamos trechos de discursos
do prefeito de Natal e da ex-presidente Dilma Rousseff:
Não importa qual prefeito, de não importa qual cidade do mundo, ficaria muito
feliz de estar hoje nesta inauguração que participa de uma política pública tão
fundamental para a cidadania (PORTAL da Prefeitura Municipal de Natal, 2014).
A casa é a base da cidadania. As famílias precisam ter o seu espaço. O lar é
sagrado e o compromisso dessa gestão é trabalhar para que cada vez mais
natalenses tenham uma moradia digna (PORTAL G1, 2015).
Este Programa mostra que o nosso país avançou, e avançou de forma muito
rápida nos últimos tempos. Este dia de hoje, ele marca um momento especial,
que é o lançamento da segunda etapa de um Programa que tem um aspecto
social, cidadão, que eu acredito que é profundo porque trata-se de construir
as condições para que as pessoas cheguem ao chamado sonho da casa
própria, que é muito mais que um sonho porque trata-se do espaço onde se
constroem as relações afetivas, porque é ali que se criam os filhos, se
estabelecem as ligações familiares. É ali que as pessoas conseguem atingir
aquele sonho que acompanha a Humanidade desde o início da sua
transformação, que é o sonho do abrigo, da proteção e da segurança. Então,
esse espaço é o espaço que nós chamamos de ‘lar’, um espaço onde se
organizam, onde vivem e onde sobrevivem e lutam as famílias deste país. Por
isso, hoje é um momento muito especial [...] melhorar a vida de cada um dos
brasileiros e das brasileiras não é só um compromisso moral profundo. Mas
melhorar a vida de cada um deles é assegurar que este país explore todo o
35FGTS - Operações Coletivas, Crédito Solidário, Habitar Brasil/BID, Imóvel na Planta – Associativo – Recurso
do FGTS, Programa Morar Melhor, Programa Nacional de Crédito Fundiário, Pró-Moradia, Urbanização e
Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Cf. Programas de Habitação no site da Caixa Econômica
Federal. Disponível em: http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/programas_habitacao/. Acesso em
13.10.2016.
62
seu potencial, que é ter cidadãos e cidadãs brasileiras capazes de trabalhar,
consumir, e sobretudo inovar, se educar. E nós, aí, sim, podemos dizer que
somos um país desenvolvido, rico e, portanto, um país sem miséria. Daí
porque o Minha Casa, Minha Vida faz parte de um programa que tem um lado
muito forte, que complementa o Brasil sem Miséria. E também faz parte de
uma outra corrente que trata de dar qualidade à vida dos setores médios novos
e dos setores médios tradicionais, junto com o ProUni, junto com o programa
de financiamento da educação, junto com o programa de reforço do ensino
técnico no Brasil [...] eu tenho certeza de que com dedicação, com
solidariedade, buscando a cidadania, buscando realizar o sonho de milhões
de brasileiros, buscando facilitar, e permitir que no governo e na relação com
os empresários as coisas ocorram com eficiência, nós conseguimos realizar
não só o Minha Casa, Minha Vida para brasileiros individuais, mas
considerando também a característica de que uma nação é uma variante de
um lar, acho que o Brasil virou cada vez mais a nossa casa e a nossa vida
(DILMA ROUSSEFF, 2011).
Por isso, quando vocês entrarem por aquela porta ali, vocês vão entrar de
cabeça erguida e com muito orgulho no coração, porque a casa vocês não
devem a ninguém, a não ser ao fato de serem cidadãos e cidadãs brasileiras. E
eu insisto nesse ponto: essas casas vocês não devem ao prefeito, ao governador
ou à presidente da República. Ela é fruto de uma visão de governo em que nós
somos obrigados a olhar para aqueles que mais precisam [...] por isso, entrar
de cabeça erguida é saber que esse é um ato de cidadania. É garantir que o
povo brasileiro tenha onde morar. (DILMA ROUSSEFF, 2014).
Em face de tais considerações, passamos à leitura dos tópicos e capítulo seguinte a fim
de responder se o PMCMV amplia ou prejudica o sentido de Cidadania da população analisada
e se a moradia é condição básica para que a Cidadania ocorra de modo ampliado.
3.2. O Programa Minha Casa Minha Vida e sua expressão física territorial na Região
Metropolitana de Natal e na Cidade de Natal
A Região Metropolitana de Natal (RMN), composta por quatorze municípios36, possui
51 empreendimentos do PMCMV (faixa 1), dos quais 41 se localizam na Metrópole Funcional37
(CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2015). Só no município de Natal – polo da RMN – há 14
36 A Região Metropolitana de Natal é composta pelos seguintes município: Natal, Parnamirim, São Gonçalo do
Amarante, Extremoz, Macaíba, Ceará-Mirim, São Jose de Mipibu, Maxaranguape, Monte Alegre, Nísia Floresta
e Vera Cruz, Ielmo Marinho, Arês e Goianinha. 37 A Metrópole Funcional é composta por Natal e pelos municípios que possuem alta integração com ele: Extremoz,
Macaíba, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante.
63
empreendimentos do Programa na faixa 138, sendo considerado o segundo município39 com
maior número de empreendimentos do PMCMV e, também, com maior déficit habitacional
nessa Região. Nesse sentido,
Em 2010, dados da Fundação João Pinheiro (2013) indicam um déficit
habitacional de 53.501 unidades na RMNatal, o que equivale a 13,70% da
quantidade total de domicílios particulares permanentes dessa região. Natal,
cidade-polo, concentra quase 65% deste déficit, decorrente do passivo
existente no município, em termos de produção e/ou aquisição de unidades
habitacionais. Já o déficit habitacional metropolitano na faixa de interesse
social naquele momento era de 35.519. Natal, por sua vez, possuía um déficit
de 62,46% na referida faixa. Neste sentido, o processo de implementação do
PMCMV, na Região Metropolitana de Natal, colocou-se na perspectiva de
enfrentamento desse déficit habitacional e de reassentamento de populações
situadas em núcleos favelados, face às novas intervenções urbanas (BENTES
SOBRINHA, SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015,
p.324).
Embora apresentasse um déficit habitacional calculado em 62,46% na faixa de
interesse social, no ano de 2010, Natal não conseguiu deslanchar a construção de novas
moradias na primeira fase do Programa, sendo sua quota de 5 mil residências redistribuída para
outros municípios, em virtude da falta de projetos para análise, bem como de um banco de
inscritos compatível com os critérios estabelecidos pelo Governo Federal. Na segunda fase do
Programa, foram entregues 13 empreendimentos e na terceira fase foi entregue um40 (TRIBUNA
DO NORTE, 2014).
As áreas onde estão situados os empreendimentos do PMCMV, na RMN, são distantes
e muitas vezes desarticuladas com o núcleo urbano consolidado de cada município. Em Natal,
os empreendimentos do PMCMV, da faixa 01, se localizam predominantemente na Região
Administrativa Oeste da cidade, a qual se caracteriza pela existência de vazios urbanos,
formados, em sua maioria, por grandes glebas, bem como por haver recepcionado projetos de
urbanização integrada para famílias que residiam em áreas de risco (BENTES SOBRINHA;
38 Os empreendimentos são: Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV, Vilagge I Humberto Nesi, Vilagge II
Noilde Ramalho, Vilagge II Elino Julião, Vilagge III Severino Souza, Village III José Prudêncio, Vilagge IV
Mestre Lucarino, Vilagge V João Batista, Vilagge VI Julio Lira (todos no bairro do Guarapes e com 224 unidades
habitacionais cada um), Residencial Morar Bem (no bairro de Pajuçara, com 176 unidades habitacionais) e o
Residencial São Pedro (no bairro das Rocas, com 200 unidades habitacionais). Apenas os 13 primeiros constam
na base de dados SIAFI-PMCMV/CEF (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2015), o último foi entregue após a
publicação desta base de dados, na data de 24 jun. 2016. 39 O primeiro Município com o maior número de empreendimentos é Parnamirim. 40 O Residencial São Pedro (Rocas), que abrigou aproximadamente 170 famílias da comunidade do Maruim, outras
30 famílias oriundas do bairro de Mãe Luiza e da Comunidade do Jacó (que tiveram casas atingidas por desabamentos),
bem como de algumas localidades da Zona Norte.
64
SILVA; TINOCO; FERREIRA; GUERRA; SILVA, 2015, p. 342). Nesse sentido Campos explica
que:
[...] as áreas as quais estão situados os empreendimentos do PMCMV no caso
da nossa realidade de RMN, são distantes e muitas vezes desarticuladas com
o núcleo urbano consolidado de cada município, como foi visto nos capítulos
anteriores. Aquele consumidor que se enquadra na classe de baixo poder
aquisitivo, principalmente, fica refém dessa alternativa de oferta da casa
própria justamente porque representa a única alternativa oferecida pelo
mercado imobiliário. Chega-se como produto final, a uma unidade
habitacional ‘articulada’, em termos metropolitanos, sob o ponto de vista da
proximidade com às rodovias, em alguns casos, e desarticulada em relação à
cidade-polo, Natal, a qual detém a concentração de prestação de serviços e
comércio, conforme foi visto nos capítulos 02 e 05. Observa-se que os
municípios da RMN, apresentam mais um agravante na articulação
metropolitana, a dificuldade de acesso aos transportes públicos utilizados pela
grande massa populacional de poder aquisitivo baixo que é prejudicada pela
má qualidade dos serviços e pela baixa oferta dos mesmos, tornando o acesso
às áreas mais urbanizadas e infraestrutura ainda mais difícil (CAMPOS, 2015,
p. 178).
