chicos 29 fevereiro 2011

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Chicos N. 29 - Janeiro 2011

e-zine de literatura e idéias

de Cataguases – MG

Capa

Gabriel Franco - foto de Vicente Costa Editores Emerson Teixeira Cardoso

José Antonio Pereira

Colaboradores desta edição: Antônio Jaime Soares

Antônio Perin

Francisco Marcelo Cabral

Leonardo Campos

Marcelo Benini

Ronaldo Brito Roque

Ronaldo Cagiano

Wilson Pereira

Fale conosco em: [email protected]

Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Dedim de prosa

Terminamos bem o ano de 2010, com uma edição especial comemoramos os 80 anos de Chico Cabral. Já 2011, começamos bastante preocupados. O eleitor paulista, ao transformar um palhaço em deputado, não esperava que a coisa fosse tão longe, pelo menos é o que acreditamos. Não é que o deputado palhaço foi indicado para a Comissão de Educação e Cultura. Parte de nossos políticos, não satisfeitos em transformar o congresso em um obscuro bazar onde se compra e se vende de um tudo, pelo menos agora têm um especialista em picadeiro para virar de vez uma grande feira, isto se não virar uma zebeeme antes. Assusta-nos como se imbeciliza a passos tão largos as estruturas públicas do país. Parabéns eleitores do palhaço. Talvez, nós mereçamos o castigo. Quem reaparece nesta edição é o poeta Leonardo Campos autor de Alma

de Brinquedo. Apresentamos a vocês o poeta Marcelo Benini que estréia com o livro: o

capim sobre o coleiro ou tentativas para ausência de chão Antônio Perin lamenta a queda da casa da Rua Alferes. Convidamos a todos para uma visita ao Instituto Chica, onde encontra-se em exposição uma ótima retrospectiva dos 30 anos de carreira do artista plástico Luiz Lopez. Vale a pena ser vista.

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Sumário

RONALDO BRITO ROQUE Será que você também está elegendo seu Tiririca 03 JOSÉ ANTONIO PEREIRA A fuga 04 RONALDO CAGIANO A ressurreição de um grande escritor 06 WILSON PEREIRA Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato 07 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO O mundo, a alma e os descaminhos na obra de Leonardo Campos 10 ANTONIO JAIME SOARES O ocaso nas letras 11 FRANCISCO MARCELO CABRAL O gato 12 EDUARDO SANGUINETI Último passeio 13 ANTÔNIO PERIN A casa morta I 14 LEONARDO DE PAULA CAMPOS Inerências 15 MARCELO BENINI Desenvolvi a aptidão do olho..... 16 MIGUEL TORGA Alguns dados biográficos e alguma poesia 17

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Ronaldo Brito Roque

Será que você também está

elegendo seu Tiririca

Foi uma supresa quando um humorista de baixo nível, nem tão engraçado assim, ganhou as eleições para deputado federal de São Paulo. Mais surpreendente foi seu desempenho, pois ele chegou a se eleger com votos suficientes para levar outros candidatos do partido à Câmara. Mais tarde se verificou que o sujeito mal sabe ler e escrever, e cometeu erros grotescos de ortografia no exame que a justiça eleitoral o obrigou a fazer. Mas a decepção não parou por aí. Ele ainda admitiu ter fraudado um documento, pois assinou uma declaração de próprio punho dizendo que sabia ler e escrever, e depois confessou que sua mulher é que tinha escrito o texto da declaração. Ora, não sei se vocês sabem, mas não existe declaração de próprio punho escrita por um terceiro. O punho do terceiro não é próprio. Ou seja, não é o mesmo de quem assina. Obviamente muitos gostaram disso, e acreditam piamente que um legislador pode prescindir da habilidade de ler e escrever. Mas se você é como eu, e entende que ler e escrever são o primeiro passo para compreender e expor idéias. Se você, como eu, sabe que o cargo de legislador exige mais que a mera atividade de contar piadas e divertir um público de semiletrados, então talvez você tenha ficado indignado com esse acontecimento. Talvez você esteja pensando que os brasileiros começaram a perder a medida com que deve se julgar um legislador ou um administrador público. Se você teve essa impressão, então quero convidá-lo a uma pequena reflexão. Você já parou para pensar se também não está elegendo seu próprio Tiririca? A pergunta pode parecer absurda, mas pense bem: quando você vai comprar um livro, você escolhe um escritor que domine o idioma e a arte da fabulação, ou uma prostituta que narra suas peripécias sexuais? Quando você vai contratar um novo funcionário, você dá preferência àquele jovem inteligente e dinâmico, mas que fala o que pensa, ou àquela menina burrinha e lerda, que nunca ousa

