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Paulo Sargento Só amor não basta? educar até aos 6 anos um guia para pais

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Paulo Sargento

Só amor não basta?educar até aos 6 anos

um guia para pais

Para Ti,

Porque Tu me chegaste sem me dizer que vinhas,E tuas mãos foram minhas, com calma;Porque foste em minh’ alma, como um amanhecer;Porque foste o que tinha de ser

Vinicius de Moraes

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Agradecimentos

Escrever um livro é um acto apenas aparentemente solitário. Por que razão afi rmo isto? Porque, na realidade, um livro é um documento fi nalque, para além do seu autor, tem um processo de contextos e personagensque contribuem sempre, de múltiplas formas, para o seu surgimento.

Pois bem. Existem, então, algumas instituições e personalidades sem as quais, pelos mais diversos motivos e em relevâncias distintas,este livro não teria vindo à luz de todos aqueles que por ele se possame queiram sentir iluminados.

Quero, por isso, prestar os meus mais afectuosos agradecimentos a essas transcendências da minha educação que, por essa via, estão tam-bém presentes no que escrevi neste livro.

Afectuosamente agradeço, pois:Aos meus Mestres: Joaquim Bairrão (in memoriam), Carlos Amaral

Dias, Isabel Leal, Maria Stella Aguiar, Victor Moita e Orlando Lourenço,que me foram educando na paixão pela Psicologia e Psicopatologia doDesenvolvimento, e Vitória Perea e Valentina Ladera, que me condu-ziram à feliz descoberta das Neurociências.

A todos os meus colegas, em especial a: João Taborda, Nuno Colaço,Jorge Ferreira, Rita Lourenço, Sara Ibérico Nogueira e Carlos Simões,por me permitirem compartilhar o ensino da Psicologia do Desenvol-vimento, e a Carlos Alberto Poiares, Alexandra Figueira e Maria Louro, por me consentirem acompanhá -los nos percursos da Psicologia Forense;

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mas também a Pedro Gamito, Diogo Morais e Jorge Oliveira, pelo exem-plo de solidariedade, trabalho e inovação que para mim constituem.

À Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias que, nos últimos vinte anos, me acolheu e, defi nitivamente, contribuiu para a minha educação, em especial nas pessoas do Presidente do Conselho Geral e Magnífi co Reitor da Universidade Lusófona do Porto, Fernando Santos Neves, do Senhor Administrador do Grupo Lusófona, Manuel d’ Almeida Damásio, do Magnífi co Reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Mário Caneva Moutinho, do senhor Pró-Reitor, Pereira Brandão, e do senhor Director da Faculdade de Psi-cologia, Carlos Alberto Poiares.

À minha equipa da Clínica de Psicologia Paulo Sargento: Manuela Lucas, Ângela Santos, Maria Castelo, Miguel Faria, Regina Afonso e Ana Bochichio, por, nos últimos tempos, me terem ajudado a desen-volver a clínica com que sempre sonhei.

Em especial à Regina Afonso, pela força e pela dinâmica que con-seguiu imprimir no novo projecto clínico.

Aos meus pais, irmãos e sobrinhos, por serem, sempre, o meu e(terno) porto seguro e à minha Constança, porque se o seu ladrar fossem pala-vras dir -me -ia coisas tão bonitas e tão doces…

Aos meus amigos de sempre: Luís Freire e António Estevinha.A um amigo recente que se tornou um amigo de sempre: Hernâni

Carvalho.À doce memória de meus avós João, José, Aida e Ilda, do meu tio

Carlos e do meu amigo Xico.Aos jovens pais e mães que, de diversas maneiras, mas sempre gene-

rosamente, deram o contributo pessoal que tornou possível dar forma e conteúdo àquilo que ireis ler.

Finalmente, à Editorial Planeta, pelo respeito que tem pelos autores!

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Nota de abertura

As linhas que ireis ler resultaram de uma refl exão pessoal e demo-rada sobre alguns problemas que giram à volta do que se costuma desig-nar por educação.

Não sendo a primeira vez que escrevo, faço, contudo, a minha ini-ciação neste género de escrita: divulgação para o grande público. É umrisco que me apraz correr, até porque este é um tema que permite umaparticular articulação com três das minhas áreas de interesse: as neu-rociências, o desenvolvimento humano e a justiça.

Mas falemos do tema.Nas sociedades modernas ou, se quisermos, pós -modernas, a educa-

ção deixou de constituir somente uma necessidade para passar a cons-tituir, sobretudo, um direito e um bem social. Contudo, a educação deque irei tratar não se refere exclusivamente à sua concepção habitual,na medida em que a irei distinguir do ensino (também, ele, um direito, nem sempre reconhecido e, mesmo, muitas vezes mal tratado) sem,necessariamente, a retirar das escolas.

