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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo Costa Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta? Uma análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN Natal/RN 2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais

Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo Costa

Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta?

Uma análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto

Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN

Natal/RN

2017

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Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo Costa

Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta?

Uma análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto

Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção

do título de Mestre em Estudos Urbanos e Regionais, área de

concentração em Cidades e Dinâmicas Urbanas.

Orientador: Prof. Dr. Alexandro Ferreira Cardoso da Silva

Natal/RN

2017

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Costa, Suzana Carolina dos Santos Dutra de Macedo.

Cidadania e casa própria: como essa relação se manifesta? Uma

análise a partir do Programa Minha Casa Minha Vida no Conjunto Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN / Suzana Carolina

dos Santos Dutra de Macedo Costa. - 2017.

110f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de

Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, 2017. Orientador: Prof. Dr. Alexandro Ferreira Cardoso da Silva.

1. Moradia. 2. Casa própria. 3. Cidadania. 4. Natal (Rio Grande do Norte). I. Silva, Alexandro Ferreira Cardoso da. II.

Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 351.778.532(813.2)

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Agradecimentos

Primeiramente aos meus pais, Francisco e Sônia, por terem sido minha primeira

inspiração no campo acadêmico e pelo eterno incentivo, ensinando-me a sempre lutar e correr

atrás dos meus objetivos, por não me deixarem enfraquecer e nem olhar para baixo frente aos

obstáculos da vida.

Ao meu marido, Bruno, pelo amor, companheirismo e apoio constante em todos os

meus projetos de vida.

Ao meu filho, Marcos Bruno, que veio ao mundo durante o período de elaboração

desta pesquisa, trazendo uma alegria desmedida e o anseio de buscar o melhor para ser o seu

exemplo.

Ao amigo Pedro Galvão por te me apresentado ao Programa de Pós-Graduação em

Estudos Urbanos e Regionais.

Ao meu orientador, Alexsandro Cardoso, por haver me acolhido tão bem no Programa

de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, primeiramente como aluna especial;

depois, como sua orientanda; pelas conversas sobre meu tema de pesquisa, pela motivação

constante, pela compreensão em todas as fases por que passei durante os dois anos de pesquisa.

Foi um imenso privilégio tê-lo como orientador e captar um pouco dos seus ensinamentos e

conhecimentos em geral.

À Professora Dulce Bentes pelo incentivo dado para que eu percorresse o debate sobre

Cidadania e Moradia; por ter participado da construção do objeto dessa pesquisa e por suas

valiosas contribuições.

Ao professor, Patrick Le’Guirriec, por ter me apresentado aos moradores do

Residencial Vivendas do Planalto, pelos ensinamentos transmitidos, pelo material doado, pelas

conversas produtivas e ideias e sugestões tão pertinentes que contribuíram, substancialmente,

para o aprimoramento da minha pesquisa.

À Milena, Renata, Sara e Tainara, que se tornaram verdadeiras amigas,

compartilhando comigo descobertas, preocupações e conquistas durante esta caminhada.

Aos moradores do Residencial Vivendas do Planalto, pelos depoimentos concedidos,

voluntariamente, durante a pesquisa de campo, em especial, a Thaíse e a Beto, pela disposição

para me ajudar em quaisquer circunstâncias.

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Resumo

A moradia é um direito social garantido pela Constituição Brasileira de 1988; sua

concretização, de acordo com tratados internacionais ratificados pelo Estado Brasileiro, impõe

a observância de vários outros direitos, como, por exemplo, o direito a um nível de vida

adequado com igualdade de acesso de todos aos bens públicos e serviços de qualidade. Ao

mesmo tempo em que figura como um direito social, a moradia, enquanto bem físico, se insere

no contexto de mudanças econômicas, políticas e territoriais que ocorreram, mundialmente, sob

a égide da hegemonia do pensamento e das práticas neoliberais, tornando-se, cada vez mais,

um elemento de consumo do mercado. A inversão do sentido da produção social da moradia –

de direito para mercadoria – condiciona sua concretização a um propósito quantitativo, uma

meta, substituindo a luta pela moradia pela luta ao crédito. Em face dessa dinâmica, a pesquisa

partiu da premissa de que a convergência da Moradia como mais um direito do Consumidor-

Cidadão, em vez de um Direito Social, é provocado, também, pela ênfase que as políticas

públicas assumiriam, mais recentemente, em corresponder aos interesses de mercado, isto é,

proporcionar uma acumulação do capital por meio da ampliação da mercadoria “moradia

social” como objeto de consumo. Tomando como objeto a relação entre Moradia e Cidadania,

a pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na consolidação

da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade. Os questionamentos que estão

na base da pesquisa são: Pode uma política habitacional ampliar ou prejudicar o sentido de

Cidadania de parte da população? É a moradia condição básica para a Cidadania ocorrer de

modo ampliado? Os resultados do estudo revelaram que a aquisição da casa própria por um

programa do Governo gera no indivíduo a sensação de pertencimento social, concedendo-lhe,

implicitamente, o status de ‘cidadão’, na medida em que ao sair de condições ilegais e/ou

irregulares de moradia e assumir deveres advindos de uma moradia legal e regular o indivíduo

passa a se sentir portador de direitos, com voz para reivindicá-los perante o Estado, no entanto

essa não é a cidadania plena. A condução da investigação do objeto de pesquisa foi orientada

por uma compreensão dialética da discussão sobre Cidadania e Moradia, que permitiu, com

base na revisão bibliográfica e em pesquisa de campo realizada em empreendimento da faixa

1, do Programa Minha Casa Minha Vida, captar a essência dessa relação que pretendemos

estabelecer.

Palavras-chave: Moradia. Casa própria. Cidadania. Cidade. Mercado. Consumo.

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Abstract

Housing is a social right guaranteed by the 1988 Brazilian Constitution; its

implementation imposes the observance of several other rights according to international

treaties ratified by the Brazilian State, such as the right to an adequate standard of living with

equal access to all public goods and quality services. Housing is at the same time a social right

and a physical good. It is inserted in the context of economic, political and territorial changes

that occurred worldwide under the aegis of neoliberal thought and practices, becoming yet

another element of consumption in the market. The inversion of the direction in the social

production of housing - from a right to goods - conditions its realization to a quantitative

purpose, a goal, replacing the struggle for housing with the fight against credit. Given this new

dynamic, the research started from the premise that the convergence of Housing as another

Consumer-Citizen right, rather than a Social Law, is also caused by the emphasis that public

policies have more recently taken in meeting the interests of the market, that is, to provide an

accumulation of capital through the expansion of the commodity "social housing" as an object

of consumption. The research has as its subject the relationship between Housing and

Citizenship and it aims to understand the effects of housing policy on the consolidation of

Citizenship as an element of integration regarding to the Right to the City. The questions which

are the basis of the research are: Can a housing policy increase or impair the sense of citizenship

from a part of the population? Is housing the basic condition for Citizenship to occur in an

expanded way? The results of the study revealed that the acquisition of an own property through

a government program generates a sense of social belonging to the individual, implicitly

granting him/her the status of 'citizen'. When leaving illegal conditions and/or irregular housing

and assuming duties resulting from a legal and regular housing the individual becomes a holder

of rights, with a voice to claim them before the State, however this is not full citizenship. The

leading of the investigation on the research subject was guided by a dialectical understanding

of the discussion on Citizenship and Housing, which allowed capturing the essence of this

relation that we intend to establish, based on the bibliographical review and field research

carried out in a property development in phase 1 of the Housing Program Minha Casa Minha

Vida.

Keywords: Housing. Own property. Citizenship. City. Marketplace. Consumption

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Siglas

AMAVEL Associação dos Moradores e Amigos do Leningrado

BACEN Banco Central do Brasil

BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

BNH Banco Nacional da Habitação

CBIC Câmara Brasileira da Indústria da Construção

CDESC Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

CEF Caixa Econômica Federal

CMEI Centro Municipal de Educação Infantil

CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CRI Certificado de Recebíveis Imobiliários

DARQ Departamento de Arquitetura

DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos

DASPE Departamento de Ação Social e Projetos Especiais

EJA Ensino de Jovens e Adultos

FAR Fundo de Arrendamento Residencial

FDS Fundo de Desenvolvimento Social

FGHAB Fundo Garantidor da Habitação

FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço

FHC Fernando Henrique Cardoso

FII Fundo de Investimento Imobiliário

FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social

FSM Fórum Social Mundial

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

OGU Orçamento Geral da União

ONU Organização das Nações Unidas

MCIDADES Ministério das Cidades

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MCMV Minha Casa Minha Vida

MCTI Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

OIT Organização Internacional do Trabalho

ONU Organização das Nações Unidas

PAC Plano de Aceleração do Crescimento

PAR Programa de Arrendamento Residencial

PLANHAB Plano Nacional de Habitação

PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida

PNH Política Nacional de Habitação

PNHU Política Nacional de Habitação Urbana

PNHR Política Nacional de Habitação Rural

PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos

PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

PPGAU Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

PSDB Partido da Social Democracia Brasileira

PT Partido dos Trabalhadores

RMN Região Metropolitana de Natal

SBPE Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo

SFH Sistema Financeiro de Habitação

SFI Sistema Financeiro Imobiliário

SEHARPE Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos

Estruturantes

SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social

UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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Lista de Quadros

Quadro 1 Características do PMCMV por fases e faixas 56

Quadro 2 Perfil dos entrevistados 78

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Lista de Imagem

Imagem 1 Localização dos Empreendimentos Faixa 1 do PMCMV no Município

de Natal 65

Imagem 2 Localização do Residencial Vivendas do Planalto no bairro Guarapes 69

Imagem 3 Configuração do empreendimento vista de cima pelo Google Earth 70

Imagem 4 Partido Urbanístico e Tipologia Habitacional do Residencial Vivendas do

Planalto 71

Imagem 5 Bloco de apartamentos 72

Imagem 6 Canteiro central 72

Imagem 7 Área Central do Conjunto Residencial Vivendas do Planalto I, II, III

e IV 73

Imagem 8 Ocupação de recuos laterais 73

Imagem 9 Inserção Urbana do Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV 74

Imagem 10 Festa Junina organizada pela AMAVEL 82

Imagem 11 Condomínio como foi entregue aos beneficiários do PMCMV em 23 maio

2014 83

Imagem 12 Condomínio após a criação de muros e portões pelos condôminos em 26 mar.

2017 83

Imagem 13 Comércio Local 84

Imagem 14 Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos 85

Imagem 15 Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos 85

Imagem 16 Placa na entrada do empreendimento 86

Imagem 17 Conteúdo da placa na entrada do empreendimento 86

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Sumário

Introdução 11

1. Cidadania, Moradia e o Direito à Cidade: debates contemporâneos e fortalecimento das

Políticas Sociais 20

1.1. Cidadania: o que é e como se concretiza? 20

1.2. Direito à Moradia: definição e relações teóricas 27

1.3. Direito à Cidade: relações teóricas e lutas sociais 31

1.4. A Casa Própria e sua inscrição no modelo neoliberal – Contexto brasileiro 35

2. Construção da Moradia no Brasil: políticas e lutas pelo Direito à Cidade 40

2.1. A Moradia após a Redemocratização: políticas neoliberais e processo democrático (1988-

1998) 40

2.2. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas I

(1998-2003) 43

2.3. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas II

(2004-2015) 48

3. O Programa Minha Casa Minha Vida e a produção privada da moradia de interesse

social no Brasil 55

3.1. O Programa Minha Casa Minha Vida no contexto da política habitacional brasileira

(2009-2015) 55

3.2. O Programa Minha Casa Minha Vida e sua expressão física territorial na Região

Metropolitana de Natal e na Cidade de Natal 62

4. Pesquisa de Campo: abordagens e resultados 69

4.1. O lócus do estudo 69

4.2. Entrevista qualitativa: Unidades de Análise e Procedimento das Entrevistas 76

4.3. Resultados da Pesquisa de Campo 79

Considerações Finais 93

Referências 98

Apêndice 107

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Introdução

O Minha Casa Minha Vida (MCMV) é um programa habitacional, criado pela Lei

Federal nº 11.977, de 7 de junho de 2009, (BRASIL, 2009) com a finalidade de estabelecer

mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais para famílias

com renda de até R$ 10 salários mínimos1. Embora destinado a integrar os Programas

Habitacionais do Governo Federal, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) é, na sua

origem, um programa com forte viés econômico, não apenas por representar mais crédito nas

instituições bancárias, disponível ao consumidor e às empresas, mas também, por mobilizar

desde a indústria extrativista e produtora dos materiais básicos da construção civil até a indústria

moveleira e de eletrodomésticos, que é ativada no momento de entrega das chaves2.

Para possibilitar o acesso de famílias com baixa renda à aquisição da casa própria, o

Governo Federal disponibilizou elevados subsídios e reduziu as taxas de juros; somado a esse

quadro, o Programa foi organizado em uma série de subprogramas, modalidades, fundos, linhas

de financiamento, tipologias habitacionais, agentes operadores, que facilitaram o financiamento

direto à demanda (SATO, 2010; RODRIGUES, 2010).

O sucesso quantitativo e a boa repercussão, na opinião pública, fizeram o MCMV se

consolidar na política urbana em nível nacional (BRASIL DA MUDANÇA, s/d), no entanto os

empreendimentos construídos pelo Programa, de modo geral, não garantem à população

beneficiada os aspectos legais que permitem conceituar a moradia como digna, bem como

potencializam uma série de problemas urbanos que perpassam desde a luta pela habitação de

qualidade à busca constante pelo Direito à Cidade (CARDOSO, 2013; BENTES SOBRINHA,

SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015; KRAUSE, BALBIM, LIMA NETO, 2013).

Isto porque, em grande partes dos empreendimentos do PMCMV faixa 1, há um afastamento

dos grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda a sua infraestrutura,

para as áreas periféricas, onde se evidencia uma ausência de serviços públicos (AMORE;

SHIMBO; CRUZ, 2015).

Além de problemas relativos à localização, a baixa qualidade arquitetônica e

construtiva, a descontinuidade do programa em relação ao Sistema Nacional de Habitação de

1Esse valor foi alterado em 2011 pela Lei Federal nº 12.424 para R$ 4.500,00 (quatro mil e quinhentos reais). Hoje,

o valor é de R$ 6.250,00 (seis mil, duzentos e cinquenta) conforme determinação do Ministério das Cidades pela

Portaria nº 258/16, que divulga propostas apresentadas no âmbito do Programa Minha Casa Minha Vida -

Entidades, operado com recursos do Fundo de Desenvolvimento Social - FDS, na forma que especifica, e dá outras

providências. 2 Do total de 47,05 bilhões de financiamento imobiliários feitos pela Caixa Econômica Federal em 2009, 14,1

bilhões foram destinados ao Programa Minha Casa Minha Vida.

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Interesse Social (SNHIS) e a falta de controle social sobre a implementação são críticas

correntes ao Programa. Somado a esse quadro, o Poder Público Municipal, das diversas cidades

que implementaram o Programa, demonstrou um verdadeiro descaso em implementar a

infraestrutura necessária ao novo ambiente dos empreendimentos, mostrando que não há o

acompanhamento do necessário grau civilizatório e de cidadania que os projetos exigem

(AMORE; SHIMBO; CRUZ, 2015).

Em que pese ter apresentado uma proposta aparentemente progressista de conceder o

Direito à Moradia à população de baixa renda, o PMCMV parece mais ter ampliado a cadeia

que aprisiona as populações vulneráveis e marginalizadas dentro da órbita de circulação de

acumulação de capital – gerando impactos diretos na subjetividade, identidade e sentido de

cidadania dos habitantes dessas áreas periféricas – do que ter proporcionado o acesso à moradia

adequada aos beneficiários do Programa.

Além da dimensão física, a Moradia agrega conteúdos de ordem social e simbólica

relacionados a outros direitos; sua concretização está intimamente relacionada ao direito à

cidadania e ao Direito à Cidade, na medida em que figura como elemento central a um nível de

vida adequado. Dessa forma, o olhar sobre a Moradia, como objeto de política pública setorial,

impõe que, além da facilitação do acesso ao bem casa própria, sejam observados outros

elementos, como igualdade de acesso de todos aos bens públicos e serviços de qualidade, os

quais contribuem para o sentido de Cidadania. Não obstante, a produção habitacional exerce

um papel de destaque no modo de produção capitalista, já que a produção habitacional promove

a circulação do capital por meio da produção mercantil da casa, contribuindo para o

desenvolvimento econômico. A promoção da aquisição da casa própria tem, portanto, valores

de ordem política e econômica quase sempre relacionados aos interesses capitalistas, que

escamoteiam o valor de uso da habitação e exaltam o seu valor de troca.

Em face desta dinâmica, e considerando que a relação entre ‘Moradia e Cidadania’ –

observada de modo integrado com o PMCMV – é o objeto de estudo que estabelecemos nessa

dissertação, partimos da premissa de que a convergência da Moradia como mais um direito do

Consumidor-Cidadão, em vez de um Direito Social, é provocado pela ênfase que as políticas

públicas assumiriam, mais recentemente, em corresponder aos interesses de mercado, isto é,

proporcionar uma acumulação do capital por meio da ampliação da mercadoria “moradia

social” como objeto de consumo.

A pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na

consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade. Os

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questionamentos que deram origem à pesquisa foram: pode uma política habitacional ampliar

ou prejudicar o sentido de Cidadania de parte da população? A moradia é condição básica para

que a Cidadania ocorra de modo ampliado?

Em face da necessidade de trabalhar elementos concretos da manifestação da política

habitacional e os possíveis efeitos na subjetividade, identidade e sentido de cidadania que se

deseja encontrar, não podemos renegar o contexto histórico e os símbolos que a moradia carrega

consigo especificamente no caso brasileiro. Podemos afirmar, categoricamente, que, no Brasil,

há um sentimento enraizado de que uma forma de aquisição da cidadania é a obtenção da casa

própria; a propriedade está intrínseca ao ideal de moradia digna, ela é retratada ao mesmo tempo

como um símbolo de segurança social, bem como de segurança econômica (a conquista de um

bem valioso) (MILANO, 2013; ARANTES; FIX, 2009). Corroborando o entendimento de

Milano (2013, p.33) o ideal de casa própria, no Brasil, não é apenas uma ideologia, ele incorpora

e traduz experiências de vida, transmitidas de geração em geração, tratando-se, pois, de um fato

social.

Entendemos que a aquisição da casa própria, na sociedade contemporânea, também se

relaciona com a busca de uma uniformidade simbólica, representada pelo acesso a certos bens

e serviços. Nesse sentido, as pessoas reclamam o direito de ser tratado como igual ou, ao menos,

de não ser definitivamente classificado em uma posição de inferioridade por meio de marcações

sociais, isto é, de elementos de distinção ou rejeição sociais, que podem definir a inserção do

indivíduo na sociedade, tanto pelo seu “lugar” no mundo do trabalho como pela significação

(subjetiva) dada a este pelo restante do grupo social. Quando há uma sobreposição de tais

marcas (laboral e simbólica), existe um forte estabelecimento de vínculo com o grupo – seja de

modo a ser acolhido, ou rejeitado.

Nesse aspecto, recorrendo às reflexões de Zygmunt Bauman (2008), o consumo

assume a dianteira nessa marcação social, atrelando a obtenção de produtos de mercado (a

roupa, o carro, o telefone móvel, a casa etc.) à obtenção da própria distinção social3. Fenômeno

reconhecido desde a formação da modernidade, o consumismo se estabelece, também, como

marca programática do Estado ao alcançar expressivas massas empobrecidas por meio do

crédito facilitado.

Um dos problemas fundamentais dessa viragem social – inclusão à sociedade pelo

consumo – é que alguns “objetos” sociais ou equipamentos de reprodução social passam a ser

3 Sobre o processo de diferenciação social Cf. Bourdieu (2007), embora neste trabalho não tenhamos utilizado

seu conceito.

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vistos não como direitos, em si, mas como marcas de sucesso ou aumento de objetos de

consumo. Perguntamo-nos se isso poderá retirar da Moradia seu aspecto de luta social e

reposicioná-lo na arena de um “individualismo possessivo”4 – enfraquecedor das vinculações

sociais mais amplas.

Contrariamente a esse pensamento de uniformidade social permitido por meio do

acesso a bens de consumo, entendemos que a moradia é parte de um direito maior, o chamado

Direito à Cidade, o qual, corroborando o entendimento de Henri Lefebvre (2016),

compreendemos ser uma plataforma aberta de vida a que todas as pessoas devem ter o direito

de vivenciar e experimentar a cidade, os locais de encontro e de trocas, o uso pleno e inteiro de

momentos e locais.

Em face dessa lógica, partimos da hipótese de que a moradia social, mesmo quando

construída de fato, mas, sem seguir os elementos de fundo que compõem o seu conceito amplo,

pode prejudicar o sentido de cidadania. A facilitação do acesso da dimensão física (material)

da casa pode até ser positiva quanto aos elementos patrimoniais (acesso à parte do capital fixo

existente na cidade) mas, negativa quanto ao atendimento do Direito à Cidade. Assim, à medida

que dificulta o desenvolvimento do indivíduo, ao negar-lhe o acesso aos outros direitos que

constituem o Direito à Cidade, prejudica, diretamente, o direito de cidadania do indivíduo.

Considerando as problemáticas expostas, a pesquisa tem como objetivo compreender

os efeitos da política de moradia na consolidação da Cidadania como elemento de integração

ao Direito à Cidade. Como objetivos específicos, pretendemos: a) identificar sinais – ou

tendências – da relação entre a obtenção da moradia e o sentido de cidadania existente; b)

estabelecer o papel da política setorial de moradia para um sentido de contribuição à Cidadania;

c) entender a manifestação da política habitacional e sua expressão efetiva na produção espacial

com os possíveis efeitos na subjetividade, identidade e sentido de cidadania da população

enquadrada na faixa 1 do PMCMV.

Para alcançar os objetivos propostos, procuramos perseguir dois caminhos básicos

nesta pesquisa: a) a discussão sobre Cidadania, Moradia e Direito à Cidade no Brasil

4 A tese de Macpherson é que a democracia liberal tem suas raízes históricas e sociais unidas ao individualismo

possessivo, ele traça o surgimento e o desenvolvimento das linhas deste individualismo possessivo na Filosofia

Política do séc. XVII (de Hobbes a Locke). O individualismo possessivo compreende o ser humano, tendo como

pressuposto a “sociedade possessiva de mercado”. Para Macpherson (1979) a essência humana é ser livre da

dependência das vontades alheias, e a liberdade existe como exercício da posse. A sociedade torna-se uma porção

de indivíduos livres e iguais, relacionados entre si como proprietários de suas próprias capacidades. A sociedade

consiste de relações de troca entre proprietários. E a sociedade política terá a função de proteger a propriedade e a

troca entre proprietários. Cf. BAVARESCO, 2011. Disponível em:

http://revistas.unisinos.br/index.php/filosofia/article/download/1005/230. Acesso em março de 2017.

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contemporâneo, a partir de uma revisão da bibliografia e da reflexão conceitual dos termos; b)

uma pesquisa de campo, tendo, como foco, a cidade do Natal-RN, em especial no

empreendimento do PMCMV (faixa 1), Residencial Vivendas do Planalto, localizado no bairro

Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal.

Para tanto, algumas leituras foram observadas no decorrer da pesquisa. David Harvey

abriu caminho para o trabalho intelectual, despertando para a percepção da ética neoliberal e

seus desdobramentos. Na leitura de sua vasta literatura, em especial A condição pós-moderna

(1989), A produção capitalista do espaço (2001), O neoliberalismo: histórias e implicações

(2005), O Direito à Cidade (2008), Cidades rebeldes (2012), Harvey permite compreender

como a cidade se torna uma verdadeira mercadoria sob essa ética em que o individualismo

possessivo e a renúncia política às formas de ação coletiva tornaram-se o padrão para a

socialização humana. O referido Geógrafo nos permite alcançar a ideia de consumismo como

um dos principais aspectos da economia política urbana, na medida em que detalha a tendência

pós-moderna de encorajar a formação de nichos de mercado – tantos hábitos de consumo quanto

formas culturais – envolvendo a experiência urbana contemporânea com uma aura de liberdade

de escolha atrelada ao poder econômico do indivíduo.

Quanto à percepção de Direito à Cidade, a força motora desta pesquisa se alinha com

à concepção apresentada por Henri Lefebvre (2016). Para o referido filósofo, a cidade é um

direito em formação que compreende a vida urbana, entendida como os locais de encontro e de

trocas, os ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses

momentos e locais. Nesse sentido, o Direito à Cidade se manifesta como forma superior de

outros direitos como o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e

habitar5, o direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto de

direito à propriedade)6 (URIARTE, 2012). Para Lefebvre (2016), assim como o Direito à Cidade,

direitos como o trabalho, a instrução, a educação, a saúde, a habitação, o lazer e a vida são

direitos em formação que abrem caminho para a participação social da classe operária, vítima

de segregação.

5 Lefebvre propôs uma distinção conceitual entre habitar e habitat. Habitar é participar, se apropriar: “Até então,

‘habitar’ era participar de uma vida social, de uma comunidade, de uma aldeia ou cidade. A vida urbana detinha,

entre outras, essa qualidade, esse atributo. Ela deixava habitar, permitia que os citadinos-cidadãos habitassem”.

Habitar é uma prática ao mesmo tempo funcional, multifuncional, transfuncional. Já o habitat é uma imposição,

uma “soma de coações”, algo “instaurado pelo alto”; um atentado à diversidade de maneiras de viver; uma redução

do ser humano a algumas de suas funções elementares (comer, dormir, reproduzir). 6 A apropriação é um conceito-chave para entender como, no meio de uma anti-cidade, a vida urbana pode não só

sobreviver como se intensificar. Apropriar-se de espaços (e tempos) é não aceitar o imposto, é metamorfosear o

imposto em obra (1969: 106), é a capacidade de transformar a realidade, logo, é a apropriação que restitui à cidade

o seu sentido de obra e não apenas produto.

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As conclusões alcançadas nesta pesquisa foram fruto de um trabalho que incorpora o

espírito dialético. A dialética trata da “coisa em si”, mas não daquela que se manifesta

diretamente ao homem. Kosik (1976) explica que a atitude primordial e imediata do homem,

em face da realidade, é a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico

que exerce sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens tendo em vista

a consecução dos seus próprios fins e interesses num determinado conjunto de relações sociais.

Dessa forma, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um

objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente; ela se apresenta como o campo

em que exerce sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá uma imediata

intuição prática da realidade, de modo que o indivíduo cria sua própria representação das coisas

e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da

realidade. Todavia, “a existência real” e as formas fenomênicas da realidade são diferentes e

muitas vezes absolutamente contraditórias com a lei do fenômeno, a estrutura da coisa, portanto,

com o seu núcleo essencial e o seu conceito correspondente.

Ao sair do plano das hipóteses, criadas com base no mundo da pseudoconcreticidade

– ou seja, no mundo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da

vida humana – e analisar, in loco, a essência da relação entre a obtenção da casa própria e a

formação da cidadania na população de baixa renda, foi possível revelar elementos, por vezes,

ocultos dessa relação permitindo se chegar à conclusão explicitada ao final da pesquisa.

A pesquisa foi realizada em quatro empreendimentos contíguos (cuja configuração

urbana sugere ser um único empreendimento), denominado Residencial Vivendas do Planalto

I, II, III, IV, localizado no bairro Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal.