Na Região Administrativa Oeste, o bairro do Guarapes é o mais representativo em
concentração de empreendimentos do PMCMV da faixa 01, contando com 12 empreendimentos;
são eles: Residencial Vivendas do Planalto I, II, III e IV (4 empreendimentos com 896 unidades)
e os condomínios Village da Prata (8 empreendimentos totalizando 1.792 unidades), que
receberam nomes de personalidades históricas da Capital Potiguar: Vilagge I – Humberto Nesi,
Vilagge II – Noilde Ramalho, Vilagge II – Elino Julião, Vilagge III – Severino Souza, Village
III – José Prudêncio, Vilagge IV – Mestre Lucarino, Vilagge V – João Batista, Vilagge VI –
Julio Lira.
65
Imagem 1
Localização dos Empreendimentos Faixa 1 do PMCMV no Município de Natal
Fonte | Ferreira (2016)
Ao discorrer sobre a inserção urbana, a qualidade dos projetos do PMCMV e seus
efeitos na segregação socioespacial, especificamente na cidade de Natal, Bentes Sobrinha;
Silva; Tinoco; Ferreira; Guerra; Silva (2015, p. 324) explicam que “[...] num processo de
afirmação metropolitana, vivenciado nos últimos 20 anos, o PMCMV veio juntar-se a um
conjunto de projetos urbanos e territoriais com fortes impactos sobre a configuração
socioespacial da RMNatal”, como a construção da Ponte Forte - Redinha, a ampliação do Porto
de Natal, a construção do Estádio de Futebol Arena das Dunas, além das obras de mobilidade
urbana; no entanto, enquanto essas intervenções atuaram visando reforçar a centralidade de
Natal como polo metropolitano, já o PMCMV evidenciou um movimento de reforço aos
processos de fragmentação do espaço urbano, com expansão das periferias. Para os referidos
autores
Esse duplo movimento – centralização de Grandes Projetos Urbanos e
descentralização através do PMCMV - revela como efeito primário a expansão
da mancha urbana e, secundariamente, a alteração dos preços do solo urbano,
tanto nos subcentros (bairros de maior renda e oferta de serviços), quanto nas
periferias (áreas recentemente ocupadas, com forte presença de famílias de
baixa renda). Assim, as implicações do PMCMV estão sobredeterminadas na
66
estruturação do espaço de transbordamento urbano de Natal, tendo
contribuído ainda para ampliar o quadro de desigualdade e segregação
socioespacial, constituído historicamente (BENTES SOBRINHA; SILVA;
TINOCO; FERREIRA; GUERRA; SILVA, 2015, p. 324-325).
A crescente expansão das periferias deveu-se a uma indisponibilidade de áreas de
baixo custo para investimentos imobiliários em Natal – onde os terrenos mais centrais têm
preços muito elevados – o que acabou estruturando a produção de um novo espaço, carente de
serviços e com difícil acesso das pessoas às áreas centrais, mantendo-se, ao mesmo tempo,
glebas e terrenos urbanos vazios próximos dessas áreas em que há maior acessibilidade,
infraestrutura e serviços públicos (MOURA, 2014).
Em face do exposto, podemos observar que os empreendimentos do PMCMV, da faixa
1, na RMN, afastaram os grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda
sua infraestrutura, para as periferias, onde se evidencia a ausência de serviços públicos e
aumento das distâncias, encarecendo os investimentos para a implantação de serviços públicos,
elevando os custos de moradia, reduzindo a qualidade de vida da população e impactando
diretamente no cotidiano dos moradores, que passaram a ter dificuldades de conceber suas
práticas e relações sociais nesse espaço quase sem vizinhança, distante da vida urbana.
São constantes os relatos, em jornais, falando das dificuldades enfrentadas por
moradores contemplados pelo PMCMV. Ao relatar a situação vivenciada por moradores do
MCMV, faixa 1, em Parnamirim, o jornal Tribuna do Norte afirma que a distância do centro e
a falta de equipamentos públicos, bem como a deficiência no sistema de transporte de
passageiros são algumas das reclamações feitas pelos moradores do local, vejamos:
A sombra do muro do condomínio é a única proteção contra o sol escaldante
de quase 11h de uma quinta-feira com temperatura elevada. Há mais de uma
hora a dona de casa espera o ônibus que insiste em desrespeitar o horário.
Janiele Karine, 34 anos, tem nos braços o filho que, naquele dia, contemplava
5 anos de idade. O peso da criança é mais um obstáculo a ser superado. O
menino não tem forças para ficar em pé. Está doente e acabar de vomitar. A
mãe aguarda o transporte público para levar a criança ao posto de saúde que
fica longe, a mais de quatro quilômetros de distância do local. Janiele Karine
mora em um dos 496 apartamentos do residencial Terras de Engenho 2. O
empreendimento do ‘Minha casa, Minha Vida’ faz parte do conjunto
habitacional que, ao todo, abriga 922 famílias e foi entregue pela Prefeitura de
Parnamirim há um ano. Os apartamentos foram erguidos na estrada de
Japecanga, a 10 quilômetros do Centro de Parnamirim e apresentam
problemas apontados na pesquisa contratada pelo Ministério das Cidades e
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Distância
do Centro e falta de equipamentos públicos, bem como deficiência no sistema
de transporte de passageiros são algumas das reclamações feitas pelos
moradores do local. [...] A também dona de casa Janaína da Silva, 32 anos,
lamenta a inexistência de creches na região, ela fica impossibilitada de
67
procurar emprego. [...] Ainda em Parnamirim, a cidade cuja administração
municipal orgulha-se de ter mais de 5 mil apartamentos financiados pelo
Minha Casa Minha Vida-, é fácil encontrar outros empreendimentos com
problemas estruturais e sociais. No residencial Waldemar Rolim, localizado
no bairro Vale do Sol, os moradores estão, há mais de um mês, convivendo
com problemas relacionados ao saneamento [...] de acordo com a sub-síndica
Glecia Marilac, o problema foi ocasionado por reparos na rede de esgoto
quando solicitado [...] No mesmo condomínio, também foram registrados
episódios de violência. A dona de casa Francisca Valéria, 38 anos, divide o
apartamento com cinco filhas e o marido. Ela está grávida de gêmeos e filha
maior, de 16 anos, também está grávida. “Quebraram a janela e invadiram
minha casa. Levaram tudo. Não tem segurança alguma. Vive acontecendo
brigas e ameaça de morte. ‘e uma tristeza’, lamenta (TRIBUNA DO NORTE,
2015).
Quanto à RMN, Tinoco, Bentes Sobrinha e Lima afirmam que:
Na Região Metropolitana de Natal, os impactos da implantação do PMCMV
decorrentes dessas situações de contiguidade, têm provocado um significativo
aumento da densidade em várias porções do território, provocando também o
aumento da demanda por serviços, comércio, transporte e por espaços e
equipamentos de uso coletivo, espaços de lazer e convívio existentes nos
empreendimentos, sobretudo nos condomínios verticais, encontram-se
degradados, apesar do pouco tempo de implantação. A utilização para prática
de atividades ilícitas, atos de vandalismo e prostituição, coloca em evidência,
tanto a fragilidade do trabalho social, quanto a inadequação do projeto ao
perfil dos moradores (TINOCO; BENTES SOBRINHA; LIMA, 2015, p. 3).
Concomitante ao problema da segregação socioespacial e da falta de condições
adequadas de habitabilidade urbana (estruturas viárias, serviços como creches, escolas, postos
de saúde, segurança e transporte, etc.), os empreendimentos construídos na RMN evidenciam
uma baixa qualidade arquitetônica e construtiva (MOURA, 2014; BENTES SOBRINHA,
SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, 2015; TINOCO; BENTES SOBRINHA; LIMA,
2015), confirmando as críticas feitas ao Programa, já descritas no item anterior (3.1).
Os impactos desoladores causados no espaço urbano pelo PMCMV podem ser
observados nas diversas metrópoles do Brasil e não apenas na RMN, levando a percepção de
que este formato de produção habitacional – em que há uma quantidade expressiva de
empreendimentos contíguos, padronizados e concentrados em áreas específicas – ocasiona
sérias implicações para o ordenamento urbano e para o planejamento das ações locais, não
apenas por ter que se pensar novas formas de garantir que os equipamentos e infraestruturas da
cidade cheguem a esses locais mais distantes, mas também, porque o resultado desse processo
leva a uma distribuição seletiva das camadas sociais, resultando na formação de regiões
68
monofuncionais e de homogeneidade social, tanto em termos de renda quanto de tipologia e
uso.
Em face do exposto, entendemos que uma política pública habitacional nos moldes do
PMCMV potencializa uma série de problemas, que vão desde a luta do indivíduo pela habitação
de qualidade até o acesso à cidade. A fim de verificar de perto os efeitos dessa política de
moradia na consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade,
realizamos uma pesquisa de campo no empreendimento Residencial Vivendas do Planalto,
localizado no bairro Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal/RN,
conforme será visto no capítulo seguinte.
69
4. Pesquisa de Campo: abordagens e resultados
4.1 O lócus do estudo
A pesquisa de campo foi desenvolvida em quatro empreendimentos contíguos de
tipologia híbrida (blocos verticais implantados em lotes preexistentes), denominados
Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV, localizados no bairro Guarapes, Região
Administrativa Oeste do Município de Natal. Apesar de ser composto por projetos diversos,
com registros específicos para as distintas fases de implantação, a configuração urbana sugere
ser um único empreendimento.
Imagem 2
Localização do Residencial Vivendas do Planalto no Bairro Guarapes
Fonte | Imagens ©2017 Google, CNES/Astrium. Dados do mapa ©2017 Google
70
Imagem 3
Configuração do empreendimento vista de cima pelo Google Earth
Fonte: Imagens ©2017 Google,CNES / Astrium,Dados do mapa ©2017 Google
O local foi objeto de estudo pelo LabHabitat – DARQ – UFRN41 e os resultados
publicados no Relatório de Pesquisa: Chamada MCTI/CNPQ/MCIDADES nº11/2012 (BENTES
SOBRINHA; SILVA; GUERRA; TINOCO; FERREIRA, 2015), no livro Minha Casa... e a Cidade?
Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em Seis Estados Brasileiros (BENTES
SOBRINHA; SILVA; GUERRA; TINOCO; FERREIRA, SILVA, 2015) e no artigo Degradação
de espaços coletivos e de sociabilidade em condomínios verticais do PMCMV: um problema
de projeto? (TINOCO, BENTES SOBRINHA, LIMA, 2015). Nessa perspectiva, recorremos a essa
base de dados para caracterizar o lócus do estudo.
O Residencial Vivenda do Planalto I, II, III, IV abriga uma população estimada em
3.584 habitantes, contemplada pelo PMCMV, que é oriunda de dois grupos: um de sorteados –
conhecido como demanda aberta; o outro, compondo a demanda fechada, originária dos
assentamentos Anatália, 8 de Outubro e Monte Celeste, com expressivos níveis de
insalubridade e precariedade da habitação42, conforme descrevem Silveira, Moura e Furukava:
41 Laboratório de Habitação (LabHabitat) do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (DARQ-UFRN) 42 O empreendimento foi entregue em quatro etapas pela Prefeitura de Natal, primeiro, na data de 17/05/2014
foram entregues as chaves a 448 famílias que conquistaram a moradia por meio do sorteio. Em 20/05/2014 foram
entregues as chaves às famílias oriundas do assentamento “8 de Outubro”, do Planalto, depois no dia 23/05/2014
71
[...] os barracos eram pequenos, desconfortáveis, à mercê do calor e da chuva.
Ao redor da ‘propriedade’, eram cultivadas frutas e verduras, além da criação
de animais. Ainda existiam as caçambas e todo o amontoado de recicláveis
acumulados pelos habitantes (SILVEIRA; MOURA; FURUKAVA, 2015, p.
9)
O grupo dos sorteados seguiu critérios do PMCMV, entre os quais, famílias com
mulheres responsáveis pela unidade familiar e famílias com pessoas portadoras de deficiência;
o processo de cadastramento, seleção, hierarquização e habilitação ficou sob a responsabilidade
da Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes
(SEHARPE), com execução e gestão vinculada ao Departamento de Ação Social e Projetos
Especiais (DASPE). A metodologia adotada reuniu diferentes perfis de renda em um mesmo
espaço, havendo, entre os contemplados, usuários com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos.
O gradiente do perfil socioeconômico do conjunto é o responsável por diversos conflitos de
vizinhança.
O empreendimento possui 896 unidades habitacionais, divididas em quatro partes com
224 unidades cada uma. Ao todo são 112 blocos, verticalizados em dois andares, sendo 4
unidades por pavimento. Os blocos apresentam quatro unidades habitacionais por pavimento e
planta “H”, resultando em 16 unidades em cada lote. Todos os blocos possuem espaço para
estacionamento de um veículo por unidade. Há unidades adaptadas no pavimento térreo, com
vagas acessíveis para portadores de necessidades especiais. Conforme Moura, Silveira e
Furukava (2015) a unidade habitacional foi orçada em R$52.000 mil reais enquanto a prestação
a ser paga pelo beneficiário varia entre R$25,00 e R$80,00.
Imagem 4
Partido Urbanístico e Tipologia Habitacional do Residencial Vivendas do Planalto
Fonte | Bentes Sobrinha; Silva, Guerra; Tinoco; Ferreira (2015)
foi a vez das famílias oriundas do assentamento “Anatália”, do bairro Guarapes, e em 27/05/2014 foi a vez das
famílias vindas do assentamento “Monte Celeste”, do bairro Planalto.
72
Imagem 5
Bloco de apartamentos
Fonte | Arquivo próprio
As vias são largas e de paralelepípedos, separadas por canteiros centrais e margeadas
por calçadas acessíveis, dotadas de iluminação pública. Há medidores de água e energia
individualizados por unidade habitacional. Os quatro empreendimentos contam com apenas
uma área central, que contém uma praça para lazer e recreação infantil, uma quadra de esportes
e um centro comunitário, no entanto, devido à contiguidade dos quatro empreendimentos,
resultou em um espaço concentrado, centralizado e distante dos blocos localizados nas
extremidades do conjunto, não atendendo ao porte do empreendimento
Imagem 6
Canteiro central
Fonte: Arquivo próprio
73
Imagem 7
Área central do Conjunto Residencial Vivendas do Planalto I, II, III e IV.
Fonte: Arquivo próprio.
No que tange às relações entre o edifício e o exterior, verificamos a ausência de
espaços de sociabilidade como halls de entrada, escadas, pátios frontais. Em virtude da falta de
espaço no interior dos apartamentos para suprir as necessidades de âmbito familiar, observamos
a ocupação de recuos laterais com a criação de varandas, quintais e prolongamentos da cozinha
e área de serviço em áreas coletivas, bem como dos recuos frontais com estruturas precárias
para instalação de comércio, secagem de roupa e instalação de muro. Os espaços destinados às
garagens resultaram em diversas formas de apropriação, haja vista a maioria das famílias não
possuírem automóveis.
Imagem 8
Ocupação de recuos laterais
Fonte | Arquivo próprio
74
Quanto ao aspecto social, as pesquisas mencionadas constataram que a inserção desse
empreendimento ocorreu em uma área com alto nível de precariedade na oferta de
equipamentos e serviços públicos para os moradores. Dados do Censo 2010 (BRASIL, 2010)
apontam que, no setor censitário onde o Residencial Vivendas do Planalto (I, II, III e IV) foi
construído, destaca-se a carência de infraestrutura e, principalmente, do esgotamento sanitário
(96,06%), seguido pela coleta de lixo (17,03%) e por abastecimento de água (13,62%),
percentuais superiores à média verificada no bairro Guarapes.
Imagem 9
Inserção Urbana do Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV
Fonte | Ferreira (2016)
Reportagens de Jornal retratando a violência no Residencial Vivendas do Planalto são
comuns; as notícias retratam uma realidade de homicídios, vandalismo, tráfico de drogas e
insegurança, vivenciada pelos moradores, como observamos no trecho de reportagem do jornal
Tribuna do Norte em 22 de fevereiro de 2015:
75
No próximo mês de maio, completa um ano desde que a Prefeitura do Natal
entregou as chaves de 448 apartamentos que formam a primeira etapa do
empreendimento ‘Vivendas do Planalto’. O conjunto habitacional, quando
finalizado, vai totalizar 896 apartamentos, distribuídos em 112 blocos. A obra
é financiada pelo Minha Casa Minha Vida e, assim como em outros
condomínios ligados ao programa, apresenta uma série de problemas sociais.
No vivendas, a violência chama atenção. De acordo com os moradores, foram
pelo menos 10 homicídios ao longo do último ano. As marcas da violência
estão espalhadas no condomínio e no discurso dos moradores. Além disso, a
construção de muros e fixação de portões e grades de ferro acusam que a
insegurança é predominante. O empreendimento foi concebido para ser do
tipo aberto e possui área com equipamentos comunitários, como praça,
playground, centro de convivência e quadra poliesportiva descoberta para,
teoricamente, atender os condôminos e a população da área adjacente. Mas
não é assim que funciona. Não demorou muito para o vandalismo tomar conta
do espaço. O centro de convivência está completamente destruído e a situação
só não é pior porque ergueram paredes de tijolos onde deveria existir janelas
ou portas de vidro e alumínio. ‘A gente juntou um dinheiro. Cada um deu uma
parte para poder construir o muro e colocar o portão. Se não for assim, roubam
tudo’, conta o auxiliar de pedreiro, Leandro Silva, 24 anos. [...] Outra
reclamação diz respeito aos efeitos da violência. Por causa da marginalidade,
motoristas de ônibus não querem passar pelo local à noite e serviços de entrega
de remédios e refeições também rejeitam pedidos dos moradores (TRIBUNA
DO NORTE, 2015).
No que se refere ao acesso à serviços de educação, observamos apenas um Centro
Municipal de Educação Infantil (CMEI) existente entorno imediato (500m), que se localiza no
assentamento Leningrado43, o qual não consegue atender à demanda existente, colocando a
necessidade de deslocamento para outros centros. Esse quadro, por sua vez, se agrava em razão
da precária oferta de transporte para os moradores. Quanto ao acesso a equipamentos coletivos
de saúde e segurança constatamos, no entorno expandido (1000m), uma Unidade Básica de
Saúde e uma Base da Polícia Militar.
Pela caracterização física e social, observamos que o Conjunto Residencial Vivendas
do Planalto evidencia graves problemas de acesso aos serviços e equipamentos urbanos pelos
moradores, configurando uma realidade social de precariedade em que, apenas, a propriedade
da casa parece não responder às profundas necessidades dos indivíduos da comunidade. Isso é
confirmado no resultado da pesquisa de campo na seção 4.3.
43 O Leningrado é conjunto habitacional localizado no bairro do Guarapes, Zona Oeste de Natal e fica ao lado do
conjunto Residencial Vivendas do Planalto. Foi criado em 08/04/2004 por ocupação de famílias oriundas de
diversas favelas de Natal/RN, principalmente das favelas do Fio, do Detran, Via Sul, Mãe Luiza. Na gestão do
Prefeito Carlos Eduardo (2004 a 2008) foram entregues 44 residências no local. Em 2009, a SEHARPE começou
a construção de mais casas para em seguida implementar os serviços básicos de infraestrutura. Em 2010 a
Prefeitura constatou a presença de 500 famílias morando no local (TRIBUNA DO NORTE, 2007; PORTAL G1,
2015a; PORTAL DA PREFEITRA, 2014).
76
4.2. Entrevista qualitativa: Unidade de Análise, Procedimento e Interpretação das Entrevistas
Nas ciências sociais empíricas, a entrevista qualitativa é uma metodologia de coleta de
dados amplamente empregada. Ela é, como escreveu Robert Farr (1982, apud GASKELL;
BAUER, 2002, p. 65), "[...] essencialmente uma técnica, ou método para estabelecer ou
descobrir que existem perspectivas, ou pontos de vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa
que inicia a entrevista [...]” e o pressuposto de que o mundo social não é um dado natural, sem
problemas, que ele é ativamente construído por pessoas em suas vidas cotidianas, mas não sob
condições que elas mesmas estabeleceram.