Iniciei a minha profi ssão de psicólogo e docente universitário há vinte anos, mas o meu processo educativo é bastante mais antigo. Comefeito, a minha cidadania em geral, e a minha actividade profi ssionalem particular, permitiram -me, e permitem, o contacto com dezenasde pessoas que fi zeram, e fazem, parte da minha educação, tal comoeu fi z, e faço, parte das suas.

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O que tenho aprendido e ensinado vai muito para além do que estudo e investigo. É sobretudo no meu contacto com as pessoas, na minha prática clínica, na minha prática docente e, por que não, no exer-cício da minha cidadania, que as palavras deste livro têm a sua origem.

Decidi trazer -vos casos e exemplos para ilustrar alguns conceitos que defendo, reconheço, nem sempre de uma maneira politicamente correcta. Mas, mais do que expor conceitos e sugestões, preferi, com os casos apresentados, utilizar o exemplo que, sendo individual, cons-titui fonte de aprendizagem e refl exão colectivas. Em cada caso apre-sentado aprenderemos um pouco sobre os «nossos casos».

Tentei escapar aos «chavões» e às ideologias, mas não me coibi de fazer opções e de dar a minha opinião.

E por que razão digo isto?Porque na origem deste livro estão as preocupações de muitas mães,

pais e outros educadores que, no seu dia -a -dia, nos colocaram as dúvidas que gostavam de ver esclarecidas. Ou melhor, tentaram, de alguma forma, partilhar, de modo honesto e espontâneo, os seus temores, ansiedades, dúvidas, tristezas, mas também alegrias, saberes e boas experiências que o seu quotidiano tem proporcionado. Para além da espontaneidade dos discursos destes educadores que recolhi enquanto profi ssional, contei com a preciosa ajuda da Regina Afonso e da Susana Pinto, as quais, no âmbito das suas actividades académicas, empreenderam um esclarece-dor inquérito a algumas dezenas de jovens mães e pais que, com o seu testemunho, vieram ajudar a dar consistência a um problema com o qual, desde sempre, me deparei: o de, apesar do nosso potencial edu-cativo, nem sempre sabermos como educar.

Se, por vezes, não resisti ao vício académico de «escorregar» em jar-gão demasiado técnico, penitencio -me, desde já, pela difícil digestão de algumas dessas partes. Mas se, ao contrário, vos parecer outras vezes demasiado simplista, peço que tomem nessa simplicidade o exemplo daquilo que a educação deve ser: o necessário, e não mais que o neces-sário, e o sufi ciente, e nunca menos que o sufi ciente.

Este livro foi escrito a pensar, fundamentalmente, nos educadores mais «naturais» – os pais. Mas será muito gratifi cante se também outros

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agentes educativos (educadores de infância, professores, psicólogos,pedagogos, médicos e todos aqueles a quem a educação não passar aolado) encontrarem nas linhas que se seguem alguns pontos de refl exãoe de crítica sobre este tema fascinante.

Finalmente, quero partilhar uma coisa convosco: foi um grande pra-zer pensar sobre este tema. Mas foi, sobretudo, uma aventura da qualmuito me orgulho partilhar o resultado com os principais responsá-veis: as pessoas reais que me contaram as suas histórias.

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Educar: o que signifi ca?

A palavra educar deriva do latim e signifi ca, literalmente, trazer ou conduzir para fora (ex – fora;x ducere – conduzir). A sua etimologia (istoé, o seu signifi cado original) remete -nos, portanto, para a seguinte metá-fora: só podemos educar de acordo com o que as pessoas têm dentro si. Ora, se isto assim é, devemos questionar -nos: quem, quando, como,por que e para que educamos?

Quem educamos?

Na primeira questão, o quem da educação, está implícita a relaçãoentre quem educa e quem é educado, ou seja, a relação entre educador e educando. No presente livro, o educando é a criança, desde o seu nas-cimento, ou mesmo antes, até aos 6 anos de idade.

Por que razão nos concentramos nestes primeiros anos de vida?Porque, na maioria das sociedades actuais, estes ciclos de vida (pri-meira e segunda infâncias) são aqueles onde mais dúvidas se colo-cam acerca de quem são os educadores e de quais os seu papéis (pais,avós, educadores, família nuclear, família alargada, creches, escola, ATLs, amigos, etc.).