discordar de você? Quando seus filhos demonstram interesse em compreender a realidade, e lhe fazem perguntas que você não sabe responder, você admite que não sabe, e os incentiva a procurar a resposta, ou simplesmente os manda fazer outra coisa? Quando você se reúne com os amigos, nos churrascos de fim de semana, você prefere aquelas canções bonitas, que falam de sentimentos humanos autênticos, ou aquelas que apenas repetem bordões fáceis, às vezes até insultosos? A eleição de Tiririca não é um fenômeno isolado. O brasileiro vem demonstrando repetidamente preferir o pior ao melhor. As pessoas que estudam e se dedicam à produção cultural são freqüentemente humilhadas e preteridas àqueles que promovem o divertimento banal, sexual ou zombeteiro. Em geral o quadro político deriva do comportamental. Se você se indignou com a eleição de um palhaço para deputado, um palhaço que não revelou aptidão nenhuma para a função que disputava, a melhor forma de lutar contra isso é agir no seu meio pessoal e social. Valorize as pessoas que demonstram capacidade para compreender e expor idéias, valorize o sujeito que é capaz de lhe explicar as situações que você vive. Valorize o jovem que busca se informar e compreender o mundo, não o humilhe por ele buscar algo que você mesmo não conquistou. Comece a valorizar a cultura e a inteligência que estão mais próximas de você, e logo você as verá ocupando lugares de destaque na política e na mídia. Mas se você não valoriza a cultura dentro do seu próprio círculo social, então dificilmente a verá ocupando algum lugar de destaque na sociedade. Os políticos e figuras públicas não surgem do nada. Assim como a chuva é resultado da queda de bilhões de gotas, eles são resultado das escolhas aparentemente insignificantes de milhões de indivíduos. Talvez você não possa interromper a enxurrada, mas pode deixar de descer com ela. Vamos dar esse primeiro passo, e as mudanças virão naturalmente.

Ronaldo Brito Roque nascido em

Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ

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José Antonio Pereira

A fuga

Caminhando pela Avenida Central sobre anêmicas luzes filtradas pelas árvores, enevoadas pela fria temperatura de julho. Seguia pela noite. Não percebia nada em torno de si. Seus olhos, outrora astutos e penetrantes, naquela cor de mel acastanhado, eram agora um triste olhar bovino. Senta-se em um dos bancos que existem pela calçada. Ali de costas para o córrego que escorre paralelo a linha férrea bem no meio da avenida separando-a em duas pistas. A respiração ofegante fazia as narinas inflarem e desinflarem como se fossem borrachas engolindo bolhas de ar. Pensava naquela vida inútil se arrastando, um fardo de fracassos e tristezas. Sentado ali no banco não conseguia entender absolutamente nada. Levanta, passa a mão pelo áspero queixo, dá conta que há dias não se barbeia. Atravessa a rua e volta a caminhar sobe rumo à velha praça, na esquina se mete pelo bar adentro. Cotovelos no balcão, senta-se bem no fundo, nem percebe o cheiro forte que vem dos banheiros à suas costas. Pede uma aguardente. Lá na frente aquele clima de falsa euforia de bancários, que ali estão desde o encerramento do expediente, o incomoda. Contam dinheiro o dia todo, mas permanecem tão sem dinheiro como qualquer outro proletário. Vangloriam-se de ter espoliado com os abusivos juros do patrão mais um nanico que se meteu a ser empresário, desfrutam um asqueroso prazer em espetá-lo no serasa e no spc, estes instrumentos de crucificação do mercado financeiro. Enojado pede outra dose.

Chamam-lhe a atenção as primeiras mulheres de aluguel que já iniciaram o batente. Tão carregadas de maquiagem, aquelas caras e bocas falseadas por cremes e cores, borboleteando pelo bar, enfiadas em saias curtíssimas, botas até os joelhos e os seios querendo saltar de blusas extremamente apertadas. Se fosse só a maquiagem diria que elas saíram de um oriental teatro kabuqui. Sente por elas um misto de solidariedade e irmandade na inutilidade de suas vidas. Todos nós somos usados e só o percebemos após o descarte. O vozerio dos caixas e atendentes bancários o incomoda, por eles, após ter a raiva amortizada pela cachaça, sente só pena e uma quase aversão. Já pelos gerentes de banco não tem jeito, é uma imensa repugnância. São sórdidos serviçais dos grandes agiotas, os banqueiros. As duas doses somadas as outras que tomara ao longo do dia, turvam um pouco os pensamentos, mas não embriagam os sentimentos. Sendo isto o que mais necessitasse. Duas sensações lhe ocorrem um empalidecido cinza já de quase repulsão aos bancários e uma fosca empatia avermelhada, quase brilho de desejo pelas mulheres. Elas começam a tornarem-se as belas e raras ruivas do cinema lá da sua adolescência. Era apaixonado por ruivas, nunca as vira pelas ruas da cidade, as loiras era uma paixão secundária, mas também muito intensa. Bardot, Candice Berger... Decepcionara-se ao descobrir que a loiríssima Marilyn Monroe pintava suas madeixas, mas Marilyn era Marilyn.

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José Antonio Pereira

Lembra-se que depois de muita bebida já a teve cantando Je t'aime naquele tom sussurrado num belo vestido negro inflado por ventos imaginários. Noutra ocasião, completamente embriagado, embarcava numa aventura ferroviária pela Europa num vagão a sós, ora com Candice ora com Brigite e La vie em rose na voz de Piaf ao fundo. Noites e mais noites de sexo solitário com tantas musas cinematográficas. Arrepia-se com as baionetas da ditadura, fálicos instrumentos de perseguição aos que por apenas pensar diferente eram massacrados. Barricadas em Paris sacudiam sua inércia, na voz de Janis Joplin viajava de Mercedes Benz por estradas de poeira multicolorida num quase delirium tremens. Liberdade, palavra imantadora de desejos, fugas alucinadas, viagens e mais viagens regadas a álcool turbinadas por Blow in the win e Summertimes. Encontrara na poesia onde em redemoinho liquidificar tudo isto. Nunca terminara um poema. Todos foram para o lixo inconclusos. Conhecera Lia. Via nela novos rumos até quem sabe um prumo. Lia foi-se com um bacharel. As taxas de juros recitadas pelos bancários, num tom de leiloeiro de quermesse, o traz a tona. Pede outra aguardente, a última, senão sente que irá a lona. Olham-no com desdém, ele percebe nos contadores de dinheiro alheio repulsa pela sua presença. Acham-se membros de uma casta superior e ele um pária invadindo um espaço que não lhe pertence. Tudo dera errado. Nessa hora o cérebro contraía de raiva nessa contração nada sentia, tornava-se um autômato, quando o ódio em sentido contrário expandia a massa cinzenta pressionando-a contra o crânio a dor era violenta, era o ódio a todos aqueles que o levaram àquela situação. Já não enxergava individualmente seus algozes, todos adquiriram uma expressão única. Era

