chicos 32 outubro 2011

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ezine de prosa e verso de Cataguases MG

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Chicos N. 32 - Outubro 2011

e-zine de literatura e idéias

de Cataguases – MG

Capa

De Gabriel Franco sobre desenho de Altamir Soares

Editores Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores desta edição Antônio Perin

Carlos Torres Moura

Fernando Abritta

Eduardo Dalter

Joaci Pereira Furtado

Ronaldo Cagiano

Ronaldo Werneck

Rubens Shirassu Jr

Pâmela Bastos

Vanderlei Pequeno

Sílvio Fiorani

Fale conosco em: [email protected]

Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Dedim de prosa

Terminou o inverno e iniciou-se a primavera.

Por aqui tivemos os lançamentos de alguns livros.

Vários deles sob os auspícios da Lei Ascânio Lopes.

Destacamos os de dois amigos que além de colaborarem

muito aqui no Chicos, nos estimulam muito. Antônio

Jaime, um baita poeta que continua inédito, lançou seu

primeiro livro de crônicas: Pedra que não quebra.

Ronaldo Cagiano, na reabertura da Biblioteca Ascânio

Lopes, agora na Chácara Dona Catarina, nos apresentou

um belo livro de poesias Sol nas feridas.

Antônio Perin nos apresenta a poesia e o poeta palestino

Mourid Barghouti.

A poesia argentina se faz presente através de Eduardo

Dalter.

Fernando Abritta fez algo incrível e magnífico com o

Velho Catuxo de Adrino Aragão.

O editor Joaci Pereira Furtado indignado rompe com a

Igreja Católica.

A jovem Pâmela Bastos estreia aqui no Chicos.

Nesta edição conversamos com Flauzina Márcia, poeta

cataguasense radicada em Belo Horizonte, em mais uma

e-entrevista.

Dedicamos esta edição a Fernanda Lobo.

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Sumário

FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Um papo com Flausina Márcia 03 SÍLVIO FIORANI Rosas de Coleridge 13 JOSÉ ANTONIO PEREIRA Conto tirado de uma notícia de jornal 15 PÂMELA BASTOS Nos becos da sociedade 18 VANDERLEI PEQUENO A mucama da Catarina 20 JOACI PEREIRA FURTADO Carta de excomunhão 22 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Evolução da poesia brasileira 26 CARLOS TORRES MOURA Tunins & Antônios 30 RONALDO WERNECK Reluzir de pedras 31 RONALDO CAGIANO Do amor e seus enigmas 32 FERNANDO ABRITTA “Velho Catuxo” 35 RUBENS SHIRASSU JR

Grafite para Murilo Mendes 41 ANTÔNIO PERIN A lealdade do soldado 43 MOURID BARGHOUTI Sem misericórdia e outros poemas 44 EDUARDO DALTER Siete notas de invierno 47

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Um papo com

Flausina Márcia da

Silva

Flausina Márcia da Silva nasceu em Cataguases, reside atual-mente em Belo Horizonte.

Escreve poesia desde 1979, em 1985 publicou vários poemas no antigo jornal Diário de Minas. Teve poemas publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, vários sites na internet e em alguns números anteriores aqui do Chicos. Publicou seu primeiro livro em abril de 2002 O Vaga-lume pela Edições Memória Gráfica. Publica em 2003, Sua Casa Minha Cruz pela Orobó Edições. Com Flausina Márcia publicamos a segunda entrevista do Chicos. A entrevista com o romancista Fernando Cesário foi feita por e-mail e esta também. Portanto publicamos mais uma e-entrevista aqui na nossa e-zine.

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Um papo com Flausina Márcia da Silva

Chicos: Flau, pra começar fale-nos um

pouco de você e de sua poesia?

Meu nome é Flausina Marcia da

Silva, sou sexagenária, tenho uma

filha, um filho e um neto. No

estado, civil sou divorciada, no es-

tado de espírito, solteira. Já fui

mais comunicativa.

Emerson: Como nasceu o seu interesse

pela literatura? Conte-nos sobre o pro-

jeto Terças Poéticas no Suplemento do

Minas Gerais.

Sempre gostei de ler, o

aprendizado da leitura, para

mim, foi glorioso. Falo disso no

poema Êxtase, publicado no meu

primeiro livro, Vaga-Lume, de

2002.

Aos quatorze anos , tive acesso à

biblioteca do pai de uma amiga e

não saía de lá. Li, então, Sartre,

Maquiavel e Campos de Carvalho.

Havia coisas, nesses livros, in-

compreensíveis para a minha ida-

de, mas isso não me incomodava.

São livros que relí mais tarde,

com outros olhos, mas a mesma

paixão.

Não sou uma literata, apenas

aficionada da literatura.

Para falar do projeto Terças

Poéticas, Emerson, a melhor pessoa

é o poeta Wilmar Silva, seu

coordenador. Posso adiantar que

foi ótimo apresentar alguns

poemas de minha autoria, nas

sessões de terça-feira, no Palácio

das Artes, em Belo Horizonte, nos

primeiros anos do projeto, quando

era frequentadora assídua.

Morei em Cataguases, de 2007 a

2010, e me distanciei um pouco das

sessões.

José Antonio: Eu e o Emerson de certa

feita participávamos de uma conversa

sobre literatura com alunos do artista

plástico Altamir Soares. Um deles me

perguntou qual era a utilidade da poesia.

Ocorreu-me, responder-lhe que poesia

não era cerâmica que se divide em

decorativa ou utilitária. Não me lembro o

que disse na ocasião, mas sempre penso

no que diz Octavio Paz – poesia é a arte

de ver pela palavra a outra face da

realidade. Levando em conta tudo isto, o

que é a poesia para você? Como você vê e

lida com a palavra dentro do seu fazer

poético?

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Um papo com Flausina Márcia da Silva

Zé Antonio, me lembro de ter per-

guntado à minha mãe, aos seis ou

sete anos de idade, por que água

se chamava água. Não era uma

dúvida, era cisma com as pala-

vras. Virou paixão.

À pergunta sobre a utilidade, ou

para que serve a poesia, o poeta

Paulo Leminski respondeu: feliz-

mente, para nada. Pois é, a

poesia, um "inutensílio", é contrá-

ria, em si, à lógica do consumo.

Definir a poesia é muito difícil. Os

poetas são sempre chamados a

fazê-lo e o fazem, muitas vezes

magistralmente.

Quero só afirmar que, quando

escrevo um poema, fico agrada-

velmente surpreendida. As pala-

vras tornaram-se vivas, mais uma

vez.

Jorge Luis Borges facilita - "...

todos sabem onde encontras

poesia. E quando ela chega, sente-

se seu toque, aquela comichão

própria da poesia."

Emerson: Rainer Maria Rilke dizia que

ao poeta devia bastar a sua obra e que

seu destino de poeta era a cruz que

deveria carregar sem querer, sem

pensar em outra recompensa a não ser

a satisfação da realização artística. O

poeta é isto ou não? A poesia pode ser

também um meio de sobrevivência?

Emerson, o Rilke é engraçado. As

Cartas a um Jovem Poeta, me

impressionaram pela bondade com

que ele trata seu interlocutor e pela

sabedoria de suas orientações ao

jovem poeta. Em algumas cartas,

porém, me chamaram a atenção,

suas queixas sobre a pobreza em

que se encontrava. No entanto,

menciona muitas viagens, que

interrompiam o fluxo da corres-

pondência. Eu indagava sobre a

origem do dinheiro para viajar e

algumas pessoas me disseram: são

os amigos, Flau.

Ví numa coletânea da revista

Discutindo Literatura, que o livro

EU, do Augusto dos Anjos, é

considerado, até hoje, o livro de

poemas mais vendido da história

da literatura brasileira. A conta é

de 5500 exemplares. Ele não se

sustentou com dinheiro desse livro,

sabemos que foi professor e nessa

profissão terminou seus dias em

Leopoldina. E mais, as editoras,

distribuidoras e livrarias ganham

mais de 90% das vendas. Se

escritores, artistas e poetas não

fazem greve, tem que haver uma

abordagem menos crucial do

problema.

Page 7: Chicos 32 outubro 2011

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Um papo com Flausina Márcia da Silva

Minha opção, porque não havia

outra, foi pagar pela publicação

dos meus três livros de poemas,

com as sobras surgidas de cor-

reção de fundo de garantia

antigo, Pasep recebido na aposen-

tadoria e por aí.

A primeira publicação tirei, foi do

décimo terceiro mesmo, mas a

venda foi boa e o Vaga-Lume se

pagou, melhor não se apagou.

O segundo livro pagou 70% do

gasto e o terceiro foi péssimo de

venda. O dinheiro estava ligeira-

mente mais farto e me esforcei

menos do que o exigido para

realizar bons lançamentos. Em

2012, voltarei à luta, para

publicar o quarto livro.

José Antonio: Antônio Perin diz que

quando algum fato seja lá de que época

for o incomoda, provoca raiva, nó na

garganta ele usa a poesia para aliviar

sua dor. Diz mais: Eu acho que a

poesia é um aríete para romper a

estupidez e a ignorância humana. Dá

para enquadrar a emoção ao metro?

Dá para mudar o mundo “caminhando

e cantando”?

Mudar o mundo é uma proposição

grandiosa. Minha experiência

com ela começou nos idos de

1966/67, quando contestávamos o

capitalismo e o imperialismo norte-

americano. O poema Maria Espe-

rança do Perpétuo Socorro fala um

pouco dessa experiência, viven-

ciada por muita gente, em medidas

diferentes de envolvimento.

A digressão, Zé Antonio, vem ao

caso da poesia como aríete. Minha

escolha pessoal é não usar a poesia

com finalidades políticas. Alguns

dos meus poemas revelam que sou

antenada no assunto. O caso é que

não aprecio receitas de vida e

muito menos de poesia.

Emerson: Voltando ao livro “Sua casa

minha cruz”: Maria, o arquétipo da

figura da mulher na civilização cristã;

Maria o nome do sacrifício, no dizer de

Anelito de Oliveira. Essa concepção não

destoa da imagem da mulher, Flausina

Márcia da Silva, engajada que foi no

movimento feminista da mulher parti-

cipativa, vista com reservas até por al-

guns intelectuais (por enquanto vamos

deixar Schopenhaeur por fora disso)

Onde fica a poetisa Flausina neste jogo?

O Anelito de Oliveira é o editor do meu

livro Sua Casa Minha Cruz (2003). O

poema Maria Esperança do Perpétuo

Socorro, comentado por ele, na orelha

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Um papo com Flausina Márcia da Silva

do livro, conta a vida de uma

mulher, que aceita os desafios da

época em que vive. O título do

poema foi escolhido por isso

mesmo, contraste da sua carga

simbólica com as vivências da

personagem. O poema se rebela

contra seu título. A poetisa tem

o estilo próprio da pessoa que é.

Emerson, não vou fazer exercício

de adivinhação dessas reservas

sobre as quais você pergunta, mas

se há preconceito no meio, vou

recorrer ao dicionário: estilo, em

botânica, é o prolongamento do

ovário, que suporta o estigma.

José Antonio: Tem um monte de auto-

res umbigais por aí. Passam o tempo

todo em um processo de auto louvação.

A crítica sumiu da mídia. Hoje, nos

jornais diários, só se vê e quando se vê

só aquelas resenhas elogiosas, que mais

parecem notas de orelhas de livros.

Como o leitor vai encontrar uma lite-

ratura no mínimo honesta nesta profu-

são de livros que surgem todo o dia?

