chicos 41 - dezembro 2014

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Page 1: Chicos 41 - Dezembro 2014
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Chicos

N. 41

Dezembro 2014

e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG

Capa

Arte na Rua

Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Fotografo Vicente Costa Ilustrador Altamir Soares Colaboradores desta edição Adelto Gonçalves Antônio Jaime Soares Antônio Perin Flauzina Márcia da Silva Luiz Ruffato Marcelo Benini Marcos Mergarejo Netto Renata Pallottini Ronaldo Cagiano Ronaldo Werneck Fale conosco em:

[email protected] Visite-nos em:

http://chicoscataletras.blogspot.com/

Um dedo de prosa

Esta é a edição número 40 de 31 de dezembro de 2014.

Terminamos o ano com algumas tristezas. Perdemos ao longo do ano o artista

plástico Jorge Napoleão e o poeta (e uma das razões desta e-zine chamar-se Chicos) –

Francisco Marcelo Cabral, a quem homenageamos com o “Ave São Francisco...” e um belo

texto do Ronaldo Werneck.

Mas, para nos dar esperanças no ano 2015 e os vindouros, saudamos com o Leonardo

Pandura o início de um diálogo entre Cuba e EUA.

Por sugestão e iniciativa do Rogério Torres criou-se neste final de ano o Clube de Leitura

Nossas Causas. Nossas Causas é o nome de uma canção que faz parte da trilha sonora de

O Anunciador. Para a sessão de abertura do Clube o convidado para “um papo” foi o diretor

do filme Paulo Bastos Martins.

Apresentamos alguns poemas de Lupe Cotrim, uma tremenda poeta paulista. Ela é

daqueles poetas que estão entre a Geração de 45 e o Concretismo.

Alguns dos nossos poetas lançaram livros neste semestre que se encerra: Lina Tâmega

Peixoto – Entre Desertos, Flausina Márcia da Silva – Poemas Declives e Marcelo Benini -

Fazenda de Cacos citamos só estes, como singela homenagem aos nossos poetas que

insistem em trazer sensibilidade ao mundo. Mundo que anda bastante inóspito, onde o

egoísmo e a agressividade tornam-se dia a dia o traço dominante deste início de Terceiro

Milênio.

E muito mais vocês encontrarão por aqui. Divirtam-se!

Uma boa leitura para todos.

Os Chicos

18.11.1930 - 20.08.2014

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Sumário

Ave São Francico.......................................................................................................................04 LEONARDO PANDURA Cuba – EUA................................................................................................................................05 MARCELO BENINI Fazenda de cacos.......................................................................................................................06 ANTÔNIO PERIN Das ancestralidades..................................................................................................................08 LUPE COTRIM Saudade e outros poemas.......................................................................................................10 RONALDO WERNECK Prosa-elegia pro Chico Cabral .............................................................................................23 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Velhos Temas.............................................................................................................................25 ANTÔNIO JAIME SOARES O galã que não fui................ .................................................................................................26 JOSÉ ANTONIO PEREIRA E quem foi o continuísta de O Anunciador.......................................................................27 RENATA PALLOTTINI O personagem na ficção policial moderna – Leonardo Padura Fuentes: Cuba, o detetive Mario Conde e seus fantasmas..........................................................................29 FLAUSINA MÁRCIA Lendo Proust...............................................................................................................................31 JOSÉ ANTONIO PEREIRA Caminhando na noite...............................................................................................................36 RONALDO CAGIANO A implosão do romance...........................................................................................................37 NIKOLAI GÓGOL Notas de Petersburgo de 1836...............................................................................................38 ADELTON GONÇALVES Na moenda da cidade grande...............................................................................................41 LUIZ RUFFATO Flores Artificiais e Minha primeira vez - lançamento....................................................42 MARCOS MERGAREJO NETTO A geografia do queijo Minas... Lançamento.....................................................................43

No Clube de Leitura Nossas Causas

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Ave São Francisco (o Marcelo Cabral)

Encontro com o Emerson na rua: Zé! O Chiquim

Cabral morreu. Enquanto o amigo conta detalhes; em

minha mente, correm alucinadas imagens e a voz de

Francisco Marcelo Cabral. No silêncio posterior, brotam

fragmentos de seus poemas; mas um insiste: A cidade

exporta / tecidos de algodão que não planta / e poemas

que não lê / No varejo de algumas lojas / se pode até

comprar livros. / O jeito é agarrar com todo cuidado / a

primeira palavra vazia / que esvoace gratuita na brisa

do / Pomba, / e devolvê-la intacta / aos ventos, insanos e

surdos. Como migrante no exílio, em toda casa por aqui

tem alguém que foi “exportado”, sempre cantou seu rio e

sua aldeia. A cidade na sua ruidosa ignorância e

provinciana insensibilidade nem se dá conta do que

perdeu. Aliás, como mãe que abandona os teus, não se

mexeu nem para tentar abrigá-lo em seu colo-ventre,

mantendo-o eternamente exilado em terras cariocas.

Chico Cabral, ao lado de Lina Tâmega Peixoto e o verde

Ascânio Lopes formam a Santíssima Trindade da poesia

de Cataguases. Ainda aqui, na Meia Pataca – revista que

criou com Lina Tâmega – já fazia das palavras suas

infinitas possibilidades. Na cidade, têm-se hoje uma gama

de ótimos poetas influenciados por eles, alguns também

exportados. Poetas são semideuses, escrevem para nós,

seus mortais leitores, permitindo-nos ir para além de

nossas impossibilidades.

Em seu Livro de poemas (2003), Chico, na orelha, nos diz:

“...as palavras são portas de saída mas não de entrada, e

que a emoção ou conceito, presentes num texto, são de

quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu. ...”

Outro poeta, o palestino Mourid Barghouti, de quem

também gosto muito, diz: “Não gosto de pegar na mão de

minhas palavras enquanto atravessam a rua por zelo ou

medo excessivo. ...” Mas, o que para mim os aproxima, é

a poesia do exílio. São distintas suas sagas e seus

contextos. Enquanto Mourid viveu o êxodo da

desapropriação e sua expulsão de Hamallá, pelos

israelenses. Chico, num outro tipo de êxodo, foi em busca

das oportunidades que a cidade operária não oferece aos

teus. É latente nos dois o discurso da ausência. Enquanto

no palestino vibra uma agressiva e compreensível verve

transformando as palavras em arma de combate, dando

voz ao coletivo, em Chico ponteia a melancolia da

ausência de suas montanhas, a saudade dos granitos

irregulares que pavimentam as ruas de suas andanças e o

escorrer das águas amarelas do seu Rio Pomba. Que

apesar da aparente solidão de sua dicção é também a voz

de seus conterrâneos desterrados pelo subdesenvol-

vimento da região.

Criando assim, com sua alma de poeta, uma mítica

Cataguases que o magnifico Inexílio é sua expressão

maior e definitiva. …Aí de ti Cataguases....

Publicado originalmente no zeantoniopereira.blogspot.com.br

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Leonardo Pandura

Leonardo de la Caridad Padura Fuentes – Nasceu em Havana

em 1955. É um escritor e jornalista cubano bastante

conhecido especialmente por suas novelas policialescas do

detetive Mario Conde.

CUBA - EUA

Minha mulher, Lucía, começou a chorar com a

notícia. Lucía nasceu em dezembro de 1959. Seu pai

emigrou para os EUA quando ela era jovem demais para

guardar uma lembrança dele. E Lucía não voltou a vê-lo.

Ele nunca retornou a Cuba --nos anos 1960 e boa parte dos

1970, não podia fazê-lo--, nem ela viajou aos EUA --até os

anos 1990, não pôde fazê-lo--, e, quando finalmente o fez,

seu pai tinha morrido. Lucía chorou hoje por seu pai

perdido, por ela e seu amor encerrado em si mesmo, por

tantas histórias tristes que vivemos. Mas chorou também

pela ilusão de que, a partir de hoje, essas histórias talvez

nunca voltem a se repetir.

Hoje é 17 de dezembro de 2014. Como a cada 17 de

dezembro, os católicos cubanos e os crentes da santeria

iorubá celebram o dia de São Lázaro ou o de Babalú Ayé.

Ou festejam os dois, o santo e o orixá, porque um cubano

pode acreditar em muitas coisas ao mesmo tempo. Por

isso a reação de minha mãe foi dar graças a são Lázaro --

sua esfinge sempre esteve no pequeno altar de seu quarto-

- por ter podido assistir a algo que ela, em seus 86 anos,

nunca acreditou que veria: que Cuba e EUA passassem

por cima de todas suas diferenças políticas e históricas e

que seus governos se dispusessem a estender-se as mãos

sobre as águas do estreito da Flórida. Por isso minha mãe

acendeu nova vela ao santo.

Eu, por minha parte, escrevo aturdido. Ainda me parece

que estou no meio de um sonho, quando na realidade

acordei de um pesadelo que nos perseguiu por tantos

anos, o pesadelo da hostilidade, do desencontro, da

inimizade entre dois países que a partir de hoje podem

encontrar seus pontos de confluência mais que suas

declarações de diferenças. Embora não seja crente --nem

católico nem santeiro--, penso que é preciso agradecer

não só ao papa Francisco, como fizeram Raúl Castro e

Obama: seria preciso ir mais acima e agradecer a Deus,

porque em circunstâncias assim não me resta outra opção

senão acreditar em sua existência.

Dois presidentes conversam, acordam, concedem. Os

prisioneiros retornam às suas famílias. Anuncia-se o

começo do fim do bloqueio/embargo, após 52 anos.

Diálogo em lugar de ofensas. Vontade de entender-se, de

mudar, de superar o ódio... Um presidente cubano que

anuncia medidas mútuas para normalizar os vínculos

entre os dois países. Um presidente norte-americano que

faz história, entra para a história, quando admite que

estamos mudando nem mais nem menos que a História,

simplesmente porque é o certo.

Lucía tem razões para chorar; minha mãe, para dar

graças ao pobre e leproso são Lázaro; eu e muitos cubanos

em nos sentirmos aturdidos, mas felizes por estarmos

despertos. Esta é a realidade: Cuba e EUA anunciam que

restabelecerão relações. Um dia para ficar na história.

Uma porta que se abre para um futuro que,

necessariamente, terá que ser melhor. Com todos e para

o bem de todos, como disse certa vez José Martí.

Publicado originalmente no jornal - Folha de São Paulo

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Marcelo Benini

Marcelo Benini – Nascido em Cataguases em 1970. Aos quatro

anos mudou-se com a família para Brasília. Onde fez toda a

sua formação e vive atualmente.

Publicou O Capim Sobre o Coleiro (2010) poesia, O Homem

Interdito (2012) crônicas e lançou neste ano Fazenda de Cacos,

de onde são os poemas aqui publicados.

Fazenda de cacos (o tempo)

Andemos perdidos por esses campos de flores

Onde a pele roça as pétalas no caminho estreito

O semeador de cacos fez um bom trabalho aqui

Nós, os desfigurados, corremos livres pelas plantações

Pisamos as pontas lavradas pela chuva

A mulher velha se abaixa para colher um souvenir

Em cada casa há um jarro com uma flor da fazenda

Belo mesmo é quando as gotas represam nas arestas

Onde o sol faz seu trabalho de secagem

E a plantação extensa ofusca os olhos

Miríades de pontas verdes, vermelhas, amarelas e azuis

Mar de coisas que já foram obra e adorno

Mas que na próspera fazenda agora semeadas

Aguardam a colheita diária dos cacos.

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Funcionária pública

Ninguém entendeu quando a moça da seção

Começou o concerto para piano número 3, de Prokofiev

No meio da tarde só ela ouvia clarinetes e violinos

Batia os dedos violentamente no teclado

Tremulando a melodia nos lábios

E jogando os cabelos no ar

As cortinas esvoaçavam na janela

Não houve pausa para o café

No dia seguinte os processos publicados no D.O.U.

Estavam todos em russo

E a moça digitava feliz uma carta de amor.

Rio Pomba

O canto da pomba do rio de águas barrentas

Chamaram assim a essa caudalosa água

Triste pio no meio da mata

Os galhos desvalidos amontoam-se na margem

E o menino índio observa a pomba rio

Sem entender por que correm as águas se podem voar.

Minha sabiá

A mulher, rapaz, é como o passarinho

Qualquer gesto brusco

Qualquer rompante

E lá se vai

Voou

Pode chamar que não vem

Nem!

Só tem um jeito

Põe um pedacinho de mamão na pedra

E espera, espera, espera...

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Antônio Perin

Existência -1985 - Manabu Mabe

Antônio Perin baiano, nasceu em Itaobim MG, cresceu nas

franjas do Meia Pataca ouvindo sapateiros, costureiras,

roceiros, tecelões contarem seus casos e suas histórias de

trabalho. Se encantava com folias de reis e embriagados

calangueiros em seus desafios pelos becos da infância. Em

casa escutava as alucinantes histórias paterna, ouvia a avó

negra cantando benditos em latim enquanto costurava,

estranhava a emoção materna entre novelas radiofônicas e os

afazeres domésticos.

Das ancestralidades

O primeiro pedaço de mim virou verbo e carne na fusão do esperma de meu pai e o ovulo de minha mãe Os prazeres são os mesmos das savanas dos ancestrais. Desde lá a imortalidade que nos cabe É a perpetuação genética dos nossos avôs nas mutantes ovulações das nossas avós Trazendo nessas evoluções a assinatura da hereditariedade Um judeu convertido que aqui aportou, fez fortuna e escravos solitário em febris desejos e pecaminosos prazeres uma negra indomável senzalada e arredia feitor e adestrador a domou Em seu ventre cinzelou minha avó.

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Das imortalidades

No neto do meu neto renasço para remorrer no seu tataraneto é assim Como meu ancestral mais antigo o menino que na África corria ao sol o avô do meu tataravô foi assim Reencarnado no meu pai, que não trás na memória nada de seu tataravô sua memória é latejar sofrimento e carnais dores de meu avô e descarnados desamores de seu avô povoada aqui e ali, por fragmentos da oração de seu avô no corpo do meu neto recrescerei pois serei a alma imortal daquele feto.

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Lupe Cotrim

Maria José Cotrim Garaude – Poeta e tradutora, nasceu em

São Paulo SP em 15.03.1933, e faleceu em 18.02.1970. Desde

menina é chamada de Lupe, apelido formado pelas primeiras

sílabas dos prenomes de seus pais. Vive alguns anos em

Araçatuba (SP), onde seu pai clinica, e ainda menina

transfere-se com a mãe para o Rio de Janeiro onde estuda no

Colégio Bennett. Mais tarde, volta a residir em São Paulo para

estar mais próxima do pai e integra-se no meio literário

paulista.

Em 1967, recém-graduada em filosofia, pela mesma USP, ao

mesmo tempo em que prosseguia em seus estudos de pós-

graduação, na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras, Lupe fez parte do primeiro grupo de professores da

ECA, onde lecionou a disciplina de estética.

Mulher de extraordinária beleza, cativava a todos que dela se

acercassem, tanto pelos dotes físicos quanto pela seriedade e

a consistência intelectual com que se empenhou nas

atividades discentes e docentes.

