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Cesário Borga

EthelAmanhã em Lisboa

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O predador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Ethel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Karl ‑Heinz Schroeter . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39Edgar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49Canfranc . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Um visto para Lisboa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67Sangue e diamantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Jano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95Zamir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Pensão Glória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127O cerco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159As artes do diabo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181Marie ‑Hélène . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197Cabo Bojador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203Noite revelada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227

Índice

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O predador

Acaricia a faca de trinchar as carnes, folha triangular, corte fino, bico afiado . Cabo de madeira a proporcionar um encaixe perfeito da mão . É uma faca bem moldada, reluzente, feita de um aço brilhante a reflectir os latejos dos dedos que a tocam, um a um, como teclas de piano . Len‑tamente, depois de passar o fio pela palma da mão, Susana fixa a lâmina, que lhe devolve em reflexo iluminado os olhos castanhos onde ainda escorrem duas lágrimas tardias . Abre a mala pousada na mesa da cozi‑nha, guarda a faca, fecha a mala .

Susana é uma mulher jovem alta, curvas acentuadas, cabelo louro, sardas a polvilharem ‑lhe o rosto . Está sozinha, vestida para sair . Sapatos pretos de verniz, saltos altos, meias de vidro, tailleur azul ‑cinza . Tudo vis‑toso, a cair ‑lhe bem, apesar de não se sentir uma mulher elegante como as apresentadoras da televisão que, uma vez por outra, vê na sala da Casa do Povo da aldeia, onde também fazem as bodas dos casamentos .

No último minuto, Figueiroa decidiu não a levar ao casamento da Laura e do Romão . E ali ficou, apagada, cercada pelas paredes da casa, esquecida . Figueiroa não a assume publicamente . Em momentos como aquele, ela mergulha num vaporoso caldo de tristeza, apetece ‑lhe desa‑parecer, deixar de existir . Encantou ‑se a pensar que ia à igreja pelo braço dele acompanhar os noivos . Quando uma pessoa sonha até parece ouvir e ver melhor, mas tudo se apaga no momento em que o sonho explode, o mundo emudece e nem o chilrear dos pássaros no campo ou os gri‑tos das crianças a brincar na rua penetra aquele pesado silêncio . Nessas

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alturas, só o inquieto tiquetaque do relógio de parede com números roma‑nos e ponteiros em forma de seta lhe chega aos ouvidos .

Há dez anos Antero Figueiroa mandou ‑a como governanta para aquela quinta a que chamam «das Merendas» . Governanta! Na aldeia chamam‑‑lhe governanta arreganhando a fala para darem a entender que pensam nela como «a amante», «a amiga», como dizem . Na taberna, aquele debo‑chado do Pedreiras chama ‑lhe «a puta do patrão» . Maldito! Devia olhar para quem tem lá em casa . A mulher dele, a Eugénia, só não o engana com o maluco da terra porque está fechado numa casa com grades nas janelas . Coitada . Também casar com um bêbedo daqueles!

A cozinha é ampla, bancada comprida, lavatório para a loiça com tor‑neira de água . Tachos e panelas de esmalte e cobre, dependurados em arameira pregada na parede . No armário, dois cântaros com água para beber . A água para os banhos e lavagens é canalizada . No exterior da casa, um grande depósito de cimento, caiado de branco, apoiado em colunas metálicas é alimentado pela água da ribeira, puxada por uma bomba motorizada . Quando as torneiras se engasgam e bolçam água castanha e lodosa, Susana chama o mecânico e meia hora depois a água transborda e escorre pelas paredes . No Verão, os rapazes despem ‑se, correm para debaixo do depósito e, de cara virada para cima, braços abertos, soltam pequenos gritos de alegria, deliciando ‑se com a água fresca a escorrer‑‑lhes pelos corpos esguios .

Vive naquela casa com a filha mais nova, a pequena Madalena de 5 anos, filha de Figueiroa, apesar de ele a não ter reconhecido e estar regis‑tada como filha de pai incógnito, tal como a mais velha, a Leonor, resul‑tado de outra ligação . A Leonor tem 9 anos e não a vê há catorze meses . Figueiroa levou ‑a para a casa de Lisboa onde vive com a mulher . Gritou com ele, mas não lhe valeu de nada .

Durante dias e dias andou a chorar pelos cantos, inconsolada, o cora‑ção a saltar ‑lhe do peito . Quase não comia, tremiam ‑lhe as pernas, uma língua de frio percorria ‑lhe o corpo, os olhos iam perdendo a cor . Um dia viu ‑se ao espelho, assustou ‑se e meteu a tristeza e o desgosto no cantinho mais remoto do coração . Ganhou ânimo, enquanto magicava uma maneira de enfrentar Figueiroa . Daquele monstro ela espera tudo . A mulher, a dona Estefânia, é boa pessoa e não duvida que ela trata bem

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da menina . Susana conhece ‑a . Viveu lá até aos 18 anos, quando ficou grá‑vida da Leonor e Figueiroa a colocou naquela casa . A mãe era a gover‑nanta da casa, morreu de uma nascida na barriga, tinha ela 5 anos .

 No tempo da guerra, Edgar, afilhado de Figueiroa, andava sempre em

viagem nos comboios para Espanha e outros sítios de onde, dizia ‑se, tra‑zia brincos e colares de ouro . Ia muitas vezes lá a casa e, em determinada altura, levava com ele a menina Ethel, muito bonita, e muito carinhosa com ela . Susana não conhecia Ethel, mas viu logo que ela e Edgar anda‑vam de namoro . Notava ‑se muito . O seu rosto enchia ‑se de alegria quando escutava Edgar e o olhava deslumbrada . Se ele se afastava parecia entrar em aflição . Com ela era muito terna . Fazia ‑lhe perguntas sobre a escola e de quem mais gostava . Um dia Susana contou ‑lhe que o senhor Figueiroa lhe dava bolachas e rebuçados antes de a despir e lhe dar banho . Acariciava‑‑lhe o corpo, fazia ‑lhe cócegas, dava ‑lhe beijinhos . Ethel ficou triste . Disse‑‑lhe para deixar de brincar com ele . Mas qual quê! Ela era uma criança e olhava para Figueiroa como um pai, um homem que lhe queria bem .