Leitores nunca são bobos e sem-

pre encontram o que querem ler.

Leitores em formação, esses sim,

devem ser a preocupação consta-

nte das políticas públicas de

educação e de cultura. O proble-

ma é essa entidade chamada

mercado, mas acredito que seu po-

der não é absoluto e incontestável.

Os inquietos procuram abrir outros

caminhos editoriais para jornais e

revistas literárias e criam peque-

nas editoras também. Conheço

alguns exemplos e posso até fazer

uma relação deles para algum

outro número da Chicos.

Emerson: Antídoto do tédio, ou

“Noigandres” no idioma provençal daí

procede o título da revista que os irmãos

Campos editaram, no auge do concre-

tismo. Você acha que a poesia pode

vencer o tédio. O que mais pode a

poesia?

O Suplemento Literário de Minas

Gerais publicou um número

especial , em outubro de 2006, par

homenagear os 50 anos do

lançamento da poesia concreta no

Brasil. Foi a primeira vez em que lí

textos mais substanciais sobre esse

fenômeno cultural. Já havia

assistido uma palestra do Décio

Pignatari, uma apresentação artís-

tica do Haroldo de Campos e lido o

ABC da Literatura do Ezra Pound,

mas conhecia apenas indícios desse

movimento criador de uma nova

poesia.

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Um papo com Flausina Márcia da Silva

A apresentação do Haroldo de

Campos me impressionou o bas-

tante para que escrevesse o

poema Gás - Sua Casa Minha

Cruz, pág. 12.

É inegável que os idealizadores

desse movimento, Haroldo e

Augusto de Campos e o Décio

Pignatari, são intelectuais de

erudição gigantesca e a eles agra-

deço ter lido poemas, que sem

suas traduções, provavelmente

não leria.

No mais, Emerson, estou entre a

frigideira e fogo, pois, naquele

Suplemento, ví também que

Noigrandes é a única palavra dos

trovadores provençais que

nenhum especialista traduziu e

que foi escolhida para nome da

revista, publicada pelo Movimen-

to Poesia Concreta, pelo seu

sentido de enigma.

José Antonio: Somos de uma geração

que cresceu dentro das salas de

cinema, a cidade tem uma história no

cinema. O que o cinema significa para

você. Seu fazer literário conecta-se com

outras expressões artísticas? Se

acontece como isto se dá?

É verdade, Zé Antonio, somos

muito de cinema mesmo. Em Belo

Horizonte, o interesse pelos filmes

de autor/diretor sempre foi uma

constante entre os grupos de cinéfi-

los e cineastas, cujas realizações

fazem parte da memória da cidade.

Tenho alguns amigos nessa turma.

No pouco em que voltei a residir em

Cataguases sentia muito a falta de

uma boa sala de cinema, com pro-

gramação de filmes mais artísticos

e menos comerciais. No entanto, sei

que há projetos interessantes da

área do audiovisual, em desenvol-

vimento na cidade e torço para que

a herança de Humberto Mauro,

finalmente dê frutos em sua terra

natal.

Minha maior proximidade com essa

forma de linguagem se deu quando

fiz um curso de roteiro cinema-

tográfico, coordenado pelo Paulo

Vilara, com aulas também do Paulo

Augusto Gomes, do Mário Coutinho

e do Geraldo Veloso. Foi ótimo,

mais não batalhei para entrar no

ramo da produção, continuo

platéia, com muito prazer.

Por apreciar trabalhos das outras

artes, provavelmente, minha poesia

recebe influência delas, mas não

busco, deliberadamente, articular

várias formas de linguagem. A

nossa riquíssima língua

portuguesa tem sido desafiadora o

bastante para mim.

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Um pouco da poesia de Flausina Márcia da Silva

Maria Esperança do Perpétuo Socorro

VI

Maria Esperança do Perpétuo Socorro, conhecida por Mansa, no retrato da primeira comunhão, aparece lambuzada de Deus. No primeiro baile, alguém beijou sua lambuzança. Nas primeiras coisas, Mansa se estrepava. Nas segundas, sentia cansaço e pensava.

Sem querer, pensava em andorinhas, o horóscopo as pessoas sem querer. Mansa, de tanto sem querer, esquecia seus pensamentos. Voava de um pensamento a outro sem pensar.

No primeiro encontro com os pensamentos se estrepou no segundo se cansou ao terceiro se entregou...

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Um pouco da poesia de Flausina Márcia da Silva

IX

Por sentir beleza por insistir por existir Mansa novamente se estrepou se cansou se entregou. Apreciando as Artes, descobriu sua natureza de mulher, Deu à luz filhos filhos de sua própria natureza.

XI Na primeira vez esbanjou carinho na segunda esbanjou mulher na terceira sonhou com a eternidade.

Estabelecida, Mansa criou raiz, fundou residência se agarrou ao dia bordejando a noite.

Admirada, Mansa viu desafios: jornal democrático movimento estudantil feminismo cinema poesia ganhar dinheiro casar-se democratizar a vida “carnavalizar a vida” sublevar...

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Um pouco da poesia de Flausina Márcia da Silva

XIV

Foi quando quis saber da felicidade. É uma casa pequenina? procurar sempre? felicidade foi embora? Embora haja eu não quero? Quero, mesmo que não haja? Mansa 'garrou inventar jeito de ser mulher. No primeiro jeito...

Deu pra pensar que não tinha jeito a cada defeito que via Num itinerário estonteante, Mansa, apaziguada entre defeitos e os amores perfeitos viveu.

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Um pouco da poesia de Flausina Márcia da Silva

XVIII

Maria Esperança do Perpétuo Socorro, adquirindo nome, sobrenome e cidadania, danou-se. Foi quando o mundo acabou e Maria Esperança do Perpétuo Socorro, começou sua plantação de ervas. Primeiro vieram as rosas segundo as hortelãs terceiro as inúmeras possiblidades...

Terra, planeta oferece para os que vão à lua um banquete para os que ficam as terráqueas novidades para os indecisos esperança para os que esperam socorro para os infinitos seres a perpétua maria.

Cores

Azuis me olham e eu verde olhos azuis

Verde imatura verde nova verde fora de época

Épica.

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Sílvio Fiorani

Rosas de Coleridge

Sonhei que acordara como

ruído da porta que se abria

lentamente, e eu estava entre os

lençóis, reclinado sobre travesseiros

sobrepostos, como costumam ficar os

convalescentes. Vi, de soslaio, que

era Luísa, minha mãe, quem entrava,

vinda de alguma dimensão

desconhecida de sua existência [isto

num tempo (o da vigília e o do sono)em

que ali, em nossa velha casa, não havia

mais ninguém, pois ela morrera, e

também meu pai; partíramos todos:

uns, para a viagem eterna; outros para

a verdadeira vida a que estamos

destinados]. Luísa viera, pois, invadir

o meu sono, enquanto eu ainda

convalescia de uma moléstia não

diagnosticada. E no sonho fingi que

continuava a dormir, para que ela não

interrompesse o caminho até minha

cama. Aproximando-se, ela colocou-me

algo entre as mãos postas sobre o

peito, e eu só abri os olhos com o ruído

da porta que se fechava; abri os olhos,

e vi afinal a rosa branca que eu

resolutamente segurava; e ali, ainda

reclinado, recobrei a memória de sua

morte, levantei-me e corri para ver se a

via ainda uma vez, e acordei, e ao brusco

movimento a rosa esfacelou-se, e era

real por si mesma, embora desfeita, tão

real quanto o fato inapelável de que

minha mãe morrera. Eu jamais a veria

outra vez. Então, saí para o corredor e

me dirigi ao quarto de Fabrício, meu

irmão. Encontrei-o sentado junto à

escrivaninha, lendo algo. Ela esteve a

aqui, eu lhe disse, e ele, nada

respondendo de pronto, virou-se para

mim e ergueu no ar o papel que eu

imaginei que estivera a ler. Apareceu-me

também, ele disse afinal. Deixou-me isto

e partiu. Era uma folha em branco; o que

lhe parecera altamente significativo,

dado o ar de gravidade com que me

olhava. Era um papel de carta, com sua

marca d´água plenamente reconhecível.

Senti naquele momento um intenso

calafrio, e acordei ou imaginei que

tivesse acordado.

Page 15: Chicos 32 outubro 2011

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Sílvio Fiorani

Eu estava de fato reclinado sobre

travesseiros sobrepostos. Não havia

nada mais sensato a fazer, eu pensei,

que ir até o quarto de meu irmão e

contar-lhe o que acontecera.

Fabrício estava sentado junto à

escrivaninha, anotando algo sobre um

bloco de papel. Relatei-lhe o que

ocorrera, e o que para mim era

mistério e prodígio, a ele pareceu

apenas a manifestação do acaso,

embora eu ainda tivesse a haste da

rosa branca entre as mãos. Elevando a

voz ao seu melhor registro (assim lhe

deve ter parecido) proclamou a

impossibilidade de se crer naquele

impasse como coisa real por

dentro. Nada se cria, tudo se

transforma, ironizou. Nos anos de

colégio, ele havia sido imbatível em

física e matemática, como os céticos

renitentes costumam ser na

adolescência. Atirei-lhe as minhas

considerações sobre universos

paralelos, o mundo pleno de

possibilidades para além dos cinco

sentidos, o que lhe causou uma certa

fúria, própria de seu temperamento

intempestivo, e o fez golpear com a

palma da mão a escrivaninha. O ruído

(real ou irreal, que importa?) afinal me

despertou, e eu estava em um outro

quarto, outra casa, outra cidade (outro

tempo?)., com a persiana a filtrar a luz

de uma manhã estiva e plenamente real.

Dias depois, recebi de meu irmão uma

carta inusitada, em que começava por

dizer que havia sonhado com Luísa, e no

sonho ele estivera em seu quarto, junto à

escrivaninha, revisando um relatório de

empresa a ser entregue no dia seguinte.

Sem nada dizer, com o ar sereno e

complacente de sempre, ela chegou até

ele entregou-lhe uma folha de papel em

branco, e partiu.

Sílvio Fiorani (São Paulo SP)

Da geração de escritores surgidos dos anos 1970, consagrado pela

crítica desde seu primeiro romance O sonho de Dom Porfírio,

publicou Os estandartes de Átila, A morte de Natália, Entre os

reinos de Gog e Magog. Em 2006, ganhou o premio Machado de

Assis, da Biblioteca Nacional, pelo melhor romance publicado em

2005 com Investigação sobre Ariel, que encerra a trilogia iniciada

com o romance A herança de Lundstrom, seguido de O evangelho

segundo Judas.

Page 16: Chicos 32 outubro 2011

15

José Antonio Pereira

Conto tirado de uma notícia de jornal

Maria da Silva saiu

injuriada da delegacia. Esbravejava

sem parar: Imagina só. Os salafrários

da prefeitura estão tentando convencer

o delegado, que o meu Jesus morreu

dentro da minha casa.

Jesus de José Silva, assim estava na

certidão de nascimento e desta forma

também constou na de óbito.

Aposentara há algum tempo, aos

cinquenta e um anos. Isto já tinha prá

mais de dez anos. Tivera muitos

problemas com as aguardentes ao longo

da vida, por causa delas acabou

aposentando por invalidez.

Apesar do nome de pia, seus amigos o

chamavam de Zé, tementes a Deus

achavam um sacrilégio chamar de Jesus

um pé de cana daqueles. Outros, para

diferenciar de tantos Zés, Zé disso, Zé

daquilo, Zé de Fulana, Zé de Sicrano e

por respeito à Maria o chamavam de Zé

da Maria do Jesus. A Maria sim podia

ser de Jesus.

