chamuças de bacalhau 15

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Chamuças de Bacalhau À procura de geleia. Isto não é um episódio do Babar. Sleppers, esse mistério. Chegada à Jaisalmer. O hotel tenebroso e o jardineiro pedófilo. Make your boyfriend more handsome. Eu bebi a última Coca-cola do deserto. Dentro do edredão sépia. 1

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Aventuras na India.

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Chamuças de BacalhauÀ procura de geleia. Isto não é um episódio do Babar. Sleppers, esse mistério. Chegada à Jaisalmer. O hotel tenebroso e o jardineiro pedófilo. Make your boyfriend more handsome. Eu bebi a última Coca-cola do deserto.

Dentro do edredão sépia.

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XVCastelo de Areia ou Jaisalmer

Ahhh, que maravilha este quartinho mexicano, dormi ferrada! O facto do quarto não ter janelas ajudou imenso. A Rita é que não gostou nada e teve um ataque-de-mau-Feng-Shui. Ela tinha decidido acordar mais cedo para ir explorar a cidade e eu decidi que era mais interessante ficar a dormir.

Quando voltou, passadas umas horas, resolvemos ir numa quest à procura de geleia para pôr no pão. Não é uma metáfora. Queríamos mesmo geleia para pôr nos pãezinhos de leite - como íamos voltar à estrada, não podíamos ficar dependentes dos horríveis fritos de malaguetas.

Confesso que já gostava mais de Jodhpur. O centro é uma praça à volta de uma torre com um relógio, e nesta há um pitoresco mercado de especiarias e vegetais. Quando entrámos, passou ao nosso lado um gigantesco elefante que carregava verduras. Naquele momento, parei de andar e interroguei-me como é que eu já não estranhava ver elefantes a passear ao meu lado! Não estava propriamente num episódio do Babar.

É claro que foi cómico, andar de barraquinha em barraquinha, a

tentar explicar o que era geleia. Finalmente lá a encontramos numa, onde um rapaz nos pediu para lhe traduzirmos uma dedicatória em espanhol do seu livro de dedicatórias de turistas inspirados. Como não percebi patavina da letra do dedicante e não querendo fazer uma desfeita ao garoto, logo ali inventei uma ardente prosa que fez as delícias da pobre alma. Comprei também o chocolate Nestlé mais

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duro que alguma vez já trinquei e só depois reparei que estava dois anos fora de prazo. Não matou, engordou!

Pagámos 180Rs para irmos para Jaisalmer. Foi uma decisão emotiva, visto que ficava um bocado fora de caminho. Toda a gente nos dizia que Jaisalmer era um pedaço de céu, e nós estávamos a precisar de todo o céu que conseguíssemos.

A viagem foi feita num autocarro com sleepers. Já tínhamos ouvido falar disto mas ainda não tínhamos andado em nenhum. Expliquemos então. Sleppers, não é mais que uma espécie de segundo nível do autocarro, onde as pessoas vão deitadas. Não é outro andar, reparem, é como o compartimento das malas dos aviões, mas um bocado maior. Não muito maior. Assim, nós íamos sentadinhas e por cima das nossas cabeças iam três indianos deitados. Para subir, tinham que meter os pézinhos imundos no braço da Rita que só conseguia balbuciar com um ar desesperado “que nojo, que nojo.” Em cada paragem, entrava mais e mais gente. Já havia malta a dormir no chão e crianças a caminho da escola. O que não deixava de ser estranho, visto aquele ser um autocarro com lugares marcados. Foram seis horas de viagem a fingir que dormíamos e na qual houve uma excitante fuga da Rita para ir fazer xixi ao mato. Tendo ela parado, de propósito, o autocarro e ficado inibida por se encontrar em pleno deserto e por ter 70 indianos a olhar, especados e expectantes, para ela. Desistiu e voltou à rasquinha para dentro da bela viatura enquanto gritava “estes tarados, estes tarados”.

A uns kilometros da cidade e depois da pausa gigantesca para esperar que o comboio passasse, lá paramos numa espécie de fronteira com uma guarita e três homenzinhos fardados, cena muito à Nikita do Elton Jonh. Entraram no autocarro e vieram direitinhos a nós. “Lá vamos nós outra vez”. Tínhamos que pagar a taxa para entrar em Jaisalmer. Estes até traziam um livrinho de recibos e tudo, imagine-se! O que aconteceu já vocês sabem, criámos o escândalo

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total. Vinha um francês ao nosso lado que abriu logo a carteirinha e pagou, o maricão! E nós lá continuamos a dizer que íamos chamar a polícia e outras instâncias oficiais. Claro que era tudo mentira, mas o que interessava era ganhar tempo. Foram como vieram.