aquela igualdade torpe, ali unificada num sorriso medíocre, um prazer mórbido em ver alguém destruído. Eles conseguiram. O coração acelerava a intensidade das emoções. O corpo aquecia, brotando suores por todos os poros. Era gelado, tão gelado que se sentia como mergulhado num mundo só de nitrogênio líquido. Pediu a conta. Pagou e saiu. Caminhou por horas e horas dentro da noite, não havia mais ninguém pelas ruas. Tudo era dor, os pés, os músculos, que mesmo com tanto álcool, continuavam tensionados. Sentou-se no banco de uma praçinha morta, o cansaço e a dor venceram. Acendeu um cigarro, tragou–o profunda e demoradamente. Arregalou os olhos rumo à imensidão silenciosa do céu sem lua. Surgiu uma bela estrela no meio do céu. Pensou que sempre no meio da dor brota um ato poético, começava a sentir um fio de esperança. Lembrou-se da promessa ao acordar naquele dia. Desistiu da esperança. Mais um longo trago, viu a brasa do cigarro vagalumear no meio da noite. A vertigem da tragada deu-lhe coragem. Com o disparo de um relâmpago a estrela oscilou, uma dor em alta voltagem explodiu no peito, ele se esticou e endureceu. Uma pacífica calmaria soprada por uma brisa acalentou seu corpo. Seus pensamentos eram uma bola formada por minúsculas luzes matizadas por infinitas cores. Ele agora ouvia e via tudo. Não havia mais dor. Via seu corpo ali no banco, a boca tinha um sorriso doce, o semblante era pura ternura. Tudo era claro. Nem a poesia o libertara. Viu a cidade despertar e partiu rumo ao breu da noite.

José Antonio Pereira – Cataguases MG

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Ronaldo Cagiano

A ressureição de um grande escritor

A editora LetraSelvagem, de Taubaté, por iniciativa de seu editor, Nicodemos Sena relançou, recentemente, em São Paulo, o romance “Deus de Caim”, do matogrossense Ricardo Guilherme Dicke, obra que foi um dos vencedores do concorrido Prêmio Walmap (1967) e foi saudado por Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antonio Olinto, integrantes do júri, como uma revelação e um marco na literatura brasileira. Deus de Caim surge num momento de transição: política, das artes, da moral, dos costumes, da linguagem. Vivíamos uma época de rápido escalonamento de valores, em direção a uma suposta modernidade em todos os sentidos. A ficção ainda vinha de um experiência estética bastante canônica, ainda muito fortes os ecos do modernismo na poesia. Mas a prosa ainda caminhava para descolar-se dos modelos machadianos ou do realismo naturalismo, quando primeiro surgiu o tufão chamado “Grande sertão: veredas”. Uma década depois, Deus de Caim emerge como um furacão estético. Em Pasmoso, cidade criada pelo autor, a partir de sua habilidosa capacidade de recuperar a mitologia popular ou o inconsciente coletivo – como uma Macondo ou uma Komala, ou uma Yoknapatawpha, a exemplo de García Márquez, Rulfo ou Faulkner, que espelhou as experiências de um mundo arcaico e burguês - esboçam-se os conflitos da família Amarante, de amor entre Lázaro e Minira, interditado pelo seu irmão Jônatas, por meio de sedução e tentativa de estupro, constituem-se no ponto de partida de uma tensão que vai perpassar todo o livro e que são o núcleo central do romance. A partir desse fato e seus desdobramentos é que se instaura uma profunda discussão sobre o homem, sobre o amor, sobre a traição, sobre o poder, sobre interesses escusos e difusos, como o desejo de apropriação do outro