Depois de aposentar-se trocou a

cachaça por outros vícios. Passava o

tempo entre o dominó, a bisca de rela e

o buraco com os amigos na pracinha do

bairro. Já o truco fora proibido pela

Maria, fora parar umas três vezes no

plantão do SUS por conta de uma pressão

alta em função do excesso de entusiasmo

com o jogo. De tanta bronca da Maria,

largou o truco. Reclamou muito, já não

bebia, não fumava. Não adiantou, Maria

continuava cobrando dele. Já se achava

até meio santo, virara um homem sem

vícios, um casto sem ter feito os votos já

que a Maria não queria mais saber de

sexo. Ele bem que tentava. Cercava

daqui, cercava dali e nada. A mulher o

rejeitava em todas as investidas, ora o

raio da dor de cabeça, ora o diabo de uma

prisão de ventre, além de uma novidade

que o médico enfiara na cabeça dela.

Desde quando ela passou a ter esse trem

de nome esquisito. Uma tal de têpêême,

as coisas pioraram de vez. Além de

renegar os meus carinhos, vivia numa

brabeza danada, outra hora uma

choradeira danada, tudo do nada, sem

tino ninhum, entremeado com um

falatório em que tudo que estava errado

era minha culpa.

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José Antonio Pereira

Reclamava Jesus lá com os seus botões.

A vida seguia seu rumo e Jesus até

melhorara a aparência, o pé inchado

que só cabia numa sandália já entrava

até com folga no velho par de sapatos, o

pigarro provocado pelo cigarrinho

mata-rato também desaparecera.

Sentia-se remoçado. A companheirada

lá da pracinha até caçoava de seus

arroubos. Ele andava catando marra de

seu desempenho sexual, dizia que nem

do tal Viagra precisava. E dizia aos

amigos. Moçada preciso usar o restinho

que ainda tenho. Daqui a pouco o fogo

vai apagar de vez. Todos riam já que

todo dia entre uma cartada e outra de

uma bisca de rela ou do buraco, Jesus

reclamava da rejeição de sua Maria.

Alguns amigos mais chegados até o

provocavam. Fica esperto Zé! Vai ver

que tem Ricardão na área. Imagina!

Maria era católica praticante, jamais

cometeria tal pecado. Retrucava. Meio

cismado com tanta abstinência

continuava pensando. Será que a Maria

tá me corneando?

Na sexta feira pela manhã, Maria

cansada de ligar para o 178, com a ajuda

de um vizinho leva Jesus ao Hospital

passando mal. Após um atendimento

superficial ele é colocado no soro.

Quando Maria pensa que vão fazer

alguma coisa ou dar a ela uma

satisfação espetam nele outro soro.

Maria resolve ir em casa buscar uma

muda de roupa para o seu Jesus. No

caminho vai pensando o que teria levado

Jesus a passar mal, ele já não bebia, não

fumava. Estava até com uma cara boa.

Ele só reclamava mesmo era da falta

sexo. Ela fervorosa em suas crenças

achava que sexo era pecado. Promete a

si mesmo que se ele escapar desta vai

deixar de vez em quando ele fazer uma

bobice com ela. Mas só de vez em

quando.

Maria entra na sua rua e encontra em

sentido contrário com um carro da

assistência social, virando a esquina

praticamente junto com ela. Chega em

casa, estranha o portão aberto, entra e dá

de cara com o seu Jesus esticado em uma

velha cadeira de balanço na varanda.

Aterrorizada grita. Os vizinhos acodem e

chamam a policia.

Enquanto Jesus estirado em uma

bancada no necrotério aguardava seu

último destino. Na delegacia a discussão

fervia. A prefeitura alegava que Jesus foi

atendido de manhã, ficou em observação

o tempo todo e recebeu alta à tarde. E

afirmava que o motorista que o

transportou o deixou vivo em casa.

Maria entre uma crise de choro e outra

dizia que ela ficou no hospital com Jesus

até o início da tarde, só apareceu um

Page 18: Chicos 32 outubro 2011

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José Antonio Pereira

enfermeiro para trocar o soro. Não deu

nem tempo de acabar o soro. Maria

insistia que abandonaram o Jesus em

sua varanda já morto. O delegado

acena para o escrivão e resolve por

termo ao depoimento. A dor, o cansaço

e o descaso derrotam Maria. Uma

resignação de boi rumo ao abate que

acomete a todos cidadãos de segunda

classe quando buscam qualquer

instancia de poder. Enquanto isto Jesus

nu e tão frio quanto o silencio do

necrotério vive seu início de abandono

e esquecimento.

José Antonio Pereira (Cataguases MG)

Coautor de A Casa da Rua Alferes e outras crônicas, editor do Chicos.

Família acusa hospital de dar

alta a um morto, em

Governador Valadares.

21/01/2011

Uma família de Governador Valadares, no

Leste de Minas Gerais, acusa o Hospital

Municipal da cidade de dar alta a um

homem que já estava morto. A família diz

que o aposentado Silva de Jesus, foi levado

ao hospital, nesta sexta-feira (21), depois de

passar mal.

Segundo a mulher do aposentado, Maria da

Silva, ele teria recebido duas doses de soro e

teria sido liberado em seguida. Ainda

segundo a família, o carro da assistência

social do município teria levado o

aposentado para casa.

A assessoria de comunicação da prefeitura de

Governador Valadares informou que o

paciente foi atendido no hospital pela

manhã, ficou o dia todo em observação e

recebeu alta no fim da tarde. A assessoria

disse também que foi feito um boletim de

ocorrência sobre o caso e que o motorista

que transportou o aposentado disse que ele

estava vivo quando foi deixado em casa.

Page 19: Chicos 32 outubro 2011

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Pâmela Bastos

Nos becos da sociedade

Ela estava ali parada, em um

beco escuro, perto de um bar. Saia

curta, salto alto, decote profundo e

uma maquiagem terrivelmente

exagerada. Ela não gostava, mas

uma "amiga" de profissão lhe disse

certa vez que se quisesse algo, as

coisas teriam que ser assim. Uma

mulher bonita, de traços

delicados, mas de rosto cansado,

destruído pela vida e pela

profissão.

Lembrava-se bem quando come-

çou; inexperiente, mal sabia

quanto cobrar. Teve que aprender

rápido, pois as outras mulheres

não tinham paciência para ensiná-

la.

Pensou que hoje o dia não ia ser

dos melhores. E ela tinha medo.

Tinha medo pois precisava fazer o

que fazia para sustentar sua irmã

menor e a avó doente. Do

paradeiro da mãe ela não sabia,

nem fazia questão; dizia que sua

verdadeira mãe era a avó.

Ela ainda se lembrava de quando

era criança. Sonhava em se casar

com um príncipe encantado. Riu-

se. Olha onde estava agora.

Por isso, fazia o impossível para

manter a pureza da irmã. Se

orgulhava quando a via indo para

a escola de saia rodada e pasta cor-

de-rosa. Esse era outro sonho que

não pôde realizar; estudar. Mas

não se importava, pois sabia que

sua irmã realizaria esse sonho por

ela.

Acendeu um cigarro; achou

melhor ir para outro lugar. Ali

onde estava não conseguiria nada

além de um bêbado imundo. Esse

era o tipo que ela mais detestava.

Viu um restaurante, desses com

mesas na calçada; era um bom

lugar. Se posicionou debaixo de

uma árvore, onde não chamava

muita atenção, mas não ficava

invisível.

Page 20: Chicos 32 outubro 2011

19

Pâmela Bastos

Olhou para o restaurante. Era um

lugar bonito; nada de luxuoso,

mas havia muitas famílias ali. Ela

achava lindo quando via uma

família reunida. Acreditava que

um dia iria formar a sua também;

com direito a bichinho de

estimação e tudo mais.

Quem visse aquela prostituta

vulgar, parada em frente a um

restaurante com um cigarro nos

lábios, jamais imaginaria que

debaixo daquela capa o que havia

era uma menina inocente, que

nunca tivera amor, e que ainda

chorava nos emocionantes

capítulos finais de novelas.

Olhou novamente para o

restaurante; um homem chegava e

sentava-se sozinho em uma das

mesas. Olhou novamente para ele.

Ela o conhecia!

Como poderia se esquecer de seu

grande amor de juventude?

Pensou em ir até lá falar com ele,

mas parou no meio do pensa-

mento. Não dava para prever como

seria recebida. Vez ou outra ainda

se esquecia de sua condição...

Foi quando viu uma mulher linda

chegar com duas crianças e se

juntar a ele. Ficou na dúvida se

aquela seria sua esposa, mas teve

certeza quando ele a beijou e

abraçou as crianças; seus filhos

aparentemente.

Acendeu outro cigarro; achou

melhor ir embora. Hoje o dia não

renderia. Mas ela não iria chorar

por isso.

Ela sabia, a sociedade também

sabe -ou pensa que sabe- pros-

titutas não têm sentimento.

Ainda dava tempo de assistir o

final do último capítulo da novela

das nove. Cruzou o dedinho e fez

uma aposta consigo mesma. Dessa

vez ela não iria chorar...

Pâmela Bastos (Cataguases - MG)

Nascida em Leopoldina, no dia 8 de dezembro de 1994.

Reside atualmente em Cataguases.

Estudante do CEFET-MG em Leopoldina.

Page 21: Chicos 32 outubro 2011

20

Vanderlei Pequeno

A mucama da Catarina

Para José Antonio Pereira que

sugeriu o título desta crônica

Foto de Vicente Costa

Quem obrou aquela mulher

que fica ali, im(p)une, exibindo as suas

partes no espaço público, indiferente ao

curioso olhar do povo?

Eu, pessoalmente, acho que ela seja

lavra de alguma seguidora de Tarsila,

paulista, que lá nos idos de mil

novecentos e nada aportou aqui no

Brasil, pintando quadros e namorando

muita gente; Tarsila tornou-se famosa

em São Paulo nos anos vinte. Era rica,

bem de vida e artista.

Mas, eu trato aqui é daquela negra,

retinta, que está lá, sentada no jardim da

praça, desafiando todos nós. Sim, porque

já se sabe que ela não trabalha em fábrica

ou casa de família, não entrega almoço,

não cuida de velhinhas e também não

pede auxílio a ninguém. Banha-se de lua,

sol, sereno e chuva e quando começa a

amarelecer devido à ação do tempo, dá-

se ao luxo de receber borrifos de tintura

e massagem de dois homens, contratados

pela Companhia, cujos donos – veja só! -

gastam dinheiro para enegrecer sua pele!

O imaginário popular reza que a africana

é protegida da Catarina, uma madame do

tempo antigo que defendia a vida

hedonista. Catarina era relacionada,

vivia cercada de gente branca e bacana –

Page 22: Chicos 32 outubro 2011

21

Vanderlei Pequeno

inclusive de um coronel; destacava-se

das outras mulheres da cidade pela sua

elegância estrangeira, que veio de

longe, da velha Europa; morava

naquelas cercanias acompanhada de

diversas mocinhas, num ambiente de

espalhafatosa alegria. Quanto ao

hedonismo, ninguém, até hoje, sabe

muito bem o que vem a ser.