O empreendimento abriga uma população que se enquadra na faixa 1 do PMCMV, originária

de dois grupos: um de sorteados (demanda aberta), e outro oriundo de assentamentos com

expressivos níveis de insalubridade e precariedade da habitação7. Em virtude da metodologia

adotada na seleção da demanda aberta, o Residencial reúne pessoas com perfis de renda

diversos, o que gera diversos conflitos internos. O empreendimento foi construído em uma área

com alto nível de precariedade na oferta de equipamentos e serviços públicos. São constantes

os relatos de homicídios, vandalismo e tráfico de drogas pela mídia local.

Para alcançar o objetivo proposto foram realizadas entrevistas qualitativas do tipo

semiestruturado com moradores do referido Residencial. O registro das entrevistas foi feito por

7 Anatália, 8 de Outubro e Monte Celeste.

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meio de gravações com posterior transcrição. Para interpretação dos dados coletados, a pesquisa

levou a efeito uma análise de conteúdo, mais especificamente uma análise categorial simples.

O estudo foi organizado da seguinte maneira: o primeiro capítulo do trabalho consiste

na análise da cidadania levando em conta o processo histórico brasileiro de formação de uma

cidadania excludente até o momento de consolidação da lógica neoliberal que levou ao

paulatino esquecimento da teoria de cidadania envolvendo mudanças sociais para inserir o

acesso ao consumo como forma de participação social; utiliza como referência a teoria de

cidadania proposta por Thomas Marshall (1967), que considera a aquisição de direitos civis,

políticos e sociais pelo indivíduo necessários para garantia de uma cidadania plena. Aborda,

ainda, as relações teóricas entre Direito à Moradia e Direito à Cidade, mostrando que os

aspectos que caracterizam o Direito à Moradia adequada constituem partes de um direito maior

denominado de Direito à Cidade, o qual se concretiza por meio de uma série de direitos e

garantias fundamentais aos indivíduos, sendo a cidade o espaço da prática dinâmica da

cidadania e da sua ampliação além da mera titularidade de um status jurídico perante o Estado.

No segundo capítulo, há uma preocupação em trazer à tona as relações de construção

da moradia no Brasil, no período pós Constituição de 1988 até o momento atual. Para tanto,

precedeu-se a um breve histórico da maneira como os governos de Fernando Henrique Cardoso

(1995-2002) e Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) desenharam a intervenção do Estado na

situação habitacional do país até a consolidação do Programa Minha Casa Minha Vida na

política urbana em nível nacional. Esse capítulo permite que o leitor observe como o avanço e

a financeirização da terra e da moradia no país marcaram uma inflexão nas políticas de

habitação deixando de equacionar o problema habitacional no âmbito de um projeto nacional

de desenvolvimento relacionado à inclusão social.

O terceiro capítulo consiste na análise do PMCMV, sua finalidade, modalidades e

formas de execução, demonstrando que este é um Programa voltado para superação do déficit

quantitativo do problema da moradia, mas que, em sua articulação, tem sido incapaz de

apresentar resultados no enfrentamento da grande dívida social com a questão da moradia digna

em nosso país, que articule moradia com as demandas pelo Direito à Cidade. Por fim, é feita

uma análise do PMCMV na Região Metropolitana de Natal, e mais especificamente, no

município de Natal/RN.

O quarto capítulo é destinado à exposição das abordagens e técnicas para a pesquisa

empírica, descrevemos os procedimentos de pesquisa, com destaque para a abordagem

qualitativa e o estudo de caso, incluindo o lócus da investigação, as unidades e procedimentos

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de análise das entrevistas. A pesquisa empírica foi utilizada como forma de captar a essência

da percepção dos entrevistados sobre suas moradias, suas reivindicações e o modo de

compreender a cidadania relacionada a obtenção da casa própria pelo PMCMV. Ao final,

apresentamos os resultados da pesquisa de campo.

Por fim, nas considerações finais, serão abordadas algumas reflexões sobre o

desenvolvimento do trabalho, bem como as principais conclusões da pesquisa. Esclarecemos

que essa pesquisa não pretendeu, em momento algum, esgotar as possibilidades de análise que

envolvem a relação entre Moradia e Cidadania, mas visou chamar a atenção para essa relação

nos estudos sobre o PMCMV, haja vista termos observado a escassez de pesquisas sobre o

Programa que abordem o aspecto aqui examinado.

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1. Cidadania, moradia e o direito à cidade: debates contemporâneos e fortalecimento das

políticas sociais

1.1. Cidadania: o que é e como se concretiza

Podemos observar que os direitos do Homem se modificam permanentemente em

virtude da mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses das

classes no poder, dos meios disponíveis para a sua realização, das transformações técnicas, etc.

Assim, o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é

fundamental em outras épocas e/ou em outras culturas (BOBBIO, 2004). Nesse sentido,

compreendemos que o estudo dos direitos do homem não pode estar dissociado dos problemas

históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização.

Obedecendo a essa lógica, a conceituação de qualquer direito, seja qual for, vai

incorporar os significados que lhe foram dados ao longo da história, sendo preciso analisar o

contexto em que se desenvolveu a noção de determinado direito para poder conceituá-lo. No

presente capítulo, nos propomos a conceituar o direito à cidadania, bem como discorrer sobre

sua forma de concretização.

A análise do direito à cidadania tem como principal ponto de partida o discurso do

sociólogo inglês de matriz liberal, Thomas Humphrey Marshall, em 1949, que se tornou um

marco no estudo da cidadania. Para Marshall, a cidadania seria formada, inicialmente, pelos

direitos civis, depois pelos políticos e, por fim, pelos sociais, compondo, assim, as denominadas

três gerações de direitos. Esse conjunto de Direitos é a forma de garantir ao cidadão a plena

participação política nos assuntos do seu país. Portanto, o conteúdo decisivo para a relação entre

cidadania e direitos civis é a obtenção dos direitos (MARSHALL, 1967).

O tradicional discurso Marshalliano sobre a cidadania foi marcado por um momento

de transição entre o liberalismo e o Estado Social, tendo, como referencial analítico, a Inglaterra

de meados do século XX. Tal discurso justificou e preencheu as lacunas lançadas pelo

liberalismo por muito tempo, no entanto, no quadro de referência do neoliberalismo, as bases

históricas de Marshall encontraram-se em crise e risco. A conjunção dos direitos, enquanto

feixe de relações historicamente construídas, se ajusta tanto a certa ordem Liberal (propriedade,

liberdade e segurança), quanto a uma ordem Social (justiça, igualdade, solidariedade), visto que

comungam de objetivos de base histórica comum, isto é, a libertação da burguesia do julgo

aristocrático da nobreza medieval (POLANYI, 2000). Suas diferenças, entretanto, surgem

quando perguntamos como garantir tais direitos, sendo que dois caminhos históricos se

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apresentaram: a) pela via da Reforma Social (em que o trabalhismo britânico demonstrou sua

importância nos “30 gloriosos” anos do pós-Guerra), e da Revolução Social (cuja fracassada

experiência soviética se transformou em uma outra forma de capitalismo de Estado).

Desse modo, o neoliberalismo, em sentido estrito, retorna com muito mais força

quando, em meados dos anos de 1970, a pactuação Social-Democrata (a relação pacificada entre

Capital e Trabalho, fruto dos arranjos do welfare state) começou a ser fragilizada pelo mercado

financeiro, pela Globalização e pelas práticas concorrenciais (HARVEY, 2008). A pactuação

histórica, na convergência do acesso aos Direitos Sociais, revela, para Marshall, essa terceira

etapa do acesso à cidadania; e, ainda, indica a fronteira máxima do Welfare State (como

conhecemos) pois limita a ordem econômica a um quadro de maior segurança e menor

instabilidade do capitalismo. Tal quadro é abalado por uma outra ordem liberal que se opõe aos

Direitos Sociais reclamando maior eficiência e eficácia do gasto público.

Nessa dinâmica política no contexto da Europa Ocidental, o conceito de cidadania foi

um instrumento poderoso para estabelecer o universal como modo de contrabalancear e, até

mesmo, acabar com e/ou compensar a teia de privilégios que se cristalizavam em diferenciações

e hierarquias locais. Contrariamente, na dinâmica política no contexto da América Latina,

especificamente do Brasil do século XX, o conceito de cidadania não possibilitou um caráter

nivelador e igualitário do indivíduo, visto que o poder político estava, em primeiro lugar, a

serviço dos grupos econômicos e, secundariamente, a serviço de um projeto nacional, cessando

a golpes e quarteladas uma possível participação democrática do indivíduo.

Nesse sentido, Roberto da Matta (2011) comenta que o processo histórico brasileiro se

deu engendrando leis que estabeleciam espaços sociais e políticos para manifestações

individuais e locais, renegando totalidades maiores e mais inclusivas que os sistemas locais. Tal

modo de organização tornou a hierarquia fundamental para a definição do papel das instituições

e dos indivíduos, levando a uma sociedade em que os direitos são concedidos não como

prestações legítimas para cidadãos livres e iguais perante a lei, mas como benesses para

protegidos, tutelados, clientelas.

Ao discorrer sobre cidadania e democracia, Benevides (1994) afirma que a

modernização conservadora do Brasil empreendeu reformas institucionais (ampliação de

direitos políticos e liberdades de associação partidária), reformas econômicas (no setor

financeiro) e reformas sociais (leis trabalhistas impostas pela ditadura Vargas), mas que não

houve uma mudança, no sentido democrático, do acesso à justiça e à segurança, a distribuição

de rendas, a estrutura agrária, a previdência social, educação, saúde, habitação etc, mantendo,

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assim, um histórico de cidadania parcial, desequilibrada, excludente, em que os direitos são

entendidos como privilégios só para alguns e sob determinadas condições. Continua a referida

socióloga:

No quadro da democracia liberal, cidadania corresponde ao conjunto das

liberdades individuais ‒ os chamados direitos civis de locomoção, pensamento

e expressão, integridade física, associação, etc. O advento da democracia

social acrescentou, àqueles direitos do indivíduo, os direitos trabalhistas, ou

direitos a prestações de natureza social reclamadas ao Estado (educação,

saúde, seguridade e previdência). Em ambos os casos o cidadão, nesta

concepção, é titular de direitos e liberdades em relação ao Estado e a outros

particulares ‒ mas permanece situado fora do âmbito estatal, não assumindo

qualquer titularidade quanto a funções públicas. Mantém-se, assim, a

perspectiva do constitucionalismo clássico: direitos do homem e do cidadão

são exercidos frente ao Estado, mas não dentro do aparelho estatal

(BENEVIDES, 1994, p. 8).

O Brasil se desenvolveu como Nação burocrática, operada a partir de instituições e leis

criadas pelo próprio Estado como seus instrumentos de progresso, de forma que as pessoas não

faziam a relação de seus direitos com a ideia de cidadania; era como se os direitos existissem à

parte, conferidos por outros estatutos, como o de trabalhador, por exemplo. Holston (2013)

explica que a palavra cidadão quase sempre tinha um sentido diferente para os brasileiros de

todas as classes, significava uma pessoa qualquer, destituída de direito, alguém numa

circunstância infeliz ou desvalorizada, indicava, em suma, distância, anonimato e nada em

comum. Nessa formulação, afirma esse antropólogo que a cidadania era uma medida de

diferença e uma forma de distanciar as pessoas umas das outras, na medida em que o termo

‘cidadão’ lembrava as pessoas do que elas não eram, embora, paradoxalmente, elas próprias

fossem cidadãs, definindo, assim, os cidadãos como ‘os outros’, e continua:

Esse esquema de cidadania é, em resumo, um mecanismo de distribuição de

desigualdade. As cidadanias não criam diretamente a maioria das diferenças

que usam. Elas são, antes, os meios fundamentais pelos quais os Estados-

nações reconhecem e administram algumas diferenças como sistematicamente

proeminentes, ao legitimá-las para propósitos diversos. Em geral, um regime

de cidadania legitima e iguala diferenças ao mesmo tempo, e suas

combinações específicas lhe conferem caráter histórico. A formulação

brasileira iguala as diferenças sociais no que se refere à afiliação nacional,

porém legaliza algumas dessas diferenças como bases para distribuir de

maneira diferenciada direitos e privilégios entre os cidadãos. Assim, no início

da república, ela negava educação como um direito dos cidadãos e usava o

alfabetismo e gênero para restringir a cidadania política. Ao legalizar essas

diferenças, ela consolida suas desigualdades e as perpetua em outras formas

por toda a sociedade. Devido a esta perpetuação foram negados direitos

políticos à maioria dos brasileiros, que tiveram seu acesso à propriedade

fundiária limitado, foram forçados a condições de residência segregadas e

muitas vezes ilegais, postos à margem da lei e reduzidos a trabalhar como

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serviçais. Tais discriminações não resultam da exclusão dos brasileiros da

própria cidadania. Se fosse esse o caso, seria difícil explicar o sentimento de

pertencimento à nação. Em vez disso, eles são discriminados por fazerem

parte de certa espécie de cidadãos (HOLSTON, 2011, p. 28-29).

Podemos falar em uma mudança de perspectiva, de acordo com Marilena Chauí

(1984), a partir da ascensão dos movimentos sociais pela reivindicação dos direitos humanos

nas décadas de 1970 e 1980. Esclarece Chauí que foi, a partir dessas décadas, que a concepção

de cidadania passou a envolver demandas por distribuição socioeconômica (igualdade) e

reconhecimento político-cultural (diferença); a cidadania passou a ser definida pelos princípios

da democracia, significando, necessariamente, conquista e consolidação social e política,

exigindo instituições, mediações e comportamentos próprios na criação de espaços sociais de

lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes

para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. Nesse sentido,

distingue a referida autora a cidadania passiva − aquela que é outorgada pelo Estado, com a

ideia moral do favor e da tutela − da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como portador

de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de

participação política.

Só a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o relacionamento entre

obtenção de direitos e a ideia de cidadania é mais difundido. A referida Carta Magna afirmou

uma série de direitos sociais e foi amplamente reconhecida como importante avanço jurídico

em direção à inclusão social e à diminuição de desigualdades históricas, consolidando um

avanço na construção de um Estado Democrático de Direito. Já a disseminação da cidadania,

como pressuposto básico da manifestação dos direitos, é um processo mais longo e incompleto.

Por outro lado, no quadro histórico dos anos de 1990, a ascensão ideológica do

neoliberalismo e a consolidação de sua lógica de predomínio da economia de mercado

impactaram a figura do ‘cidadão’ investido de uma responsabilidade coletiva que desaparece

aos poucos, dando lugar ao empreendedor, abrindo caminho para que o consumo se desloque

para o centro do debate público, rivalizando com o tema da participação social. É com esse

sentido que compreendemos as assertivas de Pierre Dardot e Christian Laval ao afirmar que:

O acesso a certos bens e serviços [com o neoliberalismo] não é mais

considerado ligado a um status que abre portas para direitos, mas o resultado

de uma transação entre um subsídio e um comportamento esperado ou um

custo direto para o usuário. A figura do ‘cidadão’ investido de uma

responsabilidade coletiva desaparece pouco a pouco e dá lugar ao homem

empreendedor. [...] A referência da ação pública não é mais o sujeito de

direitos, mas um ator autoempreendedor que faz os mais variados contratos

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privados com outros atores autoempreendedores. [...] Longe de ser neutra, a

reforma gerencial da ação pública atenta diretamente contra a lógica

democrática de cidadania social; reforçando desigualdades sociais na

distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego,

saúde e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um

número crescente de ‘subcidadãos’ e ‘não cidadãos’ (DARDOT; LAVAL,

2016, p. 381).

O pensamento liberal renovado volta a insistir na importância do mercado como

mecanismo autorregulador da vida econômica e social. Como consequência da redução do

papel do Estado, têm-se a aceleração da globalização, a formação de blocos internacionais, o

salto para a tecnologia digital, o advento de uma sociedade da informação, a reestruturação

produtiva, bem como a precarização do emprego e a fragmentação da crítica social, conduzindo,

assim, a uma etapa do capitalismo travejada por novas problemáticas (CARVALHO, 2002).

Desse modo, a erosão do “social” não afeta, apenas, os direitos ligados à solidariedade

(último estágio do modelo de Marshall sobre cidadania), mas também os demais direitos

políticos e civis por abrir um perigoso trajeto da crítica à reivindicação de uma ampla reforma

no pacto social do bem-estar social; a própria noção de cidadania entra em risco pois a erosão

do espaço público (arena política) diminuído pelo consumo e pelo poder do dinheiro nas

relações, esvazia as trocas sociais e favorece as trocas econômicas. Ainda mais incisivos,

Dardot e Laval (2016, p. 382) comentam que essa racionalidade neoliberalizante “[...] vê as leis

e as normas simplesmente como instrumentos cujo valor relativo depende exclusivamente da

realização de objetivos [...]”, de metas, de prazos, de base quantitativa que afeta a dimensão

política, portadora também de subjetividades.

Nessa nova conjuntura, o Estado, o mercado e os movimentos sociais passam a

disciplinar e estimular práticas de consumo nem sempre conscientes e politizadas. O acesso ao

consumo passa a se tornar uma forma de inserção social, na medida em que a propriedade de

determinados produtos e o acesso a determinados serviços tornam-se instrumentos para a

construção e reforço de identidades sociais, e consequentemente, para o reconhecimento de um

indivíduo como cidadão. A cidadania, mais do que pertencimento a uma determinada

comunidade ou nação, passa a se conectar com reconhecimento da humanidade de um indivíduo

e de sua aceitação, não apenas como membro de uma comunidade, mas também como um par,

um igual, um ser visível, digno de respeito. Nos estratos menos favorecidos, esse consumo

passa a ser pensado como inclusão, estabelecendo uma relação de congruência entre consumo

e cidadania.

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Vidal (2003) esclarece que a necessidade de reconhecimento do pobre brasileiro

remete ao ideal de ser tratado como igual e essa igualdade está diretamente relacionada ao

sentimento de respeito. Explica o autor que essa noção de respeito apresenta subjetividades

distintas, entre elas, a de que o respeito supõe que a identidade absoluta dos indivíduos seja

reconhecida, em que a esperança de ascensão social confirma esse anseio de mobilidade por

parte de uma sociedade onde nenhuma diferença essencial impede o acesso a uma posição

desejada. Assim, algumas identificações culturais da sociedade como, por exemplo, o desejo de

consumir, atestam a busca de uma uniformidade simbólica, marcando a semelhança de todos

acima das desigualdades econômicas. É, exatamente, essa forma de igualdade que permite a

mobilidade social que está no princípio da ideia de cidadania na democracia da sociedade

contemporânea. No entanto, corroborando com o entendimento de Carvalho (2002) se o direito

de comprar um telefone celular, um tênis, um relógio da moda consegue silenciar ou prevenir

entre os excluídos a militância política, o tradicional direito político, as perspectivas de avanço

democrático se veem diminuídas.

Assim, da antiga “ordem” social expressa pela participação no bem-estar social, restam

fragmentos de uma cidadania cindida pela lógica do consumo e do mercado que não diminuem

o Estado, mas o submetem a uma racionalidade de resultados – especialmente de curto prazo.

A “velha” social democracia entra em choque com a “nova ordem” de um liberalismo cada vez

mais solto de amarras (quadros) normativos ou a “[...] ‘social-democracia’ é direta e

radicalmente contestada, já que essa denominação desvia seu sentido à possibilidade de

estender a democracia política mediante o reconhecimento de direitos sociais” que, agora, não

existem mais (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 390).

A base territorial dessa transformação (do cidadão ao consumidor) se insere em um

quadro mais amplo de transformações do próprio capitalismo (enquanto Sistema) e do Capital

(enquanto feixe de relações), em sua necessidade de modificar o quadro regulador das

condições sociais da produção (trabalho, terra e dinheiro). Esse passo é necessário antes de

entrarmos no campo do Direito à Moradia, pois tal moradia será compreendida à luz do modelo

neoliberal de produção.

David Harvey é um dos mais profícuos pensadores contemporâneos que insiste na

leitura do Capitalismo como um disjuntor perpétuo de crises, objetivando a continuada

circulação do Capital e o continuado processo de Acumulação – nisso, altera o espaço

geográfico, as relações de trabalho (enquanto mercadoria) e o poder do dinheiro (na sua

reificação permanente). Harvey (2005) estabelece uma forte relação entre os movimentos das

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políticas territoriais e os interesses do Capital – em que a “lógica territorial” está presente no

Estado e a “lógica capitalista” presa ao campo da Produção e Circulação do Capital.

Dito de modo mais específico, parte do Capital precisa se fixar à terra na forma de

dispositivos fixos (construções e infraestrutura), enquanto outra parcela alimenta as máquinas

e equipamentos móveis. Entretanto, outra parcela do capital busca, no circuito das despesas

sociais (educação e saúde, por exemplo), sua imobilização garantida pelo Estado. Para Harvey,

o “segredo”, a chave de disjunção é o chamado “ajuste espaço-tempo”, a operação articulada

das duas lógicas (Estado e Capital) na superação das crises de sobreacumulação (HARVEY,

2005).

Giovani Arrighi, comentando essa passagem de Harvey, resume que “[...] essas

observações indicam que os spatial fix [ajustes espaciais] são restringidos não só pela

resistência à relocalização econômica e aos realimentos geopolíticos a ele associados, mas

também pela resistência à mudança social” (ARRIGHI, 2008, p. 231, grifo nosso); ou seja, o

Estado deve remover (a bem do Capital) as amarras ligadas aos Direitos Sociais que restringem

a livre circulação do capital no território, no social e no simbólico, ampliando, desse modo, sua

capacidade perpétua de acumulação. Esse é o sentido teórico do neoliberalismo, enquanto

dimensão Política. Desse modo, a Cidadania – ou a noção de cidadania social – é o maior

empecilho a esse avanço, por conjugar os direitos civis, políticos e sociais como um feixe de

relações progressistas, portanto, libertadoras.

Aproximando-nos da moradia, se esta é vista como Direito Social, está ligada,

portanto, à ordem marshalliana de conquistas civis, políticas e sociais, monumento progressista

construído pela associação de interesses particulares e coletivos – mesmo que dentro de uma

ordem liberal. Por outro lado, se ela passa a ser vista como elemento de mercado, de consumo,

como objeto de relação contratual privada – substituindo o Direito Social pelo Direito Privado,

etc. logo, suas amarras legais são postas a serviço de um objetivo, de uma meta e de um

propósito quantitativo, isto é, produzir mais e em maior escala – entrando assim na ordem

Neoliberal, conforme denunciada por Dardot e Laval (2016).

Essa sutil diferença – liberal para neoliberal – é a marca de distinção de uma política

de promoção do consumo, revestida como política social, mas que opera uma inversão de

sentidos básica, isto é, da igualdade de acesso à liberdade do consumo. É esclarecedor, nesse

sentido, a percepção de Bauman (2008) quanto à mudança de “tom” entre sociedade liberal e

neoliberal ao comentar que

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[...] o ambiente existencial que se tornou conhecido como ‘sociedade de

consumidores’ se distingue por uma reconstrução das relações humanas a

partir do padrão, e à semelhança, das relações entre consumidores e objetos

de consumo. Esse feito notável foi alcançado mediante a anexação e

colonização, pelos mercados de consumo, do espaço que estende entre os

indivíduos – esse espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os

seres humanos e se erguem as cercas que os separam (BAUMAN, 2008, p.

19).

Assim, a inversão de sentido da produção social da moradia opera em dois eixos

principais: a) a substituição da luta pela moradia pela luta ao crédito e b) a submissão desse

crédito à lógica financeira da valorização. Mas quais alterações são propostas e quais aquelas

que já ameaçam ocorrer? Para tanto, precisamos do conceito de Direito à Moradia de modo

mais claro.

1.2. Direito à Moradia: definição e relações teóricas

A moradia adequada é um dos direitos humanos reconhecido, em 1948, pela

Declaração Universal dos Direitos Humanos (NAÇÕES UNIDAS, 1948) como integrante do

direito a um padrão de vida adequado, e também, em 1966, pelo Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC)8, tornando-se um direito humano

universal, aceito e aplicável em todas as partes do mundo como um dos direitos fundamentais

para a vida das pessoas (BRASIL, 2013).

Além da DUDH e do PIDESC, vários tratados internacionais reafirmam a promoção e

proteção desse direito; atualmente são 13 (treze) textos diferentes da Organização das Nações

Unidas (ONU) que reconhecem o Direito à Moradia adequada9. No Brasil, o reconhecimento

8Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) é um tratado multilateral adotado

pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966 e em vigor desde 3 de janeiro de 1976; é

parte da Carta Internacional dos Direitos Humanos, juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos

(DUDH) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), incluindo o primeiro e o segundo

protocolos opcionais deste último. 9Os tratados internacionais de direitos humanos têm abordado o direito à moradia adequada de diferentes maneiras.

Alguns são de aplicação geral, enquanto outros cobrem os direitos humanos de grupos específicos, como mulheres,

crianças, povos indígenas, trabalhadores imigrantes e membros das suas famílias, ou pessoas com deficiência: 1.

DUDH (Art. 25, parágrafo 1º); 2. PIDCP (Art. 17, § 1º); 3. PIDESC (Art.11, §1º); 4. Comentário Geral nº 4 do

Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – CDESC; 5. Comentário Geral Nº 7 do CDESC. 6.

Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Art. 5); 7. Convenção

Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher Artigo 14,2; 8. Convenção sobre os

Direitos das Crianças (Art. 16, 1; Art. 27, 3); 9. Princípios das Nações Unidas para moradia e restituição de posses

para refugiados e pessoas deslocadas; 10. Convenção sobre o status dos refugiados (Artigo 21); 11. Convenção

169 da OIT; Convenção de Genebra (quarta) sobre proteção de civis em tempo de Guerra 1949 (Artigo 49, 53,

85,134); 12. Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e

Membros de suas Famílias, 1990 (Art. 43, 1, d); 13. Declaração do Direito dos Indígenas, 2008.

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do Direito à Moradia, de modo oficial, se deu pela adesão ao PIDESC, em 6 de julho de 1992

(BRASIL, 1992). Além desse Pacto, nosso País também ratificou as Convenções sobre a

Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965); a Eliminação de todas as

Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); e a Convenção sobre os Direitos das

Crianças (1989). Todas reafirmaram a condenação de qualquer tipo de discriminação, seja de

gênero, idade, raça e nível socioeconômico, referente ao direito de moradia adequada.

Em razão das obrigações assumidas perante a comunidade internacional, o Brasil

incluiu, no Texto Constitucional, especificamente, no Título II, Capítulo II, Dos Direitos

Sociais, artigo 6º10, com o advento da Emenda Constitucional nº 26/2000, o Direito à Moradia

como um direito social fundamental. Todavia, antes mesmo da criação da citada Emenda

Constitucional, a Constituição Federal de 1988 já fazia menção expressa à moradia em outros

dispositivos, tais como: artigo 23, inciso IX, que dispõe sobre a competência comum da União,

dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para “[...] promover programas de

construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico [...]”;

e, artigo 7º, inciso IV, que define o salário mínimo como aquele “[...] capaz de atender às suas

necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, [...]” (BRASIL,

1988).

