chicos especial 80 anos de chico cabral

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e-zine cultural de Cataguases- MG Prosa e poesia

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Page 1: Chicos especial   80 anos de Chico cabral
Page 2: Chicos especial   80 anos de Chico cabral

Chicos Edição Especial

80 anos Chico Cabral

e-zine de literatura e idéias de Cataguases – MG

Capa

Capa de Gabriel Franco

sobre foto de Victor Giudice Editores José Antonio Pereira

Emerson Teixeira Cardoso

Colaboradores desta edição: Antônio Jaime Soares

Antonio Olinto (in memoriam)

Fernando Abritta

Joaquim Branco

Ronaldo Werneck

Zeca Junqueira

Fale conosco em: [email protected]

Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/

Dedim de prosa Neste novembro de 2010, logo depois do feriado da proclamação da república, comemoramos os 80 anos do nosso poeta maior. Foi na quinta, véspera do dia da bandeira e antevéspera do dia da consciência negra. Isto mesmo no dia 18 de novembro. Corta para Guimarães Rosa lá em 1954: “O livro é grande. Sincero o digo, olha: até do “Poema da Identidade” estou gostando... Não é engraçado? Poesia é coisa-causa, difícil e fácil; é uma espécie de contágio.” Corta para Hildegard Angel em 2003 no JB (ainda circulava em papel): “A cidade mineira de Cataguases viveu dias de glória, por ocasião do lançamento do Livro de Poemas de Francisco Marcelo Cabral. A cidade ficou cheia de intelectuais de todos os cantos do país. Estavam lá a diretora do departamento de ensino da sub-reitoria de graduação da Uerj, Ira Maciel; a crítica de arte Ledy Gonzales; o escritor Carlos Sussekind; o médico poeta Octávio Mora; Vânia Chaves, titular de literatura brasileira da Universidade de Lisboa; as poetas Lélia Coelho Frota, Maria do Carmo Campos, Lina Tâmega Peixoto e o editor Léo Christiano...” Corta para José Lino Grünewald em 1993: “Rigoroso, inventivo, impecável.” Corta para Manoel Bandeira em 1949:

Ao poeta de Cataguases, Autor do belo Centauro, O poeta Manuel Bandeira Envia um ramo de lauro, Saudando-o desta maneira Ás futuro entre outros ases!

Corta para 18.11.2010: E o poeta faz 80 anos. Feliz Aniversário Chico Cabral!

2010 Ano do Centenário de Rosário

Fusco

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CHICO CABRAL

Francisco Marcelo Cabral

Por Chico Cabral

Sou cataguasense, safra 1930, aprendi a ler sozinho, me ensinaram a escrever, primeiro, minhas professoras D. Ruymar, D. Sílvia e D. Lyra; depois o professor Gradim... e muitos outros professores, cada qual muito interessado em me afastar das "trevas" da ignorância, porque certamente eu era mais ignorante do que eles. E isso parece que os incomodava, porque todos estiveram muito envolvidos nesse processo de treinamento, pelo qual, talvez sem o perceber, tentaram me passar uma concepção de mundo, sacralizada por sua expressão em palavras escritas, que eu deveria reverenciar como definitivas marcas concretas da realidade. Acho que eu não aprendi bem essas sábias lições e a primeira questão fundamental com que me deparei (e quase parei) foi descobrir que as palavras são portas de saída mas não de entrada, e que a emoção ou conceito, presentes num texto, são de quem o lê e não mais apenas de quem o escreveu. Por isso, inclui neste livro trechos de cartas pessoais que, a meu ver - melhor do que críticas formais -, permitem avaliar em que medida os textos propostos em meus poemas deflagraram nos meus escassos-mas-seletos leitores emoções ao menos assemelhadas às que eu pretendi "passar". O Humberto Ribeiro, que bateu a foto que ilumina estas orelhas, me perguntou se este era o meu primeiro livro. Brinquei, que sim. E vi que estava sendo verdadeiro. Este "Livro dos Poemas" é de fato meu primeiro livro, editado, composto, impresso e lançado segundo todos os ritos e costumes. Porque, vejam bem. "O Centauro", com capa de Luciano Maurício, foi uma edição (do pai) do Autor, distribuída à la diable. "Inexílio", graficamente realizado pelo trio Ronaldo Werneck, José Maria Dias da Cruz e Adriana Monteiro, foi impresso na gráfica de um amigo, para ser distribuído ao deus-dará na festa de aniversário do Chico Peixoto, a quem é dedicado. "Baile de Câmara" foi todo composto e impresso por mim, em papel importado, que só deu para 45 exemplares. O livro não era assinado pelo Autor, que apenas se reservava o copyright. Chamei a essa brincadeira editorial de "Edição Sub Rosa". Impresso por mim, o "Poema em 3 Cantos" foi distribuído aos amigos presentes à festa de meus 70 anos.

É isso! Espero que este meu primeiro livro encontre os seus leitores: primeiro, entre as pessoas de que já gosto e admiro; e depois também entre aquelas de quem passarei a gostar, por sermos da mesma tribo.

In “Livro de Poemas” (2003)

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Antônio Jaime

Turbilhão de raciocínios simultâneos

Num sábado simpático, em 1999,

Joaquim Branco reuniu em sua casa um grupo de amigos para uma “sabatina”, em torno de Francisco Marcelo Cabral. Este, como sempre, soltando criatividade pelas ventas, deixando-nos de boca aberta, tantas revelações lhe saíam da própria.

Ele sabe tudo de um tudo, e posso provar: uma vez, uma jornalista me pediu para ajudá-la a escrever matéria sobre um medicamento, digamos, Vitamina C, para uma revista. “Valha-me, Hipócrates” – pensei. E pus a moça ao telefone, em contato imediato com o Super-Homem, que lhe passou todas as coordenadas sobre ácido ascórbico, efeitos e preceitos afins – e ela faturou um dinheirinho. Fiquei feliz, por poder socorrê-la, também, ao confirmar os super poderes do nosso Cabral.

Para simplificar: na casa de Joaquim, o mais jovem da turma, filho do médico e escritor Fernando Cesário, ficou encantado ao saber que João Guimarães Rosa, cuja obra estava conhecendo na Faculdade, fora colega (sala a sala, cara a cara) do nosso poeta. E mais: este leu, simplesmente, os originais de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. Aí, é demais para o meu coração, também.

