chesneaux, j. devemos fazer tábula rasa do passado são paulo, ática, 1994..pdf

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7/15/2019 CHESNEAUX, J. Devemos fazer tábula rasa do passado São Paulo, ática, 1994..pdf

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20 DEVEMOS FAZER TABULA RASA DO PASSADO?

dêmico OU balanço complexo da experiência chinesa. Caminho si

nuoso, espinhoso, que é apenas a expressão de minhas incertezas

- bem distante do esquema linear em três ou nove partes, "a par

tir do qual deve brilhar o plano de uma aula de efetivação", Como

dizia meu velho mestre Charles E. Perrin ..

[vias a história é decididamente muito importante para ser re

legada aos historiadores ..

Ci-'\U'I-JU',hlJ. : ) " , " · , Y Y \ c < , \ ~ , . ~ l ~ ' ~ . 1 , ' - ' \ c ' .,::::,C'

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LIVRARIA UNIXEROX

p r O f . : ~ . C ! QAno: ] -

DISC::..e4...:__ · _ ; ~ . 2 { ) . . J ) . tc u r s o : ~ ~ ...__Quant. Cópias: (2Data :221 .S : ; : § ,R

A história como relação ativa.com o passado

Território especializado ou memória coletira -.-\ "fome" de história _ Emque campo Se situa o saber h i ~ t ó r i c o ? - .-\rmadilhas do intelectualismo e do profissionalismo - Cma expansão artificial

Muitos historiadores vivem no

conforto corporativo. A história é seu ofício, seu "território" ."

Eles são os especialistas e são respeitados enquanto tais. A impren

sa, ainda mais, a .tevê, tem tornado concreta e familiar sua situação

de privilegiados experts em passado. Esse conforto corporativo está

. solidamente instalado na própria ambigüidade do termo "história"; ao ! l 1 ~ ? ~ o tempo o movimento ~ ~ f u ~ d Q <10 t e ~ ~ ~ _ e - o e ~ ~ oqu e l e l ~ É ! ' faz, A biologia estuda a vida; a astronomia, os astros.

Mas a "história" estuda a "história": indício de identificaçào que

.. BLOCH, M. Apologle pOlir /'histoire 01l1t' l I /c f la d'!listoriel1. Ed. portuguesa: Introdução

à história. Trad. Maria Manuel Miguel e Rui Grácio. Lisboa, Publicações EuropaAmérica, 1965.

... LADURIE, E. Le Roy. Le terntaire de /'Justoncu.

7/15/2019 CHESNEAUX, J. Devemos fazer tábula rasa do passado São Paulo, ática, 1994..pdf

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22 DEVEMOS fAZER TABULA RASA DO P . ' \ S S A D O ~

alimenta uma extraordinária presunção, indício de um a armadilha

que se fecha sobre si mesma.

Toda\'ia, cada um sente muito bem que a história é uma cai-. sa totalmente diferente e que ela diz respeito a todos nós. A lin

guagem_cotidiana está cheia de referências à "históna-. Exi"úe-j "roda da história", qu e gira implaca\'elmente mas pode parar,

acelerar-se, recuar. Existem as "ironias" da história, seus ardis,

suas "armadilhas", seus. "desígnios", suas faces ocultas mesmo

para os obse.T\'adores. A história seria um a grande máquina auto

seleti\'a, capaz de "reter" ou "esquecer" as pessoas, as datas, os

fatos; ela tem até suas questões menores, porque está bem organi

zada. Ela seria capaz de da r lições, de distribuir lauréis àqueles

que conseguiram manter-se em cena ou mesmo de conduzir julga

mentos do alto de seu "tribunal" . e às \'ezes ela guarda seus

"enigmas", recusa-se a fabr.

Por trás dessas ~ L a . 5 , tão habituais que não chamam a I

atenção, há alguma coisa de c o e _ r g n ~ G . e perigos?, perigosa i

quanto a p r e t ~ n s ã o dos historiadores profissi.o.nais .de esgo.tarem o i

passa(:Ió, a saber, a idéia de que a história domina os h o m e ~ s a par- !hr de um lugar externo, exerce sobre eles uma autoridade suprema'

porque inscrita num passado po r definição irr'e·v·erSí\,-el e é

preciso inclinar-se docilmente diante dela. Que. éopassad Cl ,. p ~ r :tanto, que comanda0 p ' ~ e s e n _ t ç ."'------ - . . _. -

"Toda\'ia", diz Marx, "a história não faz nada, ela não possui

nenhuma imensa riqueza, ela não tra\'a nenhuma batalha. É sobre

tudo o homem, o homem realmente \'i\'o, que executa tudo, qu e

domina e ' l - - l J E ~ - t l t q "" .

Se 0eassad_o mnta é..peloc[llesignifica para ,:,?S l ~ l ~ ' _ ~ - º E o -duto de nossa memória coletiva, é o seu tecido fundamental. Quer'-_. _ ._- . - - - - - - - - - - , , - - _ ..

se trate daquilo que se sofreu passivamente - Verdun, a crise de1929,1930, a ocupação nazista, Hiroshima - ou do que se viveuativamente - a Frente Popular, a Resistência, Maio de 1968. Mas

: . : s ~ s ~ ~ ? . : 1 d ~ , próx_imo .ou longínguo, t ~ . m sempre um sentido para

I ós. Ele nos ajuda a compreender melhor a sociedade na qual vivemos hoje, a saber o que defender e preservar, saber também o que

mudar e destruir. A história tem um a relação ativa com o.-r..assado.QE'ssado e s t ~ J ! r e s e n t e ~ ! ] } . J : i l i i a ~ - ª 5 _ e s f ~ r a . s d a fida s ô ~ , O trabalho profissional dos historiadores especializados faz parte dessa

1 • A HISTORIA COMO RELAÇÃO A TI\' A CO M O PASSA X) 23

relação coletiva e contraditória de nossa sociedade com seu passa

do. Nada mais é, porém, d0'l.':'.e um aspecto particular, nem sempre o mais importante e jamais independente do contexto social eda ideologia dominante. -.k..

A relação coletiva com o passado, o conhecimento ativo do

passado, é, ao mesmo tempo, uma exigência e uma necessidade. Opassado pesa e deseja-se romper com e l e ~ - ' ; D e ~ e ; n o s f a z ~ ; : - tábularasa do passado'"

Ao mesmo tempo, " ~ ~ ~ ? ~ e uma grande fome de história entre i

o povo", segundo a fórmula empregada pelo historiador "ama-

. dor" Claude Manceron, num debate com Claude Mazauric, notável da Universidade e historiador "especialista" do PCF mas apa

rentemente sem conseguir interessar seu interlocutor nessa'

questão*. "Tem-se sempre necessidade de ancestrais quando o pre

sente vai mal", ressaltou Le Monde (26 de julho de 1974) por ocasião do lançamento simultâneo de um livro sobre os gauleses e de

um outro sobre os caubóis americanos.Com efeito; essa 'lome" de história pode conter algo de vis

ceral e primitivo, a busca de um refúgio contra o que vai mal, !TIªspode também significar uma vo ntade de luta, uma ligação ativa. Afogueira dê'Montségur está intensam-eÍü€ presente na consciência

\ occitana de modo renovado e o tráfico de negros, no movimento

Black Power, qua isquer que sejam as ambigüidades e, as incertezasdo mo,-imento accitano ou çio movimento negro ..