O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o mundo da vida dos
respondentes é o ponto de entrada para o cientista social, que introduz esquemas interpretativos
para compreender as narrativas dos atores em termos mais conceituais e abstratos, muitas vezes
em relação a outras observações. A entrevista qualitativa fornece os dados básicos para o
desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo
é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação aos
comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos (GASKELL; BAUER, 2002).
Nesse sentido, a pesquisa utilizou, como técnica de investigação, entrevistas
qualitativas do tipo semiestruturado; tal técnica requer uma conversação continuada menos
estruturada, em que a ênfase é fazer perguntas dentro de um período relativamente limitado,
buscando compreender o mundo dos entrevistados e do grupo social especificado; nas palavras
de Couto Rosa e Arnoldi (2008) a entrevista semiestruturada permite a utilização de um roteiro
de tópicos previamente elaborado, mas as questões “[...] seguem uma formulação flexível, e a
sequência e as minúcias ficam por conta do discurso dos sujeitos e da dinâmica, que acontecem
naturalmente” (COUTO ROA E ARNOLDI, 2008, p. 31),. Ademais houve uma conversa em
grupo, oportunidade em que os moradores falaram abertamente sobre o Conjunto Residencial
Vivendas do Planalto.
Para elaboração das perguntas foram criados três eixos temáticos, baseados nos
elementos centrais do objeto de pesquisa, quais sejam: Direito à Cidade, Moradia e Cidadania,
bem como subeixos de análise (perguntas norteadoras).
No primeiro eixo temático, Direito à Cidade, foram formuladas perguntas cujas
respostas seriam ‘sim’ ou ‘não’, com espaços para observações, visando saber se o bairro e/ou
região é atendido pela oferta de serviços/equipamentos urbanos (saúde, educação, serviços
sociais, lazer, segurança) e por infraestrutura (fornecimento de água, rede de esgoto,
77
fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, transporte público, pavimentação, iluminação
pública, correios e telefone público). Foram formulados, ainda, os seguintes questionamentos:
Você se sente integrado à cidade de Natal? Por quê? O que você gostaria que houvesse no
conjunto habitacional?
No segundo eixo temático, Moradia, foram formuladas as seguintes perguntas: Em
qual bairro ou comunidade você morava antes? Você prefere morar aqui ou em sua moradia
anterior? Por quê? Quais os benefícios de ter a propriedade da sua casa? O que significa ser
dono da sua casa? O que faria você se mudar daqui hoje? O que você mais gosta daqui? O que
você menos gosta daqui?
No terceiro eixo temático, Cidadania, foram formuladas as seguintes perguntas: O que
é ser cidadão para você? Como você se sente enquanto cidadão morando aqui? Ser dono da sua
casa foi suficiente para você se sentir pleno como cidadão?
Considerando que o objetivo dessa pesquisa qualitativa era identificar sinais – ou
tendências – da relação entre a obtenção da moradia e o sentido de cidadania para a população
de baixa renda, a aproximação com as famílias residentes no local escolhido foi indispensável
para a obtenção dos dados que necessitávamos. No entanto, ao mergulharmos nesse universo,
percebemos que adentrar na esfera da subjetividade, identidade e sentido de cidadania para estas
pessoas se apresentava algo bastante complexo, não apenas pela dificuldade destas em
colocarem-se, mas, ainda, pela dificuldade de disponibilizarem-se para as entrevistas. Do
conjunto de dados confiáveis que conseguimos filtrar, nove se mostraram referenciais para
representar o universo do contato que fizemos, portanto são dessas entrevistas apresentadas que
retiramos a conclusão do nosso trabalho. O perfil dos entrevistados selecionados para análise
nessa pesquisa é mostrado no quadro abaixo:
78
Quadro 2
Perfil dos entrevistados
Entrevista Sexo Idade Estado
Civil Filhos
Quantidade
de filhos que
moram na
mesma casa
Profissão Escolaridade
1 F 34 Casada Sim 3 Do lar 2º grau completo
2 M 63 Solteiro Sim 0 Aposentado 2º grau completo
3 F 66 Solteira Sim 2 Do lar 1º grau
incompleto
4 F 22 União
Estável Não 0 Do lar
1º grau
incompleto
5 F 26 Casada Sim 4 Faz bico em
hotel
1º grau
incompleto
6 M 48 Solteiro Sim 2 Segurança 1º grau
incompleto
7 M 32 Casado Sim 3 Autônomo 1º grau
incompleto
8 M 61 Casado Sim 2 Aposentado 1º grau
incompleto
9 M 33 Solteiro Não 0 Desemprega
do
1º grau
incompleto
Fonte | Elaboração Própria
Tendo em vista a vontade de todos os entrevistados em manter o anonimato, não foram
dados nomes aos mesmos, de forma que foram tratados no item 4.3 (Resultados da Pesquisa de
Campo) pelos termos Morador e Moradora seguido do número da respectiva entrevista.
Ressaltamos, ainda, que buscando preservar o anonimato dos entrevistados não foram utilizados
termos de consentimento; ademais os moradores preferiram falar sem ter que assinar termos ou
se comprometer com qualquer formalidade.
O registro das entrevistas foi feito por meio de gravações com posterior transcrição,
visando garantir a sua interpretação adequada. No que diz respeito à interpretação dos dados
coletados foi realizada uma análise de conteúdo, mais especificamente uma análise categorial
simples, a qual, segundo Duarte (2004), é um recurso que encurta o caminho do pesquisador,
sobretudo quando se trata de pesquisadores iniciantes, devendo a análise obedecer ao seguinte
caminho
[...] pode-se tomar o conjunto de informações recolhidas junto aos
entrevistados e organizá-las, primeiramente, em três ou quatro grandes eixos
temáticos, articulados aos objetivos centrais da pesquisa [...] A partir daí
proceder-se-ia à construção de subeixos temáticos, cada vez mais precisos e
específicos em relação ao objeto de pesquisa em torno dos quais sejam
organizadas as falas dos entrevistados recolhidas a partir da fragmentação dos
discursos. [...] Ao final, o cruzamento das falas dos entrevistados seria
79
realizado pela articulação dos conteúdos dos diferentes eixos e subeixos
temáticos, conduzida pelo pesquisador a partir de seus pressupostos
(DUARTE, 2004, p. 222).
Além das respostas diretamente relacionadas aos eixos temáticos, outros temas
levantados em conversas sem roteiro previamente estabelecido também foram analisados.
Assim, foram utilizados, no resultado da pesquisa, depoimentos de uma conversa com cinco
moradores, os quais se disponibilizaram a falar um pouco sobre os aspectos da moradia no
Residencial Vivendas do Planalto.
O resultado do processo analítico acima descrito será apresentado no item seguinte.
4.3 Resultado da pesquisa de campo
Essa seção apresenta os resultados da pesquisa empírica. A exposição dos resultados
obedece a sequência do roteiro de entrevista.
Os depoimentos dos moradores entrevistados, durante a pesquisa de campo, refletem
a situação de isolamento do empreendimento quanto à área urbana da cidade; o acesso à
serviços se mostra precário e a infraestrutura urbana existente é, claramente, insuficiente para
a demanda de moradores do conjunto Residencial Vivendas Planalto. No entanto, os
beneficiários entrevistados se mostram relativamente satisfeitos com a nova moradia; o
sentimento de satisfação está diretamente relacionado à sensação de segurança que a dimensão
física da casa proporciona, de forma que podemos inferir que há uma priorização de valores: o
sentimento de segurança proporcionado pela dimensão física da casa prevalece sobre a situação
de precariedade do local. Apesar de se mostrarem satisfeitos com a nova moradia, a análise das
entrevistas revela que os moradores conseguem separar os aspectos positivos dos negativos,
mas os aspectos negativos não afetam, de forma decisiva, os valores subjetivos – como a
segurança jurídica da posse e o sentimento de ascensão social – que a propriedade da moradia
proporciona, conforme será detalhado adiante.
Importante ressaltar que os resultados obtidos com a pesquisa empírica, especialmente
no que se refere ao eixo temático Direito à Cidade, são muito semelhantes aos resultados
apresentados pela ‘Pesquisa de Satisfação dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha
Vida’ feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (BRASIL, 2014).
Quanto aos aspectos específicos das entrevistas, pudemos chegar às seguintes
conclusões:
80
Acesso aos serviços de saúde
Os entrevistados responderam que não há hospital tampouco pronto socorro no
conjunto Residencial Vivendas do Planalto, inclusive no seu entorno. Segundo relatos dos
moradores, as Unidades Básica de Saúde (UBS) mais próximas ficam no bairro do Planalto –
há 1h20m do bairro Guarapes em transporte público, e no bairro da Cidade da Esperança – há
mais ou menos 40 minutos do bairro Guarapes em transporte público, sendo esta última
considerada pelos moradores de difícil acesso.
A gente tem problema aqui com relação a Unidade Básica de Saúde, que a
mais perto daqui fica distante uns 4 km daqui, lá no Planalto, não tem acesso
de ônibus, para você ter ideia temos que pegar três ônibus para ir para lá (EX-
PRESIDENTE DA AMAVEL44. 2016).
Ao confrontarmos essas informações com dados oficiais (BRASIL, 2013a)
observamos que realmente não se constata a presença de UBS no entorno imediato (500m),
apenas no final do entorno expandido (1000m), conforme pode se observar na Imagem 9.
Acesso aos serviços de educação
O CMEI que fica próximo ao empreendimento, no conjunto Leningrado, não atende à
demanda do Residencial Vivendas do Planalto. Em virtude disso, para deixar as crianças
pequenas em uma outra creche os pais precisam tomar condução para bairros distantes. Devido
à falta de escola de nível fundamental e médio no entorno imediato (500m) e expandido
(1000m), a Associação dos Moradores e Amigos do Leningrado (AMAVEL) conseguiu levar
para o centro comunitário o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), que funciona em uma sala do
centro comunitário, mas não é de conhecimento de todos os moradores, conforme se observa
pelos seguintes discursos:
A gente não tem educação, as escolas... (MORADOR 3, 2016)
A escola de ensino médio parece que há dois meses tem aqui no centro
comunitário (MORADORA 5, 2016).