Antes de ingressar no curso de filosofia, em 1963, Lupe já era

um nome conhecido, como poeta. Tendo estreado em 1956,

com Monólogos do Afeto (a que se seguiram Raiz Comum,

1959; Entre a Flor e o Tempo, 1961; Cânticos da Terra, 1962;

O Poeta e o Mundo, 1964), Lupe Cotrim logo conquistou

grande número de admiradores, entre os quais Carlos

Drummond de Andrade. Foi uma longa amizade, de que

resultou larga correspondência, de inegável interesse literário,

pelo teor dos projetos que Lupe ia expondo ao grande poeta,

sempre pronto a responder com honestidade e justeza. Em

1970, dez dias após a morte de Lupe, Drummond

homenageou-a com uma crônica (Lupe, rápida) no Jornal do

Brasil, reproduzindo em seguida uma breve entrevista que

fizera com ela em 1958.

Lupe resolveu dedicar-se à investigação filosófica, em especial

a fenomenologia, na expectativa de que, com isso, sua criação

poética adquirisse uma disciplina mais rigorosa e um cunho

mais denso e duradouro. Daí resultaram Inventos (1967) e, já

de publicação póstuma, Poemas ao Outro (1970), lançado

pouco depois de seu falecimento, no ato que inaugurou o

Centro Acadêmico dos estudantes da ECA.

Seus primeiros alunos (entre os quais Leila V.B. Gouvêa,

autora de Estrela Breve - Lupe Cotrim: Uma Biografia

Literária) puderam testemunhar o fervor com que ela se

entregou, nos últimos anos, ao magistério e à criação literária

- como se adivinhasse que não dispunha de muito tempo.

Em seus últimos livros, ao lirismo introspectivo de origem

vem-se somar uma forte inquietação social, de inspiração

drummondiana. Sua poesia evolui consideravelmente, em

parte sob o estímulo da poética do rigor, de João Cabral. Sua

produção derradeira dá ideia da altura que teria atingido se a

morte (um câncer tardiamente diagnosticado) não a levasse

tão cedo.

A poesia de Lupe Cotrim, como a de vários poetas surgidos

nos anos 50-60, corre o risco de ficar espremida, e esquecida,

entre o beletrismo da Geração de 45, cujos próceres a

cortejaram em mais de uma oportunidade, e o radicalismo

antidiscursivo dos concretos, que a levou a travar, em 1968,

uma esquentada polêmica com Décio Pignatari. Perto do fim,

Lupe deu mostras de que teria optado por uma terceira via, a

poesia engajada nas grandes causas sociais, um pouco

inspirada nos CPCs (Centros Populares de Cultura), que

vinham tentando se firmar, com Thiago de Melo à frente,

desde o final da década de 50.

Por fim, cabe assinalar um fato que deve ter contribuído, na

altura, para a formação do mito Lupe. Em 1969 Lupe Cotrim

viveu uma circunstância única: invadida a universidade pelos

estudantes que pugnavam por um ensino de melhor

qualidade, ela batalhou com o mesmo vigor tanto ao lado dos

alunos, na Faculdade de Filosofia, onde era pós-graduanda,

quanto ao lado dos professores, na Escola de Comunicações,

já que era um deles. E não houve nisso o menor sinal de

contradição ou dubiedade: ela sabia que os dois lados tinham

boas razões para lutar. E um ideal comum a defender.

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Saudade

(a Guilherme de Almeida)

A saudade é o limite da presença, estar em nós daquilo que é distante, desejo de tocar que apenas pensa, contorno doloroso do que era antes. Saudade é um ser sozinho descontente um amor contraído, não rendido, um passado insistindo em ser presente e a mágoa de perder no pertencido. Saudade, irreversível tempo, espaço da ausência, sensação em nós premente de ser amor somente leve traço num sonho vão de posse permanente. Saudade, desterrada raiz, vida que se prolonga e sabe que é perdida.

Ó que imenso dissipar

Ó que imenso dissipar por assim gostar de tudo. Com o meu ser extendido, tenso ao apelo do mundo, pulsando seu movimento vou erguendo esta prisão. Os pés retidos, imóveis, pelos choques de atração com a alma paralisada contendo tanta largueza e aspectos de vastidão. Por que ter tantos sentidos, o sentimento tão apto e o coração vulnerável? Por que o sentir sem repouso num sentir que é um rapto, exausto de comunhão? Uma pobreza qualquer, pobreza em voz, em beleza, em querer, em perceber, uma pobreza qualquer onde eu possa enriquecer.

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De pedra

— Eu sou de pedra, me dizias, a defender tua distância. E esquecias o musgo, essa tua epiderme de ternura, e o teu corpo de carinhos, num horizonte de água e terra, a te envolver na vida. — Eu sou de pedra — insistias. — Pesado. Denso. Inalterável. De estofo eterno. Apenas estou, não sofro; se algum gesto me ferir, eu sou duro; quebrarei o gesto sem sentir. E esquecias que és pouso de borboletas, alicerce de flores, abraço de raízes, vulnerável em tudo do que em ti pertence e minha mão possui, acaricia. — Eu sou de pedra. E esquecias, esquecias.

Destino mineral

Sou feita de uma carne perecível futuro de outra carne, sem nenhuma eternidade. A rocha é uma invencível parte da terra; que ela me resuma no seu mesmo destino mineral. A solidez ausente que tortura nossa matéria frágil, no final se renderá: serei de pedra dura. Nunca mais chorarei nessa passagem de poesia. Com nítida certeza, recorto nas montanhas minha imagem mais que raiz, expressa na beleza. Pela terra em que não me desfiguro, hei de surgir um dia em cristal puro.

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Ao amor

O que desejas de mim nunca o dará o lampejo de um momento, a conquista de um dia da montanha. Meu corpo — para ti somente — deve emergir a cada gesto 1ímpido e profundo deve ser meu futuro para reter-te e recriar-te permanente. Sei que em mim te estenderás, não mais disperso, em desejo e em procura de teu filho e que todo movimento de meu ser será o rumo de teu universo. E por isso temo. No meu sentimento sofro por ti. Receio ser larga a hesitação de meu caminho, ser um mito a conquista da montanha, ser pobre e fugaz o meu espaço na extensão que reduz teu infinito.

De mar

III A chuva cai, sem figura, mantendo espaços vazios na sua própria textura: é uma água desfiada. Diante dela o mar contido É superfície compacta. Nele tudo é preenchido, indo pela mesma água. Não tem vão ou intervalo a carne crespa do mar, mas paredes maleáveis, bem lisas de penetrar. A chuva que estende ao mar os seus dedos insistentes é uma presença molhada de tanto se derramar: o mar guarda uma secura de quem sabe repetir em si mesmo seus desígnios; é seco porque perdura.

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Embora suas franjas leves se esparramem pela areia toda maré lhe garante a forma guardada e cheia. No seu tempo passageiro mesmo de raio ou trovão a chuva é o que escorre, não tem corpo ou duração. Diante de sua água estreita, só de perfil, vertical, o mar estende a planície tramada em fôrça de sal e germina suas águas em permanência e conquista: sustenta sua espessura e mantém entranhas vivas.

De amor

(entreato) POSSE II Ele — Seduzir o cotidiano pelo corpo. Penetrá-lo deste brilho longo, compacto, onde o cansaço não é tédio mas úmido intervalo. A paisagem não sustenta mais os olhos; estrelas despojaram-se dos monólogos, a flor voltou a si, não mais dizer exausto, a primavera guardou sua intimidade no discurso das árvores, e o amor, esgarçado de imagens, procurou outro equilíbrio além da frase, de um silêncio a outro. Nem sempre a paz levou-nos a suas tácitas paragens: a liberdade aspirou um ser estranho, em que de novo nos olhássemos. No corpo prosseguimos onde o amor parava. E inventamos. Sem palavras tornamos nossa a carne da manhã, a exaurir o tempo, sem fidelidade alguma, no dia imprevisível, além do nosso invento.

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MONÓLOGO IV Ele — É o tempo meu receio, não o amor, que este perdura. Por novos desígnios refaz em outro aquilo que não for mais seu momento: trama outro domínio. Esta brisa entre nós, este sossego agudo de desejo, esta presença alerta, esta carne toda apego certo se apagam: tempo algum sustenta ou seduz uma solta intensidade. É a hora que me assusta: o amanhã do íntimo ser neutro, e a unidade uma palavra a mais na posse vã. O futuro só nasce de um invento: nós dois, amor, nós somos este tempo. MONÓLOGO VI Ela ...................................................... Se entre nós cada folha de silêncio for linguagem dos gestos desprendidos e em clareiras tombar cada momento o que outrora foi verde e preenchido, segurarei na queda tua imagem. Antes que perca todos os indícios desta palavra dita na coragem da posse em nós, hei de levar comigo o último desejo, o corpo intenso para tramar de novo um novo invento.

Paisagem de uma aula de filosofia

Porque a pedra está fora do tempo e eu por dentro; porque a terra se desata, vegetal, e a mim falta esse fôlego verde, em tênue movimento; porque entre raiz e folha o animal salta, elástico, e desconheço liberdade tão alta; porque mineral e vegetal uma floresta é segredo aberto ao animal e em mim se enlaça pelos cipós do medo — sei-me de outra espécie. Em que sou fraco. E antes de tudo—breve. Mas nessa extensão tão plena

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é que mais compreendo. Tomo nos meus braços, intersubjetivamente, o espaço total, que conduz o infinito. E são rochas de leões, marés de outono, folhas alçando-se no arrojo dos pássaros, répteis em curvas de diamante, montanhas côncavas, murmurando, florestas em ondas, sobre as águas as distâncias são formas —corpo de estrela, impulso de planície, a morte é apenas uma flor vermelha, que passa no vento, o amor se desvenda nas colheitas, rostos anônimos surgem dos troncos de cimento, a solidão é o rosto da humanidade a terra é voo, o céu se reaproxima, e em tudo estou presente, simultâneo, o horizonte a meus pés, como um riacho doce. Olhando dentro de mim, de dentro da natureza, eu a refaço—e invento a beleza.

“O dúplice”

Ser poeta é meu resíduo de tristeza ao não ser triste.

A dor que deveras sente é a que sinto. E o que vemos a mais nas coisas simples os subterrâneos cavados nas doces superfícies é nosso modo de unir o solto e o que resiste.

Viverá como vivo. O tempo e seu assalto não nos caberá fora desse pacto sonoro e terrível; a morte é o que não falo.

Da verdade sabemos a umidade na carne e o dorso embaçado. Em nossa gula tudo se avizinha na imagem que degulete mesmo os ossos da fuga.

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Cúmplices, o poeta e eu nos salvamos do crime. E do outro que somos ainda por dizer devoramos a fome.

“Memória barroca”

A Carlos Drummond de Andrade "É preciso fazer um poema sobre a Bahia... Mas eu nunca fui lá." Alguma poesia

Uma cola negra escorre das calçadas, e o mar escurece no pigmento do rosto. Uma fratura na pedra; e mais outra. Estátua que se ergue ou entranha que se mostra. O saveiro furta às águas a sumária riqueza dos peixes e no farol se acende a história ameaçada; nem tudo será resíduo e paisagem. A couraça urbana acintura a nova cidade cinza e domesticada. O visível de hoje, que se descobre entre a poeira dourada há de fechar-se: em escrutínios de marfim e tartaruga em barras de memória barroca e inapelável.

O ouro, o entalhe, a torre, a nave; o forte pontiagudo da indignação passada, presente maciço, ombro erguido contra o mar amortecido de altares.

A areia grossa, a onda oleosa que se apruma por ladeiras lentas nos passos de quem rediz os caminhos de volta -cada pedregulho já é outrora.

Entre corredores de redes a beleza se aconchega madura e esplêndida: no umbral dos solares é ela quem nos vê altiva e derradeira. Soerguidos pela brisa imergimos nos meandros do mar e na paisagem da magia: mas rasga-se entre as mãos a miséria sem névoa -é ela que nos penetra.

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II. Homens cercados de águas por todos os lados: perfis Alagados. Numa vida em que o futuro não é o primeiro rumo, lá em Alagados. Uma criança no detrito inventa seu edifício lá em Alagados e o corpo insiste sobre o lixo uma sentença passada. Confins Alagados.

O rádio noticia o ato lá em Alagados. Para homens sem enxada lá de Alagados. O silêncio é o silêncio lá em Alagados. Uma criança no detrito inventa seu edifício lá em Alagados que sustenta casa a casa enfins Alagados.

Uma árvore de natal lá em Alagados aponta Cristo à espera - atento, Alagados.

Uma mulher varre o lixo lá em Alagados morando sobre os detritos lá de Alagados. O homem é ator do homem lá em Alagados representando a cidade senfins Alagados.

Tudo é um deserto de águas lá em Alagados, consumindo seus naufrágios. Ai, Alagados.

III. Cada pedregulho já é outrora. .............................................. A beleza se aconchega madura e esplêndida no umbral dos solares, é ela quem nos vê altiva e derradeira.

Seduzidos pela brisa mergulhamos na poeira dourada e nos azuis incontáveis: mas rompe-se entre os olhos uma miséria sem trégua -essa é a nossa treva.

Salvador, 1968

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“À margem da poesia”

Rilke estava enganado: um poeta é um poeta e vive sem fazer versos. Por outras razões se morre e as forças de viver são mais cegas, são mais ágeis que a direção de morrer.

Maiakovski se matou podendo fazer poesia e pagando seus impostos. Como? Onde? Para quem? Aqui, ali, pouco importa, em tudo a mentira sobra; morreu na boca de um poema o pulso farto de versos.

Outros também se calam na fímbria solta das sílabas todo o lirismo nas mãos corpo exposto a faca e bala na altivez de perfil por onde olha a poesia, sozinha, sua própria véspera.

Se morre por outros rumos aquém e além do dizer e do poeta é a sina não viver só de palavra mas do chão, da cerca, da água onde germina em silêncio o que desabrocha a fala.

Versos se podem calar; há coisas que não se calam porque caladas, veneno pior que o aço da espada. Matando o irmão por dentro dobrando o porte - a verdade esgar de consentimento.

O vivo é antes do verso. Urgente é abrir seus olhos e as cortinas lacradas. O verso, sim, mas depois das razões de não morrer. E assim fazendo, dizer.

Se vive com fome e sede com amor estilhaçado analfabeto, amarrado, com chumbo dentro do ventre sem sexo, luz, alvorada, um homem vive de pouco resiste às vezes de nada.

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Das desrazões, irrazões porque se venha a viver há um poeta sem versos que é poeta a valer e sobrevive. De gula talvez de usura, confiança em quem ignora, no cego, no surdo-mudo.

Rilke estava enganado. Um poeta suicida anunciou vento adentro - o romantismo acabou. O que estava por detrás lá nos fundos da poesia é que mata. E o matou.

Um pano em volta do rosto muitos espreitam, se calam. Mas além de ultraje e mito numa resistência inteira um poeta ainda espera no calcanhar de seu grito.

Faz seus versos, e sem fazê-los permaneceria vivo.

“Monólogo I”

Hei de inventar amor, ávida e atenta. Amor de ser a outro que é demais o amor que em coisas hoje se alimenta. A manhã é cerrada de momentos que hábeis mãos inventam em seu provento; inventar o que o íntimo não fala, curvando-se à pressão de outros inventos. Hei de inventar amor num desafio às mais concretas frases, aos dias úteis, amor de ser a outro que é demais ter um mundo por dentro desprovido. [...]