Várias questões se podem colocar. Todas as pessoas à nossa volta nos educam? De forma simultânea? Têm todos a mesma importância?

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Para além das questões enunciadas, é necessário recordarmos a nossa tendência para «projectar» na infância toda a nossa esperança no futuro da humanidade, pela ideia que temos do nosso inacaba-mento enquanto seres sociais (ou seja, seres frágeis e educáveis que constituirão a nossa herança). A criança é o futuro da humanidade, costumamos afi rmar. A ideia do barro original a ser talhado a poste-riori (isto é, o ser humano puro e educativamente virgem, como se de uma tábua de cera branca se tratasse, onde a cultura irá inscre-ver as suas marcas), oriunda de uma corrente fi losófi ca designada por empirismo, defendida por John Locke, ainda ocupa grande parte das nossas atitudes educativas. É como se nascêssemos como «reci-pientes vazios» para sermos enchidos pela educação e pela cultura. Porém, a mais recente investigação científi ca sugere um conjunto de pistas que é revelador da infl uência das diferenças individuais pré e perinatais (isto é, anteriores ao nosso nascimento – em particular gestação, gravidez e parto) e da contribuição dos aspectos mais fun-damentais da genética para a nossa construção enquanto pessoas. A relação entre o que herdamos e o que adquirimos representa um factor de importância crucial para a compreensão da educação. Mui-tos aspectos genéticos e estruturais encontram no meio ambiente, muitas vezes, maiores ou menores possibilidades de expressão. A este propósito refi ra -se, a título de exemplo, a maior probabilidade de ambientes familiares desorganizados e/ou de elevada estimulação sen-sorial (ambientes com regras pouco defi nidas e/ou altamente mutáveis, barulhentos, com excesso de estimulação) favorecerem o desenvol-vimento e expressão da perturbação de hiperactividade com défi ce de atenção nas crianças que já detêm, à partida, sinais de estrutura potencial para a desenvolverem (ex.: sono agitado, choro frequente e excessiva actividade motora nos primeiros 6 meses). Mas este exem-plo não nos deve deixar uma ideia simplista das interacções entre a herança genética e o ambiente em que vivemos. Apenas deve alertar--nos para as diversas componentes que nos infl uenciam, de manei-ras muito diferentes. Seja como for, o que trazemos dentro de nós é o fundamento da educação.

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Educar não é colocar algo dentro de alguém. Educar é aceitar que alguém deite algo para fora de si mesmo, para que possa transformar--se! É uma criação de novidade e diferença!

Quando educamos?

O quando da educação leva -nos a outra questão fundamental:a oportunidade educativa. Do signifi cado original da palavra, concluí-mos que só é possível educar quando alguém já possui algo dentrode si que o permita. A infl uência transcendente do educador (trans-cendente, porque está para além e, portanto, fora do sujeito que éeducado) torna -se acessória e secundária, no processo educativo,relativamente à necessária imanência do educando (imanência, por-que é algo que vem de dentro do próprio educando, isto é, o seu pró-prio potencial para ser educado). Que quer isto dizer? Quer dizerque educar não é um papel exclusivo do educador tomando o edu-cando como sujeito passivo que tudo absorve. Ou seja, não somos recipientes vazios à espera de quem os encha. Ora, não é pelo facto deobrigarmos alguém a fazer algo, ou pelo facto de o repetirmos vezessem conta que estamos a educar. Assim, tentar meter coisas «dentroda cabeça de alguém», sem saber «se lá cabem», ou se lá fazem sen-tido, não é educar. É um disparate! A ser assim, estaríamos a atri-buir ao processo educativo a resolução para um insolúvel e milenarproblema geométrico: a quadratura do círculo. Todos sabemos que é impossível, só com uma régua e um compasso, construir um qua-drado com uma área igual à área de um determinado círculo. Por-tanto, não só não descobriremos a quadratura do círculo como, pelocontrário, sabemos que ela é impossível.

Então, não só todos temos, desde sempre, algo dentro de nós, comoé também o que temos dentro de nós que permite chegar ao outro, quenos pode conduzir para fora de nós e orientar -nos. De forma mais sim-ples, é como se só pudéssemos aprender o que já sabemos. Não pode-mos dar o que não temos, especialmente quando ainda não temos.

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É por isso mesmo que os diferentes tempos e ciclos de vida são funda-mentais neste processo.

