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Juan José Millás

O Que Sei dos Homenzinhos

Pedro VidalTradução

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Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2010, Juan José Millás© 2010, Planeta Manuscrito

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Segundo Capítulo

1.ª edição: Março de 2012

Depósito legal n.º 332 848/11

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978 ‑989 ‑657 ‑227 ‑3

www.planeta.pt

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Estava a escrever um artigo sobre as últimas fusões empresariais, quando notei um tremor no bolso direito do roupão, de onde tirei, misturados com vários bocados de pão, quatro ou cinco homenzinhos que atirei para cima da mesa, por cuja superfície desataram a correr, à procura de um buraco para se esconderem. Nesse momento, entrou a minha mulher, que nesse dia não fora trabalhar, para me pergun‑tar se me apetecia um café. Quando chegou ao pé de mim, já não havia nenhum homenzinho à vista, só os pedaços de pão e algumas migalhas.

– Que mania! – disse, referindo ‑se ao meu hábito de guardar nos bolsos bocadinhos de pão, cuja côdea roía com os mesmos efeitos relaxantes com que outros fumam, ou bebem um copo.

Este costume metia ‑lhe nojo, embora os meus bocados de pão não fizessem mal a ninguém e, a mim, me dessem prazer. Em geral, depois de escrever um parágrafo com que me sentisse satisfeito, tirava um do bolso e dava ‑lhe três ou quatro dentadas, enquanto pensava no seguinte. Por qualquer razão, associava o exercício de roer à produção de pensamento.

Quando a minha mulher abandonou o quarto, respirei fundo, ali‑viado por não ter visto os homenzinhos. De outro modo, teria pen‑sado que estava louca e eu não teria sabido convencê ‑la do contrário.

Capítulo 1

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Deduzi que se tinham metido no bolso do roupão para passarem a noite, atraídos pelos bocados de pão, que talvez fossem capazes de cheirar. Apesar da rapidez com que desapareceram, deu ‑me tempo para reparar que eram tal como os recordava de outras ocasiões: magros e ágeis como lagartixas. Usavam, sem excepção, fato cin‑zento, camisa branca, gravata escura e chapéu de aba ao lado, como os actores de cinema dos anos 50 e 60 do século passado. Alguns coxeavam ao correr, talvez os tivesse aleijado sem reparar, ao tirá ‑los do bolso.

Depois de pensar neles durante um bocado, tentei esquecer o inci‑dente e voltei ao artigo com pouca disposição, pois tinha a mente dis‑persa, não já por causa dos homenzinhos, mas porque andava a dar voltas à cabeça nos últimos dias com a possibilidade de abandonar as aulas de doutoramento, produtoras de mais contrariedades do que de satisfações. Ao jubilar ‑me, tinha sentido como uma lisonja a nomea‑ção como professor emérito, distinção reservada a poucos. Atenuada essa satisfação, considerei que me enganara. Eu era muito meti culoso (muito obsessivo, diriam outros) com o trabalho e, embora nessa altura não precisasse de preparar as aulas, detestava enfrentar os alu‑nos sem ter trabalhado previamente a matéria. Quando falava destas dúvidas com a minha mulher, ela incitava ‑me a continuar.

– São muito poucas horas por mês – dizia. – Além disso, as aulas obrigam ‑te a sair de casa, a relacionares ‑te com as pessoas. Não as deixes, ou então espera pelo curso que vem e pensas nisso durante o Verão.

Ela temia que acabasse por me desleixar se prescindisse dos poucos compromissos que ainda me obrigavam a sair de casa. Uma vez que eu compartilhava esse receio, fazia a barba e tomava duche todos os dias. E, embora passasse a manhã em pijama e roupão, por achar que era mais cómodo, à hora de comer vestia ‑me, tivesse ou não de sair. Em qualquer caso, ia às compras um par de vezes por semana, tarefa que assumira com gosto ao jubilar ‑me. A azáfama do mercado (tínhamos um, tradicional, muito perto de casa) ajudava ‑me a pensar. Não era

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raro as melhores ideias para os meus artigos surgirem ‑me enquanto estava na fila para comprar um frango, ou no lugar da fruta.

