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Carolyn Turgeon A SEREIA A reinvenção de uma história clássica Tradução Irene Daun e Lorena Nuno Daun e Lorena

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Carolyn Turgeon

A SEREIAA reinvenção de uma história clássica

TraduçãoIrene Daun e LorenaNuno Daun e Lorena

Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2011, Carolyn Turgeon© 2011, Planeta Manuscrito

Título original: MermaidA Twist On a Classic Tale

Revisão: Eulália Pyrrait

Paginação: Maria João Cifka

1.ª edição: Junho de 2012

Depósito legal n.º 345 386/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978‑989‑657‑286‑0

www.planeta.pt

Mal entrou no rio ficou purificada, tão reluzente quanto uma pedra branca lavada pela chuva, e sem hesitar nadou na direcção do nada, na direcção da morte.

Pablo Neruda

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Capítulo 1

A princesa

Estava um dia sombrio, carregado de nuvens, quando a princesa viu pela primeira vez aqueles que lhe mudariam a vida. A sua chegada não foi anunciada por nada, por nenhum bando de pássaros ou pelas folhas de chá no fundo de uma chávena. O convento estava apenas mais calmo do que o habitual. O serviço da manhã terminara e as frei-ras encaminhavam-se para as respectivas celas. A abadessa fechara-se na sua câmara. Só a princesa continuava no jardim, vagueando ao longo do muro que dava para o mar. Ali, junto do velho poço, o muro dava-lhe pelos joelhos. Um velho portão abria-se para uma escada que descia, sinuosa, até à praia. Envolta em peles, a princesa tremia por causa do vento que subia do mar, agitando as árvores nuas.

Devia estar na sua cela e não ali, mas as regras não eram iguais para ela. A abadessa ordenara às freiras que a deixassem à vontade. A princesa chegara uma noite a cavalo, ninguém sabia porquê, acom-panhada por três homens armados que haviam depositado uma grande arca numa cela dupla da ala das noviças e que tinham desa-parecido tão discretamente quanto chegaram.

Só a abadessa sabia que ela era filha do rei do Norte e que estava escondida depois de se ter sabido que o Sul estava em vias de reco-

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meçar os ataques. As freiras conheciam-na pelo nome de Mira, diminutivo de Margrethe. Muitas supunham que ela sofria de uma espécie qualquer de doença ou de melancolia e as noviças menos comprometidas tinham passado horas, ao longo dos últimos meses, a tentar adivinhar qual delas. Uns dias após a sua chegada aparecera outra pensionista, uma rapariga ruiva chamada Edele que se tornara depressa sua amiga, quase como se se tivessem conhecido toda a vida.

Margrethe não quisera refugiar-se naquele posto avançado deso-lado, não estava habituada à solidão daquela parte do mundo, tinha saudades do castelo, dos longos jantares à lareira, dos bailes, dos passeios de trenó, do seu quarto com a pequena lareira onde havia sempre pinhas a arder e onde a respectiva pedra estava sempre cheia de livros. A princesa tinha saudades especiais dos livros e das longas horas passadas com o velho conselheiro e tutor do seu pai, Gregor, que lhe ensinava filosofia e lhe contava histórias de batalhas antigas e de grandes amores, mas o reino estava ameaçado e o pai dissera- -lhe que aquele lugar na orla do mundo, no convento que a avó fun-dara e que a mãe frequentara em rapariga, era o sítio ideal para ela se esconder.

Olhando para o mar desolado, a jovem pensou na rainha, que morrera dois anos antes. Por vezes o coração sobressaltava-se-lhe, como se ela ainda estivesse viva. Margrethe envolveu-se mais nas peles e enfrentou o vento, aspirando o ar cortante que lhe enchia a língua de sal, perguntando a si própria como se teria sentido ela a olhar para aquele mesmo mar; seria igual naquele tempo, tão som-brio, tão selvagem, tão triste?

A princesa nunca vira o mar daquela maneira, como uma coisa viva. Algumas árvores foram desenraizadas por uma tempestade e inclinavam os ramos, quais dedos enclavinhados, para a água. De frente para o vento a jovem perscrutava o horizonte na esperança de ver um navio viquingue, uma vela quadrada, uma proa em forma

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de cabeça de dragão, mas estava no fim do mundo, no ponto mais a norte do reino, onde nem os navios iam.

Como havia de saber que aquele seria o momento mais singular da sua vida? Como sabemos que uma determinada coisa pode vir a tornar tudo diferente? Para Margrethe era um momento como outro qualquer. A jovem só pensava no regresso ao castelo do pai enquanto olhava para o mar sombrio, à espera que as orações pri-vadas das freiras terminassem e que o dia de trabalho no convento começasse. Era estranho, mas a princesa ansiava pelas horas que pas-saria naquela tarde a tecer, a ouvir o claquear dos teares, o zumbido das rodas de fiar, a voz de uma das freiras a ler as Escrituras. A prin-cípio a jovem odiara-as, mas mais tarde encontrara nelas um certo consolo porque podia esquecer tudo ao ver a lã a transformar-se na sua frente.

O céu clareou e o Sol apareceu por detrás de um véu cinzento e prateado.