“Diálogo I”

Ser transparente é quase um suicídio, um transbordar de si perdido, ir a outro de nós que nos retém, apagado o sentido. [...]

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“João, fragmentos”

I. O que é nosso, João, entre o teu e o meu o que separa em posse a nossa solidão? Não sei. Não sei o que era de mim no que te encontrei. Hesito entre o inscrito e o que me vem às mãos: tenho pouco do perto. Antes creio no que ainda terei porque desperto.

Vês o mundo, João, como quem não sabe ou enxerga em vão. É um ver qualquer, o teu, sem detalhe ou magia, e devo a teu olhar o segredo ondulado onde o mundo principia.

II. Há países mordidos e uma língua de metal astuta e imprevisível dilacerando o homem em sua própria criança. O que faremos, João? [...] Enquanto penso, existes com fomes divergentes. Franzimos as sobrancelhas para o que alguns fazem de nossa bandeira. Apesar, João:

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III. Enquanto, João, alegria eu quero apesar da guerra. Para nós e em volta medula de resistência em nossa presença.

Ladeando a fome, ladeando a morte de Biafra às vizinhanças consumir alegria de manter-se vivo apesar e contra isso.

Se o gesto é escrito e perduras analfabeto, se o pão é farto e teu estômago descalço se alguns vão à lua no esplendor da técnica e prossegue a miséria em sua chaga satélite, alegria, João. Por um outro dia necessitamos fazer parte do que nele principia. [...]

Alegria pela manhã que contra hoje vai chegar, sub-versiva, sub-vertida sub-metida. Alegria de nós, em nosso intento: alegria como é viva uma pessoa viva.

Page 23: Chicos 41 - Dezembro 2014

Ronaldo Werneck

Prosa-elegia pro Chico Cabral

Escrevemos

porque sabemos

que vamos morrer.

Escrevemos

porque não sabemos

por quê.

“Perdemos

nosso amigo. Cabruxa

partiu há meia hora”.

Vindo do Rio, o

telefonema da última

quarta-feira, 20 de

agosto, era da poeta

Lina Tâmega Peixoto, e

a notícia – embora esperada, mas não tão cedo – me

deixou a nocaute. Cabruxa era como Lina denominava

o seu, o nosso grande amigo, o poeta Francisco Marcelo

Cabral, que eu aprendi desde a juventude a chamar de

Chico-Chiquinho Cabral. Eu estivera no Rio até a

véspera, gravando uma entrevista para TV e, naquele

momento, já me encontrava em Cataguases, envolvido

com um projeto que precisava enviar para Belo

Horizonte até sexta-feira. Parei tudo. Minha mulher, a

Patrícia, encontrava-se em uma audiência no Fórum.

Esperei que ela voltasse, ainda meio sem saber o que

fazer. Já era final de tarde, eu ainda meio a nocaute.

Patrícia sugeriu que seguíssemos logo para o Rio.

Noite alta – e, por ironia, “céu risonho”–, fomos

estrada afora, eu me lembrando de meu amigo maior.

E veio o fragmento de um de seus primeiros poemas: É

hora de sol/ lá fora/ e noite, no coração./ Milhares de

estrelas,/ borrões/ que as nuvens carregarão. E outro,

de seu mais que admirável livro “Inexílio”: Amar

menos/ é morrer/ como o rio sendo freado pela areia/

como tirar os óculos, desligar o telefone,/ guardar a

máquina de escrever e sair de casa/ para nada. E logo

outro, vindo lá de 1949, de seu primeiro livro, O

Centauro, editado em Cataguases: Me matei de

sombra/ Me pintei de roxo/ Fiz um metro, um canto//

Para o meu amor./ Que lucrei?/ Um verso./ Que fazer?

cantar./ Mas se há dor? que importa!/ A dor é só

instrumento.

Cidade Interior

O carro corria na noite e me lembrei de um bilhete que

mandei pro Chiquinho, quando ele lançou Cidade

Interior (Rio, 2007): “O seu despojamento, essa sua

dicção absolutamente particular – que não consigo

identificar em nenhum dos poetas que conheço – esses

seus “poemeus” de antitergi/versar que me comovem,

que me locomovem a cada vez que os releio, meu caro

Chico Marcelo, e que pro seu universo (re)torno –

mesmo “que” com todos esses “quês” –, para essa sua

Cidade Interior. E confesso ser cada vez mais tomado

pela alta tensão de sua “escritura” (merci bien et voilà,

M´sieu Derrida), esses poemas que tanto me tocavam a

cada releitura, e que hoje guardo e guardarei sempre: é

onde às noites os medos / .../ cortam as luzes das ruas /

.../ as pisadas no tambor dos pesadelos / .../ (e onde os

mortos rumorejam pelas grotas) / .../ uma cidade para

sempre estacionada/ no poema/ – falsa e inesquecível”.

Esses poemas – escrevia eu naquela ocasião – sobre os

quais não sei ainda o que dizer agora, numa primeira e

rápida e mais que prazerosa leitura. A não ser o óbvio,

aquilo que sempre digo: além de tudo, do grande poeta,

você é também "il miglior fabbro da Dr. Sobral" (a rua

de Cataguases onde nascemos). E aquele poema então,

aquele insight, coisa de poeta maior:

Todo poema é celebração

mesmo não lido.

Todo poema é de amor

mesmo perdido.

Todo poema fica por aí

mesmo esquecido.

Não, não ficam. Não os desta Cidade Interior, não se

poemas como aqui, nesta em si clari/cidade: antes que

o sol mergulhe e se apague no mar”. Daqui, poema

nenhum, nenhum sol será apagado.

Campo Marcado

Em abril de 2008, abri a apresentação que escrevi para

seu livro Campo Marcado (Rio, 2010) com um pequeno

poema que Manuel Bandeira lhe dedicou.

Ao poeta de Cataguases,

Autor do belo Centauro,

O Poeta Manuel Bandeira

Envia um ramo de lauro,

Saudando-o desta maneira

Ás futuro entre outros ases!

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“O poemeto de Bandeira é de 1949, ano da publicação

de O Centauro, o livro de estreia do jovem poeta

Francisco Marcelo Cabral, então com 19 anos. São na

verdade “antenados” os poetas, mesmo aqueles que se

dizem “menores”, enquanto grafam na maior, e com

maiúscula, o seu epíteto.

Ás futuro entre outros ases! – saúda um muito do

exclamante Bandeira, antecipando a rica trajetória de

FMC nas próximas seis décadas. Poucos livros publicou

o poeta desde então, mas todos definitivos. E eles o

colocaram ombro a ombro com os melhores poetas

desta e de outras praças e, claro, no pódio dos ases de

Cataguases, aqueles rapazes que fizeram a Revista

Verde e marcaram a história da cidade.

O “ramo de lauro” de Bandeira foi devidamente

assentado na cabeça de Francisco Marcelo Cabral, que

o ostenta com toda a dignidade do poeta singular, poeta

maior que é. Poucas vezes – nenhuma! – vi gente tão

culta, de tão grande sensibilidade e inteligência como

Francisco Marcelo Cabral. Brinco de chamar o poeta de

brilhante, mas brilhante é pouco quando se trata dele.

Brinco também chamá-lo de “meu guru” (e não é?)

desde que – lá se vão quantos anos? – ele me levou, no

Rio, à casa de Alexandre Eulálio, então leitor oficial da

Biblioteca de Veneza, para que eu conhecesse “uma das

pessoas mais cultas do Brasil”. Pois é, Alexandre e eu

ficamos arrebatados por aquela noite inteira a ouvir o

poeta que sabia de tudo um muito mais que tudo.

Francisco Marcelo Cabral é um poeta-perguntador e

por isso mesmo capaz de articular respostas essenciais,

de nos propor descobertas: as palavras são portas de

saída mas não de entrada. A emoção ou conceito,

presentes num texto, são de quem o lê e não mais

apenas de quem o escreveu.

Que o diga agora este Campo Marcado. Melhor, que

nele possamos (re)ler e (re)assumir a emoção que

ressurge a cada poema:

A luz e o silêncio em mim sabem a vida

e quando respiro

tudo o que não entendo faz sentido.

Com seus metapoemas mais que luminosos, com sua

grande intensidade, Chico Cabral faz de Campo

Marcado pedra de grande quilate, que há de rolar

sempre entre seus (muitos) fiéis leitores. Escrevo a

língua do meu avô/ sem permissão. Ora, por quem sois,

meu poeta! Vosmicê tem mais que toda permissão!”.

No Rio de meados da década de 1960, Chiquinho Cabral

e eu erámos redatores de um escritório de

planejamento econômico, Leone e Associados (um dos

associados era o próprio poeta, sem controvérsias o

“cérebro” do escritório). Um dia, chegou um projeto de

cemitério vertical e ele, como numa premonição, foi

seu maior defensor. No Rio, na manhã da última

quarta-feira, o corpo do poeta foi colocado – ao lado de

seus irmãos, Edvar e Pedrinho – numa das gavetas do

Memorial do Carmo, aquele mesmo cemitério cuja

verticalidade tanto defendia o redator Francisco

Marcelo Cabral. Estava lá Chiquinho Cabral, com a

fisionomia tranquila, como se voasse após meses de

sofrimento.

Alguém leu um poema de seu Livro dos Poemas (Rio,

2003), um de seu cantos para o Maharaji: Meu mestre

dança como os pássaros./ E canta com os claros

tímpanos da aurora./ Ele caminha como a brisa sobre

as rosas./ E eu sou a almofada sob seus pés quando

repousa. A seguir, o ritual fúnebre, mesmo não sendo

católico o poeta. Foi quando mais uma vez, como em

todos os muitos velórios a que já fui, voltei a assustar-

me – talvez por “ler” errado – com aquele trecho da Ave

Maria: “E agora e na hora de nossa morte, amém”. A

poesia vem do susto, do espanto:

O leitor se assenta.

O poeta puxa a cadeira

a poesia é o tombo.

O leitor se enleva

o poeta o empurra no abismo

a poesia é o voo.

Voando, me vou

Logo depois da cerimônia, eu e Patrícia voltamos para

Cataguases. Um dia belíssimo, de sol e céu azul, que me

fez lembrar um mês de maio de não sei quando em que

eu e Chiquinho Cabral viajávamos por essa mesma

estrada. Estava contente e alegre como sempre o meu

poeta, que dizia preferir, entre todas, as manhãs de

maio e céu azul. Tinha razão: mesmo de sol e céu azul,

costumam ser traiçoeiras as manhãs de agosto.

Quando essa respiração vem

com renovada força de vida

não perguntes nada

simplesmente a recebe e aceita

e gratidão seja a música de tua alegria.

Já em Cataguases, debrucei-me sobre o famigerado

projeto, que consegui enviar a tempo para Belo

Horizonte. Mas por todo o tempo em que escrevia, a

presença de Chiquinho Cabral permanecia em mim – e

os poemas de Francisco Marcelo Cabral assomavam,

saltavam de meu ser, como se voassem:

Temo jamais ter merecido

as asas dos meus versos.

Às vezes eu as desprendo – é noite, é Minas –

E como quem espreguiça

num largo espasmo

alço-as e me vou, ou sou levado

voando, me vou.

Ronaldo Werneck domingo, 24 de agosto de 2014

Page 25: Chicos 41 - Dezembro 2014

Emerson Teixeira

Cardoso

Velhos temas

Poetas como Dante, Antero de Quental,

Francisco Marcelo Cabral, Carlos Drummond de

Andrade, Ascânio Lopes. Poetas de épocas diversas

quanto suas criações. Todos capazes, muito

capazes, revelando suas tristezas, saudades,

fantasias, preocupações, expressar o drama da

grandeza ou miséria humana. Como aliás convém a

todos os grandes. Essas questões que permeiam o

universo das artes e que chamamos metafísicas.

Mesmo que muito diversos na linguagem, mesmo

que distanciados no tempo e no espaço, ainda

podem coincidir nas suas artes e expressões.

Antero de Quental escreveu:

“Erguendo os braços para o Céu distante

e apostrofando os deuses invisíveis

os homens clamam: “Deuses impassíveis

a quem serve o destino triunfante,

por que é que nos criastes?! Incessante

corre o tempo e só gera, inextinguíveis

dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,

num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente

do nada e do que ainda não existe,

ter ficado a dormir eternamente?

Por que é que pra dor nos evocastes?”

Mas os deuses, com voz inda mais triste,

Dizem: “Homens! Por que é que nos criastes?

O mesmo motivo encontra-se neste poema de

Drummond, “Coisa Miserável”

“Mas de nada vale

gemer ou chorar

de nada vale

erguer mãos e olhos

para um céu tão longe

ou quem sabe, para um céu vazio.”

Ou nestes versos de Ascânio Lopes:

“O teu pranto é inútil, são inúteis tuas preces

O céu é muito alto, nosso clamor não pressentido.”

Agora, essa coincidência é muito mais evidente

quando comparamos versos de Francisco Marcelo

Cabral e Drummond. Homem, cavalo, Centauro

“A nudez das coisas não ditas

em paragens transfinitas

donde meu pranto se escorre

Onde o vaso em que guarda-las?

Tudo é nada, tudo é nada

só eu sou tudo, só eu.” [...]

Cabral

“Tudo é possível, só eu impossível

A poesia é incomunicável

fique torto no seu canto

não ame.”

Drummond

Ou à poesia é tudo, está em tudo em toda parte e

assim permite essas coincidências ou são verdades

que persistem.

Meu velho professor no curso de letras (quando

haviam por aqui cursos de letras) diria com mais

convicção: “São apenas vasos comunicantes.”

Para encerrar o elenco de coincidências estes versos

que vale a pena registrar.

Gravidade

Há em tudo o desejo imenso de voar

desde o artista que se eleva na harmonia

à matéria rude, à poeira que rodopia

pela força do vento, em espiral no ar [...]

Page 26: Chicos 41 - Dezembro 2014

Antônio Jaime Soares

O galã que não fui

Ainda em 1965, fui ao Rio protagonizar um

filme. Minhas cenas, mais trabalhosas, seriam rodadas em

Cabo Frio e dentro de um avião, deixadas para o fim.

Enquanto esperava, trabalhei na produção, coisas como

contratar atores para pequenos papéis, alugar roupas e

objetos de cena. Na verdade, dois filmes, com verba que

mal dava para um.

Comia-se apenas sanduíche e refrigerante durante as

filmagens. Um dia, a atriz Esmeralda Barros, mulata

exuberante, não conseguia decorar o texto porque estava

com fome. Só fez a cena depois que lhe comprei um pão

com salaminho e guaraná. Pela mesma época, uma equipe

italiana rodava outro filme no Rio e a contratou. E ela foi

para a Cinecittà.

Eu também pegava atores em casa, na kombi da

produção. Helena Ignês, uma das estrelas do cinema novo,

morava num conjugado e, como todo mundo na equipe,

não tinha carro. A atriz com quem eu contracenaria,

Annick Malvil, francesa, só vi uma vez. Fui à casa dela e

seu namorado, Milton Rodrigues, chamou-a para

conhecer “o seu galã”, eu, no caso. Não levava o menor

jeito, mas assim seria. Ele, sim, acabou fazendo sucesso no

México.