6 J 1 i ~ t ó r i a , . o passado, isso é do interesse de todos. Certos historiadores profissionais têm sentido isso, eles têm buscado dar à

'- j , história e ao conhecimento histórico uma definição mais coletiva,~ . ' - menos especializada e técnica:

"É o que uma época julga importante numa outra" 0. Burckhardt).

"É a necessidade que cada grupo humano experimenta, acada momento de sua evolução, de buscar e questionar, no passado, os fatos, os acontecimentos, as tendências que preparam o tempo presente e permitem compreendê-lo, que ajudam a vivê-lo"(Lucien Febvre).

.. France NouvelIe. 6 de jan.. 1975.

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24 DEVEMOS FAZER TÁBULA RASA DO PASSA[X)?

Sem dúvida, e esses historiadores da velha geração eram, afi

nal de contas, bem mais modestos que nossos tecnocratas de com

putador, eles aceitavam estar, antes de mais nada, à escuta de seu

tempo e de seu povo. Mas l'"rmaneciam, ainda assim, intelectuilis:

:'observar 6-passádo) " c o m p r e e ~ d e r o presente" ... A olhos: o

2õruiéomentüif;tel ectual do passado, mesmo coletivo, bastava por

s C ~ m o ; e i e não tinha de e s c l a r ~ ~ e r uma prátiéa-soCiãL ~ n 2 ~ n g a j ~ ~ e r i t - o ativo_econ"creto.

Todavia, nosso conhecimento do passado é um elemento ah

" VQ do movimento da sociedade, é uma articulação das lutas políti

: cas e ideológicas, uma zona asperamente disputada. O passado e o

, conhecimento histórico podem funcionar a serviço do conservado

rismo social ou das lutas populares. A história se insere na luta de

classes; ela nunca é neutra, nunca está acima da peleja.

O cantor militante occitano Claude Marti canta os alístados

rebeldes Janguedocianos de 1811, negando-se a se deixar matar em

nome de Napoleão na Alemanha ou na Rússia, canta os vinhatei

ros revoltosos de 1907. Mas no verão de 1 9 7 ~ ; 6 tricentenário do

marechal Turenne deu ao primeiro ministro Chirac ocasião paraexaltar as virtudes do "Estado Nacional"/em plena explosão da

revolta corsa. Cada um escolhe seu passado, e essa escolha nunca é

mocente

Em que campo se situa o saber histórico, em que sentido fun

ciona a relação ativa com o passado? Nenhum historiador pode

eludir essa questão, mesmo que queira.

Ao colocar a relação coletiva com o passado como base do

conhecimento histórico, inverte-se radicalmente a relação passado

presente. Nã o é mais o passado que comanda, que dá lições, que

julga do alto de seu tribunal. É o presente que questiona e faz as

intimaçõesMas o presente só tem necessidade do passado em relação ao

futuro. Nã o se trata apenas de melhor "viver o presente", como se

contentava Lucien Febvre, mas de mudá-Io,{ou defendê-lo). A me

mória coletiva e o apelo à história desempenham o papel de última

instância em relação ao futuro. A relação dialética entre passado e

·1 futuro, elemento, ao mesmo tempo, de continuidade e ruptura, de

C'""'" P'"P'" ,,=. hó"oQ

1 • A HlSTÓRlA COMO RELAÇÃO ATIVA COM O PASSADO 25

A história da humanidade é um movimento constante do reino da

necessidade rumo ao reino da liberdade. Numa sociedade onde

subsistem classes. a luta de classes não poderá acabar. E a luta

entre o velho e o novo. entre o verdadeiro e o falso, p:-osseguirá

indefinidamente na sociedade sem classes. [ .. ] A função final do

saber histórico é. portanto, fazer um balanço das experiências da

humanidade, em matéria de descoberta. em matéria de invenção,

em matéria de criação. em matéria de progresso*.

i\firmando.,? ? ! # ~ . e r 0ã 9 . p g n ~ . ~ c o l ~ t i v o mas ativo do conhe

cimento h i s t ó r i c o ~ ~ . _ I . : e L 9 S ~ 9 . C Q m , o. passado, repele-se, ~ o r n 9 me;;:mo lance, para °undo da cena 05 temas usuais do discurso histó

rico , ·.·su-a·s""la'iSas eyidêDçi .as tão comumente admitidas que

ninguém se dá nem ao trabalho de demonstrar:

• O intelectualislIlo. O conhecimento intelectual do passado

seria um objeto válido po r si mesmo, independente da vida social

concreta. Engenhosamente, os historiadores inventaram a distin

ção entre história-que-se-faz e história-que-se-escreve. A primeiraseria coisa de "políticos", ocasionalmente com intervenção, feliz

ou lastimável (segundo se é de direita ou esquerda), da s massaspopulares. A segunda, a se e s s ~ e v e , seria coisa de historiado

res . .\tIas e s s e í n f e T é c · t U a Ü ~ . m o está profundamente enraizado. É evi

dente para os historiadores de ofício, e o "grande público", po r sua

vez, está habituado com. ele. Marc Bloch escreveu sua Apologia da

história quando foi expulso da Sorbonne, acossado pelos nazistas,

rumo à resistência clandestina, às torturas, à morte. Todavia, el e ali

declarou, em .sua linguagem de diriasta universitário:

Tivesse a história de ser eternamente indiferente ao Homo (aber ou

ao Homo politicus. e já lhe bastaria para sua defesa ser reconhecida

como necessária à plena realizaçã<? do Homo sapiens [ .. ; a história

tem prazeres estéticos que lhe são próprios ( .. "

• O objetivismo apofítico. Sorri-se com desdém quando se cita

a frase de Fénelon: "O_b_om historiador não é de nenhum tempo

nem de nenhum p a í s " ; v e l h a - q ~ e : ~ . ! . a ultrap_assada, diz-se. Mas

.. T S E ~ T L ' t \ ; G , Mao. Petit liim;, rouge. p 218.

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26 D[\ 'EMOS r A Z E I ~ TMIl'LA RASA DO j'ASS,-'.DO'

Paul Veyne, especialista em história antiga muito "estimado" por

seus colegas, escreve ainda em 1968, na EllC.l/clopcdia Univcrsalis:

"Um historiador sério, quer dizer, desinteressado, não se in

teressa pela história da França porque é francês. Ele se interessa

por ela por amor à história",Pouquíssimos historiadores de ofício aceitam refletir séria e

rigorosamente sobre o papel que tcm sua ah"idade profissional na

vida política e social francesa: ela atua a favor da ordem estabeleci

da ou a·favor das lutas revolucionárias? Pouquíssimos aceitam re

fletir sobre as relações que existem entre os temas de seus estudos,

a própria forma pela qual são conduzidos e o equilíbrio da socie

dade burguesa. Vivem confortavelmente na idéia do isolamento

entre "ofício" e sociedade.

