chateauraynaud a prova do tangível

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A prova do tangível. Experiências de investigação e o surgimento da prova. Francis Chateauraynaud “A prova não tem por única finalidade liberar uma proposição da dúvida; ela permite, além disso, penetrar a dependência relativa das verdades. Uma vez persuadida de que um bloco de rocha é inamovível porque tentou-se sem sucesso fazê-lo mover, pode-se perguntar o que o sustenta tão solidamente” G. Frege. Les fondements de l’arithmétique [Os fundamentos da aritimética], (1884), Seuil, Paris, 1969, p. 126. O que fazemos quando procuramos elaborar provas 1 ? A questão parece conduzir inevitavelmente na direção da epistemologia. Pode-se, contudo, conceber um outro espaço de raciocínio, nos interessando pelos modos pelos quais os mais diversos protagonistas enfrentam a problemática da prova no curso de suas investigações 2 ou de suas expertises. No uso ordinário, o termo prova vale, primeiramente, como anúncio, como promessa de que alguma coisa será mostrada, de que se pode mesmo “tocar com o dedo”. A prova vem atender a uma expectativa. Se é possível procurar provas para si, a fim de se certificar da racionalidade de um ato ou de um julgamento, essa expectativa é frequentemente coletiva e obriga a ir além do modelo do investigador solitário que age segundo seu “faro” e sua “convicção íntima” 3 . Mas a noção de expectativa não é suficiente, pois uma investigação pode produzir novos dados e novas interrogações. Concebida como um processo aberto, a procura de provas trabalha de modo conjunto as expectativas e as surpresas, os pontos de referência coletivos e as intuições singulares. Não se trata apenas de um ato de verificação, confirmando o que a princípio enunciava uma proposição ou um modelo (Granger, 1992; Berthelot, 1998). O tempo da 1 Nota do tradutor: no português, os distintos sentidos contemplados pelas palavras épreuve e preuve estão contidos na palavra portuguesa prova, razão pela qual optamos pela tradução de ambas por essa última. Há um primeiro sentido próximo da preuve que diz respeito à evidência, “fato, testemunho, raciocínio suscetível de estabelecer de maneira irrefutável a verdade ou a realidade de (alguma coisa)”. O outro sentido da palavra prova, que é mais próximo da palavra francesa épreuve, refere-se a “qualquer experimento para verificar ou testar a qualidade de uma coisa”. Nesse segundo sentido, o sentido da palavra prova aproxima-se da noção de provação, de teste, de verificação, de prova esportiva, expressando a ideia do momento no qual as coisas (entidades humanas e não humanas) são colocadas à prova ou simplesmente reavaliadas. 2 2 Nota do Tradutor: Optamos traduzir a palavra enquete por investigação. Essa opção se justifica por três razões. Primeiro porque a palavra enquete, no português, remete à sondagem de opinião, surveys, etc., o que, naturalmente, poder levar a uma série de mal entendidos. A segunda opção seria a palavra inquirição, mais próxima da tradução inglesa da palavra: inquiry. Apesar de boa, essa tradução seria, nos parece, excessivamente estranha ao leitor leigo, e levaria a uma noção excessivamente técnica de uma modalidade restrita da investigação. Por fim, ainda que a palavra investigação possua uma forte carga semântica do mundo policial, ela nos parece a mais próxima do espírito do conceito, porque remete a uma atividade prosaica que pode ser referida tanto à ação do detetive quanto a do cientista ou do homem comum que, diante de uma indeterminação qualquer, age e reflete na busca de sua resolução. 3 Esse modelo foi por muito tempo associado ao “paradigma indiciário” descrito por C. Ginzburg (1986).

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Texto sobre sociologia das controversias

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  • A prova do tangvel. Experincias de investigao e o surgimento da prova.

    Francis Chateauraynaud

    A prova no tem por nica finalidade liberar uma proposio da dvida; ela permite, alm disso, penetrar a dependncia relativa das verdades. Uma vez persuadida de que um bloco de rocha inamovvel porque tentou-se sem sucesso faz-lo mover, pode-se perguntar o que o sustenta to solidamente G. Frege. Les fondements de larithmtique [Os fundamentos da aritimtica], (1884), Seuil, Paris, 1969, p. 126.

    O que fazemos quando procuramos elaborar provas1? A questo parece conduzir

    inevitavelmente na direo da epistemologia. Pode-se, contudo, conceber um outro espao de raciocnio, nos interessando pelos modos pelos quais os mais diversos protagonistas enfrentam a problemtica da prova no curso de suas investigaes2 ou de suas expertises. No uso ordinrio, o termo prova vale, primeiramente, como anncio, como promessa de que alguma coisa ser mostrada, de que se pode mesmo tocar com o dedo. A prova vem atender a uma expectativa. Se possvel procurar provas para si, a fim de se certificar da racionalidade de um ato ou de um julgamento, essa expectativa frequentemente coletiva e obriga a ir alm do modelo do investigador solitrio que age segundo seu faro e sua convico ntima3. Mas a noo de expectativa no suficiente, pois uma investigao pode produzir novos dados e novas interrogaes. Concebida como um processo aberto, a procura de provas trabalha de modo conjunto as expectativas e as surpresas, os pontos de referncia coletivos e as intuies singulares. No se trata apenas de um ato de verificao, confirmando o que a princpio enunciava uma proposio ou um modelo (Granger, 1992; Berthelot, 1998). O tempo da 1 Nota do tradutor: no portugus, os distintos sentidos contemplados pelas palavras preuve e preuve esto contidos na palavra portuguesa prova, razo pela qual optamos pela traduo de ambas por essa ltima. H um primeiro sentido prximo da preuve que diz respeito evidncia, fato, testemunho, raciocnio suscetvel de estabelecer de maneira irrefutvel a verdade ou a realidade de (alguma coisa). O outro sentido da palavra prova, que mais prximo da palavra francesa preuve, refere-se a qualquer experimento para verificar ou testar a qualidade de uma coisa. Nesse segundo sentido, o sentido da palavra prova aproxima-se da noo de provao, de teste, de verificao, de prova esportiva, expressando a ideia do momento no qual as coisas (entidades humanas e no humanas) so colocadas prova ou simplesmente reavaliadas. 22 Nota do Tradutor: Optamos traduzir a palavra enquete por investigao. Essa opo se justifica por trs razes. Primeiro porque a palavra enquete, no portugus, remete sondagem de opinio, surveys, etc., o que, naturalmente, poder levar a uma srie de mal entendidos. A segunda opo seria a palavra inquirio, mais prxima da traduo inglesa da palavra: inquiry. Apesar de boa, essa traduo seria, nos parece, excessivamente estranha ao leitor leigo, e levaria a uma noo excessivamente tcnica de uma modalidade restrita da investigao. Por fim, ainda que a palavra investigao possua uma forte carga semntica do mundo policial, ela nos parece a mais prxima do esprito do conceito, porque remete a uma atividade prosaica que pode ser referida tanto ao do detetive quanto a do cientista ou do homem comum que, diante de uma indeterminao qualquer, age e reflete na busca de sua resoluo. 3 Esse modelo foi por muito tempo associado ao paradigma indicirio descrito por C. Ginzburg (1986).

  • administrao da prova no pode elidir o tempo, muito mais longo, da inveno dos meios probatrios. A partir de trabalhos sobre a expertise (Bessy e Chateauraynaud, 1995), primeiramente, e em seguida sobre os alertas e os riscos coletivos (Chateauraynaud e Torny, 1999), examinamos os paradigmas da investigao de que dispem os atores quando procuram produzir fatos tangveis. Esse artigo reinterroga os elementos de uma sociologia da prova capaz de operar alm da oposio clssica entre positivismo e relativismo.

    A tangibilidade O que um fato tangvel? Se a noo de tangibilidade raramente utilizada, a

    expresso prova tangvel tem o mesmo valor que aquelas como prova cientfica, objetiva ou formal. Mas as qualificaes usuais revelam uma pluralidade de configuraes4. Assim, contrariamente noo de prova formal, a ideia de prova tangvel convoca um agir perceptivo, do mesmo modo que a de prova direta ou, melhor ainda, de prova palpvel. Dado que os atores so dotados de representaes e interesses divergentes, considerado como tangvel tudo o que resiste s variaes perceptivas, instrumentais e argumentativas. na elaborao de provas que se opera o ajustamento coletivo das preenses5 sobre o mundo sensvel e o agenciamento dos operadores de factualidade necessrios para a produo de um senso comum. Ao designar a possibilidade de uma atestao durvel, capaz de resistir s variaes, a tangibilidade fornece um conceito ideal, que permite levar a srio as operaes efetuadas para evidenciar fenmenos e sair do crculo de interpretaes (Chateauraynaud, 1996).

    Entretanto, a questo da prova no se coloca continuamente na vida quotidiana. A

    vida ordinria no possvel seno porque a questo da verdade ou da prova regularmente suspensa. Um sem nmero de procedimentos prticos permitem tanto por 4 Um matemtico nos confiou que para ele havia trs formas de prova: 1) Exibir o objeto ou o fato; 2) dela dar um plano convincente de construo; 3) demonstrar que ele no poderia no acontecer ou existir. 5 Nota do Tradutor: A palavra preenso foi a que mais se aproximou do sentido original da palavra prise tal como Francis Chateauraynaud a utiliza no francs. Na definio lexical, prise refere-se ao de pegar alguma coisa, geralmente com a mo, com um outro rgo ou com um instrumento. E preenso, tal como definida pelo Houaiss, diz respeito ao ato ou efeito de agarrar, pegar, segurar. No sentido trabalhado por Chateauraynaud, o conceito prise aponta para a aderncia que existe na relao do organismo com o ambiente ou dos corpos com as dobras da matria. O conceito prise se situa dentro de um continuum: se no h nenhuma preenso, ento a realidade flutua; se ela excessiva, total, no h movimento, mas aprisionamento. Ento para poder bem operar sobre o real o organismo, por vezes com o auxlio de dispositivos, precisa de uma boa pegada, quer dizer, de uma aderncia suficientemente boa. O exemplo que Chateauraynaud nos d, em sua obra escrita com Christian Bessy, Experts et Faussaires (1995), faz aluso escalada: a boa pegada aquela que, no contato com as dobras da montanha, alcana a aderncia ideal para prosseguir no curso de ao minimamente controlado. Se a aderncia excessiva, a mo prende e o escalador fica aprisionado; e se no h nenhuma preenso, ele desliza, flutua e simplesmente cai.