Seria uma entrevista, tudo devidamente gravado em duas fitas cassete, não fosse Marcelo um turbilhão de raciocínios simultâneos (“organicamente criativo”, disse Paulo Francis, sobre Glauber Rocha. Marcelo é por aí e, a propósito, naquele dia falou também que, às vezes, era confundido com Francis – ele próprio, ao ver PF tomando um café, num balcão, pensou: “O quê que eu tô fazendo ali?”. Nasceram no

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Antônio Jaime mesmo ano, por sinal, com algumas semelhanças físicas). De forma que cortamos um dobrado, ao tentar conduzir aquele papo ao papel. Debalde. O jeito foi Joaquim pedir a Cabral para resumir seu arrazoado, publicando-o, por fim, no número 1 do “Caderno C”, do jornal Cataguases, em 25/02/2001.

Não preciso repetir o que foi publicado, basta, portanto, lembrar certos momentos, como quando “recitou” um poema então inédito, de sua lavra. Ei-lo:

“Ars Poetica” Para Lélia Coelho Frota

O leitor se assenta o poeta puxa a cadeira

a poesia é o tombo.

O leitor se enleva o poeta o empurra no abismo

a poesia é o voo.

O leitor se esquece o poeta o sacode aos berros

a poesia é o susto.

O leitor é a ninfa o poeta, o fauno no cio

a poesia é o gozo. Como ele sabe tudo de um tudo, em outro

momento, falou que teve acesso a documentos da Paranapanema de Metais e, lá, constatou que nos aluviões dos rios Pomba e Muriaé há ouro na proporção de 7/1.000.000. A exploração é viável, dependendo de uma draga de grandes dimensões e difícil transporte. Com ou sem draga, já que a areia das construções locais provém daqueles rios, concluiu que nossas casas contêm ouro na mesma medida. Domus aurea. Só um poeta pensaria isso.

Fiquei algum tempo matutando/maturando aquele assunto e lembrei-me que, por aquela época, uns garimpeiros andaram revolvendo o leito do Pomba (quiçá, o coração de algumas fêmeas nativas, sedentas de aventuras). Não posso aquilatar o que auferiram da aurífera féria; para

mim, foi benéfico: eles me inspiraram uns versos, seguidos de outros, que o próprio FMC inspirou, ao dizer que os ritmos poéticos o perseguem (vide, em inexílio, as redondilhas produzidas pelo movimento da correia do cilindro da padaria de seu pai).

Não só aí, também, por exemplo, o ritmo emitido por um simples abrir de torneira. Juntei tudo num poemeto e Marcelo, gentilmente, o publicou na contracapa de seu livro Cidade Interior. Ei-lo:

Ao outro Cabral

Bem uns duzentos anos, pós-corrida do ouro, de novo, garimpouros a exaurir o rio Pomba.

Não de todo sem lucro, pode provar, no papel, Francisco Marcelo Cabral, o homem que sabe tudo.

Basta só um exemplo: poeta, no seu entender, é o que puxa a cadeira, a poesia é o tombo.

Ouve troqueus no jorro da torneira, anapestos no ralo, pensa em verso e, ao escrever, sai ouro.

Acho fraquinho o meu, perto do seu, de

qualquer forma, obrigado, poeta. Nascido em novembro, você pode dizer que completa, agora, ao pé da letra, oitenta primaveras. E a deste ano, aqui na sua terra, está fértil, chuvosa, as mangueiras, jaboticabeiras, pitangueiras, carregadinhas de rebentos, do jeito que você as conheceu, em suas primeiras incursões pelos quintais dos vizinhos.

“Quando havia galos, noites e quintais” - reza a canção de Belchior.

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Emerson Teixeira Cardoso

O poeta da primeira página

Trecho de uma carta de um leitor de o

“Cataguases”: Na década de 50 todo número desse

semanário costumava trazer na primeira página,

um poema de Francisco Marcelo Cabral. Até aí

tudo bem... Acontece que um dos que li é genial:

nesse poema o poeta externava a sua dor pela

perda de uma irmã. Republiquem-no, por favor!

A. L. Soares Reparem que é mais que um pedido: é uma súplica. O poeta no caso é o autor de Pedra de Sal, livro de poemas de sua lavra original, além de outros que publicou desde a década de 40, quando destacou-se por ser um dos principais expoentes dessa geração que viria culminar no concretismo. O poeta no caso é de Cataguases e não por acaso, como já se convencionou dizer (nada acontece por acaso, nem mesmo a pura invenção dessas mal traçadas linhas, que é mais fruto da admiração que tenho por ele), o poeta da primeira página, da rua Dr. Sobral, da Padaria Cabral, que aliás, produziu na minha infância os mesmos biscoitos finos, tão finos como os versos que compôs... Dos outros livros que publicou entre 1950 e 1990 citarei, entre outros títulos, “O Centauro” (quem tiver faça o favor de me emprestar) e “Inexílio”, um caso mal resolvido (mal?)de amor com a cidade que começa por dizer. “Nada me faz te amar menos”. E a gente logo no início descobre o porquê: de conteúdo essencialmente autobiográfico, Marcelo faz desfilar toda uma vivência Cataguases/Mineira que começa na infância do poeta e que muito faz lembrar o “Paulicéia Desvairada”, de Mário de Andrade, falo da linguagem, ou processo de composição, evidentemente, que usou e que bem poderia comparar ao “Amacord” de Fellini ou “Roma”... se é que não estou indo longe demais para situar o bardo Cabral e suas múltiplas e sintéticas descobertas. Francisco Marcelo Cabral se escreve no plural. O poeta também contista, e, aí com certo esforço que busco no fundo da memória o título do conto que li dele – acho que foi na revista Água. O tema é de um nadador, um adolescente numa competição, quando é observado pela própria mãe que assiste a transição ou passagem do “menino” para a idade adulta. Genial!

Chico Cabral poeta singular, símbolo de um movimento literário local sui generis quando um dos seus caciques a partir dele tudo se definiu desde as primeiras criações da “Meia Pataca” o incipiente escritor já prometia os novos cantos de seus ideais mais concretos. Mais do que o poema acima citado vale a pena degustar outros sabores de seu fazer poético, nem que seja consultando velhos jornais e pelo menos por enquanto o caminho mais fácil é do Arquivo Municipal. Se você não conhece o poema então confira.