 Madalena, a filha mais nova de Susana fez 5 anos em Maio . Hermínia,

a mulher do feitor da quinta, levou ‑a para brincar com a filha deles, a Rita, da mesma idade . A Hermínia é mais velha que ela e a Rita chegou já um pouco tarde . Nunca perguntou a idade à Hermínia mas deve andar pelos trinta e oito, trinta e nove . Ou seja, uns dez anos a mais que Susana . Ora deixa lá ver, Susana Maria, estamos a 3 de Setembro neste ano de 1961, tu fizeste 29 anos em 16 de Junho, ou seja, há 2 meses e 18 dias, nem mais . Rafael Lombarda, o feitor, é um homem muito dado, está sempre a perguntar ‑lhe se precisa de alguma coisa e muitas vezes aparece ‑lhe com um coelho ou uma galinha para a senhora e para a menina . Figueiroa, que a traz presa há pelo menos vinte anos, rareia cada vez mais as visitas e, quando vem, é para a deixar em franja . Aperaltou ‑se para ir com ele ao casamento da Laura e do Romão e ele deixou ‑a ali abandonada como um trapo velho . Conhece bem os noivos . Ainda a semana passada viu o Romão na barbearia do Germano, onde levou o filho do feitor a cortar o cabelo à escovinha, como ele queria . O Romão só falava do casamento e da querida Laura .

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Sente alguém a entrar . É ele, pensa . Levanta ‑se, pega na mala, abre o fecho, leva ‑a para a sala mobilada com um canapé antigo em palhinha, um pesado sofá de cabedal, dois armários altos de portas de vidro onde se vêem cristais, loiças de porcelana e um bar com garrafas de aguardente e licores . Na parede, por cima da floreira, uma fotografia colorida do San‑tuário do Bom Jesus de Braga . Sobre a grande mesa oval coberta com toa‑lha bordada o aparelho de rádio, caixa castanha, dois grandes botões, um de cada lado, ponteiro na parte de baixo do visor pronto a rodar sobre o nome de cidades de todo o mundo, escritos no mostrador .

Susana olha o rádio como o companheiro das cantigas, dos fados e dos serões para trabalhadores . As anedotas do Artur Agostinho, os fados da Amália, as canções da Alice Amaro, da Maria José Valério, do Tristão da Silva e agora daquela rapariga nova, a Simone de Oliveira . Que voz! Meu Deus! Já falou ao Figueiroa numa televisão . Ele torce o nariz . Bem sabe que lhe caía parte da aldeia em casa, mesmo assim gostava . Olha com ternura a pequena mesa redonda de mogno, decorada com uma jarra de malmequeres brancos e a fotografia emoldurada de Leonor e Madalena . Ansiosa, entrelaça as mãos, uma na outra, num movimento permanente e repetitivo . Está impaciente . Os olhos ardem ‑lhe . Sabe que não se pode precipitar, mas mesmo assim não andará com grandes rodeios . Ouve os passos já muito próximos . Porém, quando a porta se abre é Hermínia quem entra na sala .

 – Hermínia! – exclama Susana .– Dona Susana! Olhe que até me assustou . Está bem?– Muito bem, Hermínia . Não a esperava mas é muito bem ‑vinda,

ora essa!– Aqui sozinha, não admira . Venha até à nossa casa . As meninas

andam lá num virote, não param . Vê ‑las é um regalo de desencardir a alma .

– Ah! Não posso . Prometi esperar pelo senhor Figueiroa .– Ele vai levá ‑la para Lisboa?– Não creio .– Ele vai demorar . A boda não acaba antes das três . Eu ainda fui

ao adro ver os noivos . A Laura ia tão bonita! Com aquela cara de anjo

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que Deus lhe deu, o vestido branco e o véu de noiva, nem queira saber . E o Romão, aquilo é que é um rapagão!

– E estava muita gente?– A aldeia em peso . E depois com este sol anunciado logo de manhã

pelo chilrear de tanta passarada! Até a festa ficou mais bonita . Agora já estão aí umas nuvens a ameaçar chuva, mas naquela altura, até eles saí‑rem da Igreja, o sol estava por todo o lado .

– Imagino como foi quando chegou a hora das amêndoas .– Nem queira saber, os rapazes e as raparigas espigadotas atiravam‑

‑se para o chão aos magotes, quando os padrinhos lançavam amêndoas ao ar . O senhor Figueiroa não se cansava de atirar punhados de amên‑doas . Estava tudo num brinco .

– Ainda bem, a Laura e o Romão merecem .– Coitada da Laura – lamenta Hermínia . – Depois de passar esta

semana a rapariga vai ficar em cuidados . Em ânsias, sem saber o que poderá acontecer ao Romão nos próximos dois anos .

– Ele sempre embarca para Angola?– É o que dizem . Aquilo por lá está do piorio . Mataram muitos bran‑

cos nas fazendas . Viu a fita que passou na Casa do Povo?– Vi, vi . Aí o Figueiroa levou ‑me . Aquilo era um horror, gente sem bra‑

ços, mulheres mortas e todas nuas, cheias de feridas, algumas com as tripas de fora, crianças atiradas para o meio do capim . Nem me quero lembrar!

– Mas olhe que eles também tratavam muito mal os pretos . Lembra ‑se do Sereno? Foi polícia em Moçambique . Agora está velho, mas sempre a gabar ‑se de arriar nos pretos quando, no meio do trabalho, se sentavam para descansar . E as filhas dos desgraçados eram dadas para o serviço dos brancos . Isso também não se faz!

– É verdade – comenta Susana –, mas andarem assim a matar mulhe‑res e crianças!

– Eu até acho bem que vão lá defender aquela gente – opina Hermí‑nia –, mas a ideia do senhor Figueiroa de levar a Laura e o Romão a casa‑rem antes de ele marchar para Angola, não me entra . E se o rapaz morre? Se lhe dão uma catanada ou um tiro e a Laura fica viúva? Coitada, nem goza o casamento . Enfim! Sempre têm uma semana de lua ‑de ‑mel na Figueira da Foz . O senhor Figueiroa paga ‑lhes tudo .