É, as escolas são tudo fora e aí a prefeitura está mandando ônibus (EX-
PRESIDENTE DA AMAVEL, 2016).
44 Ante a precariedade do conjunto e a ausência de serviço social quando da implantação do empreendimento os
moradores sentiram a necessidade de criação de uma associação para resolver problemas e melhorar a integração
da comunidade, o nome da associação é AMAVEL e significa: Associação dos Moradores e Amigos do
Leningrado. A associação foi criada em 2015, em 2016 foi elaborado um estatuto constitutivo que dispôs sobre
eleições bienais para todo corpo constitutivo: Presidente, vice-presidente, secretários e tesoureiro.
81
Dados oficiais do IBGE (BRASIL, 2013a) informam haver uma escola no entorno
imediato (500m), nenhuma creche e escola no entorno expandido (1000m), uma creche e duas
escolas fora do entorno expandido (mais de 1000m), conforme podemos observar na Imagem
9. No entanto, constatamos que não há escola de ensino médio e fundamental no entorno
imediato, mas sim uma creche (ou CMEI), que se localiza no conjunto Leningrado (vizinho ao
Residencial Vivendas do Planalto), confirmando os relatos dos entrevistados.
Acesso ao serviço de assistência social
Segundo relato dos entrevistados não há serviço de assistência social tampouco
trabalho social sendo realizado no Residencial Vivendas do Planalto; apesar de existir um
Centro de Referência da Assistência Social dentro do bairro do Guarapes, bairro onde se
localiza o conjunto, os moradores o consideram distante, induzindo a percepção de que se trata
de outro bairro. No entanto, segundo relato de um morador, quando é solicitado, o conselho
tutelar vai ao Residencial. Vejamos:
Só entra conselho tutelar aqui quando ligam para vir (MORADORA 3, 2016)
O CRAS é a maior dificuldade, lá no Guarapes para a gente ir (MORADOR
2, 2016).
Acesso ao lazer
A estrutura de lazer se resume a uma quadra esportiva, no entanto os moradores dizem
ter medo de usá-la em virtude da falta de segurança. O centro comunitário passou a ser utilizado
como área de lazer, havendo aulas de capoeira duas vezes na semana, sob o pagamento de uma
taxa simbólica de R$ 10 reais por mês; o espaço também é disponibilizado para festas
particulares (sob reserva) e da comunidade (em datas comemorativas). A AMAVEL vem
arrecadando livros para formar uma biblioteca aberta a toda a comunidade e, ainda, há a
pretensão de disponibilizar um espaço destinado à informática.
Aqui tem só uma quadra, mas há receio de uso pela falta de segurança
(MORADORA 1, 2016)
82
Imagem 10
Festa Junina organizada pela AMAVEL
Fonte: Arquivo Próprio
Segurança
Os moradores relataram que, no início, era frequente haver assassinato, estupro e
tiroteio, em virtude da existência de facções do tráfico de drogas na região, no entanto esses
fatos já não são mais tão frequentes, haja vista que grande parte dos traficantes morreu em
conflito e o sentimento de medo dos moradores, atualmente, se dá mais ao entrar e sair do
empreendimento do que dentro dele; muitos relataram que se sentem tranquilos nas ruas do
conjunto. No entanto, o sentimento de insegurança em face da violência da região permanece;
o centro comunitário teve janelas e portas furtadas e só não foi mais depredado em virtude de
os moradores terem se reunido para tampar os buracos com tijolos. Grande parte dos blocos,
abertos na planta original do empreendimento – sem muros, portões ou grades – foram fechados
por moradores que se reuniram e arrecadaram fundos para colocar grades e portões isolando
seus blocos dos demais.
Alguns moradores relataram sentir medo de seus vizinhos e, por isso, não reclamavam
quando estes os incomodavam de alguma forma. Quanto à presença da polícia militar, os relatos
afirmaram que não havia, no início, ronda policial, porém, segundo relato de um dos
entrevistados, após reunião da AMAVEL com o comando da Polícia Militar passou a haver a
presença de ronda policial de vez em quando: Vejamos alguns relatos:
83
Agora melhorou 20%, pouquinha coisa, tem a ronda aqui mas passa um dia e
três não (MORADOR 6, 2016).
Quando chama a polícia eles vêm, agora quando não, a segurança é a gente
que faz (MORADOR 9, 2016).
Aqui você vê que a gente está gradeando o apartamento. Este muro não é do
projeto original da Caixa, a gente que está fazendo (MORADOR 20, 2016).
Ao confrontarmos as respostas dos moradores com dados oficiais (BRASIL, 2013a)
observamos que a base da polícia militar mais próxima do Residencial Vivendas do Planalto se
localiza fora do entorno expandido (1000m), conforme podemos observar na Imagem 9.
Imagem 11
Condomínio como foi entregue aos beneficiários do PMCMV (em 23 maio 2014)
Fonte | Patrick Le’Guirriec
Imagem 12
Condomínio após a criação de muros e portões pelos condôminos (em 26 mar. 2017)
Fonte: Arquivo próprio.
84
Subsistência
Não há um centro comercial no empreendimento, os poucos comércios criados pelos
moradores atendem apenas às urgências e foram considerados caros pelos moradores. O
supermercado mais próximo fica no bairro vizinho (Planalto).
Temos vários, serve mais ou menos para subsistência porque como é
mercadinho é mais caro as coisas (MORADORA 1, 2016)
Não é satisfatório porque o comércio mesmo a maioria do pessoal quando quer
fazer compras sai daqui e vai para o planalto (MORADOR 6, 2016)
Imagem 13
Comércio local
Fonte | Arquivo próprio
Aspectos da infraestrutura do local
O fornecimento de água e de energia elétrica se mostrou satisfatório para os moradores
do Residencial.
O fornecimento de energia elétrica é a única coisa que está dando certo e só.
(MORADORA 1, 2016).
Quanto à rede de esgotos, quatro entrevistados responderam haver, enquanto cinco
alegaram que não. Os que alegaram não existir esgotamento sanitário, afirmaram que os canos
existem, mas o saneamento não foi feito ou que o saneamento não funciona uma vez que os
próprios moradores têm tomado providências para esgotar a caixa de fossa e de gordura.
85
Não tem né saneamento. A fossa estourou a gente teve que dar o dinheiro para
abrir para fazer clandestino (MORADORA 4, 2016).
Zero. Não tem rede de esgoto, a gente mesmo esgota. Tem a caixa de gordura,
a fossa, mas quando está cheia a gente que tem que se virar para esgotar.
(MORADORA 5, 2016)
A rede de esgoto a gente paga 20. Não está saneado ainda né, está os canos
agora, mas não foi nada saneado (MORADORA 3, 2016).
Imagem 14
Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos
Fonte | Arquivo próprio
Imagem 15
Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos
Fonte | Arquivo próprio
86
Na entrada do conjunto é possível observar uma placa do Governo Federal e Estadual
informando sobre a implantação do sistema sanitário da Zona Sul para as comunidades de Ponta
Negra, Pitimbu, Planalto, Candelária e Capim Macio, com início em 20 de março de 2015 e
término em 19 de março de 2017. No entanto, a imagem de número 16 foi registrada na data de
26 de março de 2017, mostrando que ainda se verifica a presença de esgotos a céu aberto no
Residencial Vivendas do Planalto.
Imagem 16
Placa na entrada do empreendimento
Fonte | Arquivo próprio.
Imagem 17
Conteúdo da placa na entrada do empreendimento
Fonte | Arquivo próprio
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No aspecto da coleta de lixo, os entrevistados alegaram ser satisfatória e regular.
Quanto ao transporte público, observamos um terminal de ônibus na entrada do
empreendimento; as distâncias a serem percorridas até o ponto de ônibus não são grandes, no
entanto só existem duas linhas disponíveis para os moradores dificultando, assim, a mobilidade
e o acesso para outras áreas da cidade; ademais, as linhas existentes não levam os moradores
para os locais de seus interesses, como por exemplo, o Alecrim. Não obstante a existência de
duas linhas, aos domingos apenas uma funciona, o que compromete a mobilidade nesse dia.
Alguns moradores reivindicam mais linhas de ônibus, além de uma linha que os levem até o
Alecrim
É satisfatório, o ponto é próximo a nossas residências, é tranquilo. Nós
estamos precisando de uma linha dentro do Leningrado, uma linha, que
satisfaça o direito do povo ser transportado para o alecrim, muita gente
reivindica este direito (MORADOR 2, 2016).
Só tem uma opção no domingo a gente sofre para pegar um ônibus. No
domingo tem só uma opção de ônibus para cá (MORADORA 5, 2016).
Não se verificou a presença de telefones públicos.
O serviço de correios não chega até a comunidade. Os moradores relatam não ter CEP
e, por esse motivo, buscam suas correspondências diretamente na sede dos Correios ou
endereçam para a casa de algum familiar ou amigo próximo.
Não tem não, porque não temos CEP, não temos CNPJ, então fica muito
dificultoso as nossas correspondências chegarem (MORADOR 2, 2016)
Ao serem questionados quanto à integração do conjunto com a área urbana da cidade
de Natal, cinco entrevistados responderam que não há integração e quatro responderam que
sim. Na conversa em grupo, um morador falou sobre o sentimento de falta de integração. O
argumento daqueles que não se sentem integrados é pautado no isolamento do Residencial
Vivendas do Planalto e a distância para equipamentos urbanos como creches, escolas, postos
de saúde, entre outros, inclusive reclamam da dificuldade para os afazeres diários como ir a um
banco, a um supermercado, etc., bem como do abandono e descaso do poder público com o
local e moradores do empreendimento.