Falamos em tempos, não falamos em idades. E tal distinção não é um acaso, ou uma simples fi gura de retórica. Na verdade, como sem-pre afi rmou o grande sábio Jean Piaget1, o mais importante no nosso desenvolvimento não é a idade que temos, mas sim as experiências que vamos vivendo através das oportunidades com que nos deparamos porque para elas naturalmente caminhamos. De modo fácil podemos perceber que, dependendo da idade que tenhamos, não somos, por exemplo, capazes de somar antes de conhecermos os números. E este é só um exemplo do que é fundamental para educar: estarmos atentos ao nível de desenvolvimento das crianças, em particular ao nível das competências que os seus desempenhos vão demonstrando. Assim, a idade pode ser um indicador importante, mas não devemos dar -lhe todo o crédito, porque o respeito pela individualidade e pelas diferen-ças continua a ser um dos grandes actos de amor que nos permitem a sensibilidade de adivinhar o quando…

Não nos assustemos, pois, se duas crianças criadas no mesmo meio sociofamiliar adquirirem, de formas e em tempos diferentes, compe-tências que as grandes teorias científi cas, as normas que vêm nos livros e, sobretudo, as nossas expectativas, garantem ser iguais e surgirem exactamente numa determinada idade. Nem todas as crianças atin-gem todas as competências na mesma altura. As diferenças normati-vas observadas resultam da interacção de diferentes factores (genéticos e ambientais) e devem ser respeitadas, não devendo constituir fonte de preocupação excessiva, na medida em que os ritmos e tempos de aqui-sição poderão ser bastante variáveis dentro de um lapso de tempo rela-tivamente amplo.

Nestas circunstâncias, o grande desastre educativo ocorrerá com o desrespeito desta regra de oportunidades (regra que tenta privile-giar o nível de desenvolvimento dos educandos) e com a crença de que o educador tem o papel principal (que privilegia a acção de um educador activo sobre um educando passivo). Assim, em qualquer acto educativo, colocar «a carroça à frente dos bois» ou «tentar meter

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o Rossio na Rua da Betesga» constitui o primeiro e, provavelmente,o mais grave dos «crimes educativos». Tentar, por exemplo, educarpara o estudo e para o trabalho quando ainda não houve oportu-nidade de brincar e de jogar constitui o exemplo mais vivo do queacabo de dizer. O mesmo se aplicará, seguramente, nas situações emque insistimos na transmissão de grande número de conteúdos (porexemplo, grande quantidade de matérias, escolares ou não) em longosperíodos de tempo: as «lições» demasiado longas, muitas vezes can-sativas e pouco motivantes, para matérias que requerem níveis eleva-dos e integrativos de aquisição de informação (por exemplo, tarefasque exijam especial planeamento e articulação de acções); ou, ainda,nas circunstâncias em que um «mau momento», ou uma «irritação»,não conseguem deixar ver as coisas boas e bonitas que nos queremtransmitir (por exemplo, quando a criança faz uma birra e, teimosa-mente, a obrigamos a ceder às nossas instruções ou ordens). Todasestas situações são totalmente contraproducentes. Muitas vezes, jul-gamos que as crianças podem apreender tantas e tão complexas maté-rias como os adultos. Outras vezes, não entendemos que as criançastambém têm os seus «dias maus» e, nessas alturas, é muito difícilestarem disponíveis para nós. Insistir em não ver isto signifi ca a ten-tativa desadequada de transformar uma indisponibilidade temporá-ria numa disponibilidade duradoura e excessiva, desrespeitadora daindividualidade, o que constitui um outro exemplo desse primeiro emais grave dos «crimes educativos».

O segundo crime educativo diz respeito ao facto de, frequente-mente, realçarmos o erro e desprezarmos a virtude. Desde a nossamais remota infância que os nossos erros, fragilidades ou insucessossão mais valorizados ou, pelo menos, encontram maior eco nas nos-sas vidas do que as nossas virtudes, mestrias ou sucessos. De facto,é muito mais frequente ouvirmos frases como, por exemplo, «não semexe!», «não se faz!», «estás a portar -te mal!», «agora fi cas de castigo!»,«está sossegado!», «olha que eu zango -me!», do que, por exemplo,«Boa! Acertaste!», «és muito simpático», «estás a portar -te tão bem…»,«é tão bom brincar contigo», «estás tão bem penteada. Penteaste -te

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sozinha?». E, um pouco mais tarde, já no primeiro ciclo escolar, esta estratégia repete -se quando, por exemplo, nos fazem perder mais tempo a escrever repetidamente uma palavra que errámos num ditado do que a escutar elogios ou reforços positivos por termos redigido um outro ditado sem qualquer erro. Bem mais tarde, quando sentimos que brilhámos em alguma das nossas tarefas profi ssionais, ouvimos, frequentemente, «não fez mais do que a sua obrigação, é para isso que é pago». Ao invés, se falharmos, a nossa chefi a não deixará de exer-cer o reparo. Será que o elogio das nossas virtudes não constituirá um pilar, no mínimo, igualmente importante para a nossa educação quanto o acentuar das nossas fragilidades?