E então, ao longe, na água, qualquer coisa fez Margrethe arquejar, com medo de estar a ser enganada.

A cauda de um peixe a sair da água, brilhante, prateada.A princesa pestanejou, tentando manter-se concentrada apesar

do vento frio. As pessoas diziam que ali, no fim do mundo, apareciam coisas, rostos nas nuvens, nas ondas e nas folhas das árvores, ramos que se transformavam em braços e depois outra vez em ramos.

Mas lá estava outra vez a cauda do peixe.Margrethe pestanejou várias vezes, limpou as lágrimas que lhe

caíam pelas faces provocadas pelo vento e inclinou-se para a frente. O mar ora era espuma ora era água, escuro ou claro, sempre em tur-bilhão, e era fácil confundir as rochas com as barbatanas monstruosas de um grande peixe ou a proa de um barco a afundar-se.

E de novo uma reluzente cauda curva a sair da água e um momento mais tarde um rosto pálido que desapareceu rapidamente,

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um rosto de mulher com uma cauda de peixe atrás de si, prateada, como que feita de pedrarias.

A princesa abanou a cabeça. O frio estava a fazê-la ver coisas. Mar-grethe virou-se para o convento, para a cruz e para as flechas da igreja recortadas contra o céu negro. As freiras estavam todas lá dentro à lareira, envoltas em cobertores e peles, só ela era louca o suficiente para estar ali a olhar para aquele mar impossível. A jovem riu-se para si própria, virou-se de novo para o mar e lá estava a mulher, mais perto, deslizando pela água como se tivesse asas, com os cabelos da cor da lua sarapintados de pérolas, o corpo a reflectir a luz. E aquela cauda a impulsioná-la, sem qualquer dúvida. Aquela criatura não era humana.

Sereia. Petrificada, esquecido o vento e o frio, Margrethe pensou automaticamente no nome por causa das histórias que lia à lareira enquanto todo o castelo dormia. Aqueles seres não podiam existir, mas o que era facto era que lá estava aquele, maravilhoso. É assim que a coisa funciona, pensou. Quando aparece uma coisa nova no mundo, é como se tivesse existido sempre.

Margrethe nunca vira nada tão belo em todos os anos passa-dos na corte, nos banquetes e nos bailes, nos festivais que duravam semanas, nas criações dos músicos e dos contadores de histórias, nas especiarias, nos tecidos e nas jóias provenientes de todo o mundo, naqueles anos todos rodeada de criadas que lhe davam banho, que a penteavam, que lhe apertavam os corpetes, que a empoavam. Nada se comparava àquela criatura a deslizar pela água, impulsionada por uma cauda de peixe.

Margrethe reparou que ela trazia qualquer coisa nos braços. Um homem.

A sereia abrandou ao chegar à praia rochosa, com um movimento gracioso saiu da água indiferente às pedras aguçadas que teriam ras-gado a carne de um humano e com uma grande ternura e genti-

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leza estendeu o homem ao seu lado, um guerreiro musculado com o corpo coberto de feridas.

O torso nu do ser marinho terminava numa cauda de escamas brilhantes de um cinzento raiado de verde. A sereia sentou-se e puxou a cauda para o lado, aparentemente indiferente ao frio. A sua pele pare-cia tão dura! Margrethe, apercebendo-se de que aquele era o seu ver-dadeiro corpo, sentiu-se ao mesmo tempo repugnada e maravilhada. Como será ser-se meio peixe?, pensou ela. Será tão fria como um peixe?

O homem cuspia e tossia. A sereia inclinou-se para ele, roçando--lhe os seios pelo peito, beijou-o na testa e afagou-lhe os cabelos molhados. Até de longe a princesa se apercebeu do amor que lhe iluminava o rosto.

Êxtase puro, pensou Margrethe, igual ao das freiras em oração. A jovem tentara virar-se para o céu, tal como elas, mas o seu coração estava demasiado ligado à Terra.

Atrás de si os sinos tocaram, anunciando as devoções do fim da manhã.

De súbito a sereia levantou a cabeça, viu Margrethe e esta arquejou ao ver-lhe os olhos azuis, como se toda a cena tivesse sido ampliada. Era como se, de repente, o ser marinho estivesse ali mesmo, no jardim do convento.

Salva-o, pareceram sussurrar as árvores e o vento, uma voz dentro de si. Vem cá abaixo.

Margrethe, incapaz de respirar, mal sentia o próprio corpo. Então, com um último olhar para o homem, após um último beijo nos lábios, a criatura mergulhou no mar.

A princesa gritou, desatou a correr pelo jardim fora, desceu as centenas de degraus de pedra que iam dar à praia, agarrada às peles e ao corrimão de ferro, quase escorregando, mas chegada ao fundo não viu a sereia, apenas o homem que a criatura trouxera consigo, com uma concha na mão.

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Margrethe entrou na água, indiferente às botas molhadas, mas viu apenas o mar sem fim e o céu sufocante.

– Não vás – murmurou a jovem. – Por favor.De súbito o mar tornou-se mais calmo. As rochas saíam da água,

imóveis, quais deuses indiferentes, e as ondas iam e vinham.