Voltando ao meu assunto, o certo é que

a Chica da Silva contrariou a lógica da

história, herdando terra em espaço

nobre da cidade, por referendo, isso,

anos depois de ter aportado aqui em

Cataguases, quando apenas alguns

poucos tinham dotes e patentes

garantidas pelo governo. Esses poucos

eram donos das terras, do comércio e

da vontade do povo. Não subscreviam

diplomas, mas ensinavam disciplina e

moral aos seus mandados; dominavam

bem as quatro operações básicas de

matemática, mas nunca gostaram de

dividir.

No que diz respeito à nossa plebéia,

outro dia uma pretensa madame,

indignada, reagiu à sua audácia

ensaiando denunciá-la por vadiagem á

prefeitura, mas declinou de seu

propósito, logo que soube que a

mucama estava ali sob as graças do

povo e que o Código de Posturas do

Município, apesar de ainda vigor, era um

documento anacrônico, em desuso,

ultrapassado, fora de moda.

E a negrinha continua lá, sentada,

despudoradamente, pés juntos, ancas

largas, distraindo as crianças que abarca

em seu largo colo, ou suporta brincando

dependuradas no comprido pescoço. Não

reclama.

Não há quem possa com a beleza da

quilombola! Quebra preconceitos e

instiga os que se prostram

(des)importantes no banco à sua frente,

mostrando os seios e revolvendo suas

libidos; exibe-lhes também um agudo e

excêntrico coque.

Fingindo alheamento, espreita os que

seguem no rumo da vila. Possivelmente,

futuros amantes.

Vanderlei Pequeno (Cataguases - MG)

Autor de entre outros a A ilha do Horizonte e coautor de

A casa da Rua Alferes.

Page 23: Chicos 32 outubro 2011

22

Joaci Pereira Furtado

Carta de excomunhão

São Paulo 10 de março de 2009

Exmo. Revmo. Sr. DD. Bispo Diocesano de Campanha Rua João Luiz Alves, 106 37.400-000 Campanha, MG C/C Tribunal Eclesiástico da Diocese de Campanha

Exmo. Revmo. Sr.:

Tendo sido batizado na Igreja

Matriz da Paróquia de Nossa Senhora

do Carmo, Diocese de Campanha, na

cidade de Campos Gerais (MG), em

1965, sob o nome de Joaci Pereira

Furtado (filho de José Vaz Furtado e

Tereza Maria Furtado), tendo como pa-

drinhos Diva Pereira de Amorim e

Walter Pereira, pela presente solicito a

remoção de meu nome daqueles regis-

tros de batismo com a seguinte menção:

“Declarado apóstata por carta escrita e

datada de 10 março de 2009”.

Consequentemente, exijo que seja

declarada, incontinenti, minha excomu-

nhão nos termos do § 1o do cânone 1364

do Código Canônico: “Apostata a fide,

haereticus vel schismaticus in

excommunicationem latae sententiae

incurrit [...]”. Afinal, minhas convicções

éticas, políticas e filosóficas não cor-

respondem àquelas da instituição a que

me filiaram por meio do batismo.

Com minha excomunhão, os escrú-

pulos da verdade de V. Revmo. E os

meus serão aliviados, e os seus registros

ficarão isentos de qualquer ambigui-

dade, conforme se justifica a seguir.

I. Dos requisitos para a excomunhão

Afirma o cânone 751 do Código

Canônico: “Dicitur haeresis, pertinax,

post receptum baptismum, alicuius

veritatis fide divina et catholica

credendae denegatio, aut de eadem

pertinax dubidatio; apostasia, fidei

christianae ex totó repudiatio; schisma,

subiectiones Summo Pontifici aut

communionis cum Eclesiae mebris

eidem subditis decretatio”.

Conforme lição de Carlos Corral

Salvadore e José Maria Urteaga Embil,

em seu Dicionário de Direito Canônico,

o conceito de apóstata aparece no

cânone 751: “Apostasia é o repúdio total

da fé cristã”. Verifica-se esse repúdio

quando se nega o próprio fundamento

da fé cristã, quer dizer, os mistérios da

Trindade e da Encarnação. É apóstata

da fé cristã quem rejeita Jesus Homem-

Deus, pois a fé cristã consiste substan-

cialmente na revelação que Deus fez em

Jesus, Deus e Homem.

Page 24: Chicos 32 outubro 2011

23

Joaci Pereira Furtado

É necessário, porém, distinguir o

pecado de apostasia do delito de

apostasia. O cânone 751 declara quem é

apóstata, no sentido teológico e moral.

Mas, para que o pecado de apostasia

seja também delito de apostasia, é pre-

ciso comprovar se existem elementos

essenciais do delito, de modo especial os

indicados no cânone 1330.

Para que exista o delito de apostasia, é

preciso que o repúdio da fé cristã, en-

quanto tal, seja externo; e, para que

possa ser considerado consumado, é

preciso que seja percebido por alguém.

Outro não é o caso.

Meu ato é externo, uma vez que escrito,

e percebido por alguém, o Exmo Revmo

Bispo Diocesano de Campanha, que dele

é testemunha – assim como qualquer

outra pessoa que venha a ler a presente

carta.

A pena prevista para o apóstata,

como também para o herege e o cismáti-

co, é, de acordo com o cânone 1364, a

excomunhão latae sententiae.

Ainda no cânone 751, define-se o

cisma como a recusa de sujeição ao

Sumo Pontífice ou de comunhão com os

membros da Igreja a ele sujeitos. Quem

se subtrai à obediência da Igreja e à

comunhão constitui-se propriamente

em cismático, pois o pecado de cisma

consiste em recusa de sujeição ao Sumo

Pontífice ou de comunhão com os

membros da Igreja a ele sujeitos, inde-

pendentemente do motivo que haja para

tanto. Esse fiel incidiria numa rejeição

formal da Igreja Católica, de que fala o

cânone 1117.

Já a heresia é a negação ou dúvida

pertinaz de uma verdade que deve ser

crida com fé divina e católica da parte de

um batizado. No cânone 750 indicam-

se quais as verdades de fé divina e

católica.

Com relação à gravidade do presen-

te ato, e conforme declarava o Código

Canônico de 1917, a pena é latae

sententiae ( ou automática) se vai unida,

de tal forma, à lei ou ao preceito que se

incorre nela pelo próprio fato de se ter

cometido o delito, não sendo necessário

que o juiz ou superior a aplique.

Essas definições estão claras na

presente missiva, não podendo ser nega-

das, além de continuar sendo válidas

atualmente. Trata-se, pois, de “delito

doloso”, cometido à ciência e consciên-

cia de que está transgredindo um precei-

to legal.

II. Da motivação para a excomunhão

Considero a religião católica como

a forma mais sofisticada de superstição

que, no entanto, não se reconhece como

tal, sendo refratária ao racionalismo e

incapaz de aceitar a decisão de renúncia

Page 25: Chicos 32 outubro 2011

24

Joaci Pereira Furtado

da fé religiosa. Portanto, como forma

de confissão pública de minhas

intenções de ser excomungado, e para

ter certeza de que minha blasfêmia

esteja suficientemente clara, afirmo:

Não creio na existência de Deus ou

de deuses, reinos sobrenaturais ou vida

após a morte, Inferno, Paraíso,

Purgatório e Reino do Céu e não agirei

como se eles existissem.

Não creio que Deus ou qualquer

entidade sobrenatural tenha criado o

Céu e a Terra.

Não creio na divindade de Jesus de

Nazaré, o Cristo, personagem central

dos Evangelhos, e duvido inclusive de

que ele tenha existido historicamente.

O mesmo é válido para Maria de Nazaré,

a Virgem Maria.

Não creio no Juízo Final, episódio

em que Cristo voltaria ao mundo para

julgar vivos e mortos.

A Bíblia é uma coletânea de poemas

e narrativas derivados da tradição oral

de camponeses da antiga Palestina e co-

munidades judaico-cristãs do Mediter-

râneo, de autoria incerta – mas sempre

e exclusivamente humana –, com valor

estritamente literário, histórico e antro-

pológico.

Não creio na existência do Espírito

Santo ou em qualquer poder atribuído a

ele.

Nego toda forma de crença ou

religião. Por isso renuncio ao

catolicismo que me foi imposto sem

consulta, durante a cerimônia em que

fui batizado, quando eu ainda contava

poucos meses de vida. Portanto, não

me reconheço e não me declaro mais

como católico romano.

Não aceito a posição da Igreja sobre

o divórcio, o controle da natalidade e o

abor-to, aos quais declaro meu total

apoio, assim como nego radicalmente as

restrições dessa instituição aos

programas governamentais de distribu-

ição gratuita de preservativos e de edu-

cação sexual.

Sou favorável à legalização de

eutanásia.

Sou homossexual e defensor da le-

galização do matrimônio civil de casais

de mesmo sexo, assim como de todos os

demais direitos civis de que ainda nós,

homossexuais, somos privados.

Não creio em sacramentos, orações,

milagres ou em teologia, e tenho freque-

ntado os templos católicos apenas em

batizados, casamentos e funerais, a

convite ou por laços afetivos, ou durante

visitas turísticas.

Page 26: Chicos 32 outubro 2011

25

Joaci Pereira Furtado

Não assisto à missa aos domingos

e dias santificados, não comungo e não

me confesso desde 1984.

Renuncio a todas as bênçãos,

graças, santificações, indulgências e

vantagens supostamente conferidas a

minha pessoa por qualquer ato reli-

gioso realizado por mim ou em meu

benefício no passado, no presente ou

no futuro.

Renuncio à ideia do pecado

original e a qualquer batismo feito em

meu benefício com a intenção de

remover esse dito pecado de mim.

Rejeito como ridícula a ideia dos

sacrifícios expiatórios e de seus

presumidos benefícios.

Não creio que qualquer livro,

edificação, local, pessoa, objeto,

relíquia, pensamento ou ato sejam

santificados e não simularei que assim

eles são.

Não me sujeito ao Sumo Pontífice

da Igreja Católica Apostólica Romana –

autoridade que no momento é exercida

pelo papa Bento XVI, na cidade de

Roma, Itália.

Creio que orações não são mais

que conversas consigo próprio, sem

qualquer efeito sobre a realidade.

Não creio que haja pessoas

santificadas, ou que um ser humano

deva ser mais elevado em relação a

outro por ancestralidade, raça, sexo,

comportamento sexual, ocupação, status

social, crença ou qualquer outra razão.

Como me incomoda o fato de que

alguém, em algum lugar, possa me

incluir como membro de uma

superstição irracional que tem causado,

e ainda causa, irreparáveis danos à

Humanidade, e com a qual estou em

profundo desacordo, requeiro de V.

Revmo a efetivação de minha exco-

munhão e o registro de que não sou mais

um católico romano.

A presente carta envolve exco-

munhão e estou ciente das implicações e

das consequências de meu ato. Afirmo,

pois, que o faço de plena consciência, de

livre e espontânea vontade e com grande

alegria por me ver livre do fardo de

formalmente ainda ser considerado

católico.

Solicito, por fim, confirmação

escrita deste ato dentro da maior

brevidade.

Atenciosamente

Joaci Pereira Furtado

Joaci Pereira Furtado (São Paulo – SP)

Editor do selo Tordesilhas Recebeu sua excomunhão algum tempo

depois desta carta por Sedex. Joaci tomou esta iniciativa após o

Arcebispo de Olinda e Recife excomungar a mãe e a equipe

médica que realizou aborto numa menina de 9 anos, habitante de

Alagoinha, Pernambuco, que fora estuprada pelo padrasto. A mãe

da criança afirmou que não procurou ajuda médica antes por

achar que a barriga da filha crescera por causa de uma

verminose, doença muito comum nas regiões mais pobres do

Brasil.