A concepção de adequação é particularmente significante em relação ao Direito à

Moradia, visto que serve para realçar um número de fatores que devem ser levados em

consideração para constituir ‘moradia adequada’. Assim, a definição de adequação é detalhada

no Comentário Geral nº 4, do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ‒ CDESC ‒

(BRASIL, 2013), que interpreta o artigo 11.1 do PIDESC, determinando uma série de condições

que devem ser atendidas para que tal direito seja satisfeito. Dispõe o art. 11.1 do PIDESC:

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a

um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à

alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria

continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas

apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse

sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no

livre consentimento (BRASIL, 1992, grifo nosso).

10Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a

segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma

desta Constituição. Cf. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 13.02.2017.

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Segundo o CDESC, item 8, enquanto a adequação é determinada em parte por fatores

sociais, econômicos, culturais, climáticos, ecológicos e outros, o Comitê acredita, contudo,

que é possível identificar certos aspectos do direito que devem ser levados em consideração

para esse propósito em qualquer contexto particular, quais sejam: segurança legal da posse;

disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura; custo acessível;

habitabilidade; acessibilidade; localização; assim definidos:

a. Segurança legal de posse: A posse toma uma variedade de formas,

incluindo locação (pública e privada), acomodação, habitação cooperativa,

arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência e

assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou propriedade.

b. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infraestrutura: Uma

casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde,

segurança, conforto e nutrição.

c. Custo acessível: Os custos financeiros de um domicílio associados à

habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de outras

necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas. Passos

deveriam ser tomados pelos Estados-partes por uma cultura de direitos

humanos para assegurar que a porcentagem dos custos relacionados à

habitação seja, em geral, mensurada de acordo com os níveis de renda.

d. Habitabilidade: A habitação adequada deve ser habitável, em termos de

prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade,

calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de

doença.

e. Acessibilidade: Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com

titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total

e sustentável a recursos de habitação adequada, aumentando o acesso à terra

àqueles que não a possuem ou a segmentos empobrecidos da sociedade,

deveriam constituir uma meta central de políticas. Obrigações

governamentais precisam ser desenvolvidas, objetivando substanciar o

direito de todos a um lugar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo

o acesso ao terreno como um direito reconhecido.

f. Localização: A habitação adequada deve estar em uma localização que

permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e

outras facilidades sociais. Isso é válido para grandes cidades, como também

para as áreas rurais, em que os custos para chegar ao local de trabalho podem

gerar gastos excessivos sobre o orçamento dos lares pobres. Similarmente,

habitações não deveriam ser construídas em locais poluídos nem nas

proximidades de fontes de poluição que ameacem o direito à saúde dos

habitantes.

g. Adequação cultural: A maneira como a habitação é construída, os

materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem

possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural

da habitação. Atividades tomadas a fim do desenvolvimento ou

modernização na esfera habitacional deveriam assegurar que as dimensões

culturais da habitação não fossem sacrificadas, e que, entre outras,

facilidades tecnológicas modernas sejam também asseguradas (NAÇÕES

UNIDAS, 1992 apud BRASIL, 2013, p. 35-37)

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Além das condições elencadas pelo Comentário Geral nº 4 do CDESC, para que o

Direito à Moradia adequada seja satisfeito, a Conferência das Nações Unidas sobre Habitação

e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III)11 dispõe que a moradia adequada figura

como elemento integrante ao direito a um nível de vida adequado, sem discriminação, com

acesso universal à água potável e ao saneamento, assim como a igualdade de acesso de todos

aos bens públicos e serviços de qualidade em esfera, como a segurança alimentar e a nutrição,

a saúde, a educação, as infraestruturas, a mobilidade e o transporte, a energia, a qualidade do

ar e aos meios de vida.

A observação da legislação sobre o Direito à Moradia nos permite compreender que

moradia adequada não significa ter, apenas, um teto e quatro paredes, ou, ainda, a propriedade

da casa, mas que o indivíduo tenha garantia de um lugar seguro, com paz e dignidade para

viver e se desenvolver como pessoa. Esse lugar pressupõe que o indivíduo tenha a garantia de

acesso a serviços adequados, de forma que não apenas a estrutura da moradia deve ser

adequada, mas também, o acesso sustentável e não discriminatório às infraestruturas

essenciais para a saúde, educação, transporte, lazer, alimentação, etc. Só assim é que o

indivíduo vai ter condições de desenvolver suas liberdades individuais, bem como pôr em

prática seus direitos políticos e sociais.

Entendemos, portanto, que a moradia adequada está relacionada àquelas três gerações

de direitos postas por Marshall, as quais garantem ao indivíduo a cidadania plena. Conforme

exposto no primeiro capítulo, Marshall relaciona a cidadania plena diretamente à conquista de

direitos civis, políticos e sociais. Conforme nos ensina Paulo Bonavides (2012), os direitos

civis e políticos são os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, são os

direitos da liberdade, que têm por titular o indivíduo; tais direitos,

[...] são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da

pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico,

enfim são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. [...] São

por igual direitos que valorizam primeiro o homem-singular, o homem das

liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a

chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual (BONAVIDES,

2012; p. 582).

Já os direitos sociais conforme esse jurista, são os direitos coletivos ou de

coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social,

depois que germinaram por obra da ideologia e reflexão antiliberal do século XX; possuem

11 Realizada de 17 a 20 de outubro de 2016 em Quito, Equador, a Habitat III adotou a Nova Agenda Urbana como

documento que vai orientar a urbanização sustentável pelos próximos 20 anos.

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natureza de direitos que exigem do Estado determinadas prestações materiais nem sempre

resgatáveis por exiguidade, carência ou limitação essencial de meios e recursos. Segundo

Bonavides (2012, p. 582), “[...] nasceram abraçados a igualdade, do qual não se podem

separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”.

Podemos dizer que os direitos sociais são aqueles que respondem às necessidades

humanas básicas, assegurando o direito a um bem-estar econômico mínimo, e estão

relacionados, principalmente, com o direito ao salário, saúde, educação, habitação e

alimentação.

Nesse aspecto, corroboramos as ideias de Sugai (2003; p. 50) quando afirma que “[...]

existe uma ligação entre Direito à Moradia e o direito à vida, à dignidade da pessoa humana,

à integridade física, à educação, à assistência, à inviolabilidade do domicílio, à função social

da propriedade, etc.”, demonstrando que esse é um direito interdependente, não isolado,

portanto, conjugado a outros direitos também fundamentais.

A moradia constitui, portanto, elemento essencial na caracterização do cidadão pleno,

na medida em que proporciona sua existência, sua participação e seu reconhecimento pela

sociedade, estando diretamente relacionada à identidade pessoal, cultural e política do

indivíduo.

Em face de tais considerações podemos observar que os aspectos que caracterizam o

Direito à Moradia constituem partes de um direito maior, denominado ‘Direito à Cidade’, que

será objeto de nossa análise a partir de agora.

1.3. Direito à Cidade: relações teóricas e lutas sociais

A cidade consiste no espaço por excelência da prática da cidadania; nela se produz a

política, se realizam as atividades econômicas, se organiza a vida institucional, se formam

novos sujeitos sociais e se modifica o direito; portanto, é o espaço urbano o grande referencial

para se refletir sobre a cidadania (BELLO, 2013). A ideia imediata de Direito à Cidade,

geralmente, está atrelada à garantia de provisão de serviços – como saúde, educação,

alimentação, vestuário, moradia, transporte coletivo, entre outros – ou, ainda, à gestão urbana

democrática e de abertura dos processos de planejamento da cidade à participação direta, no

entanto seu conceito é muito mais abrangente.

Partindo de uma reflexão sobre o direito à cidade proposto por Henri Lefebvre (2016),

entendemos que o direito à cidade não se refere à mera provisão de serviços ou de mais um

direito a ser institucionalizado no arcabouço jurídico do Estado, mas a uma plataforma aberta

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de vida em que todas as pessoas devem ter o direito à prática social de outros direitos, como

o direito à vida urbana, isto é, a possibilidade de vivenciar e experimentar a cidade, os locais

de encontro e de trocas, o uso pleno e inteiro de momentos e locais.

O conceito de Direito à Cidade, com base em Lefebvre (1967), se dá no contexto do

desenvolvimento do capitalismo industrial, em que a lógica de produção do espaço urbano

passa a se subordinar ao valor de troca e não ao valor de uso, rompendo com a unidade de

cidade constituída como uma totalidade orgânica e impondo uma extrema segregação aos

grupos, etnias, estratos e classes sociais, destruindo, morfologicamente, a cidade e ameaçando

a vida urbana para as classes operárias12. O modelo de organização social inerente à ordem

urbana capitalista13 passou a organizar os espaços de forma racional, expulsando os

trabalhadores para as periferias, criando grandes conjuntos habitacionais que constituíam

verdadeiras máquinas de morar, intensificando as segregações por meio da separação

funcional das atividades e da sociedade no espaço e retirando da cidade tudo que o que ela

tinha de mais positivo: o encontro, a diversidade, o imprevisível, em suma: o valor de uso14.

Em face dessa dinâmica, Lefebvre (1967) afirma que o Direito à Cidade é o direito à

vida urbana, transformada, renovada, ou seja, esse direito não permite que o trabalhador,

apenas, passe o dia na cidade da qual foi expulso e volte para dormir no subúrbio; esse direito

engloba o direito à vida cotidiana na cidade, uma cidade feita de satisfação e prazer, de

encontros, ludicidade e imprevisibilidade; o direito a habitá-la, a praticá-la, a moldá-la em

função dos valores de uso.

Apesar de a noção de Direito à Cidade de Lefebvre (1967) se relacionar com a

conjuntura histórica da França em 1968, sua visão sobre esse direito constitui uma chave de

interpretação e transformação do mundo atual (embora com efeitos no futuro) haja vista que

o descolamento propiciado pelas frações do capital, presentes na cidade e, depois, definidoras

da cidade, entre o valor de uso e valor de troca, estabeleceu em tempos recentes – dos anos de

1960 para cá – uma maior autonomia do mais-valor como expressão definidora do acesso à

cidade. No aspecto específico da moradia, podemos afirmar que insurgiu uma ordem

12 A classe operária foi remanejada do tecido espacial parisiense como resposta da classe dominante às jornadas

operárias de junho de 1848. Lefebvre afirma que a segregação dos trabalhadores foi uma estratégia da burguesia

de Paris para frear a democracia urbana nascente impulsionada pelas lutas populares, uma vez que, naquele

momento, essa ordem política embrionária representava uma ameaça real aos interesses políticos das classes

dominantes (LEFEBVRE, 2016). 13Na visão de Lefebvre (2016), o urbanismo é uma ideologia e estratégia de classe calcada sob uma racionalidade

fragmentadora. 14 Essa visão de Lefebvre não é absoluta, uma vez que se relaciona, em parte, com a conjuntura histórica da França

em 1968.

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neoliberal que, cada vez mais, garante à moradia sua característica fundamental como valor

de troca, afetando profundamente o exercício do Direito à Moradia adequada, uma vez que a

ideia de moradia como meio de acesso à riqueza leva a sua transformação de bem de uso a

capital fixo, sujeito ao ritmo de alteração dos preços do solo urbano, tanto nos subcentros

(bairros de maior renda e oferta de serviços), quanto nas periferias, implicando na

fragmentação do espaço urbano e na segregação socioespacial.

No plano do cotidiano, o local da moradia exprime referência e capacidade de acessar

as partes “mais nobres” ou está associado aos bairros vulgares, concentradores de pobreza. E

não é de hoje; quando Engels abre seu capítulo sobre “As grandes cidades”, faz questão de

lembrar, ao seu leitor, da época que o local dessa moradia fazia parte do luxo e da riqueza da

cidade como um todo, visto que:

[...] depois de pisarmos, por uns quatro dias, as pedras das ruas principais,

depois de passar a custo pela multidão, entre as filas intermináveis de veículos

e carroças, depois de visitar os “bairros de má fama” desta metrópole – só

então começamos a notar que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor

parte de sua condição de homens para realizar todos esses milagres da

civilização de que é pródiga a cidade, só então começamos a notar que mil

forças nelas latentes permanecem inativas e foram asfixiadas para que só

alguns pudessem desenvolver-se mais e multiplicar-se mediante a união com

as de outros (ENGELS, [1845] 2010, p.67-68).

A expressão da qualidade e da inserção urbana da moradia é reveladora do quadro de

maior ou menor desigualdade social presente na sociedade, o acesso a oportunidades para

alcançar um padrão adequado de viver para as comunidades vulneráveis e pobres está

diretamente relacionado à sua localização no território da cidade, os equipamentos urbanos

comunitários funcionam como suporte material para a prestação de serviços básicos de saúde,

educação, recreação, esporte, entre outros. Concomitante à infraestrutura, os edifícios

industriais, comerciais e de moradias constituem os componentes físicos básicos para a

existência de um bairro ou de uma cidade. A existência desses componentes físicos é

considerada um fator importante de bem-estar social e de apoio ao desenvolvimento econômico,

bem como de ordenação territorial e de estruturação dos aglomerados humanos. Assim, a

carência deles mostra as desigualdades sociais presentes em um dado território (MORAES;

GOUDARD; OLIVEIRA, 2008).

Em face do exposto, a luta pelo Direito à Cidade, tal qual se impõe na atualidade,

refere-se ao direito a uma vida melhor e mais digna dentro da lógica da cidade movida pelo

modo capitalista de produção para que a cidade seja um direito coletivo de todos os seus

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habitantes, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos. Em 2006, o Fórum Social

Mundial (FSM)15, organizado por movimentos sociais de muitos continentes, com objetivo de

elaborar alternativas para uma transformação social global deu origem a uma Carta Mundial

pelo Direito à Cidade16. Nos termos da referida Carta, o Direito à Cidade é definido como o

usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade

e justiça social; nesse sentido é um direito

[...] interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente

reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos

civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão

regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a

inclusão do direito ao trabalho em condições eqüitativas (sic.) e satisfatórias;

de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde

pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água

potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma

educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à

participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de

organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência

pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial,

sexual e cultural, e o respeito aos migrantes (FÓRUM SOCIAL MUNDIAL,

2006).

Os anseios dos movimentos sociais por uma cidade inclusiva compatibilizam com o

ideal de cidade perseguido pelo Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos

(ONU-Habitat) que, na Nova Agenda Urbana17, resultado da Habitat III, consagra o ideal de

uma cidade para todos, onde todas as pessoas possam gozar de igualdade de direitos e

oportunidades com respeito a suas liberdades fundamentais. Isso impõe a garantia a todos os

cidadãos, da presente e futuras gerações, cidades e assentamentos humanos justos, seguros,

saudáveis, com preços acessíveis, fortes e sustentáveis.

De acordo com a referida Agenda (objetivo 13) o ideal de cidades para todos pressupõe

o cumprimento da função social e ecológica da terra, visando alcançar, progressivamente, a

plena realização do Direito à Moradia adequada como componente do direito a um padrão de

vida direito, sem discriminação, com acesso universal à água potável e ao saneamento, e

15 O FSM é uma organização que se contrapões à globalização neoliberal e busca alternativas para favorecer o

desenvolvimento humano e a superação da dominação dos mercados em cada país e nas relações internacionais.

Se reuniu pela primeira vez na cidade de Porto Alegre/RS, entre 25 e 30 de janeiro de 2001, com o objetivo de se

contrapor ao Fórum Econômico Mundial de Davos, assumindo, nesta data, o desafio de construir um modelo

sustentável de sociedade e vida urbana baseado nos princípios da solidariedade, liberdade, igualdade, dignidade e

justiça social, fundamentado no respeito às diferenças culturais urbanas e o equilíbrio entre o urbano e o rural,. Cf

http://forumsocialportoalegre.org.br/forum-social-mundial/ 16Publicada em 12/06/2006, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade é resultado do Fórum Social Mundial

Policêntrico de 2006. 17 Objetivos 11, 12 e 13 da Nova Agenda.

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igualdade de acesso de todos aos bens e serviços públicos de qualidade em áreas como a

segurança alimentar e nutrição, saúde, educação, infraestrutura, mobilidade e transportes,

energia, qualidade do ar e meios de subsistência.

Em face de todo o exposto, entendemos que a moradia possui uma importância central

no debate sobre o Direito à Cidade. Veremos, a seguir, o papel da produção da moradia na

estruturação do espaço urbano.

1.4. A Casa Própria e sua inscrição no modelo neoliberal ‒ Contexto brasileiro

Para o pensamento liberal, propriedade, direito e cidadania se entrelaçam18. Conforme

esclarece Holston:

Muitos dos textos fundamentais sobre sociedade e Estado modernos, tanto

próprios do liberalismo como contrários a este derivam os atributos éticos e

pessoais essenciais da cidadania, assim como seus direitos e suas obrigações,

do direito à propriedade. Essa discussão em geral não se limita à propriedade

da terra, mas considera os próprios direitos uma espécie de propriedade

(HOLSTON, 2013, p.157).

No Estado Liberal, tanto para os que remetem a justificativa de direito à propriedade

da terra a John Locke (Segundo tratado sobre o governo civil), como para aqueles que a

remetem à Hegel (Filosofia do direito), o direito de propriedade é a exteriorização e

corporificação do livre-arbítrio, de forma que um indivíduo é livre à medida que for proprietário

de sua própria pessoa e de suas capacidades, o que se expressa na propriedade da terra e das

coisas. A apropriação de propriedade é essencial para o desenvolvimento do respeito pelas

pessoas e esse respeito é fundante no que se refere à cidadania (HOLSTON, 2013).

Não obstante as significativas diferenças dessas duas linhagens filosóficas, ambas

relacionam propriedade e cidadania, na medida em que entendem que a propriedade está ligada,

diretamente, à liberdade, capacidade, dignidade, respeito e senhorio de si – qualificações

fundamentais para a concepção de cidadania do Estado liberal. Ademais, para essas linhas de

pensamento a propriedade gera cidadãos responsáveis, com “verdadeiro interesse” no futuro do

país, uma vez que os donos de propriedades tendem mais a pensar de forma responsável sobre

as consequências de suas ações, já que desejam perpetuar suas propriedades. Ao sintetizar os

pensamentos de Locke e Hegel relativos à propriedade e cidadania, Holston esclarece que:

18 O pensamento liberal aqui esposado tem, como referência, as tradições filosóficas de Locke e Hegel, que, não

obstante se tratarem de linhas de pensamento distintas, com importantes diferenças de pensamento, concordam

quanto à relação direta entre o que pode ser chamado de propriedade interna (o eu) e de propriedade externa (terra

e coisas).

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Para Locke, o indivíduo sem propriedade fundiária na qual investir seu

trabalho perde o pleno domínio de sua própria pessoa, que é o fundamento de

sua igualdade. Como resultado a sua cidadania se torna diferenciada dos que

são proprietários de terra e seus direitos, desiguais. Locke considerava esses

cidadãos sem propriedades e diferenciados incapazes de participar de decisões

políticas. Como governados e não governantes, além disso, eles são menos

livres. Para Hegel, indivíduos sem propriedade perdem a possibilidade de se

desenvolver plenamente como pessoas, o que é também o fundamento de sua

posição no mundo social. Como resultado os que não têm propriedade não são

apenas cidadãos inferiores, mas também cidadãos menores (HOLSTON,

2013, p. 159).

Observa-se que, no contexto do Estado Liberal, a propriedade privada configura forma

de autodesenvolvimento do indivíduo e meio de estabelecer qualificações fundamentais para a

cidadania, cabendo ao Estado responsável pela liberdade de seus cidadãos garantir a

propriedade como uma de suas principais obrigações.

Esse pensamento se enraizou na sociedade do Estado Liberal e emergiu, sob novas

nuances, na expansão do modelo econômico capitalista em sua fase neoliberal. Pautada na égide

do neoliberalismo, a propriedade passou a representar dignidade humana, honra pelo trabalho

e ascensão social.

Nesse sentido, a moradia no modelo neoliberal foi convertida em elemento estruturante

de um processo de transformação da forma de ação do capitalismo em sua mais recente versão,

marcada pela hegemonia das finanças, do capital fictício e do domínio crescente da extração de

renda sobre o capital produtivo, levando a mobilização de uma série de políticas com o objetivo

de ampliar a mercantilização da habitação e confrontando os sistemas nacionais de bem-estar e

as composições econômico-políticas em torno da moradia previamente existente em cada país

(ROLNIK, 2015).

Em face dessa dinâmica, entre as décadas de 70 e 80, sob a égide do neoliberalismo,

ocorre de modo generalizado, a reforma dos sistemas de habitação de diferentes países,

culminando, assim, no desmonte das políticas de habitação pública e social, na desestabilização

da segurança da posse e na conversão da casa em mercadoria e ativo financeiro (ROLNIK,

2015). A mudança da conjuntura que inseriu a casa própria no modelo neoliberal se deu ao

longo de três décadas, mais precisamente entre 1980 e 2010. Tal mudança teve início com a

superacumulação de ativos financeiros mundiais por grandes corporações e a busca por novos

campos de aplicação do lucro acumulado. A criação, reforma e fortalecimento dos sistemas

financeiros de habitação representaram um novo e interessante campo de aplicação dos

excedentes com garantia de qualidade.

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A intensidade com que essas mudanças ocorreram transformou a moradia, até então

inerte, imóvel e ilíquida do período de Bretton Woods (1941-1944), em ativo capaz de produzir

transformações velozes e constantes. Esse movimento transformou o sentido e o papel da

moradia, passando de ‘necessidade básica da população’ para um ‘bem altamente

transacionável no mercado’, capaz de incluir consumidores de média e baixa rendas que, até

então, deles estiveram excluídos.

Segundo Rolnik (2015), os pontos de partida para a mercantilização da moradia, bem

como do uso crescente da habitação como um ativo integrado a um mercado financeiro

globalizado foram o relatório do Banco Mundial de 1993, o Housing: Enabling Markets to

Work, e a crise do subprime em 2007. Esta, fruto de uma política clara e progressiva de

destruição de alternativas de acesso à moradia para os mais pobres, não resultou em uma

mudança de paradigma, contrariamente, levou à injeção de recursos públicos nos bancos

privados e nas instituições de crédito para evitar sua bancarrota, bem como a uma nova rodada

de estímulos à produção de moradia pelo setor privado, com unidades vendidas, via crédito

hipotecário, visando à dinamização econômica. Já aquele sintetizou um novo pensamento sobre

a política habitacional, com argumentos amplamente desenvolvidos sobre como o setor

habitacional seria importante para a economia e com diretrizes que orientavam os governos a

formular melhor suas políticas, ao dispor o que segue:

Este artigo apresenta a política habitacional do Banco Mundial tal como ela

se desenvolveu ao longo dos anos 1980 até o início dos anos 1990 e propõe

uma série de novas orientações importantes, tanto para o Banco quanto para

os tomadores de empréstimo. Ele defende a reforma de políticas

governamentais, instituições e leis para permitir que os mercados

habitacionais funcionem de forma mais eficiente, bem como o afastamento de

apoios limitados e baseados em projetos por parte das agências públicas

envolvidas na produção e no financiamento da habitação. Aconselhamos os

governos a abandonar seu antigo papel de produtores de habitação e a adotar

um papel facilitador da gestão do setor habitacional como um todo. Essa

mudança fundamental é necessária se quisermos que os problemas

habitacionais sejam tratados numa escala proporcional à sua magnitude – para

melhorar as condições habitacionais dos pobres de forma substantiva – e se

quisermos que o setor habitacional seja gerido como ele é – um setor

econômico de grande relevância (BANCO MUNDIAL, 1993, p. 3)

Não obstante a relevância desses eventos, podemos afirmar que a mercantilização da

moradia, no Brasil, já havia iniciado desde a época do BNH, que, sob a justificativa de estar

construindo casas acessíveis aos milhões de trabalhadores, o Governo Federal estava criando

uma política habitacional com o papel econômico de dinamizar a política econômica por meio

da geração de empregos e fortalecimento do setor da construção civil. Foi, a partir da criação

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do BNH, que se estabeleceu, até os nossos dias, um campo de convergência entre três

dimensões, decorrentes da definição de um organismo financeiro como lócus de formulação e

implementação de uma política habitacional que optou por fazer de cada brasileiro um

proprietário (ROLNIK, 2015).

A atividade do BNH representou um período de intensa produção de casas, atividade

imobiliária e financiamento habitacional que, após a sua extinção (1986), só foi retomado em

meados dos anos 1990, quando as reformas no modelo de regulação do crédito habitacional e

na estrutura e composição do capital das empresas, envolvidas no mercado imobiliário

residencial, passaram a ser implementadas.

Entre as mudanças ocorridas na década de 1990 que permitiram a mercantilização da

habitação, podemos citar o lançamento do Plano Real, em 1994, por facilitar a abertura do

mercado para bancos estrangeiros e trazer mais eficiência para o sistema financeiro após um

ciclo de privatizações de bancos estaduais e de fusões e aquisições; e a criação de um Sistema

Financeiro Imobiliário, em 1997, inspirado no modelo de mercado de hipotecas norte–

americano, que levou a introdução de produtos financeiros, criando um ambiente propício para

vincular o mercado de títulos ao mercado imobiliário.

Assim, a criação de Certificado de Recebíveis Imobiliários (CRI), de um fundo de

investimento imobiliário (FII), de regras para o estabelecimento de companhias securitizadoras

de créditos e do regime de alienação fiduciária permitiu uma maior captação de recursos para a

produção financeira imobiliária a longo prazo, reduzindo, assim, os custos de crédito para o

desenvolvimento do mercado de capitais no país. Ademais, colaboraram, para esse quadro de

mudanças no setor imobiliário, o declínio dos juros e o aumento da disponibilidade de

financiamento para produtor e comprador, pois permitiram o aumento substancial nas ofertas

ou o chamado boom imobiliário (ROLNIK, 2015).

Esse conjunto de mecanismos regulatórios, financeiros e institucionais que ocorreu,

especialmente, no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), criou condições para

um novo desenho do sistema financeiro imobiliário, sobretudo por meio da criação de um

mercado secundário, baseado em garantias hipotecárias, e preparou o terreno para o crescimento

exponencial e a consolidação do mercado imobiliário residencial a partir de 2006 (SHIMBO,

2012). Assim, conforme explica Shimbo:

Seja pela entrada de recursos provenientes de financiamento habitacional, pela

institucionalização de novos marcos regulatórios que favoreceram a

incorporação privada, pela injeção de recursos de investidores estrangeiros ou

pela tendência de crescimento e de concentração de capital no setor

imobiliário, a atuação das empresas construtoras e incorporadoras de capital

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aberto foi potencializada, vertiginosamente, a partir de 2006 (SHIMBO, 2012,

p. 73).

Não obstante toda a mudança na conjuntura do sistema financeiro de habitação para

introdução da moradia no mercado financeiro, faltava, até 2006, um estímulo para que o setor

privado atuasse na produção de moradia para baixa renda. Após 2006, com a injeção de recursos

públicos e semipúblicos, disponibilizados a essas faixas de renda, o mercado imobiliário criou

um segmento econômico transformando a produção de moradia de baixa renda em nicho de

mercado, quando a habitação de mercado passou a se confundir com habitação de interesse

social.