Lá fora, começava o deserto! Uma planície interminável. Passavam carrinhas cheias de tropas a caminho do Paquistão. Já devíamos estar perto pois tinham-nos dito que Jaisalmer estava cheia de militares. O que não é grande notícia, porque estes conseguiam ter pior aspecto que os próprios terroristas. Mas enfim, Ganesh protege.

Chegámos finalmente a Jaisalmer. Um pó amarelado levantava-se do chão e vinha colar-se ao corpo. Estávamos tão moídas da viagem que já não dizíamos “camelo”. O francês que vinha no autocarro, encontrava-se num estado de espírito que variava entre o choque e a admiração pelas nossas personalidades bélicas. Era magrito e careca e tinha uns olhos azuis meio tristes e um inglês de quinta categoria, decidiu colar-se a nós.

Os tipos do hotel de Jodhpur tinham-nos dado um panfleto ordinário de um hotel em Jaisalmer. Chamava-se Mehrangarh e era pior que o panfleto - que tinha uma fotografia torta de uma fachada que fazia lembrar um Saloon do Faroeste, e prometia uma data comodidades. Como já íamos combinadas com eles, tínhamos uma carrinha à nossa espera para nos levar até lá. Há que acrescentar que a Rita estava algo rabugenta devido ao excesso de líquidos suportado pelo pobre corpo. Não fosse esse pequeno pormenor, o nosso destino teria sido completamente diferente. Vejamos.

Quando chegámos ao dito pardieiro ficámos de boca aberta. Não só as redondezas roçavam o fim do mundo como o próprio edifício era desolador. Nem a vista do telhado nos consolou. Estávamos longe do centro da cidade e só se viam putos a brincar com latas e a dar pontapés em cães pulguentos. Pior que isto tudo, só o quarto, uma

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espécie de buraco sem janelas, duma escuridão tenebrosa e de um cheiro que era uma afronta à saúde publica (só faltava o desenho a branco do cadáver no chão). Foi então que, no auge da pocilga, a Rita se passou, quero dizer, passou por mim, cheia de si, oferecendo slogans do género “estou farta desta merda” e “nem pensar que eu fico neste antro” e virou-se para o indianozinho que nos estava a fazer o tour, e disse:

-É assim – apontando com um olhar assassino - primeiro quero uma casa de banho. E depois quero que nos vás levar ao centro da cidade para ficarmos num hotel decente. Não vamos ficar aqui nem que nos paguem.

Naturalmente ninguém de terra nenhuma faria a tamanha estupidez de ir obedecer a uma rapariguinha. Mas esta rapariguinha disse aquilo com um ar tão teso e fatal que quando demos por nós estávamos a ser deixadas às portas da cidade, juntamente com o francês que olhava para aquilo tudo com um ar de tulipa mal desabrochada.

Eis-nos então, diante Jaisalmer, a cidadela dentro da muralha. Tudo parece ter sido feito de areia. Há dezenas de ruaszinhas estreitas que nos fazem subir de olhar maravilhado. Todo o tipo de lojinhas se declara à nossa passagem. T-shirts que prometem fazer namorados mais atraentes (make your boyfriend more handsome), malas de cabedal à Indiana Jones, livros deixados por turistas, e tantas outras coisas. Há tropas e camelos por todo o lado. E vacas, claro, sempre.

Andámos até não podermos subir mais e aí, mesmo no topo da cidade encontrámos, à sombra de uma enorme árvore que refrescava um pequeno largo, o nosso hotel. Percebemos logo que era ali que íamos ficar. Era um pequeno edifício com 3 andares a quem alguém decidiu chamar Suraja Guest House. Ficámos num quarto quadrado com umas portadas que davam para uma pequena varandinha muito

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à Hemingway-a-escrever-o-“Fiesta”. Eu cá só lhe dei uso para estender as meias lavadas.