  • fim emergncia de incertezas quanto forjar interpretaes locais que limitam os riscos de especularidade ligado a toda prova de verdade (Pollner, 1991). Mas os procedimentos de enquadramento mais frequentes no se dissociam daqueles colocados em prtica pelos agentes especialmente designados para institurem as provas. Mltiplas investigaes, suscitadas por problemas prticos, utilizam procedimentos de aproximao e de verificaes cruzadas que encontramos sob uma forma mais organizada nas investigaes cientficas ou jurdicas. Qualquer que seja o contexto inicial, a primeira experincia anunciada pela investigao a da variao. A investigao no se descreve em uma lgica puramente proposicional, de natureza disjuntiva (verdadeiro/falso), ou segundo a distino entre conhecimentos confiveis e crenas errneas (Dewey, 1993). Ela se abre sobre uma srie de provas nas quais se desdobram mltiplos espaos de variao. As propriedades pertinentes dos seres, dos dispositivos ou dos acontecimento se revelam gradualmente resistindo s variaes produzidas pelos protagonistas. As formas de atestao que da resultam tornam possvel um encerramento das disputas, marcando os momentos de verdade a que os protagonistas no podem evitar.

    Mas a questo do que encerra a disputa complexa. A soluo varia segundo o tipo

    de princpio de realidade privilegiado. Em sociologia, vrias construes tericas da prova de realidade encontram-se em concorrncia. Primeiramente, h o interesse bem compreendido. Essa soluo, ligada geralmente ao individualismo metodolgico, se encontra tambm nos socilogos das cincias para os quais os fatos esto envolvidos em dispositivos de interesse (Callon, 1989): os fatos tangveis so aqueles que tornam necessrios o desenvolvimento de um espao de clculo e de interesse. Uma verso mais poltica, como a de Bourdieu, relaciona a factualidade imposio de legitimidade - forma de autoridade qual se submetem os agentes, e que mistura fora e legitimidade (Lazzeri, 1993). Relacionadas com um conjunto de estratgias e manipulaes, as provas no podem ser seno procedimentos de persuaso (Perelman e Olbrechts-Tyteca L., 1988). para escapar a essa lgica da suspeita, a que frequentemente os prprios atores aderem, que uma escola de sociologia se esforou para juntar a prova de realidade ao carter justo de uma situao e de um dispositivo, a sua congruncia a um princpio superior comum ou com uma ordem legtima (Boltanski e Thvenot, 1991). A prova aqui concebida como a aproximao de estados de coisas e de princpios de equivalncia. Mas a preocupao em compreender a experincia prtica dos atores pode exigir uma abordagem mais fenomenolgica, atenta s modalidades sensoriais do contato com o mundo (Gil, 1993). Assim, a noo de tangibilidade supe um momento fenomenolgico. Ao designar as modalidades de passagem da dvida evidncia compartilhada, ela abre um continuum entre as capacidades perceptivas em jogo no mundo sensvel e os modos de provas mais instrumentados. Pois se nossos atores possuem corpos e se eles no creem sempre no que veem ou no que tocam, eles se esforam para ajustar suas percepes e

  • suas representaes por meio de experincias marcantes que funcionam como garantias de autenticidade. Portanto, podemos abordar a prova sem reduzi-la a uma negociao de interesses ou a um efeito de autoridade, nem coerncia de uma representao do justo ou uma simples certificao presencial: no jogo entre representaes coletivas e percepes no mundo sensvel, espaos de clculo e instncias de julgamento, que os atores elaboram preenses comuns que subentendem o acordo sobre a factualidade.

    Porque eles sabem que as investigaes so possveis, os atores podem superar o

    hiato que separa a ideia de um mundo incerto e a slida ancoragem no senso comum6. A noo de transformao desempenha aqui um papel importante: para os atores, os ambientes e os dispositivos esto sujeitos a transformaes, e a solidez de suas preenses sobre o mundo depende mais de um domnio dos processos do que das eternas tabelas de verdade. Ao falarmos da dinmica do senso comum estamos longe de uma simples palavra de ordem terica: provas marcantes nos constrangem a rever regularmente nossas certezas e nossos conhecimentos, com nveis de engajamento fortemente diferentes segundo os domnios em questo. Em quem se pode confiar, em quais signos dar crdito quando no dispomos de nenhuma competncia sobre um dossi? Podemos ou devemos verificar tudo o que fazem e dizem investigadores ou os experts? E como tratar os casos onde as provas falham ou demoram para ser admitidas? Affaires e crises recentes, do sangue contaminado ao da mudana climtica, colocaram em evidncia a inveno de procedimentos transitrios, ligados ao carter gradual da tangibilidade. O princpio de precauo, to frequentemente invocado, provocou uma reverso da antiga ordem lgica da prova e da ao: a partir de ento, uma ausncia de prova no deve mais conduzir absteno, mas favorecer, ao contrrio, a ao. Longe de esvaziar a questo do tangvel, essa configurao lhe d ainda mais peso: preciso identificar ainda em vias de surgimento signos ambguos, sinais falhos, cuja tangibilidade ainda incerta (Chateauraynaud, 2003). Face s entidades fugidias ou processos imperceptveis que no do nenhuma preenso ao senso comum, sobre o que se apoiar para se forjar uma convico? A autoridade, o hbito, o clculo, a expectativa de resoluo futura, todos esses recursos intervm para compensar a ausncia de prova tangvel. Em certos casos, eles permitem deles dispensar, de fazer como se - por exemplo de fazer como se a ausncia de um incidente nuclear significativo nos ltimos anos estabelecesse um perfeito domnio dos riscos. Mas tais aproximaes expem os protagonistas s repercusses, ao retorno adiado das provas de realidade por um tempo reprimidas.

    Na ausncia de um dispositivo que permita experimentar o conjunto de signos, 6 Para um pragmatista como William James, existe de fato um mundo objetivo que precede a experincia que dele fazemos. Mas essa primordial, pois o encerramento da incerteza ou da inquietude no vem de representaes, mas de choques provocados pela experincia: real o que resiste na experincia (Lapoujade, 1997)

  • deixados ao livre jogo das interpretaes locais, certos fenmenos podem esperar longos anos antes de tornarem-se tangveis. Assim, no dossi do amianto, descobriu-se apenas no fim dos anos 1990 que a nocividade das fibras havia produzido uma hecatombe cujos efeitos se faro ainda sentir durante dcadas. Pode-se dizer que o risco era mais real do que se pensava? De que so feitas as escalas argumentativas sobre as quais pode variar, a esse ponto, o nvel de realidade dos fenmenos? (Ducrot, 1994) As provas de tangibilidade engajam sries de experincias em permanente transformao. Os protagonistas supem que ao longo das investigaes, as coisas tornar-se-o cada vez mais tangveis, mas diversos contra-exemplos mostram que no h resoluo automtica de enigmas. O evolucionismo cientfico deve por vezes ceder lugar constatao de uma incompletude dos sistemas de prova. No caso da controvrsia de Glozel, arquelogos srios, equipados com Carbono 14 e com termoluminescncia, jamais conseguiram encerrar a disputa, nascida nos anos 1920, sobre a autenticidade do lugar (Bessy et Chateauraynaud, 1995). Temos, assim, em uma extremidade do continuum: o polo dos enigmas, face aos quais os instrumentos mais robustos no puderam estabelecer uma prova definitiva; do outro lado da extremidade, h provas deliberadamente jogadas para o futuro. Por exemplo, a questo da vida em Marte no cessa de ser relanada, reformulada, deslocada, e se o planeta vermelho a partir de agora acessvel, o retorno eventual de amostras marcianas muda os termos das controvrsias, suscitando emisses de alarme a propsito dos riscos de um embarque de bactrias marcianas.

    Espaos de variao e provas de verdade Para desenvolver uma sociologia da prova, reunimos um corpus de affaires e de

    controvrsias que tornam particularmente visveis as provas de tangibilidade das quais dependem nossas certezas sobre o que pode ser tomado por verdadeiro. Enfatizando o polo pblico de nossa coleo de dossis, os trs dossis descritos nesse artigo nos afastam das provas que ocorrem na vida quotidiana, quando os acontecimentos ou fatos ofuscam nossas representaes prvias, nos constrangendo a reordenaes pouco debatidas enquanto tais. Pode-se, contudo, estabelecer como hiptese que os procedimentos pelos quais os atores experimentam a solidez dos fatos e dos enunciados submetendo-os variao repousam sobre os recursos cognitivos utilizados nas atividades ordinrias, recursos que os affaires e as controvrsias tem por caracterstica tornar mais salientes lhes conferindo uma tonalidade mais poltica que cognitiva. O primeiro dossi descreve a ocorrncia de uma lgica da suspeita que conduz prova definitiva de uma fraude suscitada pelo ofuscamento de uma expectativa. No segundo exemplo, o surgimento de um acontecimento imprevisto coloca em perigo um espao de clculo elaborado a longo prazo, demonstrando a incompletude do dispositivo de

  • segurana. O ltimo dossi nos aproxima do paradigma da precauo atualmente dominante: malgrado a ausncia de prova tangvel, os atores multiplicam as investigaes e as medidas, desenvolvendo uma vigilncia coletiva que instala a atividade probatria em um processo de negociao contnua. Ao modificar as condies das prprias investigaes, como no dossi dos Prons, as medidas de precauo podem destruir as provas de que uma catstrofe estava realmente em gestao.