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– E depois? É a obrigação dele! – argumenta Susana . – Não os empurrou para o casamento antes de o rapaz partir para a guerra? A Laura não queria .

– E o Romão também não . Mas o senhor Figueiroa com as manias do patriotismo, de eles serem um exemplo .

– O senhor Figueiroa quer mandar em toda a gente . Não se lembra o que ele fez àquela rapariga judia, a menina Ethel, no tempo da guerra?

– Mas foi ela quem levou o menino Edgar à morte, ninguém me tira essa da ideia – contrapõe Hermínia .

– Ela também morreu, não se esqueça . Cá para mim há aí muita coisa escondida .

– O que lá vai, lá vai . Agora o importante é que a Laura e o Romão sejam felizes .

– Sei lá . Naturalmente nem a lua ‑de ‑mel lhes vai saber bem – adianta Susana .

– Não diga isso . Esses dias são sempre um desatino . Quando me casei com o Rafael ele andou maluco nos três dias que gozámos na Nazaré . A minha Francisca já vai nos 20 anos, nasceu aqui, mas foi arranjada na Nazaré durante aqueles dias .

– E a Laura também pode ficar de barriga .– Isso é o mais certo . Ora! Desde que o Romão volte inteiro . A mãe

dele, a Cremilde, já prometeu uma vela do tamanho dele à Nossa Senhora de Fátima . Hão ‑de ir os dois a pé e, de joelhos, depor a vela aos pés de Nossa Senhora .

Na ampla sala da Casa do Povo de Furna do Campo, no centro da aldeia, na fase derradeira da boda, os noivos dão a volta à sala e cumpri‑mentam os convidados um a um, acompanhados pelos padrinhos e por Figueiroa, a puxar fumaças do charuto, a lançar olhares de fiscal e pala‑vras de elogio ou reprovação a cada um dos convidados . A noiva prota‑goniza o ritual . Inventa motivos de conversa e, por fim, entrega um bolo ao convidado, ele aceita ‑o e dá à noiva uma ou várias notas . Num gesto rápido e discreto mas bem à vista de todos, passa as notas ao noivo, que as pousa numa bandeja de prata, transportada pela dama de honor .

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Figueiroa não perde de vista as mãos pouco ou muito endinheiradas dos convidados . Conhece ‑os bem e não hesita em corrigir gestos menos generosos . O Costa, um homem gordo a ameaçar rebentar os botões da camisa, exibe uma nota de cinquenta escudos:

– Costa! – intima Figueiroa . – Que é isso? Não tens vergonha? Um homem de posses como tu!?

O Costa fita ‑o de olhos arregalados mas não se mexe . Desvia o olhar e continua a segurar a nota de cinquenta . Figueiroa surpreende ‑se pela atitude pouco submissa . Talvez ele não se lembre do que aconteceu depois de ter lapidado as abundâncias arranjadas na candonga do volfrâmio . Aparecia ‑lhe de mão estendida a pedir adiantamentos sobre carregamen‑tos de figos ainda verdes nos ramos das figueiras, lamuriando a ladainha dos filhos a pedir pão . Ignorando as censuras de Figueiroa, Costa aceita o bolo da mão da noiva e passa ‑lhe a nota de cinquenta . Os noivos avan‑çam, Figueiroa deixa ‑se ficar para trás . Fixa em Costa um olhar duro .

– Vê lá bem no que te metes, Costa .– Ninguém manda em mim . Guio ‑me pela minha cabeça – responde‑

‑lhe o Costa sem levantar a cabeça da mesa .– Se tivesses cabeça . Mas o que tens aí é um melão podre . Ainda estou

à espera dos teus figos, ou já não os queres vender?– Houve quem pagasse melhor .– Se fosse a ti pensava duas vezes antes de dar esse passo . Talvez o

Tino Flores não seja quem tu pensas . Nunca foi, nem agora nem nos velhos tempos .

– As ameaças do costume – comenta Costa entredentes .– Eu não ameaço, dou conselhos . E quando vieres a um casamento

é melhor pedires dinheiro emprestado . Evitas vergonhas destas .Costa leva a mão ao bolso interior do casaco, retira de lá várias notas

de cem . Exibe ‑as:– Não me falta dinheiro .Figueiroa abana a cabeça, puxa uma fumaça . Entretanto os noivos

acabam a volta e grande parte dos convidados começa a levantar ‑se . Um grupo de cinco jovens músicos, seleccionados na banda da terra (clari‑nete, trompete, saxofone, baterista, acordeão), sobe a um estrado mon‑tado ao fundo da sala . Depois de uma saudação aos noivos, entoam

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acordes da marcha nupcial e, de seguida, música suave para dançar, algu‑mas de rock e twist conhecidas dos jovens da terra desde que instalaram na Casa do Povo uma máquina de música a três tostões o disco . Figuei‑roa faz sinais na direcção de um grupo de homens encostados à parede a admirarem as danças dos jovens, a contorcerem os corpos e a rirem ‑se quando esbarram e caem . Três homens aproximam ‑se . Figueiroa vai ao cabide buscar o chapéu e sai com eles . No pátio interior do edifício dirige‑‑se ao mais maís alto e corpulento do grupo, rosto inocente e submisso a aguardar com ansiedade as palavras do chefe . Ar feliz de quem pres‑sente ter chegado o momento de ser honrado com uma missão . É o Fer‑nando do Moinho, assim chamado por ser filho do moleiro . Não seguiu a profissão do pai e, de certo modo, nenhuma outra . Passeia ‑se pela des‑tilaria de Figueiroa que o protege, fanfarrão, habituado a anular contra‑riedades com ameaças .

– O Costa enfrentou ‑me e passou ‑se para o Tino Flores – diz Figuei‑roa . – Façam ‑lhe ver quem manda aqui .

– O Costa pode ter tomado as suas precauções . Ele sabe como as coi‑sas se fazem – argumenta Fernando do Moinho .

– Nada de pressas, vigiem ‑no, esperem pelo melhor momento .– Deixamo ‑lo com ar ou sem ar?– Com ar, mas de joelhos .