O quarto, como sempre, tinha algumas particularidades deliciosas. Uma das paredes tinha um calendário de 1900 e tal com a cara de um marajá bigodudo qualquer. O edredão estava sépia de tão velho e a casa de banho era um anexo na varanda. Ficava-se mais ou menos ao ar livre (vá se lá saber porquê). A água do banho era fria e se quiséssemos quente só tínhamos que esperar meia hora por alguns baldes. Mas foi fria que ela me soube bem. Vesti-me “de limpo” dentro do possível. Enrolei-me na manta e subi ao telhado para beber um chai. A vista não dava para acreditar. Estávamos mesmo no ponto mais alto da região. À nossa volta um deserto de casas. Centenas de pequenas casas da cor da areia e uma imensidão plana. O sol estava a baixar e dourava absolutamente tudo. Encontramos uma espécie de cama que se debruçava sob a muralha e ai ficamos a beber o chai, lavadas e felizes.

O francês que tínhamos adoptado chamava-se Johan, era jardineiro, tinha 27 anos e um ar de budista anémico. Mal me viu de top veio logo cobrir-me com a manta, não fosse eu chocar a plebe com o ombrozinho apetitoso. Levou logo com uma expressão tão de “quem não gosta não olha” que decidiu mudar de estratégia dizendo que não devíamos ser tão duras para com os nativos. Respondi que nem todos podíamos tratar de florzinhas e deixei-o a confraternizar com os locais.

Mas a verdade é que quando decidimos ir dar uma volta pela cidade ele veio atrás. Era um tipo bastante calado mas de vez em quando tinha episódios histéricos. Um deles aconteceu exactamente quando eu decidi dar umas festas num cachorro desgraçado.

-Arrre u crrrrazy!!!! Don´t touchh thi dog! U vill get sick! Dont, dont!

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-OK, ok, vamos a ter calma com os germes pá, ando à 15 dias a dormir em cobertores nojentos, mais pulga, menos pulga, é pura hipocrisia, ein?

De resto tudo corria bem. A Rita estava feliz e eu também. Jaisalmer era das coisas mais bonitas que já tínhamos visto. Parecia que estávamos numa cidade medieval mediterrânica em pleno deserto. Não havia carros, nem buzinas. Só um silêncio milenar. Perdemo-nos literalmente pelas estreitas ruas. Andávamos à procura dos 7 templos Janainos (da religião indiana surgida no século VI a.C) que se escondiam pela cidade. Aquilo era tudo um sonho e senti-me um pouco em Óbidos, uma Óbidos em miniatura que alguém tinha feito numa praia. Estávamos em paz. O dia estava a desaparecer e nós lembramo-nos que ainda não tínhamos comido absolutamente nada.

Descobrimos um restaurante encavalitado sobre a muralha, com uma vista quase tão boa como a do hotel. Ainda não tinha ninguém a jantar e pedimos nans e coca-cola. Foi só a melhor coca-cola que já bebi, era de garrafa e estava mesmo a dar aquela “sensação de viver” que prometia nos anos 80. E depois havia a lua. Uma lua gigantesca. Uma lua cheia de deserto, encarnada e imensa. O restaurante estava as escuras, eu comia Butter Paneer e olhava para as estrelas. Nem falávamos.

Enquanto fui à casa de banho roubar papel higiénico, a Rita foi dar os parabéns ao chef (a Rita tem destas coisas). As pessoas começavam a chegar e nós decidimos eclipsar-nos. Antes do sono, ainda fomos à Internet, numa lojinha pequena que vendia magros chocolates a 5 Rs (não vale MESMO a pena tentar comer chocolates na Índia, são mesmo uma desilusão). O francês ficou a socializar com crianças à beira de uma fogueira. A Rita dizia que “ele era mas é um grandíssimo pedófilo” e eu não duvidei. Acabámos por lá ficar também. O ar tinha esfriado e o fogo queimava-nos as mãos e a cara.

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Os putos riam-se e chamavam-nos Marahanis (mulheres dos Marajás) e nós não dizíamos que não.

Deitamo-nos lá para a meia-noite. Estávamos cansadas do dia e saciadas do jantar. Tapamo-nos com o velho edredão e encolhemo-nos o mais possível. Passei a noite a ouvir o vento a bater nos grandes ramos da árvore do largo, a passar pelas folhas, a torcer a madeira. Adormeci a lembrar-me do som do mar que fazia a montanha ao vento em Rishikesh. A Índia embalava...

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