Não, porque na verdade a gente é tipo um interior esquecido por todos. Aquele
interior, dos interior, dos interior, às vezes aquele interior do interior do
interior tem mais visão do que a gente aqui, olhando de contrapartida.
(MORADORA 1, 2016).
88
Não, porque fica tudo distante para a gente, aqui para você ir no supermercado,
para você ir numa caixa econômica é distante, aqui não tem nada disso aqui
para a gente (MORADOR 7, 2016).
A comunidade de Leningrado, vivendas e o conjunto Leningrado é.... é a
comunidade mais periférica de Natal, abandonada pela sociedade, é por isso
que ela se torna mais periférica, é uma comunidade que não tem nada
praticamente, não existe segurança, não tem educação, não tem ...é..., a saúde
está deixando a desejar, com relação ao transporte não temos que preste todo
o espaço, como eu reivindiquei, e vamos lutar para ver se conseguimos o
ônibus para o alecrim (MORADOR 2, 2016).
O próprio povo as vezes se comunicando diz ‘você vai a Natal? ’ O próprio
povo se acha isolado de Natal (MORADOR 2, 2016).
Pelo que eu vejo, pela falta de assistência é como se aqui não fizesse parte da
cidade de Natal, porque aqui falta tudo, assim, infelizmente é, falta escola para
a criança, tem criança que tem que fazer o fundamental, criança que é pequena
que tem que se deslocar num ônibus para ir para vir, é incomum isso né, é
desumano eu acho, unidade de saúde não tem, se uma pessoa adoecer a noite
aqui, aqui ainda bem tem um grupo, as pessoas se reúnem, então a assistência
médica é assim, ontem à noite um vizinho que estava precisando tomar injeção
porque fez uma cirurgia e precisou dos vizinhos para alguém poder levar, isso
não existe (MORADOR 20, 2016).
Os que responderam que se sentiam integrados não souberam como justificar suas
respostas e responderam, apenas, que sim, ou que sim por terem nascido em Natal e o bairro
Guarapes ser localizado em Natal, ou ainda, que o bairro é integrado, mas ele, como pessoa,
não.
Acho que eu sinto, porque eu moro aqui né, nasci aqui (MORADORA 3,
2016).
Sinto, sinto que o bairro é integrado com a cidade, o bairro é. Não me sinto
integrado em quase nada da cidade, o bairro que é integrado à cidade
(MORADOR 9, 2016).
É, me sinto. (MORADORA 4, 2016)
A situação de isolamento do empreendimento quanto à área urbana da cidade, no
entanto, não muda a sensação de satisfação com relação à nova moradia. A percepção de
satisfação está diretamente relacionada à sensação de ter a propriedade da casa e do conforto
que a casa física em si proporciona. Isso foi observado quando questionados se preferiam morar
na antiga ou na atual moradia:
Lá era de aluguel, eu quero morar aqui porque aqui eu não pago aluguel
entendeu, o que eu pago é para a casa ser minha (MORADOR 8, 2016)
Hoje eu prefiro morar aqui, pois lá era da minha mãe, lá era emprestada, aqui
é da gente mesmo, muda a sensação de ser dono [...] é tudo o que a gente tem.
Eu moro no que é nosso, e se não tivesse? O resto eu posso correr atrás
(MORADOR 7, 2016).
89
Para mim muda muito né porque eu morava de aluguel e hoje em dia eu tenho
uma casa né, uma moradia, eu estou pagando, mas é meu e aluguel você nunca
para de pagar (MORADOR 6, 2016).
Eu prefiro aqui porque aqui foi onde eu tive uma paz. Porque assim eu gosto
do local, gosto do meu apartamento, tem meu local que dormir né que antes
eu não tinha, lá era dois vãozinho, eu dormia por cima do fogão e aqui não
aqui eu tenho mais conforto (MORADORA 3, 2016).
Prefiro morar aqui porque a diferença é o conforto (MORADOR 9, 2016).
Aos serem questionados sobre os benefícios em ter a propriedade da casa os moradores
relataram aspectos variados, como segurança, pagar por um bem que vai ser seu e que pode ser
deixado para os filhos, não faltar água. Constatamos que os moradores querem deixar claro, em
seus depoimentos, que a casa não é deles até que se termine o pagamento à Caixa Econômica
Federal.
De contrapartida que eu saí do lixo, saí do meio dos inseto, porque tinha inseto
de toda qualidade, o que você pudesse imaginar tinha. Por mais arrumadinho
que fosse seu barraco e taipa, o nome já está dizendo é taipa. E sem contar
com a segurança né, o que era o pior, a gente tava ..., a insegurança lá era bem
maior, aqui a gente tem nossa casinha, tudo limpinho, como é que eu digo.
Uma segurança em relação a tudo, é uma segurança geral. (MORADORA 1,
2016).
Pra mim muda muito né porque eu morava de aluguel e hoje em dia eu tenho
uma casa né, uma moradia, eu estou pagando mas é meu e aluguel você
nunca para de pagar (MORADOR 6, 2016).
Quando o cara terminar de pagar, dez anos, né, aí é da pessoa, se a pessoa não
pagar não é dono, agora se pagar é dono (MORADOR 8, 2016).
Minha, minha, ainda não é, só daqui a dez anos, ainda é da Caixa né, só vai
ser minha depois de dez anos quando eu quitar a casa, mas o benefício para
mim é por causa dos meus filhos né, porque eu tenho 4 filhos e para mim, se
eu morrer hoje, graças a Deus eu tenho um canto para deixar para meus filhos
(MORADORA 5, 2016).
Eu não sei. Não garanto que ninguém toma porque eu tou pagando, é como
um aluguel, quando eu terminar de pagar é que vai ser minha, eu tou pagando
né, 5 anos, é um aluguel (MORADORA 3, 2016).
Quanto ao significado de ser dono da sua casa, os moradores relacionaram suas
respostas ao sentimento de dignidade, proteção, de ter um lar, bem como de riqueza imaterial;
vejamos:
Significa ter mais dignidade (MORADOR 9, 2016).
Significa uma coisa muito boa, muito boa mesmo, significa ter um lar, dar um
lar para os meus filhos né (MORADOR 6, 2016)
Sinceramente, para mim hoje eu sou a mulher mais rica do mundo, eu tenho
minha casa, pronto, tem muita gente que quer ganhar na mega sena, eu não
graças a Deus eu já tenho minha riqueza, tenho minha casa, tenho onde botar
meus filhos para dormir (MORADORA 1, 2016).
90
Poxa, eu sou rico, desde que eu consegui conquistar uma cobertura, uma
parede para mim me defender da chuva e do sol, ter uma residência fixa, eu
me sinto milionário, me sinto realizado (MORADOR 2, 2016)
Meu desejo é... Não tenho mais nada para desejar não (MORADOR 8, 2016).
Hoje eu moro que nem gente, né, hoje eu tenho minha moradia [...] hoje eu
não vivo naquela situação deplorável, que era um banheiro para não sei
quantas pessoas (MORADOR. Depoimento. Natal (RN), 17/10/2016).
No aspecto da cidadania, a análise das entrevistas permitiu observar que alguns
moradores não têm noção do que significa esse direito; outros moradores relacionaram-no ao
pagamento de impostos, a ter um lar, bem como a ter direitos, vejamos:
O que é isso? Não sei (MORADORA 3, 2016).
Cidadania é você, é você, em nem sei fia. É ter seus direitos e deveres né.
(MORADOR 9, 2016).
Hein? Cidadão? Cidadão? É uma pessoa que trabalha né não? (MORADOR
8, 2016).
É morar aqui e sim, pagar os impostos. Como a gente paga nossos impostos a
gente se sente mais seguro porque a gente tem o direito de conseguir alguma
coisa como a gente está querendo aqui posto policial, posto de saúde
(MORADOR 7, 2016).
Cidadão é você ter um lar, é você se sentir à vontade no canto que você mora,
é ter segurança que aqui a gente não tem (MORADOR 6, 2016).
É agente ter nossos direitos né, mas como aqui a gente não tem nossos direitos
(MORADORA 5, 2016).
Cidadania para mim é ter o básico né, porque assim direito da constituição ele
vai bem além do que possibilita a gente né, infelizmente a gente vive num país
democrático, mas um democrático entre aspas, pelo menos se o direito básico
fosse cumprido tornaria pelo menos a gente um pouco cidadão (MORADOR
20, 2016).
Ser cidadão é você ter assistências básicas, plano de saúde, educação que é o
principal direito de cada cidadão e é o que mais falta aqui, saúde, educação,
segurança pública, para mim ser cidadão é isso, é ter direito, mas também ter
deveres (MORADOR 21, 2016).