Page 27: Chicos 32 outubro 2011

26

Emerson Teixeira Cardoso

Evolução da poesia brasileira

Agripino Grieco em caricatura de 1943 feita por Nássara

É obra ímpar, escrita nos anos

30, ou publicada nos anos 30, para ser

mais exato. O livro é uma joia e o

tempo só pôde valorizar este exemplar

de crítica literária, quando ainda havia

crítica literária e o autor, um dos

melhores do gênero: Agripino Grieco.

Dele escolhi alguns trechos que apre-

sento aos leitores desta edição de

Chicos.

Alvares de Azevedo: “Sua bohêmia, suas

orgias seriam antes cerebrais que reais.

Abusava do “spleen” como se a ligeira

garoa paulista igualasse o “fog” londrino.

Explorou as duas banalidades sempre

originais deste nosso pobre mundo: o

amor e a morte. Foi o mais byroniano

dos Byronianos, sem as turras deste com

sua progenitora ou das suspeitas

aventuras com a irmã. E, afinal, Alvares

não poderia imitá-lo no vestuário, no

ambiente provinciano de São Paulo de

1850 – seria ridículo”.

Falando de Bernardo de Guimaraes

(ficando ainda nos românticos) diz ter o

romancista desposado certa mocinha sua

admiradora, de cujo enlace nasceu

Constância, aquela que foi eternizada

por Alphonsus de Guimarães nos seus

sonetos.

Page 28: Chicos 32 outubro 2011

27

Emerson Teixeira Cardoso

Esses poetas tristes do Brasil, aliás,

falando deles diz que: “São como esses

coveiros, práticos que revendem a

coroa do cemitério. Acabam de por o

dinheiro na caixa e escrevem: “Como

sou infeliz! Como sou infeliz!” e ainda

conclui: “nênias que são incapazes de

comover seus leitores. Tais desgraças

são como anúncios de missa e as

notícias necrológicas que só podem

interessar aos conhecidos das vítimas.”

Muito bom, não?

Mas com respeito a Castro Alves: “Um

dos antecipadores de nossa poesia

modernista. Tinha a atração dos cimos

e mostrava uma profunda piedade por

quem não houvesse lido Vitor Hugo e

havendo lido Hugo, não entendesse

Hugo”.

Acrescentando a isto: “O poeta que

encantava o melancólico Antonio

Nobre, e entusiasmou o irônico Eça de

Queiroz, é algo de incomparável, e no

mapa de nossos grandes produtos, ao

lado das indicações: café, cacau, assúcar

(no original assim com ss) bem que po-

deríamos escrever também: Castro

Alves.”

Isso é o que chamo de bate e assopra.

Mas como bate e como assopra!

Ainda Castro Alves: “Cantou os

palmares, a sua “Tróia Negra”. Quando

escreveu “Navio Negreiros” tinha apenas

vinte e um anos, idade que nem o

próprio Hugo fizera ainda nada de

extraordinário.”

Dá prá discordar?

Sobre Vicente de Carvalho esta deliciosa

frase: “não apedrejava as namoradas

com quinhentismos contundentes.”

Recorda-se de ter visto certo dia do ano

de 1912, ninguém menos que ele:

Augusto dos Anjos. Andava por um

bairro do Rio a dar lições a uma família

abastada. “Magro, todo em arestas,

andando a cair pra frente com uma

vivacidade nervosa.” Aliás, quem está

quase caindo também é a casa em que

Page 29: Chicos 32 outubro 2011

28

Emerson Teixeira Cardoso

morou em Leopoldina malgrado as

tentativas de restaurá-la e ao seu cheiro

de mofo – “e o andar tão esquelético

que parecia-se ouvir estalidos da

carcaça mal-azeitada.” E conclui sobre

o desgraçado poeta: “Era um desses

espíritos que nunca poderão chegar à

serenidade, como o barco bêbado de

Rimbaud jamais poderia ancorar num

porto remançoso.”

Mais um exemplo da ironia e contun-

dência de seus estilo pode ser observa-

do nestas econômicas linhas dedicadas

a um mau poeta chamado Velho da

Silva, de 90 anos. “O nonagenário

Velho da Silva é um especialista em

velhice.” e ponto final.

Sobrou também para Drummond,

Machado de Assis e Ribeiro Couto.

Do primeiro diz que ao fim de umas

vinte linhas banais mandou esta:

“Desconfio que escrevi um poema.” Ao

que ele arrematou com outra: “Esses

mineiros são muito desconfiados.”

Dos dois outros, Ribeiro Couto e

Machado de Assis, elogiou o Ribeiro

Couto contista, mas fez restrições ao

poeta dizendo que há neles, nos contos,

pouca chuva ao contrário do que

acontece nos poemas onde chove do

primeiro ao último verso, e o que o seu

célebre “O jardim das Confidências” só

se pode atravessar de guarda chuvas,

galochas e capas.

E finalmente a Machado de Assis a

melhor parte do seu veneno. A certo

momento pergunta: “ Quais razões para

se admirar tanto Machado de Assis?

Durante a Campanha Abolicionista não

tomou o partido da raça de que tinha nas

veias muitas gotas de sangue. Taciturno

e solitário, como poderia observar os

homens e a vida, como teria a visão

facetada dos que olham o mundo com os

milhares de olhos de uma mosca?”

E só para dar um pouco mais da extrema

antipatia dele pelo autor de “Brás

Cubas”: Trabalhou com o mesmo

Page 30: Chicos 32 outubro 2011

29

Emerson Teixeira Cardoso

escrúpulo e a mesma malícia para o seu

subdiretor e para a posteridade,

igualmente devotado ao livro de Xavier

de Maistre e ao livro de ponto, os dois

elementos de nutrição de sua vida

intelectual e da sua vida econômica.”

Barrocos, românticos, realistas, simbo-

listas, parnasianos, modernistas e pré-

modernistas, contra todos investiu com

sua artilharia pesada, todos sentiram

seu poder de fogo, ainda que poupasse

alguns poucos, reconhecendo neles a

marca do gênio, a semente de grandeza

reservada tão somente aos raros, as

cabeças coroadas, incensados por ele

até com irrestrito louvor como fez ao já

citado Castro Alves, de quem dizia que

com ele a “ventania ladra”, citando

Antonio Nobre para o qual “o vento

mia”. Raimundo Correa: “Trouxe o

vinho europeu até nós, sem que ele se

estragasse na travessia do Atlântico;”

Bilac: “espalhou luzes e cores em tudo

que escreveu. Há em seus versos um

latejar do pulso da loucura;” Emilio

Menezes: “Com que leveza de mãos, com

que delicadeza locustiana o nosso Emílio

graduava os seus venenos”; Gonçalves

Dias: “E pena que hoje (isto em 1932)

quase não leiamos Gonçalves Dias. Essa

injustiça, representa uma diminuição

sensível do nosso amor às coisas belas.”

Difícil mostrar aqui sucinta e fielmente,

sem prejuízo de seu valor a inteligência,

o espírito irônico, o estilista da crítica do

não suficientemente festejado escritor,

da inolvidável figura que foi Agripino

Grieco que está de melhor neste livro.

Obra que já está pedindo uma reedição.

Emerson Teixeira Cardoso (Cataguases - MG)

Autor de Similes e coautor de A casa da Rua Alferes.

Editor do Chicos

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30

Carlos Torres Moura

Tunins & Antônios

Se eu tivesse que definir a maneira como Antônio Jaime escreve, criaria um oximoro meio avesso: ornamento seco. Seus narrados têm uma aura de carnaval filtrada por gume frio, coisa muito pessoal. Quem o conhece intimamente sabe que ele é sua própria prosa. Carranca com guizos. Fomos “criados” juntos a partir dos doze anos. Eu despachava ônibus e ele balconava numa loja de cetins. Lado a lado. Na nossa frente havia uma rua que se achava com o direito de ser praça. Naqueles anos – virada dos 50 para os 60 – a Governador Valadares era o palco das rainhas e das ralés. Ponto de ônibus para o Rio, de carros de praça, de carroças, de trens e de charretes. Caminho obrigatório entre as fábricas de tecidos, expunha o hotel dos mascates e escondia o beco dos comunistas. Atrás da ferrovia, a mata ocultava a Chácara da dona Catarina, que olhávamos como a “casa assassinada” do Lúcio Cardoso. Foi ali que brotou seu estilo de vida e de escrita, pelo menos para mim. Estilo que nunca mudou, só foi ganhando polimento. Coisa que a vida faz com as pessoas. Depois, e até hoje, da geração que fomos naquela época metida a louca, sempre soube que ele era o que melhor escrevia. Disparado. Dito assim parece pouco, já que não passávamos de um grupo de diletantes querendo botar fogo no mundo. Mas quem ler suas crônicas – posso chamá-las assim? – vai ver que ele andou para muito além daqueles jardins. Talvez a origem explique sua facilidade de sanfonar-se, alternando entre o mundo cruel e engraçado da roça – sendo um produto puro sangue

de Joaquim Vieira, ou Chave, entre Sereno e Glória – e a vida no coração da metrópole. Antônio Jaime desembarcou no Rio nos anos de enxofre do período militar sem a capa e com a coragem. Trabalhando no começo entre quatro paredes povoadas por borradores e livros-caixa e morando numa república udigrúdi, seguiu leve e natural para a graça maior da “vida artística”. Transitou dos bicos no mundo do cinema e de música às agências de publicidade. Viveu o que poucos viram e, patrão de uma memória que sempre me fez inveja, conta com detalhes frios casos de mito do mato – como o Zeca Fabiano, de Cataguarino. Ou canta frase fina de gênio urbano, como Nelson Rodrigues. Pula de Molly Bloom para Linda Batista sem perder a elegância. Até porque nenhuma das duas a tinha. Suas histórias são as de vários mundos: claras, enxutas, fáceis de ler, munidas de um estilo inteiramente desclichezado. Proeza dele. Só quem não deixou de ser o Tunim da pequena roça é que consegue ser o Antônio da grande praça. Deliciem-se.

Carlos Torres Moura (Além Paraiba - MG)

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31

Ronaldo Werneck

Reluzir de pedras

Ruínas da Parada Joaquim Vieira, a popular Chave, onde passava o trem, que não mais

existe, assim como a casa em frente, onde nasceu Antônio.

Foto: Ricardo Quinteiro de Mattos

Chave é palavra-chave para se

entender este Pedra que não quebra, de

Antônio Jaime Soares – primeiro livro do

belo poeta-cronista, incompreensivelmente

inédito até agora. Era ali, montado no

trem, que o mundo passava. Era ali que, às

vezes, do trem o mundo apeava. “Chave”,

como o local era conhecido pelos que ali

viviam, por causa de que tinha um desvio

na linha do trem, pra mode os vagão ficá

istacionado e sê abasticido de café. Era ali

que o menino via aquele trem-cinema-

mundo passar/apear e falar-falar na venda

de seu pai no interior do interior da Mata

Mineira: Tudo a ver comigo, nascido entre

o Meia-Pataca e a linha do trem, a um

grito de distância da capela do lugar.

Dante-Drummond, uma pedra que não

quebra no meio do caminho de sua vida. Ils

ont oublié leur propre enfance, disse um

dia Jean-Paul Sartre. Antônio Jaime não só

não se esqueceu, como faz da memória de

sua infância o reluzir de pedras que não

quebram, pedras de toque de suas crônicas,

que não percorrem apenas localidades da

Zona da Mata, mas se espraiam pelo mundo.