In O Cataguases (MG) (11/02/1996)

Rëquiem

No túmulo de minha irmã Uma chama para sempre fria Nos nossos olhos amantes A lágrima imóvel e a poesia Se desprendendo do monte de terra por sobre os mortos Mil anjos, mil asas, soltos Mantêm os homens despertos Sobre as cabeças dos anjos diademas, diademas Luzes das luzes que brilham Nas luzes dos meus poemas e sobre todas as luzes imarcescível, infrangível A rosa e o cristal do meu sonho O poder do impossível E sobre a rosa e o cristal Sobre as forças e energias O poeta senhor das tristezas A que contrapõe alegrias.

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Joaquim Branco

Música da poesia

Mesmo depois de publicado Toda a poesia, de Francisco Marcelo Cabral, gostaria de comentar algo sobre seu livro há muito (a)guardado, Pedra de sal. O título estava mesmo destinado a não vir a lume, pois acabou alterado para Baile de Câmara, e publicado em 1993 pelo próprio autor, em tiragem mínima e semi-artesanal. Assim, apenas 40 privilegiados tiveram acesso a sua leitura. Mas, o que levou Marcelo Cabral a trocar a Pedra pelo Baile, o Sal pela Câmara ? À primeira vista e por um solução simplista, se poderia responder que esses nomes são também os de dois poemas da coletânea, e que a escolha, recaindo sobre um deles, simplificaria a questão. Volta a insistente pergunta: mas o que realmente o teria levado à troca? O tempo passou – mais de quarenta anos – alguns poemas sofreram mudanças, sempre para menos. O primeiro, “Pedra de sal” é o de número 3:

Ai, Minas de antiga pedra, velhice do chão, ai, Minas, colhi nas tuas colinas a flor do cristal, que medra, mergulhando veios de ouro na rocha macia e aberta, e ei-la, uma aurora desperta

no diadema do touro. (Cabral, 1993:3)

Em texto curto, evocativo, o poeta se dirige a Minas na interjeição sofrida e pedregosa, colhe a flor, procura o “veio de ouro” para, no final, encontrar um recomeço – na aurora. O segundo tem o número 13, intitula-se “Baile de Câmara”: Não me é fácil dizê-lo, mas imagina, uma noite, o fundo silêncio que há no fundo do vasilhame da cozinha, agora em repouso nos armários, guardando ainda o cheiro de tudo o que hoje serviu para abrandar o corpo, iludindo-lhe a fome; e pensa no animal que se enrola junto a teus pés, este morno segredo que toda carne encerra, gravemente; pensa na voz dos pássaros, de repente represa, quando a aurora é ainda menos que uma estrela descorando no céu, junto à linha dos montes;

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Joaquim Branco e o raso silêncio que há no chão, povoado de vermes, não sentes que no chão, dentro dele, se formam as delicadas vias de acesso? Como esperar, pois, outros sinais que os mudos acenos, gestos recolhidos como pudor de ternura? às vezes, este pássaro é tão-somente uma figura debuxada: nem sequer lhe pertence para o vôo a linha das asas, leves como os as das alturas. Tudo é assim: suspenso. Tanques e piscinas, naufraga a mancha verde de uma anêmona, mas tu sabes dos pequeninos peixes que se agitam, e é claro que provaste o ácido prazer do limo, ou seria impossível que eu te estivesse falando como se fosses uma lagarta colorida e eu, a muda vibração dos bordos de uma folha, ao sopro desta brisa leve”. (Cabral 1993 p. 15) Também escrito em 2ª pessoa, porém bem mais longo, o poema remete a alguém a quem se dirige o eu-lírico do poeta. Vou ao dicionário: “Baile de Câmara”. Não há registro. Lembro-me de “Música de Câmara”. Sem necessitar consulto novamente o dicionário:

Qualquer música vocal ou instrumental destinada a um pequeno auditório, a um solista, ou a pequenos agrupamentos de solistas, como, por exemplo a sonata para vários instrumentos (Ferreira, s.d.,p.963)

O magro volume, com apenas 30 poemas e preparado para um público reduzidíssimo (40 leitores), emite um solo apurado em rara melodia, enfeixada em papel especial.

Quem sabe, matei a charada? “Baile de Câmara”, um baile para poucos convidados. A fala em 2ª pessoa prevê um duo, que desliza em passos pelo salão ante um seleto auditório. O cerne da coisa é conduzido pela mão da linguagem, não sem mistério, segredo para chegar à poesia. Complementam a noite, o ambiente: silêncio. Ao fundo, a imaginação viaja. Do vasilhame da cozinha, que serviu à fome humana, ao animal e aos pássaros com suas vozes, até o chão onde se arrastam os vermes, e de volta às estrelas para encerrar com os pequeninos peixes, o poeta mergulha nas coisas e nos seres. Pergunta. Procura. E – folha que é – só recebe como resposta uma “brisa leve”. A conclusão, paradoxalmente, já tinha vindo antes, no fragmento: “Tudo é assim: suspenso”. Os motivos agora se aclaram. O poeta, à evocação da terra, preferiu o debuxo do pássaro, sem o leque das asas, e o momento que passa, ou o vento, que, leve, deixa apenas o sopro na paisagem. Notas bibliográficas Cabral, Francisco Marcelo, Baile de Câmara – poemas. Rio de Janeiro: Edição Sub Rosa, 1993. Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. Joaquim Branco

In Janelas de Leitura (Livro-2010)

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Ronaldo Werneck

centauro: aí tem coisa: baile de câmara: inexílio aí: nessa pedra de sal: sim: é Chico Marcelo: é xikin kabral.

Cataguases, 1963. “Meti-me dentro de uma cápsula/ folheada a ouro e prata./ Como um fruto em sua casca./ Como John Glenn em seu Atlas./ E pássaro perpendicular,/ depois pássaro circular -/ movido a óxido de berilo,/ já não sabia quem era./ (Bicho, aragarça ou borboleta)/Dando três voltas orbitais/ em torno do planeta.”. É sua voz, a autenticar com rara precisão os linossignos do Cassiano Ricardo e de sua “Viagem ex(orbita)nte”. Sua voz, a do meu futuro compadre, padrinho do Pablo, que me chega ainda agora como naquela tarde de sábado na casa do Kincas Branco: lição, dicção de poema-pois-é-poema para sempre guardada. Ano seguinte, na Bahia, “Jeremias Sem-Chorar” na memória, eu ensaiava dizer o poema do Cassiano na abertura de uma exposição de poesia concreta que organizara. Dizer como ele, mas sem sua precisa força: “Precisa-se de quem suba/ ao céu./ Num cartaz, pintado a ouro,/ a lua, sem nenhum véu/ (porque já sem oculta face)/ me sorriu/ Como recusar um ‘precisa-se’/ quando a precisão era minha?”. Perto dele, sempre foi minha a precisão. Copacabana, 1962. Rumo à casa de Alexandre Eulálio. “Olha, o Alexandre é dos maiores intelectuais do país”, ele me dizia enquanto entravámos no elevador. “Hoje, é simplesmente o Leitor Brasileiro junto à Universitá degli Studi di Veneza, ele é quem indica as obras a serem adquiridas!”. Pois é, o Alexandre, primo predileto do meu futuro amigo e cineasta David Neves, e mais tarde o autor de “A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars”. O poeta suíço Cendrars, que se faria parceiro dos modernistas de 22 e com eles (“o papa Mário de Andrade e Oswald seu profeta”)