Mal a minha mulher abandonou o quarto, e como me tinha esque‑cido de um bocado de pão sobre a mesa, um homenzinho espetou a cabeça por detrás da pasta onde guardava os recortes dos jor‑nais. Continuei metido comigo, como se não tivesse dado pela sua presença e, quando se encontrava perto do pão, estiquei o braço e apanhei ‑o com um movimento rápido, como o que fazemos para apa‑nhar as moscas quando somos pequenos, procurando não o aleijar. Deixei ‑lhe a cabeça de fora do punho, para que respirasse, e aproxi‑mei do seu rosto uma lupa que tinha sobre a secretária. Pareceu ‑me um homenzinho jovem, com cerca de trinta ou trinta e cinco anos, decerto não mais de quarenta. Perguntei ‑lhe porque nunca tinha visto mulherzinhas do seu tamanho, mas não consegui ouvir a resposta, embora tivesse mexido os lábios, muito finos, como se fosse capaz de articular palavras. Talvez falasse, pensei, através de ultra ‑sons que os meus ouvidos não conseguiam captar. Por detrás daqueles lábios viam ‑se, nitidamente, uns dentes branquíssimos. Quanto à língua, pareceu ‑me que terminava numa ponta extremamente afilada, como a dos pássaros.

Nesse momento tocou o telefone, mas não atendi. Atendeu a minha mulher na outra parte da casa e entrou em seguida no meu escritório com o auscultador.

– É do jornal – disse, entregando ‑me o aparelho. Era o redactor‑‑chefe. Queria saber quando teria pronto o artigo sobre as fusões empresariais, assunto com muita actualidade, pois uma grande far‑macêutica acabava de engolir uma outra, pequena, como quem toma um ansiolítico. Disse ‑lhe que lho faria chegar dentro de duas horas e desliguei.

Quando a minha mulher saiu do escritório, abri a mão onde tinha escondido o homenzinho e depositei ‑o sobre a mesa, que percorreu, aturdido, de um lado para o outro, como se tivesse perdido o sen‑tido de orientação. Os seus movimentos, apesar da confusão de que

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era vítima, permaneciam muito elegantes, facto que atribuí ao com‑primento das suas pernas. Depois de percorrer o tampo em ambos os sentidos, sem se preocupar com a minha presença, saltou para a gaveta da direita da mesa, que estava um pouco aberta, e perdeu ‑se nas suas profundezas. Eu regressei ao artigo sem vontade e levei por diante um texto previsível, cheio de ideias tiradas daqui e dali, que talvez, por outro lado, fosse o que esperavam no jornal.

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Apesar de ter deixado, a fazer de isco, bocados de pão nos bol‑sos da minha roupa e pelos cantos do meu quarto de trabalho, estive vários dias sem ver homenzinhos. Compreendi então que a sua pre‑sença também dependia do meu estado de espírito. De facto, ao evo‑car outras aparições, percebi que costumavam manifestar ‑se quando sucedia algo de singular pela manhã, no momento de acordar: a sen‑sação, por exemplo, de que os meus músculos eram emprestados, não porque funcionassem mal, mas por eu ter consciência do seu funcio‑namento, como quando se tem dores musculares ou gripe. De qual‑quer modo, continuei a tentar atraí ‑los com pão duro por todo o lado, à espera das dores musculares ou da gripe.

Passou tempo e, um dia, ao despertar, senti ‑me esquisito. Lembro‑‑me de me ter levantado sonolento e permanecido na borda da cama durante alguns minutos, dando ‑me conta daquela estranheza familiar (passe o paradoxo) que era sempre bem ‑vinda, pois o resultado era enormemente criativo. A minha mulher, ainda adormecida, ressonava com delicadeza atrás de mim. Pareceu ‑me haver no seu ressonar uma espécie de vontade musical, de harmonia. Levantei ‑me em seguida, enfiei o roupão, passei um momento pela casa de banho e regressei ao quarto, para a despertar com suavidade.