    Os avies farejadores No incio de 1976, os representantes de um grupo financeiro informam sociedade

    Erap7, ligada Elf-Aquitaine, que uma inveno vai transformar a pesquisa petrolfera. O conde de Villegas, assistido por um tal de Bonassoli, teria ajustado aparelhos que permitiriam ver o subsolo a milhares de metros de profundidade e permitido identificar com preciso poos de petrleo e de gs, reservas dgua e a presena de minerais. Na primavera de 1976, um primeiro teste de autentificao ocorreu sob segredo: um programa de reconhecimento areo organizou o sobrevoo de pequenos depsitos de hidrocarbonetos. O dispositivo aerotransportado sinala por um chiado a presena de um depsito e reenvia ao solo dados que sero traduzidos em imagens. Os observadores no possuem acesso ao ncleo do dispositivo, cuidadosamente dissimulado aos olhos por uma tenda, mas somente a um console, localizado a uma pequena distncia em uma caminhonete. Eles podem apenas interrogar o aparelho com a ajuda de uma caneta magntica e, depois do tratamento informtico, o decodificador d uma resposta quase imediata a partir de trs parmetros: profundidade, espessura e teor dos hidrocarbonetos. Os testes sero repetidos durante trs anos. Apesar das falhas, que os inventores explicam pela evoluo constante de seus procedimentos, os responsveis da Erap esto estupefatos pela preciso dos resultados. Mas os relatrios dos tcnicos da sociedade revelam um desejo de perscrutar os dispositivos. Por exemplo, em uma nota de outubro de 1978, a seo geolgica escreve: concesses foram feitas pelos inventores, mais de alcance reduzido. Ns temos a possibilidade de ver a aparncia exterior dos aparelhos, eventualmente de nela toc-los, mas no de perscrut-los.

    Tornando manifesto o desejo de tocar e de ver o interior do aparelho, as diferentes

    provas anunciam a transformao que se opera em 1979, quando uma expertise cientfica chamada por Andr Giraud, ministro da indstria. Jules Horowitz, diretor da pesquisa fundamental no CEA, convocado. preciso dizer que a justificao dos gastos em estudos e pesquisas da sociedade Erap torna-se cada vez mais difcil. Esquivando-se da prova de justificao, as autoridades preparam as condies do escndalo que ocorrer 7 Nota do Tradutor: Entreprise de recherche et dactivits ptrolires (Erap) uma empresa petrolfera francesa.

  • nos anos 1980, depois da chegada da Esquerda ao poder: assim, um relator do Tribunal de Contas, que se inquieta com a evoluo das despesas, avisado pelo presidente da cmara competente de que se trata de uma operao excepcional e altamente confidencial cujas grandes linhas foram levadas ao conhecimento do Tribunal. Mas, no terreno da factualidade, a interveno do expert cientfico radical. Uma simples experincia de deteco de uma barra metlica atravs de um muro de concreto desmascara a fraude. Descobre-se que o misterioso computador no existe: o operador fazia funcionar um sistema de edio eletromecnico, o magnetoscpio de gravao estando ligado em paralelo a um outro magnestocpio, o qual no continha nada alm de uma fita previamente gravada cujo operador telecomandava os desenvolvimentos atravs de engenhosos geradores de efeitos especiais e de fotocpias preparadas de antemo. Mas, segundo escreve um relatrio do Tribunal de Contas, se tornar pblico bem mais tarde,:

    Poder-se-ia ainda pensar precisamente que esses aparelhos foram voluntariamente manipulados, seja para induzir os parceiros ao erro e para preservar a todo preo o segredo da inveno, seja para provocar justamente uma ruptura e recuperar, assim, a liberdade de estabelecer outros contratos. Dentre os tcnicos e mesmo no seio do estado-maior da operao, alguns acreditavam sinceramente.

    Alis, uma ltima demonstrao foi ainda efetuada algumas semanas mais tarde. No primeiro perodo, a assimetria de preenses repousa sobre o modo como os

    falsrios podem manipular o desejo de suas presas jogando com uma restrio de confidencialidade que associa as vtimas e lhes interdita o acesso ao dispositivo. Durante trs anos, os atores da fraude puderam jogar com as antecipaes cruzadas, com as expectativas e representaes cuja manipulao estava velada por uma lgica do segredo que impedia a abertura de um espao crtico. Para clarificar as dvidas persistentes, primeiro sobre a eficcia, depois sobre a existncia do dispositivo de deteco geolgico, o expert do CEA exige passar a experimentao do campo, onde tudo estava sob o controle dos inventores, para o laboratrio, no qual ele pode isolar o objeto de seus manipuladores: a autenticao supe a supresso do regime de influncia8 com o qual os falsrios tinham controle sobre seus clientes no campo. Ao trazer o dispositivo para um espao controlvel, o expert encontra seus vestgios e desmascara facilmente a fraude. Mas a ausncia de preenso possui tambm por efeito a manuteno de uma pluralidade 8 Nota do Tradutor: Na obra escrita com Christian Bessy, Experts et Faussaires (1995), Chateauraynaud ope o regime de influncia ou dominao (regime demprise) ao regime de objetivao (regime dobjectivation). Enquanto no primeiro existe uma indiscernibilidade entre os corpos e as coisas, sendo o corpo humano uma entidade de geometria varivel, no segundo essa distncia se enrijece e no apenas o corpo se destaca do mundo, dele tornando-se discontnuo, bem como o mundo torna-se reflexivamente objetivvel. Assim, existe um continuum que vai desde uma relao de fuso total, em que o corpo co-extensivo s coisas e, assim, regido a partir de sua influncia at, na outra extremidade, a existncia de uma forte discontinuidade entre o corpo e o mundo, sendo o primeiro dotado de relativa liberdade e grande margem de manobra no contato com o ltimo..

  • de interpretaes sempre plausveis. A deteco por satlite no banal hoje? Assim, certos protagonistas pensavam que os inventores tinham voluntariamente destrudo a experincia para no entregar seus segredos.

    Essa fraude histrica mostra o que uma ausncia da preenso sobre um dispositivo:

    o empilhamento de antecipaes e a manipulao de representaes que as tornaram possveis criaram um hiato entre as crenas e os operadores de factualidade. Restabelec-lo supe ento uma mudana radical de regime epistmico e poltico. Como na fbula, a lio cruel: os atores juram no se deixar levar e serem mais vigilantes sobre as modalidades de ancoragem de seu espao de clculo. Mas os affaires de falsificao e de fraude no cessam de se reproduzir. Os atos elementares da ateno e da verificao necessrios produo de preenses tangveis entram em tenso com o universo virtual que anima o mundo dos que tomam decises, constantemente incitados por conjecturas e projetos, e que os levam a adotar uma lgica da aposta. No entanto, redes de atores, sociedades e instituies, polticos e oramentos podem se desmoronar como um castelo de cartas na falta de preenso slida sobre um dispositivo.

    A barragem de Blayais A central nuclear de Blayais, situada no esturio do Garonne, se tornou objeto de

    discusso quando da tempestade de dezembro de 1999. Um acidente maior, cuja ocorrncia no foi levada em conta pelos engenheiros da central nuclear, por pouco no aconteceu. Empurradas pelo vento, as guas do esturio do Gironde penetraram no prdio entrando pelas aberturas do muro de fortificao, tapados por simples juntas de gesso necessrias para a passagem de cabos, assim como por galerias subterrneas. Esse incidente ativa uma outra figura da prova: o surgimento do impensvel. Como no acidente do Concorde, cujo ponto de partida foi uma lmina metlica que caiu na pista, um banal treco, suscitando pouca ateno quotidiana, que arrebata um dispositivo tecnolgico cumprindo especificaes, alis, impressionantes. A falha do sistema de segurana, e sobretudo do espao de clculo sobre o qual ele repousa, assim brutalmente evidenciada no dia 27 de dezembro, com a EDF9 tendo que parar de forma urgente os quatro reatores da central. Se a construtora multiplica os signos de controle da situao, a gravidade do acontecimento tal que as instncias oficiais so imediatamente mobilizadas e o conjunto do parque nuclear colocado em estado de alerta. Sendo os modelos dos reatores padronizados, os incidentes podem ser objeto de avaliaes comparativas. Os reatores contam com sistemas de refrigeramento, em gua corrente (rios) ou em gua do mar (centrais costeiras da Normandia), e uma brutal subida das 9 Nota do Tradutor: A EDF (lectricit de France) a empresa de produo e distribuio de eletricidade na Frana.

  • guas no deveria causar consequncias. O acontecimento revela assim importantes falhas de concepo. Ao colocar em xeque os modelos de antecipao de riscos, a tempestade cria um precedente, do qual vo se encarregar no somente os atores crticos, mas tambm os jornalistas que no tinham at ento retransmitido as inquietudes dos militantes anti-nucleares10.

