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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO
O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM FUGITIVE PIECES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Maio de 2005
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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO
O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE EM FUGITIVE PIECES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João Del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Memória e Identidade Cultural
Orientadora: Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: MESTRADO EM TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA
Maio de 2005
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CAROLINA MARQUES DE CARVALHO
O papel da memória na constituição da identidade em Fugitive Pieces
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Magda Velloso Fernandes de Tolentino - UFSJ Orientadora
Profa. Dra. Lyslei de Sousa Nascimento – UFMG
Prof. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ
Prof. Dr. Antônio Luiz Assunção Coordenador do Programa de Pós-graduação em Letras
03 de maio de 2005
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À minha razão de viver, meus filhos Gabriela e Luiz Felipe, ao alimento de minh’alma, meu amor, Témiston.
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Senhor, obrigada por ter me concedido
a faculdade da leitura.
Magda você foi incansável em sua dedicação, carinho e principalmente em sua interminável busca pelo novo. Agradeço também à Universidade Federal de São João del-Rei, por acreditar na seriedade do curso de Letras, a todos os outros professores do curso que se mostraram presentes e dedicados ao nosso crescimento, e em especial à professora Suely que indiretamente contribuiu na concretização deste trabalho.
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RESUMO
Os estudos teóricos sobre identidade, memória, luto e nação, abordados ao longo
deste trabalho, visam a uma reflexão sobre as mudanças ocorridas no cenário
histórico e político do pós Segunda Guerra Mundial. A obra Fugitive Pieces de
Anne Michaels serve para exemplificar de que forma esses estudos foram sendo
realizados com o fim de explicar as transformações ocorridas e suas
conseqüências para todos que sobreviveram a ela. O texto ficcional, ao tratar
desse momento, incita uma reflexão a respeito dessas conseqüências diretas e
indiretas registradas na obra pelo olhar da personagem Jakob, cuja identidade
cultural é formada pelos diferentes espaços geográficos ocupados por ele durante
sua vida. Ao falar sobre a construção da escrita memorialística, principalmente
dessa personagem, a obra levanta uma questão sobre a utilidade dessa escrita
uma vez que ela serve para registrar os eventos desse período e contribuir para
uma escrita performática da história. Os vazios decorrentes da dificuldade que os
sobreviventes encontram em relatar seus eventos contribuem para construir um
posicionamento traumático frente às atrocidades da guerra e revelar a fragilidade
dessas pessoas em relação a suas próprias histórias. Além da reflexão que
discute a construção da identidade das personagens envolvidas na ficção e seu
processo de escrita – ou não – pelo viés da memória, o problema do luto na vida
desses sobreviventes, decorrente da incapacidade de enterrar seus mortos,
também foi abordado neste estudo, já que esse ritual é raramente vivido por
essas pessoas, o que gera conseqüências que contribuem para seu processo de
perda e desorientação tão presentes no mundo contemporâneo. O luto deve ser
visto como um ritual que auxilia na transposição desse posicionamento traumático
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permitindo a reconstrução da vida dessas pessoas. Também através desse
processo a reconstrução da identidade é percebida, pois auxilia a se retomar as
lembranças de um tempo que já se perdeu sem se levar em consideração
conceitos como certo ou errado, mas de diferente. A transposição através da qual
Jakob consegue reestabelecer seus vínculos afetivos e identitários, não deve ser
entendida como um processo de reterritorialização, um enraizamento territorial
como a palavra pode propor, pelo contrário, ela está mais próxima da fluidez do
conceito de identidade que a época pós-moderna exige por se estabelecer
justamente na comunhão de várias culturas.
ABSTRACT
Some theoretical studies on identity, memory, nation and mourning are
examined here in an endeavour at reflecting on the changes which took place in
the political and historical scenario after World War II. Anne Michaels’s novel,
Fugitive Pieces, is taken to exemplify how these studies explain the above
mentioned changes and the consequences suffered by those who survived the
war. Her novel incites us to reflect on these consequences, direct and indirect,
through the eyes of the main character Jakob, whose cultural identity is formed
along all the geographical spaces he occupies in his lifetime. Using the
memorialistic style of writing, the novel raises the question of the usefulness of
such a style, since it registers Post-war times and contributes to a performatic
writing of history. The difficulty the survivors of the holocaust present in narrating
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their experiences help build a frame of the trauma in face of the war atrocities and
also help to reveal the frailty of those people before their own history. Besides
reflecting on the construction of the identity of the characters in the novel, as well
as their process of writing – or not writing – through memory, the question of
mourning in the lives of the survivors who were unable to bury their dead is also
broached in this work; the burial ritual is very seldom completed by them, a fact
which will bring consequences that will contribute to their feeling of loss and
disorientation, so common in the contemporary world. Mourning must be seen as a
ritual which helps in the transition of their traumatic experiences into a
reconstruction of their lives. The reconstruction of their identity is also discussed in
the same process. The means through which Jakob achieves the re-establishment
of ties of affection and identity must not be understood as a process of
reterritorialisation, a territorial rooting as the word might lead one to suppose, but
rather as a fluidity in the conception of identity which post-modern times demand in
the communion of different cultures.
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SUMÁRIO
RESUMO ...................................................................................................... 07
1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 11
2 TERRA NULLIUS........................................................................................ 30
3 OS CARREGADORES DE PEDRA............................................................ 62
4 A ESTAÇÃO INTERMEDIÁRIA................................................................... 91
5 PHOSPHORUS........................................................................................... 108
6 SEM UTILIDADE A MEMÓRIA MORRE..................................................... 114
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................... 119
BIBLIOGRAFIA...............................................................................................122
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1. INTRODUÇÃO
Após a Segunda Guerra Mundial muito se discutiu sobre as mudanças
no cenário histórico, geográfico e cultural do mundo. O relacionamento entre
países diferentes tornou-se, em grande escala, hostil e pacífico nas mesmas
proporções. As mudanças geopolíticas no leste europeu levantaram questões de
nacionalidade e patriotismo, assim como o processo de multiculturalismo que as
diásporas pós-coloniais sofreram. Tudo isso colaborou para que surgisse na
Inglaterra um grupo de teóricos que entendiam as questões culturais como
problemas intrinsecamente ligados a diferentes campos do conhecimento tais
como sociologia, antropologia, pscicologia, filosofia, literatura e áreas afins. Essas
áreas estavam de tal modo imbricadas e relacionadas à cultura que elas se
alinharam para, conjuntamente, explicar as modificações e transformações do
homem contemporâneo. Dentro desse clima de mudanças e assimilações, os
estudos sobre identidade e memória ganharam mais atenção pela sua grande
relevância dentro dos estudos culturais.
Um romance canadense me chamou a atenção por se inserir nesses
estudos sobre identidade e memória. Pelo viés memorialístico e por falar de um
tempo conflituoso que abriu as portas para os Estudos Culturais, o pós-guerra, a
obra serve ao propósito de exemplificar de que maneira as teorias sobre
identidade, memória, luto e nação podem ser apresentadas e assim reclamar uma
análise teórica que estude essa atenção dispensada à identidade no mundo
contemporâneo.
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No livro Fugitive Pieces de Anne Michaels percebi questões que lidavam
diretamente com os assuntos relacionados à construção de identidade que têm
sido discutidos ao longo do final do século XX e início deste. Outro aspecto da obra
que me chamou a atenção foi o fato de eu ter descoberto, através de consultas na
Internet a respeito do romance, que ele havia sido traduzido em várias línguas,
inclusive recebido uma tradução aqui no Brasil, pela Companhia das Letras, sob o
título Peças em Fuga e ter sido pouco difundido. Além disso, em 26 de janeiro de
2005 comemorou-se o fim da Segunda Guerra, data que leva em consideração a
libertação dos prisioneiros do maior campo de concentração nazista de que se tem
notícia, Auschwitz, na Polônia. Quando me interessei de fato em descobrir o que
poderia ser analisado à luz das teorias que discutem identidade e memória, reli o
livro e percebi a riqueza cultural de seu conteúdo.
O romance narra a história de um garoto judeu polonês desde os sete
anos de idade. Ele sobrevive ao ataque alemão em seu país quando a Alemanha
descumpre o Pacto de Varsóvia. É o início da Segunda Guerra Mundial. Jakob
Beer, o garoto, só sobrevive ao ataque porque se esconde atrás do papel de
parede do armário da copa de sua casa no momento em que uma bomba explode.
Após se dar conta de que seus pais haviam morrido e que sua irmã, Bella, havia
desaparecido, ele corre para se salvar. Em sua fuga, entre se esconder e tentar
sobreviver, Jakob é resgatado por um geólogo grego que fazia escavações em
Biskupin – um famoso sítio arqueológico na Polônia, também chamado de
Pompéia polonesa – durante a guerra, para escrever seu livro, Prestando falso
testemunho, um livro que registra como os nazistas haviam violado a arqueologia
polonesa para distorcer o passado. O sobrevivente é, então, levado para a Grécia
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e criado por Athanasious Roussos, o último de uma linhagem de marinheiros que
datava de 1700. Athos, como carinhosamente Jakob o chama, passa a ser o
koumbaros dele, seu padrinho. A infância de Jakob se passa na Grécia ao lado de
Athos e dos poucos amigos que eles tinham. Durante sua vida ao lado de seu
koumbaros, Jakob ouve muito sobre o que fora a guerra e tudo que esta envolvera.
Suas memórias de adulto recontam sua vida com um olhar mais maduro e mais
crítico e conseqüentemente, mais doloroso. Mais tarde, quando Athos recebe um
convite para lecionar em uma universidade no Canadá, eles se mudam para esse
país e lá Jakob passa sua adolescência e idade adulta. Em sua educação, o garoto
aprende grego, latim e hebraico, sob a alegação de seu padrinho de que ele
estaria “recordando o seu futuro”. Além disso, Athos ensina-lhe literatura e
geologia. Mais tarde, no Canadá, Jakob se interessa mais por literatura e passa a
fazer traduções de poemas do grego para o inglês para ganhar a vida. Jakob se
casa duas vezes. O primeiro casamento com Alex fracassa devido à solidão de
Jakob e sua dificuldade em se relacionar, dificuldade proveniente de sua
experiência de perdas. Seus constantes pesadelos o assombram por muito tempo.
Já sua segunda esposa, Michaela, o acompanha até a morte.
A história da vida de Jakob é escrita por ele próprio em um diário. Este
constitui suas memórias, que oscilam entre as lembranças de sua infância,
adolescência e idade adulta e os constantes pesadelos por causa de suas grandes
perdas. Sua irmã Bella é quem mais o incomoda, pelo fato da incerteza de sua
morte. Em um segundo momento do livro, o leitor é apresentado à personagem
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Ben, também judeu, filho de sobreviventes do Holocausto1 e residente no Canadá.
Ben, não o diminutivo de Benjamin como muitos devem imaginar, mas a palavra
hebraica para “filho”, conhece Jakob em uma festa na casa de um amigo e, quando
sabe de sua morte, vai até a Grécia para tentar encontrar o diário de Jakob. Ben se
diferencia de Jakob por viver sua cultura judaica e por ver em seus pais as
conseqüências da guerra – um homem e uma mulher calados e que viviam
isolados das outras pessoas como se desconfiassem de todos. Por ocasião da
morte de seus pais, Ben encontra uma fotografia deles com outras duas crianças,
Hannah e Paul, e descobre que tinha tido dois irmãos. Sua dor não é apenas a de
descobri-los, mas a de saber que seus pais guardaram esse segredo durante toda
sua vida. Um segredo de guerra. Uma experiência que não se troca. Descobrir que
seus irmãos não sobreviveram porque seus pais foram obrigados a ir para o gueto
foi um sofrimento que revelou a angústia de não poder sofrer o luto da perda.
As histórias de Jakob e Ben se confundem e ao mesmo tempo se fazem
diferentes. Jakob não é um judeu que conserva essa tradição como parte de sua
vida. Apesar de judeu por nascimento, ele se torna um homem com intervenções
culturais de origem grega e canadense, além da aquisição lingüística do inglês, do
latim e do hebraico. Um outro fator que diferencia uma personagem da outra é a
maneira como ambos lidam com a questão do luto. Tanto Jakob como Ben passam
por perdas muito fortes em suas vidas. O judeu-polonês perdeu seus pais e sua
irmã, mas por causa de Athos e do carinho que recebe dele consegue diminuir sua
dor e ao longo de sua vida é capaz de superar a perda. Já Ben não consegue
1 O termo Holocausto, empregado ao longo da dissertação, foi tomado de empréstimo dos autores utilizados para desenvolver toda a argumentação teórica, embora hoje haja uma tendência em se substituir esse termo pela palavra genocídio.
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superar seu sofrimento porque não teve de seus pais um suporte para entender e
minimizar as conseqüências que a guerra deixou.
O romance, ao abordar essas questões identitárias, levou-me a
aproximar esses problemas àqueles outros que os teóricos do pós-guerra
passaram a estudar. Além dos problemas causados pela guerra, outros fatores
estudados vinculados às descolonizações fazem-nos refletir sobre a situação
daquelas pessoas que construíram sua identidade de maneira heterogênea. As
questões que os teóricos mais levantam estão vinculadas diretamente aos fatores
de aculturação, transferências de culturas e imposição cultural que os povos
colonizados sofreram. Esses fatores geram conseqüências que determinam o perfil
do homem contemporâneo a partir de sua impossibilidade de ser entendido como
soberano, inteiro, científico. O homem fragmentado e sem uma identidade fixa, o
homem que não se faz por sua plena imobilidade é o retrato do homem
contemporâneo.
No trabalho que ora proponho realizar, o de refletir sobre questões de
identidade, pretendo usar o livro Fugitive Pieces para pontuar os itens abordados
na discussão teórica que será apresentada mais adiante. Nele a escritora aborda
questões culturais que não se vinculam diretamente ao multiculturalismo
decorrente dos países pós-colonizados, mas se aproxima do resultado sofrido por
aqueles povos, e percebo que a importância de seu trabalho atinge um âmbito
mais global do que local. O livro traz de volta à cena da história ocidental as
conseqüências da Segunda Guerra Mundial e, em decorrência disso, a autora
canadense reacende o problema vivido pelos judeus de antes e de agora. Entendo
que a obra não seja um texto em defesa desse povo, entretanto incita em quem a
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lê alguma reflexão a respeito das atrocidades que o Terceiro Reich ousou cometer.
Anne Michaels apresenta o resultado aviltante da guerra, no romance, por dois
olhares. O primeiro olhar é o do sobrevivente direto da guerra, Jakob Beer, e o
segundo do homem que testemunhou em seus pais a angústia da sobrevivência
dessa guerra. É importante marcar que a apresentação do primeiro olhar só é dada
ao leitor pelos olhos da segunda personagem, Ben, que em uma viagem à Grécia
encontra o diário de Jakob. É interessante notar, também, que o sobrevivente
direto do genocídio na Polônia foi capaz de achar o caminho de sua redenção,
enquanto o outro, que só viveu a guerra em segunda mão, através da reação dos
pais, tem mais dificuldade em se tornar inteiro.
Ao abordar o problema da dispersão dos judeus no pós-guerra, pelo viés
memorialístico, a escritora apresenta em seu texto a relação cultural que existiu
entre o sobrevivente do Holocausto, o polonês Jakob; um grego, Athos, que o
acolhe; a Grécia onde cresce; e um país que mais tarde os recebe: o Canadá.
Quando o leitor entra em contato com o mundo de Jakob através da leitura de Ben,
percebe ser inevitável o relacionamento entre essas três culturas, a judaica, a
grega e a canadense. A relevância que o narrador permite ao leitor destacar nessa
aproximação consiste na forma como ela é apresentada. O narrador mostra
questões relacionadas ao convívio familiar, ao processo de aquisição de uma
língua estrangeira e ao recebimento de uma nova cultura, o que vai nos levar a ter
um melhor esclarecimento dessa relação cultural. Mesmo sob a influência de
fatores culturais diferentes, Jakob é incentivado a manter a sua origem judaica. Da
mesma forma, a aquisição de novos espaços e novos conhecimentos inserem a
personagem em outras culturas. Essa aculturação aparentemente não revela um
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tom inquietante, pois a personagem, por ser muito jovem à época de seu resgate,
guarda apenas a lembrança de sua família e não esboça resistência para receber,
de Athos, ensinamentos sobre outras culturas. Essa lembrança familiar é o único
vínculo que Jakob tem com a ascendência judaica, entretanto é o suficiente para
que o narrador apresente ao leitor alguns dos problemas da guerra, desde a
entrada dos alemães na Polônia até o ostensivo ataque alemão ao povo grego
usando subterfúgios que justificassem a ofensiva. Entre eles cito as escavações de
sítios arqueológicos gregos que os alemães diziam se remeter a seus
antepassados.
O livro Fugitive Pieces de Anne Michaels apresenta questões marcantes
de identidade que estão intrinsecamente ligadas às preocupações atuais dos
teóricos dos Estudos Culturais. Essas questões se apresentam no romance pelo
viés da memória, que hoje se entende estar em estreita consonância com os
aspectos de identidade.
Dentro do objetivo geral deste trabalho, que é estudar as questões
teóricas sobre memória, identidade, luto e nação que a análise da obra permite, ao
exemplificar a aplicação de tais teorias tomarei como ponto de partida a
personagem Jakob por se apresentar ao leitor em sua incompletude e
fragmentação e por representar um momento histórico que comunga perda e
desorientação.
O capítulo Terra Nullius abordará a questão da memória. A história de
Jakob é contada por esse viés e por isso serão utilizadas as teorias sobre memória
segundo Henri Bergson (1990), Walter Benjamin (1993), Michel Pollak (1989) e
Benedict Anderson (1991). O teórico da filosofia, Henri Bergson, direciona seus
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estudos para a questão da memória do ponto de vista de sua ligação com o
espírito, propondo a divisão da memória em mente e matéria. O teórico tenta
relacionar esses dois pólos sob o conceito de imagem e percepção (ordem
material) e lembrança e memória (ordem espiritual).
A explicação de Bergson para a constituição da memória serve como
ponto de partida para que este trabalho seja executado. Além da relação entre
imagem/percepção e lembrança/memória é preciso estudar a dialética que essa
relação opera quando as lembranças são acionadas pela percepção.
