chamuças de bacalhau 23

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Chamuças de Bacalhau 10 decisões possíveis antes do pequeno almoço. Panjin é Goa, e Goa não é a Índia. Chiquito, o estalajadeiro trafulha e suas taxas. Lagos versão quero-ficar-aqui-para-sempre. Atish e os estofos turcos. A Ronda dos Latifundiários. André, o herdeiro polinésio. Club Vasco da Gama, a vender cervejas e sonhos desde 1909. Cheguei a casa. 1

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Aventuras na India

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Chamuças de Bacalhau10 decisões possíveis antes do pequeno almoço. Panjin é

Goa, e Goa não é a Índia. Chiquito, o estalajadeiro trafulha e suas taxas. Lagos versão quero-ficar-aqui-para-sempre. Atish e os estofos turcos. A Ronda dos

Latifundiários. André, o herdeiro polinésio. Club Vasco da Gama, a vender cervejas e sonhos desde 1909.

Cheguei a casa.

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XXIIIClub Vasco da Gama

Quando acordámos tomámos uma série de decisões. Eu cá tinha decidido que se ia morrer de febres mais valia ser num quarto mais bonito. E também tinha decidido que tinha que arranjar alternativa aos rebuçados drunfados. Ambas decidimos que Arambol era um cantinho do Éden, mas nós queríamos ver o resto do Éden, queríamos conhecer mais Goa, por isso iríamos partir. Eu, por mim, depois de me recusar pagar mais de 100 Rs por uma toalha, decidi ir à “dispensa” da guest-house e roubar uma em quarta mão. A Rita declarou logo que aquilo era uma “grande porcaria” mas também até ai tinha quase sido tudo “uma grande porcaria” por isso não valia a pena pagar mais por isso. E então, ambas decidimos rir-nos às gargalhadas com uma mensagem que o Prince nos tinha mandado, a perguntar “se tínhamos chegado bem a Goa”. E depois disto tudo, de mochilas às costas, ainda decidimos enganar o tipo do hotel e só pagar 350 Rs. Claro que fomos apanhadas passados 10 minutos, mas tínhamos que tentar.

Este pequeno falhanço deixou-nos ligeiramente chateadas por isso fomos a gritar asneiras a tudo o que era indiano que nos perguntava “táxi madam, táxi?”. Quando chegamos ao centro voltámos a encontrar as pequenas coreanas, que pelos vistos também iam a Panjin.

A viagem de autocarro de Arambol para Mapussa é uma das coisas mais deliciosas que já fiz. É como atravessar o paraíso com a cabeça de fora da janela. Tudo é verde e bonito, de novo os arrozais e os oásis, as crianças fardadas a ir para a escola, as pequenas

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igrejas católicas caiadas de branco, a música, as paragens de autocarro pintadas e as hortas. E os putos a jogarem criquet no meio da savana e a dizerem adeus a quem passa. Não ia a ouvir música, mas estava a senti-la toda. Trocámos de autocarro para Panjin e começamos a ler cada vez mais coisas escritas em Português. Passámos uma ponte, sobre um largo rio e finalmente chegámos.

Panjin é Goa, e Goa não é a Índia, Goa é rica, é fértil, é cristã e tem um je ne sais quoi português, não que estes atributos a tornem melhor (alto lá), mas funcionam como uma espécie de salada fresca que corta o caril intenso. Não precisámos mais de meia hora a ver guesthouses para percebemos que ali a beleza se pagava e acabamos num quarto-cave, na Somia Guest House, por 490+60+100 de taxas. Ainda perguntamos ao Chiquito (nome do estalajadeiro trafulha que só depois de nos ouvir adjectivar obscenamente o quarto, se revelou conhecedor do luso idioma) de onde é que vinham aquelas taxas ao que ele respodeu que era “muito complicado explicar, muito complicado mesmo, mas que tinha que cobrar.”

Nós pensámos que devia ser pela sanita partida, ou pelo buraco de baixo da porta que dava para o outro quarto, tão grande que dava para espreitar à vontade os vizinhos e vice-versa. E decidimos fazer um sorriso cínico e ir dar uma voltinha pela cidade.

Está calor à seria, só se está bem ao pé do rio Mandovi. Felizmente a cidade é na margem do rio, fez me lembrar Lagos, ou como seria Lagos se fosse mais arranjada e rica. Era Lagos versão quero-ficar-aqui-para-sempre. Panjin tem essa grande avenida ao pé do rio, onde há jardins e as pessoas passeiam sem pressa. E depois há também um centrinho, com uma branca igreja católica. Entrámos numa loja para carregar o telemóvel e encontramos uma

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portoguesinha (porque era do Porto) chamada Maria João, que nos disse logo maravilhas da terra e adeus (porque ia ter de regressar).

Como não sabíamos o que fazer, decidimos telefonar ao Atish,

como aliás, fazíamos sempre que não sabíamos o que fazer. Em menos de cinco minutos ele apareceu! Aquilo era muito estranho. Íamos finalmente conhecer o nosso correspondente incógnito.