    As instncias de segurana tentam manter um raciocnio probabilista enquanto que o

    incidente possui todas as caractersticas do precedente que destruiu, apenas em razo de sua existncia, o espao de clculo anterior. Ora, a crtica anti-nuclear foi construda contra o raciocnio probabilista. Ela se apoia sob uma lgica do acontecimento, mais probatria para os lanadores de alerta que a lgica matemtica, a qual subentende as ferramentas de gesto de riscos cuja coerncia tcnica e pertinncia poltica so ameaadas pela ocorrncia de acontecimentos improvveis. O menor erro de clculo afeta a pretenso do controle assegurado pela EDF e pelas autoridades. Do mesmo modo, os atores anti-nucleares no podem negligenciar uma tal oportunidade: mesmo se o perigo est descartado, o incidente d lugar crtica radical, conferindo-a pontos de legitimidade. A Rede Sair do Nuclear trata assim o acontecimento no dia 6 de Janeiro de 2000:

    preciso um incidente nuclear maior para acreditar? [] As guas do Gironde inundaram o

    conjunto do stio nuclear [], gerando a perda do refrigeramento do corao dos reatores! Simultaneamente, sempre sob o efeito da tempestade, o conjunto da rede eltrica interconectada se desmorona como um castelo de cartas [] gerando a parada de todas as atividades [] e um estado de segurana mais do que precrio para as centrais nucleares. Felizmente, o ameaador bug do milnio tinha obrigado a indstria nuclear a parar algumas de suas instalaes e sobretudo a verificar o estado dos grupos eltricos de segurana, a encher at o pescoo os reservatrios

    O o bug du milnio foi utilizado a reboque como fator de vigilncia que teria feito

    os engenheiros verificar o estado dos dispositivos de segurana e antecipar solues de salvamento. Essa figura pe em marcha uma dimenso decisiva de todo alerta: no se pode esperar que os fatos confirmem um medo ou uma ameaa para tomar as precaues necessrias. O argumento visa convencer que o acidente maior no foi evitado seno por sorte e que a prova est no fato de que a EDF no controla suas instalaes alm de um espao de clculo extremamente limitado. Isso permite assentar a crtica mais geral da poltica nuclear. O acontecimento posto em relao com declaraes bem antigas, que manifestam a conservao de uma longa memria. Se do lado das autoridades raciocina-se em termos de reviso do modelo, dado que basta apenas mudar os parmetros do clculo do risco, do lado oposto considera-se que a confiana foi definitivamente 10 Assim, o Sud-Ouest, jornal pouco reputado por suas tribunas anti-nucleares, fala de um cenrio catastrfico evitado por pouco.

  • rompida: no se pode mais acreditar em nenhuma forma de controle do risco. Tanto que personalidades autorizadas anunciam que o pior est nossa frente. Assim, um professor de fsica nuclear declara: Eu no quero fazer catastrofismo. Mas, um dia ou outro, haver um derretimento do ncleo de uma central nuclear na Frana. E isso ser mais do que gerenciar um desastre florestal. As rvores, elas crescem de novo! (Sud-Ouest, 6 de Janeiro de 2000).

    Desde ento, para os anti-nucleares, a prova est dada de que preciso sair o mais

    rpido do sistema nuclear. V-se assim se desenvolver uma outra acepo da prova, sinnimo aqui de precedente: o que era pura conjectura torna-se tangvel, e preciso da tirar todas as consequncias. o que mostra o imponente relatrio da Agncia Parlamentar de Avaliao das Escolhas Cientficas e Tecnolgicas, dedicado s lies da crise. Esse relatrio apoia-se nas audincias e debates organizados em abril de 2000 pela Agncia Parlamentar. Retomando passo a passo a cronologia dos fatos, a comisso de investigao escutou todos os responsveis pelo setor, a fim de examinar seu papel na gesto da crise e de avaliar sua gravidade real, dado que alguns no hesitaram em dizer que ns estvamos a duas horas e quinze minutos de Tchernobyl.

    Da prova produzida no fim do processo, necessitando de uma reconfigurao das

    certezas e das dvidas - podemos falar de prova conclusiva -, passa-se prova fulgurante, capaz de quebrar de uma s vez toda a argumentao: o equivalente no mundo das coisas do delito por flagrante para os humanos. Mesmo se os protagonistas se recusam a nisso ver uma prova, o acontecimento marcante constitui a matriz de argumentos que sero produzidos posteriormente, e o custo cognitivo e social muito elevado para aquele que sustentar que nada aconteceu.

    Investigaes sobre a morte das abelhas Os dossis precedentes ilustram dois grandes modos de produo da tangibilidade: o

    desenvolvimento de um trabalho perceptivo que pode ser retraado, cujas preenses so acessveis; o choque produzido por um acontecimento marcante cuja nica ocorrncia imprime sua marca sobre um grande nmero de atores, criando um precedente que servir de ponto de referncia em uma srie de provas ainda por vir. Resta ainda examinar um terceiro dossi: o da prova em constante deslocamento, incompleta, rediscutida, recolocada em jogo ao longo dos alertas, das controvrsias e das decises pblicas, e que depende antes de tudo de um acordo coletivo. A tangibilidade depende das aproximaes que os protagonistas so conduzidos a fazer, mais precisamente da consistncia que os constrangimentos de viglia e de precauo do a essas aproximaes.

  • O caso do Gaucho, nome de um inseticida comercializado pela firma alem Bayer, bastante tpico das controvrsias contemporneas relativas s dvidas sobre a periculosidade de um produto. Os espaos de variao construdos pelos atores cruzam observaes diretas, estudos cientficos e argumentos impregnados de ndices de incerteza. Mesmo se os atores datam de 1994 as primeiras inquietudes de apicultores, apenas em 1997 que os sindicatos apculas alertam as autoridades. Em 1998, o alerta se espalha pela esfera pblica, mas as narrativas insistem sobre a antiguidade do processo: desde 1994, o rumor crescia nos apirios da Frana. Se o Gaucho protege o girassol e os besouros (colepteras), ele tambm dizimava as colnias de abelhas, tendo sido notificadas desaparies no centro da Frana. O affaire levado cada vez mais srio, a ponto da produo de mel ter cado em mais de 70% nessas regies. Eis o que tangvel! Em 1997, um estudo do Centro Nacional de Estudos Veterinrios e Alimentares (CNEVA) apresenta correlaes inquietantes entre o uso de imidaclopride, matria ativa do Gaucho, e a desapario de abelhas em seis departamentos. A priori, os indcios convergem e espera-se uma confirmao cientfica do fenmeno, conduzindo, segundo as normas em vigor, interdio pura e simples do agrotxico.

    Um dos indcios mais presentes do regime de precauo reside nas expresses

    adverbiais como no se pode excluir que ou no impossvel que. Por exemplo, desde 1998, encontra-se, sob diferentes variantes, a frmula segundo a qual no est fora de cogitao que o produto seja neurotxico, mesmo em fracas doses, para a abelha, quando se conjuga com um outro. Levando em considerao esse estado de incerteza, o ministro da Agricultura na poca, Jean Glavany, suspende o uso do Gaucho, espera dos resultados das novas investigaes. Ele se apoia em um parecer emitido no dia 16 de Dezembro de 1998 pela Comisso de txicos do ministrio da Agricultura, que recomenda estudos complementares sobre a presena do inseticida nas partes das plantas acessveis abelha, sobre os limites da toxidade do produto e sobre a durao da persistncia do imidaclopride nos solos. Tornar tangvel o efeito letal do Gaucho para as abelhas exige a aproximao dos objetos em causa, e o no contentamento com as correlaes estatsticas que favoream as hipteses multifatoriais.

    No curso do ano 2000, observa-se uma mudana de modalidade. Enunciados se

    multiplicam e fazem do Gaucho o matador oficial de abelhas. Os argumentos parecem convergir na direo de uma maior tangibilidade do fenmeno. Se encontramos ainda alguns marcadores de incerteza, a causa parece estendida: Os primeiros resultados do programa de pesquisa conduzido entre 1999 e 2000 pelos laboratrios da AFSSA, do CNRS e do INRA [] confirmam o que os 55000 apicultores franceses observam faz cinco anos. Parece se aproximar o ponto de ligao de duas grandes formas de atestao das quais necessitam os atores: a convergncia de observaes de campo e dos estudos de

  • laboratrio. Entretanto, em fevereiro de 2001, um ano mais tarde, l-se em um comunicado do Ministro da Agricultura:

    Eu preciso de uma anlise objetiva e exaustiva da situao antes de tomar uma deciso

    definitiva sobre o Gaucho/tournesol e, se for o caso, novas medidas conservatrias sobre esse inseticida ou sobre outros que poderiam ter efeitos deletrios sobre as colnias de abelhas []

    A incerteza no visivelmente reduzida. Em 2002, um expert em toxicologia relana

    a prova indicando que o inseticida poderia, alm disso, apresentar riscos para o homem. Enquanto que o imidaclopride est presente em numerosos tratamentos de culturas e produtos de jardinagem, ignora-se as quantidades de resduos potencialmente consumidos atravs desses produtos. O relatrio recomenda, portanto, uma avaliao da exposio ao homem atravs uma dose diria admissvel que fixa um limite a no ser ultrapassado para preservar a cadeia alimentar.

    A Bayer, o fabricante, no permanece inativa durante todos esses anos, multiplicando

    as declaraes, os estudos e o que a Coordenao Nacional dos Apicultores denuncia como um intenso lobby junto s autoridades. L-se nos comunicados da Bayer que a firma sempre sustentou que os limites de toxidade se situam bem alm do que foi constatado no plen colhido pelas abelhas e que o produto no apresentava a fortiori nenhum risco para o homem. Um tal enunciado epistmico organiza sua prpria relativizao: do interesse da Bayer sustentar esse argumento. Ocorre que, em 2003, o Gaucho completamente liberado, fazendo a Bayer questo de lembrar que nenhum estudo demonstrou at hoje um elo entre a utilizao do Gaucho e os problemas observados pelos apicultores sobre suas abelhas. Para os apicultores, a no interdio do Gaucho, que seguida em sua sombra por um outro pesticida contestado, o Rgent, a consequncia de uma relao de foras. Considerando que a prova encontra-se bloqueada, na ausncia de uma expertise aberta e independente, um porta-voz dos apicultores prope mudar de regime de prova:

    A primeira ideia fora relativa ao mtodo. Com efeito, eu considero que sobre um tal tema

    seria conveniente utilizar metodicamente a tcnica da investigao policial. [] Ora, at o momento e em todos os dossis de agrotxico (no apenas sobre o Gaucho), so os ppm e os ppb que invadiram (pode-se mesmo dizer fagocitaram) todo o debate (8 de abril de 2003).

