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Palavrasem Azul

ProfundoUm

romance

CATH CROWLEY

Tradução

LÍGIA AZEVEDO

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título original Words in deep blue© 2017 by Cath Crowley Publicado originalmente pela Pan Macmillan Australia Pty Limited. © 2018 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

direção editorial Marco Garciaedição Thaíse Costa Macêdoeditora-assistente Natália Chagas Máximopreparação Ana Alvaresrevisão Mariana Delfini e Juliana Bormio de Sousadireção de arte Ana Soltdiagramação Gabrielly Alice da Silvaarte da capa © 2017 by Jess Cruickshankfotografia de capa © 2017 by Christine Blackburne

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Crowley, Cath

Palavras em azul profundo / Cath Crowley ; tradução Lígia Azevedo.

-- São Paulo : Plataforma21, 2018.

Título original: Words in deep blue

ISBN 978-85-92783-77-8

1. Ficção juvenil 2. Suspense - Ficção I. Título.

18-17603 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura juvenil 028.5

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Todos os direitos desta edição reservados à

VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866plataforma21.com.br | [email protected]

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Para Michael Crowley e

Michael Kitson, que mudaram tudo

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Um livro deve ser como um machado

para o mar congelado dentro de nós.

kafka

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O rei pálidode David Foster Wallace

Marcação encontrada na página 585

Toda história de amor é

uma história de fantasmas.

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Prufrock e outras observaçõesde T.S. Eliot

Carta deixada entre as páginas 4 e 5

12 de dezembro de 2012

Querido Henry,

Estou deixando esta carta na mesma página de “A

canção de amor de J. Alfred Prufrock” porque você ama

esse poema, e eu te amo. Sei que você está com Amy, mas

que se foda. Ela não te ama, Henry. Só ama a si mesma,

e bastante, na verdade. E eu te amo. Amo que você leia

tanto. Amo que ame livros usados. Amo meio que tudo em

você, e já te conheço há dez anos, o que quer dizer alguma

coisa. Vou embora amanhã. Me liga quando vir isso, não

importa a hora.

Rachel

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RachelAbro os olhos à meia-noite. Ouço o mar e meu irmão respirando.

Faz dez meses que Cal se afogou, mas os sonhos ainda vêm.

Neles, sou confiante, líquida como o mar. Respiro debaixo

d’água, com os olhos abertos, sem me incomodar com o sal. Vejo

peixes, um cardume de barriga prateada nadando logo abaixo. Cal

surge, pronto para identificá-los, mas não conhecemos esses peixes.

– Cavalinha – ele diz para mim, a palavra saindo em bolhas

que consigo ouvir.

Mas não são cavalinhas. Nem dourado ou qualquer outro peixe

que arriscamos. São prata pura.

– Uma espécie não identificada – dizemos enquanto os obser-

vamos passando de um lado a outro.

A água tem a textura da tristeza: sal, calor e lembranças.

Cal está no quarto quando acordo. Sua pele cor de leite se des-

taca na escuridão, e ele está molhado do mar. Impossível, mas tão

real que sinto cheiro de sal e chiclete de maçã. Tão real que posso

ver a cicatriz em seu pé direito – um corte feito por um pedaço de

vidro na areia e há muito curado. Ele fala sobre os peixes do sonho:

prata pura, não identificados, desaparecidos.

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O quarto está escuro, a não ser pela luz da lua. Toco o ar em

busca do sonho, mas só encontro as orelhas do labrador dele, Woof.

Ele me segue por toda parte desde o enterro, uma longa linha preta

da qual não consigo me livrar.

Em geral, Woof dorme ao pé da cama ou na porta do quarto,

mas nas últimas duas noites deitou na frente das minhas malas

prontas. Não posso levá-lo comigo.

– Você é um cachorro de praia. – Passo o dedo por seu longo

focinho. – Ia enlouquecer na cidade.

Não tenho como dormir depois de um sonho com Cal, então

me visto e saio pela janela. Resta apenas um quarto da lua. O ar

está tão quente que parece dia. Cortei o gramado no fim da tarde

de ontem, de modo que a grama quente gruda na sola dos meus

pés conforme ando.

Woof e eu chegamos depressa à praia. Não há quase nada entre

minha casa e o mar. Só a estrada, uma faixa curta de mato e as

dunas. A noite é toda alga e aroma. Sal e árvore; fumaça de uma fo-

gueira bem longe na areia. E lembranças também. Nadar no verão e

caminhar à noite, em busca de conchas, peixinhos e estrelas-do-mar.

Mais adiante, na direção do farol, fica o lugar onde uma baleia-

-bicuda encalhou. Uma gigante de seis metros, com o lado direito

do rosto pressionado contra a areia, o olho visível aberto. Uma mul-

tidão se reuniu à sua volta depois – cientistas e locais, estudando

e encarando. Mas, antes, só mamãe, Cal e eu no frio da manhã.