viajaria a Minas: “Blaise, Braise, Brésil: Brésil cendré”. O Cendrars do controvertido poema “pros rapazes da Verde” (“Aux jeunes gens de Catacazes”), mesmo sendo Klaxon a revista mencionada. Blaise entraria no imaginário dos verdes apesar da desconfiança de Enrique de Resende: “Falei pro Fusco: isto é trote. Trote do Alcântara, do Mário, de todos. O Cendrars não está no Rio, e, mesmo que estivesse, não nos mandaria verso”. Mas, logo se confirmava a sua presença: “No dia seguinte, veio o Rosário, com suas pernas quilométricas, trazendo uma página do Correio da Manhã, onde vermelhava um traço marcando a notícia. Cendrars no Rio! Que alívio!” O Cendrars, cuja complexa formação cultural, no dizer de Alexandre Eulálio, “abrangia desordenadamente Gourmont e Bérgson, a ‘Évolution Créatrice’ e o ‘Latin Mystique’, espiritualismo russo e anarquismo internacional, fetiches africanos e locomotivas a vapor, a palavra de Nerval e a de Apollinaire, um cosmopolitismo entusiasta e generoso e a obsessão por Paris – tudo isso organizado numa espécie de simultaneidade cubista que reconstitui para nós, de maneira muito expressiva, o estilema 1920 da vida moderna”. E tome de “estilemas” e erudição e redescobertas de um momento de efervescência do caldo cultural brasileiro, mexido pela pá dos paulistas sob o olhar de atento entusiasmo do suíço. Toda essa “blaiseriana” digressão só prá dizer que eu e todo o eruditíssimo mundo de Alexandre Eulálio passamos boa parte daquela noite de Copacabana ouvindo atentamente nosso amigo falar de tudo um muito e sempre com grande propriedade. Acredito que até Cendrars, se lá estivesse, ficaria a escutá-lo com o mesmo fascínio

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Ronaldo Werneck que o escutávamos. Acho mesmo que aquela “complexa formação cultural” antevista por Eulálio no poeta suíço seria também de bom tamanho, com as devidas adaptações, para o nosso mais que cultíssimo amigo. Nós três nos encontraríamos anos mais tarde numa Galeria da Gávea,lançamento do livro sobre Cendrars (“Para Ronaldo Werneck, da raça boa dos cataguás, com o abraço do Alexandre Eulálio. Rio, 23 de outubro de 1978”). Acho que ele só não retomou o papo anterior, com todo o seu brilho, porque não teria sentido empanar a noite de glória do amigo Alexandre. Ou retomou? Era meu aniversário e saí mais cedo da Galeria e da Gávea, pra me encontrar com não sei quem, não sei onde, não sei porquê. Quando para descrever um homem sob a chuva, Você diz que ele vai “vestido de água corrente’ – sinto que aí tem coisa dizia Carlos Drummond de Andrade em carta de 19.12.1949, onde exaltava “O Centauro”, livro de estréia de meu poeta-compadre. E tinha mesmo: tanta coisa que, anos mais tarde, Drummond usou (inadvertidamente?) imagem semelhante no poema “Sob o Chuveiro Amar”, do livro Amor Natural: “Sob o chuveiro amar, sabão e beijos,/ ou na banheira amar, de água vestido (...) Em 1954, diria Guimarães Rosa sobre Pedra de Sal, depois intitulado Baile de Câmara: “O livro é grande...Poesia é coisa-causo, difícil e fácil; é uma espécie de contágio”. Centro do Rio, 1967, Leone e Associados. “Eu à poesia/ só permito uma forma:/ concisão,/ precisão das fórmulas/ matemáticas./ às parlengas poéticas estou acostumado,/ eu ainda falo versos e não fatos./ Porém/ se eu falo/ “A”/ este “a”/ é uma trombeta-alarma para a Humanidade./ Se eu falo/ “b”/ é uma nova bomba na batalha do homem”. É de novo sua voz-Maiakóvski interrompendo com precisão a tarde, o escritório e seus projetos. Eu, que trouxera a tradução by Augusto de Campos; e o Leone, que nunca ouvira nada do poeta russo. Leone e eu, boquiabertos com a força da poesia, sua voz, a voz do poema-espanto parando a Avenida Rio Branco. 1979: Rua Fernando Ferrari 61, Rio – onde mais tarde meu compadre iria morar. Ele e o poeta Afonso Félix de Souza mergulham em litros de larajanda enquanto eu e nosso anfitrião, o não menos João Cabral de Melo Neto, derrubamos discretamente uma garrafa de uísque, dores de cabeça à parte. Laranjada & uísque não impedem que Goiás-Félix, Pernambuco-Cabral e Minas-Werneck se contagiem com sua vivacidade,