• O profissiollalismo. A hJstóna, o conhecimento do passado,

dependeria principalmente das qualificações técnicas, da habili

dade, do ofício. O saber histórico circularia na sociedade de acordo com um dispositivo de mão única: ele se elaboraria em circuito

fechado, nas esferas eminentes de pesquisa especializada, para

depois tornar a descer, de andar em andar, degradando-se à me

dida qu e o faz - manuais escolares, historiadores "amadores",

vulgarização .

Recusar esse discurso _eliti$ta não significa que não se colo-

quem problemas reais e difíceis: tem-se necessidade de uma certa

. divisão de trabaU10 visando a conhecer o passado? Pode-se criticar',

( o profissionalismo do historiador €, ao. mesmo temI?0,- manter a: ii' --_ .. - . " ' - - - - - - ~ ~ - - - -- - - - - - . - - - - . - - - - - - ~ . _ - - -'._" -."_ . __ . -- -- -

;1. exigência de rigor científico? Mas as pessoas do ofício só discutem

es-ses problemas no"interior de seu pequeno mundo corporativo eprivilegiado; elas consideram seus privilégios cOl-poranvos óbvios.

É preciso, pelo contrário, partir do lugar global e do papel do pas

sado em nossas sociedades divididas contra elas mesmas, d i l a c e r a ~das po r contradições sociais agudas, e só então se E 9 ~ e . I l J . _ a b o r d a r ' ; , _ ~~ _ ~ _ . c

o ~ r o b l e m a s técnicos próprios ao s_aber h j s t ó r i c o . ...\.- - - ' - - - - ~ _ . - ~ - _ .A produção histórica se encontra hoje em expansão, e muitos

profissionais se felicitam por isso, centenas de teses, revistas espe

cializadas que se multiplicam, inumeráveis volumes para o grande

público, colóquios eruditos a propósito de tudo, reedições fre

qüentes de documentos antigos e outras lucrativas operações'de

,

1 • A HISTÓRIA COMO RELAÇÃO ATIVA COM o PASSADO27

mercado livreiro. Mas essa expansão espetacular oculta um debate

político: ela atua em que sentid o e a favor de quem'

E n q ~ - ; ~ t o a yelha- h i ~ t Ó ; i a - i a - Z h i a T s e ~ ~ a n t é m muito viva, no

tadamente no cinema e ria tevê, duas correntes históricas estão ho

je em fase ascendente: ~ Nova História, da qual os volumes coleti"os de P,erre Nora e a c q ~ o f T ( F a i r e de l'histoire) foram como

que um manifesto e que está ávida por influência junto ao grande

público (publicação, tevê, etc.); ~ l a _ s e quer atraente!_aberta a tod_os

os problemas do homem, mentalidades, técnicas, ;'ida e morte .. E

álhistória u n i , : - ~ ~ ~ s h ~ r i ~ _ i i 1 a r ~ ~ ! f : ) a p ~ i a d a no prestígio e nos'meios

materiais da hi stória acadêmica soviética, assim como nas posiç ões

ganhas após 1968 pelo Partido Comunista na inshtuição universi

tária (VER, revistas, colóquios, etc.). Essas duas correntes, entre as

quais i n t e r v é ~ um jogo complexo de rivalidades, compromissos,

cooperações, estão ambas t u n < i 9 - E : . ~ r : : _ ! ~ ~ _ ~ , ~ . ~ u ! ! l . ? _ ~ _ s e ! t ? . . Ç ã . o __ 0 ! ! l . ~ _ ! T I "das falsas ev.idências do saber histórico (capítulo 6) e das regras so

ciais de funcionamento de instituições de historiadores'li:apituloi f tssãs duas éorrentes, a respe-ito de cuja influência se retornará

muitas \'ezes capítulo s seguintes, propagam, uma e outra, uma

concepção dosmecanismos históricos que se apóia na lenta conti-

l1iiTdade, -nos processos exteriores ao movimento á-tivodãS -ffiãsSãs.O tecido fundamental da história seria constituído, num caso, pela

"longa duração" braudeliana; no outro, pelaJenta_ dinâmica da s

fmças produtivas entrando inelutavelmente em contradição com

as relações de produção (como explicou doutamente Althusser a

Jolm Le",is). Q que tem por desfecho, de qualquer maneira, desa

~ p r o p r i a r e expulsar as massas populares de sua história, simulta

neamente porque se reserva seu estudo aos especialistas p r i v i l ~ giados e porque se lança a dúvida sobre sua capacidade de

intervenção ativa, sua capacidade de "fazer história". Adeptos da

Nova História e marxistas acaclênuc;;, a;sim como a velha história

factual, ignoram a relação funda mental en tre saber histórico e p r á - . ~tica social. "

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3História e prática social: nocampo das lutas populares

opassado como recusa e recurso - Quebeguenses, aborígines e occitanos

- lastros dos mm"imentos nacionais e das lutas sociais no passado: burguesia e

massas populares - As annadilhas do passado mítico: rigor científico e rigor polí-

tico - O"ano 1" como ruptura do Tempo

Na luta contra a ordem estabele

:ida, recusar o passado e suas imagens de opressão é uma tendên

'ia natural. "Devemos fazer tábula rasa do passado! .. . " Durante a

~ e v o l u ç ã o Francesa, decapitaram-se as estátuas, amassaram-se as

lrmaduras, queimaram-se as árvores genealógicas e os pergarru

lhos feudais. Na China, a Revolução Cultural convidou para a

lestruição dos sljiu, os "quatro velhos": velhas idéias, velhos cos

umes (coletivos), velha cultura, velhos hábitos (individuais).

Mas a recusa do passado não exclui o recurso ao passado. À

ersão oficial do passado, feita de acordo com os interesses do po

er e, portanto, mutilada, censurada, defonnada, as massas opõem

ma imagem mais sólida, uma imagem de acordo com suas aspi

lÇões e que reflete a riqueza real de seu passado. l", ... ',·~ ~ , ~ ; : . ·

3. HISTÓRIA E PRÁTICA SOCIAL NO CAMPO DA S LUTAS POPULARES 39

Essa conquista é muito sensível durante o século XIX, nos

movimentos de libertação nacional da Europa central. EdiçãO de

textos antigos, redação de manuais de história nacional, apresenta

ção de obras de arte da Idade Média, coletânea de contos folclóri

cos, tudo o que "alorizava o passado próprio da Boêmia, da Hun

gria, da Sérvia, da Romênia, representa\"a mais apoio acrescentado

à luta de emancipação desses povos contra a dominação austríaca

ou turca.