O período entre 2004 e 2008 foi marcado pela estabilização e crescimento da economia

brasileira e aumento do poder de consumo da população. O governo de Lula (2003-2010)

enfatizou ganhos significativos de poder aquisitivo às classes trabalhadoras, perdurando no

primeiro governo de sua sucessora, Dilma Rousseff (2011). O incentivo ao consumo não se

deu, apenas, na área da habitação, mas também em diversos campos que permitiram o aumento

do poder de consumo da população de baixa renda, entre eles, a criação do Programa Bolsa

Família, a expansão continuada do salário mínimo e a introdução de concessões de incentivos

para a produção e aquisição de bens duráveis. Ao discorrer sobre esse processo, Rolnik afirma:

A mercantilização da moradia, bem como o uso crescente da habitação como

um ativo integrado a um mercado financeiro globalizado, afetou,

profundamente, o exercício do Direito à Moradia adequada pelo mundo. A

crença de que os mercados poderiam regular a alocação da moradia, aliada ao

desenvolvimento de produtos financeiros experimentais e criativos, levou ao

abandono de políticas públicas em que a habitação é considerada um bem

social, parte dos bens comuns que uma sociedade concorda em compartilhar

ou prover para aqueles com menos recursos – ou seja, um meio de distribuição

de riqueza. Na nova economia política centrada na habitação como um meio

de acesso à riqueza, a casa transforma-se de bem de uso em capital fixo – cujo

valor é a expectativa de gerar mais valor no futuro, o que depende do ritmo do

aumento do preço dos imóveis no mercado (ROLNIK, 2015, p.32-33).

A ênfase no consumo mistifica as profundas desigualdades que continuam

caracterizando o Brasil e desmobilizando o envolvimento político das classes de baixa renda

em busca de verdadeira mudança social. Isso, porém, ainda é um ponto muito controverso e

discutiremos adiante.

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2 ‒ Construção da moradia no Brasil: políticas e lutas pelo Direito à Cidade

2.1. A Moradia após a Redemocratização: políticas neoliberais e processo democrático (1988-

1998)

A questão da moradia se insere na grande mudança econômica, política e territorial

que ocorre nas cidades do planeta sob a égide da hegemonia do pensamento e das práticas

neoliberais. Como anteriormente explicitado (item 1.3), no final do século XX e início do século

XXI, ocorreram diversas transformações políticas, econômicas e sociais no Brasil, as quais

levaram a um novo processo de mercantilização da moradia e do solo urbano. Este período

ficou marcado, também, pelo processo de redemocratização política do país, estagnação e

retomada do crescimento econômico, bem como pelo avanço da hegemonia dos circuitos

globalizados do capital e das agendas neoliberais, especialmente nas políticas habitacionais e

urbanas.

No período de redemocratização, ocorreu um esvaziamento da política nacional de

habitação. A ascensão do consenso neoliberal forçou os países a adotar reformas sociais

ortodoxas. Isso resultou em uma retração generalizada nos gastos públicos no que diz respeito

aos direitos sociais, levando a não concretização das mudanças sinalizadas pela nova

Constituição, que exigiam pôr em prática políticas públicas que só poderiam ser satisfeitas com

elevados gastos públicos e uma reforma radical nas políticas de caráter excludente.

Como resposta neoliberal à crise econômico-política do modelo do Estado provedor,

e críticas constantes na plataforma da reforma urbana, penetraram, no país, a partir de 1990, o

ideário e as práticas do chamado “empreendedorismo urbano” (VAINER, 2000), levando o

governo nacional na direção oposta à expansão de políticas redistributivas. Somado a esse

cenário, a consolidação de um governo de direita, em 199019, e a implantação de uma agenda

conservadora fizeram com que o projeto neoliberal triunfasse. Decisões políticas equivocadas

e marcadas por suspeitas de corrupção, como uma liberação de contratos acima da capacidade

do FGTS no governo Collor, levaram a uma paralisação total dos financiamentos com recursos

do FGTS entre 1991 e 199520 (VALENÇA, 2008).

19 Fernando Collor de Melo ganhou as eleições de 1989. 20 A distribuição de recursos do FGTS, entre Estados e Municípios, passou a ser pautada muito fortemente por

fatores políticos como um dos instrumentos de viabilização dos precários acordos partidários na Nova República.

Durante o governo Collor de Mello (1990-1992), essa tendência se agravou, o que levou o sistema a uma quase

falência em 1993.

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Em face desse contexto, o Direito à Cidade se tornou uma das mais importantes

demandas dos movimentos sociais e de outros atores progressistas no processo de

democratização que seguiu os anos da ditadura militar. Do ponto de vista da política urbana,

um intenso debate no seio da sociedade civil acerca do papel dos cidadãos e de suas

organizações na gestão das cidades levou a avanços legais no campo da moradia e da cidade

em geral; a Constituição de 1988 incorporou um capítulo sobre a política urbana estruturado

em torno da função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse

dos milhões de moradores das favelas e periferias das cidades do país e da incorporação direta

dos cidadãos aos processos decisórios relacionados a essa política.

Não obstante, após a Constituinte de 1988, as três esferas de governo (União, Estados

e Municípios) passaram a implementar programas e projetos habitacionais sem coordenação

tampouco planejamento em nível nacional, de maneira totalmente desarticulada, criando

sistemas específicos de financiamento, programas concorrentes e gerando, consequentemente,

desperdício de recursos.

Nesse quadro, emerge um amplo conjunto de experiências municipais de habitação de

interesse social. Os municípios administrados pelo PT, em particular, passaram a desenvolver

programas habitacionais alternativos ao modelo adotado pelo BNH, utilizando recursos

orçamentários, adotando uma perspectiva mais social e utilizando práticas tradicionais da

população mais pobre. Bonduki (2008) esclarece que, nessa fase, surgem, concomitantemente

às intervenções tradicionais, programas que adotam pressupostos inovadores como

desenvolvimento sustentável, diversidade de tipologias, estímulo a processos participativos e

autogestionários, parceria com a sociedade organizada, reconhecimento da cidade real, projetos

integrados e a articulação com a política urbana. Essa postura diferenciava-se, claramente, do

modelo que orientou a ação do BNH e com esses pressupostos emergem programas alternativos,

como urbanização de favelas e assentamentos precários, construção de moradias novas por

mutirão e autogestão, apoio à autoconstrução e intervenções em cortiços e em habitações nas

áreas centrais. Emerge, assim, o embrião de uma nova postura de enfrentamento do problema

habitacional adotada por gestões municipais de vanguarda, que se tornaram referências

nacionais para outros municípios.

Não obstante a crescente força de sindicatos e movimentos sociais e de sua articulação

em partidos de esquerda como o PT, eles permaneceram atores marginais na arena política do

país ao longo dos anos 1990, especialmente nos primeiros anos do governo de Fernando

Henrique Cardoso, quando a agenda governamental estava mais focada em redirecionar os

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gastos públicos em direção à aceleração do mercado do que promover os direitos sociais,

reconhecidos pela Constituição de 1988 ou as demandas dos movimentos sociais.

Assim, após vários anos de paralisação dos financiamentos, num contexto de

alterações significativas na concepção vigente sobre política habitacional, o governo de

Fernando Henrique Cardoso retomou os financiamentos de habitação e saneamento com base

nos recursos do FGTS. Em que pese não ter estruturado, de fato, uma política habitacional,

rejeitou o financiamento direto à produção de grandes conjuntos habitacionais e processos

centralizados de gestão, como ocorrera no período do BNH, e se baseou em princípios, tais

como: flexibilidade, descentralização, diversidade, reconhecimento da cidade real, entre outros,

compatíveis com o ambiente e o debate neoliberal.

O documento da Política Nacional de Habitação, realizado no contexto da preparação

para a 2ª Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II),

divulgado em 1996, incluiu, então, novos programas, tanto voltados ao beneficiário final, como

a Carta de Crédito, individual e associativa, que ampliou o poder de barganha dos tomadores

de empréstimos frente às empresas construtoras e aos vendedores de imóveis em geral, como

voltado para o poder público, focado na urbanização de áreas precárias, a exemplo do programa

Pró-Moradia, paralisado em 1998 com a proibição do financiamento para o setor público21.

Bonduki (2008) esclarece que as alterações promovidas, embora, à primeira vista,

pudessem expressar uma renovação na maneira como a questão da habitação passou a ser

tratada pelo governo federal, rompendo a rígida concepção herdada dos tempos do BNH, não

conseguiram alavancar, de fato, uma nova política, acabando por gerar um conjunto de efeitos

perversos, do ponto de vista social, econômico e urbano. Nesse sentido o texto de Bonduki

(2008) é bastante pertinente:

O financiamento para aquisição de imóvel usado, que absorveu 42% do total

de recursos destinados à habitação (cerca de 9,3 bilhões), é um programa com

escasso impacto, não gerando empregos e atividade econômica. O

financiamento para material de construção, embora tenha o mérito de apoiar

o enorme conjunto de famílias de baixa renda que auto-empreeende a

construção da casa própria e de gerar um atendimento massivo (567 mil

beneficiados no período, a de maior alcance quantitativo), tende a estimular a

produção informal da moradia, agravando os problemas urbanos. Ademais, o

baixo valor do financiamento e a ausência de assessoria técnica não permitem

21 Entre 1994 e 2002, a ocorrência de crises financeiras internacionais que atingiram a economia brasileira levou

o governo federal à adoção de medidas de austeridade fiscal, seguindo as prescrições do Fundo Monetário

Internacional, incluindo-se aí a limitação ao endividamento do setor público. Isso teve como consequência forte

restrição dos empréstimos do FGTS para a produção de moradias por Estados e Municípios, o que levou à redução

quase absoluta dos financiamentos previstos no Programa Pró-Moradia, que se delineou, até 1997, como o

principal programa para apoio à atuação dos governos locais no setor habitacional (OLIVEIRA, 2000).

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que as famílias beneficiadas alcancem condições adequadas de habitabilidade

(BONDUKI, 2008, p.79).

A preponderância dessas modalidades de acesso ao crédito estava vinculada à

consolidação de uma visão bancária no financiamento habitacional, personificado no papel

central que a Caixa Econômica Federal passou a ter como o único agente financeiro a operar os

recursos destinados à habitação. Preocupada em evitar rombos nos fundos destinados à

habitação, sobretudo o FGTS, a Caixa passou a privilegiar a concessão de créditos em condições

de maior garantia e de mais fácil acompanhamento, o que justifica a preferência pelo

financiamento do imóvel usado. Pela mesma razão de natureza financeira, a implementação

desses programas não significou interferir positivamente no combate ao déficit habitacional,

em particular nos segmentos de baixa renda, que se agravou no período compreendido entre

1991 e 2000. A população favelada cresceu 84%, enquanto a população geral teve uma elevação

de apenas 15,7%, mostrando que não houve nenhum impacto da ação governamental, do ponto

de vista da redução das necessidades habitacionais (BONDUKI, 2008).

Observamos que, no período compreendido entre 1988 a 1998, o Estado, no lugar de

promover os direitos sociais reconhecidos pela Constituição de 1988 ou as demandas dos

movimentos sociais, redirecionou os gastos públicos em direção à aceleração do Market

friendly22. As decisões dos formuladores de políticas públicas e os padrões de intervenção

passaram a ser cada vez mais ligados aos princípios estabelecidos por instituições financeiras

internacionais e as respostas às necessidades sociais passaram a se calcar na promoção do

acesso a bens e serviços por meio de relações de mercado, o assalariamento recuou de forma

contínua e as promessas de extensão de direitos e igualdade de oportunidades, expressas na

constituição de 1988, foram abortadas, refletindo diretamente nas camadas de baixa renda da

população, que sentiram na pele o aumentou drástico da pobreza. Esse processo não foi

totalmente interrompido na década seguinte, conforme veremos a seguir.

2.2. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas I (1998-2003)

No final dos anos 1990, o país entrou de vez em compasso com o capitalismo

contemporâneo. Ao consolidar uma agenda neoliberal compromissada com a abertura de

mercados aos capitais globalizados, reestruturação produtiva, introdução de novas tecnologias,

mudanças nas práticas gerenciais e flexibilização do contrato de trabalho, levou ao aumento do

22 Expressão utilizada por Rolnik (2015, p. 270).

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desemprego de longa duração, a precarização do trabalho e a contingentes crescentes de

sobrantes do mercado de trabalho.

No âmbito das lutas pelo Direito à Cidade, podemos dizer que se manteve ou mesmo

se acentuou uma característica tradicional das políticas habitacionais no Brasil, ou seja, um

atendimento privilegiado para as camadas de renda média, a título de exemplo, “[...] entre 1995

e 2003, 78,84% do total dos recursos foram destinados a famílias com renda superior a 5 SM,

sendo que apenas 8,47% foram destinados para a baixíssima renda (até 3 SM) onde se

concentravam 83,2% do déficit quantitativo” (BONDUKI, 2008, p.80).

As conquistas – conseguidas em sua maioria por movimentos sociais – foram pontuais,

como o reconhecimento constitucional do Direito à Moradia, em 2000, como um direito

fundamental, e a aprovação do Estatuto da Cidade23 ‒ Lei nº. 10.257/01 (BRASIL, 2001). Neste

sentido, vejamos as afirmações de Bonduki:

As ações de política macroeconômica, implementadas pelo governo FHC,

redundaram numa escalada que acabou por reduzir o espaço de intervenção

dos agentes do setor público na execução das políticas de habitação, sobretudo

no que se refere à urbanização de áreas precárias, ação que somente pôde ser

realizada pelo setor público. As restrições impostas à concessão de créditos a

esse setor, em contrapartida à rolagem de dívidas de Estados, Municípios e

Distrito Federal, eliminaram a possibilidade de acesso a operações de

financiamento nas áreas de saneamento e habitação com recursos oriundos do

FGTS. Dessa forma, o ajuste fiscal consolidou-se como principal obstáculo à

realização de investimentos voltados à urbanização e à produção de moradias,

destinadas ao atendimento dos segmentos de mais baixa renda, onde se

encontra concentrado o grosso das necessidades habitacionais do país

(BONDUKI, 2008, p. 81).

Em 2001, o governo FHC criou o Programa de Arrendamento Residencial (PAR)24,

para “substituir” o Pró-Moradia, que continuou apenas formalmente ativo, mas ficou

inviabilizado do ponto de vista operacional. Esse programa foi implementado como alternativa

para o financiamento da produção de novas unidades habitacionais para as faixas de 3 a 6

salários mínimos, no entanto os primeiros estudos avaliativos mostraram que as populações

23 A aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001, depois de treze anos de debates no Congresso Nacional, criou

novos instrumentos urbanísticos para viabilizar a regularização fundiária e fazer cumprir a função social da

propriedade, constituindo um marco importante para o equacionamento da questão habitacional no Brasil 24 Contando com um mix de recursos do FGTS e do OGU, o programa permitiu certo grau de subsídios, reduzindo

o valor das prestações dos financiamentos, sem prejudicar a saúde financeira do FGTS. Do ponto de vista

institucional, o programa era operado pela Caixa Econômica Federal e o crédito era repassado para companhias

construtoras que, após a produção, entregavam os empreendimentos para a Caixa, responsável pela alocação da

população a ser beneficiada.

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atendidas se concentravam nos limites superiores da faixa a que estava destinado. (ARAUJO;

AMORIM; HILGERT; MARQUES, 2003).

Em meio à crise e à retração do financiamento, o setor privado buscou manter a

atividade de produção habitacional com base no chamado “autofinanciamento”, que atendia,

por um lado, aos setores de alta renda, através de estratégias denominadas pelas empresas como

“preço de custo” (CARDOSO, 2000), e, por outro lado, aos setores de renda média baixa, pelo

sistema de cooperativas.

Em 2002, a insatisfação de grande parte da população brasileira com os resultados das

administrações do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC era generalizada.

Esse descontentamento, junto à proposta de reformismo de Luís Inácio Lula da Silva, do Partido

dos Trabalhadores (PT), que adotou um discurso político moderado capaz de conciliar interesses

políticos de partidos conservadores e antigos rivais, bem como representantes de grandes

empresas que estavam em lados opostos em eleições anteriores, deram ensejo a sua vitória nas

eleições de 2002.

A vitória de Lula teve um significado histórico e simbólico, haja vista que representou

justiça social para os pobres, a vontade de que o Brasil desse certo para os trabalhadores –

frustrados pela falta de reconhecimento social em toda a história do país –, a possibilidade de

se refazer um país deteriorado pela convergência de uma grande riqueza com uma desigualdade

gritante. No entanto, em que pese ter representado um triunfo histórico para os trabalhadores,

migrantes, pobres e marginalizados da sociedade brasileira, a vitória de lula só foi possível em

virtude da conciliação de interesses e intenções conflitantes, resultando, assim, num equilíbrio

político frágil que exigiu concessões reiteradas para ser mantido, levando a uma política de

governo comprometida com o respeito a instituições de mercado e a manutenção da estabilidade

macroeconômica (SINGER, 2012).

Durante todo o seu mandato, Lula buscou conciliar a agenda do crescimento

econômico ao combate à pobreza, incluindo no mercado parcelas até então totalmente alijadas

dele e ampliando a capacidade de consumo por meio da valorização dos salários e a ampliação

de crédito para as famílias. No âmbito das políticas sociais, Lula implementou políticas públicas

dirigidas à população mais miserável, com o objetivo de retirá-las do nível de subsistência

precário em que se encontravam, por meio de programas de transferência de renda, como o

Bolsa Família, e de um conjunto de ações sociais, destinadas a aumentar as oportunidades de

empreendedorismo e desenvolvimento econômico (ALMEIDA, 2004). No plano habitacional,

não foi diferente; a proposta da política para esse setor também se pautou na conciliação de

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uma política de desenvolvimento que conciliasse o enfrentamento da questão social ao

crescimento econômico e à geração de empregos.

Bonduki (2008) esclarece que, desde 1999, o Instituto Cidadania25, coordenado por

Lula, visava elaborar um projeto para equacionar o problema habitacional no país associado ao

crescimento econômico e à geração de emprego. O projeto moradia26, criado para esse fim,

propôs a criação do Sistema Nacional de Habitação, formado pelos três entes da Federação, que

atuariam de forma estruturada sob a coordenação de um novo ministério, o futuro Ministério

das Cidades. O controle social seria exercido pelo Conselho Nacional das Cidades e órgãos nos

estados e municípios, aos quais caberia gerir fundos de habitação, que deviam concentrar

recursos para subsidiar a baixa renda. Assim, explica ainda o Autor:

A política de subsídios previa um mix de recursos não onerosos – do

Orçamento Geral da União (OGU) e do Fundo de Garantia do Tempo de

Serviço (FGTS) – com recursos retornáveis, para viabilizar o crédito e o

acesso à moradia digna para a população de baixa renda. Para concentrar o

FGTS na baixa renda, seria indispensável a retomada da produção

habitacional pelo mercado, para atender a classe média, reativando o crédito

imobiliário, particularmente do SPBE (recursos da poupança), que não vinha

cumprindo os dispositivos legais que exigem a aplicação dos seus fundos em

habitação, pois o governo FHC, baseado no rigor monetarista, enxergava o

financiamento habitacional como inflacionário. A criação de um fundo de aval

era considerada estratégico para reduzir os riscos de crédito e os juros. O

Projeto Moradia enfatizava a necessidade de aprovação do Estatuto da Cidade

para facilitar e baratear o acesso à terra, combatendo a especulação com

imóveis ociosos (BONDUKI, 2008, p.09).

Em 2003, o Ministério das Cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador,

gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Sua função era a de

formular a política urbana em nível nacional e fornecer apoio técnico e financeiro a governos

locais, integrando as arenas institucionais das políticas federias de habitação, saneamento e

transportes, que, desde o início da Nova República, haviam transitado por diversos ministérios

e secretarias27 (ROLNIK, 2015).

25 O Instituto Cidadania é uma organização não governamental dirigida por Lula e que, com o apoio de especialistas

de diferentes áreas, desenvolveu uma série de propostas para o país no longo período em que o Presidente se

preparou para governar (1990-2002). 26 Este Projeto, realizado entre 1999 e 2000, ouviu diferentes segmentos da sociedade relacionados com a questão

da moradia (movimentos populares, entidades empresariais e profissionais, Universidades, centrais sindicais etc.),

sintetizou um grande conjunto de propostas dispersas e elaborou uma estratégia para, num prazo de quinze anos,

equacionar o problema em torno de uma diretriz estabelecido no projeto: um país com os recursos de que dispõe

o Brasil não pode admitir que milhões de famílias morem em condições precárias de habitação e infraestrutura,

como em favelas e cortiços. O Projeto Moradia se tornou a base do programa eleitoral do futuro Presidente para a

área da habitação e desenvolvimento urbano. 27 Após a extinção do BNH a política habitacional foi subordinada à diversos órgãos: Ministério da Habitação,

Urbanismo e Meio Ambiente – MHU (1987), Ministério de Habitação e do Bem-Estar Social – MBES (1988),

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O novo ministério marcava o reconhecimento da agenda de reforma urbana como

prioridade política. Seus integrantes, inicialmente oriundos de membros do PT e de assessorias

e lideranças de movimentos sociais urbanos surgidos nos anos 1980 e 1990, levariam para o

governo federal práticas e políticas que haviam sido experimentadas nos governos pelos quais

o PT havia passado; entre elas o processo participativo para a elaboração de políticas, como as

conferências e as experiências de autogestão na produção da habitação que, a partir da primeira

administração do PT em São Paulo (1989-1992), ganharam escala e força política entre os

movimentos de moradias.

Ainda em outubro de 2003, o Ministério das Cidades realizou a primeira Conferência

Nacional das Cidades, com 2,5 mil delegados eleitos num amplo processo de mobilização

social, em mais de 3 mil municípios. A eleição do Conselho Nacional das Cidades foi fruto

desse processo, sendo 56% de seus representantes oriundos da sociedade civil (movimentos

sociais, entidades empresariais, entidades profissionais, acadêmicas e ONGs) e 42%, do

governo (esferas federal, estadual e municipal). Os movimentos sociais ganharam grande peso

na composição do conselho, ocupando quase metade da representação da sociedade civil. Nessa

conferência, além da criação e composição do Conselho Nacional das Cidades foram propostas

as diretrizes para a política habitacional do governo (ROLNIK, 2015). A Secretaria Nacional

de Habitação, ao longo do ano de 2003, desenvolveu as bases normativas e institucionais da

política de habitação, propondo a estruturação do Sistema Nacional de Habitação, cuja versão

inicial é discutida na Primeira Conferência das Cidades.

Apesar do avanço que a criação do Ministério das Cidades representou para a criação

da política habitacional preconizada pelo novo Governo, a Caixa Econômica Federal – agente

operador e principal agente financeiro dos recursos do FGTS – continuou subordinada ao

Ministério da Fazenda, tirando o poder daquele novo Ministério de decidir sobre a aprovação

dos pedidos de financiamentos e acompanhamento dos empreendimentos municipais. Ademais,

o impasse e as limitações, presentes na ação habitacional do governo FHC, continuaram

presentes no início do governo Lula, transformando-se em desafios difíceis de ser superados

para colocar, em prática, a política habitacional proposta no Projeto Moradia.

Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária – SEAC (1989), Ministério da Ação Social – MAS (1990),

Ministério do Bem-Estar Social – MBES (1992), Secretaria de Política Urbana – SEPURB (1995) e Secretaria de

Desenvolvimento Urbano – SEDUR/PR (1999-2003).

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2.3. Políticas e produção da Moradia no Brasil – agendas contemporâneas II (2004-2016)

Em 2004 várias medidas importantes, tomadas por inciativa do governo federal,

marcam a intenção e compromisso do governo em subsidiar a produção da moradia para as

camadas de baixa renda. A edição da Medida Provisória nº 252 trouxe vários mecanismos de

renúncia fiscal que beneficiaram em grande parte o setor imobiliário, a ampliação da segurança

dos investidores do setor imobiliário através dos mecanismos da alienação fiduciária nas

transações imobiliárias e da instituição do princípio do “patrimônio de afetação”. O saque do

FGTS passou a ser permitido em intervalos de quatro anos, caso o recurso fosse utilizado na

aquisição de imóvel residencial ou na amortização de financiamento habitacional contraído

anteriormente. A Resolução 460 do Conselho Gestor do FGTS, que entrou em vigência a partir

de maio de 2005, permitiu criar um sistema de “descontos” que reduziu o custo de

financiamentos com recursos do fundo, beneficiando os setores de menor renda sem

comprometer a saúde financeira do FGTS. Essa medida teve um forte impacto na ampliação dos

financiamentos com recursos do FGTS para as famílias com renda de até 3 SM, até então pouco

beneficiadas pelos empréstimos lastreados em recursos do Fundo (CARDOSO; ARAGÃO,

2013).

Atendendo à reivindicação dos movimentos sociais, em 2004 foi criado o Programa

Crédito Solidário, voltado ao atendimento de necessidades habitacionais da população de baixa

renda organizadas em cooperativas e/ou associações, visando a produção e aquisição de novas

habitações ou a conclusão e reforma de moradias existentes, mediante concessão de

financiamento diretamente ao beneficiário. Este programa aproveitou-se da existência do Fundo

de Desenvolvimento Social – FDS, criado em 1993 para financiar programas sociais locais e

que estava praticamente inoperante. O programa representou uma grande conquista dos

movimentos de moradia, que passou a contar com recursos federais para apoiar as ações de

provisão habitacional baseadas na autogestão.

Com o objetivo de ampliar o mercado para atingir os setores populares e permitir a

otimização econômica dos recursos públicos e privados investidos no setor habitacional, foi

elaborada, ainda em 2004, a nova Política Nacional de Habitação (PNH). A PNH especificou

dois subsistemas de habitação: O Subsistema de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o

Subsistema de Habitação de Mercado, separados de acordo com o perfil da demanda, cada um

com suas fontes de recursos específicas. Visava ampliar maciçamente os recursos de FGTS e

do SBPE, para os financiamentos habitacionais e arregimentar outros fundos para esse fim, na

perspectiva de aumentar a produção subsidiada de habitação (para faixas de até três salários

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mínimos) e de fomentar o mercado privado de habitação. O pleno funcionamento do SNHIS

ficaria condicionado à adesão de estados e municípios, que, para isso, deveriam constituir seus

próprios fundos e conselhos e elaborar planos de habitação (SHIMBO, 2012).

A PNH incorporava grande parte das propostas do Projeto Moradia, porém várias

foram as dificuldades de implementação desse projeto: Em primeiro lugar, a política econômica

adotada pelo governo até 2006 dava continuidade às linhas gerais do período FHC – mantidas

as altas taxas de juros e as fortes restrições à utilização de fontes fiscais, com a fixação de um

superávit primário superior ao adotado por FHC, ficando reduzidas as possibilidades de

implementação de um fundo de subsídio significativo para viabilizar o atendimento à população

de baixa renda (BONDUKI, 2008). Em segundo, o Fundo Nacional de Moradia (FNM),

idealizado pelo Projeto Moradia, foi aprovado no Congresso, em 2005, como Fundo Nacional

de Habitação de Interesse Social, e, em vez de ser institucionalizado como fundo financeiro, foi

instituído como um fundo orçamentário, sujeito ao contingenciamento e às rígidas regras de

licitação, além de contar com recursos insignificantes para viabilizar o atendimento à população

de baixa renda. Em terceiro, no ano de 2005 vários técnicos comprometidos com a agenda de

reforma urbana e com o programa original do governo Lula deixaram o governo, fragilizando

o avanço institucional numa perspectiva mais progressista. O ministro Olívio Dutra, indicado

pelo PT, foi substituído por um ministro apoiado por um partido conservador da base governista,

sem histórico com a luta pela reforma urbana.