Walter Benjamin (1993) esclarece como o advento da imprensa marcou
a história da humanidade da mesma forma que contribuiu para que a oralidade
fosse se silenciando. Se antes dela as narrativas eram marcadas pelo seu teor
oral, naquele momento de “progresso” ela foi substituída pela sua impressão no
papel. Ao teorizar sobre o narrador, Benjamin diz que o narrador que antecedeu
esse instante industrial se organizava a partir das imagens do marinheiro e do
artesão. Ambos constituíam metades do contador de histórias e dessa maneira
eles intercambiavam suas vozes fazendo com que a dialética da memória se
efetuasse. Mas na era da técnica não havia mais espaço para a oralidade, porque
as experiências intercambiáveis, que antes favoreciam a narrativa oral, tinham
sido substituídas pelo silêncio dos combatentes que retornavam da guerra.
Entendendo a memória como um processo que articula a lembrança e o
esquecimento de experiências; se essas se calam ou se empobrecem, a dialética
memória-esquecimento não ocorre porque há a escolha pelo silêncio. Embora a
memória inclua o silêncio como um fator que contribui para a constituição da
identidade, este se aproxima mais dos vazios que a memória não pretende reaver.
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Como complementação desse estudo relacional entre a lembrança e o
esquecimento, Anderson (1991) vai apresentar a dialética como um processo de
articulação entre o novo e o velho. Nessa aproximação, o teórico percebe os laços
que vinculam essas duas eras. O autor dá como exemplo os países que foram
colonizados e compartilharam com seus colonizadores uma língua, uma religião e
uma tradição.
Além disso, os teóricos dos Estudos Culturais levam em consideração a
minoria marginalizada em decorrência de sua situação social, política e/ou religiosa
envolvendo os aspectos culturais de todos os locais do globo terrestre. Na
verdade, esses autores estão escrevendo sobre as conseqüências e efeitos das
descolonizações que aconteceram nos séculos XIX e XX, das grandes guerras do
século XX e das diásporas que sucederam essas guerras. Os teóricos se
preocupam efetivamente com os resultados que as misturas culturais de todos
esses acontecimentos, guerra e descolonização, trazem.
Se antes Benjamin e Anderson deram uma ênfase maior à memória
individual ou restrita a um grupo, Pollak alarga seu alcance e discute a questão da
memória num âmbito muito maior. A operação dessa dialética memória-
esquecimento passa a fazer parte do contexto social. É interessante entender que
Pollak opera dentro do deslocamento do individual para o coletivo e assim ele
entende que as lembranças podem ocupar o espaço do privado, porém não
permanecem lá. Elas transitam do privado para o público e, ao se tornarem visíveis
e apreensíveis, passam a disputar um lugar com aquelas memórias que sempre
existiram somente no espaço público – as memórias coletivas das guerras, das
situações conflituosas, dos campos de concentração, se misturam àquelas que os
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livros de histórias tradicionais sempre contiveram. A problematização do ato de
narrar encontra seu reforço no aspecto social, segundo o autor, porque defronta
com as dificuldades de reintegração de seus autores. Essa dificuldade também se
revela na reintegração social depois de uma hecatombe.
O capítulo Os carregadores de Pedra vai apresentar uma análise
comparativa entre as personagens Jakob Beer e Ben, ambos de origem judaica,
apesar de essa ascendência se fazer mais presente em Ben. Neste capítulo, tomo
como ponto de partida a questão do luto. O problema do luto na vida daqueles que
não enterram seus mortos é um dos pontos fundamentais deste estudo. A teoria
do luto a ser observada passa pelos conceitos de luto “anormal” (abnormal
mourning) e luto “inaugurado” (inaugurated mourning) desenvolvidos pela filósofa
Gillian Rose (apud Parry, 2000). A tentativa de Rose é operar fora do discurso
iluminista da razão, do discurso do poder. Dessa maneira ela explica que os
sobreviventes do Holocausto sofrem com os fantasmas de seus mortos porque
eles não conseguem ou não podem enterrá-los devidamente. Esse sofrimento é
descrito por ela pelo viés do luto “anormal”, entendido como resposta àqueles
seres amados que não puderam ser enterrados e/ou velados; assim os mortos
não descansam e os que ficam vivos não conseguem recomeçar; e pelo viés do
luto “inaugurado” aquele que reconhece e aceita as leis que regem a ausência do
outro e permitem que o sofredor retome seu dia-a-dia e retome também as novas
e as velhas relações com aqueles que vivem. Rose acrescenta ainda em sua fala
o comprometimento político que é preciso se ter para com essas pessoas que
alcançaram o segundo tipo de entendimento.
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Torna-se possível pensar a obra Fugitive Pieces como uma resposta às
vozes assombradas de Auschwitz que se fizeram no silêncio e na perda de
metáforas dos vínculos familiares e pessoais antes tão marcados. A teoria do luto,
como foi dito anteriormente, é aplicada a dois personagens da obra: Jakob e Ben.
Jakob Beer é um sobrevivente da invasão alemã na Polônia. Ainda criança ele vê
seus pais serem assassinados e sofre com o desaparecimento da irmã. Sua fuga
permite-lhe encontrar o geólogo grego, Athos. Desse encontro surge uma
cumplicidade muito grande. Dentre as muitas coisas que Athos ensina a Jakob,
encontra-se o ato de reverenciar os mortos, respeitá-los e deixá-los descansar.
Em princípio Jakob sofre diretamente os horrores da guerra, tendo pesadelos
intermináveis com sua família, principalmente com sua irmã. Mais tarde, já em seu
segundo casamento, ele consegue colocar em prática os ensinamentos de Athos
em relação a amar e se deixar ser amado. Assim, ele acaba por ultrapassar a
fronteira que existe entre os dois tipos de luto e consegue chegar no segundo,
consegue ser feliz e enterrar os fantasmas que o atormentaram por muitos anos.
Esse alcance já não acontece com a segunda personagem.
A história de Ben é um pouco diferente da história de Jakob. Seus pais
conseguiram escapar dos campos de concentração, mas perderam dois filhos na
guerra. O silêncio deles nunca permitiu que os fantasmas do Holocausto fossem
devidamente enterrados, embora Ben só pudesse entender isso após a morte do
pai. Até este morrer, ele nunca soubera da existência de seus irmãos. Ben não
consegue romper com seu sentimento de perda porque durante toda sua vida ele
não recebeu de seus pais explicações já que, também, eles mesmos não
conseguiram romper com o luto “anormal”. Também após a morte de seu pai, Ben
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vai à Grécia para recuperar o diário de memórias de Jakob e descobre que,
apesar de Jakob também ter sofrido com os horrores da guerra, este conseguira
se redimir e aceitar a ausência do outro. De volta para o Canadá, Ben tenta
restabelecer a relação conjugal com sua esposa Naomi. Ele muda seus
pensamentos em relação ao relacionamento de seus pais, o que o leva a tentar
aplicar esse aprendizado em seu próprio relacionamento. Essa mudança não é
clara no texto, o que faz com que o leitor pense que ela só se tornará possível se
Ben realmente se esforçar. Caso Ben consiga mudar, ele também estará
rompendo com as barreiras do luto “anormal” e estará conseguindo caminhar em
direção ao luto “inaugurado”. A posição de Ben corresponde, de acordo com Rose
(apud Parry, 2000) a uma definição de pós-modernismo – uma rejeição da razão
que se liga à tradição do pensamento do qual se deve libertar. Uma solução para
essa rejeição seria o que Jakob conseguira fazer, uma reorganização do velho
com a possibilidade de novas relações. Rose levanta também a importância de se
pensar nesse processo sem se deixar levar somente ou pelo indivíduo ou pelo
coletivo. Fugitive Pieces consegue esse desenvolvimento porque apresenta vidas
de sobreviventes do Holocausto sem se sucumbir ao singular.
Relacionar Jakob e Ben é possível porque na vida de ambos houve
mortes que não puderam ser lamentadas. Jakob perde seus pais. Já a perda de
sua irmã não traz a certeza da morte. Isso se transforma em um pesadelo que o
acompanha até sua maturidade. A perda de Ben é mais complexa, ela reflete uma
outra perda, aquela que seus pais não souberam digerir. Embora haja
semelhanças entre Jakob e Ben, eles contribuem para a constituição da
identidade judaica de maneira diferente. Jakob não vive sua cultura, ele não fala
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dela a não ser quando Athos o faz lembrá-la. Já Ben vive sua condição judaica
cada vez que se lembra do sofrimento e do silêncio de seu pai.
Com o propósito de estudar a questão da identidade, o capítulo A
estação intermediária pretende analisar de que maneira o texto da autora
canadense permite ao leitor identificar na personagem Jakob características que o
inserem no cenário contemporâneo onde o homem é apresentado como o
resultado das mudanças em todos os setores da sociedade: um homem sem
referência soberana e unilateral, um homem que se apresenta fragmentado e que
não pode mais ser mostrado em sua completude.
Porém, antes de caminharmos em direção à discussão sobre identidade
que o teórico Stuart Hall (2003) proporciona, tomemos como exemplo um outro
teórico da História que reflete sobre a problematização da aquisição lingüística
vinculada à tentativa de uma homogeneização identitária. Em seu trabalho sobre
nação e nacionalismo, Erik Hobsbawn (1990) explica a construção do pensamento
nacionalista vinculado à homogeneização da língua. Em fins do século XVIII e
início do século XIX, a organização territorial que constituía os Estados-Nação se
preocupava com as questões de etnia e língua. Naquele momento da história, um
estado se formava a partir da aproximação desses fatores. Na obra a ser estudada,
não se percebem questionamentos vinculados ao estudo de nacionalismo, mas a
teoria aplicada a esse estudo pode servir ao propósito da identidade. Quando
Hobsbawn retoma a questão da língua como unificadora e formadora de uma
memória coletiva, aproveito seu conceito para que possa aplicá-lo a uma
personagem que constrói sua identidade justamente na desconstrução da
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homogeneidade lingüística. Uma língua sem memória possibilita a Jakob construir
seu passado.
A diversidade lingüística à qual foi submetida a personagem Jakob e a
influência que essa diversidade exerce em seu processo de memória e não-
memória identitárias, conduz a narrativa dessa identidade móvel no romance pelo
processo dialético que os atos de lembrar e de esquecer encerram. Para tanto, é
necessário lembrar que a unidade lingüística serviu na ocasião do surgimento do
pensamento nacionalista para empregar-se como unificadora dos Estados-nação
que emergiam. Na obra estudada, não se pode falar em Estado-nação, tanto
porque o surgimento do Estado de Israel se deu logo após a guerra e porque
Jakob não apresenta vontade de retornar à Polônia ou desenvolver sua tradição
judaica. A teorização acerca da questão da língua passará pelo viés desta como
construtora de uma identidade plural. Ao mesmo tempo, essa unificação não se
encerra em uma nacionalidade porque Jakob adquire culturas que são diferentes,
mas que se complementam. Além de perceber a colaboração da diversidade de
línguas na obra, será preciso fazer um estudo para perceber de que maneira a
escrita memorialística em Fugitive Pieces é construída, apresentando questões
culturais que justifiquem sua análise como uma não-memória de Jakob e
conseqüentemente uma identidade móvel. Um aspecto que favorece a construção
da identidade móvel da personagem Jakob Beer se faz através da aquisição de
línguas estrangeiras que, para a personagem, serve como um artefato de fuga da
dolorida origem polonesa. Segundo Jakob, aprender a língua inglesa era aprender
um alfabeto sem memória e isso o facilitava recordar: “English could protect me; an
alphabet without memory” ( Michaels, 1998: 101). As memórias de Jakob que se
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vinculavam à aquisição do inglês eram as mesmas que lhe permitiram ultrapassar
as barreiras do luto. Ele passa a ser capaz de conviver com seu passado porque a
língua na qual ele se lembra não o compromete emocionalmente. Em um outro
momento do texto, quando ele tem contato com um comerciante, no Canadá, que
falava Ídiche, ele se sente ressentido, para ele essa língua era feita de consoantes
muito ásperas.
Esse cenário de pluralidade é explicado por Hall não do ponto de vista
da construção do pensamento nacionalista, mas do processo posterior a esse
pensamento, as descolonizações. De acordo com Stuart Hall (2003), em seu
estudo sobre a identidade cultural na pós-modernidade, o homem contemporâneo
não deve ser visto mais como nos séculos XVIII e XIX porque o cenário histórico
do século XX não permite pensar em um homem racional, soberano e científico
dividido em mente e matéria. As conseqüências das guerras mundiais e das
descolonizações influenciaram na mudança desse paradigma. Hall (1994) explica,
tendo como base essas descolonizações, que a identidade cultural de um povo
colonizado não é algo definido pelos seus colonizadores, mas sofre modificações,
da mesma forma em que exerce modificações. Ainda de acordo com o teórico, o
homem contemporâneo não segue a linha de pensamento que o explicava a partir
do verbo “ser”, porém o explica agora a partir do verbo “vir a ser”. Essa mudança
de pensamento ocorre porque dentro da constituição da identidade cultural pós-
moderna há rupturas e descontinuidades que fazem com que elas sejam pensadas
como algo que tem histórias e efeitos reais; como identidades que são construídas
pela memória, fatos, narrativas e fantasias; e que se torna um dos vários
posicionamentos possíveis servindo à instabilidade da constituição da identidade.
26
Para o autor, as identidades culturais devem ser pensadas nesse eixo de tensão
que existe entre ser e tornar-se. É justamente esse eixo de tensão, ou seja, a
instabilidade identitária, que chama a atenção na obra. Jakob serve para
exemplificar esse novo conceito de identidade do homem pós-moderno que Hall
preconiza.
A justificativa de se tomar esse conceito que explica o ato de “tornar-se”
dentro do que Hall estuda acerca da identidade cultural se faz porque, apesar de
estarmos analisando um judeu-polonês que não participa do processo chamado
descolonização, é possível pensar esse homem como fragmentado e com uma
profunda influência cultural exercida pelos espaços geográficos e humanos que ele
ocupa durante sua existência. O estudo sobre a identidade cultural dos povos
colonizados abriu a possibilidade de ampliarmos o olhar para as pessoas que por
um motivo diferente sofreram a influência de outras culturas que não se
assemelham à sua cultura original, mas cujo processo de aquisição pode ser
comparado ao da imposição cultural sofrida pelos povos colonizados. Para
entender esse argumento, é importante ter em mente a condição da personagem
Jakob: um judeu-polonês resgatado por um grego logo após uma bomba matar sua
família na Polônia. Dessa forma, Jakob recebe a influência da cultura grega. Mais
tarde ele se muda para o Canadá com seu padrinho e vai ser influenciado pela
cultura canadense. A personagem também carrega em si a cultura judaica. Ou
seja, Jakob não fez parte do processo descolonizador, mas sua situação de
sobrevivente da Segunda Guerra Mundial e o fato de ter sido criado fora de seu
país de origem, além de ter recebido influência de outras culturas, permite
estabelecer uma aproximação com as teorias que explicam as transformações a
27
que foram submetidos os povos colonizados, mesmo que o termo
desterritorializado explique melhor sua condição.
Essa problematização da interferência cultural sofrida pela personagem
Jakobe sua condição de influenciado pela cultura do outro levantam mais
questionamentos: a sensação de ser estrangeiro em si mesmo. Julia Kristeva
(1994) aborda esse assunto para falar que o conceito “estrangeiro” sofreu
mudanças na contemporaneidade. Kristeva explica que o antigo conceito foi
substituído por um outro que se aproxima mais do cenário histórico atual. Se antes
estrangeiro era a pessoa diferente e que de certa forma era um inimigo das
sociedades primitivas, hoje o estrangeiro está dentro de nós.
Para melhor clarificar os conceitos abordados neste trabalho, proponho
no último capítulo, Phosphorus, um estudo para demonstrar de que maneira a
história de Jakob pode contribuir para se afirmar que a História tradicional não é
mais contada de maneira linear. O conceito de narrativa performática de Homi
Bhabha (2003), desenvolvido em sua teorização, no qual a inserção de vozes
menores no processo de construção identitária de um povo é que faz com que o
discurso tradicional seja alterado, será tomado como base teórica. Esse novo
modo de continuar, ou ainda, de recontar a história por outros ângulos, instaura a
dúvida e se faz como uma sombra na tradição. Ao instaurar tal dúvida, as
pequenas vozes do Outro alimentam um processo concomitante ao da
performance denominado por suplementaridade, que também se faz presente e
desconstrói a noção de totalidade inaugurando a presença da diferença.
Entendemos suplementaridade como acréscimo e não substituição. Para
esclarecer tal conceito, é preciso retomar o que Jacques Derrida discute sobre isso
28
e que, ao anteceder Bhabha, dele se aproxima. Para Derrida, conforme Santiago
(1976), “suplemento” é algo que acrescenta ao todo em sua origem sem preencher
o vazio que a inaugura. Na verdade, o suplemento deve ser entendido como um
acréscimo que modifica sem substituir qualquer informação mas que, ao fazê-lo,
cria uma outra origem imaginada. De acordo com esse pensamento, a obra
Fugitive Pieces serve ao propósito do suplemento, pois permite uma outra leitura
acerca do que foi feito de um sobrevivente judeu da guerra e das conseqüências
trágicas para a família de outro judeu. Dessa maneira, a leitura da obra conduz o
leitor para o lado de fora do discurso tradicional. Ao mencionar o eixo performático
da narrativa na pós-modernidade, tanto quanto o eixo pedagógico, o que proponho
e entendo por relevante é o fato de que a personagem desterritorializada de Jakob
pode efetuar sua reterritorialização. De acordo com Bhabha, o eixo pedagógico é o
histórico, o tradicional. O eixo performático é a transformação diária, a assimilação
de outros valores e culturas. O ponto de cisão entre um e outro é o que constitui a
identidade nacional moderna. Ao fazer esse corte, o novo instaura a diferença que
é essencial na construção da identidade. De acordo com Renan (apud Bhabha),
essa cisão se caracteriza pelo conceito de plebiscito diário, que permite a escolha
e a construção de uma identidade a cada momento. Ainda que Bhabha esteja
teorizando a nação moderna, seu conceito pode ser aplicado para explicar como
Jakob colabora nesse plebiscito diário. Aos moldes de um pensamento que insere
e aceita o outro em sua diferença e que também o toma como parte da construção
do discurso tradicional, Jakob desconstrói sua tradição ao mesmo tempo em que
reflete sobre sua condição judaica quando apresenta as atrocidades cometidas
pelos alemães.
29
O trabalho, portanto, em sua totalidade, visa discutir as teorias modernas
sobre identidade, memória, luto e cultura e exemplificá-las com o romance de Anne
Michaels, Fugitive Pieces.