Quando falo em educação harmoniosa, continuo a pensar que o reforço da virtude é mais efi caz do que a punição do erro.

A todo o custo devemos evitar dois «crimes» educativos: exigir antes dotempo, ou mais do que se pode, e acentuar o erro desprezando a virtude.

Como educamos?

Mas, e os métodos? O como da educação? Com efeito, a este propó-sito, temo -nos rendido aos métodos que privilegiam a acção do edu-cador, colocando a criança numa posição de passividade, como se se tratasse do tal recipiente vazio que o educador pode e deve encher na medida da sua vontade, não respeitando a medida das possibilidades e oportunidades do educando. Apesar de algumas, ditas, pedagogias acti-vas (isto é, atitudes educativas que dão um papel activo ao educando) reclamarem diferentes métodos educativos, continuamos a educar com base no exemplo induzido pelo educador, que se torna o modelo a seguir, e, como referimos, a insistir na valorização do erro e no des-prezo da virtude (reitero o exemplo: «se erro, sou repreendido; se acerto,não faço mais do que a minha obrigação»).

A ideia de que a educação é um processo de absorção e de integração de exemplos observados, vividos e sentidos, de formas directas (vividas

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pelo próprio) ou indirectas e vicariantes (observadas nos outros), é,para muitos, a mãe de todas as estratégias: «a melhor lição é o exem-plo», diz -se!

Mas, que exemplo?Tal poderia ser evidente se conseguíssemos assegurar que todos os

exemplos o são, de facto, não só para o educador mas também, e sobre-tudo, para o educando. O que acontece algumas vezes é que aquilo queé tido como um exemplo para o educador nem sempre o é para o edu-cando. O acto de educar exige que o educador se assegure de que a suaforma de agir consegue activar no educando aquilo que será necessárioorientar ou conduzir. Mais simplesmente, quando lidamos com crian-ças não devemos exigir que elas «cresçam», momentaneamente, atéao nosso nível e nos entendam, mas, pelo contrário, devemos ser nósa «regredir», para que as possamos compreender e, assim, os códigoseducativos adquiram um signifi cado que lhe seja acessível.

Só quando todos nos entendemos é que pode existir comunicação. Sem esta, não há educação possível. Então, o que será mais justo? Tentar que a criança, que nunca foi adulto, tente entender o mundo dos adul-tos? Ou, pelo contrário, tentar que os adultos, que já foram crianças, tentem aceder ao mundo destas?

O como da educação exige que «calibremos» os signifi cados entreeducador e educando. Dito de outra forma, o como da educação exigeque o educador se assegure de que o educando entende ou compreendeos códigos que ele utiliza.

Nos métodos educativos, o educando não deve «subir» até ao educa-dor. O educador deve, antes, «descer» até ao educando. Só este nivela-mento ou calibragem, que é uma obrigação do educador, pode garantir a paridade de signifi cados e permitir a consistência do método educativo.

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Por que educamos?

E, por que educamos? Antes de mais, porque somos uma espécie dotada de enormes plasticidades fi lo e ontogenéticas. Que quero dizer com isto? A nossa evolução tem -nos permitido a conquista gradual de possibilidades de infl uenciar o meio em que vivemos e, sobretudo, de sermos infl uenciados por esse mesmo meio. Educamos porque pode-mos educar! Mas educamos também porque temos de educar! O facto de nascermos frágeis e imaturos condena -nos à dupla condição de seres incompletos e de seres sociais. A primeira, a condição de incompletude,parece ser consequência de um processo de evolução que permite que os seres mais frágeis e incompletos à nascença possam, por essa mesma razão, ser mais modifi cados pelo meio em que vivem e, consequente-mente, conquistarem maiores capacidades para o modifi car. A segunda, decorrente das nossas fragilidades e imaturidades iniciais, a condição social, é consequência da enorme necessidade de cuidados parentais. Assim, a dependência extrema, no início da nossa vida, implica, inevi-tavelmente, tornarmo -nos gregários e sociais. O facto de sermos seres sociais, porque nascemos imaturos e dependentes de cuidados, implica «tocarmos» e «sermos tocados» pelos outros, em dimensões e orienta-ções múltiplas, numa complexa rede de relações, o que constitui, afi -nal, toda a base da educação.