A análise das entrevistas permitiu inferir que o local da moradia contribui para moldar
a identidade do indivíduo e suas expectativas. Observamos que, embora muito dos problemas
enfrentados na nova moradia já fizessem parte da vida dessas pessoas no local de moradia
anterior (como a dificuldade de acesso a equipamentos e serviços de uso coletivo), a nova
moradia – formal e legal – gera obrigações financeiras antes inexistentes, mudando a
perspectiva de direitos do indivíduo. Neste sentido, a percepção que tivemos foi a de que ao
morar em assentamento (informalidade) o indivíduo entende não ter o direito de cobrar dos
órgãos públicos por seus direitos, não apenas os relativos a moradia, mas, também, a outros
91
direitos sociais. No entanto, a partir do momento em que esse indivíduo é contemplado em um
programa de moradia oficial do Governo e passa a adquirir novas obrigações financeiras,
advindas dessa moradia, ele passa a ser ‘oficialmente’ um cidadão, que pode cobrar seus direitos
na medida em que cumpre com os seus deveres. Dessa forma, o que antes não era visto como
um grande problema passa, agora, a ser:
A gente ficou desassistido em uma série de coisas na verdade. Para você ter
ideia eu vou mostrar uma coisa, eu estou vindo agora da Justiça Federal
porque, o que está acontecendo? As fossas da gente estão estourando e a
Construtora não quer se responsabilizar por isso... aí a gente procurou a Caixa,
pois nosso contrato é assinado com a Caixa e não com a construtora, eu já
procurei as construtoras diretamente eles disseram que tem que ser com a
Caixa porque vocês têm contrato com a Caixa. A gente que tem contrato com
a Caixa, nenhum morador fez contrato com construtora, tudo bem, a gente
ligou no 0800 e alguns problemas foram resolvidos, inclusive no meu
apartamento um problema de vazamento, e no dos meus vizinhos eles vieram
e consertaram, mas esses problemas das fossas e alguns problemas de
rachadura eles não estão resolvendo e a gente procurou a Caixa, se você quiser
eu te dou uma cópia desse documento, depois eu mando para você, eles
alegando que não estavam vindo fazer o serviço por causa da periculosidade
do local, você estava aqui né da última vez (se referindo a um dos participantes
da conversa), então a agente vai entrar com uma ação contra a Caixa para ela
vim (sic) resolver esse problema, porque a gente está pagando nossa parcela
do apartamento, então a gente está fazendo a nossa parte e eles não estão
fazendo a parte dele, e uma série de coisa, para vocês terem uma ideia o correio
da gente não funciona, a gente não tem correio (EX-PRESIDENTE DA
AMAVEL, 2016).
É tudo, o que a gente tem. Eu moro no que é nosso, e se não tivesse? O resto
eu posso correr atrás45. (MORADOR 10, 2016).
Me sinto confortável dentro da casa, mas acho que ainda tem muito o que
melhorar46. (MORADOR 11, 2016).
O modo como o direito à cidadania se efetiva por meio da nova moradia é percebido
de maneira diferente pelos diversos moradores. Não obstante o exposto, em que a moradia
formal se mostra um ponto de partida para busca de novos direitos para alguns, o que se denota,
inclusive, da criação da AMAVEL, para outros o fato de ter conseguido a moradia já é muito,
ou seja, o suficiente para estar tudo bem:
Tá bom, é a mesma coisa não tenho nada a reclamar daqui não47. (MORADOR
8, 2016).
45 Morador 10 ao responder ao seguinte questionamento: Quais os benefícios de se ter a casa própria? 46 Morador 11 ao responder ao seguinte questionamento: Ser contemplado pelo PMCMV e se tornar dono da sua
casa foi suficiente para você se sentir pleno como cidadão? 47Morador 8 ao responder ao seguinte questionamento: Como você se sente enquanto cidadão morando no
Residencial Vivendas do Planalto?
92
Me sinto realizado porque aqui é muito bom de morar e eu gosto de morar
aqui 48(MORADOR 7, 2016).
Quando questionados se ser contemplado pelo PMCMV foi suficiente para se sentirem
plenos como cidadão, um entrevistado respondeu que sim, cinco responderam que não, três não
souberam responder.
Por fim, podemos inferir que os moradores do Residencial Vivendas do Planalto,
contemplados pelo PMCMV, se mostram satisfeitos com a nova moradia, a casa própria não
apenas lhes oferece a segurança física – o que observamos por meio de melhorias conquistadas
com os padrões construtivos de suas habitações atuais – mas dignidade, percebida por meio de
melhoria de suas condições de moradia. A moradia se mostra para esses indivíduos como um
fator primordial para a participação e reconhecimento do indivíduo pela sociedade, capaz de
influenciar na sua identidade pessoal, cultural e política. No entanto, a mudança dessa
população para a casa própria cria sentimentos contraditórios, em que pese a segurança física e
dignidade adquiridos com a nova casa, a falta de atenção dos órgãos públicos à população ali
instalada dá ensejo ao sentimento de abandono e exclusão da sociedade. As expectativas de
quando ‘conquistaram’ a casa própria não foram atendidas e problemas vivenciados na antiga
moradia são também vivenciados nas novas. O depoimento, abaixo, de uma mulher, momentos
antes de deixar o assentamento e ir para o Residencial Vivendas do Planalto demostra as
expectativas dos indivíduos contemplados pelo Programa de que a nova moradia iria lhe
propiciar tudo que não tinham antes, demonstra:
É uma conquista. Uma vitória de muito tempo de luta. Aqui tudo é difícil. A
gente carregou muita água. A energia vivia num ‘corta, corta’. E o pior era a
falta de segurança, disse momentos antes de deixar o assentamento [...] Espero
muita coisa: segurança, saúde e acesso aos serviços essenciais” (SOUZA,
2014)49
Em face os resultados da pesquisa de campo, observamos que muitos dos problemas,
vivenciados nas moradias anteriores, persistem, gerando, assim, um sentimento de indignação
por parte dos moradores, considerando que as despesas geradas pelo novo tipo de moradia são
elevadas e, mesmo assim, as suas necessidades básicas não são atendidas pelo Poder Público
Municipal. Constatou-se, no entanto, que o fato de cumprirem as obrigações financeiras geradas
pela nova moradia lhes dá voz para cobrar do Poder Público melhorias para a comunidade.
48 Morador 7 ao responder ao seguinte questionamento: Como você se sente enquanto cidadão morando no
Residencial Vivendas do Planalto? 49Trecho do depoimento de Thalita Santos de Lima (ex-moradora do assentamento erradicado pela Prefeitura)
retirado da reportagem publicada em 23 de maio de 2014 no Blog do Salatiel.
93
Considerações finais
Esta pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na
consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade, mais
especificamente a) identificar sinais – ou tendências – da relação entre a obtenção da moradia
e o sentido de cidadania existente; b) estabelecer o papel da política setorial de moradia para
um sentido de contribuição à Cidadania; c) entender a manifestação da política habitacional e
sua expressão efetiva na produção espacial com os possíveis efeitos na subjetividade, identidade
e sentido de cidadania da população enquadrada na faixa 1 do PMCMV.
Os seguintes questionamentos embasaram a pesquisa: Pode uma política habitacional
ampliar ou prejudicar o sentido de Cidadania de parte da população? A moradia é condição
básica para que a Cidadania ocorra de modo ampliado? Para responder a essas questões, a
pesquisa concentrou-se na análise da produção habitacional do Programa Minha Casa Minha
Vida, faixa 1, no Residencial Vivendas do Planalto, localizado na cidade de Natal/RN.
O conceito de cidadania abordado no primeiro capítulo traz, em suma, duas
concepções: A primeira, baseada em Marshall (1967), considera que a aquisição de direito civis,
políticos e sociais possibilita a ideia de cidadania baseada em um caráter nivelador e igualitário
do indivíduo. Por mais que esta concepção não tenha se desenvolvido plenamente no contexto
histórico do Brasil do século XX, o processo histórico brasileiro, a duras penas, conseguiu, a
partir da década de 1980, relacionar a noção de cidadania a diminuição de desigualdade e
inclusão social, dando azo a concepção de cidadão como portador de direitos e deveres, o que
se consolidou com a constituição de 1988. A segunda, possibilitada pela ascensão de uma
racionalidade neoliberal iniciada no quadro histórico dos anos 1990, fez desaparecer a ideia de
cidadania baseada na conquista de direitos e deu lugar a inserção social baseada no acesso aos
bens de consumo, tornando a posse de determinados produtos e o acesso a determinados
serviços instrumentos para a construção e reforço de identidades sociais, e consequentemente,
para o reconhecimento de um indivíduo como cidadão.
No campo da moradia, procuramos mostrar, ao longo da pesquisa, como a
racionalidade neoliberal - que ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado e
justifica desigualdades cada vez mais profundas – afetou profundamente a gestão de políticas
públicas, transformando a produção de habitação de interesse social em nicho de mercado.
Dentro desta racionalidade, os Estados tornaram-se elementos-chave na criação de condições
fiscais e sociais mais favoráveis à valorização do capital, contribuindo, assim, amplamente para
a criação de uma ordem que os submeteu a novas restrições e que, entre outras atitudes, os
94
levaram a reduzir direitos considerados muito onerosos e a enfraquecer os mecanismos de
solidariedade que escapam à lógica assistencial privada (DARDOT; LAVAL, 2016).
A visão da moradia dentro da racionalidade neoliberal – em que o desenvolvimento da
lógica de mercado é a lógica normativa generalizada – transforma-a em um ativo integrado do
mercado financeiro retirando-a do campo do direito social e reposicionando-a na esfera dos
bens de consumo. No caso específico brasileiro, a alocação da moradia pelo mercado levou ao
abandono de uma política pública habitacional voltada para consolidação de um direito social
amplo, que engloba diversos outros direitos individuais, políticos e sociais (direitos de primeira,
segunda e terceira gerações na classificação Marshalliana), para a consolidação de uma política
com forte viés econômico que não atende à busca da população marginalizada por uma moradia
digna.
A lógica normativa que se impõe no neoliberalismo impõe a lógica de mercado desde
o Estado até o mais íntimo da subjetividade do indivíduo. Dessa forma, o sujeito é induzido a
sobreviver na competição, de forma que todas as suas atividades se assemelham a um
investimento, a um cálculo de custo (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse sentido, por mais que a
moradia seja um direito social, capaz de oportunizar o desenvolvimento pessoal de um sujeito,
ela passa a ser vista como investimento, não importando, portanto, o seu valor de uso, mas o
seu valor de troca.
Na contracorrente dessa racionalidade, e mostrando que a imediata intuição prática da
realidade não corresponde a “existência real do fenômeno”, a pesquisa realizada permitiu
mostrar que mais do que a importância da aquisição de um bem de consumo com valor
transacional no mercado, a importância da aquisição das moradias ofertadas pelo PMCMV
reside nos aspectos físicos proporcionados pela estrutura física da nova moradia, nas palavras
de Patrick Le’Guirriec (2015), nos elementos de conforto que os indivíduos contemplados não
possuíam antes de ser beneficiados pelo Programa: um lugar claro, com água e a eletricidade à
vontade, um teto e paredes sem risco de desabar em razão das chuvas, um endereço. Nesse
sentido, percebemos que, mesmo ausente no empreendimento analisado, os componentes
físicos básicos para que se possa falar na existência de um padrão adequado de vida, as
moradias, oferecidas pelo PMCMV no empreendimento analisado, permitem ao indivíduo, ao
retirá-lo da informalidade, a percepção de pertencimento social.