O galã do outro filme era Hugo Carvana, em início

de carreira. O anti-galã era Joel Barcelos, ator franzino,

que interpretava um delegado. Uma noite, filmando numa

delegacia, passou lá o coronel Borges, chefe do tráfego, e

ficou perplexo: “Esse moleque é uma caricatura da polícia,

eu proíbo as filmagens”. E tivemos que improvisar a sala

da delegacia em outro lugar. A ditadura militar tinha

pouco mais de um ano, mas a intolerância...

Caso interessante contou-me Jofre Soares, também

começando. Reformado da Marinha, voltou para sua

terra, em Alagoas. Eis que houve lá um conflito entre

índios e ciganos, com mortes dos dois lados. Jofre então

pegou as crianças órfãs, de ambas as tribos e formou com

elas um circo, ele, o palhaço. Eis também que apareceu por

lá Nelson Pereira dos Santos, filmando Vidas Secas, e deu-

lhe um papel, tornando-se Jofre, já grisalho, um dos

melhores atores brasileiros. Pode-se dizer que teve duas

vidas, e bem vividas.

Outra que não dá para esquecer é Zezé Macedo, uma

instituição do cinema brasileiro, a partir das chanchadas.

E, em clima de chanchada, ela fez uma velha já de

camisola, bobs nos cabelos, pronta para ir dormir, quando

tocaram a campainha. Pelo olho mágico, viu que era um

homem. Pediu “um momentinho” e correu ao espelho,

ajeitou os bobs, ajoelhou-se, benzeu-se diante de uma

imagem de Santo Antônio e abriu a porta. O cara era um

comunista fugindo da polícia e é claro que ela lhe deu

guarida. A cena ficou hilária, precisa nem dizer.

Tudo bem, mas o dinheiro acabou, as filmagens pararam

e tive que voltar para Cataguases, muito chateado e ainda

mais pobre. Tempos depois, os filmes foram finalizados e

me chamaram. Pedi que me pagassem os atrasados, não

toparam e assim foi abortada minha carreira de galã.

Poderia ter tentado de novo, bem mais tarde, quando

trabalhei na TV Globo e na Embrafilme.

Mas, sinceramente, a vontade já tinha ido pro beleléu e

minhas preocupações eram outras, gostava mais de

escrever. Propaganda, no caso, na época.

Page 27: Chicos 41 - Dezembro 2014

José Antonio Pereira

E quem foi o

continuísta de

O Anunciador?

Quem caminha pelas

ruas quentes de Cataguases,

nem imagina que entre as

frestas dos paralelepípedos,

nas sombras que dobram as

esquinas no meio do dia,

fantasmeiam muitas histórias

não ou mal contadas sobre

cinema. Só do velho e extinto

Cine Machado, vos conto algumas, das que escutei dos

que me são mais próximos. Uma curiosa versão, não

oficiosa, para o surgimento da sala de projeções, reza que

a família já vinha no negócio de fabricar macarrão e pães.

Aquela luta toda; levantar cedo, o pão tem que estar

quentinho bem cedinho, empacotar macarrão, ser

ludibriado pelo Moinho que prometia uma farinha e

entregava outra. Muito suor, pouco lucro e o freguês

sempre reclamando da qualidade do macarrão e do pão

então...

Um dia, na padaria, alguém perguntou após mais uma

queixa de cliente: Ô raios! Não teria nada pra vender que

o freguês não tivesse que levar.

Entre a fábrica de macarrão e a padaria ficava o cinema;

foi, neste cineminha sem glamour algum, que o realismo

italiano fez nossas cabeças, eu apaixonei-me pela ruiva

Jeanne Moreau e a loiríssima Bardot, também ali

descobri que a fidelidade era uma fantasia; já que minhas

amadas estavam sempre nos braços de outros. Nosso

amigo Butt, na maior sem cerimônia entrava nas sessões,

para nosso espanto, apenas com um – Boa noite seu Nelo!

Durante uma sessão, o maluco Marquim Chaparral,

explodiu o vaso sanitário do banheiro, fedido como os de

boteco, provocando uma baita confusão. Alguns, mais

atrevidos, escalavam o muro da casa do deputado

Martins Silveira, saltavam o muro da loja do português

mal humorado, Seu Serafim Cabral, este parecia um

limão galego, até chegarem na lateral do cinema. Que

nada mais era que um beco ligando a fábrica de macarrão

à padaria, funcionando como saída ao fim das sessões.

Nesta área aberta, depois da pularem vários muros, os

penetras algumas vezes davam de cara com alguns

fumantes que sempre entregavam a molecada. Nestas

ocasiões, tomavam uma carreira do Navalhada, deste,

todos nós tínhamos medo.

Isto tudo veio à tona numa conversa de boteco com o

Toquinho, após o evento inaugural do Clube de Leitura

Nossas Causas. Não é que, convidado pelo Rogério

Torres, o Paulo Martins deu

as caras em Cataguases, para

participar da abertura do

Clube de Leitura. Entre

tantos que participaram da

empreitada de fazer um

filme, nos tempos do CAC, lá

estavam o fotografo Mário

Simões, Carlos Moura, Antônio Jaime, Mário Cesar

Cardoso, Ronaldo Werneck e o escritor Joaquim Branco,

que Paulo confessou, ter sido uma influência lá no seu

início. E diga-se de passagem interferiram muito pouco

no papo do cineasta e

professor.

Depois de Humberto

Mauro, um bando de

jovens, voltariam a se

meter com cinema na

cidade. E fizeram o

muito comentado, por aqui, e raramente visto – O

Anunciador o homem das tormentas.

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O Anunciador, olhando de hoje, é a cara da cidade,

fragmentário, circulando em torno de si mesmo, não era

a intenção, mas virou um retrato, daqui, nos anos 60. Até

hoje, apesar de seus poetas libertários e prosadores

contemporâneos, Cataguases ainda é tangida por uma

fome, não a de saber, coisa que os Chicos - Peixoto e

Cabral (este produtor da película e conhecedor de

padaria), só para ficar entre os Chicos, ofereceram finos

e requintados biscoitos, mas a fome dos nossos operários

é só de ter o que comer. Não dão a mínima para seus

prosadores, poetas muito menos ainda para O

Anunciador. Durante mais de meia década a população

ressabiada acompanhou as peripécias pelas ruas

daqueles rapazes e moças que apesar da letra do Ari

Barroso no hino do colégio, não estavam nem aí para dar

“glória maior a Minas”. Queriam, era exercitar suas

rebeldias. Para espanto dos incrédulos conseguiram.

Fizeram um filme não convencional e deixaram um tanto

de gente na cidade boquiabertos e alguns com raiva.

– Pô eu carreguei placas

de protesto durante a

gravação, todo empolga-

do, coloquei no meu

currículo, trabalhei no

Anunciador. Na estreia,

todo empolgado, sentei

nas primeiras filas, esperava vaidoso a plateia me

reconhecer e os sacanas puseram só imagens das placas,

cortaram nossas cabeças; reclamou o Washington

Magalhaes, meio século depois, ao Paulo Martins.

Quase roubou a cena ao contar que o diretor do filme,

fulo de raiva atirou sua bicicleta ao Rio Pomba de cima da

ponte, depois de um entrevero que nenhum dos dois

explicaram o que foi. Washington, na ausência de

megafone ou de um walkie talking, este nem existia,

durante as gravações realizadas nas duas pontes do

Pomba, ia e vinha transmitindo as ordens do diretor,

tinha que dar errado. Uma língua espirituosa, não deixou

passar em branco. – Então acabaram ali com o menino de

recados, inventaram o washintolking.

Paulo, que fez questão de destacar ser o único professor

não graduado da Unicamp, discorreu sobre suas

atividades no curso lá da Universidade, mas foi as

peripécias dos teus tempos de Cataguases que despertou

a curiosidade dos presentes ao evento. Falou de como

arrastou-se por tantos anos, acho que seis ou mais, a

produção do filme, o ir e vir ao laboratório de revelação

em São Paulo, correr atrás de dinheiro para continuar

tocando a empreitada, aproveitar as horas vagas na

madrugada para utilizar estúdios na edição... Brigou com

o Mário Simões “gastando filme com um redemoinho

mixuruca de poeira no meio da estrada”, acabou

aproveitando a cena. O final em que um grupo caminha

pela estrada, como se abandonassem a cidade foi

“esticado” ao máximo, para que o filme torna-se de fato

um longa-metragem. O filme foi filmado numa bitola

menor para cortar custos. A câmera precária era outro

tormento. A camisa do ator principal, ficou sem lavar

alguns anos, por medo de desbotar e perder a cor. Como

as filmagens ocorriam lentamente, achava ruim cada vez

que ao voltar e retoma-las, aos seus olhos parecia que o

protagonista engordava com o passar do tempo. Quem

não foi, perdeu um bom papo.

Ultimamente, várias produções são rodadas por aqui.

Algumas pertinentes, por tratar-se de filmes que

retratam a obra do Luiz Ruffato, que tem o lugar como

ambiente de suas narrativas, já outros... a cidade

empresta apenas o corpo às produções.

Tudo, como no negócio do Seu Nelo, é um engodo só,

todos querem vender aquilo que não se pode levar para

casa.

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Renata Pallottini

Renata Pallottini - Professora doutora do Departamento de

Artes Cênicas da ECA-USP. Dramaturga, escritora e poeta

O personagem na ficção

policial moderna – Leonardo

Padura Fuentes: Cuba, o

detetive Mario Conde e seus

fantasmas Escrever sobre autores cubanos atuais é

penetrar num lindo mundo enevoado, cheio de

perspicácia e adivinhação. Desde tentar a comunicação,

estando em Cuba, com Leonardo Padura (1955 –

Havana), até tentar localizá-lo através de sua editora

brasileira, a Companhia das Letras, a viagem é longa e

algo arriscada. Mas vamos a isso. O que se deseja não é

ver o autor – aliás, um cinquentão simpático –, mas

estudá-lo, escrever sobre ele e sobre a sua criação

principal, o detetive da polícia cubana Mario Conde.

Depois de uma carreira promissora, iniciada como

jornalista e crítico, foi em 1991, com uma edição no

México, EDUG, portanto aos 36 anos, que Padura iniciou

sua viagem pelos caminhos da novelística policial,

criando o seu instigante personagem principal Mario

Conde, que é, segundo o criador, o seu intermediário

entre a ficção e a realidade.

Essa aparição se deu em Pasado

perfecto; o livro se propunha a,

declaradamente, ser o primeiro de

uma tetralogia intitulada Las

cuatro estaciones, que se

completaria – e assim aconteceu –

com Vientos de Cuaresma,

Máscaras, e Paisaje de otoño.

Inesperadamente, agregou o autor

dois novos títulos à saga de Mario Conde: Adiós,

Hemingway e La cola de la serpiente.

O primeiro desses dois títulos, aliás, redundou num

premiado filme de Fernando Perez, brilhante cineasta

cubano, autor de uma filmografia respeitável. Mario

Conde teve, assim, sua ação como representante da

geração que cresceu no período revolucionário, que viveu

todo o período de efervescência dos anos 1960, levada às

telas.

Depois, ainda, volta Padura à sua antiga ficção, com La

neblina del ayer, quando já o antigo policial, dedicado ao

seu amor pelas letras, passa a viver do comércio de livros

velhos; comércio esse que, como vê quem visita a Ilha, é

um florescente meio de vida, visível na Plaza de Armas,

nas cercanias do Cine Yara e da sorveteria Coppelia,

entre outros lugares.

O tenente Mario Conde, o detetive-herói de Padura, é um

policial cubano, de trinta e tantos anos, que, com o passar

do tempo, por indisciplina ou por desinteresse, afasta-se

de seu posto na polícia, mas nunca das investigações e,

mais, do questionamento que o envolve nas relações com

o mundo, a sociedade, a alta burocracia cubana.

É possível que, devido às dificuldades naturais na

imersão desse mundo, o autor tenha preferido voltar-se

para outro tipo de literatura, dedicando-se a escrever

sobre outros temas. Foi assim que nasceram, à margem

de suas primeiras preferências, La novela de mi vida e

outras obras.

Cabe aqui, portanto, uma dúvida básica: teria Padura

desistido de manter-se fiel às aventuras de seu

personagem, por julgar, talvez, que fosse complicado

criar histórias que tratassem as investigações de um

detetive particular em Cuba (contratado por quem? pago

por quem?); ou, ao contrário, foi aconselhado, por mais

prudente, a simplesmente abandoná-lo?

O mundo em que vive e trabalha Mario Conde é um

mundo peculiar e de convivência delicada; sabe-o quem o

conhece de perto. Padura busca problematizar a

realidade cubana, desvendá-la conscienciosamente e

fazer a seu respeito comentários criteriosos. Mas a

realidade volta-se, às vezes, contra ele, dificultando a sua

transcrição e, mais, a sua análise. Então, é muito comum

que ele se remeta ao passado dos seus personagens, de

Carlos el Flaco, principalmente.

A tradução, muitas vezes, atraiçoa; é difícil traduzir o

nome de Carlos, como Carlos, o Magro. Carlos, em todo

caso, foi um jovem contemporâneo de Conde, do mesmo

bairro de La Víbora, onde cursaram a mesma escola e

passaram pelos mesmos namoricos de esquina, jogaram

o mesmo jogo de pelota, o beisebol, partilharam as

meninas e a moda juvenil de cabelos e roupas.

Mas Carlos foi convocado para ir à África, na

aventura/missão de defender Angola, e o MPLA,

Movimento Pró-Liberdade de Angola, em 1974/5;

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considerando-se que Carlos e o Conde são

contemporâneos, o Flaco vai para África com vinte anos

e volta de lá paraplégico, em consequência de um tiro na

coluna.

O sobreviver de Carlos, então, passa a ser uma agonia;

prisioneiro da cadeira de rodas, ele se dedica a comer, a

engordar e, principalmente, a beber rum, amparado pela

mãe, defensora muda de seus velhos ideais, contando

ainda com os amigos da juventude e, principalmente,

contando com a companhia de Mario Conde.

Josefa, a mãe do Flaco, que mandou para Angola um

único filho saudável e cheio de planos, recebe-o paralítico

e impotente. Por alguns meios obscuros, que nem Carlos

nem Mario identificam, ela consegue mantimentos

suficientes para unir ao redor da mesa os amigos que

restaram ao Flaco e que, agora, entre audições de música

velha norte-americana e garrafas esvaziadas de rum,

conseguem dar um simulacro de vida ao filho inválido.

Carlos é o retrato dos resultados de uma guerra estranha:

estranha ao seu país e aos próprios resultados dela; sem

consultá-lo, mandaram-no, como se faz com todos os

soldados, defender uma causa que, possivelmente, não

era a sua. E o devolvem à vida reduzido à metade.

Sem comentar a guerra de Angola, Padura consegue

comprometer-se na exposição de uma espantosa

injustiça e num comentário seco e expressivo da injustiça

de todas as guerras, no que tange a quem morre nelas.

Seu amigo e protagonista das histórias, Mario Conde,

enquanto detetive de uma polícia cubana formal, tem

meios e direito a investigar, prender e castigar

criminosos identificados. À medida que se vai afastando

do seu cargo constituído, enquanto vai buscando

aproximar-se do seu desejo mais recôndito, o de ser

escritor, sua busca passa a ser, cautelosamente, a das

razões pelas quais, a despeito das proibições oficiais, da

vigilante burocracia do regime vigente, das velhas e

conhecidas personagens intocadas por dever e respeito a

uma autoridade maior, continuam a emergir os vícios e

as culpas da classe dominante.