(que na verdade soa como uma metáfora da apropriação da terra, num momento em que o tema da reforma agrária era um tabu). Muitos acontecimentos se intercalam, ou interpenetram, nesse romance, como alegoria ou como recurso da intertextualidade, como no caso dos embates filosóficos travados entre os personagens Grego e Cirillo Serra sobre o mundo, sobre a verdade, sobre a religião e a cultura, assim como Isidoro, ao discorrer sobre música e poesia. Essa faceta do romance também exterioriza o diálogo que Dicke estabelece com outros gêneros e reflete a sua preocupação existencial e sua relação muito íntima com a Filosofia, as artes e o pensamento culto, uma vez que ele foi filósofo, professor , tradutor e pintor, e é também como pintor, que reverberam sua visão impressionista desse mundo interiorano, atrasado, resistente às mudanças, característica de um país até então confinado a uma cultura e a uma economia agrárias e estigmatizada por totens, tabus e mitos que sustentam a vida e a memória do homem comum e do homem que controla política, ideológica e religiosamente a vida das pessoas, como os velhos coronéis do passado. Deus de Caim, ao fazer uma releitura do mito bíblico, na verdade está fazendo uma incursão na atualidade, porque o mundo não mudou, apesar da tecnologia, do avanço das comunicações e das ciências, do desenvolvimento material e econômico das pessoas e das nações. Os mesmos conflitos, dramas; as mesmas questões, dissensões; os mesmos dilemas, controvérsias e polêmicas – estão aí – ambição, incesto, mentira, roubo, morte, usurpação, esbulho da terra – estão aí, desde a fundação do mundo, desde que Adão e Eva, experimentaram do fruto proibido, e levantaram guarda para viver o próprio caminho, atraindo o que na lógica cristã seria chamado de maldição. De Adão e Eva até Abel e Caim, o grande dilema

existencial é a luta pelo poder e contra a morte; seja o poder do que quer roubar o amor de outrem; seja o poder arbitrário dos que detém o controle político e financeiro de um país; seja o poder de decidir, obrigar e impor sanções, sem defesa (como dos ditadores), seja o poder intrínseco, que o desejo de ambicionar o poder maior, que é o poder demiúrgico de um mestre (que pode ser Deus ou o diabo) e que, na verdade, deságua numa única e instintiva necessidade: a de perpetrar-se, l e para isso, vencer o tempo, despistar a morte e, se possível, vencê-la, custe o que custar. Com Deus de Caim, Dicke cutuca as férias da humanidade, que estão abertas até hoje, desde a fundação do mundo. E seu processo criativo contempla o caos, e esse caos se reflete nas histórias repletas de cizânia e perigo, mas prioritariamente numa linguagem vigorosa, densa, que não deixa o leitor sair indiferente, que nada atenua, senão repercute a violência a violência que atravessa os séculos, sem estereótipos, calcada numa impactante revelação, que é resultado ou espelho da própria desordem mental e intelectual do próprio homem. O elo entre o passado genético da humanidade e a modernidade tumultuada em que vivemos – homens, governo e mundo – mereceu em Dicke uma releitura surreal, não como fantasia pura e simples de uma historieta de sertão, mas como recurso para entender-se a loucura individual e coletiva e, acima de tudo, mostrar que o real supera a si mesmo, que é necessária as tintas da ficção pelo viés do absurdo para poder entender esse intricado e violento sistema que é a vida, aquela que, segundo Guimarães Rosa, é perigoso viver.

Ronaldo Cagiano nascido em

Cataguases reside em São Paulo SP

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Wilson Pereira

Os cavalos in/domados de Luiz Ruffato

Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, é um livro surpreendente. Mais; é um romance terrível, instigante, envolvente. Surpreendente pela sua inusitada estruturação, que como muito bem anota o escritor Sérgio Sant’Anna, na orelha do volume, funde “as melhores virtualidades do conto e do romance. Uma obra com o olhar abrangente e romanesco sobre uma diversidade de cenas e personagens interligados e, ao mesmo tempo, em seus episódios, o impacto do gênero conto, com a elaboração de uma linguagem condensada que aproxima o conto mais moderno,cheio de invenção, da poesia”. De certo. Luiz Ruffato não é o primeiro escritor a romper com a estrutura tradicional do romance, aquele com inicio, meio e fim, com a trama evoluindo num clima de tensão para um clímax e desfecho, como ensinavam os compêndios de literatura. Já vem de algum tempo a tendência para um novo modelo de narrativa, fugindo ao velho esquema, sobretudo o da oposição entre protagonista e antagonista, que se intrigavam em disputa por um amor ou por terras ou por poder. Até mesmo a velha questão maniqueísta da disputa entre o bem e o mal parece não dar mais o tom de contos, novelas e romances, pelo menos nos moldes de outrora. Mas o que realmente surpreende e constitui uma saudável inovação neste livro do Ruffato é que os personagens entram e saem de cena rapidamente e uma única vez. Mesmo que aparentemente não tenham relação uns com os outros, estão, sim, interligados por um fio tênue, quase indizível, mas que os alinhava num painel humano, social e, sobretudo, dramático. Os diversos episódios, vão se sucedendo, como

pequenos relatos, numa espécie de minicontos /, mas, ao mesmo tempo, vão compondo um to(l)do narrativo multifacetado, em que partes tecem a realidade dramática geral, feita de ações (e suas consequências) , de intenções e tensões, de angustias, pressões (sociais) e depressões individuais. Essa teia em cujos fios andam, vivem, convivem, sobrevivem ou subvivem, sofrem, amam, desamam-se, agridem-se..., teia em que uns se tornam presas fáceis, outros aprendem artimanhas e destilam venenos, mas onde há também vida pulsando nas vias urbanas, nas veias humanas, onde há lampejos de solidariedade, de bondade e de poesia, essa imensa teia que se chama cidade, megalópole... Tanto que Sérgio Sant’Anna afirma: “Tomado em seu todo, se poderia dizer que a personagem principal de (...) Cavalos é a cidade de São Paulo, como se contempla do mais alto de seus edifícios ou do avião que se aproxima à noite, dos aeroportos de Congonhas ou Cumbica”. Ah! Como deveria ser inocente, provinciana, a Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, diante da São Paulo atual, retratada por Ruffato, mas que em muitos aspectos já incomodava o poeta modernista que, aliás, já denunciava em seus poemas o risco da perda da individualidade, além de injustiça social, de preconceitos, pois ele já anteviu, ou viu mesmo naquela época, a cidade como engrenagem a triturar as pessoas. O livro de Ruffato bem que poderia trazer epígrafe de Mário de Andrade, pois certamente há parentesco entre as duas obras. Nesse sentido merecem menção os seguintes versos; “Giram homens fracos, baixos, magros... / Serpentinas de entes frementes