1\ vontade, de libertar o passado, de nele se apoiar para afir

ma r a i d e n _ t i c : l _ a _ ~ e ~ ~ _ ~ ~ _ ~ n a l , é )gualmente. fÇ>rte no s movimentos de

libertação do Terceiro Mundo no século XX. Os próprios nomes

dos novos Estados, Gana, MaU, reanimam tradições da Idade Mé

dia negra completamente esquecidas na época colonial, quando es

ses países se chama"am Gold Coas t ou Soudan francês. Os re\'olu

cionários tuparnaros retomaram e popularizaram o nome do

último principe inca (Tupac-Amaru) que resistiu aos espanj1óis no

século XVl: o passado é um l a s t r o J ) A r A , ª - s J u t a s _ c j º _ p r e s ~ I 1 t e . , l A conquista dos revolucionários vietnamitas ou palestinos é o mesmo:

suas unidades militares e suas ofensivas armadas foram colocadas

sob o apadrinhamento de grandes nomes guerreiros de seu passa

do nacional: Tran Hung Dao, O vencedor dos rnongóis no século

XIII, ou Yarmouk, a grande vitória dos árabes sobre os bizantinos

no século VII.

A reivindicação do passado e sua reconquista tomam fre

qüentemente a forma de uma inversão dos signos e valores; é o

momento de uma zombaria. Quando os militantes indígenas ocu

param a antiga fortaleza de Alcatraz, em 1970, na baía de San Fran

cisco, ofereceram simbolicamente o pagamento de 25 dólares deprata: o preço oferecido com desdém pelos brancos aos indígenas

para se instalar na ilha de Manthattan, no século XVII.

A preservação dos sítios do passado faz parte dessas reivin

dicações populares;'ó direito a um passado próprio se confunde

com o direito de existir hoje, como o explicava um indio cherokee

em 1972:

o povo cherokee se estabeleceu há cerca de dois mil .

anos ao longo do rio Little T ennessee. Eles construíram ali casas

e vilas. Foi lá que a sociedade cherokee se fonnou. Hoje, resta

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muito pouco dos sitios ou antigas vilas cherokees. Foram todos

inundados ou destruidos. A única zona que subsiste, e que teve

uma significação para os cherokees. é o vale do Little T enne s.

see. E. hoje, também o vale está ameaçado de inundação. O go

verno planeja instalar ali uma barragem.

[ .. ] Por que destruir a história de um povo, quando toda

a parte Leste do Tennessee está coberta de lagos?

[ .. ] Os cherokees foram lesados em relação a sua terra.

encurralados como gado, levados para uma terra estranha. Rou

baram-lhes a identidade. Destruíram-se os índios quando osafastaram de sua terra, Foram roubados quando se declarou

que não eram cidadãos deste pais e, po r esse motivo, não

nham nenhum direito sobre esta terra. Agora, °governo vai

concluir essa destruição. declarando que esses mesmos índios

não têm o direito de te r um lugar onde possam vir e dizer a

seus netos: era aqui que ficavam nossas vilas. Foi aqui que nossa

cultura começou, Foi aqui que cultivamos nossa língua. Foi daqui

que partimos

[".J O homem branco quer nos privar disso. Ele cometeo genocídio total*"

Para os aborígines da Austrália, a afirmação de seu passadooriginal faz parte do protesto contra a dominação branca e o qua

se-extermínio de seu povo. Eles acusam os manuais australianos

de história de os ignorarem; destacam que ocupam essa terra des

de tempo imemorial, dezenas de milhares de anos, que seu modo

de vida tradicional não-agrícola, ao contrário de ser "primitivo", se

fundamenta num equilíbrio ecológico e demográfico muito elabo

rado: limitação da pesca e da caça, limitação dos nascimentos, con

trole das doenças. Foi a ocupação branca que importou doenças

que os dizimam, que os isolou nas reservas sob o pr.etexto de evan

gelização. A reafirmação des se passado muito antigo caminha pa

ralelamente com uma alvorada política: o cortejo da rainha, vindo

em 1970 comemorar a chegada do capitão Cook sob a designação

insultante de "bicentenário da Austrália", foi atropelado por mani

festantes que conduziam grandes faixas, bordadas em negro com

os nomes das tribos extenninadas pelos brancos, Uma "e mbaixada

* Liberation News Savice. Nov. 1972.

1

3 . HISTÓRIA E PRÁTICA scx::IAL NO CAMPO DAS LUTAS POPULARES 41

aborígine" foi aberta sob uma tenda, diante do Parlamento de

Camberra ..

Também em Quebec a revisão da história oficial é considera

da um dos pontos de partida da luta popular:

Nossas elites nos contaram histórias sobre nosSo p a s s a ~do. Elas nunca situaram nosso passado na história. As histórias

que nos contaram sobre nosso passado eram concebidas para

nos manterem, povo quebequense, fora da história.A elite que colaborou com o colonizador inglês após a

derrota da rebelião de 1837 ·1838 agiu como toda elite de um

povo colonizado. Em vez de lutar para desvincular Quebec do

colonizador, ela se voltou para um passado "heróico" para não

enfrentar o presente. Ela se pôs a glorificar as explorações dos

Champlain, dos Madeleine de Verchere, dos Santos Mártires ca·

nadenses ...

Gerações de canadenses foram doutrinadas nesse nacio

nalismo de retaguarda, onde nos definiamos como um povo

eleito que tinha por missão evangelizar o mundo e expandir a

civilização católica francesa através de toda a América. [ .. J

Nós, quebequenses, sofremos o colonialismo. Somos um

povo prisioneiro. Para mudar nossa situação, é preciso primei·ramente c o n h e c ê ~ l a . Para c o n h e c ê ~ l a bem. é preciso analisar as

forças h"lstóricas que a dirigiram. [ ... ]

Este pequeno manual se propõe a se r uma retomada de

posse. A retomada de posse de nossa história, primeiro passo

da retomada de posse de nós mesmos para passar ao grande

passo, a reromada de posse de nosso futufO*.

Entre os militantes occitanos, da mesma forma, a recusa da

história oficial, ou seja, da "história da França" centralista, cami

nha paralelamente com a \'ontadede se reapropriar de seu passa

do, ao mesmo tempo para reavaliá-lo e para melhor se afirmarem:

Ensinam·nos a história da França, declaravam jovens occi·

tanos no enContro de Mon[ségur em junho de J 972, quer dizer,

a história da centralização perseguida po r Luís XIV e Napoleão.

Queremos, pelo contrário, redescobrir a história dos povos

BERGERON, Léandre" Prefácio do Pt"tit //li1nuel d'/listoirt'dll QlIébec. Montréal, 1972.