Na casa da quinta, segundos depois de escutar o lento desencostar da porta da rua no rés ‑do ‑chão, Susana concentra ‑se, respira fundo, sente o cheiro do tabaco a penetrar ‑lhe nas narinas . Os passos marcam a subida dos degraus . É ele . Agora não se engana . Posiciona ‑se ao lado da mala . Cobre ‑a com o corpo . Figueiroa entra, olha ‑a, pousa o chapéu na mesa .

– Foi bonito mas muito cansativo .– Dá muito trabalho forçar pessoas a casarem ‑se – dispara Susana em

tom sério, longe do ar descontraído de Figueiroa, que avança na sala até ao bar . Enche um cálice de aguardente velha, empina ‑o de um trago . Faz estalar a língua, abre a boca num prolongado ah, expirado de cálice na mão, pouco preocupado com a provocação de Susana .

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– Forçar! Qual forçar! Eles queriam casar . Amam ‑se, são felizes . Nin‑guém forçou ninguém . Era o que mais desejavam . Ajudei ‑os .

– Passas a vida a ajudar os outros . A mim ajudaste ‑me a ficar aqui sozinha . És um monstro . Só me queres na cama e nesta casa, neste redil, para não dar escândalo .

– Nunca te faltei com nada . Levas uma vida boa . Que mais queres? Isso não cai do céu .

– Não me dás nada . Compras ‑me para eu não andar por aí a dizer certas coisas .

– Se te queres ir embora, vai . Ninguém te impede nem te prende . Não sou teu carcereiro .

– É como se fosses . Abres ‑me a porta, para sair, tenho liberdade . Qual liberdade, qual carapuça se não tenho nada de meu . Faço a trouxa para ir morrer de fome?

– Está bem, acalma ‑te . Não te irrites . Não te quero assim .– Queres ‑me obediente e servil .– Nem sempre te posso levar comigo como desejaria . Deves com‑

preender .Susana lança ‑lhe um olhar duro feito de raiva e tristeza .– Não passo de um fardo para ti .– Tens um lugar na minha vida . Contraí contigo uma dívida de gratidão .– Por me teres violado .– Não digas disparates .– Disparates! O senhor Antero Figueiroa, homem de respeito, de missa

aos domingos, comunhão na quaresma, viola uma criança de 10 anos e, mais tarde, emprenha ‑a para a segurar .

– Não foi nada disso . Não tenho filhos e gostava de ter um filho teu . Não foi como da primeira vez, não me descontrolei .

– Qual descontrolo . Parecias um bicho ‑do ‑mato a farejar ‑me o pes‑coço a atirares ‑me o bafo nas orelhas . Foi quando percebi tudo . Antes pensava que gostavas de mim .

– E gostava, podes crer .– És um animal, um velhaco .Susana chora sem deixar de fitar Figueiroa . Suga as lágrimas que lhe

vão inundando a cara depois de, sem êxito, as tentar conter . O rosto vai ‑se

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transmutando segundo a segundo numa máscara de raiva, congestionada, vermelha e olhos endurecidos .

– Acalma ‑te . E tem tento na língua . Sou um homem de família e de sociedade . Respeita ‑me .

– E lembrar ‑me eu que o padre torcia o nariz quando lhe contava as minhas desgraças – lamenta ‑se Susana . – Ralhava ‑me . Para ele eu era a tentação . Tu a vítima arrastada para o pecado . Felizmente mandaram‑‑no embora e veio o padre Rodrigo . Este sim, tem ‑me ajudado . Conversa comigo, dá ‑me conselhos .

– Não te atrevas a contar a tua vida ao padre Rodrigo .– Ainda não calhou .– Olha quem te avisa…– Quero ver a minha filha . Quero a Leonor comigo .– Deixa ‑te de graças . A Leonor está bem onde está . A Estefânia ado‑

ra ‑a . Lá em casa ela é uma princesa . A menina precisa de educação . Quando terminar a escola primária vai para o liceu e, mais tarde, se ela quiser, para a Universidade . Hoje já há muitas raparigas a estudar na Faculdade de Letras .

– Eu sou a mãe dela . Quero vê ‑la, estar com ela .– E se ela te perguntar pelo pai? Achas bem que uma mãe não possa

dizer à filha quem é o seu verdadeiro pai?– Ela sabe quem é o pai . Falei com ela sobre isso .– Andavas caidinha por ele .– Amava ‑o . E ele gostava de mim . Era carinhoso, levava ‑me ao cinema

ao Condes e à revista ao Parque Mayer, dava ‑me carinhos . Não era como tu . Mesmo nessa altura não me largavas .

Figueiroa caminha de um lado para o outro incomodado com a con‑versa . Tenta rematar o diálogo .

– Não digo que a não possas ver, mas por enquanto não .– Tens medo de quê? Estou a imaginar . A Leonor entra aqui e eu,

em lágrimas, digo ‑lhe: minha querida filha, o teu pai deixou ‑me porque descobriu que eu não era virgem . O teu padrinho, o respeitável senhor Figueiroa, desflorou ‑me quando eu tinha a tua idade .

– Hoje não se pode conversar contigo . Expliquei ‑te mil vezes por que é que isso aconteceu .

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– Excitaste ‑te até não teres mão em ti . Acariciavas ‑me o corpinho, as maminhas a despontarem e, de repente, perdeste ‑te, descontrolaste ‑te . Mas eu devia ser uma boa menina e não andar por aí a contar . Os teci‑dos iam ao sítio e eu voltava a ficar virgem como dizias . Intrujão . Quando apareceu o Ilídio aconselhaste ‑me a casar com ele .

– Bastante me custou dar ‑te esse conselho sabendo que te ia perder .– Hipócrita . O Ilídio, sim, gostava de mim . Mas lá no fundo devia

andar desconfiado . Percebi isso quando, depois de me despir, fez questão de nos deitarmos em cima de um lençol lavado . Amámo ‑nos nem eu sei durante quanto tempo . E, no fim, nem uma gota de sangue .