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Wilson Pereira a se desenrolar... / Estes homens de São Paulo. Todos iguais e desiguais / Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos / Parecem uns macacos, uns macacos” do poema Cortejos, Paulicéia Desvairada. Possivelmente Luiz Ruffato não tenha se lembrado disso, nem se inspirado nas preocupações de Mário de Andrade com o burburinho e as peripécias do cotidiano da capital paulista nos idos de 1920. E, claro, não se pode comparar a vida frenética, o ritmo alucinado e, às vezes, caótico dos dias atuais com aqueles em que os iconoclastas modernistas viveram, quando ainda não fervilhava nas ruas de São Paulo a multidão de pessoas, nem circulavam pelas ruas e avenidas a avalanche de automóveis. Nem os problemas de hoje se espelham nos daquele tempo, quando certamente não havia as filas quilométricas por emprego, os assaltos e seqüestros, o tráfico de drogas, o sexo anunciado como mercadoria nos jornais e na Internet. Fica, porém, a lembrança da afinidade entre os dois textos, e se houve alguma intencionalidade do autor de Eles eram muitos cavalos, não significa demérito, mas, antes, busca e realização de um projeto literário, digamos de um projeto narrativo-poético rico e afinado com obras de primeira grandeza da literatura nacional. Assim é que, ao evocar o extraordinário poema de Cecília Meirelles (“Romance LXXXIV OU DOS CAVALOS DA INCONFIDÊNCIA”, do livro Romanceiro da Inconfidência), do qual toma emprestado o verso do título, o autor enuncia, de saída, seu projeto de um texto plurissignificativo, feito de alusões, de conotações, de sugestões, portanto de múltiplas possibilidades interpretativas. Respaldado nessas possibilidades de interpretação, sem, no entanto, a pretensão de contestar Sérgio Sant’Anna, ocorre-me que o personagem principal pode (também) ser o próprio narrador, que aparece pouco explicitado ( eu narrador e eu narrado) em poucos episódios. E levanto essa hipótese

por pensar que ninguém narra fatos dessa ordem (poderia dizer: ninguém escreve um livro desses, mas não se deve confundir – manda a boa cartilha crítica – o narrador com o autor) e sai incólume, imparcial, sem sangrar sua sensibilidade, e mesmo sua dor parceira, nas tintas das páginas. Por isso, o emprego do adjetivo “terrível”. A escolha das cenas e dos cenários, a apropriação desse universo íntimo do individuo e, simultaneamente, coletivo, social, urbano, já entremostra o desafio do narrador de se entranhar nos sentimentos e emoções de suas criaturas, de revirar-lhes o avesso, de percorrer seus labirintos psíquicos. Além da escolha, há forma de narrar, elíptica, densa, tensa e intensa, a denotar o envolvimento do autor, que extrai de cada episódio a carga mais dramática ( e traumática), numa linguagem apropriada propositadamente a esse objetivo. E, se procede essa minha leitura, confirma-a o texto intitulado “Noite” (p131), em que o narrador, em priemeira pessoa, embora nomeado Humberto, se coloca como sujeito da ação e acaba por confessar sua impotência diante da realidade (sugerida) que o atormenta: “(... não vai passar nunca esse mal-estar, nunca essa sensação de inutilidade, Marin!, Marina!, e sigo sussurando, suspirando o hálito suocante da gasolina.)” Envolvente, ainda, porque o leitor, pelo princípio da intersubjetividade artística, se vê preso ao emaranhado teor das situações, que são, na verdade, conhecidas suas, alguns por experimentá-las na própria pele, outros por assistirem a elas, a olho nu no corre-corre das ruas, ou nas telas da TV ou por as lerem nas páginas dos jornais. Instigante, o outro adjetivo suscitado, porque o autor vai aproximando os atores nessa rede de intrigas, como se estivesse fazendo uma reportagem ao vivo, trazendo o foco do alto, da distância (o romance começa

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Wilson Pereira com a visão panorâmica, de quem olha a cidade de cima, quando o avião se aproxima para o pouso) pra fixá-lo depois no chão áspero do cotidiano até jogá-lo dentro dos olhos de cada ser abordado e, por extensão, dentro da consciência do leitor. Instigante, por fim, porque o livro é um convite à reflexão crítica e a sensibilidade artística, além da humana. Ou pelo menos um convite à busca de entendimento da linha frágil que costura as relações humanas e sociais destes dias atribulados, especialmente nas grandes cidades. Mas, resta indagar: se o romance expõe, numa espécie de reportagem, fatos que, por mais cruéis que possam parecer, se tronaram corriqueiros, como atestar, então, o seu poder de fascínio, a sua vibrante energia literária, que prende a atenção do leitor e o sacode, com sua carga lírico-dramática, da inércia e da indiferença? A resposta é que isso só é possível aos bons escritores, que sabem transformar matéria bruta em arte. Machado de Assis, por exemplo, não transformou o batido e ancestral tema do ciúme num dos romances mais geniais da literatura universal, o D. Casmurro? Luiz Ruffato procede assim, pois não apenas narra, mas imprime aos fatos uma visão – e uma versão – sutil e pungente, sugerindo, insinuando, novas e intrincadas realidades. O citado texto “Noite” bem que pode ser tomado como síntese da proposta do livro: “entreolho-a por sobre as páginas do Estado de São Paulo: (sugestão de um entre/olhar que vê, cria, mostra, nas entrelinhas, uma supra-realidade, além da mera realidade expostas nas bancas de jornal).” E prossegue: “e ela come estupidamente, metafisicamente (...)” (a junção dos dois advérbios é bastante sintomática).