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42D r \ ' E ~ K ) C ; F · \ Z E 1 ~ TÁBUL.'\ RASA]"X) rAS:;.",[)(l

que compõem a França. Ocultam-nos a poesia dos trovadores,

o sistema de administração das cidades do Midi na Idade Média.a história dos comisards, as revoltas dos vlnhateiros do Langue

doe.,. Roubaram nosso passado e hoje retomamos nossa hIstó

ria lá onde ela se encontra'-,

À medida que se ampliam as rei\'indicaçoes políticas dos

bretões, dos occitanos, dos alsacianos, dos corsas, o acento é posto

sobre o conteúdo popular de sua h e r a n ~ " P J . ó p r i a ; r o m p ~ m assim

com o apoliticismo consen'ador dos,/bardos e dos 'félibres.'. -, -_ / "-

mesmo ano de 1975, a Frente Cultural alsaciana celebro-li-a Guerra

dos Camponeses de 1425; os bretões comemora\'am o" tricentená

rio da Revolta dos Bonnets Rouges de 1675 (cujo próprio nome é

um a reconquista porque os manuais de história da França o igno

raram sistematicamente em benefício do termo Re\'olta do Papel

Timbrado, que reflete o ponto de \'ist" das forças da ordem); o teatro occitano da Carriera encenou greves dos mineiros de Cé

vennes no século XIX (Tabo", guer dizer, "Resista'''); o teatro occi

tano de Taulon representou em todo o ;-'1idi a luta armada contra

o golpe de ,Napoleão 111, tal como fOI encaminhada nos Baixos Al

pes (1851).ltrodas essas lutas populares escalonadas ao longo dos

séculos são outros tantos lastros para as lutas de hoje contra o ca

?italismo centralista. '

Pois O passado também alimenta as lutas sociais. A memória

jo ~ l m e n t o -õperário está cheia da lembrança de greves que sao

_,or vezes de alcance nacional (1/36"), por vezes locais, esquecidas

outros lugares que, porém, marcaram profundamente uma re.;ião. Em Milau, as grandes greves do couro em 1935 fazem parte

ia experiência coletiva dos trabalhadores. No romance de Roger

Jailland, Beau masque, esse poder mobilizador da memória operá

é simbolizado pela figura do operário Cuvrot, veterano da gre

'e de 1925 contra os empresários da fiação desse pequeno vale do

3ugey e animador (no romance) das gre\'es de 1951, contra a n or

nalização da produção e os efeitos do Plano Marshall.

LL Monde. 26 jun. 1972.

Forma abreviada d a expressão "Tiens bon!".

3 · HISTÓRIA [ I ' I ~ A T I C A SOCIAL NO CAMPO DAS LUTAS POPULARES 43

Na China, o recurso à memória popular é organizado siste

maticamente. Coletam-se baladas e cantos que refletem as tradi

ções de luta camponesa contra a opressão. Em 1974, quando de

uma banal \'iagem de turismo, encontrei um a boa dezena de pes

soas idosas, habituadas a contar suas lembranças da dominaçãofeudal das fábricas capitalistas, da ocupação japonesa, da tirania

do Kuomintang. É um a política sistemática de comunicação entre

as gerações. As lembranças de opressão e luta valorizam a capaci

dade política do povo, sua aptida.o para e n ~ a r r e g a r - s e de seus as

suntos no decorrer dos grandes movimentos de massa como o Sal

to para Frente ou a Revolução CulturaL

Nos Estados Unidos, Clyassado é também campo de lutas

políticas muito vi\'as. Contra a versão bem-pensante da história

americana, a exaltação da fronteira dita niveladora dos pioneiros,

o consenso (unidade de objetivos), o Mal11fest Destiny e a ingênua fé

na missão dos Estados Unidos insurgiram-se os historiadores "re

visionistas"; W. A. Williams, G. Kolko, Horowitz, H, Goldberg.

Eles realçam o conteúdo real do imperialismo americano, o racis

mo, o caráter artificial da democracia. Evocam a importância dos

antagonismos de classe e dos conflitos sociais ao longo- de -roda a

história americana. D e ~ ~ r o e I l 1 . o mito a r ~ - , , - : h i s t o r i c i d a c l . e ~ '__consciência política americana, mito que deixa õCampoli,rre para.

a ideologia capitalista de li\Te-iniciativa e de expansão. Dessa lu

ta participam nao somente os historiadores dissidentes do mun

do universitário, ma s também, ainda mais vigorosamente, as mi

norias oprimidas do país. Os índios destacam que o passadoamericano não começou com a chegada dos brancos. Os negros

chamam a atenção para os programas de estudo Afro Studies, to

mando O sentido oposto da imagem convencional de uma Améri

ca cuja história é a dos brancos. Os chicanos (mexicanos america

nos) e os porto-riquenhos afirmam sua hispanidade contra a

cultura anglo-saxônica dominante. Os cajuns se prendem à língua

francesa.

O conhecimento do passado mantém simultaneamente a nos-

talgúl e a cólera, segundo a fórmula cara aos românticos ingleses.

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'« DEVEMOS FAZER TÁBULA RASA CO PASSADO

Outros historiadores relatam os fatos para nos informar

os fatos; vós os relatais para excitar em nossos corações uma

ira intensa em relação à mentira, à ignorância. à hipocrisia, à

perstição, à tirania. e a cólera se mamem mesmo depois que se

desvaneceu a memória dos faros"'.

Mas multiplicam-se também os exemplos, e esse é um pro

blema mais complexo, de idealização do passado para adaptar

mais solidamente as lutas populares contra os proprietários e

derosos, No século XVI!, a seita radical dos Lewllers (niveladores),

em luta contra a monarquia burguesa inglesa, busca\'a numa ima

gem ingênua e idealizada da democracia saxônica primiti\'a, ante

rior à conquista normanda, a ira em relação aos senhores e aos ri

cos. Os Taiping da China, no século XIX, apoial'am-se, em sua luta

contra o feudalismo chinês e a dominação, numa imagem idealiza

da da dinastia Zhou (primeiro milênio a.C), apresentada como

um a sociedade agrícola igualitária.

Durante a RevoluçãO Francesa, as imagens da república de

sempenhavam o mesmo papel: roupas romanas ou, ainda mais,

pseudo-romanas, prenomes ("Graco" Babeut), vocabulário políti

co, pintura história de D a \ " i ~ . A burguesia e seus aliados busca

vam nessa romanidade teatral armas contra a cultura monárquica

e cristã, parte integrante do Antigo Regime a se abater. O que con

tava era o vigor do passo político e não o rigor histórico. O que se

queria era demonstrar que a nova sociedade era legítima, que ela

podia ambicionar uma nova ordem com pretensões universais (q.s

"repúblicas-irmãs" do Diretório, idade de ouro da humanidade re

volucionária) porque podia invocar precedentes republicanos mais

antigos e mais respeitáveis que a monarquia feudal francesa.