    Essa fala sobre a investigao denuncia o fosso que se escavou entre as experincias

    dos apicultores em contato com os campos e com as abelhas e o espao de mensurao em que operam os experts e seus laboratrios. Ao se referir investigao policial, trata-se de propor outros meios de provas, reunindo testemunhos e indcios redundantes - dispositivo de coleta ao qual contribui o site de Internet da Unio Nacional da Apicultura

  • Francesa (UNAF). No fim de 2003, os dossis do Gaucho e do Rgent, que so a partir de ento vinculados, ressurgem em mltiplas arenas. No dia 9 de outubro de 2003, a Coordenao Rural (CR) requer uma clarificao:

    [] a Coordenao Rural, apoiando-se sob os resultados de estudos realizados pela DGAL e

    pelo Comit Cientfico e Tcnico (CST) comissionados pelo prprio ministrio, requer do Ministro da Agricultura a assuno das suas responsabilidades levando em conta as medidas que se impem concernentes ao uso do fipronil (Rgent) e do imidaclopride (Gaucho) para o tratamento de sementes. Com efeito, aparece nas concluses dos relatrios, de um lado, que existe um elo explcito entre os procedimentos de revestimento de fipronil e a mortandade excessiva de abelhas, e, de outro, que o fato de utilizar o imidaclipride para tratar sementes implica um risco preocupante segundo as normas da ecotoxiologia (relatrio do CST). A CR espera que essa situao seja clarificada o mais rpido possvel, pois ela preocupante tanto para os apicultores quanto para os agricultores e consumidores.

    No fim de 2003, um compromisso consistindo em interditar o Gaucho em algumas

    zonas agrcolas violentamente rejeitado pelos apicultores. Embora o caso parecesse em vias de normalizao, a controvrsia emerge novamente. preciso dizer que a mudana da maioria poltica modificou as alianas e as estratgias. Se o princpio de precauo supe atores capazes de agir na ausncia de prova, ele d lugar a interpretaes divergentes. Para as instncias oficiais, basta seguir os estudos. Para os atores crticos, existe um feixe de indcios que anuncia um genocdio de abelhas e preciso tomar todas as medidas necessrias: como para a vaca louca, reivindicamos o princpio de precauo para proibir o Gaucho, pois ns no somos capazes de fornecer a prova absoluta e irrefutvel de que ele destri as abelhas, declara, em julho de 2001, o presidente do Coletivo Anti-Gaucho.

    O vai-e-vem de relaes de fora e de jogos de argumentos cria uma incerteza crnica

    sobre o destino do dossi - e torna a descrio difcil, dado que o encerramento incessantemente deslocado. Assim, a descrio que precede foi reescrita depois da transformao provocada no incio de 2004 pelas decises jurdicas favorveis aos apicultores, depois a suspenso do Gaucho para o milho at 2006 pelo ministro da Agricultura. A anlise do pesquisador ela mesma constrangida pelo processo. Permanece que as provas so encadeadas sem produzir um acordo definitivo sobre a tangibilidade do fenmeno. De uma maneira geral, o imperativo de reversibilidade do perigo e do risco muda as modalidades da prova: a vigilncia e a adoo de medidas transitrias tendem de fato a suprimir as provas que seriam acumuladas ao longo do tempo - como no dossi do amianto ou da vaca louca. Face s duas figuras precedentes, a da verificao especializada e a da surpresa geral, a investigao de precauo assume o carter gradual da tangibilidade, trabalhando em conjunto representaes e novas percepes, dando um lugar simtrico aos protocolos de verificao e aos indcios que

  • remontam ao campo. Mas a contraparte dessa abertura uma sensibilidade aguada para com os clculos polticos, as estratgias de mobilizao e as aes miditicas.

    Verificaes cruzadas (recoupements) e aproximaes (rapprochements): a

    dinmica da investigao Cinco momentos fortes emanam dos processos de investigao estudados: a

    emergncia de um questionamento, de uma dvida ou de uma incerteza; encaminhamento de indcios, de traos e de testemunhos; organizao por cada instncia da investigao de uma rede de aproximaes e de verificaes cruzadas pertinentes; o cruzamento de expectativas e argumentos investidos por uma pluralidade de atores; enfim, o ato de encerramento e de validao pblica permitindo a confirmao ou a refundao das evidncias compartilhadas. O monitoramento dos dossis de longa durao faz assim aparecer os estados intermdios dos dispositivos de prova, as idas e vindas pelas quais se organiza o que William James chamava um processo de validao. Os marcadores lingusticos tornam visveis esse processo de transformao: no h a menor prova de que, simples presuno, os primeiros elementos da investigao nos encaminham na direo de, sob a reserva de verificaes, pode-se afirmar que, parece dado que, na ausncia de prova em contrrio Ao tornar visveis estados sucessivos, esses marcadores manifestam a elaborao dinmica da prova a partir de pontos de partida mais frouxos (intuies, indcios frgeis, presunes, hipteses). Pois a prova emerge na confrontao de representaes e percepes cuja expresso varia ao longo das provas. Se no houvesse seno representaes e dispositivos organizados em conformidade com essas representaes, ou, ao contrrio, se no houvesse seno experincias marcantes, choques perceptivos no contato com as coisas, a questo da prova quase no produziria intensas mobilizaes. porque uma srie de dvidas e de incertezas se aprofundam nos pontos de juno das representaes e das experincias no mundo que os atores se engajam nas investigaes e inventam procedimentos para resolv-las. Nos dossis estudados, a investigao sustentada por coletivos de atores que consagram muito tempo, verdade, para coordenar seus atos e julgamentos, para organizar seus procedimentos de concerto (comisses, comits, reunies, debates, decises) ou para endurecer suas tomadas de posio. Perder-se-ia o essencial, contudo, se reduzssemos essa atividade coletiva aos aspectos organizacionais ou polticos: a maneira de entrar nos objetos, de provar a tangibilidade dos seres e dos fenmenos igualmente crucial.

    As noes de verificaes cruzadas e de aproximao desempenham um papel

    importante na descrio das investigaes. Elas permitem clarificar os elos ou as relaes mencionadas na expresso ordinria da tangibilidade. Para Dewey, a palavra relao possui trs sentidos diferentes. Uma primeira classe de relaes concerne os

  • smbolos colocados em relao uns com os outros. O segundo remete maneira pela qual os smbolos esto em relao com a existncia por meio de operaes existenciais. Enfim, uma terceira classe convoca as existncias que esto em relao umas com as outras na funo de prova em que o signo possui um sentido (Dewey, 1993). Esses trs modos de relao sendo muito diferentes, o uso de uma s e mesma palavra cria uma sria confuso:

    [] eu reservaria a palavra relao para designar o gnero de relao que os smbolos-

    significaes mantm entre si enquanto smbolos-significaes. Eu empregaria o termo referncia para designar o gnero de relaes que elas sustentam com a existncia; e as palavras conexo (e implicao material) para designar o gnero de relao que sustentam as coisas entre si, e graas a qual a inferncia possvel (Dewey, 1993, p. 115).

    a uma clarificao do mesmo gnero que contribui a distino entre aproximaes e

    verificaes cruzadas. Os usos lingusticos marcam uma assimetria: dizendo isso bate11 (a recoupe), exprime-se a ideia de que uma tangibilidade emerge das coisas mesmas. No entanto, dizendo isso se parece (a se rapproche), nos distanciamos da significao habitual da palavra aproximao. As duas operaes testemunham uma diviso cognitiva que apela para uma sntese sob a forma de preenses inditas: as verificaes cruzadas visam operaes perceptivas no contato com as coisas; as aproximaes concernem as operaes intelectivas que associam, sob a base de conceitos, taxinomias ou prottipos, objetos fisicamente separados. O trabalho de investigao desenvolve uma economia cognitiva que consiste em maximizar as chances de obter verificaes cruzadas e em reduzir a lista de aproximaes necessrias12. Mas essa economia submetida a ciclos ou crises: h perodos de intensa atividade nas quais os protagonistas renem traos e indcios abertos sobre uma multiplicidade de experincias e espaos de clculo; mas h tambm perodos mudos, marcados por uma rarefao de signos, no curso dos quais preciso esperar que as potencialidades se manifestem, que novos elementos sejam encaminhados aos laboratrios de investigao, o que explica a referncia frequente, nas narrativas, de um lado sorte e, de outro, tenacidade. As operaes cognitivas so distribudas no apenas entre mltiplos agentes 11 Nota do Tradutor: A expresso isso bate faz referncia tanto a ideia de que isso faz sentido quanto a ideia de que isso faz sentido em razo do prprio arranjo entre as coisas. 12 Em Lune sanglante [Sangue na lua: uma aventura do Sargento Crazy Lloyd Hopkins], James Ellroy fornece um exemplo estilizado do processo em operao no inqurito judicial e que no se reduz a uma pura colheita de indcios no sentido de Ginzburg. Depois de mltiplas investigaes, seu investigador chega a extrair dois traos do serial killer que ele procura: de um lado, o suspeito dispe de um micro-gravador de alta definio, fornecido em quantidades bem pequenas no territrio. De outro lado, ele era um aluno de um estabelecimento em uma poca bem determinada. O investigador exuma as listas de alunos a partir de uma estimao de idade do criminoso e abre os registros de fornecedores de micro-gravadores: ele efetua portanto uma aproximao entre duas sries de indcios independentes e espera efetivar uma verificao cruzada. Um mesmo nome emerge na interseo das duas listas. O elo fraco dado que o matador pode ter comprado o gravador sob um nome falso, mais uma pista est agora aberta.