Um peixe, por exemplo, quando nasce, consegue sobreviver por si só e não necessita de quaisquer cuidados dos seus pais. O seu «acaba-mento» enquanto ser permite -lhe possuir, desde logo, as competências necessárias para a sua sobrevivência. E se muitos desses peixes andam em grupo, que designamos por cardume, não será, com certeza, por possuírem características sociais, mas sim por necessitarem de protec-ção contra a predação, característica que a evolução lhes proporcionou (quando anda em grupo, um peixe reduz muito as suas hipóteses de ser predado; ao contrário, se estiver sozinho frente ao predador aumentará a probabilidade de ser «caçado»). De modo inverso, a maioria dos mamí-feros, mas os antropóides em especial, onde o ser humano se insere, a par com alguns símios, nascem com elevada necessidade de cuidados

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parentais, tendo em vista o seu grau de imaturidade e de fragilidade.Esta regra é particularmente visível nos seres humanos. Nascemos comum grau de imaturidade tão grande que se fôssemos deixados sozinhosapós o nascimento não sobreviveríamos (a não ser que acreditemos queuma loba nos alimentasse como teria feito a Rómulo e Remo, como nomito da fundação de Roma). Assim sendo, para além de necessitarmosde todos os cuidados para sobrevivermos, é a partir desses cuidados quenos ligamos afectivamente a quem nos cuida e desenvolvemos, destaforma, os grupos sociais (família, amigos, etc.).

Ora, de acordo com o que acabo de expor, e em suma: o facto desermos mais frágeis a priori também nos torna mais educáveis a poste-riori. O facto de nascermos incompletos, frágeis e dependentes torna--nos mais capazes de sermos modifi cados por aquilo que chamamoseducação.

A educação é, simultaneamente, uma necessidade e uma possibilidade. Somos educados porque necessitamos. Educamos porque podemos e sabemos.

Para que educamos?

Finalmente, para que educamos? O ideário das sociedades moder-nas e democráticas é constituído por uma série de metáforas educativasque podem ser ilustradas num conjunto de princípios, de valores e deregras que aceitamos, hoje, como verdades inquestionáveis. Ninguémtem dúvida que devemos ser educados com e para o amor, para a auto-nomia, para a saúde, para a justiça, para a solidariedade e fraternidade,para a liberdade, para a cidadania, para o saber e saber -fazer, para oambiente, para a estética, na medida em que tal nos permita amar, cres-cer, conhecer, sentir, partilhar, respeitar, produzir e muito, muito, mais.

Ouvi uma das respostas mais bonitas a esta questão, pela boca deum ilustre e estimado colega, José Morgado, que, no âmbito de umasjornadas sobre educação, proferiu as seguintes palavras: «educar é,

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sobretudo, ajudar alguém a tomar conta de si próprio». De facto, só quando fomos educados, podemos educar. Só quando sabemos tomar conta de nós, podemos tomar conta dos outros.

A educação é um local de amor e respeito, onde não existem prazosrígidos, onde não se forçam as formas nem os processos! Mas é, tam-bém, uma necessidade e um saber! Para que educamos? Para quesomos educados? Para que possamos educar!

Educar e ensinar: o amor e o resto

Podemos perguntar: qual a receita para uma boa educação? Segura-mente, não existe uma receita para uma boa educação. Mas alguns tem-peros, mais ou menos a gosto de todos, sempre poderão ser apontados, a título de meras «dicas». Desde logo, e o mais importante, o amor. Como já afi rmei noutro lugar2: «o verdadeiro motor do desenvolvimento é o amor». Devo confessar que aprendi esta «fórmula mágica» com a minhacadela Constança. Um dia, quando ela, então com 3 meses de idade,urinava em cima de um tapete da minha casa, eu tentei repreendê -la (educá -la, podereis pensar) com um ligeiro açoite, vociferando «não se faz chichi no tapete, Constança». Ela voltou -se e, abanando a cauda, lambeu -me a mão com que lhe tinha dado o, confesso, muitíssimo leve açoite, como que dizendo «gosto muito de ti e não entendo porque estás zangado». É claro que não entendia, nem poderia entender, pois ainda não tinha como organizar a sua territorialidade em termos de necessi-dades mais básicas. Só o amor poderia encontrar a reciprocidade neces-sária para que as coisas mudassem. Mais tarde, aos 6 meses, deixou de fazer chichi em casa. Apesar de correr o risco de estar a antropomorfi -zar a reacção da minha cadela (isto é, a atribuir -lhe pensamentos e sen-timentos demasiado humanos), o que é facto é que eu estava a exigir -lhe mais do que ela podia dar. Como se sabe, antes dos 6 meses de idade, para um cão, asseio é não fazer chichi no local onde dorme. Só a partir, sensivelmente, desta idade, mercê de mecanismos maturativos próprios