A função da história na prática social das classes dirigentes

era relativamente fácil de definir (capítulo 2). Mas a relação ativa

que as lutas populares estabeleceram com seu passado é muito

mais complexa. Daí o caráter de inventário descritivo que têm os

exemplos que acabaram de cer apresentados: Quebec e os índios

• Carta de Diderot a Volta ire.

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3. HISTÓRIA E PRÁTICA SCX::IAL NO CAMPO DAS LUTAS POPULARES 45

dos Estados Unidos, os occitanos e os aborígines, as Iutas de liber

tação nacional do século XIX e as lutas operárias contra o patrona

to francês. Seria necessário um esclarecimento teórico, o qu e vai

além do quadro do presente ensaio. As questões são numerosas e

cabe primeiramente àqueles que participam dessas lutas respondê

las. Qp,ªssado não tem maior peso para as lutas marginais e mino

ritárias (ou seja, a maior parte dos exemplos precedentes) que paraas lutas "maiores"? A relação com o passado é tão importante para

os operários quanto para os camponeses (Taiping) ou os artesãos. (Levellers)? Em qu e caso o apelo ao passado ajuda sobretud. o a. . -

'í:'burguesia a reunir as massas ao seu redor (por exemplo, com os

movimen."tós nacionais da Europa no século XIX) t: em que caso se

'. trata de um passo:-autenticamente popular? C9_mo d i f e r e D ~ i _ ª - L Q ~r : 2 ~ _ 0 _ ? __ i s t ó r i c o s _ 5 ~ ~ i f u s o s no seio do PO\"O e aqueles que a burguesia

,.fabrica em seu próprio benefício?

Todas essas questões devem ser abordadas no terreno em

que se colocam realmente, o da eficácia política, e não o da erudi

ção. Se é preciso questionar os sucessos fáceis e fráge is que propor

cionam as imagens históricas artificais, é porque esses sucessos

ocultam os erros, as lacunas, as armadilhas políticas, cuja inexati

dão "científica" é apenas um sinal exterior.

!\ia medida mesmo em que subestimavam os antagonismos

de classe, aí compreendidos os da longíngua Inglaterra saxônicJ,

os Levellers utopistas esta\'am mal preparados para lutar contra àS

classes exploradoras do século XVII inglês. Porque aceitavam sem

críticas um a imagem idealizada da República romana, as forças

populares da RevoluçãO Francesa estavam malpreparadas para

enfrentar a burguesia ascendente, ávida por desviar em seu exclu

sivo benefício o movimento revolucionário contra a monarquia

feudal. Quando se satisfazem com uma imagem idílica da Occitâ-

nia anterior à conquista pelo norte, os militantes occitanos estão .-s_

malpreparados para disputar a direção de seu movimento com

notáveis, os quais são muito mais zelosos em mudar suas relaç6es

com Paris que em mudar suas relações com os trabalhadores occi

tanos. E a esquerda occitana, consciente desses equívocos e dessas'

armadilhas, exige" que se enterre de vez o conde de Toulouse Rai

mond VII" em vez de manter sentinela perto de se u caixão. Ela

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46 DF\TMOS 1AZn: 1 AI-IUL,\ I>'ASA DO !'AS:-'AQO

denuncia não apenas (l mito centralista de uma França eterna e in

discutíveL mas

a mitologia. criada pelos OCCltanos [ .. , de uma idade de ouro, tão

falsa quanto a precedente e perigosa porque igualmente nacionalis-ta , que nasce com a canção da Cruzada dos Albigenses, para reapa

recer com Mlstral e Companhia.

O mito do século XIII occitano tem duplo papel. Consolar um

pouco as pessoas que não se recuperaram da derrota de Muret,

1213, e que, na impossibilidade de fazer uma real Occitânia em seu

século, debruçam-se sobre um sonho-ópio. Mas também fornecer

a imagem de uma sociedade democratica burguesa (tolerância,

igualdade, cultura refinada): ideologia de pequenos-burgueses de

sub-prefeitura, sem alcance em relação à história. É preciso liqui

dar esses sonhos. que servem apenas para obscurecer o sentido da

jura occitana. a qual se desenvolve no presente e não no p a s s a d o ~ ' .

Aqui, como sempre, o campo é político. ,?rigor científico não

uma exigência intelectual abstrata, e sim uma das condições de

análise política coerente. "Aquele que cria falsas lendas revo

lucionárias para o PO\·o, aquele que o agrada CO m histórias melo

diosas, é tão criminoso quanto o geógrafo que elaborasse mapas

mentirosos para os na\·egadores.**"

P:;,ra.jls forças populares em luta pela libertação nacional e

social, o passado é, portanto, um objeto político, um tema de luta.

Mas ele é, ao mesmo tempo, o lugar de uma ruptura, a ocasião pa

ra· afirmar que deve começar um mundo que seja qualitativamente

novo. tanto, é preciso se excluir do campo histórico clássico e,portanto, de sua cronologia. O qualitativo afirma assim sua prima

zia sobre o quantitati\·o, o descontínuo sobre o contínuo. Sente-se

que é preciso partir novamente "d o zero". É exatamente isso que

significava o slogan "ano 1" lançado por Charlie-Hebdo em 1973, do

qual era de bom tom rir, tanto entre os políticos "responsáve is"

quanto entre os intelectuais "razoáveis". No entanto, muitos movi-

• Forabanda. Bulletirn occitan de Paris. n. 3

•• Lissagaray. Hlstoirc de la commune. Ed. brasileira: HIstórÍLl da Comuna de Paris.Trad. Osmar Pimentel e Afranio Zucol oto. São Paulo, Cultura Brasileira, sem data.

3 · HISTORIA L P!{/\TIC,\ S<->CIAL·;-";O CAMPO DAS LUTAS POPULARES 47

mentos revolucionários proclamaram seu "ano I" , afirmando as

sim sua ruptura com a ordem estabelecida através de uma ruptura

do tempo histórico. É algo que as massas populares compreenderam

e compreendem i m e d i a t ~ m e n t e . A república francesa em 1792 e a

república chinesa em 191:-: instituíram novos calendários, sinal da

decadência da s monarguias seculares que ha\'iam se apropriado

da própria estrutura do Tempo, sinal do advento de uma nova era.

Na China, desde 1949, o calendário não foi modificado por razões

práticas, ma s realçou-se o advento de uma nova era (Shidai, termo

quase cósmico) , o fato de que, desde a Libertação de 1949, "os

tempos mudaram", como dizem os camponeses.