E é em Máscaras, romance publicado no Brasil pela

Companhia das Letras, no ano de 2000, que Mario Conde

consegue reunir seus melhores talentos e maiores

demonstrações de rebelião, versados em um bom texto

policial e de denúncia social.

De fato, surgem aí o bar miserável disfarçado em uma

casa de cômodos – o talvez solar cubano –, onde tudo está

errado e fora de propósito, mas que, por isso mesmo,

prospera e atende aos recônditos desejos da população,

privada de formas mais variadas de lazer e, ainda, de um

modo mais expressivo de exteriorizar suas frustrações.

Máscaras trata do assassinato de um travesti, no famoso

e formoso Bosque de La Habana, um dos mais

justificados orgulhos dos habaneros.

Como é natural no gênero, surgem ao

longo das investigações muitas

teorias, muitos suspeitos e muitas

possibilidades, mas, ao fim, se

esclarece a culpa do pai do

homossexual morto no Bosque;

como se espera, a carga

excessivamente pesada de ser pai de

um gay numa sociedade machista e

extremamente cultora das características vulgarmente

identificadas com a virilidade acaba por justificar a

morte, por assassinato, de um filho que foge às exigências

primitivas de seu pai.

Como quase sempre acontece nos bons romances

policiais, identificar o culpado é o que menos importa.

Muito mais importante é criar, caracterizar e pôr em ação

personagens originais, que deem um bom retrato da

sociedade em que vivem, a qual, geralmente, sustenta os

seus pesquisadores, ao mesmo tempo que os atormenta.

Busca-se e identifica-se o criminoso, quase como se isso

representasse a justificativa de um gênero.

Muitas outras oportunidades vão se apresentar para que

o detetive assim criado volte a exercitar seu raciocínio e

sua intuição. Isso acontecerá em romances posteriores,

até que, por uma razão ou outra, Padura se lance em

tentativas mais ou menos bem-sucedidas de pôr em uso,

em outros gêneros, o exercício da sua arma: a pena. Ele a

usará como pode, sendo fiel aos seus desejos e à sua

vocação, enquanto esse exercício não o impedir de viver

em Cuba, seu país e sua maior paixão.

Referências bibliográficas

FUENTES, Leonardo Padura. Vientos de Cuaresma (Ventos de Quaresma).

Barcelona: Tusquets Editores, 1994.

Pasado perfecto (Passado perfeito). La Habana: Uneac, 1995.

Máscaras. Barcelona: Tusquets Editores, 1997.

Paisaje de otoño (Paisagem de outono). Barcelona: Tusquets Editores, 1998.

Adiós, Hemingway (Adeus, Hemingway). La Habana: Ediciones Union, 2001.

La cola de la serpiente (O rabo da serpente). La Habana: Ediciones Union, 2001.

La novela de mi vida (A novela de minha vida). La Habana: Ediciones Union, 2002.

La neblina del ayer (A neblina de outrora). La Habana: Ediciones Union, 2005.

Publicado originalmente em: Revista ECA - comunicação & educação • Ano XVII • número 1 • jan/jun 2012

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Flauzina Márcia

Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e

radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de

Cultura de Minas Gerais. Publicou: Vagalume (2002), Sua

Casa Minha Cruz (2003), Teófilo Benedito Ottoni (2009) e

Poemas Declives (2014).

Lendo Proust

No Caminho de Swann é

um livro, o primeiro volume, que

faz parte do romance em seis

volumes, escrito por Marcel

Proust, Em Busca do Tempo

Perdido.

Enfrentei, no ano de 2012, a

leitura dessa obra com a

disposição e a maturidade, que eu não possuía da primeira

vez que tentei. Não consegui então, dezesseis anos atrás,

passar das primeiras vinte páginas deste primeiro

volume.

Na época, me disseram para não desanimar, pois a leitura

apresentaria menos dificuldades nos outros livros. É

verdade, o estilo do autor torna-se mais assimilável,

parece-me.

Impus a mim mesma, fazer anotações de leitura, para não

me perder e passo a resumi-las, para animar outros que

queiram ser animados.

A primeira parte do livro chama-se Combray (é um lugar

lá na França) e começa com uma distinção entre memória

voluntária, construída pela inteligência e uma outra

memória involuntária, da qual o narrador vai falar

juntamente com a narrativa.

Então, o foco dessa memória voluntária está nas angústias

do menino diante da noite, em seu quarto, com suas

ansiedades quanto ao sono, à espera do beijo materno e

calmante, infalível quando não havia visitas.

O acaso concede-lhe, uma vez, um instante de júbilo ao

desrespeitar o código de conduta e conseguir o desejado

beijo, mesmo em dia de visita. Amarga vitória, que traz o

gosto da desistência da mãe ante seu projeto de educação

para o próprio filho.

Tudo de que se recorda o narrador é o drama de ir se

deitar e nesse, a beleza reserva-se à delicadeza de sua mãe.

“Tudo aquilo, de fato, estava morto para mim.

Morto para sempre? Era possível.

Há muito de acaso em tudo isto, e um segundo acaso, o de

nossa morte, não nos permite muitas vezes esperar por

longo tempo os benefícios do primeiro.”

Essa Combray da memória voluntária manteve-se única

por muitos anos, até que, num dia de inverno, o acaso

concede ao narrador um “prazer delicioso” proveniente

de uma colherada de chá com farelos de biscoito

amolecidos nele. Madeleines se chamam esses biscoitos,

mas o prazer delicioso tem outro nome e começa a nossa

aventura de acompanhar uma narrativa de

descobrimentos.

Essa Combray cheia de formas, cores e sons formadores

do “imenso edifício das recordações”, convocado pelo

aroma e o sabor da colherada de chá.

Para nós, leitores, esse edifício é feito de palavras, que nos

fazem quase viver a vida do narrador, com seus milhares

de acontecimentos de dentro e de fora do vivente.

Então sabemos que um lugarejo na França, onde a família

passa temporadas, durante a Páscoa, nas propriedades de

uma tia, a Leonie do chá com madeleines e dos achaques

de viúva inconformada, “... não passava de uma igreja que

resumia a cidade, representando-a, falando dela e por ela

às distâncias, e, quando a gente se aproximava, mantinha

cerrado em torno de seu alto manto sombrio, em pleno

campo, contra o vento, como uma pastora às suas ovelhas,

o dorso lanoso e cinzento das casas unidas que um resto

de muralhas da Idade Média cingia cá e lá num traço tão

perfeitamente circular como uma cidadezinha num

quadro de pintores primitivos.”

O cotidiano da casa – as atividades dos empregados, onde

se destaca Françoise, servidora abnegada de Leonie e

defensora do código de conduta dos que estavam acima

dela – as relações com outros proprietários e os relevos da

história e do convívio local são minuciosamente

examinados pelo narrador.

Havia dois caminhos para os passeios em Combray, o de

Méséglise-la-Vineuse, lado em que se passava pela casa de

Swann e do lado de Guermantes.

As recordações desses passeios se estendem num texto

repleto das reflexões do narrador sobre os assuntos

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discutidos em família: o comportamento das pessoas de

suas relações, aprovados ou desaprovados, as opiniões

sobre a pintura, a música e a literatura, a observação

detalhada da beleza natural e arquitetônica da região.

Desponta-se aí a preocupação dele com seu próprio

caminho, ainda mais porque intrigava-o a pessoa de

Swann, visita bem recebida em sua família, mas apartada

da Sra. Swann.

E, não é que essa figura se liga também ao seu primeiro

amor: “Eu a olhava ( a senhorita Swann, que aparece de

repente num dos passeios), primeiro com o olhar que é

apenas o porta-voz dos olhos, mas à janela do qual se

debruçam todos os sentidos, ansiosos e petrificados, o

olhar que deseja tocar, capturar, levar consigo o corpo que

está olhando e com ele a alma; depois, tal era o medo de

que a todo instante meu avô e meu pai, percebendo a

menina, me mandassem embora dali dizendo que

corresse um pouco adiante deles, que um segundo olhar,

inconscientemente suplicante, procurava forçá-la a

prestar atenção em mim, a me conhecer! Ela dirigiu as

pupilas para diante e para o lado, a fim de tomar

conhecimento de meu avô e de meu pai, e é claro que a

idéia que lhe ficou foi a de que éramos ridículos, pois

desviou-se e, com ar indiferente e desdenhoso, se pôs de

lado para evitar que seu rosto permanecesse dentro do

campo visual deles; enquanto , continuando a caminhar

sem tê-la apercebido, eles me ultrapassavam, ela deixou

seus olhares correrem na minha direção, sem expressão

particular, sem parecer ver-me, mas com fixidez e um

sorriso dissimulado, que eu só podia interpretar, de

acordo com as noções que recebera sobre a boa educação,

como uma prova de desprezo ultrajante; e, ao mesmo

tempo, sua mão esboçara um gesto indecente, a que, ao ser

dirigido em público a uma pessoa que não se conhece, o

pequeno dicionário de civilidade que carregava dentro de

mim só atribuía um sentido, o de uma intenção insolente.”

Seu nome era Gilberte, sabido pelo chamado da mãe e

carregado do desconhecido da vida dela, “onde eu não

penetraria”.

Adiante, o murmúrio do avô se mescla com a sensação de

que, se ela obedece a um chamado de alguém, não é

superior a tudo e o amor se arrefece junto com “Pobre

Swann, que papel o fazem representar: fazem-no ir

embora para que ela fique a sós com o seu Charlus, pois é

ele, reconheci-o! E essa menina metida no meio dessa

infâmia.”

Este Charlus é parente dos nobres Guermantes e

aparecerá mais tarde, em toda a pujança de personagem

totalmente singular.

O menino que se apaixona está metido numa saúde fraca,

numa boa educação e num belíssimo devaneio.

“A maior parte das pretensas traduções daquilo que

sentimos não fazem mais do que nos desembaraçar,

fazendo sair de nós os sentimentos sob uma forma

indistinta que não nos ajuda a conhecê-los.”

Seguir pelo lado de Guermantes era um passeio mais

longo, em que se caminha quase sempre ao lado do curso

de um rio, observado pelo narrador como se tudo a sua

volta, com suas cores passassem por ele e não o contrário.

“Nos passeios pelo caminho de Guermantes, nunca

pudemos remontar às nascentes do Vivonne (o rio), nas

quais eu pensava com freqüência e que se me

apresentavam com uma existência tão abstrata, tão

idealizada, que eu teria ficado surpreso se me dissessem

que se encontravam no departamento, a uma certa

distância de Combray medida em quilômetros, como no

dia em que soube que havia, na Antigüidade, um outro

ponto determinado da terra onde se abriam os Infernos.”

“Tampouco pudemos ir alguma vez até o limite que eu

tanto gostaria de alcançar, até Guermantes. Sabia que ali

moravam castelões, o duque e a duquesa de Guermantes,

sabia que eram pessoas reais e de fato existentes; mas

cada vez que pensava neles, representava-os ora em

tapeçaria..., ora totalmente impalpáveis, como em

imagens da Lanterna Mágica... envolvidos no mistério dos

tempos merovíngios e banhados, como em um poente, na

luz alaranjada que emana desta palavra: antes.”

Realiza-se um casamento em Combray, ao qual comparece

a duquesa de Guermantes e o êxtase do nosso narrador é

tal, que chega a entender porque “Baudelaire tenha

podido atribuir ao som do clarim o epíteto de delicioso”.

É outra paixão agora a inquietá-lo, a de não ter inclinação

para as letras e ser obrigado a renunciar a tornar-se um

escritor célebre.

Toda essa Combray, primeira

parte do livro No Caminho de

Swann, compões, em mais de

150 páginas, a poesia muda do

escritor em formação.

“Portanto, o lado de Méséglise

e o lado de Guermantes

permanecem, para mim,

ligados a várias das pequeninas

ocorrências dessa vida que, de

todas as diversas vidas que

vivemos paralelamente, é a

mais cheia de peripécias, quero dizer, a vida intelectual.”

Anteriormente a essa afirmação, outra indicação havia

sido dada: “sem dizer a mim mesmo que aquilo que se

ocultava detrás das torres de Martinville devia ser algo

semelhante a uma bela frase, pois que era principalmente

sob a forma de palavras que me davam prazer...”

O autor insere uma página escrita por ele na época e

afirma que tê-la escrito fez com que cantasse a plenos

pulmões, como se fosse uma galinha que acabasse de pôr

um ovo.

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No presente, seus pensamentos viravam a noite com as

recordações desse tempo em Combray, onde o narrador se

percebe dividido entre a angústia e o júbilo, como

ocorrências tão separadas, em sua vida, que ele não

consegue compreender e sequer se representar em uma

delas o que ele desejou, ou temeu, ou até realizou em

outra.

Encantada pela beleza natural desses dois caminhos, sigo

pacientemente essa história da individuação do nosso

narrador, que agora associa suas recordações a “certos

fatos que, muitos anos depois de ter deixado aquela

cidadezinha, fiquei sabendo acerca de um amor que

Swann vivera antes do meu nascimento, com essa precisão

de detalhes mais fácil de conseguir, às vezes, quanto à vida

das pessoas mortas há séculos do que no caso de nossos

melhores amigos, e que parece impossível, como parecia

impossível conversar de uma cidade a outra – enquanto

ignoramos a maneira como foi resolvida essa

impossibilidade.” Ele se refere à invenção do telefone.

SEGUNDA PARTE

Um Amor de Swann

Essa parte começa por analisar o modo de funcionamento

do “pequeno grupo”, “pequeno clã” dos Verdurin, em seu

convívio social, que, no entanto, não tinha qualquer

ligação com a sociedade freqüentada pelo Swann. Esse,

porém, “não se fechava no edifício de suas relações, mas

fizera dele, para poder reconstruí-lo em toda parte, de

novo, quando uma mulher lhe agradasse, uma dessas

tendas desmontáveis que os exploradores carregam

consigo.”

Ele foi, muitas vezes capaz de perder credibilidade junto a

uma duquesa, por solicitar desta e do seu desejo de lhe ser

agradável, uma recomendação que lhe favorecesse o

contato com um dos intendentes da duquesa, cuja filha lhe

chamara a atenção.

“... não era somente a brilhante falange de virtuosas

matronas, generais, acadêmicos, com quem estava

particularmente ligado, que Swann forçava, com tanto

cinismo, a lhe servir de mediadores. Todos os seus

amigos...”

Aqui saberemos bastante do Swann e da frivolidade do

grupo em que vai se meter.

A narrativa aponta para uma futura identificação do

narrador com alguns aspectos do caráter do Swann, posto

em dúvida por sua família, por causa da ligação amorosa

deste.

Esse caráter e essa ligação amorosa são a temática dessa

segunda parte, que não favorece a vida levada por Swann.