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à espécie, é que os canídeos organizam a sua função urinária e defecató-ria. Portanto, só a minha estupidez me poderia ter levado a pensar queum açoite e um ralhete educariam a Constança. Ou seja, ela daria algoque ainda não podia dar se eu insistisse no método do referido açoitee ralhete (ou jornais enrolados e outras tontices). Como estava enga-nado. E aprendi com o amor. Por isso, devo reiterar: se alguém me ensi-nou que o «verdadeiro motor do desenvolvimento é o amor», não foinenhum dos meus professores, colegas ou amigos, nem li em qualquerlivro ou revista científi ca ou não científi ca. Foi a Constança com a res-posta que me deu, devolvendo amor à minha incompetência educativa.

Mas é claro que pode também pensar -se que, para educar, só amornão basta. É capaz de ser verdade, de facto. Mas, então, devemos acres-centar que tudo o que está para além do amor é defi nitivamente insu-fi ciente sem a sua presença!

Eduquemos, pois, com e através do amor. Saibamos trazer para forada criança o que ela possui dentro de si e orientemo -la em função doque ela pode dar. Respeitemos, assim, a sua potencialidade e as suaspossibilidades enquanto ser em desenvolvimento. Mas, atentemos: amarnão se resume à satisfação completa de necessidades básicas ou à cor-respondência automática a desejos. Quem educa com amor tem desaber dizer sim, mas, também, tem de saber dizer não. Amar é, talvez,o verbo de conjugação mais bela em qualquer língua, mas é, também,o de signifi cado mais complexo e amplo.

Educar com amor é saber dizer sim e não! Mas é tão bom quando osim pode evitar os, possíveis, amargos do não…

É por causa disto que gostaria de realizar, desde já, uma distinçãoentre dois conceitos: educar e ensinar. O conceito de educar está maisligado a esse processo, no qual o amor é a condição absolutamentenecessária. Por seu turno, ensinar (do latim, insignare, isto é, gravarum sinal) implica a transmissão de informações ou instruções, ou seja,implica conteúdos e sua aprendizagem. Nesta situação, tudo o que está

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para além do amor é a condição necessária, mas nem sempre sufi ciente. Posso ser ensinado sem amor, mas não posso ser (bem) educado sem ele. É por isso que nem todos os designados agentes educativos podem ensinar; e é também por isso que os agentes de ensino não têm na sua primeira linha o objectivo de educar. Não se perdoa uma mãe ou um pai que não dêem miminhos ao seu fi lho. Mas ninguém poderá levar a mal se uma professora não o fi zer. Concordamos, pois, com a fi lósofa Olga Pombo3 quando esta sugere que à escola cumpre, essencialmente,ensinar. A escola tem de preocupar -se com conteúdos, porque, se assim não for, não cumpre o seu papel fundamental: transmitir conhecimen-tos e desenvolver competências, acima de tudo. Claro está que a escola também cumpre uma função educativa quando ensina, na medida em que esta transmissão de conhecimentos está largamente dependente da capacidade da criança para os adquirir. A interacção professor/aluno que privilegia esta capacidade, isto é, aquilo que podemos designar por estilos educativos (resultantes de características relativas ao carác-ter e à personalidade dos professores, e não tanto das metodologias de ensino), demonstra a capacidade que a escola tem de, muitas vezes, ir para além do seu objectivo principal e constituir um dos pilares mais estruturantes da nossa educação. A este propósito podemos interrogar--nos: quem não se recorda com carinho, admiração e saudade de um professor em especial? Daquela pessoa que, nos diversos graus e qua-lidades do nosso ensino, foi mais além das suas funções e nos marcou como seres humanos, ultrapassou o objectivo de nos ensinar e contri-buiu, em defi nitivo, para a nossa educação?

Tal distinção sugere, enfi m, que o nosso processo educativo está ligado a numerosas pessoas (pais, irmãos, amigos, amas, educadores ou outros cuidadores) e distribuído por diversos tempos (com neces-sidades e possibilidades diferentes) em diversos espaços (casa, escola, ATLs, vizinhança, etc.). Nas fases mais precoces da nossa vida, a famí-lia é o nosso porto seguro de amor. É nesse núcleo, mais ou menos alargado, que se irão fundar todos os alicerces de um processo que, possuindo múltiplos objectivos (intelectuais, afectivos, sociais, etc.), se torna interminável na sua busca.