30
2: TERRA NULLIUS
He whispers again, dragging the listening heart of the young nurse beside him to wherever his mind is, into that well of memory he kept plunging into during those months before he died. Michael Ondaatje, In The English Patient
A história da vida de Jakob, como já foi dito, é contada pelo viés da
memória. Por esse motivo, neste capítulo, será necessário rever algumas teorias
que auxiliam o estudo da memória para que a análise da obra Fugitive Pieces
possa ser feita. Entendo que a relação entre lembrar e esquecer seja um processo
inerente à constituição da memória e por isso se faz tão relevante em seu estudo.
É uma articulação involuntária para que os fatos guardados pela lembrança se
transformem em memória. De acordo com alguns teóricos que estudam esse
processo, entre os quais destacamos: Henri Bergson (1990), Walter Benjamin
(1993), Michael Pollak (1989) e Benedict Anderson (1991), existe uma
aproximação entre a necessidade de lembrar e a vontade de esquecer para que se
constitua uma época, um tempo ou um acontecimento, tendo como elemento
propulsor a lembrança. Isso ocorre porque muitas vezes aquilo que queremos
lembrar faz parte de um período conflituoso ou dolorido que a nossa lembrança
procura esquecer; outras vezes faz parte de um momento de comemoração ou até
mesmo de superação que a nossa lembrança necessita reaver.
Lembrar nem sempre significa imaginar. A lembrança passa a estar mais
vinculada à vontade de se fazê-la; já a imaginação estaria mais relacionada a um
31
ato involuntário. A lembrança faz parte do campo do imaginário e precisa dele:
Imaginar não é lembrar-se. “Certamente uma lembrança, à medida que se atualiza,
tende a viver numa imagem; mas a recíproca não é verdadeira.” (Bergson, 1990:
111). Dessa forma a lembrança é o início da construção da memória e ela parte,
sem dúvida, dessa imagem quando voluntariamente existe o desejo da busca.
Para que se entenda o caminho a ser percorrido em relação às memórias de Jakob
Beer, faremos um estudo mais aprofundado do que Henri Bergson entende por
memória.
O teórico da filosofia direciona seus estudos para a questão da memória
do ponto de vista de sua ligação com o espírito. Em seu trabalho acerca da
constituição da memória, Bergson propõe a divisão da mesma em mente e
matéria. O teórico tenta relacionar esses dois pólos sob o conceito de imagem e
percepção (ordem material) e lembrança e memória (ordem espiritual). Para ele, a
memória serve para fazer a ligação entre o que se aplica ao campo do material e
ao campo do espiritual. De acordo com Bergson, o corpo que abriga essa
dualidade – mente e matéria – ocupa um lugar especial e é através dele que se
percebe o mundo. A percepção, o conceito que mais interessa à nossa análise, é
algo puramente material, uma ação da matéria que, por não existir isoladamente,
remete à lembrança, por sua vez uma ação do espírito oscilando entre lembrar e
perceber. Assim sendo, a imaginação, o ato involuntário, se auxilia da lembrança,
a ação voluntária, para trazer de volta os acontecimentos que ficaram registrados
no passado. Para o autor,
Em se tratando da percepção, ver-se-ão nela não mais que as sensações aglomeradas que a colorem; ignorar-se-ão as imagens rememoradas que formam seu núcleo obscuro. Em se tratando por
32
sua vez da imagem rememorada, ela será tomada como algo pronto, concebida no estado de fraca percepção, e fechar-se-ão os olhos à lembrança pura que essa imagem desenvolveu progressivamente. (Bergson, 1990: 110)
Bergson também argumenta que a percepção é na verdade uma construção da
imagem pura. Entretanto, essa imagem pura também utiliza a lembrança-imagem
para se constituir. Não há como se dizer onde começa uma e onde termina a outra.
Para trabalhar as lembranças e percebê-las, a memória se faz como um artefato
essencial, pois articula essa lembrança pura e sua percepção. Ela articula a
rememoração e a lembrança. Além da capacidade de relacionar fatos passados
com o instante presente e com o momento que ainda há de chegar, a memória
trabalha no campo da imaginação e da criatividade, permitindo, portanto, a
invenção do novo. Dentro de sua teoria sobre memória, para concretizar o
momento exato em que o registro do passado se torna visível, Bergson
desenvolveu uma representação do instante presente. Para o autor, esse instante
presente não é algo matematicamente fixado no tempo. Na verdade, o momento
presente pertence, ao mesmo tempo, ao passado e ao futuro. De acordo com a
explicação de Bergson, isso ocorre porque quando se fala do momento presente
ele já está se distanciando do sujeito, assim como também caminha em direção ao
futuro. Em suas palavras, “é preciso portanto que o estado psicológico que chamo
“meu presente” seja ao mesmo tempo uma percepção do passado imediato e uma
determinação do futuro imediato”. (Bergson, 1990: 113) É relevante observar os
instantes nos quais as lembranças acumuladas e assentadas em um passado
imóvel tocam o plano do presente para que se entenda como essa articulação é
33
feita. Bergson denominou essa representação de cone da memória. O cone da
memória de Bérgson, representado pela Fig. 1,
A B
P
S
Fig. 1 (Bergson, 1990: 125)
explica que a base AB contém as lembranças que foram se acumulando ao longo
do tempo e hoje fazem parte do passado, enquanto P significa o plano presente, o
instante do presente. Quando S, o vértice do cone, avança sem cessar tocando o
plano do presente, o plano representado pela letra P, a percepção que o presente
tem do que se foi, traz de volta a lembrança acumulada que se assentara na base
AB ao mesmo tempo em que a projeta para o futuro.
A explicação de Bergson para a constituição da memória, como um
processo que articula passado, presente e futuro, serve como ponto de partida
para que o presente estudo seja executado. Sua teorização acerca do
desenvolvimento da memória através de seu processamento revela a articulação
textual que Anne Michaels optou em usar para dar ao leitor uma sensação
semelhante à da articulação da própria memória. Todos os fatos apresentados no
texto de Anne Michaels em questão partem do momento presente e dele fazem
seu apelo ao passado ao mesmo tempo que se projeta para o futuro, pois é lá que
as conseqüências dessas ações habitam. Na teoria bergsoniana, esse apelo se faz
pela percepção que a(s) personagem(ns) de Fugitive Pieces te(ê)m dos
acontecimentos de sua(s) vida(s).
34
Além da relação entre imagem/percepção e lembrança/memória é
preciso estudar a dialética que essa relação entre lembrar e esquecer opera
quando as lembranças são acionadas pela percepção.
Para que estudemos melhor essa dialética, precisamos retomar à
condição de vida do homem em fins do século XIX e início do século XX. Esse
retorno se faz necessário porque houve uma modificação nas estratégias de
conservação da memória devido aos avanços tecnológicos. Houve uma invasão
tecnológica nesse momento, se levarmos em consideração o crescimento
industrial nos grandes centros urbanos do período. O desenvolvimento da
imprensa marcou a história da humanidade da mesma forma que contribuiu para
que a oralidade fosse se silenciando e dando lugar para outras formas de
narrativa. Se antes as narrativas eram marcadas pelo seu teor oral, transmitidas
de geração para geração, confiadas apenas na memória, naquele final do século
XIX ela foi substituída pela sua impressão no papel. Walter Benjamin (1993)
preocupado com as mudanças industriais que afetaram tanto a arte quanto a
técnica, estuda as transformações ocorridas no que diz respeito ao silenciar da
oralidade e à ascensão do processo escrito que entrava na era da
industrialização. Ele faz um retrocesso para explicar o que estava acontecendo.
Para Benjamin, o narrador que antecedeu esse instante industrial se organizava a
partir das imagens do marinheiro e do artesão. Aquele que era como o marinheiro,
que trazia consigo os conhecimentos do estrangeiro porque passara a vida inteira
viajando e trocando suas experiências com a do Outro e contribuindo para que a
narrativa da história fosse tecida, é visto como um tipo de narrador. Diferente dele,
porém complementar, há um outro, o camponês sedentário que envelhecia em
35
seu local de origem e carregava consigo a sabedoria que só a idade podia
proporcionar. Ele era o guardião da tradição, aquela pessoa que detinha o
conhecimento e que, quanto mais velho se tornava, mais sábio ficava. Na união
dessas duas representações encontrava-se a figura do artesão que, na verdade,
tecia a narrativa costurando as duas vozes. Isso provocou uma reflexão na
importância de se intercambiar essas vozes. A experiência é o que resulta da
narrativa delas. Na nomenclatura de Bhabha, o camponês se articularia no eixo
pedagógico e o marinheiro no performático. O que Benjamin diz é que, em razão
das transformações ocorridas no final do século XIX e início do século XX, sejam
elas relacionadas diretamente com a sociedade ou com a técnica, o homem se viu
entrando em uma era que não lhe permitia mais ser marinheiro ou camponês. Já
que, naquele período, a memória estava guardada na lembrança e na sapiência
dos velhos, ela se viu jogada à mercê de um momento tecnológico que não abria
suas portas para que ela pudesse se fazer presente. A modernidade matara a
experiência. Benjamin Ele levanta algumas questões quando fala da experiência
transmitida oralmente:
Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?O homem se preocupava, apenas, com o futuro. (Benjamin, 1993: 114)
O mundo se encaminhava para abrir as portas para o progresso. Lembrar deixava
de ser um fator importante na construção de uma sociedade tecnicizada porque
não se precisava confiar apenas na lembrança. Benjamin observou que, com o
36
desenvolvimento da técnica e com o advento da Primeira Guerra Mundial, o
cenário histórico havia sido transformado:
Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca (Benjamin, 1993: 115).
Não havia mais espaço para a oralidade, porque as experiências intercambiáveis,
que antes favoreciam a narrativa oral, tinham sido substituídas pelo silêncio dos
combatentes que retornavam da guerra.
Dessa forma e por esses motivos é que Benjamin se preocupou em
estudar de que maneira o silêncio do pós Primeira Guerra podia contribuir para
uma desistoricização dos fatos sócias daquele momento. Ele argumentava que
essa nova pobreza abria as portas para um cenário que desvinculava o patrimônio
cultural de todos nós.
Entendendo a memória como um processo que articula a lembrança e o
esquecimento de experiências; se essas se calam ou se empobrecem, como
observou o teórico, a dialética memória-esquecimento não ocorre porque há a
escolha pelo silêncio. Por mais que a memória aguce a percepção para que ela
por sua vez chame de volta as vozes do passado, por mais que isso faça parte da
constituição da memória, o que Benjamin explica é que, nesse processo de
silenciar as experiências, o homem fez sua opção. O silêncio da experiência
resultou num esvaziamento da memória e conseqüente desistoricização dos fatos
sociais, assim como deixou em suspenso o intercambiar de experiências desse
37
período. Como um produto cruel de uma sociedade que entrava na era da técnica,
o silêncio passou a prevalecer e a tomar o lugar das conversas que teciam a
narrativa das experiências. É importante dizer que o texto benjaminiano ocupa
uma localização temporal que justifica sua teorização. A primeira edição desse
texto data da primeira metade do século XX e Walter Benjamin fala a partir desse
locus.
Segundo sua teorização acerca do silêncio, a memória não deixa de
existir, não é isso que Benjamin diz. Os dados armazenados na memória apenas
não são transferidos porque os combatentes não optam por falar sobre suas
experiências; ao contrário, eles optam por silenciar suas vozes devido à
desmoralização que essas experiências de guerras e de trincheiras são capazes
de proporcionar. Além disso, Benjamin admite a memória como um acontecimento
involuntário. Ela é, por sua vez, uma tentativa de reterritorialização, de se localizar
novamente. Porém, os combatentes que voltaram de seus campos de batalha
silenciosos e pobres em experiência que pudessem ser transmitidas se
perceberam abandonados em um novo cenário e não conseguiram se inserir
nesse novo contexto de reterritorialização. Não se inserindo, também não
puderam fazer parte daquela sociedade que havia permanecido em casa.
Essa opção pelo silêncio também é abordada por um outro teórico,
Michael Pollak (1989) e será retomada adiante. Dessa maneira e por causa
desses combatentes, mais uma vez, confirma-se a causa do silêncio. Embora a
memória inclua o silêncio como um fator que contribui para a constituição da
identidade, este silêncio se aproxima mais dos vazios que a memória não
pretende reaver. Assim ela oscila entre a necessidade de lembrar e a vontade de
38
esquecer. Retomando Bergson (1990), entende-se que, embora a percepção de
uma dor passada não possa ser sentida como a própria dor e sim como a
imaginação dela, isso não significa que a dor não existiu em sua origem. Em
outras palavras, a opção pelo silêncio não minimiza a dor ou a transforma em
mentira, apenas não a revive. No capítulo seguinte deste trabalho retomarei essa
questão da dor e do silêncio para falar de como o luto e conseqüentemente a
memória dessas pessoas que sofreram com as conseqüências da Segunda
Guerra Mundial são abordados no texto Fugitive Pieces.
Como complementação desse estudo relacional entre a lembrança e o
esquecimento, vejamos Anderson (1991), que vai apresentar a dialética como um
processo de articulação entre o novo e o velho. Nessa aproximação, ele percebe
os laços estreitos que vinculam essas duas situações, a experiência e a novidade.
O autor usa como exemplo os países que foram colonizados e compartilharam
com seus colonizadores uma língua, uma religião e uma tradição. Nesses casos, a
metrópole dispunha de aparatos ideológicos e burocráticos que permitiram a ela
manter sua dominação por um bom tempo. Mas o paralelismo dessas diferenças
culturais gerou conseqüências políticas muito decisivas, fazendo com que as
absorções culturais se operassem mutuamente.
Além dessa questão da dependência, o autor atenta para o fato de que
justamente nesse momento de dominação é que surge o sentimento de
pertencimento daquele povo colonizado que se caracterizou mais tarde pelo termo
nacionalismo. Daí derivaram os conceitos de Nação, Estado e Pátria, entre os
quais Pátria terá mais relevância na nossa análise. Entendendo Pátria como o
lugar de origem, especificamente a família, o núcleo mais íntimo e do qual se tem
39
maior referência, é que se torna possível pensar nosso protagonista Jakob Beer,
neste estudo aplicado à análise da obra em questão, como um homem sem Pátria
e ao mesmo tempo de outras pátrias.
Este sentimento de pertencimento dos povos dos países pós-
colonizados, como entende Anderson, foi o fator crucial para que a construção de
um pensamento, ao mesmo tempo desvinculado e dependente da metrópole,
aparecesse. A primeira tentativa de se pensar o nacionalismo vinculado à
construção de uma identidade foi a de se fazer um estudo genealógico para se
compreender o surgimento desse sentimento. Embora a análise de Fugitive
Pieces não passe pelo viés nacionalista, essa argumentação de Anderson se faz
necessária para entender como a construção da memória opera quando se pode
imaginar essa memória porque não há como reavê-la em sua totalidade. Fazendo
assim, os estudiosos que se preocupavam em constituir um tempo, buscariam a
memória de um lugar para construir sua origem. Em outras palavras, eles
buscariam algo que pudesse ser retomado como pertencente àquele povo e que
os vinculasse a seu passado histórico, ainda que de maneira imaginada e
construída. Esse processo imaginativo retoma o que Bergson entende por
memória: uma capacidade de relacionar passado, presente e futuro, além de
trabalhar no campo da imaginação. Porém, fazer um simples retorno nostálgico
aos ancestrais desses novos povos não era o bastante, ou melhor, não era
possível, porque eles não estavam mais vivos para narrar suas memórias ou suas
experiências. Por mais que os estudiosos pudessem construir essa genealogia,
soaria muito falso. Nesse impasse, Anderson chama a atenção aqui para a
solução encontrada: os nacionalistas narrariam pelos seus ancestrais e nesse
40
narrar eles também inseririam suas próprias vozes, criando uma origem. Aqui
também, nessa inserção das vozes dos narradores, haveria uma criação, porém
ela se tornaria mais “verdadeira” porque receberia de seus narradores suas
contribuições pessoais. Percebe-se nesse instante a ligação entre os textos de
Benjamin e Anderson, pois ambos compreenderam que, para se obter uma
narrativa, era necessário haver uma troca de experiências.
Em seu livro Imagined Comunities, Anderson diz:
After experiencing the physiological and emotional changes produced by puberty, it is impossible to ‘remember’ the consciousness of childhood. How many thousands of days passed between infancy and early adulthood vanish beyond direct recall! How strange it is to need another’s help to learn that this naked baby in the yellowed photograph, sprawled happily on the rug or cot, is you. The photograph, fine child of the age of mechanical reproduction, is only the most peremptory of a huge modern accumulation of documentary evidence (…) which simultaneously records a certain apparent of continuity and emphasizes its loss from memory. (Anderson, 1991: 204)2
e suas palavras evidenciam a necessidade de se recorrer a algo ou a alguém para
se reconstruir um tempo que já se perdeu. Na impossibilidade desse recuo ao
passado, a memória operaria em um menos que poderia ser entendido como um
menos que acrescentaria, pois esse menos permite a invenção da lembrança. Isso
quer dizer que, para preencher os vazios do passado, a memória imagina
situações que compõe o fato, mas que não o tornam mais ou menos real.
2 Depois de experimentar as mudanças psicológicas e emocionais produzidas pela puberdade, é impossível se lembrar da percepção da infância. Quantos milhares de dias se passaram entre a infância e o início da idade adulta banidos para trásalém da lembrança direta! Quão estranho é necessitar da ajuda de alguém para entender que este bebê nu na foto amarelada, espreguiçado sobre o tapete ou o berço é você. A fotografia, a criança da era da reprodução mecânica, é somente a mais decisiva de uma grande acumulação moderna de evidência documental (...) que simultaneamente grava uma certa continuidade aparente e enfatiza sua perda de memória. (m/ tradução)
41
Justamente pela circunstância da memória criar a lembrança é que se pode, mais
uma vez, dizer que ela não é linear. Ela possui falhas que são preenchidas não
para substituir o vazio na origem, mas para forjar essa origem. Nas palavras de
Jacques Derrida, a criação é um suplemento que não substitui, mas que modifica:
“O suplemento é uma adição, um significante disponível que se acrescenta para
substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é
preciso” (Derrida, apud Santiago, 1976:88). Pensando nesses termos, como
suplemento, é que Anderson dá a devida importância ao processo de entender o
pertencimento vinculado diretamente à questão da memória e também da
construção dessa memória.