Quando saímos da loja olhámos para o carro preto que estava parado à nossa frente e apitava para entrarmos…. “Vamos a isto?” tivemos uns minutos de suspense, e lá fomos nós. A primeira coisa que me saltou para dentro da retina foi a capa dos estofos que era branca e turca. Mais tarde e depois de fartarmos de gozar, é que o Atish nos explicou que era por causa do calor, que aquilo absorvia melhor a humidade (devia ser do género aquelas Nossa Senhoras que mudam de cor).

O Atish era um rapaz goês, não sei bem que idade tinha mais parecia mais novo do que era, demos-lhe 27! Era bem jeitoso mas naquele momento estava atrasadíssimo para ir não sei onde e estava a levar-nos com ele. Conduzia como um louco e de dois em dois minutos atendia o telefone. A Rita que ia à frente de vez em quando olhava para mim com cara de quem não estava a perceber patavina e eu respondia-lhe da mesma maneira solidária.

Passada uma hora de estradas verdejantes parámos numa grande casa que era ocupada pela última descendente dos Mendonça lá do sítio. Era um casarão colonial com apontamentos ultra bizarros, como uma rapariga que dormia-morta num canapé (parecia assombração) e um armário com um alçapão que dava para o túnel secreto dos tempos da guerra.

Depois desta parámos noutra grande fazenda, desta vez para conhecermos a descendente dos Menezes de Bragança, uma velhíssima senhora de olho azul, que falava num português estrangeirado, e nos fez um tour à própria casa através da idade das peças, assim: “vaso de porcelana chinesa, mais de 300 anos”,

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“dois castiçais portugueses, mais de 100 anos”, “tapete da pérsia, mais de 500 anos”, mas o que nós realmente queríamos saber era se podíamos atacar os “rissóis e croquetinhos, em menos de 5 minutos” que estavam a ser servidos a uma excursão de americanos.

Pelos vistos, a família do Atish, organizava excursões e viagens e estavam responsáveis por aquele grupo. A mãe dele, Premila, tinha tratado do maravilhoso catering que agora estava embuchado nas nossas goelas a pedir doses industriais de água. Já refeitas voltámos ao carro e fomos ver um pôr-do-sol maravilhoso numa praia completamente tropical. O Atish já estava menos stressado e agora que tinha acabado os telefonemas olhava para nós meio pasmado, como se tivesse acabado de nos conhecer! Ninguém deu um mergulho e fez-se conversa de ocasião. Contamos-lhe a viagem outra vez.

“Aii e Deli e o macaco gigante, enganadas pela família, rua do inferno, lençóis em Rishikesh, missa em Haridwar, fuga do Prince, Jaipur, o professor francês, motas em Pushkar, Jodpur é feia, Jaisalmer é linda, Udaipur é molhada, autocarros canis, vamos ser violadas ainda não, comboio, Goa, gajos mamados em trance, e chegamos até aqui! Percebeste?”

Quando chegámos a casa dele, apresentou-nos ao pai, o Adolfo e voltamos a ver a mãe. Eram todos tão genuinamente simpáticos e estavam tão contentes de ter duas portuguesas em casa que nos levaram logo para a festa de anos da irmã, que ficava numa casa enorme cheia de gente. Apresentaram-nos à família inteira e ficámos ali a fazer conversa com aqueles parentes. Eram aí umas 50 pessoas e nós andávamos de um lado para o outro a mostrar o nosso português perfeito. Eram todos muito simpáticos e um deles, forneceu-me logo uma data de Imodiuns para compensar o fracasso

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dos Ultralevur. Comia-se comida goesa deliciosa e eu fiquei-me pela sopinha!

Foi aí que conhecemos o André, um tipo gigantesco que podia ter muito bem acabado de sair de uma canoa da Polinésia. O André era o herdeiro de um império farmacêutico qualquer o que o tornava numa espécie de especialista em químicos. Como se não bastasse ele ainda era especialista em quase tudo, muito viajado e opinativo. A maior contribuição do André para a nossa viagem foi um certo xarope para a tosse que veio substituir o que eu andava a tomar, (que pelos vistos tinha uma grande concentração de metais pesados).

Chegámos a estas conclusões todas, sentados numa mesinha do Club Vasco da Gama, uma espécie de salão associativo que vendia cervejas e sonhos desde 1909, que era o ex-libris da vida noturna de Panjin. Tinha muita piada e nós sentíamo-nos algo especiais por sermos portuguesas, sentimento deveras novo e muito prazenteiro.

Depois de ver o nosso quarto na Somia Guest House, o Atish disse “nem pensar, vão mas é para minha casa”, “Ohh Atish não podemos aceitar…está bem”. Claro que aceitámos logo, tínhamos gostado mesmo da família Fernandes, e eles tinham caminhas fofas, estores e vidro nas janelas, ventoinha, Internet, casa de banho, papel higiénico, bolachinhas, água da torneira… Abracei-me aos lençóis lavados e às toalhas cheirosas, com emoção. Deitei-me na macia almofada e bebi umas goladas valentes de xarope. Finalmente tinha chegado a casa!

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