“Mas na idade já um pouco desiludida de que se

aproximava Swann, na qual a gente sabe se contentar em

estar apaixonado pelo prazer de sê-lo, sem exigir demais

em troca, essa união de corações, se já não é como na

primeira mocidade o fim para o qual tende

necessariamente o amor, lhe fica ligada, em compensação,

por uma associação de ideias tão forte que pode ser sua

causa, se se apresenta antes dele. Antigamente, sonhava-

se em possuir o coração de uma mulher da qual estávamos

enamorados; mais tarde, sentir que possuíamos o coração

de uma mulher podia bastar para que nos apaixonássemos

por ela. Assim, como se busca no amor principalmente um

prazer subjetivo, na idade em que poderia parecer que o

gosto pela beleza de uma mulher assumisse a maior parte,

o amor - o amor mais físico – pode nascer sem que tenha

ocorrido, em seus fundamentos, um desejo prévio.”

A ligação de Swann com Odette se dá assim mesmo, sem

desejo prévio, e faz dele um joguete nas mãos dessa

mulher, da qual não se sabe ainda o propósito.

Foram apresentados num teatro, por um amigo, que a

julgava deslumbrante e que “favorecia” Swann com a

apresentação. A este, sua beleza era indiferente e até

desagradável.

Ela pede para visitá-lo e vai amiudando as visitas.

Consegue levar Swann aos eventos do grupo dos Verdurin,

onde uma frase musical o envolve com esperanças de

renovação.

“Decorrera tanto tempo que desistira de aplicar sua vida a

um objetivo ideal e limitava-se a perseguir satisfações do

dia-a-dia, que julgava, sem nunca o afirmar formalmente,

que aquilo não se modificaria até sua morte, ainda mais,

já não sentindo ideias elevadas no espírito, deixara de crer

na realidade delas, sem, todavia, poder negá-las de todo.

Assim, adquirira o hábito de se refugiar em pensamentos

desimportantes que lhe permitissem deixar de lado o

fundo das coisas.

Assim como não cuidava de indagar de si mesmo se não

seria melhor frequentar a sociedade, mas, em

compensação, sabia com certeza, que, se aceitasse um

convite, devia comparecer e que, se não fizesse visitas,

deveria deixar um cartão, assim também, na conversação,

esforçava-se para nunca exprimir sinceramente uma

opinião íntima sobre as coisas, e sim de fornecer detalhes

materiais que de certa forma valessem por si mesmos,

evitando que os avaliassem em toda a medida. Era

extremamente preciso quanto a uma receita culinária,

quanto a data de nascimento e morte de um pintor, quanto

a nomenclatura de suas obras. Às vezes, apesar de tudo,

permitia-se emitir uma opinião sobre uma obra, sobre

uma forma de compreender a vida, mas então dava às suas

palavras um tom irônico, como se não aceitasse

inteiramente o que dizia.”

O relacionamento entre Swann e Odette se estabelece,

ainda que parecesse improvável no princípio.

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O envolvimento dele com os acontecimentos ligados às

idas e vindas de Odette no círculo social, onde se

movimentam em jantares, saraus e eventos artísticos,

segue um curso de reviravoltas mentais e emocionais,

surpreendente num personagem tão cheio de

distanciamentos.

Do enlace nasceu Gilberte, primeiro amor de Marcel, o

narrador, nomeado bem mais para o final dos seis

volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”.

“De todas as formas de produção do amor, de todos os

agentes de disseminação do mal sagrado, um dos mais

efetivos é esse turbilhão agitado que por vezes passa por

nós. Então, o ser com quem nos divertimos nesse instante

– a sorte está lançada – há de ficar sendo a pessoa amada.

Nem há necessidade que até aquele momento nos tenha

agradado mais que as outras. Precisava é que o nosso

gosto por ela se tornasse exclusivo. E semelhante condição

se realiza quando – no momento em que ela nos fez falta –

a busca de prazeres que sua convivência nos trazia é de

repente substituída em nós por uma necessidade

angustiosa, que tem por objeto essa mesma pessoa, uma

necessidade absurda, que as leis deste mundo tornam de

satisfação impossível e de difícil cura: a precisão insensata

e dolorosa de possuí-lo.”

Senti que a narrativa nos conduz para dentro deste

turbilhão, mas a condução é magistralmente serena.

TERCEIRA PARTE

Nomes de Lugares: o Nome

O quarto do Grande Hotel da Praia, em Balbec, com

paredes esmaltadas e luzes de apelos marítimos é o oposto

das imagens relembradas em noites de insônia, dos

“quartos de Combray, polvilhados de uma atmosfera

granulada, polinizada, comestível e devota”.

Uma Balbec, longe também daquela sonhada em dias de

chuva nos Champs-Elysées, em Paris.

“Ora, eu guardava o nome de Balbec, citado por

Legrandin, como o de uma praia bem próxima daquelas

costas fúnebres, famosas por tantos naufrágios, envoltas

durante seis meses por ano no lençol de brumas e na

espuma das vagas”.

Ao falar ao Sr. Swann sobre a praia de Balbec ser um

possível ponto privilegiado para ver as mais fortes

tempestades, este afirmara conhecer bem o lugar e que a

sua igreja dos séculos XII e XIII, “ainda meio romana, é

talvez a melhor amostra do gótico normando e tão

singular, que se diria arte persa.”

Esses lugares, de natureza imemorial, como os fenômenos

geológicos, para o narrador, até então, adquirem um

grande fascínio, por atravessarem os séculos e suas

épocas.

“Então, nas noites suaves e tempestuosas de fevereiro, o

vento – soprando no meu coração, que não fazia tremer

menos que a lareira do meu quarto ou o projeto de uma

viagem a Balbec – misturava em mim o desejo de conhecer

a arquitetura gótica com o de ver uma tempestade no

mar.”

Os projetos familiares das viagens despertam os desejos e

a imaginação do nosso protagonista.

Os nomes dos lugares possíveis são evocados juntamente

com imagens da mudança das estações do ano, mas

deixam de se submeter a elas, quando bastava pronunciar

os nomes Balbec, Veneza, Florença, para fazê-los

renascerem em seus sonhos, assim como a ciência se

apossa dos fenômenos naturais, produzindo-os à vontade,

subtraindo-os à tutela do acaso.

“As palavras nos apresentam das coisas uma pequena

imagem clara e usual, como as que são suspensas nas

paredes das escolas para dar às crianças um exemplo do

que é um banco, uma ave, um formigueiro, coisas

concebidas como semelhantes a todas da mesma espécie.

Porém os nomes apresentam das pessoas – e das cidades

às quais eles nos habituam a julgar individuais e únicas,

como as pessoas - uma imagem confusa que tira delas, de

sua sonoridade sombria ou deslumbrante, a cor com que

se pinta uniformemente como um desses cartazes,

totalmente azuis ou totalmente rubros, em que, devido aos

limites da técnica empregada ou por um capricho do

decorador, são azuis ou vermelhos não só o céu e o mar,

mas os barcos, a igreja e os transeuntes. O nome de Parma,

uma das cidades aonde eu mais desejava ir, desde que lera

a Cartuxa, surgia-me compacto, liso, suave e cor de malva;

e se me falassem de uma casa qualquer de Parma onde eu

seria recebido, dava-me prazer pensar que eu iria morar

numa casa lisa, compacta, suave e malva, que não tinha

qualquer relação com as casas de nenhuma outra cidade

da Itália, visto que só conseguia imaginá-la com o auxílio

dessa sílaba pesada do nome Parma, onde não circula ar

nenhum, e de tudo o que eu fizera com que absorvesse da

doçura sthendaliana e dos reflexos das violetas. E, quando

eu pensava em Florença, era como numa cidade

miraculosamente embalsamada e parecida com uma

corola, pois que ela se chamava cidade dos lírios e sua

catedral, Santa Maria das Flores. Quanto a Balbec, era um

desses nomes onde, como sobre uma velha cerâmica

normanda que conserva a cor da terra de onde foi

extraída, vê-se pintada ainda a representação de algum

costume abolida, de algum direito feudal, da antiga

situação de um lugar, de um forma desusada de

pronunciar que tinham formado as sílabas heteróclitas e

que não duvidava ir reencontrar até no estalajadeiro que

me servia café com leite à minha chegada, e me levaria

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para ver o mar enfurecido diante da igreja e ao qual eu

atribuiria o aspecto contestador, solene e medieval de um

personagem de fabliau.”

A narrativa prossegue na descrição das imagens

correspondentes aos nomes desses lugares, que atraiam o

desejo de conhecimento do jovem Marcel. Há também

aqui a percepção de que são falsas essas imagens. Para o

leitor, no entanto, a descrição delas soa como poemas.

Os preparativos de uma viagem a Veneza são cancelados,

devido a uma enfermidade, que atinge nosso protagonista

e o seu êxtase de alegria com aqueles preparativos. A ele

só resta o insuportável consolo dos passeios diários nos

Champs-Elysées. Este é, porém, o lugar que lhe reserva o

grande acontecimento: reencontrar Gilberte, aquela do

caminho de Swann, em Combray.

Esses passeios aconteciam sob a vigilância de Françoise,

para que ele não se cansasse. Ela entrara para o serviço

da família, depois da morte da tia Léonie, aquela das

madeleines.

Gilberte frequentava esse jardim público, onde jogava

peteca com as amigas em local onde ele passou

acidentalmente e ouviu o nome dela dito por uma das

amigas, ao se despedir.

As palavras, dirigidas a Gilberte, provocam a imaginação

do jovem sobre o convívio daquelas amigas, suas reuniões

e jantares.

Sente-se apartado daquele convívio ao ponto de se irritar

com Françoise, que não usava uma pluma azul no chapéu,

como a governanta da mocinha.

Alguns dias depois, faltou uma jogadora e, como ele

perambulava sempre por ali, Gilberte convida-o para

fazer dupla com ela. Havia, porém, os dias em que ela não

ia. Para ele, a maior desgraça possível. Vigiava os sinais de

chuva para adivinhar se ela iria ou não.

Os pensamentos e reflexões do autor, suas expectativas,

sua vida dependem agora dos encontros com Gilberte,

fora dos quais, o mistério da sua existência parecia

inatingível.

O Sr. Swann, pai dela, vem buscá-la certa vez e aparece ao

jovem como um “novo Personagem”, da esfera dos

magníficos.

Os encontros no jardim público terminam no dia em que

Gilberte permanece lá muito pouco tempo e responde aos

apelos do rapaz com visível alegria por ter outros planos

para os próximos dias e para as férias, que se aproximam.

A narrativa agora concentra-se no desejo dele de receber

uma carta dela, suas esperanças de ser amado, reflexões

sobre o amor e suas tentativas de obter mais informações

sobre o círculo social dela, junto aos próprios familiares.

Ele dirigia os passeios com Françoise para os locais

próximos da residência dos Swann, ou caminhos por onde

poderia passar o Sr. Swann e, no mais das vezes, para a

alameda onde a Sra. Swann passeava.

A descrição desses passeios está permeada de

deslumbramento.

Essa parte do primeiro livro termina num tempo presente,

em que as lembranças são mais desejáveis, pois ao passar

por esses jardins, deseja rever a carruagem e os trajes da

Sra. Swann e não estar diante de automóveis e vestimentas

sem qualquer beleza, que os “olhos pudessem compor.”

“Mas, quando desaparece uma crença, sobrevive-lhe – e

cada vez mais vivo para mascarar a falta de força que

perdemos de conferir realidade às coisas novas – um

apego fetichista às coisas antigas que ela animara, como se

fosse nelas e não em nós que residisse o divino e como se

a nossa incredulidade atual tivesse uma causa

contingente, a morte dos deuses.”

Em Busca do Tempo Perdido não morreu, eu li, estou viva

ainda, me dei o trabalho de resumir o primeiro livro e eu

acredito, assim como a torcida atleticana, que não

perdemos tempo. O Marcel Proust pode ser melancólico e

cheio de frescura, mas é um homem honesto, amoroso e

frágil diante da imensa tarefa posta em suas mãos de

“arriar as trouxas e contar o caso”. Contou o caso da nossa

liberdade de conquistar nossa própria memória, que, no

caso dele era repleta de leituras, conversas sobre as artes,

vida amorosa e sexual das gentes e solidão.

Grande Marcel Proust, o cachorrinho só podia ser francês

mesmo.

Proust por David Levine

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José Antonio Pereira

Caminhando

na noite

A cidade estava quente, o verão oficialmente

mal começara, avizinhava-se o natal, os dias ardiam

como se estivéssemos à boca de um forno de olaria. Era

o ano do centenário de Rosário Fusco, quanto a isto a

frieza dos munícipes foi total. Numa daquelas noites

abafadíssimas, eu andava pelas ruas numa inútil

tentativa de fugir ao calor, sombras só na noite, o

prefeito numa poda radical arrancara o verde de todas

as árvores. Tentava ocupar meus poucos neurônios,

dizem alguns, que não passa de meia dúzia, refletindo

sobre um “diálogo” sobre a língua com um professor.

Uma áspera discussão no meio da rua me traz de volta

ao calor. Uma, destes George Sand repaginados, num

mau humor danado, aos sopapos com sua namorada.

Não consigo entender uma mulher trocando um homem

ignorante por uma lésbica estúpida, é rodriguianamente

gostar de apanhar. Continuo o meu caminhar. Sexo e

ódio não se combinam, se opõem completamente. Volto

a pensar na língua. Amor e humor não é só uma rima,

é um no outro e suas significâncias.

Penso em beijos, paqueras... Palavras que se

relacionam, por sinal intensamente, com amor e humor.

O professor me ensinou que ósculo e beijo são

sinônimos e tem origens curiosas: ósculo no latim,

osculum, é diminutivo de os e oris que significa boca e

orifício, esquisito né. Já beijo, no latim basium, talvez

do celta biakkion, significa boca, lábio, beiço. Basium

caiu no gosto popular acabou virando o verbo basiare, o

nosso gostoso tranzativo, digo, transitivo beijar, mais

tarde derivou o beijocar, a deliciosa beijoca.

O ósculo, bem o ósculo, não é má vontade não, mas este

virou sinônimo de contrato de casamento, onde o

oscular a noiva ou o noivo, para sermos politicamente

corretos, sela o contrato matrimonial, lembra do

orifício? Pois é todos entram pelo orifício do cano

quando se assenta algum termo contratual.

A paquera onde tudo se inicia, é demonstrar interesse

por alguém, também me ensinou o professor. Vem do

tupi paka, não me disse o que significa, o verbo paquerar

é uma variante de paqueirar – ação do cão que caça

pacas, simbolicamente é a conquista amorosa. Aqui

fiquei meio preocupado com aquelas musicas funks em

que “delicadamente” chamam seus objetos de desejos de

cachorras. Segundo o professor: “Há quem comemore

uma bem sucedida paquera num romântico jantar à luz

de velas.... Depois, claro, o festejo passa da mesa pa...”

Chego no portão de minha casa e me despeço dos

pensamentos.

Um biakkion para vocês

Page 37: Chicos 41 - Dezembro 2014

Ronaldo Cagiano

A implosão do

romance

Poeta, ficcionista e professor, Antonio

Geraldo Figueiredo Ferreira é uma das gratas revelações

da literatura contemporânea brasileira, num cenário

nem sempre profícuo a dar vez e voz a bons escritores

publicados por pequenas editoras ou vivendo longe do

eixo hegemônico e monopolista da grande imprensa.

O autor foi revelado nacionalmente a partir de uma

crítica, em boa hora, entalhada por ninguém menos que

o abalizado crítico e ensaísta Luiz Costa Lima, que

lançou luzes sob a potência de seu trabalho, tendo o

romance despertado a atenção dos intelectuais, saudado

ainda por manifestações favoráveis de Raimundo

Carrero, Ariano Suassuna e Alfredo Monte.