– Mas fez ‑te uma filha .– Também tu . E nem por isso lhe deste o teu nome . A Madalena tam‑

bém é filha de pai incógnito .– Parece que o defendes .– Não o defendo, mas compreendo ‑o .Figueiroa levanta ‑se, vai à janela . De costas para Susana, sobrolho

carregado, contempla a plantação de canas ‑da ‑índia, compridas, finas e resistentes, de folhas esguias que, tocadas pelo vento, se agitam, for‑mando uma mancha verde ondeante . No início do século, no tempo do pai, nasciam a esmo, um monte aqui outro ali . Olhavam ‑nas como plan‑tas parasitas, usadas como canas de pesca . Mais tarde começaram a ser cobiçadas por cesteiros, jardineiros e fabricantes de móveis . Durante a guerra, a gente da aldeia moía ‑as e obtinha uma farinha muito fina com que fabricava biscoitos saborosos que muitas vezes, naqueles tempos de penúria, substituíam o pão . A partir das sementes, as mulheres teciam colares e terços .

Susana tenta alcançar o significado daquele repentino silêncio de Figueiroa depois das palavras duras com que o acolheu . Subitamente ele volta ‑se, pega no chapéu, sacode ‑lhe as abas e diz:

– Vou ‑me embora . Faz ‑se tarde e esta noite quero ir ao Pavilhão dos Desportos . Há lá uma sessão de apoio à política ultramarina e preciso de tempo para me fardar .

– De legionário .– De legionário, claro . Também vai seguir para Angola uma compa‑

nhia nossa, da Legião . Esses turras nem sabem onde se meteram .

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– Promete ‑me que vou ver a minha filha . E não te desculpes com a escola . As aulas só começam a 7 de Outubro, estamos nos primeiros dias de Setembro .

Susana e Figueiroa estão agora frente a frente . Ele já povoado de rugas, longe do homem ainda jovem de há vinte anos . Cabelo grisalho, olhar raiado a exibir os estragos do tempo . Ela cerca ‑o com aqueles grandes olhos castanhos, duros e faiscantes . Figueiroa não desvia o olhar, mas pre‑cisa de o descansar . Num gesto suave, levanta ‑lhe a cruz de ouro depen‑durada no fio que traz ao pescoço . Fala ‑lhe em voz baixa e pausada:

– Disse ‑te o que tinha para dizer . Por agora não a vês .No momento em que ele começa a falar, Susana deixa escorregar a

mão para dentro da mala, aperta o cabo, retira a faca lentamente, evi‑tando o toque da lâmina no fecho . Quando ele articula a última pala‑vra, aponta ‑lhe a faca ao pescoço, o bico a picar ‑lhe a parte de baixo do queixo de onde começa a escorrer um fio de sangue .

– Marco ‑te para toda a vida se não prometes trazer a minha filha aqui .Figueiroa estica o pescoço, inclina a cabeça para trás até tocar na

parede, evitando a ponta da faca . Tenta falar mas as palavras saem ‑lhe cavas e roucas como se saíssem de uma caverna .

– Não posso… – diz e pára . Susana alivia a pressão . – Não posso pro‑meter nada – completa .

Susana volta a empurrar a faca . Figueiroa solta um berro .– Estás a iniciar a minha filha nos teus prazeres secretos? É?As palavras gorgolejam na garganta de Figueiroa como peças desen‑

caixadas de uma bicicleta velha .– A tu .a fi .lha é vir .gem, ju .ro .– Eu também fui virgem até ao momento do teu descontrolo . Lambes‑

‑lhe o corpo depois de a despires, pedes ‑lhe que te acaricie? É? Mato‑‑te, bandido!

Susana, transtornada, abana a faca . Figueiroa, em pânico, grita e ges‑ticula . Ouve ‑se uma voz chorosa de menina .

– Mãe, mãezinha .Susana olha para o lado, de onde vem a voz . Vê a pequena Madalena

junto à porta de comunicação com a cozinha . Deixa cair a faca . Corre para a filha . Figueiroa sai, desce as escadas tropeçando nos degraus agarrado

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ao corrimão . Pára antes de abrir a porta da rua, olha para cima . Chegam‑‑lhe as palavras emocionadas e ternas de Susana e o choro sufocado da menina . Retira um lenço do bolso, pressiona a ferida onde Susana espe‑tou a faca, o sangue mancha o lenço de vermelho . Respira fundo . Tenta ensaiar uma pose tranquila . Arlindo, o motorista que o espera, tem no Simca um estojo de primeiros socorros . Figueiroa abre a porta e sai . Arlindo olha ‑o e reage:

– Está ferido, patrão?– Não é nada, Arlindo, peguei mal numa faca afiada e espetei ‑me sem

querer . Arranja ‑me um pouco de algodão .Arlindo retira da mala do carro uma mochila com o emblema da

Legião e uma cruz vermelha . Abre ‑a . Figueiroa segue ‑lhe os movimen‑tos . Arlindo trabalha para ele há mais de vinte anos . É um homem alto e entroncado, de porte nobre . A farda azul ‑escura de motorista dá ‑lhe um ar distinto . Aproxima ‑se de Figueiroa exibindo um pedaço de algodão embebido em água oxigenada, preso numa pinça . Comprime ‑o contra a ferida por uns segundos e alivia a pressão . O algodão está ensopado de sangue e Arlindo insiste com a compressa improvisada, a partir de uma ligadura de gaze . Há agora menos sangue . Entrega uma gaze seca a Figueiroa e aconselha ‑o a manter a pressão; entram no carro . Arlindo vai levá ‑lo ao Entroncamento, Figueiroa prefere fazer a viagem de com‑boio até Lisboa . O Simca começa a rolar, Arlindo chama ‑o .

– Patrão, tenho aqui uma carta para si, um senhor apareceu na quinta para a entregar e fiquei com ela . Aí tem .

Figueiroa apanha a carta da mão do motorista, esticada sobre as cos‑tas do banco . Olha ‑a . Está endereçada ao Ex.mo Senhor Antero Figueiroa – Lisboa . O remetente paralisa ‑o: Ethel Salgado – Paris

– Patrão Figueiroa .– Que há, Arlindo?– Também passou pela quinta o Fernando do Moinho . Queria infor‑

mar o patrão sobre o Costa .– Aconteceu alguma coisa ao Costa?– Teve um ataque de coração e levaram ‑no para o hospital . O Costa

teve o ataque quando viu os tabuleiros e os figos secos a arder . Tudo o que havia na eira foi queimado pelo fogo . Ainda chamaram os bombeiros,

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mas não conseguiram salvar nada . Pararam o baile do casamento . Foi tudo para casa . O Costa ainda é primo do noivo, do Romão .