Todavia, se ao fazer esse retorno tem-se uma narrativa de situações que
ficaram à margem dos acontecimentos, porque não se adequaram à narrativa
tradicional, o resultado dessa volta é uma narrativa performática, de acordo com a
teoria de Bhabha (2003). Bhabha defende que a construção da narrativa da nação
moderna passa pela tensão que habita no aspecto do pedagógico e do
performático. Essa tensão permite que se veja o povo como um objeto pedagógico
e um povo que se constrói na performance dessa narrativa:
O pedagógico funde sua autoridade narrativa na tradição do povo, descrita por Poulantzas como um momento de vir a ser designado por si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade produzida por auto-geração. O performativo intervém na soberania da auto-geração da nação ao lançar uma sombra entre o povo como “imagem” e sua significação como um signo diferenciador do eu, distinto do Outro ou do de Fora (“outside”). ( Bhabha, 2003:209)
42
Além disso, Bhabha acrescenta ainda que o performático introduz um tempo que
se situa no entre-lugar através do vazio que pontua a diferença. A obra analisada
neste trabalho não discute a construção da nação judaica, mas apresenta em
contrapartida um elemento da nação judaica, o garoto judeu-polonês que é
deslocado para fora de sua tradição.
A narrativa performática, como explica Bhabha, foge à
convencionalidade da tradição. Ela instaura a dúvida desconstruindo a noção de
totalidade e acontece quando é possível pinçar na multidão as pessoas cujas
lembranças e performances que negam a tradição vão servir de suplemento à
origem de suas próprias narrativas enquanto cidadãos. As histórias das pessoas
que irão acrescentar dados ao fato contribuirão com suas vozes e suas
experiências privadas.
No texto de Pollak (1989), é evidente o uso que ele faz do percurso do
performático – a diferença dele para os autores anteriores se faz porque ele não
parte do individual. Pollak se preocupa com a abordagem sociológica da
coletividade. Se antes Benjamin e Anderson deram uma ênfase maior à memória
individual ou restrita a um grupo, Pollak alarga seu alcance e discute a questão da
memória num âmbito muito maior. A operação dessa dialética memória-
esquecimento passa a fazer parte do contexto social: “o que é comum a um grupo
e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras sócio-culturais” (Pollak, 1989:03) É interessante
entender que Pollak opera dentro do deslocamento do individual para o coletivo e
assim ele entende que as lembranças podem ocupar o espaço do privado, porém
não permanecem lá. Elas transitam do privado para o público e, ao se tornarem
43
visíveis e apreensíveis, passam a disputar um lugar com aquelas memórias que
sempre existiram somente no espaço público – as memórias coletivas das guerras,
das situações conflituosas, dos campos de concentração, se misturam àquelas que
os livros de histórias tradicionais sempre contiveram. A problematização do ato de
narrar encontra seu reforço no aspecto social, segundo o autor, porque defronta
com as dificuldades de reintegração de seus autores. Segundo ele, para que essa
reintegração seja feita é preciso que haja uma escuta:
Assim como as razões de um tal silêncio são compreendidas no caso de antigos nazistas ou dos milhões de simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no caso das vítimas. Nesse caso, o silêncio tem razões bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. (Pollak, 1989: 06)
As questões de fronteiras, pertencimento e outras afins são exploradas no
texto de Pollak tendo como exemplo os países do leste europeu. O autor utiliza,
dentre outros, a Alemanha, a Áustria e a Alsácia para falar do recrutamento militar
durante a Segunda Guerra Mundial e exemplificar a ditadura militar. Nesse último
país, o recrutamento foi forçado e os sobreviventes, ao retornarem para seu país
de origem, foram colocados de lado como se tivessem traído seu próprio povo.
Esses autores, que estudaram a construção da memória dentre outros
assuntos, servem como base teórica para que o estudo da personagem de Fugitive
Pieces possa ser efetuada levando em consideração os aspectos memorialísticos
de sua narrativa. Esta vai trazer ao leitor a história de Jakob Beer e nesse
desenrolar de acontecimentos o leitor será chamado a refletir sobre a
sobrevivência dele e as conseqüências da guerra sobre o povo judeu. Nessa
44
reflexão, Anne Michaels, a autora do livro, faz com que o leitor entre numa parte da
história da humanidade que não está inserida nos livros didáticos.
Na personagem principal do livro Fugitive Pieces, Jakob Beer, o estudo
de sua narrativa memorialística está diretamente vinculada ao papel que o silêncio
exerce na obra. Percebe-se o silêncio, face ao resultado da experiência vivida por
Jakob, por dois vieses. O primeiro pode ser considerado a falta de maturidade dele
para compreender sua situação de sobrevivente que convive naquele instante com
a situação da orfandade. O segundo se dá pelo distanciamento temporal que o ato
de escrever suas memórias tem para o fato acontecido. Nesse caso a personagem
pode optar pelo silêncio.
Jakob é um judeu-polonês que, aos sete anos de idade, escondido atrás
do papel de forro do armário da copa de sua casa, vê seus pais serem
assassinados durante a Segunda Guerra Mundial e depois percebe que sua irmã
mais velha havia desaparecido, como ele mesmo diz na seguinte passagem: “I was
still small enough to vanish behind the wallpaper in the cupboard, cramming my
head sideways between choking plaster and beams, eyelashes scraping”.3 (FP:
06). Embora a personagem guarde a memória do acontecido, é o adulto que narra
a história. Justamente por ser o adulto a narrar é que o conceito de percepção
bergsoniano se faz tão importante nesse estudo. Ele é que vai impulsionar a
narrativa, pois permite ao leitor entender o porquê de determinadas lembranças e o
porquê de determinados silêncios.
3 “Eu ainda era pequeno a ponto de sumir por trás do papel de forro do armário, apertando a cabeça de lado, sufocando entre o gesso e as traves, os cílios roçando.” Obs.: Essa e as demais traduções do texto literário usado como exemplificação da teoria estudada serão retirados da tradução do livro Fugitive Pieces, Peças em Fuga. Cf. Referências Bibliográficas.
45
De que maneira percebe-se a dialética memória-esquecimento no texto?
O adulto Jakob vai escrever a memória que ele guardou do fato e assim descrever
as circunstâncias da morte de seus pais com detalhes que o olhar da criança não
daria conta de minuciar. Ele, na verdade, está estabelecendo um diálogo entre o
velho e o novo. Por exemplo, ele descreve a cena de sua mãe costurando o botão
de sua camisa no instante em que os destroços de uma bomba atingem a porta de
sua casa, em razão da qual o pires que guardava o botão cai, fazendo com que o
barulho da queda parecesse, para Jakob adulto, o som de pequenos dentes
brancos repicando no chão:
The burst door. Wood ripped from hinges, cracking like ice under the shouts. Noises never heard before, torn from my father’s mouth. Then silence. My mother had been sewing a button on my shirt. She kept her buttons in a chipped saucer. I heard the rim of the saucer in circles on the floor. I heard the spray of buttons, little white teeth. (FP: 07)4
Percebe-se no tecido narrativo a urdidura que Jakob dá quando pinça de seu
passado algumas situações que constroem uma história maior: a narrativa de um
sobrevivente do holocausto.
Quando, na introdução deste trabalho, mencionei a relevância da obra
Fugitive Pieces, entendi que seu alcance era mais global do que local. A autora
parte do local, sem dúvida, do garoto judeu-polonês que sobrevive à explosão, e
para estudo de tal circunstância as teorias de Benjamin e Anderson se aplicam,
uma vez que elas se preocupam mais com o individual ou com o que se refere a
4 “A porta arrombada. Lascas de madeira saltando das dobradiças, estalando como gelo sob os gritos. Ruídos nunca ouvidos antes, arrancados da boca de meu pai. Depois, silêncio. Minha mãe estava pregando um botão em minha blusa. Ela guardava os botões num pires lascado. Ouvi a borda do pires em círculos no chão. Ouvi a chuva de botões, como dentinhos brancos.”
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um pequeno grupo; entretanto, quando entendemos a obra como parte do global,
como uma abordagem acerca do que teria sido feito dos judeus na Segunda
Guerra Mundial, a teorização de Pollak é mais pertinente, pois ele parte do
particular para o coletivo.
A escrita das memórias de Jakob tem início na ocasião de seu retorno à
Grécia, país onde crescera. Na noite em que Jakob começa a escrever sua
história, a percepção das luzes da ilha grega chamam sua atenção. As luzes
percebidas pela janela de sua casa no alto da ilha trazem de volta a lembrança de
sua vida. Na passagem seguinte fica evidente essa digressão:
I watched the Easter procession and placed this parallel image, like other ghostly double exposures, carefully into orbit. On an inner shelf too high to reach. Even now, half a century later, writing this on a different Greek island, I look down to the remote lights of town and feel the heat of a lamp spreading up my sleeve. ( FP:18)5
Ele não começa a narrar suas memórias a partir desse instante, ele recua. As
luzes fazem apenas o papel da Madeleine proustiana, como uma invocação do
passado. Elas são a percepção necessária para que, como no cone de Bergson,
onde S, o vértice do cone, avança sem cessar tocando o plano do presente, o
plano representado pela letra P, a percepção que o presente tem do que se foi
traga de volta a lembrança acumulada que se assentara na base AB ao mesmo
tempo em que a projeta para o futuro (veja página 33). Quando Jakob se lembra da
infância dolorida na ilha, ao lado do grego Athos, ele também se lembra do porquê
5 “Olhei a procissão de Páscoa e pus essa imagem paralela, como outras duplas exposições fantasmagóricas, cuidadosamente em órbita. Numa prateleira interior alta demais para se alcançar. Ainda agora, meio século depois, escrevendo isto em uma outra ilha grega, olho as luzes remotas da cidade lá embaixo e ainda sinto o calor da lanterna subindo-me pela manga.”
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e da maneira como ele chegou lá. Essa lembrança difícil é metaforizada pela frase
que ele próprio utiliza – On an inner shelf too high to reach (Numa prateleira interior
alta demais para se alcançar.). Parece que Jakob está dizendo que suas memórias
estão em um passado tão doloroso, tão distante e tão perto que se assemelha a
uma prateleira alta cujo alcance é difícil. Não é impossível, mas sua dificuldade é
tanta que para um garoto alcançar se torna quase impossível, não fosse a ajuda de
Athos.
Após a destruição de sua casa e de sua família, o garoto só sobrevive
porque é encontrado pelo geólogo grego, Athos, que, no decorrer da guerra, fazia
escavações em Biskupin – a Pompéia Polonesa – a cerca de 40 km a sudoeste de
Bydgoszcz, na Polônia. Ao ser salvo por Athos, é como se fosse dada a ele, Jakob,
a segunda chance de contar sua história. Nas palavras de Jakob adulto, vemos
que ele consegue perceber essa possibilidade: “No one is born just once. If you’re
lucky, you’ll emerge again in someone’s arms; or unlucky, wake when the long tale
of terror brushes the inside of your skull”6. (FP: 05) Nessas linhas percebe-se a
maturidade do adulto em entender que, ao ser encontrado pelo grego, ele na
verdade renascera e que seus pais não haviam tido a mesma sorte; suas palavras
contemplam as duas situações opostas. De acordo com o que o narrador
apresenta ao leitor, é possível perceber que não fora fácil negociar as lembranças
porque, devido à distância temporal de seus acontecimentos, o adulto precisou
imaginar muita coisa para preencher o vazio original de sua história. A história de
Jakob Beer é contada por ele mesmo em seu diário. Tudo aquilo que nós leitores
acreditamos ter sido vivenciado por ele está registrado em suas memórias. O olhar
6 “Ninguém nasce uma vez só. Se tiver sorte, você torna a emergir nos braços de alguém; se não tiver, você desperta quando a longa cauda do terror roça o seu crânio por dentro.”
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amadurecido do adulto permite ao leitor fazer essas inferências globais. Tudo
aquilo que ele viveu desde seu resgate até sua morte, tem um peso cultural muito
forte porque explica sua condição de um desterritorializado.
Quando Jakob resolveu escrever sob as luzes da ilha grega, ele se
proporcionou uma segunda história. O distanciamento temporal dos fatos não
minimizou os acontecimentos, pelo contrário, apenas permitiu a Jakob se fazer
mais forte para suportá-los. Isso fica visível quando o leitor percebe que a narração
de seus pesadelos vai se esvaindo com a solidificação de seu caráter, graças ao
intenso carinho de Athos: “The best teacher lodges an intent not in the mind but in
the heart. I know I must honour Athos’s lessons, especially one: to make love
necessary”7. (FP: 121)
A partir do momento em que o narrador apresenta sua história, a figura
de Athos domina grande parte do texto, porque ele reconstruiu Jakob no instante
em que o acolheu. De acordo com as palavras de Pollak (1989), Athos funciona
como a escuta de Jakob. O grego confiou seu conhecimento a Jakob na mesma
proporção em que foi capaz de participar da construção de seu caráter. Escutar o
que Jakob tem a dizer não significa sentar e ouvir sobre seu passado, mesmo
porque o passado anterior à sua ligação com Athos é muito curto, sete anos de
vida apenas, mas significa ouvir seus desabafos em relação à sua vida e ao
mesmo tempo falar sobre suas experiências, ou seja, intercambiar as vozes que
constroem a memória de que tanto Jakob se auxilia para escrever sua história.
Como explica Pollak, a audiência na vida dos sobreviventes funciona como um
7 “O melhor professor abriga uma intenção não na mente, mas no coração. Sei que devo honrar as lições de Athos, principalmente uma: tornar o amor necessário.”
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recurso na construção de uma época que se perdera em virtude dos
acontecimentos bruscos da guerra.
Jakob adulto dá-se conta de que há um embate muito forte entre as duas
histórias de sua vida: a que ele viveu até a morte de seus pais e aquela outra que
foi dada a ele no momento do encontro com Athos. Uma antes e outra depois da
guerra. Embora fosse ele muito pequeno quando resgatado, sua memória registrou
o fato. Entretanto, fora preciso um tempo de amadurecimento e silêncio para que
sua história pudesse ser narrada. Nesse distanciamento temporal, o adulto tem a
sensação de não ter testemunhado esses eventos:
I did not witness the most important events of my life. My deepest story must be told by a blind man, a prisoner of sound. From behind the wall, from underground. From the corner of a small house on a small island that juts like a bone from the skin of sea.8 (FP: 17)
O homem cego (blind man) a quem Jakob se refere na citação anterior é ele
próprio preso nas lembranças de seu passado, que o consumiram durante quase
toda sua vida. É uma negação do Jakob menino que vivenciou os piores fatos de
sua vida. Nesse ato de negação, Jakob está na verdade pedindo à sua memória
que não se lembre das situações difíceis de sua infância. Ele quer que a dor seja
menor. Talvez porque ele também esteja se referindo ao fato de não ter descoberto
ou “enxergado”, palavra que ele usa na citação acima, o que quer que tenha sido
feito de sua irmã Bella. Isso dá a sensação aparente de conforto, pois na
8 “Eu não testemunhei os acontecimentos mais importantes de minha vida. Minha história mais profunda tem de ser contada por um cego, um prisioneiro do som. De trás da parede, do subsolo. Do canto de uma casinha numa ilhota que se projeta como um osso na pele do mar.”
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ignorância do fato a dor parece ser menor. Ao mesmo tempo ele está mostrando
para o leitor que a história dele não deverá ser narrada apenas por ele e sim por
tantos outros judeus que deixaram seus diários escondidos nas paredes de suas
casas ou debaixo de seus assoalhos. A história de Jakob também está escrita nas
histórias de seus irmãos.
Levando em consideração essa afirmação de Jakob da sensação que
tem de não ter testemunhado os eventos de sua vida, a dialética memória-
esquecimento, que opera na construção de texto, é percebida da seguinte forma:
há um narrador que viveu os acontecimentos – a criança – e um que escreve – o
adulto. O que viveu opera no campo do esquecimento, do silêncio e do
empobrecimento. O que escreve se preocupa com a lembrança, com a experiência
e com o intercambiamento dessas vozes. Se para o primeiro lembrar é sofrer, para
o segundo é desatar os nós do passado e resgatar sua história. Essa visão dos
dois Jakob nos leva a fazer uma reflexão sobre a focalização na narrativa. De
acordo com Shlomith Rinnon-Kenan (1996), a questão da focalização deve ser
entendida como um recurso usado para identificar sobre quem ou o quê se fala. No
texto de Anne Michaels, percebemos que o narrador final, a personagem Ben,
focaliza sua leitura em relação às memórias de Jakob em um tempo do passado
que pertence ao menino. Porém, como elas são insuficientes para relatar sua vida,
ele ora mantém a focalização no menino, ora a transfere para o adulto. O narrador
dessas memórias também influencia na perspectiva do leitor em relação ao que
está sendo narrado. Uma vez morto, Jakob não interfere naquilo que Ben, o
narrador, lê em suas anotações. Ben, em sua narrativa, revela ao leitor, na
segunda metade do livro, que as memórias de Jakob estão sendo contadas por
51
ele, como se estivesse alertando o leitor para não confundir as biografias. Depois
de saber disso, o leitor consegue perceber a leitura que Ben faz. Ela acompanha a
escrita de Jakob. É Ben também quem focaliza Jakob menino e Jakob adulto,
dando uma falsa sensação de linearidade temporal para o leitor. Entretanto, os
próprios cortes temporais operados por Jakob durante sua escrita descrevem uma
memória fragmentada que oscila constantemente entre suas lembranças e seu
momento presente. Essa fragmentação revela a instabilidade da memória porque a
memória não consegue estabelecer um rumo a ser seguido. Freqüentemente ela é
interrompida por um evento novo, novo no sentido de ser lembrado pela primeira
vez, não de ter acontecido como novidade. Essa interrupção não é desfeita a partir
do ponto em que a lembrança trouxe de volta um determinado evento e sim das
lembranças novas que acompanham esse evento e isso se reflete na focalização
do narrador. Os cortes mais marcantes durante a escrita das memórias de Jakob e
conseqüente leitura de Ben são revelados em rodos os momentos em que Jakob
pára sua narrativa e se lembra de sua irmã. Ela o “assombra” durante toda sua
vida. Nesses cortes, o foco narrativo é sempre no menino, não no adulto porque o
adulto não conviveu com a irmã, não presenciou as brincadeiras, embora o leitor
tenha a sensação de que o foco narrativo está em Jakob adulto. Essa focalização
em sua irmã desperta outra sensação ao leitor, a de que Jakob mantém seu
vinculo com seu passado apenas em se tratando de sua família.
Não está claro na narrativa que Jakob deseja retomar sua religião e sua
cultura. Parece-nos, como leitores, que seu vínculo com o passado está mais
ligado à sua família e a Athos. Para o processo do não-esquecimento da família e
de suas origens, Athos pôde contribuir durante a infância e puberdade de Jakob.