Figueiredo foi finalista dos prêmios Portugal Telecom e

São Paulo de Literatura do ano passado com uma obra

monumental, As visitas que hoje estamos, empreitada

de fôlego e meticulosa construção, emergindo da

pequena Arceburgo, no sul de Minas, onde vive a mais

de 20 anos esse paulista de 48 anos, nascido em Mococa.

Formado em Letras pela USP, proprietário de dois

armarinhos e professor de literatura e língua

portuguesa em escolas e cursinhos. É detentor da maior

e mais sofisticada biblioteca da cidade, um paraíso em

meio ao deserto cultural que paira sobre a maioria das

comunas do interior.

A obra é uma reafirmação do romance justamente a

partir de sua negação como estrutura formal como o

conhecemos tradicionalmente, pois o autor construiu

uma verdadeira babel ficcional, em que vozes distintas e

multifacetárias se encadeiam para erguer uma história

caudalosa e fragmentária da vida de um pequeno espaço

geográfico, o do interior. A cartografia psicológica de

cada personagem impulsiona tanto a linguagem como a

temática tão caleidoscópica como desafiadora e

instigante para o leitor.

O artigo de Costa Lima atestou a indiscutível qualidade

e originalidade da obra, aa reboque da impactante

chacoalhada que o autor deu no gênero foi fundamental

para que o livro alcançasse a merecida ressonância, pelo

indiscutível padrão da linguagem, pela inequívoca carga

semântica das narrativas, pelo olhar crítico e metafórico

sobre as vidas miúdas do interior.

As visitas que hoje estamos foge ao romance tradicional,

burguês e contemporâneo, sem, contudo, negá-lo. É pelo

recorte de várias situações que o todo se impõe, sem

perder o liame, ainda que não seja uma prosa

costumeira e linear. A partir de uma opção formal, ela

assimila dicções da crônica social e incorpora elementos

de outras linguagens, tais como a poesia, o teatro, a

crítica literária e o ensaio, delineando um estilo de

linguagem denso.

Ao imergir no aluvião da memória individual e coletiva,

Ferreira auscultou o pulmão e radiografou as vísceras

de uma cidade e seus protagonistas, para erguer, numa

obra polifônica, que consumiu cerce de 10 anos de

carpintaria e coleta histórica e sensorial. Ele fez uma

aguda análise dessas vidas anônimas obra permanece e

imutáveis, para demonstrar, com requintes

metalinguísticos e outras sutilezas narrativas, que “A

vida deve ser, e é, maior que qualquer arte. Entretanto,

esse é justamente o motivo pelo qual a grande obra

permanece.”

Sem dúvida, As visitas que hoje estamos fará parte do

verdadeiro cânone nacional, sobreviverá aos modismos,

às idiossincrasias de uma crítica acadêmica nem sempre

transparente. Essa ficção tocou com paixão no que é

essencial e profundamente humano em nossa

precariedade existencial.

Page 38: Chicos 41 - Dezembro 2014

Nikolai Gógol

Nikolai Gógol – Nikolai Vasilievich Gogol nasceu em Poltava,

Ucrânia em 20.03.1809 e morreu em Moscou em 21.02.1852,

escritor russo de origem ucraniana. Contista, romancista e

teatrólogo, é considerado um dos fundadores da moderna

literatura russa.

Apesar de muitos de seus trabalhos terem sido influenciados

pela tradição ucraniana, Gogol escreveu em russo e sua obra é

considerada herança da literatura russa. Apesar da crítica

fulminante, a obra é hoje apontada como absolutamente russa.

É considerado um dos fundadores da moderna literatura

russa. Entre seus admiradores estão o poeta Aleksandr

Púshkin e o escritor Sergey Asakov. Renovador e

vanguardista, Gógol trouxe para a literatura russa o realismo

fantástico e escreveu algumas obras-primas do conto

universal, como O diário de um louco, O nariz, O capote e O

retrato. Consagrado ainda em vida, morreu num estado de

semiloucura em Moscou.

Notas de Petersburgo

de 1836

De fato, sabe onde foi parar a capital da Rússia? No fim do

mundo! Estranho povo o russo: a capital ficava em Kíev –

aqui é quente demais, muito abafado; a capital russa mudou

para Moscou – não, aqui faz pouco frio: Deus, nos conceda

uma Petersburgo! A capital russa vai nos pregar uma peça

se for instalada juntinho ao polo glacial. Digo isso porque

ela saliva só de ver de pertinho ursos brancos. “Fugir da

mãezinha setecentas verstas! (1) Que perninhas mais

ligeiras!” – diz o povo de Moscou, estreitando os olhos

voltados para as bandas onde vivem finlandeses e

estonianos. Em compensação, que brincadeira alegre entre

a mãezinha e seu filhote! O que há por trás da aparência,

por trás da natureza! O ar se infiltra através da nuvem; na

terra branca, verde e cinzenta, tocos queimados, pinheiros,

bosques de abetos, colinas... É bonito também que a estrada

voe como uma flecha e que as cantantes e tilintantes troicas

russas passem impetuosas. E que diferença, que diferença

entre as duas! Moscou até agora é a barba russa, e

Petersburgo já é um alemão perfeito. Como a velha Moscou

se distendeu, se alargou! Como ficou descabelada! Como se

deslocou, como se espalhou, como se empertigou a chique

Petersburgo! Diante dela, de todos os lados, há espelhos:

ali, o rio Nevá; adiante, o golfo da Finlândia. Ela tem onde

se mirar. Assim que nota uma penazinha ou um fiapo na

roupa, no mesmo instante lhe dá um piparote. Moscou é

uma velha caseira, assa bliní (2), contempla a distância e

escuta uma história, não se levanta da poltrona, não quer

saber o que se passa no mundo; Petersburgo é um

rapazinho cheio de expediente, nunca fica em casa, sempre

se veste com capricho e, todo enfeitado diante da Europa,

faz uma reverência para as pessoas de além-mar.

Page 39: Chicos 41 - Dezembro 2014

Petersburgo é toda agitação, dos pés à cabeça; à meia-noite

começa a assar pães franceses, que no dia seguinte o povo

alemão vai comer, e a noite inteira ora vigia com um olho,

ora com o outro; Moscou dorme a noite toda e no dia

seguinte, depois de fazer o sinal da cruz e curvar-se em

reverência para os quatro lados, sai com pãezinhos brancos

rumo ao mercado. Moscou é do gênero feminino,

Petersburgo é do masculino. (3) Em Moscou, só há noivas,

em Petersburgo, só há noivos. Petersburgo zela por seus

trajes com grande decoro, não ama (...) desvios dos rumos

da moda; em compensação, Moscou é exigente, e quando

uma coisa vira moda, que então seja moda até as últimas

consequências: se a moda é cintura fina, que nela seja ainda

mais fina; se as lapelas do fraque devem ser grandes, que

nela então sejam do tamanho dos portões de um galpão.

Petersburgo é um sujeito caprichoso, absolutamente

alemão, tudo observa e calcula e, antes de dar uma festa em

casa, confere o que tem no bolso; Moscou é um nobre russo

e, se já está alegre, então se alegra de uma vez até cair, não

se importa com quanto tem no bolso, e isso não o detém;

Moscou não ama o meio-termo. Em Moscou, todas as

revistas, por mais cultas que sejam, no final trazem sempre

desenhos de moda; as de Petersburgo raramente incluem

desenhos; quando incluem, os leitores, por falta de

costume, podem se assustar. As revistas de Moscou falam

de Kant, Schelling etc. etc.; nas revistas de Petersburgo, só

se fala de questões públicas e lealdades políticas... Em

Moscou, as revistas acompanham seu tempo, mas se

atrasam na periodicidade; em Petersburgo, as revistas não

acompanham seu tempo, mas são publicadas na data

precisa, com regularidade. Em Moscou, os literatos

esbanjam dinheiro; em Petersburgo, economizam. Moscou

sempre sai de carruagem envolta num casaco de pele de

urso e, na maioria das vezes, para almoçar; Petersburgo sai

num casaco de flanela (...), corre o mais depressa que pode

para a bolsa de valores ou “para o serviço”. Moscou passeia

até as quatro horas da madrugada e no dia seguinte não

levanta da cama antes das duas da tarde; Petersburgo

também passeia até as quatro horas, mas no dia seguinte,

como se não tivesse acontecido nada, às nove horas vai

depressa, em seu casaco de flanela, para a repartição

pública. Em Moscou, Rus (4) chega com dinheiro no bolso e

volta mais leve; em Petersburgo, as pessoas andam sem

dinheiro, mas se espalham por todos os cantos do mundo

com capital de sobra. Em Moscou, Rus chega em kibítikas

(5), passando pelos buracos da estrada de inverno, para

fazer negócios e comprar no atacado; em Petersburgo, o

povo russo anda a pé em dias de verão para construir e

trabalhar. Moscou é uma despensa, amontoa pacotes e

engradados, não quer nem saber de pequenos vendedores;

Petersburgo dissipa tudo em pequenas parcelas, se reparte,

se decompõe em mercearias e lojas e anda sempre atrás de

compradores gentis. Moscou diz: “Se for preciso um

comprador, a gente acha”; Petersburgo pendura uma

tabuleta bem embaixo do nariz (...) e monta uma feira de

carruagens bem na porta da sua casa. Moscou nem olha

para seus habitantes, mas manda mercadorias para toda a

Rússia; Petersburgo vende gravatas e luvas aos seus

funcionários. Moscou é um grande bazar; Petersburgo é

uma loja iluminada. Moscou é necessária para a Rússia;

para Petersburgo, a Rússia é necessária. Em Moscou,

raramente se encontra um botão com um brasão num

fraque; em Petersburgo, não existe fraque sem botões com

um brasão. Petersburgo adora zombar de Moscou, de sua

vulgaridade, grosseria e falta de bom gosto; Moscou alfineta

Petersburgo porque é um sujeito venal e não sabe falar

russo. Em Petersburgo, na avenida Niévski, as pessoas

passeiam às duas horas como se tivessem saído dos

desenhos das revistas de moda expostas nas vitrines, até as

velhas têm cinturas tão fininhas que dá vontade de rir; em

Moscou, nos passeios públicos, bem no meio da multidão na

moda, sempre aparece uma mãezinha com um lenço na

cabeça e absolutamente sem cintura nenhuma. Ainda se

poderia dizer mais alguma coisa, mas... a distância é de

imensas proporções!

II

É difícil captar a expressão geral de Petersburgo. Há algo de

semelhante a uma colônia europeia e americana: há

também uma pequena raiz de nacionalidade e muita

mistura estrangeira que não se fundiu à massa compacta.

Nela, as nações diversas são tantas quantas são as diversas

camadas da sociedade. Tais camadas sociais são

perfeitamente separadas: aristocratas, funcionários do

serviço público, artesãos, ingleses, alemães, comerciantes

– todos constituem esferas perfeitamente separadas (...),

preferem viver e se divertir invisíveis uns para os outros.

E cada uma dessas classes, quando observamos mais de

perto, é constituída de muitas outras esferas menores, que

também não se misturam entre si. Por exemplo, tomemos

os funcionários: os jovens assistentes de chefes de gabinete

constituem uma esfera própria, na qual não admitem de

maneira nenhuma um chefe de repartição. O chefe de

gabinete, por seu turno, levanta seu topete um pouco mais

alto em presença de um funcionário de escritório. (...) Os

professores constituem uma esfera própria, os atores têm

sua própria esfera; mesmo o literato, até agora uma pessoa

ambígua e duvidosa, se mantém totalmente separado. Em

suma, é como se chegasse a uma taberna uma enorme

diligência, na qual cada passageiro, durante todo o trajeto,

tivesse se mantido fechado em si mesmo, e todos eles só

entrassem na sala comum porque não havia mesmo outro

Page 40: Chicos 41 - Dezembro 2014

lugar para ficar. A tentativa de instituir uma sociedade

pública, até agora, não alcançou êxito. O habitante de

Petersburgo só vai ao clube para almoçar, e não para passar

o tempo. Se Petersburgo até hoje não se transformou num

hotel, é por causa de um elemento intrínseco do homem

russo, até hoje visto como uma originalidade mesmo com a

eterna mistura a coisas estrangeiras. Para falar de cada

uma dessas esferas e perceber a vida que transcorre entre

elas, com suas alegrias, prazeres, esperanças, dores, é

preciso ser um dos que não escrevem absolutamente nada,

porque tais senhores, como recompensa por suas

atividades, definitivamente não têm tempo. Portanto, não

dão atenção a bailes e festas; mas comparecem aos

entretenimentos que são encarados com apreço por todas

as classes (...). O teatro, o concerto, eis os locais onde se

espremem as classes sociais de Petersburgo, e aí têm todo o

tempo do mundo para se observarem umas às outras. O

balé e a ópera são o tsar e a tsarina do teatro de

Petersburgo. Eles apareciam de maneira mais radiante (...)

nos anos de outrora, e os espectadores arrebatados

esqueceram que existe a grande tragédia que inspira,

queiram ou não, sentimentos elevados no coração solidário

da multidão que escuta em silêncio, e que existe a comédia,

o justo testemunho da sociedade, comovente para nós, a

comédia ponderada com rigor, que com a profundidade de

sua ironia produz o riso, mas não o riso engendrado por

impressões ligeiras (...), mas sim o riso elétrico, vivificante,

que se solta sem querer, livremente e de modo inesperado,

direto da alma, atingido pelo cegante brilho da inteligência,

que nasce do prazer sereno e só é produzido pela

inteligência elevada. Têm razão os espectadores

empolgados pelo balé e pela ópera... No cenário dramático,

surgiram o melodrama e o vaudeville, companhias

itinerantes que eram as rainhas do teatro francês, e no

teatro russo representavam papéis bastante estranhos. Já

faz tempo que se sabe que os atores russos são um pouco

estranhos quando representam marqueses, viscondes e

barões, como provavelmente seriam ridículos franceses

que inventassem de se fazer passar por mujiques russos; e

no caso dos bailes, das festas e das recepções da moda que

aparecem nas peças russas, como são? E no vaudeville? Já

faz tempo que os vaudevilles se infiltraram na cena teatral

russa, distraem o povo medíocre (...). Quem haveria de

pensar que o vaudeville seria não só traduzido para o teatro

russo como até mesmo original? O vaudeville russo! De

fato, é um pouquinho estranho, estranho porque essa

brincadeira leve e sem cor só poderia nascer entre os

franceses, numa nação que não possui em seu caráter uma

fisionomia profunda, imóvel; porém, quando obrigam o

russo, ainda um pouco duro, pesado, a dar voltinhas como

um petit-maître… parece-me que nosso obeso e risonho

comerciante de barba comprida, cujos pés não conhecem

outra coisa senão botas pesadas, calçou em seu lugar, num

dos pés, uma estreita sapatilha de pano e meia à jour, e

deixou o outro pé de bota mesmo e dessa forma se postou

no primeiro par da dança da quadrilha francesa.

Já faz cinco anos que os melodramas e os vaudevilles

tomaram conta dos teatros do mundo inteiro. Que

macaquice! Até os alemães… mas quem haveria de imaginar

que os alemães, esse povo consistente, adepto do prazer

estético profundo, que os alemães agora representam e

cantam vaudevilles (...). E ainda temos de aceitar que essa

praga seja classificada como um sinal da força do gênio!