  • ou suportes de investigao, mas tambm no tempo. Um lento processo de acumulao pode ser necessrio para que as peas do dossi informem umas s outras. Eis porque no se pode identificar o relanamento da investigao com atores dotados de uma propenso patolgica ao desvelamento (Boltanski e Thvenot, 1991). O tratamento dos signos e da busca por tangibilidade se efetua na durao: a preocupao no uma marca da parania, mas constitui o recurso maior de toda investigao.

    Qual lugar conceder ao grau de convico ou de crena nessa linguagem de

    descrio? No h dvidas de que o termo mais correntemente oposto prova o da crena. A crena surge nos affaires por intermdio de marcadores epistmicos ou proposies contendo seu enunciador (segundo X, X acredita que P). Enquanto a prova, em sua acepo moderna, religa o estado de coisas definidos por categorias claras e distintas com os protocolos de verificao que permitem a repetio da experincia, a ideia de crena marca o estado no qual se encontra aquele que qualifica seres ou fenmenos (Bazin, 1991). No se fala em crena tangvel. No a crena sempre maculada de fraqueza ou insuficincia? Mas como distinguir a crena da prova na medida em que a elaborao de provas supe enunciadores, porta-vozes ou testemunhas cuja convico necessria? Pode-se acreditar que tal ou tal coisa verdadeira, demonstrada, verificada e renunciar a toda prova de tangibilidade. Mas no h crena que no possa ser colocada em dvida, dado que toda crena pode se revelar falsa13. Segundo Peirce, se inevitvel confiar em crenas, deve-se substituir, sempre que possvel, as proposies vagas por proposies gerais, menos para refut-las do que para control-las logicamente (Tiercelin, 1993). Nas investigaes, a maneira como se produz o encontro entre as aproximaes e as verificaes cruzadas no uma simples questo de crena, nem mesmo de crena primordial. Essa inadequao da noo de crena para descrever a experincia da prova se deduz facilmente da prpria lgica das verificaes cruzadas. Para que uma verificao cruzada seja vlida, se supe uma independncia dos estados das coisas e dos estados das pessoas: se as pessoas criam as condies materiais de cada verificao cruzada, elas no as produzem. Eu fao as coisas baterem significa, em realidade, eu aproximo, quer dizer, eu tive a ideia de uma relao entre coisas; inversamente, pode-se fazer a aproximao quer dizer as coisas mesmas do vazo a uma conexo inteligvel. Se verdade que uma aproximao validada pelo acordo dos atores sobre a interpretao de signos, esse acordo tanto mais slido quanto, por meio de vias diferentes, chega-se s mesmas interpretaes, tudo isso fazendo variar ao mximo as teorias e as hipteses. Se se confunde as aproximaes e as verificaes cruzadas, dificilmente se torna possvel diferenciar uma prova de verdade e uma fabricao, no sentido de Goffman, que permite a produo de falsas provas. Assim, o 13 Uma crena que no poderia ser falsa, escreve Peirce, seria uma crena infalvel e a infalibilidade um atributo da Divindade (Peirce, 1978, p. 42)

  • que garante a tangibilidade no a fixidez ou o carter inacessvel de uma coisa no manipulvel, mas a possibilidade de reiterar, se necessrio, a prova de verdade. O que tangvel persevera malgrado ou sobretudo graas s variaes contnuas. Nossos protagonistas parecem adotar um ponto de vista espinozista segundo o qual nada do que o , sem insistir em seu modo de ser. A fora probatria depende assim dos meios pelos quais os atores mobilizados puderam experimentar a persistncia de verificaes cruzadas e a consistncia de aproximaes.

    Entre inveno e administrao: os tpicos da prova

    Ao fazer da prova o produto de um trabalho perceptivo coletivo, nos afastamos de um modelo de racionalidade fundado sobre indivduos que elaboram separadamente seu espao de clculo (Boudon, 1990). Mas falar de uma comunidade de investigadores pressupe um carter j coletivo da investigao e de seu objeto. Para ver como se fazem e se desfazem os coletivos em torno de processos de busca pela verdade, nos necessrio um continuum que vai da investigao lanada por uma entidade isolada sem o recurso de outras, at mesmo no mais grande segredo, at a investigao cujos objetos e procedimentos conhecem um mximo de publicidade, produzindo uma verdadeira expertise coletiva (Callon, Lascoumes et Barthe, 2001). No centro, se desenvolve a figura da investigao levada pelas instncias especializadas cujos trabalhos podem ser tornados pblicos e debatidos.

    No corao desses processos, os protagonistas recorrem a diferentes tpicos da prova:

    a atestao direta pelo sentido; a prova obtida por verificaes cruzadas de indcios ou testemunhos; a correlao estatstica; a experincia reprodutvel em laboratrio; e, enfim, a demonstrao fundada sob argumentos julgados irrefutveis. A primeira figura convoca uma fenomenologia espontnea da experincia sensvel: est implicado na prova aquele que duvida ou que no tm preenso sobre o fenmeno; a segunda figura faz funcionar uma lgica da redundncia em um feixe de traos e indcios. Uma vez reunidos, os dados disponveis fazem emergir pontos de verificaes cruzadas que permitem eliminar as verses incoerentes ou pouco verossmeis. As ferramentas estatsticas redefinem essa forma emprica de verificao cruzada em um espao de clculo desvinculvel das pessoas. O terceiro tpico , com efeito, a da correlao estatstica, a qual rompe com o funcionamento cognitivo ordinrio com o objetivo de produzir resultados contra-intuitivos capazes de remodelar representaes (Desrosires, 1993). A quarta figura a da cincia experimental que se organizou sob um modelo de confinamento e exatido, deixando de lado as simples correlaes para atingir as causas (Licoppe, 1995). A tenso mxima entre os estudos estatsticos realizados em mundo aberto, submetidos s variaes das condies da investigao, e as experincias em laboratrio, acusadas de

  • reduzir em um micro-mundo configuraes complexas e heterogneas. Enfim, a quinta figura se refere mais a uma lgica do plausvel: ao fazer apelo ao raciocnio argumentativo, os protagonistas criam espaos de variao capazes de colocar em discusso as provas institudas pelas cincias.

    O que vem a ser a diviso entre pessoas e coisas em tais processos? Renaud Dulong

    interrogou duas formas de atestao das quais necessitam os protagonistas para encerrar seus affaires: o testemunho e a confisso (Dulong, 1998, 2001). Ele mostra que a questo da verdade no pode se reduzir s provas materiais estabelecidas por protocolos desvinculados das pessoas. Essas formas de atestao no so reservadas apenas aos procedimentos penais e h poucos dossis nos quais os investigadores afastam desde o incio a escuta de testemunhos e a possibilidade de atos reivindicados pelas pessoas. As provas de coerncia infligidas por essa modalidade de atestao no so mais frouxas ou mais instveis que aquelas concernentes aos objetos do mundo fsico. Elas repousam, ao contrario, sob constrangimentos muito fortes, dado que as verificaes cruzadas passam pela considerao das narrativas que devem fornecer indcios de plausibilidade ou de verossimilhana. Mas uma mudana de regime epistmico se opera na medida em que se considera o produtor do testemunho ou da confisso ou aquele que o coloca em relao com a coleo de peas de um dossi. O que interessa Dulong so as condies sociais de atestao pessoal. Frmulas como eu estava l ou fui eu que instituem um enunciador de maneira durvel, atestando a permanncia da pessoa atravs de mltiplas situaes de fala. O que nos interessa sobretudo a maneira como cada ator, surgindo na arena, produz ou no uma srie de inflexes no encaminhamento da investigao. H dois casos nessa ramificao: seja a confisso ou o testemunho que vem confirmar o que j sabiam os investigadores, acrescentando suas prprias nuances, micro-variaes que, manifestando a presena de uma subjetividade reflexiva, do garantias contra o falso ou a mentira; seja uma ruptura ou uma bifurcao que obriga a repensar o conjunto do dispositivo da investigao e, da, o grau de segurana da factualidade estabelecida anteriormente. Eis porque o momento em que intervm um testemunho ou uma confisso decisivo dado que confronta dossis marcados por graus de objetivao diferentes.

    Existe uma relao fundamental entre a tangibilidade e a convergncia de mltiplos

    sistemas de prova. Pois h ao menos um constrangimento comum aos diferentes tpicos da prova: elas devem oferecer um retorno tangvel. Um fenmeno tanto mais tangvel quanto ele capaz de resistir s variaes introduzidas por outros pesquisadores. So bem frequentemente os desnveis de temporalidade que criam incompletudes durveis: preciso tempo para que experincias sensveis encontrem sua formulao, para que traos sejam descobertos, para que testemunhos possam falar e para que verificaes cruzadas

  • possam operar; um longo perodo de tempo necessrio para que as estatsticas sejam interpretveis ou para que elementos sejam isolados e testados em laboratrio. A lista de recursos dos quais se dotam os protagonistas para fazer convergir os signos longussima: dos arquivos s audincias, das coletas de amostras ou das provas documentais aos interrogatrios, grandes precedentes s medies em laboratrio, uma pluralidade de caminhos se abrem e com isso, quando a investigao opera em mundo aberto, aumentam os riscos de um possvel encerramento e de um relanamento permanente. Novos acontecimentos, novas conjunes de atores e de interesses vm complicar a organizao coletiva das provas. A histria de nossos dossis pode assim se descrever como uma alternncia de provas de fora e de elaboraes coletivas de espaos de raciocnio comuns (Dodier, 2003).