52
Ele lhe ensinou grego e latim e, com o objetivo de manter viva sua tradição judaica,
o hebraico. Nas palavras do narrador pode-se confirmar essa afirmação:
Athos didn’t want me to forget. He made me review my Hebrew alphabet. He said the same thing every day: “It’s your future you’re remembering.” He taught me the ornate Greek script, like a twisting twin of Hebrew. Both Hebrew and Greek, Athos liked to say, contain the ancient loneliness of ruins, “like a flute heard distantly down a hill-side of olives, or a voice calling to a boat from a shore.”9. (FP: 21)
Ele ensinou-lhe também o inglês, que para Jakob era uma língua
desmemoriada e conseqüentemente não o fazia lembrar de seu passado. Quando
mais tarde começou a escrever suas memórias, isso pôde ser confirmado: “And
later when I began to write the events of my childhood in a language foreign to their
happening, it was a revelation. English could protect me; an alphabet without
memory”10. (FP: 101) Ao conseguir escrever em uma língua que não apresentasse
uma sombra de seu passado, Jakob pôde perceber que o inglês seria bastante útil.
Ele conseguira revelar suas memórias de uma maneira que elas não o
machucavam tanto porque ele se sentia forte o bastante para escrevê-las: “On
Idhra I finally began to feel my English strong enough to carry experience. I became
obsessed by the palpable edge of sound”11 (FP: 162), pois sua fortaleza era como
uma representação das várias pátrias às quais Jakob pertenceu. Isso também nos
leva a refletir na possibilidade de Jakob ter escrito em Inglês para tornar os relatos 9 “Athos não queria que eu esquecesse. Fazia-me revisar meu alfabeto hebraico. Dizia a mesma coisa todo dia: ‘É os eu futuro que você está lembrando’. Ensinou-me a ornamentada escrita grega, como uma gêmea torta do hebraico. Tanto o hebraico como o grego, Athos gostava de dizer, têm a solidão antiga das ruínas, ‘como uma flauta ouvida à distância numa encosta de oliveiras, ou como uma voz chamando um barco da terra’.” 10 “E depois, quando comecei a registrar os eventos da minha infância numa língua estrangeira aos fatos narrados, foi uma revelação. O inglês me protegia; um alfabeto sem memória.” 11 “Em Idhra comecei a sentir meu inglês suficientemente forte para transmitir experiência. Estava obcecado pela palpabilidade do som.”
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de sua vida menos pessoais, como se fosse a história de outra pessoa, um recurso
que utilizado para minimizar sua dor. Ele escreveu em inglês sobre a infância na
Grécia e a juventude no Canadá, além de ganhar a vida neste último país fazendo
traduções de poemas gregos para o inglês. Nessas traduções, Jakob percebeu
que não somente a língua mudava, mas um poema traduzido se transformava em
outro:
Translation is a kind of transubstantiation; one poem becomes another. You can choose your philosophy of translation just as you choose how to live: the free adaptation that sacrifices detail to meaning, the strict crib that sacrifices meaning to exactitude. The poet moves from life to language, the translator moves from language to life; both, like the immigrant, try to identify the invisible, what’s between the lines, the mysterious implications.12 (FP: 109)
Percebeu também que a tradução lhe dava uma lição de vida, de adaptação às
circunstâncias das quais não poderia fugir. As palavras de Jakob no que se refere
à tradução podem ser incorporadas ao estudo dessa matéria como teoria. Como
esse objetivo não cabe neste estudo, o que interessa aqui é perceber que ele vê a
tradução como uma lição de vida e, de certa forma, personaliza sua teoria
mostrando como ela – como sua própria vida – pode ser metaforizada como uma
tradução de geografias, línguas e culturas, fazendo com que ele se adapte àquilo
do qual não pode fugir.
Essas mudanças na vida de Jakob, relacionadas à aquisição de novas
culturas, favoreceram seu amadurecimento e também lhe permitiram falar de sua
12 “A tradução é uma espécie de transubstanciação; um poema transforma-se em outro. Você pode escolher a sua filosofia de tradução assim como escolhe a maneira de viver: a adaptação livre que sacrifica o detalhe pelo sentido, a versão literal que sacrifica o sentido pela exatidão. O poeta vai da vida para a língua, o tradutor vai da língua para a vida; ambos, como o imigrante, tentam identificar o invisível, o que está nas entrelinhas, as implicações misteriosas.”
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história. Outra contribuição dessa diversidade cultural foi a de minimizar os
constantes pesadelos que o garoto desejava nunca ter tido. Aos poucos eles foram
sendo substituídos por uma ausência de sua referência familiar. Como foi dito
anteriormente, eles foram desaparecendo na mesmo proporção em que Athos fora
ocupando sua vida. Embora Athos fosse para ele uma nova referência, seus pais e
sua irmã o assombraram tanto tempo porque fizeram parte de sua primeira Pátria.
Retomamos aqui o conceito de Pátria como aquele local imaginado, mais íntimo,
do qual Jakob pôde fazer parte e que lhe permitiu guardar suas lembranças de
pertencimento enquanto criança. O conceito de Pátria não se afirma num
sentimento de localização fixa, imóvel e única, como o território polonês poderia
ser, mas se faz num lugar imaginado que, ao ser acessado pela sua lembrança,
carrega em si um sentimento que conforta e permite a ele dizer: eu faço parte
daquele lugar, é meu lar, é minha origem, como a família de Jakob. Por esse
motivo, Athos não era parte da Pátria de Jakob, ele fazia parte de seu
repatriamento: “Even as a child, even as my blood-past was drained from me, I
understood that if I were strong enough to accept it, I was being offered a second
history”13. (FP: 20) Pois sabendo disso, constantemente Athos fazia com que
Jakob se recordasse de sua história. Ele queria que Jakob guardasse vivo na
memória suas referências judias, ao mesmo tempo em que ele próprio tentava
poupar o menino das atrocidades nazistas. No trecho seguinte percebe-se sua
agonia ao lembrar as palavras com que o amigo Ioannis descreve para Athos o
carregamento de judeus no navio visto da Bahia de Zakynthos:
13 “Mesmo em criança, mesmo com meu passado de sangue sugado de mim, eu compreendia que se fosse forte para aceitar aquilo, estava ganhando a chance de uma segunda história.”
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“The boat was overflowing. I saw it with my own eyes. The boat was so full of Jews from Corfu that when it reached Zakynthos harbour the soldiers couldn’t cram on a single soul. (…) My father and I waited at the edge of the square, to see what the Germans would do. Mr. Caro started to weep. He thought he was saved, you see, we all thought that, we weren’t thinking properly, and we weren’t thinking too that if our Jews were saved, it was because the Corfu Jews had been taken in their place” (…) Athos put his hands over his ears. (…) “No one knows where he is, my father heard he escaped by kaiki the same night we came to you. The archbishop stayed with the Jews, he wanted to get in the truck with them but the soldiers wouldn’t let him. He stood all day next to the truck, talking to the poor people inside…” He paused. “Maybe Jakob shouldn’t hear any more.” Athos looked uncertain. “Ioannis, he’s already heard so much.”14 (FP: 41-43)
As palavras de Athos se referiam não só ao que Jakob havia escutado do relato
de Ioannis, mas também à sua vivência da guerra no gueto na Polônia.
O repatriamento de Jakob não estava ligado ao território polonês, de lá
ele tinha apenas a lembrança de sua família, e algumas referências judias; já na
ilha grega ele encontrava seu lugar. E a partir de tudo que ouvia e aprendia,
encontrava também sua identidade de judeu. Athos também lhe ensinou geologia e
literatura e Jakob pôde usufruir desses ensinamentos para recontar sua história.
Além de reconstruir sua vida com os ensinamentos de Athos, Jakob pôde
reconstruir a história dos judeus na Polônia e, em conseqüência, a história da
14 “ ‘O barco estava superlotado. Vi com meus próprios olhos. O barco estava tão cheio de judeus de Corfu que quando chegou no porto de Zakynthos os soldados não conseguiram enfiar mais ninguém. (...) Meu pai e eu esperamos na beira da praça, para ver o que os alemães iam fazer. O velho Caro começou a chorar. Ele pensou que estava salvo, sabe, todo mundo pensou isso, mas a gente não estava pensando direito porque os judeus de Corfu tinham sido levados no lugar deles.’ (...) Athos pôs as mãos nas orelhas. (...) ‘Ninguém sabe onde ele está, meu pai ouviu dizer que ele escapou de kaiki na mesma noite em que a gente veio para a sua casa. O arcebispo ficou com os judeus, ele queria entrar no caminhão com ele, mas os soldados não deixaram. Ficou o di inteiro do lado do caminhão, conversando com os coitados lá dentro...’ Ele fez uma pausa. ‘Quem sabe era melhor Jakob não ouvir mais nada.’ Athos pareceu hesitar. ‘Ioannis, ele já ouviu demais.’ ”
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humanidade. Como a Terra fora formada, as camadas geológicas que cobriam o
Canadá, o sítio arqueológico de Biskupin, tudo isso passara a compor a memória
roubada de Jakob durante sua fuga pelo escuro da noite. Jakob jamais retornou à
Polônia, seu país de origem, seu Estado-Nação. Em momento algum durante a
narrativa ele a menciona. Sua ligação com a Polônia está localizada
exclusivamente na sua família. Esse conflito de pertencimento permaneceu dentro
de suas lembranças mesmo quando adulto:
I tried to bury images, to cover them with Greek and English words, with Athos’s stories, with all the geologic eras. With the walks Athos and I took every Sunday into the ravines. Years later I would try a different avalanche of facts: train schedules, camp records, statistics, methods of execution. But at night, my mother, my father, Bella, Mones, simply rose, shook the earth from their clothes, and waited15. (FP: 93)
Por isso a dificuldade de trocar suas experiências, porque ele só poderia
trocá-las com os mortos. Há uma passagem do texto que esclarece essa
afirmação: “I spent the day writing my letter to the dead and was answered at night
in my sleep”16. (FP: 19) Não tendo mantido vínculos com a Polônia, quem pôde
contribuir para esclarecer os incidentes de sua vida e do mundo naquele pós-
guerra fora Athos, na Grécia.
As referências da Polônia e da Grécia e posteriormente do Canadá são
revividas na memória de Jakob em momentos bem diferentes. É interessante
observar que ele vivia uma dualidade constante que o fazia judeu à noite e afilhado 15 “Eu tentava enterrar imagens, cobri-las com palavras gregas e inglesas, com as histórias de Athos, com todas as eras geológicas. Com os passeios que Athos e eu dávamos todos os domingos pelas ravinas. Anos depois, eu iria experimentar uma outra avalanche de fatos: horários de trens, registros de campos, estatísticas, métodos de execução. Mas, à noite, minha mãe, meu pai, Bella, Mones, simplesmente levantavam-se, sacudiam a terra das roupas e esperavam.” 16 “Passava o dia escrevendo minha carta aos mortos e a resposta vinha à noite, no sono.”
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de Athos durante o dia. Nas duas últimas citações fica evidente que o menino se
sentia diferente. Quando anoitecia ele se lembrava das almas que vagavam por
sobre as cidades, se lembrava de seus pais e de sua irmã. Lembrava-se dos
outros tantos judeus que haviam morrido. Lembrava-se da civilização e suas
atrocidades, da mulher que morrera de tanto ficar em pé, lembrava-se de um
garoto escondido em uma cratera, um garoto que ficara surdo e mudo além de ter
seus membros atrofiados. O peso de sua condição judia era um fardo difícil de
carregar. Durante o dia ele aprendia coisas novas que proporcionavam um certo
alívio, pois não faziam parte de sua primeira Pátria e condição judaica. Jakob vivia
duas vidas, ele tinha consciência de estar recebendo uma segunda história, a
história da formação da Terra, por exemplo, mas a sua própria história o prendia no
mundo dos mortos. Ele dormia pensado em sua família e o gosto do sangue de
seus pais era tão forte que quando ele acordava sabia que os havia acordado de
suas camas escuras. Apesar de Athos ter-lhe ensinado a reverenciar os mortos,
essa dualidade perdurou até seu casamento com sua segunda esposa, Michaela.
Somente com ela Jakob conseguiu entender que seus mortos precisavam
descansar e, principalmente, que a noite não era tão assustadora e que ele não
precisava mais temê-la:
Now I’m not afraid when harvesting darkness. I dig with my eyes into the night bedroom, Michaela’s clothes tangled with mine, books and shoes. A brass lamp from a ship’s cabin, from Maurice and Irena. Objects turn to relics before my eyes.17 (FP: 193)
17 “Agora não tenho mais medo na colheita do escuro. Mergulho meus olhos no quarto noturno, as roupas de Michaela enredadas nas minhas, livros e sapatos. Uma lâmpada de latão saída da cabine de um navio, presente de Maurice e Irena. Objetos transforma-se em relíquias diante dos meus olhos.”
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Na narrativa memorialista de Jakob Beer, o processo dialético memória-
esquecimento é utilizado para tecer e conduzir o fio narrativo da obra. Para tal, o
conflito entre a necessidade de lembrar do adulto e a vontade de esquecer da
criança pode ser lido, uma vez que o narrador não consegue se desvincular
sentimentalmente de sua história para contá-la. Além disso, na obra também é
interessante acompanhar o percurso do individual para o coletivo. A narrativa
passa pela vida de Jakob para inseri-la num contexto social maior, o dos
sobreviventes do Holocausto da Segunda Guerra Mundial. Em todas as suas
memórias, Jakob sempre insere as vozes dos mortos que precisavam ser
extravasadas por um narrador.
Dessa maneira pode-se dizer que a história de vida de Jakob é uma
construção narrativa porque ela parte do princípio de que há uma negociação
entre o fato acontecido e sua imaginação. Ao recontar sua vida, o narrador
reconstrói uma parte da história da humanidade e permite à sua memória um
tropeço na linearidade histórica tradicional. Ele opera dentro do campo do
performático, de acordo com o conceito de narrativa performática que Bhabha
(2003) utiliza. A frase de Anderson (1991) Esquecer é um fratricídio não reforça a
narrativa de Jakob, ela apenas diz o que pode acontecer quando se opta por não
lembrar. Jakob adulto não fez essa opção.
A construção da história de Jakob pelo viés da memória tem um
momento muito marcante no livro, talvez o ponto de partida de sua vida. Seu
padrinho grego, Athos, escrevia um livro, Bearing False Witness (Prestando Falso
Testemunho). Justamente pela agonia de Athos em relação às atrocidades
nazistas e principalmente à facilidade com que um companheiro de estudos seu se
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deixara vender aos nazistas é que o livro de Athos parece ter despertado, em
Jakob, a sensação da violação dos direitos da História. Além disso, percebemos
que Athos desejava que Jakob reconstruísse sua própria história e
conseqüentemente sua condição judaica dentro de uma transparência que não se
apresentasse sobre uma falsa aparência da verdade. Veja-se nestas passagens:
Bearing False Witness plagued Athos. It was his conscience; his record of how the Nazis abused archaelogy to fabricate the past. In 1939, Biskupin was already a famous site, already nicknamed the “Polish Pompeii”. But Biskupin was proof of an advanced culture that wasn’t German; Himmler ordered its obliteration. It wasn’t enough to own the future. The job of Himmler’s ss-Ahnenerbe – the Bureau of Ancestral Inheritance – was to conquer history. The policy of territorial expansion – lebensraum – devoured time as well as space. (…) “This week I found out that a man I went to school with in Viena was in the Ahnenerbe”. (…) “With Himmler paying his salary suddenly he found swastikas in every handful of dirt. This man, who’d been at the top of our prehistory class, actually presented the ‘Willendorf Venus’ to Himmler as proof that ‘Hottentots’ had been conquered by ancient Aryans! He falsified digs to prove that Greek civilization started in … neolithic Germany! Just so the Reich could feel justified in copying our temples for their glorious capital”18. (FP: 104)
As palavras de Athos demonstram que os nazistas sentiram a necessidade de
justificar suas conquistas da mesma forma que os países europeus que
conquistaram as colônias a partir do século XVI o fizeram. Ao perceber que a
18 “Prestando falso testemunho infernizava Athos. Era a consciência dele; o seu registro de como os nazistas violaram a arqueologia para distorcer o passado. Em 1939, Biskupin já era um sítio arqueológico famoso, apelidado ‘Pompéia polonesa’. Era, porém prova de uma avançada cultura não germânica; Himmler ordenou que fosse exterminada. A tarefa da ss-Ahnenerbe de Himmler – o Departamento de Herança Ancestral – era dominar a história. A política de expansão territorial – lebensraum – devorava o tempo além de devorar o espaço. (...) ‘Descobri esta semana que um homem que foi meu colega de escola em Viena fazia parte da Ahnenerbe.’ (...) ‘Com Himmler pagando o seu salário ele, de repente, passou a encontrar suásticas em qualquer punhado de terra. Esse sujeito, que era o primeiro aluno da nossa classe de pré-história, chegou a dar a ‘Vênus Willendorf’ de presente para Himmler como prova de que os ‘hotentotes’ haviam sido dominados pelos antigos arianos! Ele falsificou escavações para provar que a civilização grega havia começado na... Alemanha neolítica! Só para o Reich sentir que tinha razão em copiar os nossos templos na sua gloriosa capital.’”
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história da humanidade podia ser facilmente forjada, percebemos como isso
também podia incomodar Jakob a ponto de ele levantar essa questão em suas
memórias. Parece que isso faz com que Jakob descubra a eficácia da arqueologia
que tanto encantava Athos e use essa arqueologia na construção de sua própria
identidade.
Na verdade, quando escrevemos nossas memórias estamos escavando
o nosso sítio arqueológico e buscando nele as evidências de nossa existência.
Justamente por termos autoridade sobre o nosso sítio é que se faz necessário
termos igualmente a seriedade e o comprometimento com o que narramos. A partir
do momento em que Jakob descobre que forjar o passado também faz parte da
história, o leitor tem a sensação de que ele não deseja isso. Jakob quer contar que
há o que é forjado, e ele diz isso; e há o que é verdadeiro. Suas memórias
parecem ao leitor verdadeiras, os fatos parecem ter de fato existido porque ele os
apresenta bastante claramente, mas ele faz questão de não enganar o leitor
quanto àquelas que foram construídas. Entendo que seu interesse em estar mais
próximo do que de fato aconteceu está diretamente ligado à necessidade de
denunciar a facilidade de forjar a história.
A personagem Jakob articula o processo dialético no qual a memória
opera para falar de sua vida. Ele começa testemunhando a morte de seus pais e
percebendo o sumiço de Bella. Cronologicamente o livro começa assim. O olhar
amadurecido do adulto revela detalhes que passariam despercebidos pelo olhar
aterrorizado da criança. Quando a bomba explode em sua casa, ele estava
escondido e sua mãe costurando sua camisa. Jakob percebe que ficara órfão. A
dor da perda que o adulto sente talvez seja narrável, a da criança não. Quando ele
61
corre no meio da floresta escura para continuar vivendo, ele ao mesmo tempo
inicia a estratégia de ocultar seu passado. O choque da perda parece anular um
menino que vivera antes da guerra, cabe a seu padrinho Athos reaver sua
identidade.