– Arranjaram ‑na bonita! – desabafa Figueiroa .– O Costa deve uns dinheiros ao Tino Flores e ele agora diz que

alguém há ‑de pagar .– Depois de me deixares na estação, vais à Furna buscar o Fernando

do Moinho e levá ‑lo a Lisboa . Quero ‑o no escritório .– O patrão manda .Depressa chegam à estação . O comboio está atrasado e, já na gare,

ainda a matutar no Costa, Figueiroa é surpreendido por um intenso aguaceiro . As pessoas correm a abrigar ‑se na plataforma . No ar aparecem chapéus ‑de ‑chuva pretos e azul ‑escuros . Há quem se sente nos bancos de madeira cobrindo com lenços as ripas molhadas . Apesar do descon‑forto e de sentir nas pernas a humidade dos salpicos da chuva, Figueiroa não deixa de pensar na falta de visão daqueles imbecis . A acção seria de uma eficácia indiscutível se tivessem esperado dois ou três dias . Houve gente a escutar a conversa dele com o Costa . A esta hora já toda a aldeia sabe quem deitou fogo à eira . Isso deixa uma mancha difícil de limpar . Há uns tipos do reviralho ligados ao Tino Flores, um deles é advogado em Santarém . Ainda lhe põem uma acção no tribunal e depois vai ser uma trabalheira para abafar aquilo .

Mete a mão no bolso interior do casaco e apalpa a carta . Ethel Sal‑gado ao fim de tantos anos! Pensa . Será uma brincadeira? Ressuscitou depois do naufrágio? Será que o seu velho pai tinha razão quando dizia que os mortos nunca nos abandonam? Podem não nos abandonar, pensa enquanto tira o chapéu e passa a mão pelo cabelo, mas não ressuscitam . Já tem ouvido falar em aparições de almas do outro mundo . Andam por aí aflitas, eriçadas de espinhos, por não poderem entrar no céu, mas não mandam cartas a ninguém . Diziam que os judeus eram amigos de feiti‑ceiros, quem sabe se essa judia não é uma feiticeira .

Na estação, passeia para a frente e para trás, embalado naqueles deva‑neios, olhar apontado às linhas . Ouve alguém a chamá ‑lo . Volta ‑se . Um homem ainda jovem aproxima ‑se .

– Senhor Figueiroa . Sou Bernardo Vieira, jornalista da API, a Agence de Presse Internationale e da revista Flama . – Figueiroa aceita a mão que

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lhe é estendida sem entusiasmo . – Fui eu quem entregou a carta de Ethel Salgado ao seu motorista . Queria saber se a recebeu .

– Desculpe, mas não fixei o seu nome…– Bernardo, Bernardo Vieira .– Bernardo, conhece então a Ethel Salgado .– Sim, é minha amiga . Conhecemo ‑nos em Paris .– Ela é jornalista?– Escreve em jornais e é professora de filosofia .Figueiroa olha ‑o em silêncio .– A Ethel contou ‑me que viveu em Portugal e no Brasil na altura da

guerra – continua Bernardo . – Fala bem português, com um leve sota‑que brasileiro .

– Vou ler a carta no comboio – remata Figueiroa .– Tem aqui o meu cartão . Se quiser pode contactar ‑me .O altifalante da estação anuncia a entrada na linha número dois do

comboio com destino a Lisboa, Estação do Rossio, com paragens em Torres Novas, Vale Figueira, Santarém, Vila Franca de Xira e Campolide . Despedem ‑se . Figueiroa dirige ‑se à primeira classe, Bernardo entra numa carruagem de segunda . O comboio já se aproxima de Santarém quando Figueiroa retira a carta do bolso . Abre o envelope e lê .

 Paris, Setembro, 1961

Senhor Antero FigueiroaSou a Ethel Salgado, a rapariga judia, ingénua, atemorizada e apai‑

xonada que o sobressaltou no Verão de 1941. Peço ‑lhe, agora, apenas um pouco do seu tempo. Dentro de uma ou duas semanas irei a Lisboa e gos‑taria de lhe falar.

O meu desejo é apenas iluminar algumas zonas de sombra que ainda hoje rodeiam o afundamento do navio Cabo Bojador, onde pereceram pelo menos três pessoas, entre elas, Edgar, meu noivo e seu afilhado.

 Com os melhores cumprimentos

Ethel van Jansen Salgado 

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A leitura baralha Figueiroa . Esborracha ‑o por dentro . Encolhe ‑se no banco . Interroga ‑se sobre a autenticidade da carta . Será dela? Daquela reles espia, judia? Por momentos deixa ‑se deslizar no tempo . Revê os anos de guerra na tentativa de encaixar a «ressurreição» da judia . Lembra ‑se perfeitamente de o Hans Stein, o seu contacto na embaixada alemã, lhe ter garantido a morte de Edgar e de Ethel, a judia, depois de o navio ter sido afundado em Novembro de 1941 . Nem um nem outro constavam da relação dos passageiros recolhidos em Maceió, nas costas brasileiras, nos dias seguintes ao naufrágio . Tinha passado o tempo de sobrevivên‑cia, tendo em conta os alimentos guardados na baleeira, as condições do mar e o facto de não terem sido recolhidos por outro navio . Belisca‑‑se . É melhor cair na realidade, pensa . Ela existe, não morreu, quer ‑lhe falar . Falar de quê? Chega e diz: estou viva e venho pedir ‑lhe explicações . E Edgar? Bem, ela mesma confirma que ele morreu .

Horas depois, fardado de legionário, Figueiroa caminha de um lado para o outro na ampla sala do seu gabinete de há muitos anos, no segundo andar de um velho edifício de repartições no Cais do Sodré, na Praça do Duque da Terceira, em Lisboa . É um gabinete simples, sóbrio . Secretá‑ria ampla, gavetas dos dois lados, cabide alto, uma máquina de escrever Hermes, folhas de papel, lapiseira, caneta de tinta permanente, candeeiro de secretária .