Ao lado de gente simples, medalhões da

música e do cinema protagonizam as páginas

deste livro, pois o autor – poeta, letrista de

música, ator, redator de publicidade – rodou

pelo Brasil adentro e afora, como nos conta

nesses casos com um sabor todo seu.

“O segredo é dar a impressão de que é fácil”,

disse um dia Fred Astaire, citado por

Antônio Jaime – que deve suar como o

dançarino norte-americano em seus ensaios,

para que seus textos soem assim fáceis e

dancem na imaginação de seus leitores.

Como se pode ver em “Mulher muito espe-

cial”, que Machado de Assis assinaria sem

tocar em seu monóculo, ou em insights

como: Valeu o pôr do sol, indescritível, dura

mais que um longa-metragem. Culto e bem-

humorado, Antônio Jaime é um ser tímido,

de fala pouca, lição aprendida com o pai

quando o filho tagarelava: “Fala pouco e

acertado”. Fala pouco, mas o homenino

escreve acertado e muito bem, como poucos:

Lá de cima, às vezes escuta roçadores de

pastos, em outros cimos, cantando calango.

Depois, os morros vão ficando azuis - o Céu

deve ser por ali.

Ronaldo Werneck (Cataguases - MG)

Autor de entre outros de Minerar o Branco (poesia) e Há

Controvérsias I e II (crônicas)

Page 33: Chicos 32 outubro 2011

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Ronaldo Cagiano

Do amor e seus enigmas

A estreia de Ary Albuquerque na ficção,

depois de lançar dois títulos em poesia,

Tríade poética (2003) e Momentos

divididos (2007), não apenas revela a

continuidade de um projeto literário

que surgiu na maturidade e é fruto

tanto de sua experiência de mundo e de

sua vocação intelectual, mas também

sinaliza a versatilidade e o talento de

um autor que transita pelo gênero com

o vigor de um veterano, honrando as

melhores tradições dos autores de sua

terra, o Ceará, estado que nos deu

nomes como José de Alencar, Rachel de

Queiroz, Moreira Campos, Gerardo

Mello Mourão, Juarez Barroso, dentre

tantos.

“O amanhã aconteceu” (Ed. Topbooks,

Rio, 2010) consiste em uma obra

caudalosa, cuja ação transcorre entre

os anos 1920-1946, período marcante

na história brasileira e mundial, que

mudaria para sempre as relações

políticas e institucionais vigentes até

então, como também seria um divisor

de águas na vida de Igor, personagem

principal. A obra realça o fôlego do

autor na construção de uma trama

original e sedutora, tanto pela

linguagem quanto pela ambientação

psicológica, cenários e pela sua

contextualização histórica. Narrativa que

desnuda com requintes poéticos a

trajetória e desafios de Igor, cujo amor

por Cynthia foi interditado pelas

circunstâncias. A terra conflagrada,

lutava por liberdade e democracia, e Igor

foi convocado pelos aliados para servir a

esse projeto de libertação, como soldado

das forças aliadas contra Hitler. Era um

período em que vicejava a doutrina

Monroe contra a estupidez dos regimes

totalitários. E o amor estava no centro

desse teatro de horrores, por ele Igor

disputaria também suas lutas internas,

movido pelo seu senso se justiça, de

ética e de perseguição de ideais, sejam

pessoais ou cívicos.

Situando a ação em tempos e universos

geográficos distintos, sob um enredo em

que estão presentes as lutas e

sofrimentos íntimos na trajetória do

personagem, abre-se flanco pra se

revelar os dramas por que passavam o

Brasil e do mundo, tendo como ápice os

conflitos ocorridos durante a II Guerra

Mundial e seus reflexos posteriores na

vida dos povos e dos indivíduos.

Page 34: Chicos 32 outubro 2011

33

Ronaldo Cagiano

Ao fundir invenção e memória, o autor

buscou nas ricas fontes da pesquisa,

nos dados e nas informações históricas

rico material para uma confecção

literária que prima pelo rigor, sem

perder-se nos detalhes nem cair na

tentação da inverossimilhança ou

extremar-se na fantasia ou no

alegórico, o que realmente

particulariza e enriquece seu texto. O

autor transcria a realidade com suas

multifacéticas contingências sociais e

humanas e lhe confere uma mirada

pessoal. Esse olhar, que não deixa de

explicitar um resgate reflexivo e crítico

de um período, também incorpora uma

inegável carga poética, representando a

busca do autor pela compreensão não

somente do destino dos personagens,

embalados pelos ventos da paixão e das

circunstâncias, mas do próprio mundo.

A literatura como caudatária da

memória afetiva e política, como

ressonância do individual e do coletivo,

encontra nas páginas de “O amanhã

aconteceu” a reconstrução do passado a

partir de uma vivência pessoal – que se

transmuta nas experiências de cada

protagonista de uma história

instigante, contribuindo internamente

um narrador onisciente, que discute

valores e desnuda diversos assuntos,

percorrendo não só a política, mas a

literatura, a economia, a imprensa, as

artes, em planos que se intercalam,

provocando uma feliz interação entre o

real e o imaginário. E esse trânsito tem

algo de onírico, pois realiza uma ponte

dialética entre mundos, vivências e

sentimentos distintos, traduzindo-se na

forma mais genuína de se reproduzir as

ações do homem, de enquadrar

literariamente as relações pessoais, os

registros históricos, a alternância de

valores e costumes, salvando-os do total

esquecimento justamente pela dinâmica

com que um autor caminha nesse

terreno movediço em que se funda a

captura do social, do humano, do

psicológico e do histórico. Nesse

particular, Ary Albuquerque enfatizou

com propriedade, e deu a devida

relevância aos símbolos que marcam a

vida do ser: amor, aventura, desafios,

fantasias, que constituem, sem dúvida o

verdadeiro mecanismo e dinâmicas de

nosso permanente, e às vezes

desconfortável, estar-no-mundo.

História e ficção se interpenetraram em

O amanhã aconteceu de forma original e

numa linguagem fluente e cristalina,

com abordagens e urdiduras ricas em

incidentes e imagens que reverberam a

expressão de diversos atores. Igor, Katy,

Chery, Cinthya, Rodolfo, Martha,

Roberto, Margareth povoam a essa

história que palmilha o século vinte e

forma um imenso caleidoscópio,

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Ronaldo Cagiano

fragmentando suas vozes e se

desdobrando numa imensa projeção de

outras tantas vidas que se alternam na

grande teia de paradoxos e

possibilidades. A história é pontuada

desde o início por momentos cruciais,

com o entrechoque de rumos e

desafios, e os recursos narrativos

indicam uma riqueza estilística e de

imagens, presentes a tensão, o

suspense, e a emoção, características

que perpassam todo o livro e que são

responsáveis por capturar a atenção do

leitor desde as primeiras linhas. A

figura de Igor é central e determinante,

dela projetam-se outros personagens e

o romance segue num crescendo, como

um rio, que na experiência do seu

trajeto recolhe e agrega outros

episódios, como num quebra-cabeças,

construindo um mosaico, um

caleidoscópio de tipos e situações, de

dramas e de desafios, de incertezas e

esperanças, abrindo caminho para uma

reflexão sobre temas tão universais em

qualquer época.

Sem dúvida, em “O amanhã

aconteceu” há uma simbiose entre o

trajeto de vida do autor, como

testemunha do tempo e da história, e a

criação ficcional. Nessa representação

exterior dos fatos, reconstrói a

realidade com maestria e delicadeza, de

cuja realização emerge um diálogo com a

própria alma, que adquire uma

conotação universal, pois as questões

que perpassam a obra não envelhecem,

porque concernem à natureza humana.

Ary as atualizada, ao falar de

sentimentos, de dilemas, de dramas

individuais e coletivos, de procuras por

novos caminhos e de sintonia com a

esperança. Esse é o mote dessa obra que

nos coloca diante de um espelho: nele

mergulhamos e a partir dele

compartilhamos uma saga e percebemos

sua dimensão épica. O resultado é uma

profunda catarse não somente dos

personagens, mas também do autor e do

leitor, que buscam, cada qual ao seu

modo, compreender os mistérios da

existência, cujas metáforas estão

representadas pelos encontros e

desencontros dessas vidas passadas a

limpo, numa estimulante viagem ao

acontecer.

Ronaldo Cagiano (São Paulo -SP)

Autor de entre outros de Sol nas feridas (poesia)

Dicionário de pequenas solidões (contos)

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Antônio Jaime

“Velho Catuxo”

3 versões de 1 ficção minimalista de Adrino Aragão

Com “Velho Catuxo” Adrino Aragão nos insere num jogo seminal e sem final. Dizendo melhor, nos joga em uma

aventura onde o nosso pensam-ento passa a ser ocupado por esse Velho. Nesse livro... Mas, seria um livro isso que tenho às mãos? Para a Fundação Cervantes uma obra com menos de 50 páginas não é livro e recebe o código

de barras de uma revista ou folheto. “Velho Catuxo” não tem código de barras nem mesmo ficha catalográfica onde o mercado possa buscar referências. Donde se depreende que “Velho Catuxo” não se pretende uma mercadoria.

ЖЖЖЖЖ Então, vamos à materialidade da coisa: Velho Catuxo é um livro no formato de livrete, 1/2 ofício, capa dura verde contendo 8 folhas encadernadas no formato canoa e grampeadas. Tudo nesse objeto de papel lembra um caderno escolar. A capa de Natália Tinoco é de uma economia franciscana bem ao estilo minimalista do texto. Uma cabeça que

lembra as ilustrações dos livros do século dezesseis e dezessete surge no centro da capa. Parece uma parte de uma ilustração onde um indígena come uma perna humana. Nada mais significativo que uma cabeça antiga sem boca. No mais o texto de sempre: nome do autor na parte mais alta; o título em vermelho contrastando com o fundo verde, numa composição agressiva de cores, parece ser o sangue que brota da boca que falta na imagem da cabeça logo acima; depois, o subtítulo branco e um arabesco para acalmar os olhares. Bem ao pé da capa, todo à direita, uma informação em caixa baixa – minúsculas para os mais novos: “edição do autor”. Isso lembra a exclusão do mercado, esse reino dos editores. Na contracapa um cartão de visita assinado por Joaquim Branco nos fala de Adrino Aragão e de seu texto. Mais abaixo esse cartão de visita será comentado. Dentro a primeira página é a de rosto onde o livro se localiza como brasiliense nascido no Distrito Federal em 2011. O verso da folha de rosto foge ao padrão e sutilmente invade a obra. Mais à frente, também isso será comentado. A próxima página traz um microconto, primeira versão do Velho Catuxo, dentro de um círculo branco envolvido por um fundo negro que cobre o resto da página. Isso também será comentado abaixo, e é melhor economizar as referências que são muitas nessa página.

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Fernando Abritta Na página quatro, o primeiro susto. Uma única palavra, uma conjunção, em letras grandes negritadas nos empurra rapidamente para a página seguinte que já está aberta em nossas mãos. A página cinco traz o miniconto com a segunda versão do Velho. Isso será comentado abaixo. A página seis, audaciosamente, repete a página quatro e na página cinco o desafio proposto no verso da folha de rosto se concretiza. O leitor é convidado a ser autor, coautor, explicitar a sua versão do Velho. A assinatura do autor ai aparece em negrito como a dizer que a responsabilidade dele cessa ai. Uma seta leva ao fim da página. Virando a folha encontramos o fim do “livro” e uma página quase em branco, apenas cortada com uma seta magra e pequena no alto da página. O vazio do branco fica enorme. O jogo começou.