Quando o mundo inteiro se deixava levar pela lira de Byron,

não era ridículo; naquele anseio, havia até algo consolador.

Mas Dumas, Du Cange e outros se tornaram os legisladores

do mundo inteiro! Palavra de honra, o século XIX irá se

envergonhar desses cinco anos. Ah, Molière, o grande

Molière! Tu que tão amplamente e com tamanha plenitude

desenvolveste teus personagens, que tão profundamente

seguiste todos os seus matizes; tu, austero e circunspecto

Lessing, e tu, nobre e fervoroso Schiller, que representaste

a dignidade do homem sob uma luz tão poética! Dá uma

olhada no que fazem em nossos palcos depois de ti; vê que

monstrengo estranho, disfarçado de melodrama, se

infiltrou entre nós! Onde está nossa vida? Onde estamos

nós, com todas as paixões e estranhezas contemporâneas?

Quem dera víssemos algum reflexo disso em nosso

melodrama! Mas o nosso melodrama mente da maneira

mais inconsequente (...).

NOTAS DO TRADUTOR

1. Versta: medida russa equivalente a 1,067 quilômetro.

2. Blin: pequena panqueca russa.

3. Em russo, o nome das duas cidades

tem gêneros gramaticais diferentes.

4. Rus: Nome histórico da antiga Rússia.

5. Kibítikas: Carroça coberta

Um dos contos mais representativos de Nikolai Gógol, Avenida Niévski faz

parte da série de histórias petersburguesas escritas pelo autor russo entre 1832 e

1842, ambientadas na capital do império. Aqui, Gógol aponta para a

modernidade e faz do espaço urbano o centro da narrativa. “Ah, não acredite

nessa avenida Niévski! [...] Tudo é ilusão, tudo é sonho, nada é o que parece!”, diz

o narrador a certa altura. O ambiente da cidade, enganosamente cotidiano,

emerge com ares fantásticos e absurdos e determina o destino do tenente Pirogóv

e do jovem pintor Piskarióv, verdadeiros flâneurs russos que se deixam levar pelos

encantos de duas passantes.

Traduzido por Rubens Figueiredo e lançado pela Cosac Naify em 2012, o livro é

ilustrado com gravuras de 1830-35 que reproduzem a avenida de ponta a ponta.

A disposição do texto nas páginas está dividida em dois blocos espelhados, numa

referência ao fluxo dos passantes por ambos os lados da via. Em dois volumes

embrulhados num jornal da época, a edição inclui ainda “Notas de Petersburgo de

1836”, crônica de Gógol inédita no Brasil, em que o autor discute o cenário cultural

da cidade.

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Adelto Gonçalves

Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e Literaturas

Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura

Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de

Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova

Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova

Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e

Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

Na moenda da cidade grande

Como bem sabe o sempre atento leitor, o “bildungsroman”, ou romance de formação, recupera a trajetória de um herói ou anti-herói, resgatando as experiências fundamentais que acabaram por moldar a sua personalidade até a maturidade. Ou seja: traumas da infância e da juventude, desajustes familiares, frustrações amorosas, sonhos que não se concretizaram, anseios ou idealizações políticas que nunca foram cumpridas ou traídas por aqueles dotados de ideias mais práticas e menos compromissos morais, dificuldades para enfrentar a realidade – tudo isso, de certo modo, passa quem, um dia, decide que não pode mais viver à barra da saia da mãe e do bolso do pai. E vai à luta. O termo em alemão justifica-se porque, na verdade, o gênero nasce com “Os Anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, romance de Goethe (1749-1832), considerado o marco inicial do bildungsroman. Trata-se de um gênero que floresceu na Europa no século 19 e que teve outros expoentes como Balzac (1799-1850), Flaubert (1821-1880), Dostoiévski (1821-1881) Marcel Proust (1871-1922), só para citar alguns. No Brasil, não foram poucos os romances de formação. Pode-se citar “O Ateneu” (1888), de Raul Pompéia (1863-1895), e “Meus Verdes Anos” (1956), de José Lins do Rego (1901-1957), entre outros. Sem esquecer de Machado de Assis (1839-1908), que escreveu pelo menos três “contos de formação”: “Conto de escola”, de “Várias Histórias” (1896), “O caso da vara”, de “Páginas Recolhidas” (1899), e “Teoria do medalhão”, de “Papéis Avulsos” (1882), cujos protagonistas são retratados em seu processo de crescimento e de formação. Já “novela de formação” e ainda escrita a quatro mãos é um acontecimento raro não só na literatura de expressão portuguesa como na mundial. É o caso de “Moenda de Silêncios: Encontros & Desencantos na Metrópole” (São Paulo, Dobra Editorial, 2012), de Ronaldo Cagiano e Whisner Fraga, que relata os desafios que dois personagens oriundos do interior de Minas Gerais

enfrentam na cidade de São Paulo em seus verdes anos. É a história de Fabiano e Murillo que, procedente um de Cataguases e outro de Ituiutaba, por coincidência (ou não) as terras de origem dos dois autores, vão tentar a vida na grande e dura metrópole, conhecem-se num pensionato e tornam-se amigos. E conservam a amizade, mesmo quando já seguiram outro rumo e cada um já descobriu a mulher de sua vida e começa

a constituir a sua própria família. A recuperação do tempo perdido, à la Proust, também permite uma observação do estado catatônico da literatura hoje no Brasil, refém do interesse ganancioso de editores pouco comprometidos com a boa qualidade, já que não se fazem editores como José Olympio (1902-1990) e Ênio Silveira (1925-1996). “(…) O que temos aí é um ‘açougue fashion’ com sua burrice memorável e sua falta de vergonha, porque o que conta é o retorno financeiro, a gulodice dos editores corrompendo tudo, a dolorosa falta de espanto (ou indulgência) da mídia e da crítica para esse fenômeno”, diz Fabiano, candidato a escritor, citando o poeta Marcelo Ariel (1968). E acrescenta: “O que conta é o lucro, disse Danília em certo momento. O povo lê autoajuda, esoterismo de butique, o lixo literário americano, em prejuízo de uma formação intelectual mais sólida. Escrevem o que todo mundo quer ouvir, sem que haja necessidade de deixar qualquer rastro de reflexão, questionamento ou inquietação”. Mais adiante, observa: “Agora está aí a febre de angelologia, runas, adivinhações, terapias disso e daquilo, padres fazendo milagres, uma disseminação de um certo tipo de literatura e de religiões de encomenda, que nascem da noite para o dia com o fito de enganar e explorar os incautos, gente procurando nelas o sedativo para seus achaques íntimos”. Enfim, eis um retrato do Brasil dos últimos trinta anos, preocupado apenas em acumular lixo cultural alienígena e importar o que não presta, como diria o poeta, professor e ensaísta Cassiano Nunes (1921- 2007), igualmente citado no livro. Para quem tivera a oportunidade numa cidade pequena e bem organizada — e no Brasil de hoje ainda existem essas cidades — de fazer viagens solitárias e escondidas à biblioteca do ginásio, onde “escalava montanhas em busca de um everest de conhecimento e descobertas”, com quem falar sobre “Manuel Bandeira, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac, Fagundes Varela, José Saramago, Borges, Cortázar e Dalton Trevisan naquela cidade, pequeno deserto de memórias esquecidas, cemitérios dos vivos?” Eis o drama de Murillo, que viera de Ituiutaba, e encontra em Fabiano com quem dividir a saudade da família e as angústias diante da nova fase na vida. Por aqui se vê, como bem assinalou o autor do posfácio, o escritor e jornalista Emanuel Medeiros Vieira, que este livro não é só “uma história de formação nas vísceras da metrópole”, mas também uma homenagem e uma celebração da literatura, pois os autores (e personagens), embora tenham “plena consciência do mundo massificado — áspero, deserto de utopias e de compaixão — no qual vivem, e absolutamente mercantilizado, da hegemonia, do ter, do aparecer e do triunfo do individualismo”, ainda encontram tempo para discutir suas inquietações existenciais. Para o poeta, ficcionista e crítico literário Rubens Shirassu Jr., autor do texto das “orelhas” do livro, esta novela significa também “a procura de uma dignidade”, pois “expõe os sonhos entrecortados pelas tentativas dos rapazes de vencer a batalha numa cidade toda feita contra eles”. E, acrescente-se, um exemplo a ser seguido por esses jovens que continuam a sair do interior do Brasil em busca de dias melhores em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília, ainda que não carreguem na lembrança nenhum personagem ou verso de um daqueles autores citados por Murillo, mas um Harry Potter qualquer...

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Luiz Ruffato

Flores Artificiais

e Minha primeira vez

Luiz Ruffato esteve em Cataguases em novembro próximo passado, brindou-nos com o lançamento de dois livros.

Flores Artificiais é um romance. Tudo começa quando ele, o escritor Ruffato, recebe em sua casa a correspondência de um desconhecido. Trata-se de um manuscrito, uma compilação de memórias que Dório Finetto, funcionário graduado do Banco Mundial, redigiu a partir de suas muitas viagens de trabalho. Ruffato conta a história: "Dório é um consultor do Banco Mundial que trabalhava há 25 anos fazendo consultoria para diversas coisas, na área de engenharia. Na passagem de 1999 para 2000, ele tem um apartamento ali na rua Paissandu, no Flamengo, e se vê sozinho, sem amigos. Já tem 60 e poucos anos. Entra numa depressão e vai procurar uma psiquiatra. Ele mora em Washington, fica meses sem voltar pra lá. Ela dá alta, mas eles continuam conversando. E as histórias que ele conta pra ela não são da vida dele, mas de gente que ele conheceu durante as viagens que fez. E sempre são pessoas que estão deslocadas. Por exemplo, uma menina portuguesa no Timor Leste que começou a ter problemas por ser muito bonita. Acaba conhecendo aqueles crocodilos de água salgada, uns bichos de sete metros, e ela se joga no mar

para eles a comerem. Quem está contando isso pra ele é um timorense. Tem uma outra um uruguaio que conta pra ele que o pai sumiu durante a ditadura, e ele sempre dizia que o pai tinha sumido por problemas políticos. E um dia descobre que ele tinha vindo morar em São Paulo, e que na verdade fugiu por causa de uma mulher e o largou quando ele era criança. Tudo isso pra contar o seguinte: esse consultor, o Dório Finetto, é de Rodeiro, que é a colônia da minha mãe, e ele nunca tinha lido os meus livros. Falam pra ele mandar as histórias pro Luiz Ruffato. Aí eu li as histórias, achei muito ruins, e as reescrevo. O livro dele chama Histórias da Vida Alheia, e está dentro de Flores Artificiais. Mas é tudo mentira. No final eu faço uma pequena biografia dele. Mas eu criei de brincadeira.

Minha primeira vez é uma coletânea de crônicas. São crônicas publicadas, todas as quartas feiras, no jornal espanhol El País em sua edição em português.

As fotos (do lançamento) aqui reproduzidas pertencem ao site: www.midiamineira.com

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Marcos Mergarejo

Netto

Marcos Mergarejo Netto – Nascido em Cataguases e radicado

em Belo Horizonte MG, é graduado em História e Geografia

pela UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais; Mestre

em Ciências Naturais (Geologia Ambiental) pela UFOP -

Universidade Federal de Ouro Preto e Doutor em Geografia

pela UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de

Mesquita Filho". Trabalhou na Fundação IBGE durante 23

anos, onde exerceu diversos cargos e funções tendo se

aposentado pela instituição.

A Geografia do Queijo

Minas... O Queijo Minas Artesanal é fabricado em Minas Gerais desde o século XVIII, cujo consumo é hábito que ultrapassa as fronteiras do território mineiro. Sua tradição, a partir de seu modo de fazer foi tombada como patrimônio imaterial brasileiro, tamanha é sua importância como valor cultural de um povo. A geografia do queijo minas artesanal (edição do autor) trata das origens geográficas e históricas do Queijo Minas Artesanal, ocado na experiência e herança cultural do produ-tor queijeiro artesanal.

A obra salienta as mudanças ocorridas e adquiridas ao longo dos anos, bem como as exigências que a sociedade atual tem, sem que se perca as tradicionais propriedades organolépticas que definem a iguaria. Portanto, o livro contribui para o conhecimento e estudos sobre o queijo, notadamente sobre o Queijo Minas Artesanal. O autor realiza um profundo levantamento sobre a origem do queijo no mundo, remontando à antiguidade, na busca das raízes desse importante alimento, constatando que a verdadeira origem do Queijo Minas Artesanal encontra-se vinculada ao arquipélago de Açores.

Marcos Mergarejo tenta desfazer uma polêmica nuvem que encobre a origem da técnica de produção da iguaria. E vai além. Traz no rastro do derivado do leite a história da formação da humanidade, que, sem dúvida, teria mais dificuldade em sobreviver e atravessar os tempos sem um alimento forte que pudesse carregar em suas andanças. “Dos diversos alimentos produzidos e consumidos pelo homem, um dos mais antigos e saborosos e que exercem mais fascínio ao paladar é o queijo”, escreve Marcos. Mas como e onde ele foi descoberto? Como andou mundo afora e chegou ao Brasil, certamente pelas mãos dos imigrantes açorianos? É isso que o livro nos leva a desvendar. O autor mergulha nos primórdios do Oriente, no tempo em que o homem, cansado das práticas predatórias para obter alimento, parou para pensar e conceber na mente que podia inseminar o cio da terra e domesticar animais para produzir comida e ter mais tempo para dedicar a outras tarefas, inclusive à arte. Ao domesticar bovinos, caprinos e ovinos, milhares de anos antes do nascimento de Cristo, o homem descobriu o leite. Como começava a viver em sociedade, surgiu o comércio, a troca dos grãos e das crias geradas pelos rebanhos. Para negociar, precisava viajar. As jornadas eram longas, penosas. Nos recipientes feitos com estômago de animais, levava água. Nas capangas, tâmaras secas. Um dia, teve a ideia de carregar leite naquela espécie de cantil. Quando parou para descansar e se alimentar, abriu o recipiente e nele não havia leite, mas coalhada. Substâncias no estômago dos animais agiram como coalho. Essa é a mais remota explicação para a origem do queijo. Uma forma segura de preservar o leite no tempo em que não havia técnicas mecânicas e químicas de conservação. A partir daí, o livro acompanha a evolução do homem, do Oriente ao Ocidente. Com o desenvolvimento de meios de locomoção mais rápidos e eficientes, entre os quais a navegação, o queijo passou a ser presença obrigatória na bagagem, não apenas para alimentação. Tornou-se cobiçado produto de negócios. No Brasil, veio na bagagem dos portu-gueses. Mas não da região central de Por-tugal, mas do Arqui-pélago de Açores, para onde holandeses leva-ram a técnica de processar o leite. São ricos os capítulos dedicados à ocupação de Minas Gerais, na época do Ciclo do Ouro. Como o homem precisava comer, atrás dele vieram grãos e animais leiteiros.

A região do Serro, a Serra da Canastra e outras áreas mineiras se tornaram referência em queijo artesanal. O lançamento em 13.12.2014, como não poderia deixar de ser, foi no Mercado Central em Belo Horizonte. Onde todos os queijos

de Minas se encontram.

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