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5Inver ter a relaçãopassado ~ presente

Desenrolar a bobina ao contrário - "Fazer história" no campo ~ Opresente

ajuda a "compreender o passado'" - O presente toma mais nítido o periil do pas

sado - O Tfwritil1g é necessário - Uma relação operacional com a Idade \-!édia:

Dario Fo - AmJm Dada como historiador critico

Essa inversão deriva da definição

da história como relação ativa com o passado. "O homem se pare

ce mais com seu tempo que com seu pai." Mare Bloch, que gostava

de citar esse provérbio árabe, polemizou vivamente com o qu e ele

chama "o ídolo das origens". É preciso, diz, "desenrolar a bobina

ao contrário", partir do conhecido, po r exemplo, da atual paisa

gem rural no Norte da França, para identificar os fios qu e devemser, a seguir, novamente enrolados ao longo do tempo. Bloch (Apo-

logia da história) insiste, portanto, no valor insubstituível da expe

riência cotidianamente vivida, naquilo que ele chama "o perpétuo

contato com o hoje":

Eu havia lido várias vezes, havia freqüentemente narrado

relatos de guerra e de batalha. Conhecia verdadeiramente. no

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5 • INVERTER A RELAÇÃO PASSAIX) - PRESEl\ITE 57

pleno sentido do verbo conhecer, conhecia por dentro antes de

te r experimentado a atroz náusea, o que são para um exército

um Cijrco, para um povo a d e r r o t a ~ [ .. J Em verdade, consciente

mente ou não, é sempre de nossas experiências cotidianas que,

para realçá-Ias onde são necessárias cores novas, tomamos em

prestados em última análise os elementos que nos servem para

reconstituir o passado. [ .. J O erudim que não tem o gosto de

olhar ao seu redor nem os homens, nem as coisas, nem os

acontecimentos, merecerá talvez a designação de antiquário, eagirá sabiamente ao renunciar à designação de historiador.

Cada um, se reflete sobre isso, te\'e a experiência do que tem

de estimulante esse contato com o presente para agudizar a sensi

bilidade histórica. A visita que fiz em 1967 a Alma-Ata nã o foi

apenas um a visita no nada histórico. Enquanto o nome dessa ci

dade, nos cinco continentes, e\'OG1 o de Trótski, que foi ali banido

antes de se u exílio, a menção a seu ilustre hóspede não evocava

absolutamente nada, apesar de todas as tentativas de conversa

ção; ocultação sistemática pelos mais \'elhos, ignorància total da

nova geração. Mas Alma-Ata ainda é outra coisa. É um a ampla cidade situada ao pé dos prestigiosos montes' . :\ltai, e onde o pró

prio lugar proporciona uma aguda sensação, quase física, do iso

lamento político do proscrito de 1930. . \0 mesmo tempo em que,

do outro lado dessas montanhas, na China tão próxima, se desen

CadeaY3 a primeira experiência concreta e coletiva de um a revolu

ção comunista que rompia com o dogmatismo burocrático da Ko

mintem, graças à linha de massa e à mobilização camponesa. Dos

dois lados dos montes Altai, por volta de 1930, esboçavam-se

duas linhas de oposição e desafio ao stalinismo, duas linhas in

conciliáveis e que assim se manti\'eram: °minoritário se obstinan

do corajosamente em suas análises intelectuais de oposição - ou

a luta coletiva para promover J. revolução pela base, desafiando a

Komintem nos fatos (recusa de \1ao em atacar as grandes cidades

em 1931, como solicitava Moscou). No local, sente-se isso com

uma acuidade quase obsessora.

Da mesma forma, minha temporada de 1969 nas zonas de

ghost fanning (agricultura-fantasma) da NO\'a Inglaterra, ao norte

de Boston, colocava com a mesma força angustiante todo o proble

ma histórico da regressão. Hoje, não sao mais qu e vastas florestas,

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58 OrVEr>.10::' r - r \ Z E f ~ T /\.I3ULA RASA DO PASSADO'

com a rala implantação da alta burguesia universitária de Harvard

para o {oeek-cnd. Vilas prósperas desde antes da independência

americana precisaram ser abandonadas porque não puderam sustentar a competiçào com a produção (erealHera massi\'a do MeioOeste, a partir do fim do século XIX, A floresta, antes desbra\'ada

pelos puritanos, reconquistou progressi\"amente tudo, deixando

aqui e ali o sinal esquecido de uma \"ida camponesa que fora tãoati\'a quanto os campos da Cornualha ou da Normandia: um caminho \'azio, uma mureta de pedra, os traços de um curral, umQ ma

cieira reconduzida ao estado selyagem .. É estranho que o trabalho "de campo", tão na moda entre os sociólogos, 05 lingüistas, osantropólogos, a ponto de constituir a etapa essencial e decisi\'a de

uma "bela" carreira universitária ( A h ~ sua missão na Nova 'Guiné!), seja desdenhado a esse ponto pelos historiadores. Michelet,toda\'ia, disse tudo o que ha\'ia extraído de seus passeios a pé através da França e Bloch de suas conversas com camponeses ou secre

tários de prefeituras..Os exemplos de que nosso conhecimento do passado é sem'

- - _ · - ~ · ~ - r ~ - - · - ' · __ ·_·····"· .- . ,pre tributário do mundo no qual \'i\-emos 'se multiplicam, tanto

no nível da produção "científiêa,,'cõmo-n-õ"das obras para o gran

de público. Os trabalhos franceses de erudição sobre as Cruzadas

e os "Estados francos da Síria" conheceram duas fases distintas de

prosperidade, como sabe todo estudante de agrégatio/l que desen

terrou sua bibliografia: sob Napoleão m, que tinha enviado tro·

pas para o Líbano, e po r volta de 1930/1940, na época do "man

dato" f:-ancês nessas regiões. Conscienteme. nte ou não, tratava-se

de um a operação política: arqueólogos, numismatas, paleógrafos

e historiadores concorriam para dar sua "legitimidade histórica"

a ess·as iniciativas do imperialismo francês, Da mesma forma, ésob Gambetta, na bela época do "oportunismo", que os estudos

eruditos sobre Mirabeau floresceram: a filiação política entre osdois personagens era manifesta, as exigências do presente se exerciam diretamente. Essas exigências podem também se exercer sob

a forma mais elementar da moda: um manual universitário sobre

Idade Média, numa reedição após 1968, acreditou-se obrigado aacrescentar uma seção sobre os marginais, "para estar em dia" , .Apressado, o autor se contentou em retomar a célebre descrição

da Corte dos Milagres de Paris em Notre-Dame'de Paris, de V. Hu-

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5 • 1 ! > " : \ ' E R T E r ~ A RELAÇ"Ã0 PASSADO - PRESENTE 59

go, sem observar que essas páginas se baseavam numa documen

tação do século XVII ..