Em face desses aspectos, observamos que a aquisição da propriedade individual, mais
do que a aquisição de um bem qualquer de consumo, aguça uma sensação de cidadania antes
inexistente nos indivíduos contemplados nesse empreendimento estudado. Essa sensação é
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advinda da legalidade e regularidade da nova moradia, bem como do cumprimento das
obrigações a ela relacionadas (pagamento da prestação da casa, energia elétrica, água e
condomínio), como se o direito de ser ‘cidadão’ só pudesse ser pleiteado por quem age dentro
de um conjunto de obrigações. Nesse sentido, o resultado da presente pesquisa nos levou a
inferir que, para os indivíduos entrevistados, a proteção do direito parece estar diretamente
relacionada ao cumprimento das obrigações impostas pelo Estado, de forma, que se o indivíduo
cumpre com o seu dever de pagar, então deve ter os seus direitos garantidos. Dessa forma, a
aquisição da casa própria, mais do que valor de troca, se constitui em um valor de
reconhecimento social legítimo para a população marginalizada.
Em face dessa lógica, entendemos que a Política de Habitação, perpetrada pelo
PMCMV, mesmo que por caminhos tortos, contribui para o sentido de cidadania de parte da
população. Ressaltamos que, ainda que essa percepção de cidadania não esteja presente em
todos os indivíduos, haja vista que, para alguns o fato de ter adquirido a casa própria seja o
bastante para que eles se sintam atendidos pelo Poder Público (seja ele Federal, Estadual ou
Municipal); para outros, ela é o ponto de partida para a luta pela conquista de novos direitos
sociais, como a melhoria do acesso a equipamentos e serviços públicos de educação, saúde,
transporte, lazer, segurança, entre outros. Compreendemos, então, que a aquisição da
propriedade da moradia se torna uma espécie de passaporte para a cidadania.
Ante o exposto, podemos afirmar que a moradia se revela como condição básica para
a cidadania, mas não de modo ampliado (de forma plena). Isto porque, retornando a ordem
Marshalliana de direitos que caracterizam a cidadania plena, o conjunto de direitos civis,
políticos e sociais é que garantem a partição política do indivíduo nos assuntos de seu país, de
modo que o conteúdo decisivo para a relação entre cidadania e direitos civis é a obtenção de
direitos. Relacionando essas três gerações de direitos à moradia, vimos que essa é
interdependente ao direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à integridade física, à
educação, à assistência, à inviolabilidade do domicílio, à função social da propriedade, dentre
outros direitos também fundamentais. Dessa forma, para que a moradia se revele como
condição básica para que a cidadania ocorra de modo ampliado, ela deveria respeitar uma gama
de direitos, os quais não se observam na moradia oferecida pelo PMCMV, mais especificamente
no empreendimento Residencial Vivendas do Planalto.
Contribuindo para a aprimorar a reflexão sobre a relação entre cidadania e moradia, a
análise da realidade – como objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente –
revelou que, por mais que a produção de casas nos moldes do PMCMV, faixa 1, não prejudique
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o sentido de cidadania da população beneficiada pelo Programa, ela gera uma inflexão deste
direito no campo teórico, na medida em que os direitos sociais – conquistados pelo cidadão
brasileiro no século XX e consolidados na constituição de 1988 – se mostram prejudicados pelo
difícil acesso aos equipamentos e serviços de uso coletivo.
Podemos observar que a dificuldade de acesso aos equipamentos e serviços de uso
coletivo – postos de saúde, centros municipais de educação infantil, escolas de nível
fundamental e médio, conselho de assistência social, supermercados – relatada pelos moradores
do Residencial Vivendas do Planalto, é agravada pela falta de um sistema de transporte eficiente
que os levem aos locais que necessitam ir, o que observamos, por exemplo, nos depoimentos
apresentados nos subitens acesso à saúde e aspectos da infraestrutura do local (item 4.3,
capítulo 4). Também observamos a violação a outros direitos sociais, como por exemplo, o
lazer, quando os moradores deixam de utilizar a única área destinada a encontros e esportes – a
praça com quadra esportiva – em virtude do sentimento de falta de segurança; o centro
comunitário (que se localiza na praça) foi depredado e os moradores são obrigados a conviver
com o medo. Notamos que, mesmo sendo a Região considerada como violenta, a presença da
polícia militar não é ostensiva no local. Somado a este quadro de violação aos direitos sociais,
a falta de instalações sanitárias adequadas, o que se observa pela presença de esgotos à céu
aberto no Residencial, cria um ambiente insalubre, que, segundo Wong (s/d) propicia o
desenvolvimento de doenças fatais.
Em face de tais considerações, a moradia, a partir do PMCMV para as pessoas
entrevistadas no empreendimento analisado, se mostra como um ponto de partida para que o
indivíduo possa ter a consciência de sua cidadania, mas não significa que ele se torna um
cidadão pleno, haja vista não serem respeitadas as três dimensões de direito que caracterizam a
cidadania como plena (individuais, políticos e sociais).
Importante ressaltar, ainda, que o sentido de cidadania que se pôde captar com a
pesquisa empreendida foi aquele semelhante ao das décadas de 1970 e 1980 quando a ideia de
cidadania passou a ser definida pelos princípios da democracia, significando conquista e
consolidação social e política, impondo comportamentos próprios na criação de espaços sociais
pelas lutas populares.
Verificamos, ainda, que, por mais que haja uma afirmação por parte dos entrevistados
na importância em sair do aluguel e estarem pagando pelo que é seu, o que levaria a uma
percepção de predominância da racionalidade neoliberal, a importância da moradia como um
direito social capaz de proporcionar a participação e reconhecimento do indivíduo pela
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sociedade, capaz de influenciar na sua identidade pessoal, cultural e política está implícito em
seus discursos.
Diante de tais observações, entendemos que, por mais que uma política habitacional
nos moldes do PMCMV tenha o condão de transformar um direito social, como o Direito à
Moradia, em mais um elemento de mercado, ela não tem sido suficiente para que haja uma
mudança generalizada na concepção individual dos sujeitos de substituição da luta pela moradia
pela luta ao crédito. Não obstante, é preciso deixar claro que o Programa ainda se apresenta
muito aquém de uma política habitacional, capaz de equacionar o problema habitacional no
âmbito de um projeto que vise à inclusão social e à diminuição de desigualdades históricas. A
segregação sócio espacial, ocasionada pelo PMCMV diminui o acesso a oportunidades para que
a população marginalizada possa alcançar um padrão adequado de viver, na medida em que
lhes nega o Direito à Cidade.
Como vimos no decorrer desta pesquisa, a cidade é o grande referencial para se refletir
sobre a cidadania; é, nela, que se produz a política, se realizam as atividades econômicas, se
organiza a vida institucional, se constituem novos sujeitos sociais e se modifica o direito; é,
nela, que o indivíduo vai ter o suporte material para seu bem-estar e desenvolvimento pessoal.
Nesse sentido, a sua negação traz consigo uma lista interminável de problemas sociais e
econômicos que tendo como consequência a exclusão e a desigualdade social que propiciam a
discriminação, ocasionando uma perpetuação da pobreza e a ausência do exercício da cidadania.
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108
Apêndice – Roteiro de Entrevistas – Residencial Vivendas do Planalto
Pesquisa de campo para a Disser tação de Mestrado in t i tulada: ‘CIDADANIA E CASA
PRÓPRIA: COMO ESSA RELAÇÃO SE MANIFESTA? Uma análise a partir do Programa Minha
Casa Minha Vida no Conjunto Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN. ’
IDENTIFICAÇÃO:
Data da entrevista: Número da Entrevista:
Nome do Entrevistado: Idade:
Estado Civil: Ocupação:
Filhos: Quantidade de filhos que moram na
mesma casa:
Escolaridade:
I - DIREITO À CIDADE
1. O seu bairro e/ou região é atendido pelos seguintes serviços públicos?
Serviços e equipamentos urbanos 1. sim 2. não
3. não
sabe Observações
Saúde: Hospital/Pronto Socorro
Educação: Creche
Escola de ensino infantil
Escola de ensino fundamental
Escola de ensino médio
Assistência
Social:
Conselho Tutelar
Centro de Referência da Assistência
Social – CRAS
Lazer: Clube esportivo
Casa de cultura
109
Biblioteca pública
Segurança: Policiamento
Subsistência: Comercio local
Infraestrutura 1. sim 2. não 3. não
sabe
Fornecimento de água
Rede de esgoto
Fornecimento de energia elétrica
Coleta de lixo
Transporte público
Correios
Telefone público
2. Você se sente integrado à cidade de Natal? Por quê?
3. O que você gostaria que tivesse no conjunto habitacional?
II- MORADIA
1. Em qual bairro ou comunidade você morava antes?
2. Você prefere morar aqui ou em sua moradia anterior? Por que?
3. Quais os benefícios que ter a propriedade da sua casa?
4. O que significa ser dono da sua casa?
5. O que faria você se mudar daqui hoje?
1. Falta de condições de pagamento da prestação e das contas de condomínio, água e de luz
2. Problemas familiares
3. Distância dos locais de trabalhos
4. Tamanho do apartamento/casa
5. Problema com a vizinhança
6. Problema de transporte
7. Problemas de segurança e violência
Observações:
6. O que você mais gosta aqui?
7. O que você menos gosta aqui?
III- CIDADANIA
1. O que é ser cidadão para você?
2. Como você se sento enquanto cidadão morando aqui?
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3. Ser contemplado pelo PMCMV e se tornar dono da sua casa foi suficiente para você se sentir
pleno como cidadão?