Eu tinha nove anos, e a baleia me olhava, parecendo metade cria-

tura marinha e metade pássaro com seu bico comprido. Eu queria

estudar as águas profundas de onde ela tinha vindo, as coisas que

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poderia ter visto. Cal e eu passamos o dia olhando os livros da

mamãe e fuçando na internet. A baleia-bicuda é uma das criaturas

marinhas menos compreendidas, copiei no meu diário. Vivem a uma

profundidade tamanha que a pressão poderia matar.

Não acredito em fantasmas, em vidas passadas, em viagem no

tempo ou em qualquer uma das coisas estranhas sobre as quais Cal

gostava de ler. Mas, sempre que vou à praia, desejo voltar – ao dia

da baleia, a qualquer dia antes de Cal morrer. Com o que eu sei,

estaria pronta. Poderia salvá-lo.

É tarde, mas deve ter gente da escola na rua, então vou até um

lugar tranquilo e afastado. Me enfio nas dunas, enterrando as per-

nas até chegar ao quadril, e fico olhando para a água. Está banhada

pelo luar, e o prateado se espalha por toda a superfície.

Tentei e tentei parar de pensar no dia em que Cal se afogou, mas

não consigo. Ouço suas palavras. Ouço seus passos na areia. Eu o

vejo submergindo: um arco longo e frágil desaparecendo no mar.

Não tenho certeza de quanto tempo faz que estou aqui quando

vejo minha mãe caminhando pelas dunas, os pés lutando para não

derrapar. Ela senta ao meu lado e acende um cigarro, protegendo-o

da noite.

Minha mãe começou a fumar depois que Cal morreu. Encontrei

meu pai e ela escondidos atrás da igreja depois do enterro.

– Não diga nada, Rach – ela pediu, e eu fiquei entre os dois,

segurando a mão livre de cada um, desejando que Cal estivesse lá

para ver como papai e mamãe fumando era estranho.

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Meu pai é médico; trabalha na Médicos Sem Fronteiras desde

o divórcio, dez anos atrás. Mamãe é professora de ciências numa

escola de ensino médio em Sea Ridge. Minha vida inteira eles sem-

pre falaram que cigarros eram algo mortal.

Ficamos olhando para a água em silêncio por um tempo. Não

sei como minha mãe se sente em relação ao mar agora. Ela não

entra mais, mas nos encontramos na praia toda noite. Foi mamãe

quem nos ensinou a nadar, pegando a água da frente e empurrando

para trás, controlando a corrente. Ela nos disse para não ter medo.

– Mas nunca nadem sozinhos – ela também havia dito.

E, a não ser por aquele dia, nós nunca nadamos.

– Você já arrumou as malas? – minha mãe pergunta agora, e

eu assinto.

Amanhã vou para Gracetown, um subúrbio de Melbourne, ci-

dade em que minha tia Rose mora. Eu repeti o último ano, e não

planejo tentar de novo no ano que vem, então Rose me arranjou

um emprego no café do hospital St. Albert’s, onde ela trabalha

como médica.

Cal e eu crescemos em Gracetown. Mudamos para Sea Ridge

há três anos, quando eu tinha quinze. Vovó precisava de ajuda, e

não queríamos que ela vendesse a casa ou fosse para uma casa de

repouso. Desde que nós nascemos, passamos todos os feriados,

de verão ou inverno, com ela, então Sea Ridge era como nosso

segundo lar.

– O último ano não é tudo – minha mãe diz.

Talvez não seja, mas, antes de Cal morrer, eu tinha toda uma

vida planejada. Só tirava nota máxima e era feliz. Sentei neste

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mesmo lugar no ano passado e disse a Cal que queria ser ictiolo-

gista, estudando peixes como a quimera, que evoluiu há quatro-

centos milhões de anos. Ficamos tentando imaginar aquele mundo

tão distante.

– Sinto como se o universo tivesse traído a gente também, não

só Cal – eu digo.

Antes da morte do meu irmão, minha mãe teria explicado de

maneira calma e lógica que o universo era tudo o que existia em

termos de matéria e espaço – um diâmetro de dez bilhões de anos-

-luz, incluindo galáxias, o sistema solar, estrelas e planetas. E que

isso tudo simplesmente não tinha a capacidade de trair uma pessoa.

Hoje, ela só acende outro cigarro e diz:

– É verdade.

Então solta a fumaça na direção das estrelas.

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HenryEstou deitado ao lado de Amy na seção de autoajuda da Howling

Books. Estamos sozinhos na livraria. São dez da noite de uma quinta

e vou ser honesto: estou tentando em vão controlar uma ereção.

O que não é totalmente minha culpa. Meu corpo funciona com

base na memória muscular.