máquina de bom-humor. Rua Duvivier, 49, Copacabana, 1996: idem, ibidem para Minas-Werneck & Maranhão-Gullar. Até o gato do poeta “Ribamar Ferreira” quedou extasiado enquanto o ouvia: o passeio ao léu suspenso sobre a mesa coberta de poemas objetos. Cataguases-Rio, julho/agosto de 1968: “O poeta do Centauro, após rápido galope, iniciou um processo de autocrítica que ao mesmo tempo reduziu a sua produção publicada e, acredito, enriqueceu a sua visão do mundo, num processo de tomada de consciência existencial e artística que só interessa mesmo ao seu diário íntimo”, me dizia ele, em entrevista publicada pelo SLD. “De repente, vocês passaram a existir. E de repente eu descobri que fazia parte da memória de vocês, que eu vinha antes, que no entender de vocês eu fazia parte de uma série histórica em que vocês buscavam se integrar, que eu tinha de responder por uma imagem que vocês a todo o momento estavam conferindo (num processo que até hoje, aliás, eu pratico para cima do Francisco Inácio Peixoto e do Fusco, para sublime aporrinhação dos dois), até então eu não me dava conta de ter uma dimensão histórica, pequeno burguês preocupado com a minha aut-elaboração, com os retoques no meu universo pessoal e otras frescuras do mesmo quilate”. “Não há poetas/ há poemas” – afirma ele num sólido insight de seu atualíssimo “Livro de Poemas” (Instituto Francisca de Souza Peixoto, 2003). E ainda do alto de sua merecida cátedra, nesta “Ars Poetica” para Lélia Coelho Frota: “O leitor se assenta/ o poeta puxa a cadeira/ a poesia é o tombo.// O leitor se enleva/ o poeta o empurra no abismo/ a poesia é o vôo.// O leitor se esquece/ o poeta sacode aos berros/ a poesia é o susto.// O leitor é a ninfa/ o poeta, o fauno no cio/ a poesia é o gozo”. O tombo, o vôo, o susto, o gozo. A poesia é Francisco Marcelo Cabral, meu guru de todo o sempre. Naquela noite de autógrafos de 1978, Alexandre Eulálio “honrou” o poeta cataguasense (segundo o próprio) com a seguinte dedicatória: “Para Francisco Marcelo, santo da minha devoção e personagem decisiva de minha aventura particular, com a teoria e a práxis da amizade que começou às margens do Meia Pataca, com o abraço fraterno do Alexandre Eulálio. Rio 23 de outubro de 1978”. Também assino em baixo.

Cataguases 11 de agosto de 2003. Gal Art nº 31 (MG) (Agosto/2003)

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Antonio Olinto

O tamanho do verso

Quando passou o homem a escrever em versos? Ou a pensar em verso? Ou a engenhar uma frase mais longa e parar no meio? Houve talvez, nele, a necessidade urgente de respirar antes de ir em frente com o que desejava dizer? A explicação grega, para o fenômeno do verso, é simples e clara. Foram os autores de teatro que impuseram uma pausa, depois de eles atravessarem o proscênio do palco de uma extremidade a outra - ou então os próprios atores hajam resolvido fazer uma pausa a cada travessia do palco, ao mesmo tempo em que diziam o texto, de modo que o resto desse texto ficasse para o retorno à extremidade anterior. A verdade seria então que o uso de compor uma série de palavras com determinadas sílabas e, logo depois, outra série com melodia parecida, teria criado também o verso normal do poema. No caso de Francisco Marcelo Cabral, até o tamanho de seu verso parece que ele equilibra as palavras de cada um, pois é nas palavras que repousa o cântico, o tamanho determinando o alcance que elas vão atingir. Estas considerações sobre o verso antigo e sua função surgiram-me agora por causa da excelente poesia de Francisco Marcelo Cabral, cujos versos se postam com a força de sua presença nos proscênio do poema, fazendo-nos ao mesmo tempo lembrar de Cataguases de Ascânio Lopes e de Rosário Fusco. Um milagre surgiu no Brasil naqueles anos 20, quando uma cidade da Zona da Mata Mineira inovou em tudo, inclusive num então setor quase virgem entre nós que era o cinema. Os poemas de agora têm e nada têm a ver com isto, mas vêm de um mesmo palco e de uma mesmo proscênio. Leiam-se estes versos do poema "Ai, de nós": "Oh, um carvalho crescendo é tão sério/ (e vem um lenhador com seu machado e fere-o) // A carne é mesmo triste? Um barco é triste?/ Que nos cabe de tudo quando existe?// Eu em

trânsito estou, vida é viagem/ e não deflagrei auroras nem miragens. // Aquele que chegou, a terra quere-o/ (ai de nós se não fosse o mistério)". O livro de Francisco Marcelo Cabral é também de viagem, e que livro não o é? Só que neste as viagens são verdadeiras, a lugares definidos, mas nem sempre a lugares, mas visitas a prédios, a estátuas como neste "Pietá": "Esta mulher mais jovem/ que o homem sobre seus joelhos,/ tota pulchra est/ nave sagrada/ empuxada pelo sopro enamorado do Arcanjo/ No rosto, nenhuma dor,/ mas a pura devoção e piedade/ com que aceitou gerar, parir, nutrir, amparar/ virgem de alma e de corpo/ o corpo do filho de seu Deus." De repente, um encontro diante da Maison de Victor Hugo, mas, na surpresa, uma alegria diante do reconhecimento. É o poema "Place des Vosges": "Metido em lãs me esgueiro pelas arcadas. / Pouco sol, uma névoa de outono. / Em frente à Maison de Victor Hugo/ alguém grita o meu nome /- em francês! - /surpresa e mistério /logo desfeito em riso. // O turismo tem disso: / colega de colégio/ louca para ser vista ali.//" O modo como Francisco Marcelo de Cabral faz poesia é o de que ele domina o palco invisível que ele e todos os poetas atravessam e, com isto, consegue dar a cada som, a cada sílaba, uma participação adequada na imagem que faz com as palavras e no modo como as transforma em poesia. "Cidade interior", de Francisco Marcelo Cabral, é edição do autor, capa de José Maria Dias da Cruz, Design gráfico de Ronaldo Werneck, revisão de Antônio Jaime Soares. Orelha de P. J. Ribeiro e prefácio de André Seffrin.

Tribuna da Imprensa (RJ) (30/10/2007)

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José Antonio Pereira

Um poeta e tanto

Apesar do rio Pomba de tantos poetas, cantadores e versejadores, é o rio Meia Pataca, à moda de Fernando Pessoa, o meu maior rio do mundo. O pobre ribeirão nasce e morre em Cataguases. Morre mesmo! Em todas as possibilidades e impossibilidades que a morte encerra. Dei uma olhada no dicionário lá consta: “pataca – Substantivo feminino - significa pequena quantidade, insignificante. Palavra de origem controversa. Se de origem italiana (patacca), se provençal (patac), ambas também de origem duvidosa.” Não tenho mais duvida, o meu Meia Pataca é de origem provençal. Tudo isto para dizer que Chico Cabral, começou lá na revista Meia Pataca, a qual editou juntamente com Lina Tâmega Peixoto também poeta, esta uma verdadeira tecelã das palavras. A Meia Pataca, feito o ribeirão, acabou por aqui mesmo, mas nós e a língua portuguesa ganhamos dois magníficos poetas. Conheci sua poesia através do meu amigo Emerson Teixeira, que vivia falando do Centauro e Inexílio. Ele sabia vários poemas de cor e salteado (coisa de aluno do Newton Rossi e do Gradim). Um dia, me apareceu com nada mais nada menos do que “O Centauro” em sua primeira edição, presente do próprio autor. Confesso que tentei de todas as formas por as mãos sobre a obra. Cansei de pedi-la por empréstimo com o firme propósito de surrupiá-la. Tudo em vão. Tinha que me contentar em ouvi-los do amigo e ler poemas esparsos aqui e ali.