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Mas nunca estamos completamente educados! Porém, devemos per-seguir esse objectivo geral – o de nos deixarmos «tocar» no que temosdentro de nós e colocá -lo fora de nós para que possamos ser conduzi-dos e orientados. É claro que, para além dos alicerces, necessitamos deparedes, telhas e todos os outros componentes que permitem erguer oinacabável edifício da nossa educação. Os amigos e os colegas, os edu-cadores das creches e as amas, em particular, ou, se quisermos, os parese os adultos, em geral, constituem um alargamento das pessoas que,em diferentes espaços e ao longo de diversos tempos da nossa vida,nos retiram algo de dentro de nós e nos conduzem e orientam na vida.É por isso que podemos afi rmar com propriedade: nunca estamos com-pletamente educados.

A educação é um caminho infi ndável, algo para onde tendemos, um princípio orientador. É, como a vida, uma «longa e sinuosa estrada queme leva até à tua porta»4.

Desenvolvimento e educação

Nem sempre o desempenho da criança traduz a sua real compe-tência. Muitas vezes, circunstâncias do dia -a -dia dão -nos uma ideiaerrada da sua competência aos mais diversos níveis. Um célebre peda-gogo russo, Lev Vigotski5, desenvolveu um conceito particularmenteilustrador do que acabo de dizer: Zona de Desenvolvimento Proximal.Este conceito ilustra uma ideia que traduz a diferença, muitas vezesobservada, entre aquilo que a criança consegue fazer por si própria eaquilo que consegue realizar com a ajuda de outrem, em particular doadulto. Com efeito, perante um determinado problema, a forma comoencontramos uma solução, por nós próprios ou por recurso a algumaorientação dos outros, traduz também a medida em que a nossa com-petência pode ser expressa. É assim que conseguimos, por exemplo,entender que crianças mais introvertidas e tímidas possam, em determi-nados contextos educativos, apresentar menor efi cácia do que crianças

Paulo Sargento

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mais extrovertidas e confi antes. Mas também entendemos que algumas dessas crianças conseguem maior efi cácia quando alguém lhes dá uma pequena ajuda, um pequeno «empurrão». Esta relação do desenvolvi-mento com a presença do outro (cuidador ou não) é fundamental para entender o que temos vindo a reclamar: não podemos ser educados sem a presença de outros que nos cuidem e nos amem.

Mas quando falamos em desenvolvimento mental ou psicológico, de que estamos realmente a falar?

Antes de mais, estamos a querer descrever algumas mudanças queocorrem nos nossos processos mentais ou psicológicos e, consequen-temente, no nosso comportamento, em função do tempo. Desta forma,costumamos designar por fases, níveis ou períodos os lapsos de tempo em que ocorrem, tipicamente, determinados fenómenos mentais, psico-lógicos e/ou comportamentais. Ora, estas fases têm uma característica fundamental: são integrativas. O facto de serem integrativas permite--nos pensar que cada fase que nós vivemos constitui um degrau pelo qual temos de passar para atingir o degrau seguinte. Assim sendo, o acumular de experiências que se integram de forma cada vez mais com-plexa e específi ca constitui um património que é único em cada um de nós mas que, simultaneamente, encontra muitos pontos comuns com os outros. Nesta perspectiva ser -nos -á mais fácil entender, por exem-plo, que ainda que todos sintamos, tipicamente, ansiedade de separa-ção da fi gura cuidadora entre os 6 e os 8 meses, só alguns desenvolvam perturbações ansiosas posteriores (em especial, perturbação da ansie-dade de separação), que necessitam de cuidados psicológicos, em parti-cular na primeira infância e na adolescência. Mas estas fases constituem um meio para atingir um determinado fi m. Também agora entendemosmelhor por que razão, algumas linhas atrás, afi rmávamos que nunca poderemos somar antes de saber o que é um número.

Em suma, o nosso desenvolvimento é uma função com duas dimen-sões fundamentais: mudança e tempo. Todo o educador deve ser sen-sível às possíveis combinações destes dois conceitos. Sem respeitarmos as competências do educando e o tempo que elas necessitam para se exprimirem corremos riscos sérios de comprometer o processo que é,

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afi nal, o objecto de exposição deste livro: a educação harmoniosa decrianças até aos 6 anos.

Educar exige sensibilidade para as mudanças que ocorrem em função do tempo. A educação é, assim, simultaneamente, causa e consequên-cia das transformações a que chamamos desenvolvimento.