De acordo com Jakob: “There’s no absence, if there remains even the
memory of absence. Memory dies unless it’s given a use. Or as Athos might have
said: If one no longer has land but has the memory of land, then one can make a
map”19. (FP: 193) Jakob descobre isso no final de sua vida, quando ele escreve
suas memórias, construindo seu próprio mapa a partir de suas memórias. Para que
elas vivam é preciso que se façam delas registros úteis para quem quer que seja.
A utilidade de suas memórias serve a Ben, a outra personagem de Fugitive Pieces,
da qual vamos tratar no capítulo seguinte.
19 “Não existe ausência, se resta mesmo que apenas a memória d ausência. A lembrança morre a menos que tenha uso. Ou como diria Athos: ‘Se não tem mais a terra, mas se tem a lembrança da terra, então dá para se fazer um mapa.”
62
3: OS CARREGADORES DE PEDRA
Neste capítulo, tenho como propósito estudar o problema do luto nos
sobreviventes do Holocausto e dos traumas que as perdas humanas e morais
ocasionaram. Muito se tem teorizado a respeito das conseqüências de ações
ditatoriais e a conclusão à qual se chega é que os governos oprimiram toda e
qualquer manifestação de luto durante as ditaduras com o propósito de impedir
comoções públicas que pudessem comprometer o resultado de seus objetivos.
Em Alegorias da derrota (2003), Idelber Avelar estuda algumas obras literárias
latino-americanas que exemplificam de que maneira os fatos que sucederam às
ditaduras nos países estudados foram narrados. Avelar discute de que forma os
autores apresentam ao leitor as conseqüências dessas ditaduras e discute como a
falta do luto contribuiu para que houvesse uma lacuna na representação histórica
desses eventos. Em sua teorização a respeito do luto, o autor mostra, também, a
dificuldade dos sobreviventes do Holocausto em contarem suas história, já que
eles não conseguem relacionar a experiência vivida com o propósito da narrativa:
Se o trabalho de luto só pode ser levado a cabo através da narração de uma história, o dilema do sobrevivente reside no caráter incomensurável e irresolúvel dessa mediação entre experiência e narrativa: a organização diegética própria do horror vivido é percebida não só como uma intensificação do próprio sofrimento, mas, o que é pior, como uma traição ao sofrimento dos demais. O sobrevivente da hecatombe é vítima dessa “parálisis” simbólica: nunca narra o que deve ser narrado. A narrativa estaria sempre presa num mais ou numa falta, excessiva ou impotente para capturar o luto em toda sua dimensão. (Avelar, 2003: 235/236)
63
Além desses estudos acerca de como os sobreviventes de tais ditaduras e do
Holocausto lidavam ou lidam com a dificuldade de narrar suas experiências, os
trabalhos de Ernest Van Alphen (1999) e Marianne Hirsch (1999) das
reminiscências do Holocausto, das fotografias ou relatos de pessoas que
vivenciaram esse episódio contribuem para o enriquecimento do estudo. Neste
capítulo, o interesse se concentra em estudar a teoria do luto que se aplica aos
sobreviventes do Holocausto causado pela Segunda Guerra Mundial. Para ilustrar
essa teoria, será feita uma análise comparativa entre a apresentação das
personagens Jakob Beer e Ben, do livro Fugitive Pieces, ambos de origem
judaica. Tomo como ponto de partida a discussão a respeito de como os
sobreviventes do Holocausto lidavam e ainda lidam com a situação do luto no
decorrer do pós-guerra. Apesar da problematização do luto parecer mais marcante
na vida de Ben e parecer mais sutil na vida de Jakob e este ser a personagem
principal do livro, essa questão direciona a narrativa da segunda metade da obra
de modo a fazer o leitor se questionar o porquê dessa ênfase em Jakob. Através
do olhar carregado de sua cultura judaica, Ben aborda as questões relacionadas
ao Holocausto lendo nas memórias de Jakob as exemplificações de tais
atrocidades.
JAKOB
A obra é dividida em duas partes. A primeira relata a vida de Jakob
Beer. Na verdade é uma leitura de suas memórias para qual o leitor só vai se dar
conta quando a personagem Ben aparece na narrativa. A segunda parte conta a
64
história de Ben. Essa divisão explica a importância da segunda personagem. É ela
quem lê as memórias de Jakob para o leitor. É Ben quem, em sua leitura,
preenche a história da vida de Jakob, relatando através dessa história particular
uma história muito maior – a história dos sobreviventes do Holocausto. É Ben
quem fundamentalmente explica ao leitor como Jakob Beer conseguiu superar a
perda de sua família. Além disso, há certas diferenças de atitudes entre as duas
personagens que revelam o motivo da vontade de Ben em sair em busca das
memórias de Jakob, narrando-as para o leitor.
O problema do luto na vida daquelas pessoas que não podem enterrar
seus mortos é um dos pontos fundamentais de estudo neste capítulo. A teoria do
luto a ser observada no texto de Anne Michaels adota os conceitos de luto
“anormal” (abnormal mourning) e luto “inaugurado” (inaugurated mourning)
desenvolvidos pela filósofa Gillian Rose (apud Parry, 2000). Além deste assunto, a
teorização acerca da construção da memória desses sobreviventes se faz
importante, pois exemplifica como essas pessoas têm suas memórias
fragmentadas e confusas em relação aos acontecimentos da guerra e
principalmente em relação à própria construção da narrativa de suas vidas. Para
esta análise, o texto de Van Alphen contribuirá com seu estudo em relação à
dificuldade que a experiência traumática exerce sobre as narrativas a respeito do
Holocausto e principalmente de que forma esse episódio resumiu a condição
humana a nada, que de alguma forma, é complementado pelo estudo de Hirsch a
respeito das fotografias tiradas durante a Segunda Guerra Mundial e reforçado
pelo estudo de Avelar a respeito das narrativas que sucederam o sistema ditatorial
65
na América Latina se comparado em determinado momento ao período do pós-
guerra.
No primeiro assunto a ser abordado neste capítulo, a questão de como
os sobreviventes alcançam ou não o luto inaugurado, Rose explica que os
sobreviventes, diretos ou indiretos, do Holocausto sofrem com os fantasmas de
seus mortos porque eles não conseguem ou não podem enterrá-los e cumprir um
rito espiritual. Apesar da novidade dos estudos teóricos a respeito do problema do
luto, essa questão não é nova. Já Antígona, na Antigüidade, se expôs à ira do tio
Creonte, que havia proibido que se dessem funerais adequados ao príncipe
derrotado, buscando o luto inaugurado nas suas diversas tentativas de enterrar o
irmão Polinices, deixado na rua para apodrecer no local onde fora morto. Devido à
incapacidade de essas pessoas enterrarem seus mortos ou até mesmo de
tentarem salvá-los da morte, ainda que em vão, os sobreviventes do Holocausto,
como a personagem Jakob, se diferenciam das demais pessoas que também
passaram pelo sofrimento de perder entes queridos porque sua expressão a
respeito da morte não coincide com a das outras pessoas, já que, como bem
observou Avelar, não interessava aos governos responsáveis pelas atrocidades
que as pessoas manifestassem suas dores. Os homens que viveram a dor da
ausência característica dos sobreviventes acabam por desenvolver um tipo de
sofrimento peculiar que exprime suas agonias. Esse sofrimento é descrito por
Rose de duas maneiras. A primeira maneira é chamada por ela de luto “anormal”,
entendido como uma resposta dada àquelas pessoas cujos seres amados não
puderam ser enterrados e/ou velados. Devido às circunstâncias de suas mortes –
muitas vezes o ato de forçosamente abandonar seus filhos e parentes idosos nos
66
guetos; os constantes homicídios nos campos de concentração; a interminável
fome e a miséria constantes da guerra ou ainda a desnutrição e a dor – e pelo fato
de eles não terem sido enterrados devidamente, as pessoas que permaneciam
vivas acreditavam que esses mortos não “descansavam” – assim, os
sobreviventes não conseguiam recomeçar suas vidas e superar a ausência
daqueles que haviam perdido. Eles ficavam vagando moribundos e perplexos.
Jakob menino tem essa sensação de que os mortos estão em toda parte, menos
debaixo da terra. Ele acreditava que pedras eram colocadas sobre os túmulos
para prender os mortos. Segundo os costumes judaicos,
O costume de colocar uma pedra tumular (matzeivá em hebraico) remonta aos tempos de nossos patriarcas. É um ato de respeito pelos falecidos. Marcando visivelmente o local do sepultamento, asseguramos que os mortos não serão esquecidos, e sua sepultura não será profanada.20
Já o segundo tipo de luto explorado por Rose é entendido como luto
“inaugurado”. É um tipo de luto que reconhece e aceita as leis que regem a
ausência do outro e permite que o sofredor retome seu dia-a-dia e retome também
as novas e as velhas relações com aqueles que vivem. Nesse segundo exemplo,
a participação de terceiros é fundamental, pois serve como um sólido alicerce na
tentativa de recomeçar. A autora não deixa claro se as pessoas precisam
necessariamente viver o primeiro tipo de luto para, então, terem capacidade de
ultrapassar as barreiras que os separam e atingir o segundo tipo de luto. Rose usa
como exemplo o livro Fugitive Pieces, aqui estudado, dizendo que a personagem
20 Essa informação está disponível no site <http:// www.chevrakadisha.com.br/26htm>. Acesso em 30 de Março de 2005.
67
Jakob Beer consegue transpor essa barreira e viver o luto “inaugurado”. Ao
contrário do que acontece à segunda personagem, Ben.
Rose acrescenta ainda, em seu texto, a relevância do comprometimento
político que é preciso que se tenha para com essas pessoas que alcançaram o
segundo tipo de entendimento, uma vez que esse luto “inaugurado” é para ela ao
mesmo tempo espiritual e político e trabalha no nível do individual e do estado:
And such inaugurated mourning is ‘spiritual-political’ that is it works at the level of the individual and the state. It sustains the ‘transcendence of actual justice’ and it understands ‘that we... must constantly negotiate the actuality of being tyrannical’21. (Rose apud Parry, 2000)
Isso quer dizer que é preciso haver uma troca das experiências vividas durante a
guerra tanto pelos indivíduos em si quanto pela sociedade que os acolhe. É
necessário haver uma audiência que esteja pronta para ouvir o que essas
pessoas que ultrapassaram a fronteira do luto “anormal” para o luto “inaugurado”
têm a dizer, porque elas também precisam reconstruir suas vidas. É fundamental
no auxílio dessa transição do luto “anormal” para o “inaugurado” uma escuta
pronta a ouvir os sobreviventes. Avelar contribui nesse estudo a partir do
momento em que reflete sobre a artificialidade que se revela para os
sobreviventes relatarem suas experiências, porque a distância temporal entre o
fato e sua narrativa impede de certa forma que a audiência tenha a real dimensão
do que significou para eles aquela situação.
21 E tal luto inaugurado é “espiritual e político”, isto é, trabalha no nível do individual e do estado. Ele sustenta a “transcendência da justiça verdadeira” e entende “que nós... temos que negociar constantemente a verdade de sermos tirânicos”. (m/ tradução)
68
De acordo com S. J. Brison, outra autora que contribui no estudo das
conseqüências da Guerra na construção da memória dessas pessoas e
conseqüente narrativa das mesmas,
By constructing and telling a narrative of the trauma endured, and with the help of understanding listeners, the survivor begins not only to integrate the traumatic episode into a life with a before and after, but also to gain control over the occurrence of intrusive memories.22 (Brison, 1999: 46)
Tanto Rose, quanto Avelar e Brison, o comprometimento de terceiros com as
conseqüências da guerra sofre influências da mesma forma que influencia as
pessoas que não participaram diretamente dos eventos. Michael Pollak, explorado
com mais cautela em capítulo anterior, também preocupado com as questões da
construção da memória das pessoas que sobreviveram ao Holocausto, afirma
que:
Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. Em seu retorno, os deportados encontraram efetivamente essa escuta, mas rapidamente o investimento de todas as energias na reconstrução do pós-guerra exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante dos horrores dos campos. (Pollak, 1989: 06)
Em sua citação, fica clara a ambivalência dessas escutas: nem sempre elas
conseguiram auxiliar na construção dessas memórias, mas por outro lado elas
fazem parte dessa construção. Não importa muito se o auxílio que o outro presta
22 Ao construir e contar a narrativa do trauma suportado, e com a ajuda da compreensão dos ouvintes, o sobrevivente começa não só a integrar o episódio traumático em uma vida com um antes e um depois, mas também obter controle sobre a ocorrência de memórias intrusas. (m/ tradução)
69
ao escutar o sobrevivente pode de fato solucionar um problema, o que importa é o
sobrevivente perceber que sua fala ainda pode ter uma audiência disposta a ouvi-
la.
De acordo com as ponderações teóricas mostradas anteriormente,
torna-se possível pensar a obra Fugitive Pieces como um exemplo de como a
literatura serve de resposta às vozes assombradas de Auschwitz que se fizeram
no silêncio e na perda de metáforas dos vínculos familiares e pessoais antes tão
marcados. No texto ficcional estudado neste trabalho, percebemos que há essa
escuta necessária à reconstrução das vidas dos sobreviventes assim como há
também a exemplificação de ambos os tipos de luto apresentados no início deste
capítulo. Para entender melhor essas questões percebo que o texto apresenta em
seu contexto personagens que se sobressaem no que diz respeito à solidão
causada pela guerra. Ainda que essa solidão não seja aquela ocasionada pela
ausência das pessoas e sim a solidão que expressa a incapacidade de se
relacionar com o outro, são bastante recorrentes, no romance, situações que
exemplificam esse segundo tipo de solidão.
Jakob Beer, a primeira personagem apresentada ao leitor, teve grande
dificuldade em se relacionar devido à sua resistência em amar. Talvez não apenas
uma resistência, mas um temor em relação às conseqüências de se deixar levar
por um sentimento tão ausente e tão novo em sua vida, já que ele perdera sua
família ainda muito jovem. Essa resistência parece ser transformada na
dificuldade de se relacionar com alguém por ter medo de perder esse alguém
assim como perdeu sua família, apesar de durante sua vida ele receber de Athos
todo o amor que este pôde oferecer.
70
De acordo com o compositor brasileiro Djavan: “O amor é um grande
laço, um passo pra uma armadilha / Um lobo correndo em círculos pra alimentar a
matilha...”23 Jakob não parece querer cair nessa armadilha, e assim como não foi
alimentado pelos seus pais. Ele apenas consegue se libertar dessa solidão ou se
deixar enlaçar por esse sentimento em dois momentos do texto. O primeiro é
através do convívio com Athos e da compreensão de que apesar da ausência de
seus pais e de sua irmã e apesar de não os ter enterrado não significa que sua
vida não tenha mais sentido. O outro momento é quando, aos cinqüenta e poucos
anos, casa-se com sua segunda esposa, Michaela.
Essa primeira narrativa do texto com a qual o leitor tem contato, da vida
de Jakob Beer, é apresentada ao leitor em fragmentos, da mesma forma como a
memória é constituída, que se passam desde sua infância até a idade adulta,
através das narrativas do texto que Jakob constrói aos sessenta anos, em Idhra,
uma ilha grega. A personagem perde seus pais e sua irmã em um gueto na
Polônia e não pode enterrá-los. Não pôde enterrar seus pais porque ele foge no
instante em que uma bomba explode, matando-os. Pior, ele se vê em uma fuga
sem ao menos evitar pisar no sangue de seus pais que se empoçava no chão. Já
sua irmã, ele não pôde enterrá-la justamente porque nunca soubera seu
paradeiro. Jakob jamais teve a certeza de sua morte. Ele fala dela durante toda a
narração de suas memórias com um vazio enorme dentro de si. Apesar das
circunstâncias de sua sobrevivência não serem as mais simples e banais pois ao
ficar órfão de pai e mãe e perde a irmã, ganha a figura de Athos, seu padrinho,
seu koumbaros, que assume uma importância crucial na sua vida. Athos dá o 23 DJAVAN. In: O talento de Djavan. LP Emi-Deon no 152422, 1985. Lado 1, faixa 2.
71
ensinamento de vida que Jakob não pôde receber de seus pais. Ele aprende a
valorizar sua cultura, ainda que do ponto de vista lingüístico, e aprende,
igualmente, a respeitar outros tantos judeus que não conseguiram se salvar:
While Athos taught me about anabatic and katabatic winds, Artic smoke, and the Spectre of the Bröcken, I didn’t know that Jews were being hanged from their thumbs in public squares. I didn’t know that when there were too many for the ovens, corpses were burned in open pits, flames ladled with human fat. I didn’t know that while I listened to the stories of explorers in the clean place, men were untangling limbs, the flesh of friends and neighbours, wives and daughters, coming off in their hands.24 (FP: 46)
Aprende através de Athos a reverenciar aqueles que já haviam partido. Aprende
de certa forma a aceitar as leis que regem a ausência do outro e compreende que
não é a ausência física que conta, mas a presença espiritual. Ao reverenciar seu
pai e sua mãe, Jakob percebe que faz não apenas uma reverência a seus pais,
mas a todas as almas que vagam agônicas por sobre as cidades que haviam sido
assoladas pelos nazistas e que precisavam ser lembradas por todos que haviam
ficado para que a humanidade soubesse das atrocidades alemãs.
As lições, através dos ensinamentos sobre arqueologia, geologia,
literatura e história, que Athos tanto insistia em dar para Jakob, preenchem suas
memórias e reconstróiem seu passado. As lições também auxiliam na
transposição do luto “anormal” para o luto ‘inaugurado”. Esse momento de
reconstrução talvez tenha sido ambiguamente eficaz: ele tanto favoreceu a
24 “Enquanto Athos me ensinava sobre os ventos anabáticos e catabáticos, sobre a fumaça do Ártico e o espectro de Bröcken, eu não sabia que judeus estavam sendo dependurados pelos polegares em praças públicas. Não sabia que quando havia corpos demais para os fornos, eles eram queimados em fossas abertas, as chamas alimentadas por gordura humana. Não sabia que enquanto ouvia as histórias dos exploradores dos lugares limpos do mundo (cobertos de neve, mordidos de sal) e dormia num lugar limpo, homens estavam desemaranhando membros, a carne de amigos e vizinhos,de esposas e filhas se descolando em suas mãos.