A partir de 2005, também ocorreram alterações relevantes na área de financiamento

habitacional, tanto no que se refere ao subsistema de interesse social como ao de habitação de

mercado. A melhoria do cenário macroeconômico, a relativa flexibilização da política

econômica, que gerou uma redução do superávit primário, bem como as medidas tomadas pelo

governo para desonerar a construção civil e estimular o crédito imobiliário permitiram uma

substancial elevação dos investimentos, de todas as fontes de recursos, uma ampliação do

subsídio dirigido para a população de baixa renda, a destinação crescente de recursos ao poder

público e ampla captação de recursos de mercado. A partir daí o mercado habitacional

experimentou uma fase de crescimento constante, com ampliação dos preços, configurando um

boom imobiliário. Esse quadro de expansão das atividades do mercado habitacional resultou

em profunda reestruturação do setor e não apenas em mais uma fase de crescimento.

Em 2006, a entrada de Guido Mantega – economista desenvolvimentista do núcleo

histórico do PT e com grande relação com os sindicalistas – no Ministério da Fazenda, acentuou

o processo de desarticulação da política habitacional, comprometida com a reforma urbana e se

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voltou apenas para a estratégia de crescimento econômico, passando a ser política dominante a

ampliação do consumo dos trabalhadores. Assim, houve uma progressiva liberação dos gastos

públicos, viabilizada pela ampliação internacional de reservas que, por sua vez, foram

possibilitadas pela ampliação da exportação de commodities e pelo aumento progressivo do seu

preço internacional.

Nesse cenário, o crescimento econômico que se desenha, a partir de então, irá ter

reflexos na redução dos indicadores de pobreza e desigualdade, resultado, em parte dos

programas de transferência de renda (o Bolsa Família), em parte da elevação real do valor do

salário mínimo e na emergência e consolidação da Classe C, que passará a ser considerada um

“nicho de mercado” com importância crescente, passando a fazer parte das estratégias

empresariais do setor imobiliário (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Em virtude dessas

transformações, entre 2006 e 2008 os recursos do FNHIS foram destinados, basicamente, para

apoiar a elaboração de planos municipais e estaduais de habitação, além de algumas poucas

ações nas áreas de urbanização de favelas (ROLNIK, 2015).

Essas mudanças representaram o início do processo de desarticulação do Ministério

das Cidades, que ainda buscava se estruturar para exercer seu papel de formulador da política

urbana para o país. Em 2007, com a substituição de todos os secretários nacionais indicados

por Dutra, com exceção da Secretaria Nacional de Habitação, esse processo se completou. Não

obstante as dificuldades internas ao Ministério, as condições econômicas tornaram-se muito

mais favoráveis para implementar as propostas da PNH e, em 2007, o governo lançou o

Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que objetivava implantar grandes obras de

infraestrutura e incluir, entre seus componentes, um programa de caráter social, a Urbanização

de Assentamentos Precários, prevendo-se recursos inusitados para o setor da habitação.

O aumento exponencial da disponibilidade de crédito, inclusive de crédito imobiliário,

uma das medidas centrais do modelo econômico desenvolvimentista, incidiu, de forma intensa,

sobre o preço dos imóveis e, entre 2008 e 2014, o índice Fip-Zap apontou uma valorização de

quase 200% dos imóveis, os aluguéis subiram quase na mesma proporção, muito acima dos

ganhos salariais e de renda dos mais pobres. Isso se deu particularmente após 2009, quando já

vigorava a crise financeira internacional detonada pela arrancada do crédito subprime no

mercado hipotecário norte-americano (ROLNIK, 2015).

Em 2008, quando eclodiu a crise hipotecária e financeira nos Estados Unidos os

investidores começaram a vender suas ações. No final de 2008, estas já estavam sendo

negociadas por uma fração do seu valor patrimonial. Rolnik (2015) esclarece que a situação de

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crise internacional e ameaça de quebradeira do setor poderia contaminar a cadeia produtiva e,

consequentemente, a estratégia econômica do governo brasileiro, motivo pelo qual os

empresários atingidos, liderados pela Gafisa e apoiados pela Câmara Brasileira de Indústria e

Comércio (CBIC), passam a intensificar o lobby junto à Fazenda para implementar um “pacote

habitacional” nos moldes do programa mexicano, que, por sua vez, havia sido inspirado no

modelo chileno. Nos termos desses programas, o governo ofertaria subsídios diretos ao

comprador para viabilizar a compra de 200 mil unidades que as construtoras capitalizadas

estavam preparadas para lançar no mercado – operação que estaria ameaçada pela crise se não

houvesse essa intervenção estatal. Esses subsídios seriam dados na forma de aportes para os

compradores finais, além de maior facilidade nos créditos hipotecários, com a introdução de

um fundo garantidor dos empréstimos28.

As negociações iniciais entre os empresários do setor e o Ministério da fazenda se

deram sem a participação do Ministério das Cidades ou da equipe que estava formulando o

Plano Nacional de Habitação, sem nenhuma interlocução com o Conselho das Cidades e com

o Conselho gestor do FNHIS. Nesse sentido, explicam Arantes e Fix:

[...] o pacote foi elaborado pela Casa Civil e pelo Ministério da Fazenda, em

diálogo direto com representantes dos setores imobiliários e da construção,

como uma política de governo em resposta à crise, desconsiderando diversos

avanços institucionais na área de desenvolvimento urbano bem como a

interlocução com outros setores da sociedade civil. O Ministério das Cidades,

que foi uma inovação do primeiro mandato do governo Lula, com toda uma

nova estrutura operacional – que articula as políticas de habitação,

saneamento, transportes e desenvolvimento urbano –, foi posto de lado na

concepção do programa. Vale lembrar que, de todo modo, já havia sido

entregue em 2005 ao PP de Maluf e Delfim, com o afastamento de Olívio

Dutra e de parte da sua equipe, como forma de reduzir as pressões dos

escândalos do ‘mensalão’ e do ‘mensalinho’, de Severino Cavalcanti. Mas

ainda assim, a Secretaria de Habitação havia sido parcialmente preservada e

seguia atuante, inclusive com a elaboração do Plano Nacional de Habitação,

entregue alguns meses antes do anúncio do pacote – que o ignorou em sua

quase totalidade. O Estatuto da Cidade, de 2001, resultado da luta pela reforma

urbana no Brasil e que até o momento foi pouquíssimo implementado, não é

um elemento definidor dos investimentos (municípios que o aplicam poderiam

ser priorizados ou ter condições mais favoráveis). O Conselho das Cidades,

órgão deliberativo mais importante do Ministério, sequer foi consultado a

respeito do pacote. O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social

(FNHIS), que até então deveria concentrar todos os recursos da política

habitacional, de modo a uniformizar os critérios de acesso, bem como seu

Conselho, foram dispensados (ARANTES; FIX, 2009a, p. 10-11).

28“Quando o pacote foi apresentado ao Presidente Lula, no final de 2008, ele ‘politizou’ as medidas, propondo o

aumento do número de unidades produzidas e a parcela do programa que deveria ser dirigida aos setores de mais

baixa renda. Propôs ainda uma ideia que já vinha sendo proposta pela Caixa, a de acrescentar uma faixa totalmente

subsidiada e por fora do crédito hipotecário, para baixíssima renda, a chamada “faixa 1” na qual prefeitos e

governadores indicariam os beneficiários” (ROLNIK, 2015, p. 301).

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Como o objetivo era salvar as empresas da débâcle e ao mesmo tempo funcionar como

medida contra cíclica para garantir empregos e crescimento num cenário internacional

desfavorável, as ações apresentadas deveriam ser imediatas, portanto deveriam desviar de

qualquer política complexa que exigisse longo tempo de maturação ou que encontrasse

resistências, como é o caso de uma política fundiária. Assim, atropelando o Plano Nacional de

Habitação – pactuado como uma estratégia de longo prazo – o “pacote” foi lançado, em 2009,

com o nome de Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e deveria se tornar a mais

importante ação no campo econômico-social, articulando a oferta de moradia com uma

estratégia keynesiana de crescimento e geração de empregos (ROLNIK, 2015).

O referido Programa, apresentado como uma das principais ações do governo em

reação à crise econômica internacional, e também, como uma política social de grande escala,

iria atender a imperativos econômicos e sociais, já que, por um lado possibilitaria a criação de

empregos no setor da construção, e por outro, a provisão de moradias. Articulado a um

programa de subsídios diretos, proporcional à renda das famílias, para a compra de 1 milhão de

unidades residenciais produzidas pelo mercado privado, o PMCMV lançou 100 bilhões de reais

em crédito imobiliário residencial no período de dois anos. Além dos subsídios e do aumento

do volume de créditos, o Programa reduziu os juros e criou o Fundo Garantidor da Habitação

para aportar recursos para pagamento das prestações em caso de inadimplência por desemprego

ou outras eventualidades (BRASIL, 2016).

As apresentações oficiais que acompanharam o lançamento do programa se apoiavam

nos dados quantitativos do déficit habitacional, que àquela altura era calculado em 7,2 milhões

de moradias, 90% delas concentradas nas faixas de renda inferiores a três salários mínimos,

70% nas regiões Sudeste e Nordeste, quase 30% nas regiões Metropolitanas – para afirmar que

o Programa o reduziria em 14% (AMORE, 2015). Conforme Amore (2015), uma importante

novidade do PMCMV em relação às práticas do BNH, que se caracterizou por desvios

sistemáticos no atendimento das chamadas “demandas sociais”, era a preocupação com a

produção para as rendas inferiores:

400 mil unidades (40% da meta) deveriam ser destinadas a famílias com renda

de até 3 salários mínimos, o que se viabilizaria com o aporte de 16 bilhões de

reais em recursos da União (70% de todo o investimento). Tratava-se de um

nível de subsídio que nem mesmo o PlanHab previra em seus cenários mais

otimistas. Havia ainda a intenção de distribuição regional, concentrando a

produção nos estados do Sudeste e do Nordeste, com prioridade para

municípios com mais de 100 mil habitantes e excluindo aqueles com menos

de 50 mil, acompanhando a distribuição do déficit. O Programa fazia uma

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leitura bastante simplificada do ‘problema habitacional’, que, por exemplo, o

PlanHab pretendia atacar por meio de uma grande diversidade de programas

e produtos habitacionais, adequados para as onze tipologias de municípios que

o Plano havia organizado em função das características demográficas e das

dinâmicas econômicas (AMORE, 2015, p. 17).

O sucesso quantitativo e a boa repercussão na opinião pública fizeram o Programa se

consolidar na política urbana em nível nacional, transformando-o no carro-chefe da política

habitacional brasileira. O Programa, porém, se pautou mais pela urgência em flexibilizar o

acesso aos recursos, o que garante a sua eficácia dentro do ponto de vista dos efeitos econômicos

anticíclicos pretendidos, do que pela necessidade de garantir a sua eficácia do ponto de vista

dos objetivos habitacionais, remetendo os mesmos problemas do BNH, como a ausência de

mecanismos de política fundiária que permitam evitar que os recursos disponibilizados para o

financiamento habitacional gerem uma pressão de demanda sobre a terra, aumentando,

consequentemente, o preço dos imóveis produzidos numa escalada ascendente. No caso do

BNH, a produção de novas casas foi inviabilizada, já no caso do PMCMV a produção de novas

unidades se deslocou para as áreas mais distantes das centralidades urbanas e com maior

precariedade de infraestrutura.

Em setembro de 2011, o governo federal lançou a segunda fase do programa habitacional

Programa Minha Casa Minha Vida, alocando novos recursos e ajustando as ações, com base

em críticas realizadas em sua primeira etapa. Em março de 2016, foi lançada a terceira fase do

programa, com a meta de entregar 2 milhões de moradias populares até 2018. Segundo informações

do governo, as duas primeiras etapas do programa já entregaram cerca de 2,6 milhões de residências,

havendo, ainda, mais 1 milhão de casas em construção para ser entregues aos beneficiários do Minha

Casa, Minha Vida. Em resumo, segundo o Ministério das Cidades, em seis anos, o governo entregou

2,6 milhões de casas. De acordo com a pasta, ainda há 1,4 milhão de moradias para ser entregues na

fase 2 do Minha Casa, Minha Vida, que teve orçamento de R$ 125,7 bilhões. O investimento total

no programa ultrapassa a R$ 270 bilhões (PORTAL BRASIL, 2016).

Uma reflexão crítica do período compreendido entre 1988 a 2009 nos permite observar

que o Partido dos Trabalhadores, que se constituiu e cresceu politicamente resistindo ao

neoliberalismo, promove o avanço e a financeirização da terra e da moradia no país, agravando

à crise urbana. Com avanços e recuos, o governo Lula marca um ponto de inflexão nas políticas

de habitação do país. A publicitação do Programa Minha Casa Minha Vida, antes mesmo da

apresentação do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), levou o governo a perder uma

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excelente oportunidade de equacionar o problema habitacional no âmbito de um projeto

nacional de desenvolvimento com inclusão social.

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3. O Programa Minha Casa Minha Vida e a produção privada da moradia de interesse

social no Brasil

3.1. O Programa Minha Casa Minha Vida no contexto da política habitacional brasileira

(2009-2015)

O Programa Minha Casa Minha Vida foi aprovado pela Medida Provisória nº 459/09,

convertida na Lei nº 11.977/09 e regulamentada pelo Decreto nº 6962/09. Posteriormente, essa

lei foi alterada pela Lei nº 12.424/11, e regulamentada pelo Decreto nº 7.499/11, sendo mais

uma vez alterada pela lei nº 13.274/16. As sucessivas alterações se deram com o fim de

melhorar a adequação do Programa à sua concretização prática e melhorar as críticas

observadas após o início de sua implementação, como, por exemplo: a mudança do critério de

distribuição das unidades por faixa de renda para adoção de valores nominais nas propostas; a

criação de especificações mínimas para os projetos e para as construções; a instituição de

parâmetros para implantação de trabalho social nos empreendimentos; a definição de metas e

responsabilidades federativas para a implantação dos equipamentos públicos que deveriam

acompanhar os empreendimentos.

Criado com a finalidade de instituir mecanismos de incentivo à produção e à aquisição

de novas unidades habitacionais, bem como para requalificação de imóveis urbanos e produção

ou reforma de habitações rurais para famílias com renda mensal de até dez salários mínimos29

(BRASIL, 2009), o programa se estruturou, operacionalmente, nos seguintes subprogramas: o

Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e Programa Nacional de Habitação Rural

(PNHR) (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016); que compreendem as seguintes modalidades:

MCMV Faixa 1, MCMV Entidades, MCMV Financiamento e Minha Casa Minha Vida Sub 50.

As concessões de benefícios pelo Minha Casa Minha Vida são feitas por faixa de

renda, que variaram de acordo com as modificações legais do programa, conforme podemos

verificar no Quadro abaixo:

29 Esse teto foi mudado pela Lei 12.424/2011 para de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais).

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Quadro 1

Características do PMCMV por fases e faixas

FASES FAIXA DO

MCMV

RENDA BRUTA

MENSAL FAMILIAR CARACTERÍSTICAS

1

De março de 2009 a

junho 2011

1 Até 3 salários mínimos

Subsídio integral com isenção do

seguro. Para quem tem renda de até R$

500,00 o pagamento da prestação é de

R$ 50,00, acima disso será cobrado 10%

da renda

2 De 3 a 6 salários mínimos

Subsídio parcial que varia de R$ 2 mil a

R$ 23 mil, de acordo com a faixa de

renda do interessado. Redução dos

custos do seguro e acesso ao Fundo

Garantidor. O pagamento da prestação

corresponde a 10% da renda

3 De 6 a 10 salários mínimos

Estímulo à compra com redução dos

custos do seguro e acesso ao Fundo

Garantidor. O pagamento da prestação

corresponde a 10% da renda

2

De junho de 2011 a

março de 2016

1 Até R$ 1.600,00

Subsídio (retorno equivalente e 10% da

renda do beneficiário) e Regime

Especial de Tributação para imóveis

avaliados em até R$ 85.000,00.

2 De R$ 1.601,0 a 3.100,00

Subsídio parcial, redução dos custos do

seguro, acesso ao Fundo Garantidor;

Regime Especial de Tributação. Juros

de 6%

3 De R$ 3.101 a 5.000,00 Acesso ao fundo garantidor e redução

dos custos de seguro. Juros de 7,5%.

3

De abril de 2016 a

dezembro de 2018

1 Até R$ 1.800,00

Subsídio de até 90% do valor do imóvel.

Até 120 prestações mensais (10 anos),

com parcela mínima de R$ 80,00 e

máxima de R$ 270,00. Não tem juros. O

valor máximo do imóvel é de R$

96.000,00, dependendo da localização

1,5 De R$ 1.801,00 a 2.350,00

Subsídio de até R$ 45.000,00 com juros

são de 5% ao ano. O valor máximo do

imóvel é de R$ 135.000,00,00,

dependendo da localização

2 De R$ 2.351,00 a 3.600,00 Subsídio até R$ 27.500,00 com 6% a 7%

de juros ao ano.

3 De R$ 3.601,00 a 6.500,00

Sem subsídio e 8,16% de juros ao ano. O

valor máximo do imóvel é de R$

225.000,00 dependendo da localização. O

candidato não pode ter recebido nenhum

benefício do Poder Público, tais como:

parte de pagamento do imóvel ou redução

das taxas de juros.

Fonte | Elaboração própria com base nos sites do Ministério das Cidades, Senado Federal; Caixa Econômica Federal

e Secretaria de Estado de Gestão do Território e Habitação.

Observação: O valor do imóvel tem tetos distintos por cidades.

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O subprograma PNHU é destinado aos moradores de centros urbanos, de acordo com

as faixas de renda bruta mensal das famílias, agrupados nas seguintes formas de atendimento:

Renda de até R$ 1.800,00 (mil e oitocentos reais) podem ser atendidas pelas modalidades da

FAIXA 1, quais sejam, MCMV Faixa 1, MCMV Entidades, ou MCMV Financiamento; renda de

até R$ 6.500,00 (seis mil e quinhentos reais) podem ser atendidas apenas pela modalidade

MCMV Financiamento, dividida em FAIXA 1,5, FAIXA 2 ou FAIXA 330.

As modalidades ‘Minha Casa Minha Vida Entidades’ e ‘Minha Casa Minha Vida Sub

50’ foram criadas em face das reivindicações de quatro movimentos nacionais de moradia

(UNMP, MNLM, CMP e CONAM) antes de seu lançamento em 2009. A primeira modalidade

– fruto da reivindicação do movimento de moradia do Fórum Nacional de Reforma Urbana31 –

é destinada a faixa 1, para a produção de moradias por associações e cooperativas

autogestionadas; essa modalidade permite que famílias organizadas de forma associativa, por

uma Entidade Organizadora habilitada, produzam suas unidades habitacionais. A segunda

modalidade é destinada a municípios com menos de 50 mil habitantes (ROLNIK, 2015).

Já o PNHR visa subsidiar a produção ou reforma de imóveis aos agricultores familiares

e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse de recursos do orçamento geral

da União ou de financiamento habitacional com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de

Serviço - FGTS. Nessa modalidade não valem os critérios de corte por renda familiar mensal,

mas pela renda anual da família, que deve ser de até R$ 78.000,00, valor esse determinado em

grande medida pela sazonalidade das safras ou produção agropecuária.

Não obstante o foco principal do Programa ser facilitar a conquista da casa própria

para as famílias de baixa renda (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016), o Minha Casa Minha Vida

Financiamento, também conhecido como Minha Casa Minha Vida Empresas32, é o núcleo duro

dessa política, o que se verifica pelo fato de apenas 1 bilhão de reais, de 34 bilhões investido

no Programa, ter sido destinado às modalidades MCMV Entidades e PNHR, quando do seu

lançamento. Importante ressaltar que as modalidades e MCMV Entidades, PNHR e MCMV Sub

50 representavam menos de 10% do total de unidades e recursos previstos no lançamento do

Programa (ROLNIK, 2015).

30 Valores a partir de 2016, conforme informações do Senado Federal. 31 O FNRU é uma articulação nacional que reúne movimentos populares, sociais, ONGs, associações de classe e

instituições de pesquisa com a finalidade de lutar pelo Direito à Cidade, modificando o processo de segregação

social e espacial para construção de cidades verdadeiramente justas, inclusivas e democráticas. Cf.

http://forumreformaurbana.org.br/quem-somos/. Último acesso em 15.02.2017. 32 Denominação utilizada por Raquel Rolnik (2015, p. 303) e alguns Urbanistas para se referir a modalidade Minha

Casa Minha Vida Urbano sem a inclusão das modalidades MCMV Faixa 1, MCMV-Entidades e MCMV- Sub 50.

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Na faixa 1, a execução do Programa se dá por meio do Fundo de Arrendamento

Residencial – FAR, um fundo público alimentado pelo orçamento federal. Nessa modalidade, a

construtora define o terreno e o projeto, aprova-o junto aos órgãos competentes e vende,

integralmente, o que produzir para a Caixa, sem gastos de incorporação imobiliária e

comercialização, e sem risco de inadimplência dos compradores ou vacância das unidades. A

Caixa define o acesso às unidades a partir de listas de demanda, elaboradas pelas prefeituras.

Os municípios têm, como incumbência, cadastrar as famílias com rendimentos estabelecidos

até a faixa 1, entre outros requisitos33, além da participação por meio da doação de terrenos,

isenção tributária e desburocratização nos processos de aprovação e licenciamento e também

na flexibilização das normas urbanísticas para permitir aumentar os índices de utilização do

solo nos empreendimentos do MCMV (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Rolnik explica que:

Em suma, esta modalidade oferece um produto quase totalmente subsidiado,

construído por empresas privadas, mas distribuído pelos governos locais. Os

moradores são obrigados a pagar uma taxa mensal, que corresponde a 5% da

renda familiar (o valor foi fixado posteriormente em 50 reais mensais para

essa faixa) – para a Caixa, uma vez que é a instituição responsável por comprar

as unidades da empresa encarregada da construção. A diferença entre o custo

da unidade e a quantia total paga pelos moradores é coberta por recursos do

FAR (ROLNIK, 2015, p. 303).

Na faixa 1,5, também, há a concessão de subsídios, porém, em menor grau que na

Faixa 1, pois os compradores dispõem de um subsídio direto que vai até R$ 45.000,00 (quarenta

e cinco mil reais). Na faixa 2, o subsídio direto vai até 27.500 (vinte e sete mil e quinhentos

reais), cerca de 20% do valor da unidade no momento da assinatura do contrato. Nessas duas

faixas, os compradores também são beneficiados por linhas de crédito com taxas de juros abaixo

das condições de mercado e pela concessão de garantia pelo Fundo Garantidor da Habitação –

FGHAB. Na faixa 3, não há a concessão de subsídios, apenas de créditos mais baratos e a

garantia do FGHAB (ROLNIK, 2015).

Nas faixas 1,5; 2 e 3, o financiamento se dá com recursos do FGTS e tanto a construção

como a comercialização das unidades habitacionais são feitas diretamente pela empresa privada

que construiu os imóveis (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2016). A produção ocorre por oferta,

ou seja, as construtoras/ incorporadoras apresentam projetos de empreendimentos à Caixa, que

realiza a pré-avaliação e autoriza o lançamento e comercialização; após a conclusão da análise

33 A família não pode ser proprietária de outro imóvel, não pode ter sido atendida em outro programa habitacional,

não ter restrições cadastrais. Tem prioridade a família que tem mulher como chefe, com presença de deficientes

físicos na família, e que vivam em área de risco. A isto somam-se requisitos adicionais definidos por cada

município, seguindo parâmetros próprios de vulnerabilidade e territorialidade.

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e comprovação da comercialização mínima exigida, é assinado o Contrato de Financiamento à

Produção (CARDOSO; ARAGÃO, 2013). Nesse caso, a Caixa financia a produção e fornece

subsídios para quem quiser comprar as unidades, mas os riscos e responsabilidades são

assumidos pela empresa (ROLNIK, 2015). A comercialização é feita pelas construtoras ou

através dos “feirões” da Caixa, havendo a possibilidade de que os pretendentes à aquisição

consigam uma carta de crédito na Caixa para ir ao mercado buscar uma moradia para aquisição.

Em todos os casos, existe um teto de preço para que o projeto se beneficie dos subsídios e

condições de credito, esse teto tem valor distinto em cada cidade.

A modalidade MCMV Entidades é, também, direcionada para a faixa 1, mas o

financiamento se dá por meio do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS)34. Cardoso e Aragão

(2013) explicam que as entidades sem fins lucrativos como cooperativas e associações de

moradia apresentam projetos à Caixa, que efetua as análises e, após sua conclusão, envia ao

Ministério das Cidades a relação de projetos para seleção. O Ministério das Cidades faz a

seleção e reencaminha para a Caixa que aguarda o envio, pela entidade selecionada, da lista de

beneficiários a serem atendidos. A Caixa efetua a análise de enquadramento dos beneficiários

indicados, contrata a operação e acompanha a execução da obra. Nessa modalidade, pode haver,

ou não, parceria com Estados e Municípios.

Na modalidade MCMV Sub 50, Cardoso e Aragão (2013) explicam que o

financiamento é operado por meio de agentes financeiros privados, e não pela Caixa

Econômica. A operacionalização dessa modalidade é feita por meio de oferta pública de

recursos. As instituições financeiras se inscrevem e são selecionadas pela Caixa, que, em

conjunto com o Ministério das Cidades, define e publica o volume de recursos destinado a cada

agente financeiro, ficando cada agente responsável por uma determinada região. O Ministério

das Cidades também recebe, via site, o cadastro de propostas dos entes federados, que são então

selecionadas tendo, como referência, o déficit habitacional municipal. Os agentes financeiros

são os responsáveis pela análise de risco e contratação das propostas selecionadas, e por manter

o Ministério das Cidades informado sobre as contratações.

A análise das modalidades que estruturam o PMCMV leva a percepção que esse é um

programa de crédito tanto ao consumidor quanto ao produtor, mas que concede excessivo

privilégio ao setor privado, tanto em termos de recursos, uma vez que 90% dos recursos

destinados ao Programa são para o MCMV-Empresas, como por deixar ao livre alvedrio desse

34Segue-se nesse caso o mesmo modelo anteriormente adotado no Programa Crédito Solidário.

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setor a localização, escala e qualidade arquitetônica e construtiva de novos empreendimentos

(ROLNIK, 2015).

O MCMV se revelou um grande Programa para resolver, em parte, o problema do

déficit quantitativo de moradias, no entanto retroagiu no sentido de construir políticas públicas

para garantir o Direito à Moradia digna, que é o que se persegue desde o Projeto Moradia. Na

ânsia de poder viabilizar o maior número de empreendimentos, o PMCMV negligenciou em

vários eixos. Diversos estudos, efetivados em âmbito nacional, evidenciam que o PMCMV tem

produzido significativa construção de conjuntos e condomínios habitacionais com localizações

periféricas nas cidades, com escassez de infraestrutura, equipamentos sociais e transporte

público (SHIMBO, 2011; CARDOSO, 2013; ROLNIK, 2015; BENTES SOBRINHA, SILVA,

TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015).