    A prova enquanto inscrio material e formalizao deve dar a todas as partes

    interessadas a possibilidade de uma preenso reprodutvel sobre o objeto e seu meio associado. A participao do conjunto de protagonistas no processo de investigao no apenas um ideal regulador de nossas democracias. Pois o tema da acessibilidade central no acordo sobre as provas: no apenas aquele que apresenta a prova, bem como outros, devem poder produzi-la de novo sem serem prisioneiros do dispositivo ao qual eles podem submeter crtica. Administrar a prova assim fornecer um procedimento de acessibilidade a todos os protagonistas. No para satisfazer as normas culturais ou aos interesses de uma comunidade de atores que preciso produzir preenses, mas para garantir que o que provado no o sob o constrangimento de uma representao ou interesse. Do mesmo modo, muito menos pertinente opor o formalismo (a prova formal), o empirismo (a prova concreta) e o sociologismo (a representao coletiva) do que olhar os esforos que produzem os protagonistas para superar as tenses inerentes a toda busca por provas.

    Afetos, perceptos e conceitos Wittgenstein examinou longamente as relaes que a prova mantm com a lgica, de

    um lado, e com a experincia, de outro (Sallantin e Szczeciniarz, 1999). Se a prova revela regras de aplicao de conceitos, ela faz tambm intervir a viso (Shelley, 1992). A noo de tangibilidade no faz outra coisa alm de alargar a todas as formas de atestao sensorial o que exprime a noo de visibilidade quando ela designa a presena de uma imagem marcante. Etimologicamente, a intuio reenvia em primeiro lugar viso, ao fato de olhar atentamente alguma coisa. Quando as pessoas fazem apelo intuio, elas designam a relevncia de uma experincia marcante, que deve ser o signo de alguma coisa. Recorrendo linguagem da intuio, os atores designam a experincia prpria investigao, segundo a qual os signos se organizam sem que esteja ainda disponvel o

  • espao de representao que permite fornec-los um plano de construo convincente. Tambm, definiremos a intuio no como um conhecimento no explicitado ou no formalizado (Dreyfus & Dreyfus, 1986), mas como uma percepo que dura alm de seu contexto de apario e que ainda no encontrou validao em um espao de clculo. A intuio anuncia a prova de tangibilidade.

    Para os filsofos, a intuio designa o acesso s evidncias primeiras, categorias

    originrias necessrias a toda forma de conhecimento (o fato, por exemplo, de saber que no se pode estar em dois lugares ao mesmo momento). Na sociologia clssica, a intuio existe essencialmente sob a forma do senso prtico (Bourdieu, 1980). Quase no h lugar para a dinmica das intuies que guiam as pessoas ao longo de suas investigaes: seja a intuio tratada como mera ativao inconsciente de rotinas sempre j presentes (rotinas incorporadas das quais esquece-se ou reprime-se a gnese), seja como a expresso de uma pura subjetividade (os sujeitos deixam chegar at eles as coisas do mundo ao abrirem-se s suas potencialidades, e o que quer que lhes acontea, eles tero sempre tido uma intuio), seja, ainda, a intuio tratada como a apreenso das propriedades contextuais, sendo a intuio sinnimo de ao situada sem ordem nem plano concebido de antemo. Na perspectiva que nos interessa, que o modo de conduo das investigaes e do encaminhamento das provas, a intuio a expresso de uma preocupao cujos meios se afirmam e se formalizam um pouco mais em cada prova. A intuio , assim, um modo de trabalhar os detalhes que no tem ou ainda no possuem um lugar em um espao de clculo. A intuio a que se referem as pessoas reenvia ao incio de uma nova srie de provas feita de verificaes cruzadas e de aproximaes inditas. Alguma coisa lhes faz suspeitar da emergncia de um fenmeno em vias de se organizar sem que elas possam trat-lo em um quadro interpretativo adequado. De onde vem essas inumerveis solicitaes da experincia sensvel segundo as quais h alguma coisa para experimentar? Os primeiros apicultores que se interrogaram sobre a morte das abelhas dizem ter agido por intuio: eles perceberam alguma coisa de anormal. Seria equivocado ligar esse trabalho perceptivo, fracamente codificado, somente s primeiras experimentaes: ao longo da investigao processos anlogos ganham corpo. A experincia inicial dos pesquisadores de Jussieu que, no incio dos anos 1970, realizaram a investigao sobre uma poeira estranha que perturbava suas manipulaes de laboratrio, torna-se anedtica uma vez que o dossi do amianto lanado. Uma vez que os dispositivos so organizados para enquadrar as situaes e os objetos, o trabalho perceptivo no aparece mais seno em modo menor: na experincia dos atores, os pontos de referncia calculveis se substituem s dobras descobertas no corpo a corpo com a matria. Contudo, cada dvida manifestada a respeito de uma fibra txtil ou de um lugar com amianto renova, ao menos virtualmente, as experincias primeiras.

  • Esses problemas remetem naturalmente s discusses j antigas que marcaram

    mltiplas tradies filosficas. Em Le pense et le mouvement [O pensamento e o movente], Bergson escreve que a intuio no um ato nico, mas uma srie indefinida de atos, todos decerto do mesmo gnero, mas cada um de espcie bem particular, e essa diversidade de atos corresponde a todos os nveis do ser (Bergson, 1996, p. 207). Examinando o estatuto da intuio em Bergson, Andr Clair aponta que as metforas bergsonianas so tomadas de emprstimo do vocabulrio sensorial: viso, contato, simpatia (Clair, 1996, p. 203). A intuio aparece como um ato de compreenso que no supe coincidncia imediata entre o sujeito e o objeto, mas uma constituio progressiva do sentido, que se exprime por uma tenso, um esforo particular. Essa concepo da intuio prxima da lgica da investigao, que faz trabalhar, por sries sucessivas, surpresas e expectativas:

    o ato de intuio esse movimento sem fim que se efetua entre o esforo e a coincidncia,

    um ato que ele mesmo durao. Melhor, enquanto ruptura com o j dado ou o j conhecido, a intuio se confunde com a atividade, a tomada de conhecimento em vias de realizao, se identificando com o movimento vital, como ato de se colocar no devir perptuo da realidade (Ibid., p. 206).

    Essa fenomenologia convida a considerar em seu movimento a compreenso das

    verificaes cruzadas que se oferecem no curso da experincia e da formulao das aproximaes que do sentido investigao. Mas possvel apoiar-se sob uma fenomenologia quando se trata da prova? Qualquer que seja a prova, a soluo que preconizava Husserl aparece agora excessivamente esttica:

    um conhecimento no livre de pressuposies seno quando seus enunciados no se afastam minimamente do dado intuitivo de coisas s quais eles se referem. [] preciso comear por considerar conhecimentos exemplares, nos quais a adequao em questo sem dvida nenhuma realizada (Bernet, 1991, p. 80).

    As cincias quebraram esse acordo imediato aprofundando constantemente a separao de dois planos. Granger (1995, p. 231) explica que se as cincias visam o real, elas no o atingem seno de modo indireto pela construo de objetos virtuais. O virtual da dmarche cientfica uma figura - uma representao - de coisas ou de fatos desvinculada das condies de uma experincia completa qual falta sempre o contato direto com o que atualiza o real. Com efeito, quando elas empreendem uma explicao da percepo e das propriedades que atribumos aos objetos do mundo percebido, as cincias reduzem a experincia atual ao estado de iluso ou de simples aparncia. Reconciliar a percepo ordinria com a objetivao cientifica parece, assim, fora do alcance.

    Quando eles se pem a experimentar alguma coisa, nossos atores se encontram presos

  • por uma dupla restrio: de um lado, eles produzem uma forma de prova lgica e, de outro, eles afrontam a irredutibilidade de suas experincias no contato com as coisas. A prova surge como um encontro possvel entre a demonstrao lgica e a evidncia de uma certeza irrefutvel que encontra sua fonte na experincia. Sabe-se que para o ltimo Wittgenstein a certeza enceta um senso comum primordial e no encadeamentos lgicos baseados sob o clculo de proposies que no pode fundar a certeza de fundo em que se sustentam as dvidas dotadas de sentido (Wittgenstein, 1962). Ele produz uma insistente crtica sobre o uso da frmula eu sei que. O emprego da expresso indica que a possibilidade de ter adquirido a convico de que alguma coisa verdadeira: Eu sei possui uma significao primitiva, que semelhante a Eu vejo, que dela parente (ibid, p. 47). A questo da certeza conduz assim a uma proposio decisiva para a anlise das relaes entre os procedimentos de investigao e as formas de evidncia:

    Mas se algum viesse nos dizer: a lgica , portanto, ela tambm, uma cincia emprica,

    ele estaria errado. O correto o seguinte: a mesma proposio pode ser tratada em um dado momento como o que est para ser verificado pela experincia e, em um outro momento, como uma regra de verificao. (Ibid, p. 50).

    Essa formulao testemunha uma dupla irredutibilidade: se no se trata de reduzir a

    lgica ao estado de experincia emprica sem fundamento, ela no pode ser contudo o ponto de apoio ltimo e transcendental. Em certos casos as proposies so colocadas prova do mundo real e v-se que h casos em que esse pr prova est fundamentado e outros em que ele no razovel, at mesmo absurdo; em outros casos, elas servem de pontos de apoio para guiar um ato de verificao, a fim de assegurar sua conformidade a uma representao, uma expectativa. Uma vez clarificados esses dois usos de proposies, escreve Wittgenstein (ibid., p. 51):

    Toda verificao do que admitido como verdade, toda confirmao ou invalidao j

    possuem um lugar em um sistema. E esse sistema seguramente no um ponto de partida mais ou menos arbitrrio ou duvidoso para todos os nossos argumentos; ao contrrio, ele pertence a essncia do que ns chamamos um argumento. O sistema no tanto o ponto de partida dos argumentos, mas sobretudo seu meio vital.

