carvalho, c. para compreender saussure. p. 17-25

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Para· compreender Castelar de Carvalho ._------ 110 EDiÇÃO . CORRIGIDA . ./li EDITORA Y VOZES

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Page 1: CARVALHO, C. Para Compreender Saussure. p. 17-25

Para·compreender

Castelar deCarvalho

._------

110 EDiÇÃO. CORRIGIDA .

. /li EDITORAY VOZES

Page 2: CARVALHO, C. Para Compreender Saussure. p. 17-25

Visão Geral da Lingüística antes de Saussure

A Lingüística, definida hoje como o estudo científico da linguagem humana,é, como diz Mounin (1972: 25), "um saber muito antigo e uma ciência muito jo-vem". O Prof. Mattoso Camara Jr., em seu Dicionário de lingüística e gramática,a define como "o estudo científico e desinteressado dos fenômenos lingüísticos".Mas nem sempre um estudo científico e muito menos desinteressado caracterizousua trajetória secular. Na verdade, a Lingüísticasófoi adquirir status de ciência apa.~t!r_ºo século XIX. Até então o quehavia era o estudo assistemático e irregulardos fatos da linguagem, de caráter puramente normativo ou prescritivo, ou ainda,retrocedendo à Antigüidade grega, especulações filosóficas sobre a origem da lin-guagem mescladas com estudos de Filologia. Até chegar a delimitar-se e defi-nir-se a si própria, a Lingüística passou por três fases sucessivas.

r Fase: Filosófica

Os gregos foram os precursores com suas profundas reflexões em tomo da ori-gem da linguagem. Seus estudos, calcados na Filosofia, abrangeram a Etimologia, aSemântica, a Retórica, a Morfologia, a Fonética, a Filologia e a Sintaxe. Basea-vam-se na Lógica (analogistas) ou no uso corrente (anomalistas). Tinham de iníciofinalidades eminentemente práticas: era uma Gramática voltada para a práxis, paraa ação, o fazer. Dionísio da Trácia (séc. I a.C.) a chamou de Tékhné Grammatiké,expressão traduzida mais tarde pelos romanos como Ars Grammatica.

Desse modo, a Gramática surgiu no Ocidente como arte de ler e escrever,como disciplina nonnativa que, por seu comprometimento filosófico, estava des-provida de uma visão científica e desinteressada da língua em si mesma. Domina-da doutrinariamente pela corrente dos analogistas (aristotélica) ou pela dos ano-malistas (estóicos), a Gramática grega será reproduzida pelos romanos, que,numa tentativa de conciliar aquelas duas posições, fazem nascer a Gramática "dasregras e das exceções".

A influência grega se fez sentir durante muitos séculos. Marcando toda a Ida-de Média, chegou a motivar na França, em 1660, a elaboração de uma Gramática

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geral, a famosa "Grammaire de Port-Royal", de base puramente lógica, coinci-dindo com a fase do Racionalismo. O mérito dos estudiosos gregos é imenso, nes-se sentido, pelo seu caráter precursor. Na verdade, as raízes do pensamento lin-güístico ocidental mergulham profundamente na Grécia Antiga.

Z" Fase: Filologica

A Filologia se constitui numa segunda fase dos estudos lingüísticos. Surgi daem Alexandria por volta do século II a.c., batia-se pela autonomia dos referidosestudos. Os alexandrinos queriam-nos mais filológicos e menos filosóficos.Defi-nindo-se historicamente como o estudo da elucidação de textos, a Filologia dosalexandrinos, de preocupação marcadamente gramatical, dedicou-se à Morfolo-gia, à Sintaxe e à Fonética.

Tendo influenciado bastante a Idade Média, os estudos filo lógicos encontra-ram, mais tarde, em Friedrich August Wolfum de seus maiores divulgadores. Apartir do final do século XVIII, a escola alemã de Wolfveio estendendo conside-ravelmente o campo e o âmbito da Filologia. Além de interpretar e comentar ostextos, a Filologia procura também estudar os costumes, as instituições e a histó-ria literária de um povo. Entretanto, seu ponto de vista crítico torna-selimitado,pelo fato de ela ater-se demasiadamente à língua escrita, deixando de lado a lín-gua falada. Contudo, é forçoso reconhecer que as pesquisas filo lógicas serviramde base para o surgimento e a consolidação da Lingüística histórico-comparatista .

.. -._--- - ,- .....

jafase: Historico-comparatista

A terceira fase da história da Lingüística começa com a descoberta do sânscri-to entre 1786 e 1816, mostrando as relações de parentesco genético do latim, do~rego, das línguas germânicas, eslavas e célticas com aquela antiga língua daIndia. A preocupação diacrônica em saber como as linguas evoluem, e não comofuncionam, é que vai marcar toda essa fase.