Fernando do Moinho, de pé, espera sem saber se deve ou não tomar a iniciativa da conversa . Cola ‑se à parede como se quisesse passar des‑percebido . Quase toca na fotografia de Salazar, dependurada ao lado da do almirante Américo Tomás, o chefe do Estado eleito há três anos, numas eleições dominadas por outro militar, o general Humberto Delgado . Figueiroa lembra ‑se bem desses tempos, quando a barca do regime andou ao sabor das ondas, meio desgarrada . Ele, como todos os outros da Legião, arregaçaram as mangas e foram para a rua dar no lombo aos comunistas .

Fernando não entende a pressa do patrão . Uma dor aguda, feita de medo e ansiedade, chicoteia ‑lhe o estômago . Quando o Arlindo, afo‑gueado, a deitar pressa por todos os poros o foi buscar, pensou que

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estivessem a mangar com ele, mas não . E para quê? O senhor Figuei‑roa fazia questão de o ter em Lisboa, a cem quilómetros da Furna do Campo . Para falar . Mas falar de quê? Cumpriu as ordens, pôs o Costa às portas do Céu se é que o queriam lá . Pelo caminho, Arlindo justificou a pressa do patrão com uma sessão sobre o ultramar, onde as coisas se aze‑dam cada vez mais . Angola traz tudo em alvoroço . Na Emissora Nacio‑nal há discursos todos os dias . Durante a viagem ouviu duas vezes cantar Angola É Nossa, uma canção guerreira onde se fala em «vencer, escor‑raçar, esmagar a vil traição» . Antes de ontem até se arrepiou quando o Vicente, um homem para lá dos sessenta, mãos calejadas por uma vida agarrada à enxada, entrou na barbearia do Germano, a choramingar . Iam‑‑lhe levar o filho para a guerra . Clamava contra aquela injustiça, o filho era um pilar no sustento da casa, mas «aquela cambada não quer saber», querem matá ‑lo à fome, a ele e à mulher, bradava o Vicente, levantando os braços e batendo com o carapuço nas calças de cotim velho . O Ger‑mano tentou animá ‑lo, lembrando ‑lhe que o filho ia defender a pátria . Ninguém estava preparado para a resposta do velho Vicente . Sentou ‑se na cadeira de aparar barbas e cortar cabelos, olhou o Germano como se fosse uma alma do outro mundo, limpou as lágrimas e disse para quem o quis ouvir: «Eu quero que a pátria vá à merda .»

Por uns segundos intermináveis a barbearia mergulhou no silêncio, até que uma criança entrou de rompante a chamar pelo pai, escorregou, caiu e ficou a chorar, estendida no chão .

Figueiroa, afivelando um ar sério, rosto fechado, palmilha o chão do gabinete, imponente na sua farda de legionário, calças e dólman casta‑nhos, camisa, gravata e bivaque verdes, um bivaque ora a tapar ‑lhe a testa ora a descer até à nuca . Finalmente numa volta, rematada num sonoro bater de tacões, eleva ‑se diante de Fernando do Moinho .

– Deves ter a cabeça como uma panela de água a escaldar – diz ‑lhe Figueiroa . Fernando, hesitante, dá voltas ao chapéu com ambas as mãos .

– Soube do Costa? Está no hospital, continua a respirar .Com um sorriso a encher ‑lhe a cara Figueiroa elogia ‑o– Bom trabalho, Fernando . Quero abraçar ‑te por isso . – De imediato,

rodeia ‑o num abraço . – Vá lá, homem, pendura o chapéu, põe ‑te à von‑tade, ainda temos uma hora e eu não quero deixar de te dizer quanto

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me sinto orgulhoso pelo que fizeram àquele bandido do Costa . Senta‑‑te, conta ‑me tudo .

– Saímos da Casa do Povo e demos com o Costa a caminhar para a taberna do Florêncio, um bom sítio para lhe tratar do coiro, dissemos uns aos outros . Depois pensámos melhor . A festa do casamento ainda durava e um homem a ser atacado na taberna ia levantar um grande sururu .

– Ora aí está uma ideia ajuizada – aprova Figueiroa .– Então lembrámo ‑nos da eira . O Costa tinha lá dezenas de pilhas de

tabuleiros, e arrobas de figos secos num barracão, vendidos ou apalavra‑dos com o Tino Flores .

– A humidade deve ter dado conta de uma boa parte deles – comenta Figueiroa .

– Húmidos ou não, já não passam de cinza e bocados de carvão .– E o Costa esteve muito tempo na do Florêncio? – pergunta Figueiroa .– O Luís foi para lá com a ideia de o empatar e conseguiu . A ver‑

dade é que ele só saiu dali para o hospital . Soube depois que o Costa quando falava do patrão Figueiroa lhe chamava, com perdão, macaco ou cínico .

– Cínico eu! – atalha Figueiroa . – Ele que vá avançando nos negócios com o Tino Flores e verá o que é o descaramento .

– Mas enquanto o Luís entretinha o Costa, eu fui até à eira, o Rafael tratou de arranjar dois garrafões de petróleo . Para não dar nas vistas, meteu ‑os no ceirão atravessado na albarda do burro pedido emprestado ao tio . O pior foi o caminho .

O burro subia devagar a ladeira na estrada de terra batida . Rafael afagava ‑lhe o pescoço com um ramo de oliveira para lhe dar ânimo, de repente o burro assusta ‑se com um coelho bravo a correr na estrada, e, quase ao mesmo tempo, Rafael vê ao longe um vulto a caminhar para ele . Fica preocupado . O petróleo deita cheiro e é o cabo dos trabalhos se lhe fazem perguntas . Se as respostas não fazem sentido, depressa se enrolam em boatos . O vulto define ‑se mais e mais e ele nem quer acredi‑tar, é Luísa, a namorada . Regressa do pomar do pai . Rafael namora com

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ela há pelo menos dois anos . Ainda não falam em casamento . Conver‑sam à porta e à janela . Beijam ‑se às escondidas . Luísa acena ‑lhe . Olhos e cabelos pretos, curvas desenhadas num vestido de flores, cinto preto com uma grande fivela a comprimir ‑lhe o abdómen apanhando a parte de cima do vestido como se fosse um gancho . Pele morena, queimada pelo sol de Verão, cesta debaixo do braço . Rafael pára, desce de cima do burro e espera Luísa . Ela corre para ele .