Tempos depois conheço Chico Cabral, quando do lançamento do “Livro dos Poemas” - Um livraço! Ali estão de Centauro a Pedra de Sal – foi na véspera do sete de setembro de 2003 em noite calorenta e calorosa lá no Chica, com direito a filme & escambau sobre a batuta do Ronaldo Werneck. No dia seguinte em uma turnê pela cidade, organizada pelo Cairu, conheci intelectuais de vários cantos e cantares deste país. Todos aportaram às margens do Meia Pataca para prestigiar o poeta. Em passagem pelo Colégio Cataguases, ele nos descreveu em detalhes o mural do Portinari, apontando vários membros da velha guarda comunista retratada no famoso painel. Ainda ali, na antiga casa do diretor, espaço hoje dedicado ao professor Gradim, rimos muito de um aviso na biblioteca do local: “Favor não tocar nos livros”. Depois que li Inexílio, senti uma forte necessidade de reler Mensagem do Pessoa. E daí? Você pode me perguntar. Na minha cabeça doida de leitor este é meu método de ir e vir entre os meus poetas favoritos. Acho que aquela melancolia da solidão do navegar dos portugueses que sinto em Pessoa. Sinto um tanto dela, na melancolia das montanhas mineiras que é a ausência do nosso Cabral de sua cidade. O fato é que Mensagem e Inexílio têm o mesmo número de letras e Pessoa e Cabral são sobrenomes bem portugueses. O pá! É melhor parar, minhas releituras estão indo longe demais. Voltei a vê-lo por aqui em 2007 no lançamento de Cidade Interior, em evento onde também foi lançado Água polida de Lina Tâmega. Mas foi neste ano de 2010, que tive oportunidade, ao lado de Emerson, de ouvi-lo por um bom tempo durante o lançamento de Prefácio de vida de Lina Tâmega, entre papos sobre livros e poesia lembro-me de um bom assunto para os historiadores da cidade. A significância dos imigrantes italianos no início da produção cultural de Cataguases, citando variadas áreas e muitos sobrenomes, indo da música ao cinema. É óbvio que minha incompetente memória e minha terceira paixão – o cinema - só me faz lembrar do Comello. E agora em dezembro, com

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José Antonio Pereira

imensa alegria, o reencontrei no lançamento de Campo Marcado. Desde a primeira vez que o vi, sempre em

Cataguases, noto sempre a presença de Lina Tâmega. Parece-me que desde a revista Meia Pataca eles são irmãos siameses na poesia.

Para mim, um Zé, a melhor homenagem que se faz a um poeta do tamanho do Chico, é ler um poema seu. Leiam abaixo um que se tornou nos últimos dias o meu favorito de Campo Marcado.

Unicórnio

Para Cláudio Murilo Leal

O poema é uma forma de delicadeza de um suicida que corta os pulsos na pia com a torneira aberta. Podes tocá-lo, seu sangue não coagula nem tinge com sua rubra vazante tuas mãos curiosas. Apenas injeta-se transpondo para dentro de ti seu sumo de rubis esfacelados a púrpura de seus crepúsculos seus topázios hibernais. Não se escapa do poema. Ele te envolve com o diamante da cegueira e te estrangula com suas garras de pedra ave-leão de face aguda e fuzilante nunca decifrada. Tenta conquistá-lo e será teu como o unicórnio atado com cordéis de linho e seda submisso ao jugo amoroso da donzela em seu jardim de gozos e surpresas.

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Fernando Abritta

Diluindo em sonhos o Inexílio 1 do poeta Francisco Marcelo Cabral

O POEMA PARTE

PÁGINAS EM DUAS 2

: um centauro 3

cabeça no alto

patas ao chão 4

- Terrestres telúricas terrais

patas cavam aos pés das páginas

subterrâneos da cidadememória

fagulham sentidos 5.

- Brilhando sóis, cerebral, culto corta o real local com lógicadaga

parte alta das páginas. 6

fernando abritta7

1 Inexílio foi publicado no jornal “Cataguases” em 1979. Um murro em minhas convicções colonizadas por Edgar Alan Poe,

Salvador Dali e pela teologia de Michel Quoist e foi a primeira visão de uma cidade múltipla, a oficial e outras subterrâneas muitas

outras de todas as formas e todas ocultas. E agora reencontro Inexílio (Cabral, Francisco Marcelo. Livro dos poemas de Francisco

Marcelo Cabral contendo O Centauro, Inexílio, Baile da Câmara, Poema em 3 Cantos e Pedra de Sal. Editora-empresa Instituto

Francisca de Souza Peixoto. Cataguases - MG, 2003. Pg. 57 a 74)

2 Inexílio inaugura um Processo novo onde o verso continua como notas de rodapé marcando as divisões da cidadememória.

3 Constante no Poeta essa dicotomia humano-animal que lembra a angústia de civilizados desligados da natura mãe pela coerção

social. “O Centauro” foi o livro de estréia do poeta em 1949 onde o poema “Homem, cavalo, centauro” funda a obra de Francisco

Marcelo Cabral.

4 30 vezes nada aparece: como verbo nadar uma só vez, muitas outras como substantivo sem substância e outras como indefinido

pronome. E Nada vai, austeramente, marcando a leitura em Inexílio.

5 Um “invejado herói versado nas ciências do corpo” (pg. 63) e “um ah! núncio de amor(te)” (pg. 64) trazem o leitor pelo pé da

página a sentir e aspirar “da terra um cheiro de poeira molhada e de folhas aromáticas” (pg. 68).

6 Na cabeça lógica do Centauro “nem o piso de pedra” (pg. 61) ou “as correias que estalavam em ritmo de redondilha” (pg. 65)

nem quando registra “uma cidade com valores não reversíveis à moeda” (pg. 66) ainda que seja rodeada “pelo ser vegetal e

múltiplo [...] raros agora, breve inexistentes” (pg. 71), nada reduz a conclusão de que “AMAR MENOS é morrer” (pg. 73) ou “que

nada é o que fica” (pg. 74).