Todo o arcabouço tra(u)mático do romance vem à tona com o corte preciso da linguagem, matéria-prima da literatura, que se constrói ali, a propósito, com metáforas, metonímias, elipses, interrupções, num ritmo adequado ao conteúdo, às vezes acelarado,em galopes, às vezes sôfrego, entrecortado, mas sempre domado pela mão sábia de quem domina as rédeas desses cavalos. E eles eram muitos cavalos.

Wilson Pereira – Brasília DF

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Emerson Teixeira Cardoso

O mundo, a alma e os descaminhos na poesia de Leonardo Campos

Quando você não tiver passarinho pra tratar, experimente ler o livro Alma de Brinquedo de Leonardo de Paula Campos. Nesse livro está a alma de um poeta singularíssimo. Sou capaz de apostar que ele satisfará todas as suas necessidades de poesia: as possíveis e as impossíveis também. Porque o poeta nos diz ali, que “sonhar o impossível é um bem da poesia” e que tudo não se esgota nas possibilidades terrenas. Vai mais longe ao dizer, que melhores ainda “são os sonhos que não se concretizam” porque estes habitarão o mundo da imaginação. Já finalizando na sua preleção, convida-nos a nos conhecer no “espelho das letras” que realizamos unindo a imaginação do autor a nossa e vice-versa. Eu acabei concordando com tudo que ele disse, nos preparando, como ele fez, para as possibilidades do seu sonho que vai começando com este Triste Início - “A noite escolta inocente a desgraça humana” e as estrelas perdem seus valores.” Passa por: Renata caminha nas estrelas

Todo tempo é pouco Quando em meio ao tempo tento refletir Que a paisagem mais bonita é o rosto. Ela é viva; ela pode sorrir.

Na noite pairam flores no asfalto, precipitam-se do céu – do seu auto. E mais que despedida, que na sua ida, Você deixou todas as estrelas. e era só uma menina.....

E o algodão

Ela tomou do pé o algodão, arrancou aquelas sementes e veio até a mim meio displicente, consciente, voluntária observou-me pediu a aliança

e então, a poliu. Mais intimamente com os olhos Do que com o algodão de suas mãos.

Ou nessa estrofe do poema Alheia

É que se insinua aí a canção da morte? Pois da cova profunda do seu olho, avoluma-se um vento torpe como a seca bebe um poço [...] Campos às vezes parece coincidir com Álvares de Azevedo, que com certeza leu, o poeta que segundo um crítico arguto trouxe Poe à paulicéia, que no seu caso é Minas, mais cervantina que camoniana – a benção, Pedro Nava – com seus crepúsculos sangrentos. Muito se teria que dizer deste poeta o que certamente ainda se fará no futuro. Pelo menos é o que me parece ou então muito me engano.

É que vieram aqui os corvos, (guardiães da noite) Precipitaram-me reminiscências dos mortos ao tom de graças e açoites...

Por que não dizer que a si se aplicam as mesmas palavras do Sr Legrandin ao memorialista infante em O Caminho de Swann: “Tens uma bela alma, de qualidade rara, uma natureza de artista. Não a deixe em falta do que é preciso.” Lendo Alma de Brinquedo de Leonardo de Paula Campos pensei ver desenhar-se muito depressa na minha imaginação o perfil de sua alma meiga habitante do corpo de um genuíno poeta. Daí eu pensar que é sorte nossa que tantos valores culturais mantenham-se vivos e a tão cantada vocação artística desta cidade, enfim, ainda se justifica.

Emerson Teixeira Cardoso – Cataguases MG

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Antonio Jaime

O ocaso nas letras

Romantismo: “O sol declinava no horizonte.” –

José de Alencar

Modernismo:

“A tarde suicidava-se como Petrônio.” – Oswald de Andrade

Pós-modernismo:

“Caía a tarde feito um viaduto.” –

João Bosco-Aldir Blanc

Atemporal:

“O sol amuntava na cacunda da serra.” – Geraldinho

Antonio Jaime Soares Cataguases MG

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Chico Cabral

O Gato

Para Marcus Vinicius Quiroga

Na sala da Rua Duvivier

o cheiro de jasmins

colhidos em jardim público

e a presença do gato

sucumbem ao odor de pêssegos e peras

que esperam o poema

num canto de mesa

de Ferreira Gullar

Francisco Marcelo Cabral nascido em

Cataguases reside no Rio de Janeiro RJ

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Edoardo Sanguineti

Último passeio

Homenagem a Giovanni Pascoli, 1982

eu sou o sopro asmático, fantasmático, mecânico e automático e patético, e paródico

patológico, psicológico pneumático, de uma voz vivaz em contra-luz, com filigrana

honesta, de mesto grão e trama, e grama, arcaico tanto, e apotropaico tanto,

de me ficar entalado, empalhado, fossilizado, entre as quelas de suas teias

telagráficas, holográficas, oleográficas, gráficas, para assustar-te os teus mortos tortos,

espantalhesco fonema fresco, antimorceguesco epirema picaresco, faunesco

grotesco, simiesco, poetema piratesco, papagaiesco, galesco, falante em ponto

e linha, em ponto e vírgula, perturbador compungido, provocador estafante tripudiante

diarróico logorróico, alfabético estóico, estético emético, herpético energético, erótico

hermético, harpa sonora até agora vibrante, carpa canora timidamente abocante, e por

fortuna, ao teu anzol afiado, ao teu chamado, numa má hora muito andante, face de lua

galante minguante, coante pensante:

assim dizia e, dizendo assim, a minha voz sumiu:

Fragmento 4 do poema pertencente ao livro Bisbidis (1987)

tradução de Aurora F. Bernardini

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Antônio Perin

A casa morta I

Ao José Vecchi

..... Lá na casa dos Carneiros,

violas e violeiros

só vivem clamando assim

madre amiga é ruim....

Lá na casa dos Carneiros, sete

candeeiros

Iluminam a sala de amor......

Elomar em Cantiga De Amigo

Zé! A casa da rua Alferes caiu! O cheiro da nossa infância foi-se. A açucena-branca no aço do portão lacrimejou no fio da foice do peão. Tratores avançaram sem alvará O último átimo do Pequeno al-fãriz brandindo o aço de sua cimitarra forjada do mais diáfano verbo foi chorar um acorde da guitarra. Zé! O cheiro da manga agora só na gôndola O roxo da jabuticaba só na marca dos imorais. Tudo a baixo. Tudo... Tudo... nem soleira alta nem sótão nem cumeeira nem porão nem assoalho de tábua corrida nem virgens nuas por entre frestas. Doravante Zé Fruta roubada no pomar Nem pensar Nunca mais.

Antonio Perin – Itaobim MG

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Leonardo Campos

Inerências

Só quando a morte chegar

ganharei o mundo.

E deste mundo, só abrigaremos uma leve

lembrança,

um olhar uniforme

e uma saudade horizontal,

da forma mais inocente

por desconhecida que existe.

E já agora, enclausurado no mármore

esquecido e gelado, na lembrança de que

nossos corpos são fé e nossa existência ainda

um precário mistério, convivo a fio com minha

/própria reticência:

este dilema sem morada ou descanso.

De “Alma de Brinquedo”

Leonardo de Paula Campos - Cataguases MG

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Marcelo Benini

Desenvolvi a aptidão do olho...

Desenvolvi a aptidão do olho

O que se entende pela capacidade

De localizar passarinho em árvore

A coisa se deu sem esforço, ao que explico:

Os galhos quando não ventam, enmesmecem

Daí o enredo

Espreita que num movimento ligeiro

Ele aparece

Entorta a cabecinha e você vê faceiro

Acompanha e ele voa, é outro.

Com o tempo esse ofício ganha ciência

E o talzinho passa a te tratar pelo douto

Aí esmera

Empina o rabinho, trejeita, pega inseto.

Por presteza, aviso que o fim

É um vezo de escória

Um andar de chão atrás de emprego

desse meu fazer

Mundo sem penas!

De “o capim sobre o coleiro

ou tentativas para ausência de chão”

Marcelo Benini nascido em

Cataguases reside em Brasília DF

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Miguel Torga

Alguns dados biográficos e alguma poesia

Miguel Torga possui uma obra volumosa e muito significativa: poesia, teatro, ficção narrativa em prosa, impressões de viagem e um curioso Diário em prosa e verso, com dezesseis volumes publicados entre 1941 e 1993. Neles se encontra de tudo: crítica social, polêmica, apontamentos de paisagem, esboços de contos, apreciações culturais, reflexões moralistas e, frequentemente, textos da mais alta poesia. Nascido na aldeia de São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, em 1907, Adolfo Correia da Rocha era filho de modestos agricultores. Criado em uma tradicional família católica, o catolicismo o marca profundamente, inclusive o levando a estudar no seminário de Lamego. O pseudônimo Miguel Torga, onde Torga é o nome de um arbusto duro e retorcido transmontano que cresce entre as rochas, demonstra não só sua luta pela sobrevivência em um mundo hostil como também sua forte identidade com as raízes e origens de seu mundo em Trás-os-Montes. Em 1920 vem para o Brasil. Dos treze aos dezoitos anos, viveu na Zona da Mata de Minas Gerais. Inicialmente trabalhou na fazenda Santa Cruz em Leopoldina pertencente a um tio seu.

Fazenda Santa Cruz – Leopoldina - MG “Simples máquina de trabalho era o último a deitar-me e o primeiro a erguer-me, sem domingos nem dias santos para que a engrenagem funcionasse com perfeição. Carregar o moinho, mungir as vacas, tratar os porcos, ir buscar os cavalos da cocheira ao pasto, limpá-los e arreá-los, rachar lenha, varrer o pátio e atender a freguesia que vinha comprar fumo, cachaça, carne seca, feijão ou trocar o grão pelo fubá; ir buscar o correio à povoação; fazer a escrita da fazenda, verificar à noite se as portas e as janelas estavam bem fechadas.” Quatro anos depois seu tio o matrícula no Colégio Leopoldinense em Leopoldina cidade vizinha à nossa Cataguases. Onde permanece por um ano.