– Vou preparar o pequeno ‑almoço – disse.

Capítulo 2

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– Já me levanto – respondeu ela.Dirigi ‑me à cozinha, enchi de água o depósito da cafeteira, depois

de me assegurar de que não havia nenhum homenzinho no seu inte‑rior, coloquei o café no respectivo receptáculo e pu ‑la ao lume. Des‑casquei duas bananas, que parti às rodelas e coloquei num prato, junto a duas fatias de melão, também cortadas. Embora estivesse acordado, tinha a sensação de me movimentar num espaço onírico, pois a reali‑dade, pelo menos a realidade periférica, gozava da elasticidade carac‑terística dos sonhos. Como tínhamos a torradeira avariada, coloquei duas fatias de pão sobre a frigideira, com umas gotas de azeite, e espe‑rei pacientemente que dourassem. Tirei então do armário a lecitina de soja, o pólen e um tónico cerebral que nos fora recomendado pelo ervanário e dispus tudo pela mesa.

Em seguida, surgiu a minha mulher de banho tomado, perfumada e vestida. Trazia uma saia preta, de pele, e uma camisola de gola alta, roxa e fina, que acentuava a sua magreza. Ela ignorava que eu aguar‑dava com uma certa ansiedade esta sua aparição, todas as manhãs. E, embora soubesse que se arranjava mais para os outros do que para mim, não deixava de me surpreender com aquela vontade de agradar que a maior parte das pessoas perdia com a idade e que nela, contudo, permanecia intacta.

Enquanto tomávamos o pequeno ‑almoço, disse ‑me que ia almo‑çar com uns colegas para falar das eleições, pois estava a formar uma equipa com a qual decidira apresentar ‑se como candidata a reitora da universidade. Disse ‑lhe que não se preocupasse, pois eu tinha muito trabalho nesse dia e apenas comeria uma salada.

– Vou preparar uma coisa mais substancial para o jantar – acres‑centei. Lembro ‑me de que, nesse instante, o pátio interior para onde dá a cozinha se iluminou com um raio cujo trovão soou de seguida, como se a tempestade estivesse por cima da casa.

– Ontem anunciaram chuva – assinalei.– Que chatice – acrescentou ela, como se duvidasse de ter vestido

a roupa adequada.

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– Quando fores reitora – brinquei –, terás um carro oficial que te apanhará à porta de casa e te levará até à porta do gabinete.

Ela fez um gesto de pudor, como se o meu comentário a ofendesse, embora no fundo a lisonjeasse. Acompanhei ‑a depois à porta, como todos os dias, e dei ‑lhe um beijo, desejando ‑lhe um bom dia. Depois, regressei à cozinha e, em vez de meter os pratos sujos e os copos na máquina, como fazia habitualmente, decidi lavá ‑los à mão, pois lavar louça descontrai ‑me e ajuda ‑me a pensar. Fazia tudo sem precipitação, sem pressas, em câmara lenta, como em dias de gripe, de tensão baixa, ou de dores musculares. Gostava de sentir o jacto de água quente sobre as mãos e observar as formas que desenhava a espuma do deter‑gente líquido sobre a superfície dos pratos. Ouvi outro trovão, de cujo relâmpago não me tinha apercebido, e pareceu ‑me reconfortante a ideia de haver uma realidade exterior que afectasse tão pouco os meus hábitos. Há alguns dias, a essa hora, estava a ouvir o rádio enquanto arrumava a cozinha e a informação sobre o trânsito parecia ‑me um relato de guerra, de uma guerra que não me dizia respeito.