7 Não é verdade, Poeta, ficaram em mim, em nós, essas marcas.

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Zeca Junqueira

Algozes (Inspirado no poema Inexílio, de Francisco Marcelo Cabral)

Eu também decido que nada, Cataguases nem a traiçoeira fala nem a fala estudada a falsa hospitalidade o desprezo pelos seus poetas de tanta doçura e nenhum centavo nada, Cataguases nem as costas a mim dada pelo irmão na permuta da fraternidade pelo dinheiro pela cupidez que cerra o punho, ameaça e não reparte nada nem a troca da vida de coragem e para sempre celebrada pela vida calada e triste que range os dentes e os ossos e paga o preço da rendição vida fedendo a cinzas e a velório eu também decido que nada, nem o meu longo exílio, meu perpétuo exílio nem o medo de que a poesia não sustente a luta de que o poema não triunfe e não acenda a noite e eu morra louco e mudo no escuro das suas ruas de tempo nada, Cataguases nem a ameaça de que um dia o amigo enjoe e no meio do caminho o verso engasgue o encanto quebre e ele se vá eu decido que nada nem a perda da única esmeralda que tirei de ti nem as suas ruas agora sujas, as suas praças sujas, a sua oculta gente suja, tudo podre, tudo passado, tudo vendido e comprado tudo estragado, tudo fodido eu decido que nada, Cataguases eu decido que nada nem o pior dos vermes nem a pior loucura nada do que se oculta e me assombra nesse lodo fedorento que corre nas veias de seus algozes vai me fazer

te amar menos.

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Entre Amigos

Com Lina Tâmega Peixoto

Ivo Barroso

“Embora hoje residindo no Rio de Janeiro, Francisco Marcelo Cabral sempre permaneceu um representante do que havia de melhor na literatura que vinha de Minas. Lembro-me bem de que, já nos inícios de ‘50, no Suplemento Literário do Jornal do Povo, de Ponte Nova, Marcelo era o poeta preferido do scholar Tony Brant Ribeiro – o diretor da folha, crítico literário de visão telescópica, que lhe dava os maiores espaços e lhe augurava uma cintilante carreira merecida. Marcelo começou em 1949 com O Centauro e se entronizou definitivamente em 2003 com Pedra de sal e Livro de poemas, para se confirmar em Cidade interior, de 2007. Pela Book Link, do Rio, dá-nos agora, em 2010, este Campo Marcado, com poemas “fluviais” (como as águas de seu rio Pomba), dotados daquele “momento de espanto” que caracteriza a poesia de Gullar. Não podemos deixar de transcrever, embora linearmente, seu Cada dia, tema de tão difícil feitura: “Pedro meu pai artesão padeiro/ forneava manhã cedo/ belos pães de puro trigo/ fermentados “au levain”.// Confeiteiro também, fazia, /com sutilezas de açúcar/ e sápidos toques de essências,/ biscoitos, doces, suspiros.// Mestre de oficio, bom homem, /saciava alheia fome/ com alimento concreto. //Padeiro artesão, meu pai, Pedro,/ nas artes duras da vida/ com as mãos que espantavam medos /cozia sossego e sono. //Sonhos, não.”

Com Reynaldo Valinho Alvarez

Com Cláudio Murilo Leal no Pen Clube

Astrid Cabral Descobri que dias de chuva podem ser prazerosos! Passei o domingo e a segunda entregue ao sal de sua palavra. Reli Centauro e Inexílio e li os magníficos últimos livros. Sua poesia é concisa, exorcizada de retórica, mesmo nos versos longos (Acho Inexílio muito essencial e adoro o contraponto das intercalações em prosa poética). Além disso, há sempre extrema sutileza, aguda percepção do não óbvio. Subjaz em seus versos um silêncio eloqüente, pois você não se esgota ao dizer, avança com a sugestão (como é imenso o aparentemente pequeno poema “Pedra”!). Achei os sonetos magistrais, inventivos, livres. Não entendo o preconceito que considera a forma “instrumento enferrujado”. A idolatria à vanguarda é guarda vã... O soneto voltou à voga. Diga-se, criar dentro da tradição é desafio bem maior. O espaço não me permite descer a pormenores apreciativos. Requereria muito papel e muita tinta, mas reafirmo aqui minha grande admiração que vem de longe. Creia, sua poesia me eleva. Para mim ela consegue:

“Acender o céu, ascender ao céu desde aqui, desde agora”

crítica em cartão postal de 9/8/2004

Com Ronaldo Werneck e Lina Tâmega Peixoto

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A Poesia de CHICO CABRAL

Instabilidade

Pêndulo indeterminado, inextinguível e liberto, vacilo entre o duplo fim. Anseio por horizontes do começado caminho: vejo a luz e quero ir. Que me rouba o ser estável? Abro os olhos, nada vejo, sinto a ausência do meu corpo, rubro poente de mim. As idas de longe acenam. Ai, me perco nas veredas, Quero as vindas, dai-me as vindas. Quê me perturba a beleza? Oh, não cantará as musas o que a si próprio se oculta nas dobras do não-dizer. Minhas vestes já rasgadas minhas mãos desencarnadas minha presença ocultaram. Quê me liberta o inefável? Anjo de asas caídas, os olhos não volverei para contemplar os despojos. Meu vôo cortei bem rente. Não satisfeito, amputei-me e apenas amanheci. Quê me detém na pureza?

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A Poesia de CHICO CABRAL

Sonetino

Não eu, que a tenho em pedaços e apenas procuro recompô-la como a um arlequim desfeito, exposto a só se perder, malbaratado. Eu não! Outros que a vão buscar, úmidos do próprio suor reminerado. A mim me cabe mais: a vida é um Respirar esperançado. Sou o pássaro e me lanço a toda a liberdade, o olho contra o sol e contra o vento as penas, como quem se afasta só sem mais ruído que um ligeiro adejar de asa acesa e vai, lá em Minas, repousar.

Pedra

Escrevemos Porque sabemos que vamos morrer. Escrevemos porque não sabemos por quê.