Franz Bopp (1791-1867), o que melhor aproveitou o conhecimento do sâns-crito, é considerado o fundador da Lingüística Comparatista. Seu livro Sobre osistema de conjugação do sânscrito, de 1816, abriu então novas perspectivas lin-güísticas. Para Bopp, a fonte comum das flexões verbais do latim, do grego, dopersa e do germânico era o sânscrito. Para ele, o sânscrito era o idioma que mais seaproximava, por sua estrutura morfológica, de uma espécie de protolíngua indo-eu-ropéia. Apesar de não ter sido o descobridor do sânscrito, é para Bopp que conver-ge o mérito de haver sido o primeiro a realizar o estudo sistemático de línguasafins como matéria de uma ciência autônoma.

Ao lado do nome de Bopp, citam-se também como pioneiros da Lingüísticahistórico-científica o dinamarquês Rasmus Rask (1787-1832) e o alemão JacobGrimm (1785-1863). Rasmus Rask escreveu um trabalho sobre a origem do velho

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nórdico (1818). Rask mostra aí os pontos de contato entre as principais línguasindo-européias e as línguas nórdicas. Jacob Grimm foi o primeiro a escrever umagramática comparada das línguas germânicas: a Deutsche Grammatik, publicadaem 1819. Grimm é considerado o pai do que mais tarde se chamariam "leis fonéti-cas". Os termos metafonia (Umlaut) e apofonia (Ablaut) são criações de Grimm.

A metafonia diz respeito à mudança de timbre de uma vogal tônica por in-fluência de outra, geralmente -i- ou -u: debita> dívida,fócu > fôgo. A apofonia é amudança de timbre de uma vogal por influência de um prefixo: *in+barba> im-berbe; *sub+jactu > subjectu > sujeito. A apofonia é um metaplasmo que remontaao latim.

Com o desenvolvimento da Filologia Comparada, a Lingüística indo-euro-péia experimentou extraordinário impulso.

A tendência dessa fase inicial da Lingüística Comparatista era identificar-secom as ciências da natureza, consoante o espírito da segunda metade do séculoXIX. Essa tendência deu às primeiras idéias lingüísticas desse século um enfoquenaturalista, a princípio de base biológica (o biologismo lingüístico: as línguasnascem, crescem e morrem, como os organismos biológicos), e a seguir de basefísica (leis da Lingüística se aproximam das leis físicas: leis fonéticas). Nestecaso, salientou-se o papel dos neogramáticos pelo excessivo esquematismo quederam às suas postulações.

A Lingüística Histórica ainda se prolonga por mais algumas décadas, desdo-brando-se, em um segundo momento, numa reação aos neogramáticos caracteri-zada como "fase culturalista" (1890-1930). O culturalismo lingüístico combatia onaturalismo então reinante: era a oposição cultura/natura. Os estudiosos dessafase afirmavam não haver correspondência entre as chamadas "leis fonéticas" e asleis da natureza. As leis fonéticas são cronológicas e circunstanciais, têm validadeapenas para um determinado período histórico, sofrem limitação espacial e só semanifestam em condições particulares. As leis naturais, ao contrário, são atempo-rais e, o mais importante, universais. Ora, se as "leis fonéticas" fossem de fato leisnaturais, argumentavam os culturalistas, o latim teria resultado numa única línguana França, na Itália, na Espanha, em Portugal e nos demais domínios do ImpérioRomano. Portanto, para o culturalismo lingüístico não existem leis fonéticas nosentido fisicalista. Há, isto sim, circunstâncias histórico-culturais que condicio-nam as alterações fonéticas.~~~Q.Ilciº_º.l?ensamento culturalista, as língua..sl1ã,ºexistem por si mesmas. São instrumentos culturais c;()ndicion3"dos··porfatõres so-ciais;!list6r·icos, geográficos, psicológicos e, por isso mesmo, de previsibilidaderelativa e comportamento inconstante, justamente o oposto do que acontece nocàmpo das Ciências naturais.

Em síntese, podemos esquematizar o quadro dos estudos lingüísticas no sécu-lo XIX (e parte da séc. XX) da seguinte maneira:

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fase naturalista (1810-1890)

- preocupação com a história interna da língua.

fase culturalista (1890-1930)

- preocupação com fatores externos, condicionadores da língua(= histórico-culturais).

A história interna trata da evolução estrutural (fonológica e morfossintática)da língua. No caso do latim vulgar da Península Ibérica, serve de exemplo o estu-do da redução dos casos, dos quais restou apenas um: o acusativo, conhecidocomo caso lexicogênico, ou seja, gerador do léxico da língua portuguesa. Duasboas obras se ocupam da história interna do português: Pontos de gramática his-tórica, de Ismael de Lima Coutinho (Ed. Ao Livro Técnico), e História e estrutu-ra da língua portuguesa, de Mattoso Camara Jr. (Ed. Padrão).

A história externa tem por objeto de estudo as relações existentes entre os fa-tores socioculturais e a evolução lingüística. Pioneiro desses estudos entre nós,Serafim da Silva Neto (1976:14) esclarece: "A matéria de história da língua por-tuguesa no Brasil há de investigar-se na etnografia e na evolução histórico-socialdo povo brasileiro". Em coerência com seu ponto de vista, Serafim divide a histó-ria externa do português do Brasil em três fases, segundo um critério etnôlingüis-tico em que se estudam as influências exercidas em nossa língua pelas três raçasformadoras do povo brasileiro: o índio, o negro e o branco.