Não obstante a disposição normativa de o art. 5º, da Lei nº 11.977/09 (BRASIL, 2009),

determinar que os empreendimentos no âmbito do PNHU deverão observar: I) a localização do

terreno na malha urbana e as disposições do plano diretor, II) a adequação ambiental do projeto,

III) infraestrutura básica incluindo vias de acesso, iluminação pública, solução de esgotamento

sanitário e de drenagem de águas pluviais, ligações domiciliares de abastecimento de água e

energia elétrica; IV) a existência ou compromisso do poder público local de instalação ou de

ampliação dos equipamentos e serviços relacionados à educação, saúde, lazer e transporte

público; na prática, observamos que os empreendimentos do PMCMV, faixa 1, geram um

afastamento dos grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda a sua

infraestrutura, para as periferias, onde se evidencia a ausência de serviços públicos.

As soluções arquitetônicas, que são convencionais e se repetem no Brasil inteiro, não

se adaptam às necessidades regionais da população. Neste sentido, Cardoso (s/d) explica que

“foram feitos projetos com custos condominiais relativamente altos, fato que irá gerar

implicações para a família com renda mais baixa. Ou seja, o governo dá o subsídio para a família

– que não precisa pagar prestação ou apenas uma prestação pequena -, mas ela tem de pagar um

condomínio caro”, e continua o referido urbanista:

Outro problema é que dentre as soluções construtivas que estão sendo usadas

nas habitações do Minha Casa, Minha Vida, sobretudo para reduzir custos,

muitas delas não são adequadas, visto que não permitem ao morador uma

flexibilidade de adaptação ao seu modo de vida. Por exemplo, algumas

construtoras usam “forma túnel” – paredes de concreto -, mas se o morador

quiser furar um buraco para colocar um quadro ou abrir uma porta, ele não

consegue. Em outros casos, são utilizadas alvenarias de tão baixa qualidade

que quando o morador vai furar, cai tudo – temos estudos de casos em São

Paulo que confirmam isso (CARDOSO, s/d)

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Em face destas e outras inúmeras falhas, fica explicitada a falta de regulação e de

diretrizes do MCMV com relação à qualidade e a sua adaptação à população de baixa renda.

Este quadro se agrava quando se constata que, na prática, os outros programas existentes35

deixaram de ser ofertados pelas unidades gestoras da Caixa Econômica Federal, não havendo

alternativas habitacionais a custos mais reduzidos, como lotes urbanizados e/ou material de

construção com assistência técnica, tampouco há um estimulo a outras formas de acesso à

moradia, como a ocupação de imóveis construídos vagos.

As críticas feitas ao Programa, em âmbito nacional, permitem observar que os

empreendimentos do MCMV, faixa 1, potencializam uma série de problemas urbanos que leva

os contemplados a uma luta constante pela habitação de qualidade e pelo Direito à Cidade,

confirmando haver uma priorização da quantidade em detrimento da qualidade dos

empreendimentos. Não obstante o exposto, os discursos dos gestores sobre o PMCMV, são

permeados de afirmações que levam ao entendimento de que as casas oferecidas são o

passaporte para a cidadania dos novos moradores. Nesse sentido, vejamos trechos de discursos

do prefeito de Natal e da ex-presidente Dilma Rousseff:

Não importa qual prefeito, de não importa qual cidade do mundo, ficaria muito

feliz de estar hoje nesta inauguração que participa de uma política pública tão

fundamental para a cidadania (PORTAL da Prefeitura Municipal de Natal, 2014).

A casa é a base da cidadania. As famílias precisam ter o seu espaço. O lar é

sagrado e o compromisso dessa gestão é trabalhar para que cada vez mais

natalenses tenham uma moradia digna (PORTAL G1, 2015).

Este Programa mostra que o nosso país avançou, e avançou de forma muito

rápida nos últimos tempos. Este dia de hoje, ele marca um momento especial,

que é o lançamento da segunda etapa de um Programa que tem um aspecto

social, cidadão, que eu acredito que é profundo porque trata-se de construir

as condições para que as pessoas cheguem ao chamado sonho da casa

própria, que é muito mais que um sonho porque trata-se do espaço onde se

constroem as relações afetivas, porque é ali que se criam os filhos, se

estabelecem as ligações familiares. É ali que as pessoas conseguem atingir

aquele sonho que acompanha a Humanidade desde o início da sua

transformação, que é o sonho do abrigo, da proteção e da segurança. Então,

esse espaço é o espaço que nós chamamos de ‘lar’, um espaço onde se

organizam, onde vivem e onde sobrevivem e lutam as famílias deste país. Por

isso, hoje é um momento muito especial [...] melhorar a vida de cada um dos

brasileiros e das brasileiras não é só um compromisso moral profundo. Mas

melhorar a vida de cada um deles é assegurar que este país explore todo o

35FGTS - Operações Coletivas, Crédito Solidário, Habitar Brasil/BID, Imóvel na Planta – Associativo – Recurso

do FGTS, Programa Morar Melhor, Programa Nacional de Crédito Fundiário, Pró-Moradia, Urbanização e

Regularização e Integração de Assentamentos Precários. Cf. Programas de Habitação no site da Caixa Econômica

Federal. Disponível em: http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/programas_habitacao/. Acesso em

13.10.2016.

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seu potencial, que é ter cidadãos e cidadãs brasileiras capazes de trabalhar,

consumir, e sobretudo inovar, se educar. E nós, aí, sim, podemos dizer que

somos um país desenvolvido, rico e, portanto, um país sem miséria. Daí

porque o Minha Casa, Minha Vida faz parte de um programa que tem um lado

muito forte, que complementa o Brasil sem Miséria. E também faz parte de

uma outra corrente que trata de dar qualidade à vida dos setores médios novos

e dos setores médios tradicionais, junto com o ProUni, junto com o programa

de financiamento da educação, junto com o programa de reforço do ensino

técnico no Brasil [...] eu tenho certeza de que com dedicação, com

solidariedade, buscando a cidadania, buscando realizar o sonho de milhões

de brasileiros, buscando facilitar, e permitir que no governo e na relação com

os empresários as coisas ocorram com eficiência, nós conseguimos realizar

não só o Minha Casa, Minha Vida para brasileiros individuais, mas

considerando também a característica de que uma nação é uma variante de

um lar, acho que o Brasil virou cada vez mais a nossa casa e a nossa vida

(DILMA ROUSSEFF, 2011).

Por isso, quando vocês entrarem por aquela porta ali, vocês vão entrar de

cabeça erguida e com muito orgulho no coração, porque a casa vocês não

devem a ninguém, a não ser ao fato de serem cidadãos e cidadãs brasileiras. E

eu insisto nesse ponto: essas casas vocês não devem ao prefeito, ao governador

ou à presidente da República. Ela é fruto de uma visão de governo em que nós

somos obrigados a olhar para aqueles que mais precisam [...] por isso, entrar

de cabeça erguida é saber que esse é um ato de cidadania. É garantir que o

povo brasileiro tenha onde morar. (DILMA ROUSSEFF, 2014).

Em face de tais considerações, passamos à leitura dos tópicos e capítulo seguinte a fim

de responder se o PMCMV amplia ou prejudica o sentido de Cidadania da população analisada

e se a moradia é condição básica para que a Cidadania ocorra de modo ampliado.

3.2. O Programa Minha Casa Minha Vida e sua expressão física territorial na Região

Metropolitana de Natal e na Cidade de Natal

A Região Metropolitana de Natal (RMN), composta por quatorze municípios36, possui

51 empreendimentos do PMCMV (faixa 1), dos quais 41 se localizam na Metrópole Funcional37

(CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2015). Só no município de Natal – polo da RMN – há 14

36 A Região Metropolitana de Natal é composta pelos seguintes município: Natal, Parnamirim, São Gonçalo do

Amarante, Extremoz, Macaíba, Ceará-Mirim, São Jose de Mipibu, Maxaranguape, Monte Alegre, Nísia Floresta

e Vera Cruz, Ielmo Marinho, Arês e Goianinha. 37 A Metrópole Funcional é composta por Natal e pelos municípios que possuem alta integração com ele: Extremoz,

Macaíba, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante.

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empreendimentos do Programa na faixa 138, sendo considerado o segundo município39 com

maior número de empreendimentos do PMCMV e, também, com maior déficit habitacional

nessa Região. Nesse sentido,

Em 2010, dados da Fundação João Pinheiro (2013) indicam um déficit

habitacional de 53.501 unidades na RMNatal, o que equivale a 13,70% da

quantidade total de domicílios particulares permanentes dessa região. Natal,

cidade-polo, concentra quase 65% deste déficit, decorrente do passivo

existente no município, em termos de produção e/ou aquisição de unidades

habitacionais. Já o déficit habitacional metropolitano na faixa de interesse

social naquele momento era de 35.519. Natal, por sua vez, possuía um déficit

de 62,46% na referida faixa. Neste sentido, o processo de implementação do

PMCMV, na Região Metropolitana de Natal, colocou-se na perspectiva de

enfrentamento desse déficit habitacional e de reassentamento de populações

situadas em núcleos favelados, face às novas intervenções urbanas (BENTES

SOBRINHA, SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, SILVA, 2015,

p.324).

Embora apresentasse um déficit habitacional calculado em 62,46% na faixa de

interesse social, no ano de 2010, Natal não conseguiu deslanchar a construção de novas

moradias na primeira fase do Programa, sendo sua quota de 5 mil residências redistribuída para

outros municípios, em virtude da falta de projetos para análise, bem como de um banco de

inscritos compatível com os critérios estabelecidos pelo Governo Federal. Na segunda fase do

Programa, foram entregues 13 empreendimentos e na terceira fase foi entregue um40 (TRIBUNA

DO NORTE, 2014).

As áreas onde estão situados os empreendimentos do PMCMV, na RMN, são distantes

e muitas vezes desarticuladas com o núcleo urbano consolidado de cada município. Em Natal,

os empreendimentos do PMCMV, da faixa 01, se localizam predominantemente na Região

Administrativa Oeste da cidade, a qual se caracteriza pela existência de vazios urbanos,

formados, em sua maioria, por grandes glebas, bem como por haver recepcionado projetos de

urbanização integrada para famílias que residiam em áreas de risco (BENTES SOBRINHA;

38 Os empreendimentos são: Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV, Vilagge I Humberto Nesi, Vilagge II

Noilde Ramalho, Vilagge II Elino Julião, Vilagge III Severino Souza, Village III José Prudêncio, Vilagge IV

Mestre Lucarino, Vilagge V João Batista, Vilagge VI Julio Lira (todos no bairro do Guarapes e com 224 unidades

habitacionais cada um), Residencial Morar Bem (no bairro de Pajuçara, com 176 unidades habitacionais) e o

Residencial São Pedro (no bairro das Rocas, com 200 unidades habitacionais). Apenas os 13 primeiros constam

na base de dados SIAFI-PMCMV/CEF (CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, 2015), o último foi entregue após a

publicação desta base de dados, na data de 24 jun. 2016. 39 O primeiro Município com o maior número de empreendimentos é Parnamirim. 40 O Residencial São Pedro (Rocas), que abrigou aproximadamente 170 famílias da comunidade do Maruim, outras

30 famílias oriundas do bairro de Mãe Luiza e da Comunidade do Jacó (que tiveram casas atingidas por desabamentos),

bem como de algumas localidades da Zona Norte.

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SILVA; TINOCO; FERREIRA; GUERRA; SILVA, 2015, p. 342). Nesse sentido Campos explica

que:

[...] as áreas as quais estão situados os empreendimentos do PMCMV no caso

da nossa realidade de RMN, são distantes e muitas vezes desarticuladas com

o núcleo urbano consolidado de cada município, como foi visto nos capítulos

anteriores. Aquele consumidor que se enquadra na classe de baixo poder

aquisitivo, principalmente, fica refém dessa alternativa de oferta da casa

própria justamente porque representa a única alternativa oferecida pelo

mercado imobiliário. Chega-se como produto final, a uma unidade

habitacional ‘articulada’, em termos metropolitanos, sob o ponto de vista da

proximidade com às rodovias, em alguns casos, e desarticulada em relação à

cidade-polo, Natal, a qual detém a concentração de prestação de serviços e

comércio, conforme foi visto nos capítulos 02 e 05. Observa-se que os

municípios da RMN, apresentam mais um agravante na articulação

metropolitana, a dificuldade de acesso aos transportes públicos utilizados pela

grande massa populacional de poder aquisitivo baixo que é prejudicada pela

má qualidade dos serviços e pela baixa oferta dos mesmos, tornando o acesso

às áreas mais urbanizadas e infraestrutura ainda mais difícil (CAMPOS, 2015,

p. 178).

Na Região Administrativa Oeste, o bairro do Guarapes é o mais representativo em

concentração de empreendimentos do PMCMV da faixa 01, contando com 12 empreendimentos;

são eles: Residencial Vivendas do Planalto I, II, III e IV (4 empreendimentos com 896 unidades)

e os condomínios Village da Prata (8 empreendimentos totalizando 1.792 unidades), que

receberam nomes de personalidades históricas da Capital Potiguar: Vilagge I – Humberto Nesi,

Vilagge II – Noilde Ramalho, Vilagge II – Elino Julião, Vilagge III – Severino Souza, Village

III – José Prudêncio, Vilagge IV – Mestre Lucarino, Vilagge V – João Batista, Vilagge VI –

Julio Lira.

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Imagem 1

Localização dos Empreendimentos Faixa 1 do PMCMV no Município de Natal

Fonte | Ferreira (2016)

Ao discorrer sobre a inserção urbana, a qualidade dos projetos do PMCMV e seus

efeitos na segregação socioespacial, especificamente na cidade de Natal, Bentes Sobrinha;

Silva; Tinoco; Ferreira; Guerra; Silva (2015, p. 324) explicam que “[...] num processo de

afirmação metropolitana, vivenciado nos últimos 20 anos, o PMCMV veio juntar-se a um

conjunto de projetos urbanos e territoriais com fortes impactos sobre a configuração

socioespacial da RMNatal”, como a construção da Ponte Forte - Redinha, a ampliação do Porto

de Natal, a construção do Estádio de Futebol Arena das Dunas, além das obras de mobilidade

urbana; no entanto, enquanto essas intervenções atuaram visando reforçar a centralidade de

Natal como polo metropolitano, já o PMCMV evidenciou um movimento de reforço aos

processos de fragmentação do espaço urbano, com expansão das periferias. Para os referidos

autores

Esse duplo movimento – centralização de Grandes Projetos Urbanos e

descentralização através do PMCMV - revela como efeito primário a expansão

da mancha urbana e, secundariamente, a alteração dos preços do solo urbano,

tanto nos subcentros (bairros de maior renda e oferta de serviços), quanto nas

periferias (áreas recentemente ocupadas, com forte presença de famílias de

baixa renda). Assim, as implicações do PMCMV estão sobredeterminadas na

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estruturação do espaço de transbordamento urbano de Natal, tendo

contribuído ainda para ampliar o quadro de desigualdade e segregação

socioespacial, constituído historicamente (BENTES SOBRINHA; SILVA;

TINOCO; FERREIRA; GUERRA; SILVA, 2015, p. 324-325).

A crescente expansão das periferias deveu-se a uma indisponibilidade de áreas de

baixo custo para investimentos imobiliários em Natal – onde os terrenos mais centrais têm

preços muito elevados – o que acabou estruturando a produção de um novo espaço, carente de

serviços e com difícil acesso das pessoas às áreas centrais, mantendo-se, ao mesmo tempo,

glebas e terrenos urbanos vazios próximos dessas áreas em que há maior acessibilidade,

infraestrutura e serviços públicos (MOURA, 2014).

Em face do exposto, podemos observar que os empreendimentos do PMCMV, da faixa

1, na RMN, afastaram os grupos mais pobres da população das áreas mais centrais, e de toda

sua infraestrutura, para as periferias, onde se evidencia a ausência de serviços públicos e

aumento das distâncias, encarecendo os investimentos para a implantação de serviços públicos,

elevando os custos de moradia, reduzindo a qualidade de vida da população e impactando

diretamente no cotidiano dos moradores, que passaram a ter dificuldades de conceber suas

práticas e relações sociais nesse espaço quase sem vizinhança, distante da vida urbana.

São constantes os relatos, em jornais, falando das dificuldades enfrentadas por

moradores contemplados pelo PMCMV. Ao relatar a situação vivenciada por moradores do

MCMV, faixa 1, em Parnamirim, o jornal Tribuna do Norte afirma que a distância do centro e

a falta de equipamentos públicos, bem como a deficiência no sistema de transporte de

passageiros são algumas das reclamações feitas pelos moradores do local, vejamos:

A sombra do muro do condomínio é a única proteção contra o sol escaldante

de quase 11h de uma quinta-feira com temperatura elevada. Há mais de uma

hora a dona de casa espera o ônibus que insiste em desrespeitar o horário.

Janiele Karine, 34 anos, tem nos braços o filho que, naquele dia, contemplava

5 anos de idade. O peso da criança é mais um obstáculo a ser superado. O

menino não tem forças para ficar em pé. Está doente e acabar de vomitar. A

mãe aguarda o transporte público para levar a criança ao posto de saúde que

fica longe, a mais de quatro quilômetros de distância do local. Janiele Karine

mora em um dos 496 apartamentos do residencial Terras de Engenho 2. O

empreendimento do ‘Minha casa, Minha Vida’ faz parte do conjunto

habitacional que, ao todo, abriga 922 famílias e foi entregue pela Prefeitura de

Parnamirim há um ano. Os apartamentos foram erguidos na estrada de

Japecanga, a 10 quilômetros do Centro de Parnamirim e apresentam

problemas apontados na pesquisa contratada pelo Ministério das Cidades e

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Distância

do Centro e falta de equipamentos públicos, bem como deficiência no sistema

de transporte de passageiros são algumas das reclamações feitas pelos

moradores do local. [...] A também dona de casa Janaína da Silva, 32 anos,

lamenta a inexistência de creches na região, ela fica impossibilitada de

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procurar emprego. [...] Ainda em Parnamirim, a cidade cuja administração

municipal orgulha-se de ter mais de 5 mil apartamentos financiados pelo

Minha Casa Minha Vida-, é fácil encontrar outros empreendimentos com

problemas estruturais e sociais. No residencial Waldemar Rolim, localizado

no bairro Vale do Sol, os moradores estão, há mais de um mês, convivendo

com problemas relacionados ao saneamento [...] de acordo com a sub-síndica

Glecia Marilac, o problema foi ocasionado por reparos na rede de esgoto

quando solicitado [...] No mesmo condomínio, também foram registrados

episódios de violência. A dona de casa Francisca Valéria, 38 anos, divide o

apartamento com cinco filhas e o marido. Ela está grávida de gêmeos e filha

maior, de 16 anos, também está grávida. “Quebraram a janela e invadiram

minha casa. Levaram tudo. Não tem segurança alguma. Vive acontecendo

brigas e ameaça de morte. ‘e uma tristeza’, lamenta (TRIBUNA DO NORTE,

2015).

Quanto à RMN, Tinoco, Bentes Sobrinha e Lima afirmam que:

Na Região Metropolitana de Natal, os impactos da implantação do PMCMV

decorrentes dessas situações de contiguidade, têm provocado um significativo

aumento da densidade em várias porções do território, provocando também o

aumento da demanda por serviços, comércio, transporte e por espaços e

equipamentos de uso coletivo, espaços de lazer e convívio existentes nos

empreendimentos, sobretudo nos condomínios verticais, encontram-se

degradados, apesar do pouco tempo de implantação. A utilização para prática

de atividades ilícitas, atos de vandalismo e prostituição, coloca em evidência,

tanto a fragilidade do trabalho social, quanto a inadequação do projeto ao

perfil dos moradores (TINOCO; BENTES SOBRINHA; LIMA, 2015, p. 3).

Concomitante ao problema da segregação socioespacial e da falta de condições

adequadas de habitabilidade urbana (estruturas viárias, serviços como creches, escolas, postos

de saúde, segurança e transporte, etc.), os empreendimentos construídos na RMN evidenciam

uma baixa qualidade arquitetônica e construtiva (MOURA, 2014; BENTES SOBRINHA,

SILVA, TINOCO, FERREIRA, GUERRA, 2015; TINOCO; BENTES SOBRINHA; LIMA,

2015), confirmando as críticas feitas ao Programa, já descritas no item anterior (3.1).

Os impactos desoladores causados no espaço urbano pelo PMCMV podem ser

observados nas diversas metrópoles do Brasil e não apenas na RMN, levando a percepção de

que este formato de produção habitacional – em que há uma quantidade expressiva de

empreendimentos contíguos, padronizados e concentrados em áreas específicas – ocasiona

sérias implicações para o ordenamento urbano e para o planejamento das ações locais, não

apenas por ter que se pensar novas formas de garantir que os equipamentos e infraestruturas da

cidade cheguem a esses locais mais distantes, mas também, porque o resultado desse processo

leva a uma distribuição seletiva das camadas sociais, resultando na formação de regiões

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monofuncionais e de homogeneidade social, tanto em termos de renda quanto de tipologia e

uso.

Em face do exposto, entendemos que uma política pública habitacional nos moldes do

PMCMV potencializa uma série de problemas, que vão desde a luta do indivíduo pela habitação

de qualidade até o acesso à cidade. A fim de verificar de perto os efeitos dessa política de

moradia na consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade,

realizamos uma pesquisa de campo no empreendimento Residencial Vivendas do Planalto,

localizado no bairro Guarapes, Região Administrativa Oeste do Município de Natal/RN,

conforme será visto no capítulo seguinte.

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4. Pesquisa de Campo: abordagens e resultados

4.1 O lócus do estudo

A pesquisa de campo foi desenvolvida em quatro empreendimentos contíguos de

tipologia híbrida (blocos verticais implantados em lotes preexistentes), denominados

Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV, localizados no bairro Guarapes, Região

Administrativa Oeste do Município de Natal. Apesar de ser composto por projetos diversos,

com registros específicos para as distintas fases de implantação, a configuração urbana sugere

ser um único empreendimento.

Imagem 2

Localização do Residencial Vivendas do Planalto no Bairro Guarapes

Fonte | Imagens ©2017 Google, CNES/Astrium. Dados do mapa ©2017 Google

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Imagem 3

Configuração do empreendimento vista de cima pelo Google Earth

Fonte: Imagens ©2017 Google,CNES / Astrium,Dados do mapa ©2017 Google

O local foi objeto de estudo pelo LabHabitat – DARQ – UFRN41 e os resultados

publicados no Relatório de Pesquisa: Chamada MCTI/CNPQ/MCIDADES nº11/2012 (BENTES

SOBRINHA; SILVA; GUERRA; TINOCO; FERREIRA, 2015), no livro Minha Casa... e a Cidade?

Avaliação do Programa Minha Casa Minha Vida em Seis Estados Brasileiros (BENTES

SOBRINHA; SILVA; GUERRA; TINOCO; FERREIRA, SILVA, 2015) e no artigo Degradação

de espaços coletivos e de sociabilidade em condomínios verticais do PMCMV: um problema

de projeto? (TINOCO, BENTES SOBRINHA, LIMA, 2015). Nessa perspectiva, recorremos a essa

base de dados para caracterizar o lócus do estudo.

O Residencial Vivenda do Planalto I, II, III, IV abriga uma população estimada em

3.584 habitantes, contemplada pelo PMCMV, que é oriunda de dois grupos: um de sorteados –

conhecido como demanda aberta; o outro, compondo a demanda fechada, originária dos

assentamentos Anatália, 8 de Outubro e Monte Celeste, com expressivos níveis de

insalubridade e precariedade da habitação42, conforme descrevem Silveira, Moura e Furukava:

41 Laboratório de Habitação (LabHabitat) do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte (DARQ-UFRN) 42 O empreendimento foi entregue em quatro etapas pela Prefeitura de Natal, primeiro, na data de 17/05/2014

foram entregues as chaves a 448 famílias que conquistaram a moradia por meio do sorteio. Em 20/05/2014 foram

entregues as chaves às famílias oriundas do assentamento “8 de Outubro”, do Planalto, depois no dia 23/05/2014

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[...] os barracos eram pequenos, desconfortáveis, à mercê do calor e da chuva.

Ao redor da ‘propriedade’, eram cultivadas frutas e verduras, além da criação

de animais. Ainda existiam as caçambas e todo o amontoado de recicláveis

acumulados pelos habitantes (SILVEIRA; MOURA; FURUKAVA, 2015, p.

9)

O grupo dos sorteados seguiu critérios do PMCMV, entre os quais, famílias com

mulheres responsáveis pela unidade familiar e famílias com pessoas portadoras de deficiência;

o processo de cadastramento, seleção, hierarquização e habilitação ficou sob a responsabilidade

da Secretaria Municipal de Habitação, Regularização Fundiária e Projetos Estruturantes

(SEHARPE), com execução e gestão vinculada ao Departamento de Ação Social e Projetos

Especiais (DASPE). A metodologia adotada reuniu diferentes perfis de renda em um mesmo

espaço, havendo, entre os contemplados, usuários com renda mensal de 0 a 3 salários mínimos.

O gradiente do perfil socioeconômico do conjunto é o responsável por diversos conflitos de

vizinhança.

O empreendimento possui 896 unidades habitacionais, divididas em quatro partes com

224 unidades cada uma. Ao todo são 112 blocos, verticalizados em dois andares, sendo 4

unidades por pavimento. Os blocos apresentam quatro unidades habitacionais por pavimento e

planta “H”, resultando em 16 unidades em cada lote. Todos os blocos possuem espaço para

estacionamento de um veículo por unidade. Há unidades adaptadas no pavimento térreo, com

vagas acessíveis para portadores de necessidades especiais. Conforme Moura, Silveira e

Furukava (2015) a unidade habitacional foi orçada em R$52.000 mil reais enquanto a prestação

a ser paga pelo beneficiário varia entre R$25,00 e R$80,00.

Imagem 4

Partido Urbanístico e Tipologia Habitacional do Residencial Vivendas do Planalto

Fonte | Bentes Sobrinha; Silva, Guerra; Tinoco; Ferreira (2015)

foi a vez das famílias oriundas do assentamento “Anatália”, do bairro Guarapes, e em 27/05/2014 foi a vez das

famílias vindas do assentamento “Monte Celeste”, do bairro Planalto.

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Imagem 5

Bloco de apartamentos

Fonte | Arquivo próprio

As vias são largas e de paralelepípedos, separadas por canteiros centrais e margeadas

por calçadas acessíveis, dotadas de iluminação pública. Há medidores de água e energia

individualizados por unidade habitacional. Os quatro empreendimentos contam com apenas

uma área central, que contém uma praça para lazer e recreação infantil, uma quadra de esportes

e um centro comunitário, no entanto, devido à contiguidade dos quatro empreendimentos,

resultou em um espaço concentrado, centralizado e distante dos blocos localizados nas

extremidades do conjunto, não atendendo ao porte do empreendimento

Imagem 6

Canteiro central

Fonte: Arquivo próprio

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Imagem 7

Área central do Conjunto Residencial Vivendas do Planalto I, II, III e IV.

Fonte: Arquivo próprio.

No que tange às relações entre o edifício e o exterior, verificamos a ausência de

espaços de sociabilidade como halls de entrada, escadas, pátios frontais. Em virtude da falta de

espaço no interior dos apartamentos para suprir as necessidades de âmbito familiar, observamos

a ocupação de recuos laterais com a criação de varandas, quintais e prolongamentos da cozinha

e área de serviço em áreas coletivas, bem como dos recuos frontais com estruturas precárias

para instalação de comércio, secagem de roupa e instalação de muro. Os espaços destinados às

garagens resultaram em diversas formas de apropriação, haja vista a maioria das famílias não

possuírem automóveis.