Colégio Leopoldinense –Leopoldina – MG

Regressando a Portugal, conclui o liceu. Decidiu então trabalhar para a revista Presença, mas acabou por decidir que era melhor deixar esta revista em 1930. No decorrer desse ano, com a parceria de Branquinho da Fonseca, cria a Sinal, revista da qual sairia apenas um número. Resolveu então entrar no curso de medicina que concluiu no ano de 1933. Em 1936 volta a tentar criar uma revista, a Manifesto, que infelizmente teve uma curta duração. Exerce a profissão de médico em várias localidades, acabando por fixar em Coimbra em 1941, como otorrinolaringologista.

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Miguel Torga A passagem pelo Brasil, os estudos em Coimbra e a prática poética, seu catolicismo se esvai reduz-se a uma recordação de infância. Mas São Martinho de Anta, é o chão sagrado. É a terra que lhe traz segurança, o antídoto para o desespero, a eterna mãe que lhe estende os braços e não um deus distante e austero que nunca se viu, como nos versos de Diário II: Devo à paisagem as poucas alegrias que tive no mundo. Os homens só me deram tristezas. Ou eu nunca os entendi, ou eles nunca me entenderam [...]; A terra com os seus vestidos e as suas pregas, essa foi sempre generosa [...]. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou

nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno. No Diário I, o poeta revela tanto a beleza de criar arte como seu sentido trágico: “O artista tem a condenação e o dom de nunca poder automatizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido”. Ganhador do Prêmio Camões, em 1989, e indicado, por diversas vezes, para o Prêmio Nobel de Literatura, Miguel Torga é, sem favor algum, uma das maiores expressões da literatura em língua portuguesa de todos os tempos.

Ariane

Ariane é um navio. Tem mastros, velas e bandeira à proa, E chegou num dia branco, frio, A este rio Tejo de Lisboa. Carregado de Sonho, fundeou Dentro da claridade destas grades... Cisne de todos, que se foi, voltou Só para os olhos de quem tem saudades... Foram duas fragatas ver quem era Um tal milagre assim: era um navio Que se balança ali à minha espera Entre as gaivotas que se dão no rio. Mas eu é que não pude ainda por meus passos Sair desta prisão em corpo inteiro, E levantar âncora, e cair nos braços De Ariane, o veleiro.

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Miguel Torga

Brasil Pátria de emigração. É num poema que te posso ter... A terra - possessiva inspiração; E os rios - como versos a correr. Achada na longínqua meninice, Perdida na perdida juventude, Guardei-te como podia: na doce quietude Da força represada da poesia. E assim consigo ver-te Como te sinto: Na doirada moldura de lembrança, O retrato da pura imensidade A que dei a possível semelhança Com palavras e rimas de saudade.

Segredo

Sei um ninho. E o ninho tem um ovo. E o ovo, redondinho, Tem lá dentro um passarinho Novo. Mas escusam de me atentar: Nem o tiro, nem o ensino. Quero ser um bom menino E guardar Este segredo comigo. E ter depois um amigo Que faça o pino A voar...

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Miguel Torga

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento. Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura. Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza.

Confiança

O que é bonito neste mundo, e anima, É ver que na vindima De cada sonho Fica a cepa a sonhar outra aventura... E que a doçura Que se não prova Se transfigura Numa doçura Muito mais pura E muito mais nova...

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Miguel Torga

Quase um poema de amor

Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor. E é o que eu sei fazer com mais delicadeza! A nossa natureza Lusitana Tem essa humana Graça Feiticeira De tornar de cristal A mais sentimental E baça Bebedeira. Mas ou seja que vou envelhecendo E ninguém me deseje apaixonado, Ou que a antiga paixão Me mantenha calado O coração Num íntimo pudor, --- Há muito tempo já que não escrevo um poema De amor

Prospecção

Não são pepitas de oiro que procuro. Oiro dentro de mim, terra singela! Busco apenas aquela Universal riqueza Do homem que revolve a solidão: O tesoiro sagrado De nenhuma certeza, Soterrado Por mil certezas de aluvião. Cavo, Lavo, Peneiro, Mas só quero a fortuna De me encontrar. Poeta antes dos versos E sede antes da fonte. Puro como um deserto.

Inteiramente nu e descoberto.

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Miguel Torga

São Leonardo da Galafura

À proa dum navio de penedos, A navegar num doce mar de mosto, Capitão no seu posto De comando, S. Leonardo vai sulcando As ondas Da eternidade, Sem pressa de chegar ao seu destino. Ancorado e feliz no cais humano, É num antecipado desengano Que ruma em direcção ao cais divino. Lá não terá socalcos Nem vinhedos Na menina dos olhos deslumbrados; Doiros desaguados Serão charcos de luz Envelhecida; Rasos, todos os montes Deixarão prolongar os horizontes Até onde se extinga a cor da vida. Por isso, é devagar que se aproxima Da bem-aventurança. É lentamente que o rabelo avança Debaixo dos seus pés de marinheiro. E cada hora a mais que gasta no caminho É um sorvo a mais de cheiro A terra e a rosmaninho!