O elo com' as preocupações de hoje é freqüentemente mais

explícito. Já se citaram os gauleses e os caubá;s .. ' ~ b J . i ~ a ç ã o . recente de um li\'ro sobre A mulher cclta só tem sentido se nela se vê o

refl'exõci"ã"atüãl ~ ~ r ~ n c a d a do movimento das mulheres. Nosso estoque de conhecimentos escritos sobre os celtas não variou desde

os romanos, e sem dúvida jamais variará, mesmo que as escava

ções arqueológicas permitam um contato mais concreto_ No entan

to, é hoje, e nã o no século XVIl (época em que se conheciam muito

mais os antigos historiadores romanos), que esse livro foi escrito_

Esses exemplos sublinham o papel fecundante e estimulante

do presente. Mas esse "contato perpétuo com o hoje", como diz

Mare Bloch, todavia, não chega ainda a inverter realmente a relação passado-presente. O titulo do capítulo de Bloch que acabou de

ser citado é aliás "Compreender o passado pelo presente". Com-·

preender o passado, isso se manteria então corno o objetivo princi

pal do historiador! O r ~ c u r s o ao presente seria apenas um truque

de oficio, um fio pedagógico ou heurístico, um meio hábil de en- o:

contrar as boas pistas e também de tomar o passado "interessan

~ ~ i ~ : . . . no máximo um traço de consciência profissional. "Se eu seilhes falar desde logo das lutas nos guetos negros dos Estados Unidos" dizia uma historiadora prudente, "chegarei apesar de tudo ainteressar 'meus' estudantes em história da África no século XIX, aconduzi-los até onde eli quero [ . .]" Mas é preciso ir mais longe, épreciso romper em profundidade, é preciso afirmar como princípio '

o primado do presente sobre o passado. E os historiadores não \gostam disso,.

Não é suficiente, então, dizer como Daniel Guérin, e como

B10ch antes dele, que o presente ajuda a compreender o passado -po r mais útil que seja esse passo, por mais inabitual qu e ele sejapara a maior parte dos historiadores:

[.,,] As lutas de classe do presente e as revoluções dopresente projetam uma nova luz sobre as lutas de classe e as revoluções do passado.

Guizot, conservador como ele foi, tinha visto algo disso.No prefácio de sua História da revolução na Inglaterra, apóia-se na

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60 DEVEMOS FAZER TÁBULA RASA DO PASSAQO?

experiência da Revolução Francesa para afirmar que "a primeira

não teria sido jamais tão bem compreendida se a segunda não

tivesse eclodido". E acrescenta que "sem a Revolução Francesa.

sem as vivas luzes que ela espalhou sobre a luta dos Stuart e do

povo inglês", as obras do século XIX consagradas à Revolução

Inglesa "quase não possuiriam os méritos novos que as distin-

guem" [ .. ]Apenas retomaremos a argumentação de Guizot e a

transporemos para o presente. Assim como a Revolução Francesa permitiu compreender melhor a Revolução Inglesa, a Re

volução Francesa toma novos contornos graças às "y'l''(as luzes"

que as revoluções do século XX acabam de espalhar sobre a lu

t a de classes - a inda embrionária - q ue . e m 1793. opunha

burgueses e d e s c a m i s a ~ o s . Temos,hoje a "vantagem" em rela

ção aos historiadores da Revolução Francesa. nossos predeces-

sores, de "poder olhar e julgar" essa revolução a partir de expe

riências como as revoluções russas de 1905 e 1917. a revolução

alemã de 1918. a crise italiana de 1920, a revolução espanhola

de 1936-1939 e. para não omitir a mais recente. aquela que não

apenas estudamos mas vivemos. a gral'1de batalha social de junho

de 1936 na França [ . . ]

Tomemos um exemplo: o da democracia de tipo comunalou soviético. Por um lado. a Comuna de Paris prefigura o sovie

te russo, e os bolcheviques se debruçaram sobre as experiên

cias de 1793 e 1871 para entenderem melhor o sentido d a q ~ i l oque se desenrolava sob seus olhos; mas. reciprocamente. a ex

periência dos sovietes de 1905. e sobretudo de 1917. ajuda-nos

hoje a reencontrar. na Comuna de ! 793. o embrião do soviete

dissimulado sob a ganga (engrossada propositalmente pelos his

toriadores) da democracia parlamentar b u r g u e s a ; ~ .

É preciso, e isso confunde ainda mais nossos hábitos, tomar

consciência do fato de que a ret1e?,ão histórica é regressiva, que ela

normalmente funciona a partir do presente, lIa contracorrente d0j711-

xo do tempo, e que essa é sua razão de se r fundamental. Os sobrevi

ventes da gigantesca carnificina interimperialista de 1914-1918 aca

bavam de viver uma guerra de proporções espantosas: eles

• CUERl:-.i, D. La lutfe des classes SQ!lS la Premiá!! Rip!lbliq!/e. Ed. portuguesa: A l!lta de

c/asses em França na Primeira República. Trad. Antonio Vasconcelos. Lisboa, A Regrado Jogo, 1977.

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5 • INVERTER A RELAÇÃO PASSADO - PRESENTE 61

espontaneamente a chamaram de Grande Guerra; questão de di-

mensão. Quando o conflito de 1937-1939-1941-1945 (pois seu ponto

de partida varia segundo os continentes) se estendeu ao mundo in

teiro, foi esse caráter planetário que surpreendeu. De imediato, foi

se retrospectivamente sensível ao que já havia de mundial no con

tlito precedente. A Segunda Guerra Mundial tinha sido a ocasião

para melhor caracterizar a primeira, freqüentemente identificada

em relação à segunda, O termo Grande Guerra está completamen-

te esquecido hOle.

Quando convocaram, em S de março de 1975, para boicotar o

. Ano Internacional da Mulher organizado pela ONU, as militantes

feministas francesas explicitamente apelaram para o passado: não

comemorar dates-gadgets, mas reatar com o passado, para vi\'er

mais intensamente o presente:

Em 1972. a ON U decreta o Ano Internacional da Mulher.

Em 1974, o governo de Giscard ~ r i a uma secretaria de Estado

da Condição Fem·lnina. Em 1975: operação integração das mu

lheres. recuperação de nossas lutas. censura sobre nossa histó

ria: Em 8 de f!1arço de 1857, uma das primeiras greves de mu

lheres nos Estados Unidos opõe operárias têxteis à políCia de

Nova York. que carrega as armas e dispara. Em 8 de março de

1910. o Congresso Internacional de Mulheres Socialistas. por

proposta de Clara Zetkin. convoca uma jornada de ação inter-

nacional. Em 8 de março de 1917,(23 de fevereiro do calendário

russo). a revolução começa na Rússia através de uma manifesta

ção de mulheres/'/Em 8 de março de 1943. mulheres organizam

na Itália uma manifestação contra o fascismo masculino ..

Em 8 de março' de '1975. é com essa história de luta de

mulheres que nós reatamos. Não para comemorar mas para arr-

mar que n o s s ~ - h T S ( o r i a não esperou. para começar. um decreto

da ON U ou os discursos de Giroud. Em 8 de março de 1975.

nos recusaremos a deixar-nos aprisionar num ano-gadget. num

programa. num quadro. numa data. É um momento de nosso

combate cotidiano. de nossa solidariedade co m as mulheres em. *uta em todos os palses [ .. ]

.. Panfleto das or ganizaçoes feministas francesas (mar. 1975).