Imagem 8

Ocupação de recuos laterais

Fonte | Arquivo próprio

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Quanto ao aspecto social, as pesquisas mencionadas constataram que a inserção desse

empreendimento ocorreu em uma área com alto nível de precariedade na oferta de

equipamentos e serviços públicos para os moradores. Dados do Censo 2010 (BRASIL, 2010)

apontam que, no setor censitário onde o Residencial Vivendas do Planalto (I, II, III e IV) foi

construído, destaca-se a carência de infraestrutura e, principalmente, do esgotamento sanitário

(96,06%), seguido pela coleta de lixo (17,03%) e por abastecimento de água (13,62%),

percentuais superiores à média verificada no bairro Guarapes.

Imagem 9

Inserção Urbana do Residencial Vivendas do Planalto I, II, III, IV

Fonte | Ferreira (2016)

Reportagens de Jornal retratando a violência no Residencial Vivendas do Planalto são

comuns; as notícias retratam uma realidade de homicídios, vandalismo, tráfico de drogas e

insegurança, vivenciada pelos moradores, como observamos no trecho de reportagem do jornal

Tribuna do Norte em 22 de fevereiro de 2015:

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No próximo mês de maio, completa um ano desde que a Prefeitura do Natal

entregou as chaves de 448 apartamentos que formam a primeira etapa do

empreendimento ‘Vivendas do Planalto’. O conjunto habitacional, quando

finalizado, vai totalizar 896 apartamentos, distribuídos em 112 blocos. A obra

é financiada pelo Minha Casa Minha Vida e, assim como em outros

condomínios ligados ao programa, apresenta uma série de problemas sociais.

No vivendas, a violência chama atenção. De acordo com os moradores, foram

pelo menos 10 homicídios ao longo do último ano. As marcas da violência

estão espalhadas no condomínio e no discurso dos moradores. Além disso, a

construção de muros e fixação de portões e grades de ferro acusam que a

insegurança é predominante. O empreendimento foi concebido para ser do

tipo aberto e possui área com equipamentos comunitários, como praça,

playground, centro de convivência e quadra poliesportiva descoberta para,

teoricamente, atender os condôminos e a população da área adjacente. Mas

não é assim que funciona. Não demorou muito para o vandalismo tomar conta

do espaço. O centro de convivência está completamente destruído e a situação

só não é pior porque ergueram paredes de tijolos onde deveria existir janelas

ou portas de vidro e alumínio. ‘A gente juntou um dinheiro. Cada um deu uma

parte para poder construir o muro e colocar o portão. Se não for assim, roubam

tudo’, conta o auxiliar de pedreiro, Leandro Silva, 24 anos. [...] Outra

reclamação diz respeito aos efeitos da violência. Por causa da marginalidade,

motoristas de ônibus não querem passar pelo local à noite e serviços de entrega

de remédios e refeições também rejeitam pedidos dos moradores (TRIBUNA

DO NORTE, 2015).

No que se refere ao acesso à serviços de educação, observamos apenas um Centro

Municipal de Educação Infantil (CMEI) existente entorno imediato (500m), que se localiza no

assentamento Leningrado43, o qual não consegue atender à demanda existente, colocando a

necessidade de deslocamento para outros centros. Esse quadro, por sua vez, se agrava em razão

da precária oferta de transporte para os moradores. Quanto ao acesso a equipamentos coletivos

de saúde e segurança constatamos, no entorno expandido (1000m), uma Unidade Básica de

Saúde e uma Base da Polícia Militar.

Pela caracterização física e social, observamos que o Conjunto Residencial Vivendas

do Planalto evidencia graves problemas de acesso aos serviços e equipamentos urbanos pelos

moradores, configurando uma realidade social de precariedade em que, apenas, a propriedade

da casa parece não responder às profundas necessidades dos indivíduos da comunidade. Isso é

confirmado no resultado da pesquisa de campo na seção 4.3.

43 O Leningrado é conjunto habitacional localizado no bairro do Guarapes, Zona Oeste de Natal e fica ao lado do

conjunto Residencial Vivendas do Planalto. Foi criado em 08/04/2004 por ocupação de famílias oriundas de

diversas favelas de Natal/RN, principalmente das favelas do Fio, do Detran, Via Sul, Mãe Luiza. Na gestão do

Prefeito Carlos Eduardo (2004 a 2008) foram entregues 44 residências no local. Em 2009, a SEHARPE começou

a construção de mais casas para em seguida implementar os serviços básicos de infraestrutura. Em 2010 a

Prefeitura constatou a presença de 500 famílias morando no local (TRIBUNA DO NORTE, 2007; PORTAL G1,

2015a; PORTAL DA PREFEITRA, 2014).

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4.2. Entrevista qualitativa: Unidade de Análise, Procedimento e Interpretação das Entrevistas

Nas ciências sociais empíricas, a entrevista qualitativa é uma metodologia de coleta de

dados amplamente empregada. Ela é, como escreveu Robert Farr (1982, apud GASKELL;

BAUER, 2002, p. 65), "[...] essencialmente uma técnica, ou método para estabelecer ou

descobrir que existem perspectivas, ou pontos de vista sobre os fatos, além daqueles da pessoa

que inicia a entrevista [...]” e o pressuposto de que o mundo social não é um dado natural, sem

problemas, que ele é ativamente construído por pessoas em suas vidas cotidianas, mas não sob

condições que elas mesmas estabeleceram.

O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o mundo da vida dos

respondentes é o ponto de entrada para o cientista social, que introduz esquemas interpretativos

para compreender as narrativas dos atores em termos mais conceituais e abstratos, muitas vezes

em relação a outras observações. A entrevista qualitativa fornece os dados básicos para o

desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo

é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações em relação aos

comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos (GASKELL; BAUER, 2002).

Nesse sentido, a pesquisa utilizou, como técnica de investigação, entrevistas

qualitativas do tipo semiestruturado; tal técnica requer uma conversação continuada menos

estruturada, em que a ênfase é fazer perguntas dentro de um período relativamente limitado,

buscando compreender o mundo dos entrevistados e do grupo social especificado; nas palavras

de Couto Rosa e Arnoldi (2008) a entrevista semiestruturada permite a utilização de um roteiro

de tópicos previamente elaborado, mas as questões “[...] seguem uma formulação flexível, e a

sequência e as minúcias ficam por conta do discurso dos sujeitos e da dinâmica, que acontecem

naturalmente” (COUTO ROA E ARNOLDI, 2008, p. 31),. Ademais houve uma conversa em

grupo, oportunidade em que os moradores falaram abertamente sobre o Conjunto Residencial

Vivendas do Planalto.

Para elaboração das perguntas foram criados três eixos temáticos, baseados nos

elementos centrais do objeto de pesquisa, quais sejam: Direito à Cidade, Moradia e Cidadania,

bem como subeixos de análise (perguntas norteadoras).

No primeiro eixo temático, Direito à Cidade, foram formuladas perguntas cujas

respostas seriam ‘sim’ ou ‘não’, com espaços para observações, visando saber se o bairro e/ou

região é atendido pela oferta de serviços/equipamentos urbanos (saúde, educação, serviços

sociais, lazer, segurança) e por infraestrutura (fornecimento de água, rede de esgoto,

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fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, transporte público, pavimentação, iluminação

pública, correios e telefone público). Foram formulados, ainda, os seguintes questionamentos:

Você se sente integrado à cidade de Natal? Por quê? O que você gostaria que houvesse no

conjunto habitacional?

No segundo eixo temático, Moradia, foram formuladas as seguintes perguntas: Em

qual bairro ou comunidade você morava antes? Você prefere morar aqui ou em sua moradia

anterior? Por quê? Quais os benefícios de ter a propriedade da sua casa? O que significa ser

dono da sua casa? O que faria você se mudar daqui hoje? O que você mais gosta daqui? O que

você menos gosta daqui?

No terceiro eixo temático, Cidadania, foram formuladas as seguintes perguntas: O que

é ser cidadão para você? Como você se sente enquanto cidadão morando aqui? Ser dono da sua

casa foi suficiente para você se sentir pleno como cidadão?

Considerando que o objetivo dessa pesquisa qualitativa era identificar sinais – ou

tendências – da relação entre a obtenção da moradia e o sentido de cidadania para a população

de baixa renda, a aproximação com as famílias residentes no local escolhido foi indispensável

para a obtenção dos dados que necessitávamos. No entanto, ao mergulharmos nesse universo,

percebemos que adentrar na esfera da subjetividade, identidade e sentido de cidadania para estas

pessoas se apresentava algo bastante complexo, não apenas pela dificuldade destas em

colocarem-se, mas, ainda, pela dificuldade de disponibilizarem-se para as entrevistas. Do

conjunto de dados confiáveis que conseguimos filtrar, nove se mostraram referenciais para

representar o universo do contato que fizemos, portanto são dessas entrevistas apresentadas que

retiramos a conclusão do nosso trabalho. O perfil dos entrevistados selecionados para análise

nessa pesquisa é mostrado no quadro abaixo:

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Quadro 2

Perfil dos entrevistados

Entrevista Sexo Idade Estado

Civil Filhos

Quantidade

de filhos que

moram na

mesma casa

Profissão Escolaridade

1 F 34 Casada Sim 3 Do lar 2º grau completo

2 M 63 Solteiro Sim 0 Aposentado 2º grau completo

3 F 66 Solteira Sim 2 Do lar 1º grau

incompleto

4 F 22 União

Estável Não 0 Do lar

1º grau

incompleto

5 F 26 Casada Sim 4 Faz bico em

hotel

1º grau

incompleto

6 M 48 Solteiro Sim 2 Segurança 1º grau

incompleto

7 M 32 Casado Sim 3 Autônomo 1º grau

incompleto

8 M 61 Casado Sim 2 Aposentado 1º grau

incompleto

9 M 33 Solteiro Não 0 Desemprega

do

1º grau

incompleto

Fonte | Elaboração Própria

Tendo em vista a vontade de todos os entrevistados em manter o anonimato, não foram

dados nomes aos mesmos, de forma que foram tratados no item 4.3 (Resultados da Pesquisa de

Campo) pelos termos Morador e Moradora seguido do número da respectiva entrevista.

Ressaltamos, ainda, que buscando preservar o anonimato dos entrevistados não foram utilizados

termos de consentimento; ademais os moradores preferiram falar sem ter que assinar termos ou

se comprometer com qualquer formalidade.

O registro das entrevistas foi feito por meio de gravações com posterior transcrição,

visando garantir a sua interpretação adequada. No que diz respeito à interpretação dos dados

coletados foi realizada uma análise de conteúdo, mais especificamente uma análise categorial

simples, a qual, segundo Duarte (2004), é um recurso que encurta o caminho do pesquisador,

sobretudo quando se trata de pesquisadores iniciantes, devendo a análise obedecer ao seguinte

caminho

[...] pode-se tomar o conjunto de informações recolhidas junto aos

entrevistados e organizá-las, primeiramente, em três ou quatro grandes eixos

temáticos, articulados aos objetivos centrais da pesquisa [...] A partir daí

proceder-se-ia à construção de subeixos temáticos, cada vez mais precisos e

específicos em relação ao objeto de pesquisa em torno dos quais sejam

organizadas as falas dos entrevistados recolhidas a partir da fragmentação dos

discursos. [...] Ao final, o cruzamento das falas dos entrevistados seria

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realizado pela articulação dos conteúdos dos diferentes eixos e subeixos

temáticos, conduzida pelo pesquisador a partir de seus pressupostos

(DUARTE, 2004, p. 222).

Além das respostas diretamente relacionadas aos eixos temáticos, outros temas

levantados em conversas sem roteiro previamente estabelecido também foram analisados.

Assim, foram utilizados, no resultado da pesquisa, depoimentos de uma conversa com cinco

moradores, os quais se disponibilizaram a falar um pouco sobre os aspectos da moradia no

Residencial Vivendas do Planalto.

O resultado do processo analítico acima descrito será apresentado no item seguinte.

4.3 Resultado da pesquisa de campo

Essa seção apresenta os resultados da pesquisa empírica. A exposição dos resultados

obedece a sequência do roteiro de entrevista.

Os depoimentos dos moradores entrevistados, durante a pesquisa de campo, refletem

a situação de isolamento do empreendimento quanto à área urbana da cidade; o acesso à

serviços se mostra precário e a infraestrutura urbana existente é, claramente, insuficiente para

a demanda de moradores do conjunto Residencial Vivendas Planalto. No entanto, os

beneficiários entrevistados se mostram relativamente satisfeitos com a nova moradia; o

sentimento de satisfação está diretamente relacionado à sensação de segurança que a dimensão

física da casa proporciona, de forma que podemos inferir que há uma priorização de valores: o

sentimento de segurança proporcionado pela dimensão física da casa prevalece sobre a situação

de precariedade do local. Apesar de se mostrarem satisfeitos com a nova moradia, a análise das

entrevistas revela que os moradores conseguem separar os aspectos positivos dos negativos,

mas os aspectos negativos não afetam, de forma decisiva, os valores subjetivos – como a

segurança jurídica da posse e o sentimento de ascensão social – que a propriedade da moradia

proporciona, conforme será detalhado adiante.

Importante ressaltar que os resultados obtidos com a pesquisa empírica, especialmente

no que se refere ao eixo temático Direito à Cidade, são muito semelhantes aos resultados

apresentados pela ‘Pesquisa de Satisfação dos beneficiários do Programa Minha Casa Minha

Vida’ feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (BRASIL, 2014).

Quanto aos aspectos específicos das entrevistas, pudemos chegar às seguintes

conclusões:

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Acesso aos serviços de saúde

Os entrevistados responderam que não há hospital tampouco pronto socorro no

conjunto Residencial Vivendas do Planalto, inclusive no seu entorno. Segundo relatos dos

moradores, as Unidades Básica de Saúde (UBS) mais próximas ficam no bairro do Planalto –

há 1h20m do bairro Guarapes em transporte público, e no bairro da Cidade da Esperança – há

mais ou menos 40 minutos do bairro Guarapes em transporte público, sendo esta última

considerada pelos moradores de difícil acesso.

A gente tem problema aqui com relação a Unidade Básica de Saúde, que a

mais perto daqui fica distante uns 4 km daqui, lá no Planalto, não tem acesso

de ônibus, para você ter ideia temos que pegar três ônibus para ir para lá (EX-

PRESIDENTE DA AMAVEL44. 2016).

Ao confrontarmos essas informações com dados oficiais (BRASIL, 2013a)

observamos que realmente não se constata a presença de UBS no entorno imediato (500m),

apenas no final do entorno expandido (1000m), conforme pode se observar na Imagem 9.

Acesso aos serviços de educação

O CMEI que fica próximo ao empreendimento, no conjunto Leningrado, não atende à

demanda do Residencial Vivendas do Planalto. Em virtude disso, para deixar as crianças

pequenas em uma outra creche os pais precisam tomar condução para bairros distantes. Devido

à falta de escola de nível fundamental e médio no entorno imediato (500m) e expandido

(1000m), a Associação dos Moradores e Amigos do Leningrado (AMAVEL) conseguiu levar

para o centro comunitário o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), que funciona em uma sala do

centro comunitário, mas não é de conhecimento de todos os moradores, conforme se observa

pelos seguintes discursos:

A gente não tem educação, as escolas... (MORADOR 3, 2016)

A escola de ensino médio parece que há dois meses tem aqui no centro

comunitário (MORADORA 5, 2016).

É, as escolas são tudo fora e aí a prefeitura está mandando ônibus (EX-

PRESIDENTE DA AMAVEL, 2016).

44 Ante a precariedade do conjunto e a ausência de serviço social quando da implantação do empreendimento os

moradores sentiram a necessidade de criação de uma associação para resolver problemas e melhorar a integração

da comunidade, o nome da associação é AMAVEL e significa: Associação dos Moradores e Amigos do

Leningrado. A associação foi criada em 2015, em 2016 foi elaborado um estatuto constitutivo que dispôs sobre

eleições bienais para todo corpo constitutivo: Presidente, vice-presidente, secretários e tesoureiro.

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Dados oficiais do IBGE (BRASIL, 2013a) informam haver uma escola no entorno

imediato (500m), nenhuma creche e escola no entorno expandido (1000m), uma creche e duas

escolas fora do entorno expandido (mais de 1000m), conforme podemos observar na Imagem

9. No entanto, constatamos que não há escola de ensino médio e fundamental no entorno

imediato, mas sim uma creche (ou CMEI), que se localiza no conjunto Leningrado (vizinho ao

Residencial Vivendas do Planalto), confirmando os relatos dos entrevistados.

Acesso ao serviço de assistência social

Segundo relato dos entrevistados não há serviço de assistência social tampouco

trabalho social sendo realizado no Residencial Vivendas do Planalto; apesar de existir um

Centro de Referência da Assistência Social dentro do bairro do Guarapes, bairro onde se

localiza o conjunto, os moradores o consideram distante, induzindo a percepção de que se trata

de outro bairro. No entanto, segundo relato de um morador, quando é solicitado, o conselho

tutelar vai ao Residencial. Vejamos:

Só entra conselho tutelar aqui quando ligam para vir (MORADORA 3, 2016)

O CRAS é a maior dificuldade, lá no Guarapes para a gente ir (MORADOR

2, 2016).

Acesso ao lazer

A estrutura de lazer se resume a uma quadra esportiva, no entanto os moradores dizem

ter medo de usá-la em virtude da falta de segurança. O centro comunitário passou a ser utilizado

como área de lazer, havendo aulas de capoeira duas vezes na semana, sob o pagamento de uma

taxa simbólica de R$ 10 reais por mês; o espaço também é disponibilizado para festas

particulares (sob reserva) e da comunidade (em datas comemorativas). A AMAVEL vem

arrecadando livros para formar uma biblioteca aberta a toda a comunidade e, ainda, há a

pretensão de disponibilizar um espaço destinado à informática.

Aqui tem só uma quadra, mas há receio de uso pela falta de segurança

(MORADORA 1, 2016)

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Imagem 10

Festa Junina organizada pela AMAVEL

Fonte: Arquivo Próprio

Segurança

Os moradores relataram que, no início, era frequente haver assassinato, estupro e

tiroteio, em virtude da existência de facções do tráfico de drogas na região, no entanto esses

fatos já não são mais tão frequentes, haja vista que grande parte dos traficantes morreu em

conflito e o sentimento de medo dos moradores, atualmente, se dá mais ao entrar e sair do

empreendimento do que dentro dele; muitos relataram que se sentem tranquilos nas ruas do

conjunto. No entanto, o sentimento de insegurança em face da violência da região permanece;

o centro comunitário teve janelas e portas furtadas e só não foi mais depredado em virtude de

os moradores terem se reunido para tampar os buracos com tijolos. Grande parte dos blocos,

abertos na planta original do empreendimento – sem muros, portões ou grades – foram fechados

por moradores que se reuniram e arrecadaram fundos para colocar grades e portões isolando

seus blocos dos demais.

Alguns moradores relataram sentir medo de seus vizinhos e, por isso, não reclamavam

quando estes os incomodavam de alguma forma. Quanto à presença da polícia militar, os relatos

afirmaram que não havia, no início, ronda policial, porém, segundo relato de um dos

entrevistados, após reunião da AMAVEL com o comando da Polícia Militar passou a haver a

presença de ronda policial de vez em quando: Vejamos alguns relatos:

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Agora melhorou 20%, pouquinha coisa, tem a ronda aqui mas passa um dia e

três não (MORADOR 6, 2016).

Quando chama a polícia eles vêm, agora quando não, a segurança é a gente

que faz (MORADOR 9, 2016).

Aqui você vê que a gente está gradeando o apartamento. Este muro não é do

projeto original da Caixa, a gente que está fazendo (MORADOR 20, 2016).

Ao confrontarmos as respostas dos moradores com dados oficiais (BRASIL, 2013a)

observamos que a base da polícia militar mais próxima do Residencial Vivendas do Planalto se

localiza fora do entorno expandido (1000m), conforme podemos observar na Imagem 9.

Imagem 11

Condomínio como foi entregue aos beneficiários do PMCMV (em 23 maio 2014)

Fonte | Patrick Le’Guirriec

Imagem 12

Condomínio após a criação de muros e portões pelos condôminos (em 26 mar. 2017)

Fonte: Arquivo próprio.

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Subsistência

Não há um centro comercial no empreendimento, os poucos comércios criados pelos

moradores atendem apenas às urgências e foram considerados caros pelos moradores. O

supermercado mais próximo fica no bairro vizinho (Planalto).

Temos vários, serve mais ou menos para subsistência porque como é

mercadinho é mais caro as coisas (MORADORA 1, 2016)

Não é satisfatório porque o comércio mesmo a maioria do pessoal quando quer

fazer compras sai daqui e vai para o planalto (MORADOR 6, 2016)

Imagem 13

Comércio local

Fonte | Arquivo próprio

Aspectos da infraestrutura do local

O fornecimento de água e de energia elétrica se mostrou satisfatório para os moradores

do Residencial.

O fornecimento de energia elétrica é a única coisa que está dando certo e só.

(MORADORA 1, 2016).

Quanto à rede de esgotos, quatro entrevistados responderam haver, enquanto cinco

alegaram que não. Os que alegaram não existir esgotamento sanitário, afirmaram que os canos

existem, mas o saneamento não foi feito ou que o saneamento não funciona uma vez que os

próprios moradores têm tomado providências para esgotar a caixa de fossa e de gordura.

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Não tem né saneamento. A fossa estourou a gente teve que dar o dinheiro para

abrir para fazer clandestino (MORADORA 4, 2016).

Zero. Não tem rede de esgoto, a gente mesmo esgota. Tem a caixa de gordura,

a fossa, mas quando está cheia a gente que tem que se virar para esgotar.

(MORADORA 5, 2016)

A rede de esgoto a gente paga 20. Não está saneado ainda né, está os canos

agora, mas não foi nada saneado (MORADORA 3, 2016).

Imagem 14

Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos

Fonte | Arquivo próprio

Imagem 15

Esgoto a céu aberto na área dos blocos de apartamentos

Fonte | Arquivo próprio

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Na entrada do conjunto é possível observar uma placa do Governo Federal e Estadual

informando sobre a implantação do sistema sanitário da Zona Sul para as comunidades de Ponta

Negra, Pitimbu, Planalto, Candelária e Capim Macio, com início em 20 de março de 2015 e

término em 19 de março de 2017. No entanto, a imagem de número 16 foi registrada na data de

26 de março de 2017, mostrando que ainda se verifica a presença de esgotos a céu aberto no

Residencial Vivendas do Planalto.

Imagem 16

Placa na entrada do empreendimento

Fonte | Arquivo próprio.

Imagem 17

Conteúdo da placa na entrada do empreendimento

Fonte | Arquivo próprio

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No aspecto da coleta de lixo, os entrevistados alegaram ser satisfatória e regular.

Quanto ao transporte público, observamos um terminal de ônibus na entrada do

empreendimento; as distâncias a serem percorridas até o ponto de ônibus não são grandes, no

entanto só existem duas linhas disponíveis para os moradores dificultando, assim, a mobilidade

e o acesso para outras áreas da cidade; ademais, as linhas existentes não levam os moradores

para os locais de seus interesses, como por exemplo, o Alecrim. Não obstante a existência de

duas linhas, aos domingos apenas uma funciona, o que compromete a mobilidade nesse dia.

Alguns moradores reivindicam mais linhas de ônibus, além de uma linha que os levem até o

Alecrim

É satisfatório, o ponto é próximo a nossas residências, é tranquilo. Nós

estamos precisando de uma linha dentro do Leningrado, uma linha, que

satisfaça o direito do povo ser transportado para o alecrim, muita gente

reivindica este direito (MORADOR 2, 2016).

Só tem uma opção no domingo a gente sofre para pegar um ônibus. No

domingo tem só uma opção de ônibus para cá (MORADORA 5, 2016).

Não se verificou a presença de telefones públicos.

O serviço de correios não chega até a comunidade. Os moradores relatam não ter CEP

e, por esse motivo, buscam suas correspondências diretamente na sede dos Correios ou

endereçam para a casa de algum familiar ou amigo próximo.

Não tem não, porque não temos CEP, não temos CNPJ, então fica muito

dificultoso as nossas correspondências chegarem (MORADOR 2, 2016)

Ao serem questionados quanto à integração do conjunto com a área urbana da cidade

de Natal, cinco entrevistados responderam que não há integração e quatro responderam que

sim. Na conversa em grupo, um morador falou sobre o sentimento de falta de integração. O

argumento daqueles que não se sentem integrados é pautado no isolamento do Residencial

Vivendas do Planalto e a distância para equipamentos urbanos como creches, escolas, postos

de saúde, entre outros, inclusive reclamam da dificuldade para os afazeres diários como ir a um

banco, a um supermercado, etc., bem como do abandono e descaso do poder público com o

local e moradores do empreendimento.

Não, porque na verdade a gente é tipo um interior esquecido por todos. Aquele

interior, dos interior, dos interior, às vezes aquele interior do interior do

interior tem mais visão do que a gente aqui, olhando de contrapartida.

(MORADORA 1, 2016).

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Não, porque fica tudo distante para a gente, aqui para você ir no supermercado,

para você ir numa caixa econômica é distante, aqui não tem nada disso aqui

para a gente (MORADOR 7, 2016).

A comunidade de Leningrado, vivendas e o conjunto Leningrado é.... é a

comunidade mais periférica de Natal, abandonada pela sociedade, é por isso

que ela se torna mais periférica, é uma comunidade que não tem nada

praticamente, não existe segurança, não tem educação, não tem ...é..., a saúde

está deixando a desejar, com relação ao transporte não temos que preste todo

o espaço, como eu reivindiquei, e vamos lutar para ver se conseguimos o

ônibus para o alecrim (MORADOR 2, 2016).

O próprio povo as vezes se comunicando diz ‘você vai a Natal? ’ O próprio

povo se acha isolado de Natal (MORADOR 2, 2016).

Pelo que eu vejo, pela falta de assistência é como se aqui não fizesse parte da

cidade de Natal, porque aqui falta tudo, assim, infelizmente é, falta escola para

a criança, tem criança que tem que fazer o fundamental, criança que é pequena

que tem que se deslocar num ônibus para ir para vir, é incomum isso né, é

desumano eu acho, unidade de saúde não tem, se uma pessoa adoecer a noite

aqui, aqui ainda bem tem um grupo, as pessoas se reúnem, então a assistência

médica é assim, ontem à noite um vizinho que estava precisando tomar injeção

porque fez uma cirurgia e precisou dos vizinhos para alguém poder levar, isso

não existe (MORADOR 20, 2016).

Os que responderam que se sentiam integrados não souberam como justificar suas

respostas e responderam, apenas, que sim, ou que sim por terem nascido em Natal e o bairro

Guarapes ser localizado em Natal, ou ainda, que o bairro é integrado, mas ele, como pessoa,

não.

Acho que eu sinto, porque eu moro aqui né, nasci aqui (MORADORA 3,

2016).

Sinto, sinto que o bairro é integrado com a cidade, o bairro é. Não me sinto

integrado em quase nada da cidade, o bairro que é integrado à cidade

(MORADOR 9, 2016).