O primeiro homenzinho apareceu dentro da chávena que a minha mulher acabara de usar. A sua magreza proporcionava ‑lhe a agilidade de um réptil bípede (se os há, mas creio que sim). Estava a comer os restos do pequeno ‑almoço da minha mulher. Observei ‑o até que se apercebeu da minha presença, mas não fez nada para fugir. Parecia dar como certo que entre ele e eu havia alguma espécie de cumplicidade, algum tipo de acordo. Chamou ‑me a atenção não sujar a roupa, apesar de chapinhar nos restos do café como um miúdo na lama.

– Por que não te sujas? – perguntei.Olhou ‑me por um instante e continuou a fazer a mesma coisa,

pelo que pus a chávena de lado, pois não ia lavá ‑la com ele lá dentro. O segundo homenzinho saiu de dentro de um liquidificador em desuso. Sem se preocupar também com a minha presença, começou a dar conta de um bocado de torrada abandonado sobre a bancada. Dentro de pouco tempo, a cozinha estava cheia de homenzinhos, cujo desinte‑resse pela minha pessoa era surpreendente. Teria ficado a observá ‑los,

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mas tratava ‑se de um dia da semana em que tinha de enviar dois arti‑gos, de maneira que peguei no pano e passei ‑o pela bancada, com cuidado para não aleijar nenhum. Eles continuaram a sua actividade, como se eu não estivesse ali, ou como se fosse seu cúmplice, talvez até o protector. O meu primeiro artigo versou sobre a influência da subida dos salários na inflação e o segundo sobre o mercado de futuros em tempos de crise energética. Depois de os enviar, dormitei um pouco sobre a secretária. Em seguida, preparei uma sanduíche de vegetais.

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Houve em seguida uns dias de calma vida familiar, sem homenzi‑nhos. No domingo, como era habitual, foram lá almoçar a casa a filha da minha mulher e o marido, com os filhos (uma menina de seis anos e um bebé). O marido, economista, trabalhava num banco. Enquanto eu preparava a salada, ele, sentado à mesa da cozinha, com o bebé nos braços, dava ‑me conta das suas preocupações. Tinha aconselhado mal um cliente importante que agora pedia a sua cabeça à direcção. A responsabilidade era sua por não ter sabido calcular os riscos e não ter tido em conta o perfil investidor do cliente, mas também do banco, que, quando necessitava de liquidez, pressionava os empregados para que atraíssem dinheiro com produtos financeiros, nos quais, com fre‑quência, havia alguma improvisação.

Pareceu ‑me que esperava o meu conselho, mas limitei ‑me a dizer quatro generalidades que qualquer investidor experimentado conhe‑cia de cor. Não gostava de influir em questões tão delicadas. Em geral, detesto dar conselhos (e recebê ‑los). Tive, por outro lado, a impressão de que o homem estava esmagado mais pela situação familiar (o bebé fora produto de um descuido) do que pela laboral.

Enquanto limpava a alface, saiu de entre as folhas uma tesourinha incrivelmente ágil, apesar de ter estado no frigorífico. Assustei ‑me e retirei a mão violentamente. Em seguida, sorri.

Capítulo 3

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– Não é nada. Um bicho – disse, voltando ‑me, ao genro da minha mulher, que se sobressaltara com o meu gesto. Quando cheguei ao coração da alface, encontrei também um caracol pequeno e partido. A textura da sua carne lembrou ‑me a dos homenzinhos.

– Se não se limpam bem as verduras, não se sabe o que se come – sentenciei em voz alta, mostrando o caracol. Depois, ao partir os ovos cozidos e ao tirar ‑lhes a casca, espantou ‑me, como sempre, o talento económico desse produto biológico. Andava desde há meses para escrever, meio a brincar, meio a sério, um texto acerca das virtudes financeiras do ovo da galinha. Mas era preciso percorrer vários tópicos antes de alcançar uma ideia original. Havia demasiadas análises da evolução biológica transpostas sem qualquer critério para o âmbito económico. Ou seja, tinha preguiça de abordar o assunto, sem que por isso deixasse de me atrair.