    As provas elaboradas pelos protagonistas no so facilmente acessveis

    independentemente do dispositivo que lhes d sentido e que os tornam descritveis. Com efeito, como poderamos considerar que tal elemento comprovado para tal ou tal protagonista se no pudssemos lig-lo a um dispositivo inteligvel? Os atos de verificao no so compreensveis seno a partir do dispositivo que comanda o processo de experimentao. Colocar a questo da certeza, ou da prova, supe a existncia de um conjunto de pontos fixos que tornam a dvida ou o questionamento realista: O que fixado o no por sua qualidade intrnseca de clareza ou de evidncia, mais porque est

  • solidamente mantido por tudo o que h no entorno (ibid. p. 58). A prova jamais o produto de um fato isolado: ela ganha forma em uma rede de elementos que tendem a se reforar uns nos outros. E o trabalho do verificador particularmente probatrio quando ele deve verificar tudo: -lhe preciso percorrer o conjunto de relaes. Mas, o que no diz Wittgenstein, que, em alguns casos, um nico elemento basta para desfazer o conjunto enquanto, em outros, vrias conexes podem se afrouxar sem desfazer a coerncia do sistema. Dar conta das diferentes sensibilidades dos dispositivos crtica , portanto, uma tarefa importante que nos afasta do questionamento filosfico.

    Quando os atores falam de prova, eles colocam em relao um espao de clculo - um

    conjunto de entidades e de relaes ligadas por convenes - com uma ou vrias experincias. aqui que intervm a maneira como Wittgenstein (1983, p. 143), nas Remarques sur les fondements des mathmatiques [Observaes sobre os fundamentos da matemtica], associa ao poder de demonstrao da prova lgica a necessidade de uma viso sinptica da prova: E se uma demonstrao fosse extraordinariamente longa a ponto de tornar impossvel toda viso sinptica?. Uma formulao particularmente crucial: a prova no me serve de experincia, ela me serve sobretudo de imagem de uma experincia. A prova no substitui a experincia, em si irredutvel. Ela fornece uma imagem dela. Uma imagem marcante que permite estruturar as experincias ou, sobretudo, torn-las visveis. porque ela possui uma virtude sinttica que a prova pode servir de ponto final e pode tornar os julgamentos possveis.

    Deve-se poder ter uma viso de conjunto da prova - significa: ns devemos estar prontos

    para empreg-la como princpio de nossos julgamentos. Quando eu digo a prova uma imagem - pode-se v-la como uma imagem cinematogrfica. Faz-se a prova de uma vez por todas. Naturalmente a prova deve ser exemplar. A prova (a figura demonstrativa) nos mostra o resultado de um processo (de construo); e ns somos persuadidos que um processo regrado desse modo conduz sempre a essa imagem. (A prova nos mostra um fato sinttico). (Ibid. p. 150)

    Uma prova que no conduziria a uma imagem marcante e estvel permitindo a sntese

    no seria realizvel. Seria vo procurar produzi-la, ou melhor, dever-se-ia produzi-la constantemente. Se, para Wittgenstein, os jogos de linguagem no podem se reduzir experincia, ainda que sua pertinncia dela dependa, a prova possui por virtude modificar a organizao da experincia. um novo ponto de referncia, um guia, um ponto de inflexo:

    No olhe a prova como um processo coercivo, mas como um guia. E ela guia a sua

    concepo de certos estados de coisas. [] Nosso modo de ver muda no curso da prova - e o fato de que isso depende da experincia no lhe tira a razo. Nossa intuio remodelada. [] Por assim dizer, a prova canaliza nossas experincias de certo modo. Aquele que tentou constantemente tal e tal coisa renuncia a suas tentativas depois da prova.

  • o prprio princpio de um mundo comum que est em jogo na possibilidade de um

    acordo sobre as provas. Os procedimentos pelos quais certezas so preservadas, reinstaladas, requalificadas, revelam o tipo de inquietude afrontada pelos atores. Face inquietude, a prova introduz uma forma de apaziguamento. Pode-se fazer aqui um paralelo com a maneira como Wittgenstein, saindo da crtica interna da lgica, esboa uma variante do plano de imanncia, caro a um filsofo to antittico como Gilles Deleuze:

    Poder-se-ia dizer isso: Eu sei exprime a certeza apaziguada, no aquela que ainda est em

    estado de luta. Desde ento eu adoraria ver nessa certeza no algo familiar a uma concluso prematura ou superficial, mas uma forma de vida. [] Isso quer dizer, contudo, que eu concebo a certeza como alguma coisa que se situa para alm da oposio justificado/no justificado; portanto, por assim dizer, como alguma coisa de animal (Wittgenstein, 1963, p. 93).

    As oposies que estruturam essas proposies (apaziguamento versus estado de luta,

    inferncia versus forma de vida, justificao versus animalidade) colocam a irredutibilidade do plano de transcendncia e de um plano de imanncia (Deleuze e Guattari, 1991). Eis porque a noo de preenso, entendida como ponto de juno sempre reinventado entre conceitos e perceptos, no estrangeira dupla wittgensteiniana dos jogos de linguagem e formas de vida (Bessy e Chateauraynaud, 1995).

    Dos signos que no enganam A partir de dossis exemplares, distinguimos trs formas de produo do tangvel: o

    trabalho perceptivo no contato com as coisas que fornece novas preenses; o surgimento de um acontecimento marcante que torna obsoleta uma representao ou um espao de clculo anterior; a formao de um acordo coletivo sobre as aproximaes entre signos. Quando as trs formas convergem, os atores no possuem mais razo para seguir a investigao. O senso comum dispe ento de um novo ponto de apoio, que torna intil ou desarrazoadas as tentativas de relanar a prova e reinstaurar a dvida. A prpria preocupao de verificao torna-se suspeita. No h mais lugar para interpretar signos tornados transparentes. Na verdade, um pouco mais complicado. Pois o que importa poder verificar em caso de urgncia, de dvida ou de desacordo. Segundo William James, a verificabilidade mais importante que a prpria verificao, pois ela aponta para uma verificao potencial ou virtual. A verificabilidade se confunde com um sentimento de confiana: ela nos permite experimentar o acordo entre nossas ideias e a realidade, com uma s olhada, por um exame intuitivo do contexto que fornece signos suficientes para provocar nossa adeso. Os signos agem como condensados de verificao, atalhos, resumos. O senso comum pode ento ser descrito como o uso pblico desse princpio de

  • verificabilidade, permitindo ao mesmo tempo uma confiana primordial e um acordo sobre o que merece discusso e verificao.

    Se a anlise dos processos de investigao permite ver como a realidade apreendida

    e coletivizada, ela supe colocar distncia noes como construes sociais, imaginrias ou crenas sob as quais se fundam ainda mltiplos paradigmas das cincias sociais. Saindo do jogo entre percepes, representaes e julgamentos, pode-se compreender o trabalho perceptivo cujas preenses no so nem produtos de uma percepo direta que repousa sobre uma harmonia preestabelecida, nem projees automticas de estruturas mentais que revelam um arbitrrio cultural. O sentido da realidade provm da confrontao continua de afetos, perceptos e conceitos. Na evidncia do mundo sensvel, a percepo e a prova so duas vezes a mesma coisa: o corpo atesta a realidade do estado de coisas - salvo nos casos de perturbaes perceptivas, de alucinao ou de possesso. Perceber em demasia, tocar em excesso, se colocar em uma relao em que se dominado. Daquele que est dominado diz-se geralmente que ele no est mais na realidade. Se o prprio corpo armado para engendrar as boas preenses e produzir as mediaes prticas entre a conscincia e o mundo, anexando todos os instrumentos dos quais ele necessita (Merleau-Ponty, 1945), no agenciamento de percepes individuais e representaes coletivas que se produz o reconhecimento de fatos tangveis. Isso no quer dizer que tudo o que fazem e pensam nossos atores manifesta um autntico senso de realidade: mais de uma vez acontece de eles se enganarem, o que ocorre tambm com aqueles que os estudam. O erro sempre possvel. Mas no se trata mais do erro denunciado pelas sociologias da ruptura: para esses socilogos, nada pior do que o senso comum! Ora, o senso comum da realidade no um simples estoque de crenas: ele forma o trao contnuo de um trabalho coletivo que visa reduzir as tenses entre vrias formas de produo da factualidade e visa fazer face s transformaes que afetam com maior ou menor profundidade as certezas de fundo14.

    A sociologia pragmtica se interessa pelos procedimentos por meio dos quais as

    pessoas e os grupos estabelecem a realidade das entidades e das relaes engajadas em suas experincias, para represent-las em quadros ou objetos comuns, e para revisar, em caso de necessidade, suas disposies e seus dispositivos. As disposies coletivas no so apenas fruto de representaes j-a ou de alinhamentos regidos pelo interesse: elas resultam de uma srie de provas de tangibilidade atravs das quais os atores forjam novas preenses. Ao fazer da organizao coletiva dessas provas um objeto central da 14 Em seu Trait des preuves judiciaires [Tratado das provas judiciais] (1840), Bentham religava a teoria das provas transformao continua do senso comum. Ele examina o tratamento judicirio das mudanas que afetam as evidncias comuns como, por exemplo, o tempo necessrio para ir de um lugar a outro (elemento decisivo na investigao de um crime).

  • sociologia, evitam-se as duas armadilhas que formam o refgio convencionalista - o sentido social da realidade consistiria em fazer como se as preenses fossem comuns -, e o relativismo das factualidades - marcado pela separao definitiva das pessoas ou dos grupos em culturas ou comunidades que veem o mundo de modo diferente.

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