Em geral, é neste momento e neste lugar que eu e Amy nos

beijamos. É agora que nossos corações respiram fundo, com ela

deitada ao meu lado, com a pele quente e cheia de graça, fazendo

piadas sobre o estado do meu cabelo. É quando falamos sobre o

futuro, o qual, se você tivesse me perguntado quinze minutos atrás,

estava mais do que definido.

– Quero terminar – ela diz, e a princípio eu acho que está

brincando.

A menos de doze horas, estávamos nos beijando neste exato

lugar. Também fizemos algumas outras coisas bem legais. Penso

nisso até que ela me cutuca.

– Henry? Fala alguma coisa.

– O quê? – pergunto.

– Não sei. O que estiver pensando.

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– Estou pensando que isso é totalmente inesperado e meio sa-

canagem. – Eu me esforço para levantar o corpo. – Compramos

passagens. Passagens que não podem ser remarcadas ou reembol-

sadas para 12 de março.

– Eu sei, Henry – ela diz.

– Vamos embora em dez semanas.

– Calma – pede Amy, como se eu estivesse sendo irracional, mas

a verdade é que gastei todas as minhas economias comprando uma

passagem de volta ao mundo com seis paradas. Cingapura, Berlim,

Roma, Londres, Helsinki e Nova York.

– Já fechamos o seguro-viagem e fizemos os passaportes.

Compramos guias e aqueles travesseirinhos para o avião. – Ela

morde o lado direito da boca, e eu me esforço para não pensar em

beijá-la, mas em vão. – Você disse que me amava.

– E amo – ela diz, mas usando aquela definição desanimadora

de “amor”. – Mas acho que não desse jeito. Eu tentei. De verdade.

Deve ser a frase mais deprimente na história do amor. Tento

muito amar você. Não tenho certeza de muitas coisas, mas disso,

sim: quando for velho e tiver demência, quando meu cérebro não

passar de fumaça, ainda vou me lembrar dessas palavras.

Eu deveria pedir para que ela fosse embora. Deveria dizer: “Quer

saber? Não quero ver a terra de William Shakespeare, Mary Shelley,

Friedrich Nietzsche, Jane Austen, Emily Dickinson e Karen Russell

com uma garota que está tentando muito me amar”. Deveria dizer:

“Se você não me ama, então não te amo também”.

Mas eu amo, cacete, e quero ver todos esses lugares com ela, sou

um otimista sem um pingo de dignidade, então o que eu digo é:

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– Se mudar de ideia, sabe onde eu moro.

Em minha defesa, ela está chorando e somos amigos desde o

nono ano, o que para mim conta muito.

Amy não tem como ir embora sem passar por cima de mim,

porque a seção de autoajuda fica num quartinho nos fundos do

sebo da minha família, que a maior parte dos clientes pensa que é

um armário, mas é grande o bastante para que duas pessoas fiquem

deitadas lado a lado, mas sem nenhuma folga.

Fazemos uma estranha dança conforme ela levanta, lutando

com delicadeza para nos desemaranhar. Nos beijamos antes que

ela vá. É um beijo longo, um beijo bom, e, enquanto isso, me deixo

esperar que talvez, apenas talvez, seja tão bom que Amy vá mudar

de ideia.

Mas, depois que acaba, ela fica de pé, ajeita a saia e me dirige

um aceno triste e contido. Então me deixa aqui, deitado no chão da

seção de autoajuda, como um homem morto. Um homem morto com

uma passagem não reembolsável e não adiável de volta ao mundo.

Finalmente, eu me arrasto para fora da seção de autoajuda e abro

caminho para o sofá da ficção – comprido, de veludo azul e locali-

zado em frente às estantes de clássicos. Quase não durmo mais lá

em cima. Gosto dos ruídos e do pó da livraria à noite.

Fico deitado ali pensando em Amy. Repasso a semana passada,

correndo pelas horas, tentando descobrir o que mudou entre nós.

Mas sou a mesma pessoa que era sete dias atrás. Sou a mesma pes-

soa que era desde a manhã em que nos conhecemos.

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Amy veio de uma escola particular do outro lado do rio. Ela mu-

dou para este lado da cidade quando o escritório de contabilidade

em que o pai trabalhava cortou alguns funcionários para conseguir

se manter. Eles moravam em um dos novos prédios que subiram na

Green Street, não muito longe da escola. Do novo quarto de Amy,

dava para ouvir o tráfego e o disparo da descarga do apartamento

ao lado. Do quarto antigo, ela só ouvia os pássaros. Aprendi essas

coisas antes de começarmos a sair, em conversas rápidas ao voltar

para casa depois de uma festa, na aula de inglês, na detenção, na

biblioteca ou quando ela passava na livraria nas tardes de domingo.