De repente, frente ao ovo cozido (um óvulo cozido, reflecti), senti uma espécie de invasão do biológico que me perturbou. Eu era bio‑logia. O genro da minha mulher e o seu bebé, que embalava nesse momento, eram também dois acontecimentos biológicos. A minha mulher e a filha, e Alba, a menina de seis anos, que conversavam na sala, eram da mesma forma ocorrências biológicas. A alface era um acontecimento biológico. Mas o invólucro de tudo isso (talvez tam‑bém as suas entranhas) parecia económico. Estava prestes a alcançar uma ideia interessante, quando o genro da minha mulher se interes‑sou pelas minhas aulas na faculdade.

– Estou um pouco farto – disse –, talvez desista.– Porquê? – perguntou, embalando o bebé.– Não sei, os alunos não me interessam, nem eu a eles. Não me

estimulam intelectualmente. A cada ano chegam menos preparados, menos curiosos, mais acomodatícios.

Nessa altura, o bebé começou a chorar.– Está na hora de mamar – disse ele, levantando ‑se para ir até à sala.Quando fiquei sozinho, abri o forno para ver como ia o borrego

(mais biologia) e, apesar de o ter inspeccionado antes de o acender,

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para me certificar de que não havia nenhum homenzinho no seu interior, pensei com inquietação na possibilidade de algum poder ter caído no assado, cuja base era de batata e cebola. Que aconteceria se, ao servir a carne, alguém encontrasse no seu prato um homenzinho? Empurrá ‑lo ‑ia para o lado, com educação e, sem dizer nada, como quando se retira um cabelo da sopa, ou apontá ‑lo ‑ia com espanto?

Embora não fosse de modo algum responsável pela existência dos homenzinhos, imaginei que os rostos dos comensais se voltariam acusadoramente para mim. Preocupado com a questão, e embora o cabrito estivesse longe de estar pronto, tirei o tabuleiro cá para fora e revistei ‑o, para verificar que não havia qualquer irregularidade. Não vi homenzinho nenhum, apesar de ter levantado as peças de carne e revolvido a base com cuidado.

Efectuado o exame, introduzi de novo o tabuleiro no forno e dirigi ‑me à sala para me juntar à reunião familiar. Pouco antes de chegar, pareceu ‑me que falavam em voz baixa, como se receassem que pudesse ouvi ‑los, de maneira que permaneci escondido junto à porta, por uns instantes. A filha da minha mulher dava de mamar ao bebé (mais biologia), ao mesmo tempo que o marido comunicava a ambas que, de facto, eu parecia disposto a abandonar as aulas da faculdade, revelação ouvida com tristeza pela minha mulher. Nisto, fui surpreendido pela Alba, a irmã mais velha, e entrei na sala, fin‑gindo não ter ouvido nada.

– Daqui a meia hora o borrego está pronto – disse.Depois de comer, brinquei um pouco com a menina. Adorava que

a levasse ao meu escritório, cheio de objectos e fetiches antigos, por cuja história se interessava vivamente. Em geral, dava respostas razoá‑veis às suas perguntas, mas, às vezes, comprazia ‑me em alinhavar his‑tórias fantásticas sobre a origem disto ou daquilo. A menina tinha uma memória surpreendente e corrigia ‑me quando lhe oferecia uma versão distinta da escutada na semana anterior. Desta vez, aproximou‑‑se da gaveta de cima da minha secretária e abriu ‑a para espreitar lá para dentro.

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– Tem cuidado – disse ‑lhe –, olha que há aí uma incubadora de homenzinhos.

Embora se mostrasse incrédula, quando puxei cá para fora a gaveta para satisfazer a sua curiosidade, descobrimos no contraplacado do fundo um buraco que parecia ligar ‑se a uma greta na parede.

– Estás a ver? – acrescentei, iluminando a greta com uma lanterna.Quando se foram embora, a minha mulher mostrou ‑se um pouco

preocupada com «os miúdos».– Vão safar ‑se – disse ‑lhe eu.– Oxalá – acrescentou ela. E foi tudo.

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