ЖЖЖЖЖ Onde Adrino Aragão teria buscado esse “Catuxo”? Procurando no dicionário achei “catuena”, “catuixi”, “catuquina”, “catuquinaru”, todas denominações de indivíduos pertencentes a povos indígenas. Achei, também, “catanguês”, relativo a Catanga, antiga província da República Democrática do Congo (antigo Zaire). E pessoa “caturra” que é gente teimosa. E “caturrice” é arte de teimar. Mas, nomes de pessoas têm lógicas diversas, inda mais em português que se bastava com “”josés”, “joões”, “manueis”, e “joaquins”, obrigando aos brasileiros maior criatividade na nominação dos filhos, não é mesmo, Adrino? Existe também a “catuta”, cachaça da boa. E “caturro”, palavra ligada à arte de navegar. A palavra “Catu” em tupi leva à ideia de bom.

Talvez, Adrino tenha ouvido essa palavra em sua infância nominando algum preto velho e ela tenha dormido todo esse tempo em sua memória para acordar agora, nessa obra.

ЖЖЖЖЖ Na folha de verso da página de rosto, famosa por conter as informações técnicas da obra, ficamos sabendo, em negrito, que temos em mãos um “projeto” e que ele “se constitui de 3 versões a partir de uma ideia ficcional”. “Projeto” aponta para problemas técnicos e soluções propostas, um plano, empreendimento a ser realizado dentro de determinado esquema. Nada mais distante desse “Velho Catuxo” que um plano, visto que ele se abre em múltiplas proposições, a não ser que o termo se refira ao projeto gráfico. Outra referência interessante é a “ideia ficcional”. “Ideia” pode ser entendido como representação mental ou como objeto do pensamento enquanto pensado ou como objeto abstrato concebido pela razão unida à “ficcional” entendido como próprio da ”ficção”, entendida como “fantasia”, invenção de coisas imaginárias. Temos, então, um objeto abstrato criado pela imaginação. Ai está a base do jogo: uma ideia de algo imaginário que se apresenta e é apreendida pelo nosso pensamento e que pode ser trabalhado por ele. Faz lembrar Theodor W. Adorno e suas considerações sobre a indústria cultural e de como esse “livro” coloca em xeque a ação alienante dessa indústria. “Velho Catuxo” não está pronto e acabado, não facilita a vida do leitor cansado pelo trabalho repetitivo, monótono e mecânico. Ao contrário, propõe um pensamento a ser desdobrado em quantos outros ele puder criar. O que isso provocará na auto-imagem do cansado leitor, “Velho Catuxo” não prevê.

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Fernando Abritta

ЖЖЖЖЖ

Verso da folha de rosto - Esse espaço é uma terra de ninguém dentro de um livro. Ali todo mundo escreve. A bibliotecária assina seu nome sob a ficha de catalogação. O editor coloca suas observações sobre direitos e ressalvas quanto a deveres. A equipe que realizou o livro enquanto objeto coloca aí seu nome: a capa de “Velho Catuxo”, como já dito, é de Natália Tinoco, artista de várias outras publicações. Ficamos sabendo também que pedidos podem ser feitos para o autor através de [email protected] e que a programação visual é de Joaquim Branco. No entanto, como já dissemos, não existe a ficha catalográfica em “Velho Catuxo”. No espaço onde ela deveria estar, temos um texto em negrito que descreve o “projeto”. O texto/obra parece nascer ai, nessa terra de ninguém, onde as informações jogam o leitor dentro da obra. Por ser o verso da folha de rosto, fica uma dúvida sobre a autoria deste texto primeiro. Essa dúvida nos leva a uma questão maior.

ЖЖЖЖЖ O programador visual. Fazer a programação visual de um livro é hoje muito mais complexo do que era nos tempo dos tipos móveis. Com a digitalização surge completa na tela do computador a “boneca do livro” – termo meio técnico meio jocoso que define a obra em três dimensões antes da versão final e definitiva. Os detalhes que permitem o manuseio de toda a obra em seus mínimos detalhes, a distância de uma letra a outra dentro da palavra, o fundo de página, tudo está à mão do programador e é parte de seu trabalho. Em “Velho Catuxo” o primeiro conto está dentro de um círculo claro envolvido por um fundo negro.

ЖЖЖЖЖ Ainda sobre programação visual: Na página 4 uma só palavra ocupa todo o espaço. A digitalização do livro permite o uso dos tipos da maneira que o programador visual desejar: normal, itálico, negrito; formato da letra (são tantas as famílias de letras que dá até vertigem na hora da escolha do tipo ideal); a posição na página (no centro, no alto ou em baixo); a formatação do parágrafo (centralizado; a direita; a esquerda); tudo leva a uma melhor leitura da mensagem ou a uma maior dificuldade na comunicação com o leitor. Cabe então a pergunta: até onde vai a autoria? Quem faz um texto é o autor, mas, quando esse texto é trabalhado em sua forma gráfica de maneira criativa e intensa – coisas difíceis de quantificar, por um programador visual inventivo, quem é o autor?

ЖЖЖЖЖ Na página 5 o texto explode o círculo que o envolve na página 3. Restos desse círculo sobrevivem formando um par de grandes parênteses acima e abaixo. Curiosamente sugerem os limites de um olho aberto. Ou como se o ovo que continha o micro se quebrasse e o miniconto surgisse. Não sei o que delimita um conto de um miniconto de um microconto. A mim faltam informações sobre, mas isso não me impede de ler, entender, fluir nessa “ideia ficcional” e a fruir nas duas formas propostas. Um microconto deve conter a ideia completa da história e passar essa ideia para o leitor com um mínimo de palavras. Um miniconto coloca a mesma ideia com um pouco mais de detalhes, um maior estofo e cerca o leitor de mais informações. Seria possível dizer que o microconto deve caber em um terço da página e o

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Fernando Abritta miniconto em no máximo uma página? Seria querer quantificar limites que são intangíveis. Cabe aqui lembrar o livro "O conto à meia-luz: o minimalismo e a obra de Adrino Aragão", a obra de Joaquim Branco que nasceu como tese de pós-graduação na UFRJ. Livro entre os muitos que não li, mas, que preciso ler.

ЖЖЖЖЖ Com suas poucas palavras o microconto da página 3 fala dos tantos pretos velhos com quem convivemos em nossa infância – ao menos para aqueles que nascemos nos meados do século passado. Com suas folhagens, cascas de árvores, raízes, beberagens, garrafadas, com suas outras rezas, benzeduras, com suas histórias salamaleques/trejeitos/palhaçadas eles nos deixaram uma visão complexa, rica e original do mundo. Levando a nós que os ouvíamos as matas que desapareciam, os deuses africanos vindos com seus pais, as batalhas e guerras esquecidas e ocultadas do nosso passado. E ao narrar o corpo saqueado em suas entranhas, o micro conta de tudo que roubamos deles. Tudo isso em um micro que pode ser pichado em um muro, ou colado em um poste para que seja visto pela multidão apressada pela máquina de produção alienante.

ЖЖЖЖЖ Adrino Aragão é impecável na arte de escrever. As versões minimalistas de Velho Catuxo são tão enxutas que não se pode tirar nem uma palavra do texto sem que ele fique mutilado. No microconto isso se dá de uma forma absoluta. Os dois artigos que existem no texto estão contraídos com uma preposição. Não existem adjetivos. No miniconto a técnica se revela novamente: quatro adjetivos dos quais um pode ser retirado meio com

remorso, outro carrega um tom dramático que, se retirado do texto, leva um pouco o brilho e os outros dois são indispensáveis. Vinte e três artigos se espalham pelo texto: contraídos com preposições temos catorze. Quatro poderiam ser removidos tendo como consequência a quebra do ritmo, mas sem perda do sentido. Restam três. Então, o texto é tão monolítico que não permite tirar palavras: daí a coragem do autor em propor um jogo de desconstruir e reconstruir seu texto. ЖЖЖЖЖ Ao abrir para uma reescrita o autor reconhece não ser proprietário do texto. Vez que somos resultado de nossas relações com o mundo e o texto está no mundo, ele também é produto disso, dessas ligações. Ora, ele nasce da imaginação do autor e é oferecido ao leitor como um objeto a ser juntado com a sua (dele, leitor) imaginação. A escrita e a leitura fazem parte de um mesmo continuum que, ao ser fruído, vai criando sentidos e sensações. Essa fruição é parte do ato de criar o texto. É parte do ato de ler o texto. Outra vez a pergunta volta: quem é o proprietário do texto?

ЖЖЖЖЖ E por que Adrino Aragão pode fazer isso: oferecer uma história nascida de sua imaginação de forma tão completa e tão concisa e nos convidar a refazê-la? João Guimarães Rosa provavelmente não poderia fazer isso. Seu universo criado a partir das vivências nos sertões dos gerais de Minas não tinha em nossa memória nada que se pudesse aproximar e servir de base a nossa imaginação. Cabia a ele descrever plantas animais paisagens e pessoas com detalhes suficientes para nossa imaginação acompanhar as suas ideias. Claro, é preciso rever “Os Sertões” de Euclides da Cunha e ver como um texto

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Fernando Abritta se liga ao outro nessa construção de um cenário. Hoje vivemos em uma realidade filtrada por uma dimensão simbólica tão plena, tão repleta de referências que ao demiurgo não cabe intermediar imagens entre o homem e a natureza. Adrino Aragão se apropria de nossas imagens e referências de forma tão completa que não nos cabe mais que entrar no jogo: agrupar nossa imaginação ao Velho Catuxo, melhor, explicitar essas nossas referências que se ligam àquelas que Adrino Aragão coloca.

ЖЖЖЖЖ E segue o jogo ocupando o pensamento, moendo palavras sentidos sentimentos. Ai a faculdade de imaginação corre solta. Libera o leitor da uma posição passiva em que a literatura tradicionalmente o coloca. Conduz ao exercício de criação mais que à fruição.

ЖЖЖЖЖ Velho Catuxo morreu anonimamente exceto pelos ouvintes de suas histórias. Indigente, extraíram dele olhos, coração, rins e fígado. Menos a língua por ser muito perecível.

ЖЖЖЖЖ O jogo continua e nem matar o velho a gente pode: ele já morreu.

ЖЖЖЖЖ Cumprimos o doloroso dever de informar o falecimento de Velho Catuxo. O corpo foi identificado no necrotério municipal por amigos que agora convidam para o enterro de seus restos mortais: partes de seu corpo foram extraídos para doação e pesquisa, restando somente a carcaça negra e velha.

ЖЖЖЖЖ

... ЖЖЖЖЖ

E o jogo continua em muitas outras cabeças: (Traduções diversas que leitores vários apresentaram para a terceira versão de Velho Catuxo)

ЖЖЖЖЖ Morreu o velho contador de história. Negro e indigente permaneceu no mundo dos vivos. Seus olhos vêem o mundo nas órbitas de outro rosto. O coração se inquieta no tórax de outro homem. Os rins secretam urina de um outro. E no hipocôndrio de mais um, seu fígado mantém o metabolismo vital. Multiplicou-se. Porém naqueles que ouviram suas histórias O velho Catuxo vive é multidão. (Maria Helena Falcão)

ЖЖЖЖЖ Morreu o velho contador de história, negro e indigente. Entronizados solenemente na Faculdade de Medicina de uma Universidade Federal , seus olhos, coração, rins e fígado, receberam olhares de interesse e cuidados. Na multidão que ouviu suas histórias o Velho Catuxo morto, vive intensamente. (Maria Helena Falcão)

ЖЖЖЖЖ

Mutirão da Meninada do Vale Verde: Greysiane Almeida Araujo: Nasceu um menino com um grande olhar, que brilhava ao seu redor. .