72
reconstrução de sua identidade como o colocou frente a frente com a crueldade
dos alemães para com seus irmãos judeus. Jakob se dá conta de que tantos
outros judeus precisavam ser reverenciados como seus pais:
But the dead surrounded us, an aurora over blue water. At night I choked against Bella’s round face, a doll’s face, immobile, inanimate, her hair floating behind her. These nightmares, in which my parents and my sister drowned with the Jews of Crete, continued for years, continued long after we’d moved to Toronto.25 (FP: 44)
Assim como ele exemplifica na citação anterior, os judeus rodeiam-no por toda
parte; eles não são apenas mortos que não haviam sido enterrados devidamente,
mas são fantasmas que vagam juntamente com seus pais e possivelmente sua
irmã e o fazem acreditar que eles são como uma aurora sobre a água azul do mar
de Creta. A referência à Creta se deve a esses homens que morreram durante a
guerra e que devem ser lembrados e narrados para que suas almas possam
descansar em paz. Refere-se também aos judeus que ficaram ilhados em Creta
no final da Segunda Guerra.
Os ensinamentos, o carinho e a aquisição de novas culturas,
apresentadas a Jakob por Athos, fazem com que pouco a pouco sua vida seja
novamente preenchida e principalmente completada no vazio que ficara pela
morte de sua família. Constantemente Athos ensina-lhe algo relacionado à
Arqueologia, Geologia, Paleontologia ou Botânica. Isso encanta Jakob: “Because
Athos’s love was paleobotany, because his heroes were rock and wood as well as
25 “Mas os mortos nos rodeavam, uma aurora sobre a água azul. De noite, solucei encostado ao rosto redondo de Bella, uma cara de boneca, imóvel, inanimada, os cabelos flutuando para trás. Esses pesadelos, nos quais meus pais e minha irmã morriam afogados junto com os judeus de Creta, continuaram durante anos, continuaram por muito tempo depois que nos mudamos para Toronto.”
73
human, I learned not only the history of men but the history of earth. I learned the
power we give to stones to hold human time.”26 (FP: 32) Durante toda sua
convivência com Athos, Jakob passa a observar o seu redor com olhos de quem
procura em cada recorte geográfico dos lugares por onde passa uma explicação
para os fenômenos de sua vida, assim como a compreensão da arqueologia de
sua própria existência que ele passara a buscar.
Apesar de todos esses ensinamentos estarem presentes na vida dele,
apesar de ser demorada a transformação do Jakob órfão e solitário em um
homem mais forte e capaz de amar, apesar de Jakob consumir quase toda sua
vida tendo constantes pesadelos com os mortos, principalmente com sua irmã, ele
consegue resgatar a si mesmo e ultrapassar as fronteiras amargas que o
prendiam no não entendimento da morte e no sofrimento que ele não chorou. Do
luto “anormal” para o luto “inaugurado” Jakob despendeu grande parte de sua
vida, mas nada foi em vão. Como ele mesmo reconheceu: “I know I must honour
Athos’s lessons, especially one: to make love necessary.”27 (FP: 121) Quando
Jakob percebe que ele não esteve sozinho e que Athos tentou a qualquer preço
transformá-lo em um homem com uma história, com memórias que podiam ser
escritas e narradas, o que o auxiliavam na dura tarefa de recontar sua vida antes
da guerra, Jakob pôde viver sem as antigas perturbações.
A trajetória de vida dessa personagem deixa de ser marcada apenas
pelo sentimento angustiante que a morte proporciona e passa a ser pensada pelo
sentimento da vida: o amor. Embora seu primeiro casamento não tenha sido bem
26 “Como o amor de Athos era paleontobotânica, como os seus heróis eram pêra e madeira além dos humanos, aprendi não só a história dos homens, mas a história da terra. Aprendi o poder que atribuíamos às pedras de reter o tempo humano.” 27 Cf. cit. 6.
74
sucedido, Jakob consegue se realizar em seu segundo. Isso também é algo para
o qual Athos colabora. Por ocasião da morte de seu koumbaros, Jakob já havia
conseguido reestabelecer boa parte de sua memória e reconstruir seu passado. A
ausência de Athos pôde ser experimentada como uma perda pela qual Jakob
chorou e viveu, ao contrário da de seus pais. Com a experiência do luto, Jakob
conseguiu romper com o trauma da perda e isso talvez o tenha ajudado a transpor
aquela fronteira crucial que o diferencia tanto da outra personagem, Ben. Athos
ajudou-o a transpor os limites do luto anormal para o luto inaugurado não só com
seus ensinamentos e com a sua insistência em fazer a memória prevalecer, mas
também pelo ato de sua morte, que deu a Jakob a oportunidade de enterrá-lo – e
através dele enterrar seus mortos anteriores, até aquele momento não enterrados.
BEN
A solidão de Ben, a outra personagem a ser analisada, é bem mais
marcante, pois ele a sente mesmo no convívio com seus pais e com sua esposa
Naomi. Como fruto de dois sobreviventes da guerra, Ben cresceu dentro de um
sentimento de vazio muito grande. Seus pais pareciam viver isoladamente em um
mundo à parte. Eles jamais conseguiram romper com as fronteiras do luto
“anormal”. Ben carrega esse estigma durante toda sua vida e, mesmo tentando
ser diferente, não obtém sucesso.
A segunda narrativa de Fugitive Pieces conta com uma personagem
que não teve a mesma “sorte” de Jakob. Apesar de ele próprio não ter vivido os
horrores dos campos de concentração, durante sua vida e com o convívio com os
75
pais Ben recebe a amarga influência da guerra. Ben, nome hebraico para “filho”,
em oposição ao diminutivo de Benjamin, como muitos podem pensar, e diferente
do nome hebraico Jacob28. De acordo com os registros bíblicos, Jacó, ao retornar
para seu povo recebeu o nome de Israel, o nome da terra do povo judeu e que,
tem uma história de vida marcada pelo sofrimento de seus pais. O primeiro grande
sofrimento deles foi conviver com a perda de seus dois primeiros filhos. Durante a
vida de seus pais, Ben pôde se dar conta de como a guerra os fizera prisioneiros
de suas próprias lembranças ou de suas tentativas de esquecimento. Com a
morte de seu pai e através da revelação de sua mãe à sua esposa Naomi, Ben
descobre que além dele seus pais haviam tido mais dois filhos que
desapareceram quando eles se viram obrigados a mudar para o gueto:
We think of photographs as the captured past. But some photographs are like DNA. In them you can read your whole future. My father is such a young man I barely recognize him. He poses in front of a piano, an infant in the bend of his arm. His other hand directs the face of a little girl towards the camera. (…) The woman standing beside him is my mother. (…) On the back floats a spidery date, June 1941, and two names. Hannah. Paul. I stared at both sides of the photograph a long time before I understood that there had been a daughter; and a son born just before the action. When my mother was forced into the guetto, twenty-four years old, her breasts were weeping with milk.29 (FP: 251/252)
28 JACOB. In: SÉGUIER, Jaime de. Dicionário Prático Ilustrado. Porto, Lello & Irmão – Editores, 1961. p. 1681. 29 “Pensamos em fotos como um pedaço de passado capturado. Mas algumas fotografias são como DNA. Nelas você pode ler todo o seu futuro. Meu pai é tão jovem que mal o reconheço. Está posando na frente de um piano, uma criança na curva do braço. Com a outra mão segura o rosto de uma menina pequena voltado para a câmera. (...) A mulher parada ao lado dele é minha mãe. (...) Nas costas flutuam os garranchos de uma data, junho de 1941, e dois nomes. Hannah. Paul. Olhei durante longo tempo os dois lados da fotografia antes de entender que tinha havido uma filha; e um filho nascido imediatamente antes da ação. Quando minha mãe foi forçada a ir para o gueto, aos vinte e quatro anos, seus seios estavam gotejando leite.”
76
Hannah e Paul, seus dois irmãos, foram vítimas do sistema caótico que o
Terceiro Reich representou. Nessa passagem, percebemos que os pais de Ben
servem como exemplificação de uma representação do luto “anormal”. Eles não
rompem a fronteira do silêncio, nem tampouco consideram as poucas pessoas
com as quais conviviam, seu filho Ben, sua nora Naomi, ou os próprios vizinhos,
parceiras na tentativa de se desfazerem dos grilhões da guerra e pessoas com
quem conversar sobre essa e outras possíveis perdas. Entre as pessoas que
sofreram traumas como o Holocausto, é comum essa dificuldade de se relacionar
com os outros e principalmente de conseguir falar sobre seus traumas, como
explica Ernest Van Alphen (1999), autor que será abordado adiante. Há um
impasse muito grande entre a dor da perda e o sentimento de incapacidade de
relatar os episódios da guerra. Ben percebe essa dor de seus pais através da
fotografia de seus irmãos que durante tanto tempo esteve escondida nos
pertences daqueles. Ao dizer que o leite pingava dos seios de sua mãe quando
ela fora obrigada a ir para o gueto, Ben está falando também de tantas outras
mulheres que passaram pela mesma situação e não amamentaram seus filhos. A
alusão ao leite não está explícita na foto, ela é feita tendo base a época da
fotografia.
Em um estudo sobre as fotografias tiradas durante o Holocausto,
Marianne Hirsch (1999) explica que tanto as fotografias que serviram ao apelo
público quanto aquelas reservadas ao convívio familiar representam um momento
da história da humanidade que muitas pessoas desejam esquecer. A autora
identifica essas fotografias através dos termos Postmemory e Heteropathic
77
Memory and Identification (Pós-memória e Memória e Identificação Heteropática).
Segundo a autora, Postmemory,
As I conceive it, postmemory is not an identity position, but a space of remembrance, more broadly available through cultural and public, and not merely individual and personal, acts of remembrance, identification, and projection. It is a question of adopting the traumatic experiences – and thus also the memories – of others as one’s own, or more precisely, as experiences one might oneself have had, and of inscribing them into one’s own life story. 30 (Hirsch, 1999: 8-9)
Dentro dessa concepção, Hirsch explica que, as pessoas fotografadas nem
sempre são as mesmas que sobreviveram ao Holocausto e puderam se rever. Às
vezes, são familiares das vítimas ali representadas ou a própria sociedade quando
se depara com as publicações das fotos em jornais ou revistas, etc. Dessa
maneira elas não fazem parte da memória imediata daquele acontecimento, mas
se inserem nesse cenário apresentado pelas fotos, transformando-o em sua
própria memória, como uma memória tardia ou posterior. No caso de Ben vemos
que ele não está fotografado, é sua família anterior que está na foto. Esse
confronto de gerações, a de seus pais e a sua própria, reflete o quanto a memória
tardia que ele adquire do fato influencia sua vida. Quando as fotos são reveladas
ao olhar de quem não participou diretamente do Holocausto, elas se inserem em
um novo momento histórico, o da lembrança daquele acontecimento que ao
mesmo tempo o trás de volta à contemporaneidade para que um novo olhar possa
30 Da maneira como eu entendo isso, postmemory não é uma posição de identidade, mas um espaço de lembrança, mais amplamente disponível através do cultural e do público, e não só meramente do individual e do pessoal, atos de lembrança, identificação, e projeção. É uma questão de adotar as experiências traumáticas – e também as memórias – dos outros como dela própria, ou, mais precisamente, como experiências que alguém poderia ter tido, e inscrevê-las em sua própria história de vida. (m/ tradução)
78
ser dado. O outro termo utilizado pela autora para falar sobre as fotografias,
Heteropathic Memory and Identification, implica em uma relação mais próxima da
fotografia e das pessoas que a vêem. Nas palavras de Hirsch, “Heteropathic
memory (feeling and suffering with the others) means, as I understand it, the ability
to say, ‘It could have been me; it was me also,’ and, at the same time, ‘but it was
not me.’”31 (Hirsch, 1999: 9). Seria uma relação mais familiar ou grupal diferente
da relação existente que o termo Postmemory encerra. Como exemplificação
desse termo, podemos retomar o que Ben comenta sobre o leite pingando do seio
de sua mãe e isso, sob seu olhar adulto, revela a dor que a mãe possa ter sentido
por ocasião daquele ato. Ben retoma da fotografia um momento da história que
não está lá, fotografado juntamente com seus dois irmãos, mas que a data
exposta na parede da foto revela.
Para Hirsch, em ambos os casos, Postmemory e Heteropathic
Identification, há uma distância enorme que deve ser transposta com o objetivo de
conectar o antes e o agora, porém, precisamente em se tratando do Holocausto,
essa ponte não pode ser feita. Há uma monumental e imensurável distância, de
acordo com a autora, que permanece mesmo entre as pessoas que, fazendo parte
do segundo termo explicado por ela – Heteropathic Identification –, tentam
transpô-la como no caso da segunda personagem Ben, que nisso não obtém
sucesso. Além das observações feitas pela autora, Salman Rushdie (1992), na
primeira parte de seu livro Imaginary Homelands, reflete sobre uma fotografia de sua
casa na Índia. Sua reflexão serve como apoio ao que Hirsch coloca como um
passado que pode ser tomado como nosso e sobreposto ao nosso presente sem
31 Memória heteropática (sentir e sofrer com os outros) significa, na maneira como eu a entendo, a capacidade de dizer, ‘Poderia ter sido comigo; foi comigo também,’ e, ao mesmo tempo, ‘mas não era eu.’
79
que necessariamente esse passado substitua o presente. Rushdie diz que aquela
foto pendurada na parede não é um passado estrangeiro e sim um presente que
deve ser visto como estrangeiro: “But the photograph tells me to invert this idea; it
reminds me that it’s my present that is foreign, and that the past is home, albeit a lost
home in a lost city in the mists of lost time.”32 (Rushdie, 1992: 09). Essa inversão de
olhar é também o que sugere Hirsch, pois uma vez que se olha como algo que
também é seu, que faz parte de seu arcabouço histórico, fica mais evidente como o
passado e o presente não possuem ou podem possuir uma ponte para uni-los –
afinal eles são a mesma coisa em dimensões temporais que se complementam.
Paralelo à dificuldade em lidar com a perda de seus dois primeiros
filhos, o outro sofrimento dos pais de Ben pode ser observado tendo em vista a
incapacidade psicológica que eles tiveram em nomear seu terceiro filho, com
medo de que o anjo da morte o levasse: “They hoped that if they did not name me,
the Angel of death might pass by. Ben, not from Benjamin, but merely ‘ben’ – the
Hebrew Word for son.”33 (FP: 252). Por isso ele é simplesmente Ben, o filho
inominado.
Além da questão do luto, percebemos outra questão também bastante
marcante no texto – a dificuldade de reestabelecimento de um sentimento mais
humano pode ser observada nesse núcleo familiar. Não só os pais de Ben se
vêem a mercê do destino, como também eles não conseguem criar sua trajetória.
A sensação que o leitor tem é que o tempo parou para eles no instante em que a
guerra começou. As lembranças deles estão intrinsicamente ligadas à essa 32 Mas a fotografia me diz para inverter essa idéia; ela me lembra que meu presente é que é estrangeiro, e que o passado é meu lar, embora um lar perdido em uma cidade perdida na névoas de um tempo perdido. (m/ tradução) 33 “Tinham a esperança de que se não me dessem um nome, o anjo da morte passaria por mim. Ben, não Benjamin, mas simplesmente ben – a palavra hebraica para filho.”
80
guerra. Não há como se desvencilhar dessas lembranças. Há uma comunhão de
episódios na obra – o luto “anormal” e o silêncio dos pais de Ben – que permitem
fazer uma análise da constituição da memória desses sobreviventes do
Holocausto em um ponto de partida que parece aniquilar a condição humana.
A incapacidade dialógica dos pais de Ben pode ser estudada de acordo
com Ernst Van Alphen em seu texto sobre experiência, memória e trauma. De
acordo com o teórico,
In different ways they have argued that experience is not so direct and unmediated as is usually assumed, but is fundamentally discursive. Experience depends on discourse to come about; forms of experience do not just depend on the event or history that is being experienced, but also on the discourse in which the event is expressed/thought/conceptualized.34 (Alphen, 1999: 24).
Retomando o que diz Walter Benjamin a respeito do que representa a
experiência para os sobreviventes das guerras, em que ele se situa
particularmente no pós Primeira Guerra Mundial, a guerra matou a experiência na
mesma proporção que permitiu que o silêncio se fizesse mais presente entre
esses homens, e assim as experiências antes intercambiadas e representantes de
uma época deram lugar a um esvaziamento histórico muito grande. Para Benjamin
os combatentes voltaram silenciosos dos campos de batalha sem ter de fato o que
narrar. Já Gillian Rose estuda as conseqüências da guerra do ponto de vista do
luto, o luto “anormal” e o ‘luto inaugurado” explicados no início deste capítulo e
34 De diferentes formas eles têm discutido que a experiência não é tão direta e não mediada como é comumente assumida, mas é fundamentalmente discursiva. A experiência depende do discurso para vir à tona; as formas de experiência não dependem somente do evento ou da história que esteja sendo experimentado, mas também do discurso no qual o evento é expressado/pensado/conceitualizado. (m/ tradução)
81
que é, de certa forma, reforçado pelo que Avelar estuda no que diz respeito
particularmente à narrativa sobre o luto que se constituiu na América Latina pós-
ditadura e que contribuiu, sem dúvida, para os estudos sobre o luto de uma
maneira mais abrangente. Ernst Van Alphen por sua vez, entende que a
experiência, aquela experiência benjaminiana, depende da elaboração discursiva
para vir à tona. Fica evidente que todos os autores abordados acima estejam
falando basicamente as mesmas coisas, ainda que o primeiro deles tenha escrito
na primeira metade do século XX e praticamente apenas no final dele os outros
autores tenham se manifestado. O que interessa ao estudo deste trabalho é
entender que, de acordo com eles, o fim da experiência intercambiada, como bem
explicou Benjamin, trouxe conseqüências muito devastadoras e que,
principalmente a Primeira Guerra deve ser responsabilizada por elas porque
acabou diminuindo, ou talvez excluindo, a troca de vivências que constrói todo o
universo dos acontecimentos e que principalmente serve como artefato histórico
para estudos posteriores. Sem a narrativa coletiva ou individual do fato, a memória
fica restrita a quem o vivenciou e, quando este indivíduo morre, a história morre
com ele.