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Ferdinand de Saussure (1857/1913): Formação e obras

À época em que Saussure recebeu sua formação acadêmica, o Comparativismoindo-europeu dominava os estudos lingüísticos. Fase decisiva e cujos êxitos marcan-tes sobre pontos importantes e essenciais da nossa ciência se constituíram no princi-pal legado do século XIX ao século XX. Saussure não poderia ficar imune a essaatmosfera científica e dela participou brilhantemente. Tendo vivido em Leipzig eBerlim de 1876 a 1878, aí manteve contato com os expoentes da Lingüística Compa-ratista de então, dos quais recebeu sólido embasamento e decisiva influência. Assim éque mais tarde, durante os onze anos (1880/1891) em que foi diretor da École Prati-que des Hautes Études, em Paris, passaram pelas suas mãos os mais importantescomparatistas franceses, que dele receberam formação, influência e continuidade.

É de 1879 a publicação da Mémoire sur le primitif systême des voyelles dansles langues indo-européenes. Apesar da orientação atomística própria da correnteneogramática, Saussurc inova em sua Mémoire situando o problema da reconstitui-ção fonética do indo-europeu sob uma perspectiva sistemática. Sua tese de doutora-mento, um ano mais tarde, intitulava-se De I 'etnploi du génitif absolu en sanskrit.Além de artigos de Gramática comparada, infelizmente nada mais nos legou emvida o genial mestre genebrino. Seu Cours de linguistique générale (CLG), comosabemos, resultou da compilação por dois discípulos seus dos três cursos de Lin-güística Geral que ministrara de 1906 a 1911 na Universidade de Genebra, onde eratitular desde 1896. Esses dois alunos foram Charles Bally e Albcrt Sechehaye, coma colaboração de outro discípulo, Albert Riedlinger. Trata-se, portanto, de obra pós-tuma e inacabada, calcada em anotações colhidas em aula por seus alunos e, comotal, explicam-se as possíveis obscuridades e contradições das idéias de Saussure.Nela se reconhecem fórmulas de aspecto por vezes paradoxal, onde salta aos olhoso estilo de ensino oral. Apesar desse fato, as idéias motrizes de sua obra póstuma,por oposição ao método histórico-comparatista dominante até então, vieram revo-lucionar completamente o pensamento lingüístico ocidentaL Na verdade, Saussurefoi um espírito mais projetado para o século XX do que voltado para o séculoXIX, como soía acontecer com os intelectuais de seu tempo.

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Hoje, mais de meio século depois de seu desaparecimento, Saussurc é estuda-do com o respeito, o cuidado e a atenção que merecem os gênios. Todos quantos seaprofundam na pesquisa de suas postulações adquirem consciência da importânciado Cours para a Lingüística moderna e passam a compreender por que Saussure éconsiderado um divisor de águas no estudo científico da linguagem.

A Doutrina de Saussure

o grande mérito de Saussure está, antes de tudo, no seu caráter metodológico, umprolongamento da sua personalidade perfeccionista. Era preciso, em primeiro lugar,pôr ordem nos estudos lingüísticas. Para poder criar e postular suas teorias com perfei-ção científica, impunha-se-lhe, antes, um trabalho metodológico preliminar. Os lin-güistas até então tratavam de coisas diferentes com nomes iguais e vice-versa. A au-sência de uma terminologia adequada, precisa, objetiva, de alcance universal (c sabe-mos, desde os gregos, que só há ciência do universal), instrumento de trabalho im-prescindível a qualquer ciência digna do nome, tolhia-lhes a expressão das idéias. Porexemplo, o termo lingua tinha para alguns lingüistas um determinado sentido; paraoutros, já adquiria conotação totalmente diversa. A Lingüística ressentia-se de umalinguagem equívoca, verdadeira colcha de retalhos tcrnunológica, e Saussurc neces-sitava de uma linguagem univoca, de um padrão lingüístico, de uma metalinguagem,isto é, de uma nova linguagem para expressar suas elucubrações. Sua primeira tarefa,portanto, foi "limpar o terreno" para poder depois trabalhar.

A Lingüística, escreveu ele, "jamais se preocupou em determinar a naturezado seu objeto de estudo. Ora, sem essa operação elementar, uma ciência é incapazde estabelecer um método para si própria" (CLG, 10).

O esquema abaixo dá a idéia exata do que, segundo Saussure, é "a forma ra-cional que deve assumir o estudo lingüístico" (p. 115):

linguagem{

sincronia

línguadiacronia

1relações associativas(= paradigmáticas)

relações sintagmáticas

fala

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Além disso, inova também com sua famosa e polêmica Teoria do Signo Lingüístico:

{

significantesigno

significado

{

arbitrariedadeprincípios do signo

linearidade

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