É, me sinto. (MORADORA 4, 2016)

A situação de isolamento do empreendimento quanto à área urbana da cidade, no

entanto, não muda a sensação de satisfação com relação à nova moradia. A percepção de

satisfação está diretamente relacionada à sensação de ter a propriedade da casa e do conforto

que a casa física em si proporciona. Isso foi observado quando questionados se preferiam morar

na antiga ou na atual moradia:

Lá era de aluguel, eu quero morar aqui porque aqui eu não pago aluguel

entendeu, o que eu pago é para a casa ser minha (MORADOR 8, 2016)

Hoje eu prefiro morar aqui, pois lá era da minha mãe, lá era emprestada, aqui

é da gente mesmo, muda a sensação de ser dono [...] é tudo o que a gente tem.

Eu moro no que é nosso, e se não tivesse? O resto eu posso correr atrás

(MORADOR 7, 2016).

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Para mim muda muito né porque eu morava de aluguel e hoje em dia eu tenho

uma casa né, uma moradia, eu estou pagando, mas é meu e aluguel você nunca

para de pagar (MORADOR 6, 2016).

Eu prefiro aqui porque aqui foi onde eu tive uma paz. Porque assim eu gosto

do local, gosto do meu apartamento, tem meu local que dormir né que antes

eu não tinha, lá era dois vãozinho, eu dormia por cima do fogão e aqui não

aqui eu tenho mais conforto (MORADORA 3, 2016).

Prefiro morar aqui porque a diferença é o conforto (MORADOR 9, 2016).

Aos serem questionados sobre os benefícios em ter a propriedade da casa os moradores

relataram aspectos variados, como segurança, pagar por um bem que vai ser seu e que pode ser

deixado para os filhos, não faltar água. Constatamos que os moradores querem deixar claro, em

seus depoimentos, que a casa não é deles até que se termine o pagamento à Caixa Econômica

Federal.

De contrapartida que eu saí do lixo, saí do meio dos inseto, porque tinha inseto

de toda qualidade, o que você pudesse imaginar tinha. Por mais arrumadinho

que fosse seu barraco e taipa, o nome já está dizendo é taipa. E sem contar

com a segurança né, o que era o pior, a gente tava ..., a insegurança lá era bem

maior, aqui a gente tem nossa casinha, tudo limpinho, como é que eu digo.

Uma segurança em relação a tudo, é uma segurança geral. (MORADORA 1,

2016).

Pra mim muda muito né porque eu morava de aluguel e hoje em dia eu tenho

uma casa né, uma moradia, eu estou pagando mas é meu e aluguel você

nunca para de pagar (MORADOR 6, 2016).

Quando o cara terminar de pagar, dez anos, né, aí é da pessoa, se a pessoa não

pagar não é dono, agora se pagar é dono (MORADOR 8, 2016).

Minha, minha, ainda não é, só daqui a dez anos, ainda é da Caixa né, só vai

ser minha depois de dez anos quando eu quitar a casa, mas o benefício para

mim é por causa dos meus filhos né, porque eu tenho 4 filhos e para mim, se

eu morrer hoje, graças a Deus eu tenho um canto para deixar para meus filhos

(MORADORA 5, 2016).

Eu não sei. Não garanto que ninguém toma porque eu tou pagando, é como

um aluguel, quando eu terminar de pagar é que vai ser minha, eu tou pagando

né, 5 anos, é um aluguel (MORADORA 3, 2016).

Quanto ao significado de ser dono da sua casa, os moradores relacionaram suas

respostas ao sentimento de dignidade, proteção, de ter um lar, bem como de riqueza imaterial;

vejamos:

Significa ter mais dignidade (MORADOR 9, 2016).

Significa uma coisa muito boa, muito boa mesmo, significa ter um lar, dar um

lar para os meus filhos né (MORADOR 6, 2016)

Sinceramente, para mim hoje eu sou a mulher mais rica do mundo, eu tenho

minha casa, pronto, tem muita gente que quer ganhar na mega sena, eu não

graças a Deus eu já tenho minha riqueza, tenho minha casa, tenho onde botar

meus filhos para dormir (MORADORA 1, 2016).

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Poxa, eu sou rico, desde que eu consegui conquistar uma cobertura, uma

parede para mim me defender da chuva e do sol, ter uma residência fixa, eu

me sinto milionário, me sinto realizado (MORADOR 2, 2016)

Meu desejo é... Não tenho mais nada para desejar não (MORADOR 8, 2016).

Hoje eu moro que nem gente, né, hoje eu tenho minha moradia [...] hoje eu

não vivo naquela situação deplorável, que era um banheiro para não sei

quantas pessoas (MORADOR. Depoimento. Natal (RN), 17/10/2016).

No aspecto da cidadania, a análise das entrevistas permitiu observar que alguns

moradores não têm noção do que significa esse direito; outros moradores relacionaram-no ao

pagamento de impostos, a ter um lar, bem como a ter direitos, vejamos:

O que é isso? Não sei (MORADORA 3, 2016).

Cidadania é você, é você, em nem sei fia. É ter seus direitos e deveres né.

(MORADOR 9, 2016).

Hein? Cidadão? Cidadão? É uma pessoa que trabalha né não? (MORADOR

8, 2016).

É morar aqui e sim, pagar os impostos. Como a gente paga nossos impostos a

gente se sente mais seguro porque a gente tem o direito de conseguir alguma

coisa como a gente está querendo aqui posto policial, posto de saúde

(MORADOR 7, 2016).

Cidadão é você ter um lar, é você se sentir à vontade no canto que você mora,

é ter segurança que aqui a gente não tem (MORADOR 6, 2016).

É agente ter nossos direitos né, mas como aqui a gente não tem nossos direitos

(MORADORA 5, 2016).

Cidadania para mim é ter o básico né, porque assim direito da constituição ele

vai bem além do que possibilita a gente né, infelizmente a gente vive num país

democrático, mas um democrático entre aspas, pelo menos se o direito básico

fosse cumprido tornaria pelo menos a gente um pouco cidadão (MORADOR

20, 2016).

Ser cidadão é você ter assistências básicas, plano de saúde, educação que é o

principal direito de cada cidadão e é o que mais falta aqui, saúde, educação,

segurança pública, para mim ser cidadão é isso, é ter direito, mas também ter

deveres (MORADOR 21, 2016).

A análise das entrevistas permitiu inferir que o local da moradia contribui para moldar

a identidade do indivíduo e suas expectativas. Observamos que, embora muito dos problemas

enfrentados na nova moradia já fizessem parte da vida dessas pessoas no local de moradia

anterior (como a dificuldade de acesso a equipamentos e serviços de uso coletivo), a nova

moradia – formal e legal – gera obrigações financeiras antes inexistentes, mudando a

perspectiva de direitos do indivíduo. Neste sentido, a percepção que tivemos foi a de que ao

morar em assentamento (informalidade) o indivíduo entende não ter o direito de cobrar dos

órgãos públicos por seus direitos, não apenas os relativos a moradia, mas, também, a outros

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direitos sociais. No entanto, a partir do momento em que esse indivíduo é contemplado em um

programa de moradia oficial do Governo e passa a adquirir novas obrigações financeiras,

advindas dessa moradia, ele passa a ser ‘oficialmente’ um cidadão, que pode cobrar seus direitos

na medida em que cumpre com os seus deveres. Dessa forma, o que antes não era visto como

um grande problema passa, agora, a ser:

A gente ficou desassistido em uma série de coisas na verdade. Para você ter

ideia eu vou mostrar uma coisa, eu estou vindo agora da Justiça Federal

porque, o que está acontecendo? As fossas da gente estão estourando e a

Construtora não quer se responsabilizar por isso... aí a gente procurou a Caixa,

pois nosso contrato é assinado com a Caixa e não com a construtora, eu já

procurei as construtoras diretamente eles disseram que tem que ser com a

Caixa porque vocês têm contrato com a Caixa. A gente que tem contrato com

a Caixa, nenhum morador fez contrato com construtora, tudo bem, a gente

ligou no 0800 e alguns problemas foram resolvidos, inclusive no meu

apartamento um problema de vazamento, e no dos meus vizinhos eles vieram

e consertaram, mas esses problemas das fossas e alguns problemas de

rachadura eles não estão resolvendo e a gente procurou a Caixa, se você quiser

eu te dou uma cópia desse documento, depois eu mando para você, eles

alegando que não estavam vindo fazer o serviço por causa da periculosidade

do local, você estava aqui né da última vez (se referindo a um dos participantes

da conversa), então a agente vai entrar com uma ação contra a Caixa para ela

vim (sic) resolver esse problema, porque a gente está pagando nossa parcela

do apartamento, então a gente está fazendo a nossa parte e eles não estão

fazendo a parte dele, e uma série de coisa, para vocês terem uma ideia o correio

da gente não funciona, a gente não tem correio (EX-PRESIDENTE DA

AMAVEL, 2016).

É tudo, o que a gente tem. Eu moro no que é nosso, e se não tivesse? O resto

eu posso correr atrás45. (MORADOR 10, 2016).

Me sinto confortável dentro da casa, mas acho que ainda tem muito o que

melhorar46. (MORADOR 11, 2016).

O modo como o direito à cidadania se efetiva por meio da nova moradia é percebido

de maneira diferente pelos diversos moradores. Não obstante o exposto, em que a moradia

formal se mostra um ponto de partida para busca de novos direitos para alguns, o que se denota,

inclusive, da criação da AMAVEL, para outros o fato de ter conseguido a moradia já é muito,

ou seja, o suficiente para estar tudo bem:

Tá bom, é a mesma coisa não tenho nada a reclamar daqui não47. (MORADOR

8, 2016).

45 Morador 10 ao responder ao seguinte questionamento: Quais os benefícios de se ter a casa própria? 46 Morador 11 ao responder ao seguinte questionamento: Ser contemplado pelo PMCMV e se tornar dono da sua

casa foi suficiente para você se sentir pleno como cidadão? 47Morador 8 ao responder ao seguinte questionamento: Como você se sente enquanto cidadão morando no

Residencial Vivendas do Planalto?

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Me sinto realizado porque aqui é muito bom de morar e eu gosto de morar

aqui 48(MORADOR 7, 2016).

Quando questionados se ser contemplado pelo PMCMV foi suficiente para se sentirem

plenos como cidadão, um entrevistado respondeu que sim, cinco responderam que não, três não

souberam responder.

Por fim, podemos inferir que os moradores do Residencial Vivendas do Planalto,

contemplados pelo PMCMV, se mostram satisfeitos com a nova moradia, a casa própria não

apenas lhes oferece a segurança física – o que observamos por meio de melhorias conquistadas

com os padrões construtivos de suas habitações atuais – mas dignidade, percebida por meio de

melhoria de suas condições de moradia. A moradia se mostra para esses indivíduos como um

fator primordial para a participação e reconhecimento do indivíduo pela sociedade, capaz de

influenciar na sua identidade pessoal, cultural e política. No entanto, a mudança dessa

população para a casa própria cria sentimentos contraditórios, em que pese a segurança física e

dignidade adquiridos com a nova casa, a falta de atenção dos órgãos públicos à população ali

instalada dá ensejo ao sentimento de abandono e exclusão da sociedade. As expectativas de

quando ‘conquistaram’ a casa própria não foram atendidas e problemas vivenciados na antiga

moradia são também vivenciados nas novas. O depoimento, abaixo, de uma mulher, momentos

antes de deixar o assentamento e ir para o Residencial Vivendas do Planalto demostra as

expectativas dos indivíduos contemplados pelo Programa de que a nova moradia iria lhe

propiciar tudo que não tinham antes, demonstra:

É uma conquista. Uma vitória de muito tempo de luta. Aqui tudo é difícil. A

gente carregou muita água. A energia vivia num ‘corta, corta’. E o pior era a

falta de segurança, disse momentos antes de deixar o assentamento [...] Espero

muita coisa: segurança, saúde e acesso aos serviços essenciais” (SOUZA,

2014)49

Em face os resultados da pesquisa de campo, observamos que muitos dos problemas,

vivenciados nas moradias anteriores, persistem, gerando, assim, um sentimento de indignação

por parte dos moradores, considerando que as despesas geradas pelo novo tipo de moradia são

elevadas e, mesmo assim, as suas necessidades básicas não são atendidas pelo Poder Público

Municipal. Constatou-se, no entanto, que o fato de cumprirem as obrigações financeiras geradas

pela nova moradia lhes dá voz para cobrar do Poder Público melhorias para a comunidade.

48 Morador 7 ao responder ao seguinte questionamento: Como você se sente enquanto cidadão morando no

Residencial Vivendas do Planalto? 49Trecho do depoimento de Thalita Santos de Lima (ex-moradora do assentamento erradicado pela Prefeitura)

retirado da reportagem publicada em 23 de maio de 2014 no Blog do Salatiel.

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Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo compreender os efeitos da política de moradia na

consolidação da Cidadania como elemento de integração ao Direito à Cidade, mais

especificamente a) identificar sinais – ou tendências – da relação entre a obtenção da moradia

e o sentido de cidadania existente; b) estabelecer o papel da política setorial de moradia para

um sentido de contribuição à Cidadania; c) entender a manifestação da política habitacional e

sua expressão efetiva na produção espacial com os possíveis efeitos na subjetividade, identidade

e sentido de cidadania da população enquadrada na faixa 1 do PMCMV.

Os seguintes questionamentos embasaram a pesquisa: Pode uma política habitacional

ampliar ou prejudicar o sentido de Cidadania de parte da população? A moradia é condição

básica para que a Cidadania ocorra de modo ampliado? Para responder a essas questões, a

pesquisa concentrou-se na análise da produção habitacional do Programa Minha Casa Minha

Vida, faixa 1, no Residencial Vivendas do Planalto, localizado na cidade de Natal/RN.

O conceito de cidadania abordado no primeiro capítulo traz, em suma, duas

concepções: A primeira, baseada em Marshall (1967), considera que a aquisição de direito civis,

políticos e sociais possibilita a ideia de cidadania baseada em um caráter nivelador e igualitário

do indivíduo. Por mais que esta concepção não tenha se desenvolvido plenamente no contexto

histórico do Brasil do século XX, o processo histórico brasileiro, a duras penas, conseguiu, a

partir da década de 1980, relacionar a noção de cidadania a diminuição de desigualdade e

inclusão social, dando azo a concepção de cidadão como portador de direitos e deveres, o que

se consolidou com a constituição de 1988. A segunda, possibilitada pela ascensão de uma

racionalidade neoliberal iniciada no quadro histórico dos anos 1990, fez desaparecer a ideia de

cidadania baseada na conquista de direitos e deu lugar a inserção social baseada no acesso aos

bens de consumo, tornando a posse de determinados produtos e o acesso a determinados

serviços instrumentos para a construção e reforço de identidades sociais, e consequentemente,

para o reconhecimento de um indivíduo como cidadão.

No campo da moradia, procuramos mostrar, ao longo da pesquisa, como a

racionalidade neoliberal - que ordena as relações sociais segundo o modelo de mercado e

justifica desigualdades cada vez mais profundas – afetou profundamente a gestão de políticas

públicas, transformando a produção de habitação de interesse social em nicho de mercado.

Dentro desta racionalidade, os Estados tornaram-se elementos-chave na criação de condições

fiscais e sociais mais favoráveis à valorização do capital, contribuindo, assim, amplamente para

a criação de uma ordem que os submeteu a novas restrições e que, entre outras atitudes, os

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levaram a reduzir direitos considerados muito onerosos e a enfraquecer os mecanismos de

solidariedade que escapam à lógica assistencial privada (DARDOT; LAVAL, 2016).

A visão da moradia dentro da racionalidade neoliberal – em que o desenvolvimento da

lógica de mercado é a lógica normativa generalizada – transforma-a em um ativo integrado do

mercado financeiro retirando-a do campo do direito social e reposicionando-a na esfera dos

bens de consumo. No caso específico brasileiro, a alocação da moradia pelo mercado levou ao

abandono de uma política pública habitacional voltada para consolidação de um direito social

amplo, que engloba diversos outros direitos individuais, políticos e sociais (direitos de primeira,

segunda e terceira gerações na classificação Marshalliana), para a consolidação de uma política

com forte viés econômico que não atende à busca da população marginalizada por uma moradia

digna.

A lógica normativa que se impõe no neoliberalismo impõe a lógica de mercado desde

o Estado até o mais íntimo da subjetividade do indivíduo. Dessa forma, o sujeito é induzido a

sobreviver na competição, de forma que todas as suas atividades se assemelham a um

investimento, a um cálculo de custo (DARDOT; LAVAL, 2016). Nesse sentido, por mais que a

moradia seja um direito social, capaz de oportunizar o desenvolvimento pessoal de um sujeito,

ela passa a ser vista como investimento, não importando, portanto, o seu valor de uso, mas o

seu valor de troca.

Na contracorrente dessa racionalidade, e mostrando que a imediata intuição prática da

realidade não corresponde a “existência real do fenômeno”, a pesquisa realizada permitiu

mostrar que mais do que a importância da aquisição de um bem de consumo com valor

transacional no mercado, a importância da aquisição das moradias ofertadas pelo PMCMV

reside nos aspectos físicos proporcionados pela estrutura física da nova moradia, nas palavras

de Patrick Le’Guirriec (2015), nos elementos de conforto que os indivíduos contemplados não

possuíam antes de ser beneficiados pelo Programa: um lugar claro, com água e a eletricidade à

vontade, um teto e paredes sem risco de desabar em razão das chuvas, um endereço. Nesse

sentido, percebemos que, mesmo ausente no empreendimento analisado, os componentes

físicos básicos para que se possa falar na existência de um padrão adequado de vida, as

moradias, oferecidas pelo PMCMV no empreendimento analisado, permitem ao indivíduo, ao

retirá-lo da informalidade, a percepção de pertencimento social.

Em face desses aspectos, observamos que a aquisição da propriedade individual, mais

do que a aquisição de um bem qualquer de consumo, aguça uma sensação de cidadania antes

inexistente nos indivíduos contemplados nesse empreendimento estudado. Essa sensação é

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advinda da legalidade e regularidade da nova moradia, bem como do cumprimento das

obrigações a ela relacionadas (pagamento da prestação da casa, energia elétrica, água e

condomínio), como se o direito de ser ‘cidadão’ só pudesse ser pleiteado por quem age dentro

de um conjunto de obrigações. Nesse sentido, o resultado da presente pesquisa nos levou a

inferir que, para os indivíduos entrevistados, a proteção do direito parece estar diretamente

relacionada ao cumprimento das obrigações impostas pelo Estado, de forma, que se o indivíduo

cumpre com o seu dever de pagar, então deve ter os seus direitos garantidos. Dessa forma, a

aquisição da casa própria, mais do que valor de troca, se constitui em um valor de

reconhecimento social legítimo para a população marginalizada.

Em face dessa lógica, entendemos que a Política de Habitação, perpetrada pelo

PMCMV, mesmo que por caminhos tortos, contribui para o sentido de cidadania de parte da

população. Ressaltamos que, ainda que essa percepção de cidadania não esteja presente em

todos os indivíduos, haja vista que, para alguns o fato de ter adquirido a casa própria seja o

bastante para que eles se sintam atendidos pelo Poder Público (seja ele Federal, Estadual ou

Municipal); para outros, ela é o ponto de partida para a luta pela conquista de novos direitos

sociais, como a melhoria do acesso a equipamentos e serviços públicos de educação, saúde,

transporte, lazer, segurança, entre outros. Compreendemos, então, que a aquisição da

propriedade da moradia se torna uma espécie de passaporte para a cidadania.

Ante o exposto, podemos afirmar que a moradia se revela como condição básica para

a cidadania, mas não de modo ampliado (de forma plena). Isto porque, retornando a ordem

Marshalliana de direitos que caracterizam a cidadania plena, o conjunto de direitos civis,

políticos e sociais é que garantem a partição política do indivíduo nos assuntos de seu país, de

modo que o conteúdo decisivo para a relação entre cidadania e direitos civis é a obtenção de

direitos. Relacionando essas três gerações de direitos à moradia, vimos que essa é

interdependente ao direito à vida, à dignidade da pessoa humana, à integridade física, à

educação, à assistência, à inviolabilidade do domicílio, à função social da propriedade, dentre

outros direitos também fundamentais. Dessa forma, para que a moradia se revele como

condição básica para que a cidadania ocorra de modo ampliado, ela deveria respeitar uma gama

de direitos, os quais não se observam na moradia oferecida pelo PMCMV, mais especificamente

no empreendimento Residencial Vivendas do Planalto.

Contribuindo para a aprimorar a reflexão sobre a relação entre cidadania e moradia, a

análise da realidade – como objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente –

revelou que, por mais que a produção de casas nos moldes do PMCMV, faixa 1, não prejudique

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o sentido de cidadania da população beneficiada pelo Programa, ela gera uma inflexão deste

direito no campo teórico, na medida em que os direitos sociais – conquistados pelo cidadão

brasileiro no século XX e consolidados na constituição de 1988 – se mostram prejudicados pelo

difícil acesso aos equipamentos e serviços de uso coletivo.

Podemos observar que a dificuldade de acesso aos equipamentos e serviços de uso

coletivo – postos de saúde, centros municipais de educação infantil, escolas de nível

fundamental e médio, conselho de assistência social, supermercados – relatada pelos moradores

do Residencial Vivendas do Planalto, é agravada pela falta de um sistema de transporte eficiente

que os levem aos locais que necessitam ir, o que observamos, por exemplo, nos depoimentos

apresentados nos subitens acesso à saúde e aspectos da infraestrutura do local (item 4.3,

capítulo 4). Também observamos a violação a outros direitos sociais, como por exemplo, o

lazer, quando os moradores deixam de utilizar a única área destinada a encontros e esportes – a

praça com quadra esportiva – em virtude do sentimento de falta de segurança; o centro

comunitário (que se localiza na praça) foi depredado e os moradores são obrigados a conviver

com o medo. Notamos que, mesmo sendo a Região considerada como violenta, a presença da

polícia militar não é ostensiva no local. Somado a este quadro de violação aos direitos sociais,

a falta de instalações sanitárias adequadas, o que se observa pela presença de esgotos à céu

aberto no Residencial, cria um ambiente insalubre, que, segundo Wong (s/d) propicia o

desenvolvimento de doenças fatais.

Em face de tais considerações, a moradia, a partir do PMCMV para as pessoas

entrevistadas no empreendimento analisado, se mostra como um ponto de partida para que o

indivíduo possa ter a consciência de sua cidadania, mas não significa que ele se torna um

cidadão pleno, haja vista não serem respeitadas as três dimensões de direito que caracterizam a

cidadania como plena (individuais, políticos e sociais).

Importante ressaltar, ainda, que o sentido de cidadania que se pôde captar com a

pesquisa empreendida foi aquele semelhante ao das décadas de 1970 e 1980 quando a ideia de

cidadania passou a ser definida pelos princípios da democracia, significando conquista e

consolidação social e política, impondo comportamentos próprios na criação de espaços sociais

pelas lutas populares.

Verificamos, ainda, que, por mais que haja uma afirmação por parte dos entrevistados

na importância em sair do aluguel e estarem pagando pelo que é seu, o que levaria a uma

percepção de predominância da racionalidade neoliberal, a importância da moradia como um

direito social capaz de proporcionar a participação e reconhecimento do indivíduo pela

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sociedade, capaz de influenciar na sua identidade pessoal, cultural e política está implícito em

seus discursos.

Diante de tais observações, entendemos que, por mais que uma política habitacional

nos moldes do PMCMV tenha o condão de transformar um direito social, como o Direito à

Moradia, em mais um elemento de mercado, ela não tem sido suficiente para que haja uma

mudança generalizada na concepção individual dos sujeitos de substituição da luta pela moradia

pela luta ao crédito. Não obstante, é preciso deixar claro que o Programa ainda se apresenta

muito aquém de uma política habitacional, capaz de equacionar o problema habitacional no

âmbito de um projeto que vise à inclusão social e à diminuição de desigualdades históricas. A

segregação sócio espacial, ocasionada pelo PMCMV diminui o acesso a oportunidades para que

a população marginalizada possa alcançar um padrão adequado de viver, na medida em que

lhes nega o Direito à Cidade.

Como vimos no decorrer desta pesquisa, a cidade é o grande referencial para se refletir

sobre a cidadania; é, nela, que se produz a política, se realizam as atividades econômicas, se

organiza a vida institucional, se constituem novos sujeitos sociais e se modifica o direito; é,

nela, que o indivíduo vai ter o suporte material para seu bem-estar e desenvolvimento pessoal.

Nesse sentido, a sua negação traz consigo uma lista interminável de problemas sociais e

econômicos que tendo como consequência a exclusão e a desigualdade social que propiciam a

discriminação, ocasionando uma perpetuação da pobreza e a ausência do exercício da cidadania.

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DF, 27 de abril de 2016. Seção 1, Página 1.

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108

Apêndice – Roteiro de Entrevistas – Residencial Vivendas do Planalto

Pesquisa de campo para a Disser tação de Mestrado in t i tulada: ‘CIDADANIA E CASA

PRÓPRIA: COMO ESSA RELAÇÃO SE MANIFESTA? Uma análise a partir do Programa Minha

Casa Minha Vida no Conjunto Residencial Vivendas do Planalto em Natal/RN. ’

IDENTIFICAÇÃO:

Data da entrevista: Número da Entrevista:

Nome do Entrevistado: Idade:

Estado Civil: Ocupação:

Filhos: Quantidade de filhos que moram na

mesma casa:

Escolaridade:

I - DIREITO À CIDADE

1. O seu bairro e/ou região é atendido pelos seguintes serviços públicos?

Serviços e equipamentos urbanos 1. sim 2. não

3. não

sabe Observações

Saúde: Hospital/Pronto Socorro

Educação: Creche

Escola de ensino infantil

Escola de ensino fundamental

Escola de ensino médio

Assistência

Social:

Conselho Tutelar

Centro de Referência da Assistência

Social – CRAS

Lazer: Clube esportivo

Casa de cultura

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Biblioteca pública

Segurança: Policiamento

Subsistência: Comercio local

Infraestrutura 1. sim 2. não 3. não

sabe

Fornecimento de água

Rede de esgoto

Fornecimento de energia elétrica

Coleta de lixo

Transporte público

Correios

Telefone público

2. Você se sente integrado à cidade de Natal? Por quê?

3. O que você gostaria que tivesse no conjunto habitacional?

II- MORADIA

1. Em qual bairro ou comunidade você morava antes?

2. Você prefere morar aqui ou em sua moradia anterior? Por que?

3. Quais os benefícios que ter a propriedade da sua casa?

4. O que significa ser dono da sua casa?

5. O que faria você se mudar daqui hoje?

1. Falta de condições de pagamento da prestação e das contas de condomínio, água e de luz

2. Problemas familiares

3. Distância dos locais de trabalhos

4. Tamanho do apartamento/casa

5. Problema com a vizinhança

6. Problema de transporte

7. Problemas de segurança e violência

Observações:

6. O que você mais gosta aqui?

7. O que você menos gosta aqui?

III- CIDADANIA

1. O que é ser cidadão para você?

2. Como você se sento enquanto cidadão morando aqui?

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3. Ser contemplado pelo PMCMV e se tornar dono da sua casa foi suficiente para você se sentir

pleno como cidadão?