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Fernando Abritta Quando pequeno seu pai o apelidou de Catuxinho, mas ao crescer começaram a chamá-lo de Catuxo. Quando chego aos 84 anos era conhecido como Velho Catuxo, porque era um velho contador de histórias. Logo depois morreu entregando seus órgãos a todos e esquecido na lembrança das pessoas. Bruna Amorim Norberto: Há muito tempo no sertão da Bahia havia um grande contador de história, que era chamado de Velho Catuxo. Ele era pobre, filho de escravos e morava de favor na casa da Dona Filó. Certo dia ele passava pela mata do “Verd” quando a mata estava deserta. Ninguém sabe até hoje o que aconteceu. Dele tiraram os olhos, o coração, os rins e o fígado, que foram doados a outras pessoas. Velho Catuxo! Leonardo Fonseca Silva O Velho Catuxo com a pouca idade já lia muitos livros e aos 100 ele morreu. Seu filho acompanhou a fama do pai e leu muitos livros Clara Francisco do Nascimento: O Velho Catuxo tinha 89 anos de idade. Ele era escravo e tinha muitos amigos e um filho. Ele era um grande contador de histórias. Era muito imaginador e pensava muito bem. Um dia ele morreu. Clarice Francisco d Nascimento: Quando o Velho Catuxo morreu ele tinha 80 anos. Ele era um bom homem de verdade e de coração. Ele tinha filhos e filhas muito lidos. E o Velho Catuxo nasceu em 1909. Ele era muito feliz. Laissa: Numa pequena cidade nasceu um menino.

Como ainda havia escravidão seus pais quase não tinham tempo para cuidar dele. Mas os dias passaram e ele virou outro escravo. Deram-lhe o nome de Catuxo. E quando ficou mais velho resolveu fugir para a cidade. Lá contava histórias sobre seu tempo de escravidão e ficava rodeado de gente para ouvir suas histórias. Como era velho chamavam-no de Velho Catuxo. Um dia ele faleceu e todos os que ouviam suas histórias fiaram tristes com sua morte. Mas ele ficou para sempre em nossos corações. Stafany Loustay Rodrigues Kenedy de Castro: Logo que a escravidão acabou, uma família muito pobre ganhou um lindo menino de olhos castanhos. Quando a criança cresceu , o sonho era fazer uma história. Quando idoso pegou uma pneumonia. O velho morreu e ficou conhecido por todos os lugares como grande contador de história: Velho Catuxo. Alexandre Gomes Fonseca: Velho Catuxo nasceu depois da guerra. Quando fez 6 anos ele inventava histórias de sua cabeça e seus pais contaram muitas histórias sobre as guerras, lutas, aventuras. Os tempos se passaram e ele envelheceu. Quando fez 80 anos o que ele mais gostava era quando as crianças sentavam em roda para escutarem as suas histórias. No dia 20/12/1989 ele desapareceu. Quando o encontraram os médicos o examinaram e falaram: - Ele morreu feliz porque as pessoas prestaram atenção nas suas histórias.

ЖЖЖЖЖ

Fernando Abritta (Juiz de Fora MG)

Ilustrador e poeta. Autor de UmÁrvore (poesia)

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Rubens Shirassu Jr

Grafite para Murilo Mendes

Meu querido mestre Murilo Mendes Minhas palavras esculpem o teu corpo no azul do afresco do céu alado do teu deus, cavaleiro das fontes, poça sem fundo. Olho por muito tempo o corpo de um poema Até perder de vista as janelas dos teus olhos de caos e sinto separado entre os dentes da memória, um filete de primavera de sangue nas gengivas, das bocas, nos becos de Minas, Lavadeiras sobem ladeiras Lavadeiras descem ladeiras carregam candeias nas mãos, Dormem na penumbra esperando anjos vingadores. Dormem no outro tempo, dos mortos da sobrecasa Dormem no talco preto da terra prisioneira, das almas que vagam.

Os demônios de Juiz de Fora estão soltos no discurso de difamação do poeta Chove paranoia contra o elogia à loucura, à poesia da casa do canário, que guardamos aprisionada na garganta para a hora exata de alimentar fantasmas. No cotidiano vazio e ruminante blues, ecos do murro no vitral da catedral modelo para armar. Saudemos o poeta pintor cósmico que calça nuvens ornadas de cabeças gregas!

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Rubens Shirassu Jr Saudemos o novo tempo! Saudemos Murilo Mendes muito além do arco-íris, dos arquitetos que projetam espigões cubistas, barcos ancorados no espaço! Depois de ti, grande mestre, vibrarão outros gritos terríveis diante dos limites do Homem. O menino experimenta a alquimia do verbo As palavras escorrem como geleias de maçã sobre as passagens ressentidas. Jogos de ilusão e poder nas cartas do mágico, Las Vegas, Wall Street e Avenida Paulista, estrelas rachadas gotejam leite dos deuses, Eu vejo meninas de seios estourando esperando na grande loja de variedades, garotos grandes, de coxas largas, pílulas energéticas, passatempo estimulante rápido. A noite grande encherá o espaço de diversões eletrônicas, e os corpos ocos se multiplicarão em outros.

Rubens Shirassu Júnior (Presidente Prudente – SP)

Escritor, revisor e jornalista Autor de: Religar às origens.

http://www.rubensshirassujr.blogspot.com

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Antônio Perin

A lealdade do soldado

“A que o homem deve sua lealdade: ao governo de seu país, à causa que o move, ou à humanidade, em seu valor universal?”

A Bradley Manning*

Homens enfrentam a morte dia a dia hora a hora. Ora no Iraque ora no Afeganistão, gostariam que aquilo acabasse logo. Despertar do pesadelo de agressões e crimes fantasmas que os atormentam desde Hiroshima. Hiroshima sentiu a diabólica fúria, a força de titãs brotando dos infernos covardes na crueldade contra débeis relampeando uma luz de mortes instantâneas cicatrizes vivas em corpos frágeis são as testemunhas. O passado bestial pesa Os pecados no Vietnam ainda latejam É um fardo. O solo continua envenenado o agente laranja é a seiva do broto de arroz Crianças continuam a nascer com o pavor na face, orelhas no lugar de lábios Esqueletos de batráquios com os olhos de ciclope, braços e mão pendentes da cintura silenciosos os acusam diante da História. Mas, com todas suas deformações, são menos monstruosas do que seus agressores. Voltar para os seus, voltar para casa com o brilho da alegria e os olhos da paz. não como heróis, nem mártires de uma mentira, nada de tristes glórias, mas como simples e reais seres humanos. Enterrar seus demônios o Colt, o Remington e a Winchester.

* Bradley Manning – soldado norte americano que levantou milhares de documentos

de crimes cometidos no Afeganistão pelos EUA e divulgados pela organização WikiLeaks

e reproduzidos pela mídia livre (aquela que não sofre e nem faz censura) mundo afora.

Antônio Perin (Cataguases - MG)

Nascido em Itaobim mora atualmente em Cataguases

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Mourid Barghouti

Sem misericórdia

Há uma música doce,

mas sua doçura não é para consolá-lo.

Isto é o que o dia a dia lhe ensinou:

em cada uma longa guerra.

Um soldado, com um ar distraído e dentes a mostra,

senta-se fora da sua tenda

segurando sua brilhante e sonora harmônica

cuidadosamente protegida da poeira e do sangue,

como um pássaro

não envolvido no conflito,

ele toca para si mesmo

uma canção de amor

que não mente.

Por um momento,

ele se constrange com o que o luar pode pensar:

Qual é a utilidade de uma gaita no inferno?

Uma sombra se aproxima,

e outras sombras mais.

Seus companheiros, um após o outro,

juntam-se a ele em sua canção.

O cantor leva o regimento inteiro com ele

à varanda de Romeu,

e de lá,

sem pensar,

sem piedade,

sem dúvida,

eles vão continuar a matar!

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Mourid Barghouti

Os três ciprestes

Transparente e frágil,

como o sono de lenhadores,

serena, prenunciando as coisas que virão,

a garoa da manhã não esconde

estes três ciprestes na encosta.

Seus detalhes desmentem sua mesmice,

seu brilho confirma.

Eu disse:

Eu não ousaria ficar olhando para eles,

há uma beleza que tira a ousadia,

há momentos em que a coragem desaparece.

As nuvens rolando no alto

alteram a forma dos ciprestes.

As aves que voam para outros céus

alteram a ressonância dos ciprestes.

A linha de azulejos por trás deles

corrige o verde dos ciprestes

e há árvores cujo fruto é só verdura.

Ontem, na minha alegria súbita,

Eu vi sua imortalidade.

Hoje, na minha tristeza repentina,

Eu vi o machado.

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Mourid Barghouti

O descanso

O travesseiro disse:

No final do dia

só eu sei

da confusão, do homem confiante,

o desejo da freira,

o tremor leve na pestana do tirano,

a obscenidade do pregador,

o anseio da alma

para um corpo quente, em faíscas

tornar-se um carvão em brasa.

Só eu sei

a grandeza das despercebidas coisas pequenas.

Só eu sei a dignidade do perdedor,

a solidão do vencedor

e a entediante indiferença que sente

quando o desejo foi atendido.

* Mourid Barghouti poeta palestino. Formado em literatura

inglesa pela Universidade do Cairo (Egito). Nasceu em 1944,

em Deir-Ghassana, vilarejo próximo à cidade de Ramallah na Palestina.

Versão de Antônio Perin sobre tradução para

ingles de Radwa Ashour : Midnight and Other Poems

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Eduardo Dalter

Siete notas de invierno

Hasta tu cama entran, tensos, de esquina, por tu piel, y por allí te andan, quiebran tus cerrojos; los hechos, las manos, las voces. * Como a cada beso lo borra el viento que sopla y sopla, ella pocea y pocea la arena, pareciera, con más fuerza; es el viento húmedo, poceado, que escribe, escribe, escribe.

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Eduardo Dalter * Dejá que entre la luz, dejala que entre, que se acomode, que abra su valija; no vayás a echarla; dale de comer; dejá que ande por la casa. * Amor marcado de estos años. A pesar de todo vuela, vuelve. Tibio es él; a prueba es él. Memorioso, dúctil y carnívoro. El da la hora de esta hora. * Pasás ladeada, vida; depende el barrio. O acariciando con un ala, o dando fuerte con el pico. No pasás derecha, vida; vos planeás, planeás.

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Eduardo Dalter * Hermosura que te busco; electricidad que es hermosura; hermosura de una mano en otra mano; de un cuerpo en otro cuerpo; de una letra que con otras es palabra; palabra que te busca, me busca. La oscuridad no es cosa nuestra. * Por la calle fría un hombre va metido en sí hasta la médula como representando poemas de Vallejo, cruza la avenida, tose y se pierde entre la gente.

Eduardo Dalter

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Pedra que não quebra, de Antônio Jaime Soares, pode ser adquirido, em Cataguases na Livraria Cultura, no Sebo Aluados e na Banca do Giovani. Com o autor pelo e-mail: [email protected]

Sol nas Feridas, livro de poemas pode ser adquirido em: www.dobraeditorial.com.br

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