No dia em que a conheci, só sabia o superficial: ela tinha cabelo

comprido e ruivo, olhos verdes e pele branca. Cheirava a f lores.

Usava meias compridas. Ia para uma mesa vazia e esperava que as

pessoas se sentassem ao seu lado. E elas sentavam.

Sentei um pouco à frente e a ouvi conversar com Aaliyah.

– Quem é ele? – ouvi Amy perguntar.

– Henry – disse Aaliyah. – Engraçado. Inteligente. Bonitinho.

Me esforcei para ouvir mais, sem me virar.

– E xereta – acrescentou Amy, dando um chutinho nas costas

da minha cadeira.

Só começamos a namorar oficialmente no último ano, mas a

primeira vez que nos beijamos foi no nono. Aconteceu por causa

de uma aula de inglês. Estávamos estudando os contos de Ray

Bradbury. Depois que lemos “A última noite do mundo”, todo

mundo comprou a ideia de que devíamos fazer como se aquela

fosse a nossa última noite, então deveríamos fazer tudo como se o

apocalipse estivesse chegando.

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O professor de inglês nos ouviu falando e o diretor pediu que

não fizéssemos isso. Parecia perigoso. Continuamos com nossos

planos por baixo dos panos. Folhetos apareceram nos armários

marcando a data de 12 de dezembro, o último dia de aula antes

das férias. Haveria uma festa na casa de Justin Kent. se prepare,

o folheto dizia. o fim está próximo.

Fiquei acordado até tarde na noite anterior, tentando escrever

a carta perfeita para Amy, uma que a convencesse a passar sua

última noite no mundo comigo. Fui para a escola com a carta no

bolso da camisa, sabendo que provavelmente não ia entregá-la,

mas esperando que conseguisse fazê-lo. Meu plano era passar mi-

nha última noite com meus amigos, a menos que algum milagre

acontecesse e Amy se tornasse uma possibilidade.

Ninguém prestou atenção na aula aquele dia. Havia peque-

nos sinais em todas as partes de que o fim realmente viria.

Alguém havia virado todos os avisos do quadro da classe de

cabeça para baixo. Alguém havia entalhado o fim na moldura

da lousa. Abri meu armário na hora do almoço e encontrei

um pedaço de papel em que estava escrito só mais um dia,

então me dei conta de que ninguém tinha se dado ao trabalho

de discutir em detalhes quando o mundo de fato acabaria.

À meia-noite? Ao nascer do sol?

Estava pensando a respeito quando virei e me deparei com

Amy ao meu lado. O bilhete estava no meu bolso, mas não podia

entregá-lo. Em vez disso, peguei o papelzinho que dizia só mais um

dia e perguntei o que planejava fazer aquela noite. Ela me encarou

por um momento e acabou dizendo:

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– Eu achei que talvez fosse me convidar para passar a noite

com você.

Havia um monte de gente no corredor ouvindo, e ninguém,

nem mesmo eu, podia acreditar na minha sorte.

Para me dar o máximo tempo de vida, decidi que o mundo ia

acabar quando o sol aparecesse – às cinco e cinquenta da manhã,

de acordo com o canal do tempo.

Nós nos encontramos na livraria às cinco e cinquenta da tarde

para que tivéssemos exatas doze horas, então fomos jantar co-

mida chinesa. Por volta das nove, fomos para a festa de Justin.

Quando ficou barulhenta demais, andamos até o Benito Building

e pegamos o elevador para o topo. Estávamos no lugar mais alto

de Gracetown.

Sentamos em cima do meu casaco e ficamos olhando as luzes.

Ela me contou sobre o apartamento em que morava, o quarto

pequeno, os pássaros que haviam sido substituídos pela descarga.

Levaria anos para que Amy me contasse como era esquisito ouvir

o pai chorando por causa do emprego perdido. Naquele dia, ela só

sinalizou as preocupações da família. Falei da livraria, caso um dia

precisasse de espaço. Às vezes, dava para ouvir alguns passarinhos

no jardim de leitura. Disse que o som das páginas virando era

surpreendentemente reconfortante.

Então, Amy me beijou. Ainda que só tivéssemos começado a

namorar anos depois, algo começou naquele instante. De tempos

em tempos, quando ela terminava uma festa sozinha, nos beijáva-

mos. Mesmo se Amy estivesse com outro cara, as garotas sabiam

que eu era dela.

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No último ano, Amy foi até a livraria uma noite. Estava fechada.

Eu estudava atrás do balcão. Amy estava saindo com um cara cha-

mado Ewan, que estudava no antigo bairro dela. Eu gostava daque-

les caras, porque raras vezes os via. Ewan havia terminado tudo, e

Amy precisava de alguém de confiança para levá-la ao baile. Então

lá estava ela, batendo no vidro e chamando meu nome.

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