– Rafael! Estou a ver que a boda acabou cedo – diz ‑lhe sorridente e feliz por o encontrar .

– Sim, não durou muito . O meu tio queria que lhe levasse umas coi‑sas, mudei de roupa e vim por aí abaixo .

– Que sorte termos dado um com o outro!– Sorte! Porquê?– Ora porque me apetece um beijo e não digas que não!– Quem sou eu…Rafael não tem tempo para dizer mais nada, Luísa põe no chão a

pequena cesta de verga, abraça ‑o e beija ‑o . Um beijo longo que ele tenta interromper sem êxito .

– Que tens? – pergunta Luísa . – Não estás a gostar?– Gosto, gosto dos teus beijos, gosto de ti .– Não . Estás a fugir . Vejo nos teus olhos . Eles dizem ‑me quando me

queres .– Não é nada disso, Luísa, o meu tio espera ‑me não posso ficar aqui

muito tempo .– Então vou contigo .– Comigo?– Com quem havia de ser? Assim posso esperar o momento em que

me queiras .– Eu quero ‑te, mas agora tenho que seguir, é uma emergência, uma

coisa de aflitos . Quando eu voltar, encontramo ‑nos .– Encontramo ‑nos? Onde?– Na tua casa .– Em minha casa? Seu brincalhão . Lá temos quatro ou cinco pares de

olhos a vigiar ‑nos . Deixa ‑me ir contigo!– Não, Luísa, não pode ser .

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Rafael volta a escarranchar ‑se no burro . Incita ‑o a caminhar e diz adeus a Luísa . Ela fica mais uns minutos, desasada, a vê ‑lo desaparecer na estrada, baralhada e triste, interrogando ‑se sobre o porquê de tanta pressa .

– O Rafael já tardava com o petróleo – conta Fernando Moinho . – Assim que ele chegou passámos à acção . Regámos as pargas de tabu‑leiros espalhadas na eira, arrombámos a porta do barracão onde o Costa guarda ferramentas, palhas, traquitanas e a tulha dos figos secos . Pegá‑mos fogo àquilo tudo e saímos dali .

– Belo trabalho, não há dúvida – repete Figueiroa, que o escutava atento e divertido .

– Ao longe via ‑se uma bela fogueira . A demora da chegada do petróleo podia ter deitado tudo a perder, mas correu bem . As chamas ergueram‑‑se por cima das árvores, a aldeia viu ‑as e ninguém deu pela nossa falta . Felizmente o Rafael não se deixou empatar pela Luísa .

– Pois é – diz Figueiroa, com um ar pouco satisfeito . – Mas ter dei‑xado a rapariga magoada não é lá muito bom . Ela vai querer descobrir o que está por detrás das negas do Rafael .

– Não, patrão, ela não tem estaleca para tanto . Gosta do Rafael e por nada deste mundo lhe vai fazer mal .

– As mulheres quando ficam desconfiadas são o cabo dos trabalhos e eu sei do que falo .

– Não acredito que a Luísa nos denuncie .– Meu caro Fernando, se o Rafael discutir com a Luísa e fizer alguma

asneira, ela não lhe vai perdoar . Quando chegares fala com ele .Figueiroa coloca ‑lhe a mão no ombro .– O patrão não conhece a Luísa .– É verdade, não a conheço, mas conheço as mulheres . Quanto mais

te querem mais se vingam de ti quando as desprezas .– Ora, ora . Não vai acontecer nada .– Pode ser, mas todo o cuidado é pouco . Houve quem assistisse à minha

discussão com o Costa . A esta hora já somaram dois e dois e podem muito bem andar pelas esquinas a apontar ‑me como o mandante do incêndio .

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Figueiroa assume um ar sério e pesado . Fernando olha ‑o temeroso .– Se pensarem isso não dizem, pelo menos em voz alta – lembra

Fernando .– Por medo, não para me defenderem . – Bate com os pés no chão,

dirige ‑se à janela lateral do gabinete de onde se vê o Tejo, levanta os bra‑ços como se quisesse acenar às gaivotas . – Vocês fizeram um óptimo trabalho, não esquecerei isso . Daqui a dois dias passem pelo escritório, deixarei lá um envelope para cada um .

– Obrigado, patrão .– De ti espero mais, e por isso a recompensa será maior . – Figueiroa

volta para junto de Fernando, acaricia ‑lhe o ombro . – Assim que o Costa sair do hospital vais ter com ele, apresentas ‑lhe cumprimentos em meu nome, pedes desculpa e desejas ‑lhe as melhoras .

– Estou a ver – diz Fernando entusiasmado –, o patrão quer acabar o trabalho . O homem vai ter outro ataque e desta não escapa .

– Nada disso, Fernando .– Então o patrão pensa que o Costa não se vai irritar? Sei lá se saio

vivo de lá .– Ouve, Fernando . Ouve ‑me até ao fim . Depois de pedires desculpa

em meu nome, dizes ao Costa que eu pago todos os prejuízos . Os tabu‑leiros queimados, os figos ardidos, os estragos no barracão .

– Mas, patrão! – exclama Fernando, boquiaberto . – O homem está de rastos, isso vai animá ‑lo!

– Não me interessa como ele está, antes como vai ficar . Se aceitar a minha oferta é bom sinal . Um dia acabará por vergar a espinha .

– Se o patrão manda, eu não viro a cara .– Não te arrependerás . O Arlindo arranja ‑te onde possas passar

a noite . Amanhã leva ‑te à Furna .Figueiroa compõe o bivaque e sai sem mais palavras, deixando

Fernando suspenso da chegada de Arlindo . Agarra o chapéu com as duas mãos, passa ‑o pela manga do casaco, uma e outra vez, como quem afia uma navalha de barba . Sonda o movimento na praça pouco ilumi‑nada pelos candeeiros de fraca intensidade . A noite morna cai, encasa‑cada num nevoeiro ténue, bruma esbranquiçada a envolver as pessoas, e o eléctrico que atravessa a praça .

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