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A Poesia de CHICO CABRAL

Doca

Para Alberto da Costa e Silva

Necessário dar ao poema endereço e compromisso e não o deixar à solta — nave de papel e tinta que a água do tempo dissolve. A uma inspeção de minúcias deve ser submetido para que em cada atracagem uma laboriosa estiva libere a apreciada carga. Necessário armar o poema com rigorosa treliça: que não pareça destroços de naufrágios reunidos. O poeta habite o poema ou dele se distancie que o que segue transportado no convés e nos porões como o ar em nossos foles se esvazia e se repõe. Se não lhe dá uma rota ao poema, largado à sorte das coisas que só flutuam sem a nitidez das naus, o poeta voga à matroca, e o poema atraca no caos.

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A Poesia de CHICO CABRAL

Cidade interior

É onde à noite os medos convocam as fantasias das sombras cortam as luzes das ruas e ao fraco luar se tropeça em cães ressoando e mal se ouve a suave respiração dos sonhos as pisadas no tambor dos pesadelos e os silvos remordidos do gozo (e onde mortos rumorejam pelas grotas) uma cidade para sempre estacionada no poema - falsa e inesquecível.

Vitamors

Para Ascendino Leite

O passado mal se equilibra, nos derruídos blocos desunidos da extinta harmonia. O futuro demole todo o cristal e dura como o barro — a perspectiva do pó. Sonhos, amores, juventude

— o presente é o tempo que morre em você.

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A Poesia de CHICO CABRAL

A carne da palavra

Há no teu nome tanto de animal e alvorada, tanta vida, que o amo também. Pronunciá-lo é gozar, sentir tua presença, palpável cristal. És insondável, és, embora em superfície toda brilhe tua estrela, tua fonte. Tens derramado em tuas letras um sangue algum, que te define e forma e se comunica e vem ou sou eu quem o extrai e do aparente friúme da palavra reacende a chama essencial. Pode muito Eros: de seu reino de asas cortadas nunca escaparás. Que a palavra em ti pertence-me, e eu condeno-te a sofrer a límpida maldade do verso que te despe. Confia, pois vai nisto, bem que rude, um amargo travo de amor.

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A Poesia de CHICO CABRAL

Ai de nós

Oh, um carvalho crescendo é tão sério (e vem o lenhador com seu machado e fere-o). A carne é mesmo triste? Um barco é triste? Que nos cabe de tudo quanto existe? Eu em trânsito estou, vida é viagem E não deflagrei auroras nem miragens. Aquele que chegou, a terra quere-o (ai de nós, se não fosse o mistério).

Inexílio II

Todo poema é celebração mesmo não lido. Todo poema é de amor mesmo perdido. Todo poema fica por aí mesmo esquecido

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A Poesia de CHICO CABRAL

Poema

A palavra nasce de onde morre breve fulguração da fala na voz e na página. Necessário atá-la a outra palavra igualmente fugaz — corrente de brilhos longos e curtos nave passando iluminada. O silêncio gera a palavra e consome sua espessa matriz No universo sem som e sem tempo haver a palavra é inútil rede para a luz e o vento. O visgo e o ferrão da palavra impõem cuidados ao toque: faca afiada , empunhada pela lâmina. A agulha da palavra crava na mão e na boca que arrisca comunhão impossível do visível e do imaginado.

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A Poesia de CHICO CABRAL

Hora nenhuma Pelas frestas do soalho, coam-se as crinas oblíquas do cavalo do vento. Tremem as velas e as roupas finas ao sopro dessa luz sem sombra que tanto medo me dá A mãe sussurra não olhes o piso nem as telhas. Nas paredes nuas o sono os aguarda entre as manchas de mofo e seus desenhos de limo verde. Aqui mora a noite e seu bafo de roupa guardada suas lãs descoradas e ásperas como peles selvagens mal curtidas. Essas coisas velhas recendem a calor suado. Debaixo da cama arfa um cachorro cego e um jarro de miosótis tinge com sua morte azul a penumbra e o silêncio. O medo não abre os olhos do menino que apenas pressente o abismo do universo e embarca no bote de flanela. O sono se abate sobre o peito como um par de asas sem ave uma rajada de brisa adocicada e morna, uma persiana que desce nos fios. A mãe já não diz mais nada que se ouça, apenas nela vibra a delicada respiração do menino —fonte e sinal da vida que prossegue.

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A Poesia de CHICO CABRAL

Ainda mais Escrevo a língua do meu avô e tenho a sua cara no espelho fugidio onde busco as marcas do que sou. Vejo o rio passar Os peixes das palavras boquejam espuma e água suja no sulcado perau dos versos o poema flui arrastando em sua calda a mudez dos afogados e os gritos dos pescadores de areia. Um passo atrás, que eu possa ver essa procissão que se arrasta desde muito antes do ano de mil novecentos e trinta, quando eu mesmo vazei num jato de sangue e soro e gritei pela primeira vez: eu — e não, e nunca na verdade, fui ouvido. Um passo atrás que o sol está secando as chuvas do poente um corpo vai-se atirar na direção do naufrágio e a chama de uma vela será enviada a procurá-lo Escrevo a língua do meu avô sem sua permissão, por isso apenas busco seduzir os fantasmas que me visitam por isso venho até o rio para olhá-lo nos olhos e numa canção inaudível berçar os seres amáveis que o habitam e se coçam nas facas dos peixes Vejo o rio passar e mal me vejo enquanto envelheço à sua beira A luz e o silêncio em mim sabem a vida e enquanto respiro tudo o que não entendo faz sentido

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A Poesia de CHICO CABRAL

Água serpente Singrar o rio nos barcos de areia abrindo a veia canal do seu fluxo barrento. Sangrar o Pomba para deter seu voo de palavra quimera confinado às margens. Despojar o rio das roupas de vapor para que vaze o visgo de seu clima, Esgotar o rio Pomba para que revele o ouro fino do leito, os saibros dos poemas.

Cataguases

A cidade exporta tecidos de algodão que não planta e poemas que não lê. No varejo de algumas lojas se pode até comprar livros. O jeito é agarrar com todo cuidado a primeira palavra vazia que esvoace gratuita na brisa do Pomba, e devolvê-la intacta aos ventos, insanos e surdos

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A Poesia de CHICO CABRAL

Inéxilio

(.......)

MENOS que nada é o pó do poema que aqui sobrenada sobre tudo (que nada!) sobretudo sobre nada (24) que nada é o que resta do rosto e da festa do rasto e da gesta que nada é o que sobra do sabre e da sombra da cãibra e da cobra que nada é o que fica da faca e da treva da trave e da chama (24) Nada me faz te amar menos

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