Alphen se propõe a estudar não a experiência em si, na troca das vozes
que a compõe, como percebemos em Walter Benjamin, mas ele se preocupa com
a experiência fracassada, aquela que para ele compõe o cenário histórico
contemporâneo: “To take my case, I shall focus not on experience but rather on
what I call ‘failed experience’, that is, trauma.”35 (Alphen, 1999: 25) O autor explica
que seu interesse pelo trauma se deve ao fato de que precisamente esse trauma
35 No meu caso, devo focalizar não na experiência, mas naquilo que chamo de “experiência fracassada”, que é o trauma. (m/ tradução)
82
impossibilita a experiência e conseqüentemente a memorização de um
acontecimento. Isso interessa ao trabalho, pois Alphen usa como exemplo dessa
situação de desnorteio os sobreviventes do Holocausto e sua incapacidade de
expressar ou narrar seu passado. Essa incapacidade se aplica muito bem aos
pais de Ben.
O autor apresenta quatro problemas que envolvem os sobreviventes do
Holocausto em relação à experiência e sua respectiva representação:
1. Ambiguous actantial position: one is neither subject nor object of the events, or one is both at the same time; 2. total negation of any actantial position or subjectivity; 3. the lack of a plot or narrative frame, by means of which the events can be narrated as a meaningful coherence; 4. the plots or narrative frames that are available or that are inflicted are unacceptable, because they do not do justice to the way in which one partakes in the events. 36(Alphen, 1999: 28)
O primeiro problema apresentado por ele consiste justamente na
dificuldade dos sobreviventes de se identificarem como o sujeito ou o objeto da
guerra. De acordo com o relato de uma mulher, mãe, apresentado por Alphen em
seu texto, ela se coloca como alguém que não era ela no momento em que a
mesma “permitiu” que seu bebê fosse levado de seu colo pelos alemães nazistas.
Há a dificuldade de se expressar como alguém que participou daquele horror.
Claro, como mãe ela pensa, no mínimo, em salvar seu bebê. Ela nega sua
participação na morte de seu filho ao mesmo tempo em que se culpa pelo
36 1. Posição de ação ambígua: a pessoa não é nem o sujeito nem o objeto dos eventos, ou a pessoa é as duas coisas ao mesmo tempo; 2. total negociação de qualquer osição acionada ou subjetiva; 3. escassez de um enredo ou estrutura narrativa, pelos meios dos quais os eventos podem ser narrados como coerência significativa; 4. os enredos ou estruturas narrativas que estão disponíveis ou que estão infligidos são inaceitáveis, porque não fazem justiça à forma como alguém participa dos eventos. (m/ tradução)
83
acontecimento. A confusão que a guerra provoca não permite que esses
sobreviventes consigam elaborar um discurso que represente a experiência vivida
por eles. A negação do eu, como no relato da mulher, mostra a dificuldade em
elaborar um passado que possa ser rememorado ou um passado do qual essas
pessoas se sintam parte. Essa incapacidade narrativa gera conseqüências que
vão além da desorientação psicológica, pois de muitas formas ela colabora para
que os vários fatos atrozes sejam omitidos e assim a história coletiva acaba por
ser constituída em fragmentos. No caso dos pais de Ben, percebe-se no seu
silêncio a negação de seu status de sujeito, ao mesmo tempo em que assumem
esse status ao conservarem o fato.
Já o segundo problema apresentado por Van Alphen nega a
subjetividade humana e reduz o homem a nada. Sob essas circunstâncias, nada
pode fazer o ser humano. Sob o poder dos nazistas, o máximo que eles podiam
fazer era acatar as decisões impostas e viver como animais à espera do final do
dia, sem perspectiva alguma do amanhã. Muitas vezes, esse acatar de decisões
significava sacrificar seu irmão para tentar salvar a si próprio. O filme Cinzas da
Guerra37 (The Gray Zone - 2003) do diretor Tim Blake Nelson, mostra com clareza
o trabalho dos judeus nos crematórios do 12º comando especial de Auschwitz,
que viviam o torturante dilema moral de matar seus companheiros em troca de
mais alguns meses de vida. Além desse “egoísmo” em busca da sobrevivência,
Alphen explica esse segundo problema como uma falta de escolha, os homens
dos crematórios não escolhiam matar, pelo contrário eles não queriam era morrer:
o sobrevivente do Holocausto nas mãos dos nazistas acabava por matar seu
37 THE GRAY zone. Direção: Tim Blake. Intérpretes: David Arquette; Steve Buscemi; Harvey Keitel; Natasha Lyonne;Mira Sorvino. California Films, 2003. 1 fita de vídeo (90 min), VHS, son, color, legendado.
84
interior e essa morte resultava na falta de narrativas memoráveis. Viver como se
não houvesse o amanhã deveria ser o lema dos campos de concentração. Não
havia esperança de um dia melhor. Isso fazia com que quem vivia nos campos
estabelecesse uma memória fugaz. Um artifício de defesa contra a permanência
de suas lembranças de outrora. Alphen diz que: “A killed self has no experiences,
not to mention narratable memories.”38 (Alphen, 1999: 33). Isso também se aplica
aos pais de Ben que sobreviveram ao campo, ainda que não tenham sobrevivido
às lembranças de antes do Holocausto, e tenham negado sua subjetividade
negando-se a falar de suas perdas.
Como terceiro problema relacionado ao trauma sofrido pelos
sobreviventes, Alphen denomina o Holocausto como uma narrativa do vazio. Para
ele a experiência de acontecimentos não é um fato isolado e sim um
acontecimento que detém uma história anterior e que continua no presente. Pelo
menos, segundo ele, é assim que experimentamos e representamos os
acontecimentos e os transformamos em acontecimentos com uma seqüência
contínua:
Events never stand on their own. We experience events not as isolated happenings, and happenings cannot be experienced in isolation. Events always have a prehistory, and they are themselves again the prehistory of events that are still going to happen. I do not suggest that this continuity is present in reality. Reality is rather a discontinuous chaos. It is, however, the form in which we experience and represent events that turn events into a continuous sequence. We experience events from the perspective of narrative frameworks in terms of which these events can be understood as meaningful.39 (Van Alphen, 1999: 33)
38 Um ego morto não tem experiências, nem tão pouco memórias narráveis. (m/ tradução) 39 Os eventos nunca permanecem sozinhos. Não os experimentamos como acontecimentos isolados, e os acontecimentos não podem ser experimentados isoladamente. Os eventos sempre têm uma história anterior, e eles mesmos são novamente a história anterior dos eventos que ainda estão por vir. Não estou sugerindo que essa continuidade esteja presente na realidade. A realidade é, antes, um caos descontínuo. Entretanto, a forma
85
Ainda em relação ao terceiro problema, o autor conclui que, justamente
pelo fato de o Holocausto não fazer parte de nenhuma estrutura convencional,
torna-se praticamente impossível falar em experiência e conseqüente lembrança
ou representação dela. A citação de Van Alphen mostra como, no vazio da pós-
experiência de Auschwitz, os pais de Ben levam ao seu dia-a-dia a continuidade
do seu deslocamento social.
Finalmente, o autor apresenta o último problema levantado como sendo
o Holocausto a negação de estruturas narrativas, o que reforça o argumento do
parágrafo anterior. Ainda que a convivência nos campos de concentração tenha
sido reduzida às suas respectivas representações em museus e memoriais, elas
ainda se fazem bastantes presentes, irreconhecíveis e inaceitáveis por parte dos
sobreviventes. Não há uma integração que comungue passado, presente e futuro
e isso gera conseqüências muito devastadoras. Como foi explicado
anteriormente, a sensação da morte do eu permanece, e essas pessoas que
sobreviveram aos horrores da guerra vivem como se estivessem mortas,
incapazes de se relacionarem com as outras – e continuarem a viver como mortas
é no mínimo não-narrável. Por isso entendemos como fora difícil para os pais de
Ben se relacionarem com as outras pessoas, uma vez que eles não conseguiam
intercambiar suas experiências.
As palavras de Van Alphen servem como exemplo de como pode ter
sido o passado dos pais da personagem Ben. Embora o texto de Anne Michaels
não mencione como eles sobreviveram ao Holocausto, a narrativa de seu estilo de
como experimentamos e representamos os eventos é que os torna uma seqüência contínua. Nós os experimentamos através da perspectiva de estruturas narrativas nos moldes dos quais esses eventos podem ser entendidos como significativos. (m/ tradução)
86
vida mostra que eles eram pessoas isoladas dos outros e que tinham medo de se
relacionarem mesmo vivendo em um país tão distante da guerra, o Canadá: “Our
neighboors soon understood my parents wanted privacy. My mother nodded a
hello as she scurried in and out. My father parked as near as he could to the back
door, which faced out the river…”40 (FP: 243). Parece ao leitor que os pais de Ben
passaram por todos aqueles problemas enumerados por Alphen. Eles ou
perderam a memória de suas vidas do antes da guerra ou preferiram silenciar.
Eles também parecem ter sofrido com a aniquilação da condição humana nos
campos de concentração e perdem igualmente a confiança nos outros. Por
exemplo, no caso da enchente que houve no local em que os pais de Ben
moraram logo que chegaram ao Canadá, em conseqüência da qual o governo
canadense deu uma quantia em dinheiro para cada família que tinha sido
devastada pela águas, percebemos que seus pais não conseguiram entender ou
aceitar tal ajuda, que talvez parecesse artificial a seus olhos:
The government distributed restitution payments to those whose house had been washed way. It was only after my parents died that I discovered they hadn’t touched the money. They must have been afraid that someday the authorities would ask for it back.41 (FP: 246).
Os pais de Ben não tocaram no dinheiro porque tinham medo do que poderia
acontecer a eles posteriormente, já que eram estrangeiros. Essa atitude serve
como um reforço do que tem sido dito a respeito dos sobreviventes do Holocausto 40 “Nossos vizinhos logo entenderam que meus pais queriam privacidade. Minha mãe acenava com a cabeça uma saudação quando corria para fora e para dentro. Meu pai estacionava o carro o mais próximo possível da porta dos fundos, que dava para o rio, ...” 41 “O governo distribuiu pagamentos de restituição àqueles cujas casas forma destruídas. Só depois da morte de meus pais descobri que não haviam tocado no dinheiro. Devem ter ficado com medo de que algum dia as autoridades fossem pedi-lo de volta.”
87
que não puderam reconstruir suas vidas, seja do ponto de vista material, seja do
ponto de vista psicológico. Além disso, os pais de Ben, assim como aquela mulher
que perdera seu filho no gueto, como relata Van Alphen, perderam seus dois filhos
e, de acordo com este, essa perda parece bloquear a comunicação deles com o
mundo pós-guerra. A redução do homem ao presente, ao hoje, parece também ter
sido imposta àquele casal, pois eles estavam sempre remexendo em malas e
papéis que poderiam narrar por eles. Era um álbum vivo de suas vidas.
JAKOB e BEN
Tanto a explicação teórica de Rose no que concerne o estudo do luto
das pessoas que não puderam enterrar seus mortos e que conseguem – ou não –
lidar com esse fato, quanto o trabalho de Van Alphen que estuda como a memória
dos sobreviventes do Holocausto opera ainda que de maneira fragmentada,
contribuem para estabelecer um vínculo entre as personagens Jakob e Ben
mesmo que esse vínculo seja efetuado apenas para mostrar as divergências que
operam na vida de ambos.
A história de Ben é um pouco diferente da história de Jakob. Seus pais
conseguiram escapar dos campos de concentração, mas perderam dois filhos na
guerra. O silêncio deles nunca permitiu que os fantasmas do Holocausto fossem
devidamente enterrados, embora Ben só pudesse entender isso após a morte do
pai. Ben não consegue romper com seu sentimento de perda porque durante toda
sua vida ele não recebeu de seus pais explicações, já que, também, eles mesmos
não conseguiram romper com o luto “anormal”. Também após a morte de seu pai,
88
Ben vai à Grécia para ajudar Maurice Salman, amigo incomum de Jakob e dele
próprio, a recuperar as anotações de Jakob. Ben e sua esposa Naomi não vivam
bem naquela ocasião e ela havia sugerido uma separação, o que a ele soara
razoável. Idhra, a ilha grega onde Jakob passara seus últimos dias, o acolheu
muito bem e, em meio a algumas escavações no amontoado de coisas de Jakob,
ele consegue encontrar o diário de memórias. A descoberta de que, apesar de
Jakob também ter sofrido com os horrores da guerra, ele conseguira se redimir e
aceitar a ausência do outro contribuiu em parte para que pequenas modificações
pudessem ser feitas na vida de Ben. Nas anotações de Jakob, Ben encontra
poemas que haviam sido escritos para Michaela, encontra as esperanças de um
futuro melhor e a construção de uma nova identidade pluralícia. Através do ato de
escrever suas memórias e deixá-las assim registradas para a posteridade, Jakob
contribui em grande escala para romper finalmente com todas as barreiras de sua
história. A escrita tem um tom redentor em sua vida, pois a partir dela ele enterra
os fantasmas que o assombraram durante sua existência, registrando suas
memórias para que elas não se perdessem com o tempo. Entretanto, o mesmo
não pode ser dito de Ben, pois seu papel de leitor faz com que ele se depare com
uma realidade que, mesmo semelhante a sua, não pode ser imitada. Ainda que
ele interprete nas palavras de Jakob as soluções para seus problemas ele será
apenas um leitor das memórias de Jakob assim como foi apenas um ouvinte do
silêncio de seus pais. Ele não registrou sua vida, porque tudo para ele é de
segunda mão. Segundo Philippe Artières (1998), a prática de arquivar os fatos de
nossas vidas faz parte de um arquivamento maior, uma escrita pública que não se
perde com o passar do tempo:
89
Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem uma função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte. (Artières, 1998: 32)
Essa escrita não faz parte da vida de Ben, pois ela não é feita, mesmo porque
suas experiências não o fazem refletir sobre seu passado, não auxiliando na
superação de suas perdas.
De volta ao Canadá, Ben tenta restabelecer a relação conjugal com sua
esposa Naomi. Ele muda seus pensamentos em relação ao relacionamento de
seus pais, o que o leva a tentar aplicar esse aprendizado lido nas memórias de
Jakob em seu próprio relacionamento. Essa mudança não é clara no texto, o que
faz com que o leitor pense que ela só se tornará possível se Ben realmente fizer a
tentativa. Caso Ben consiga mudar, ele também estará rompendo com as
barreiras do luto “anormal” e estará conseguindo caminhar em direção ao luto
“inaugurado”. A posição de Ben corresponde, de acordo com Rose (apud Parry,
2000) a uma definição de pós-modernismo – uma rejeição da razão que se liga à
tradição do pensamento do qual se deve libertar. Uma solução para essa rejeição
seria o que Jakob conseguira fazer, uma reorganização do velho com a
possibilidade de novas relações. Rose levanta também a importância de se
pensar nesse processo de transição do “luto anormal” para o “luto inaugurado”
sem se deixar levar somente pelo individual ou pelo coletivo. Fugitive Pieces
consegue esse desenvolvimento porque apresenta vidas de sobreviventes do
Holocausto sem se sucumbir ao singular.
90
Relacionar Jakob e Ben é possível porque na vida de ambos houve
mortes que não puderam ser lamentadas. Jakob perde seus pais. Já a perda de
sua irmã não traz a certeza da morte. Isso se transforma em um pesadelo que o
acompanha até sua maturidade. A perda de Ben é mais complexa, ela reflete uma
outra perda, aquela que seus pais não souberam digerir. Embora haja
semelhanças entre Jakob e Ben, eles contribuem para a constituição da
identidade judaica diaspórica de maneira diferente. Jakob não vive sua cultura, da
mesma forma que Ben, ele não fala dela a não ser quando Athos o faz lembrá-la.
Já Ben vive sua condição judaica, principalmente, cada vez que se lembra do
sofrimento e do silêncio de seu pai.
91
4: A ESTAÇÃO INTERMEDIÁRIA
Este capítulo pretende discutir a desconstrução da identidade cultural na
pós-modernidade pelo viés da memória. Essa questão se encontra intrinsicamente
ligada a processos políticos, sociais e econômicos e também a modificações no
que concerne o estudo das ciências humanas, mais precisamente após a 2ª
Guerra Mundial, com o surgimento dos Estudos Culturais na Inglaterra. Esse
processo se encontra dentro de outro, chamado globalização, que teve e ainda tem
um resultado cultural muito forte. Entende-se que a força de um processo chamado
globalização tem o efeito de deslocar, romper e fragmentar aquilo que antes era
entendido como unificado e fixo – as identidades centradas e fechadas de uma
cultura nacional, como bem observou Stuart Hall:
A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (Hall,2003:07).
Para o autor, o que está em jogo na questão das identidades é o próprio jogo de
identidades uma vez que elas se tornaram uma celebração móvel. Em um ensaio
intitulado Cultural Identity and Diaspora (1994), Stuart Hall discute principalmente
como se deve pensar a identidade cultural hoje depois do processo de
descolonização. Para ele há duas maneiras de se fazer isso. A primeira consiste
em pensá-la como uma identidade dividida, imposta e artificial. De que maneira?
Ora, por ser imposta ela deixa o indivíduo estático, imutável como sendo uma
imposição do colonizador. Dividida porque o indivíduo precisa viver entre a sua
92
cultura e a do colonizador e principalmente viver as duas culturas. Esse sempre foi
o ponto de vista do colonizador, que de certa forma se aplica também a qualquer
outro povo que se sinta oprimido pela imposição cultural do Outro. A segunda
maneira levanta um ponto significativo de mudança nesse paradigma, um ponto
que faz a diferença crucial entre esta e a outra maneira de se estudar a identidade
cultural. Essa mudança consiste em pensar a identidade como algo que se torna e
não algo que “é”. Há rupturas e descontinuidades que devem ser levadas em
consideração. As identidades culturais vêm de algum lugar e têm histórias. Elas
são assunto no jogo da história, da cultura e do poder. É apenas do segundo ponto
de vista que se devem entender as mudanças no estudo das identidades. A idéia
de alteridade muda a concepção de identidade cultural. Para Hall (1994), a
identidade cultural não é uma essência fixa, não é um espírito universal e
transcendental, não significa um por todos, não tem uma origem fixa da qual
partimos em direção a um fim e para a qual retornamos, não é meramente um
fantasma. A identidade é alguma coisa viva que tem histórias que levam a efeitos
reais, matérias ou simbólicos. Ela é construída pela memória, fantasia, fatos,
narrativas ou mitos. É um posicionamento, um ponto de identificação instável. Para
o teórico, é importante se pensar a diferença como intrínseca à continuidade. A
inscrição da diferença é específica e crítica. Não deve ser tomada como uma
representação cuja estrutura é binária.
Tomando como base teórica a discussão de Stuart Hall sobre as
transformações ocorridas no que se entende por identidade na pós-modernidade,
analisaremos aqui de que maneira a personagem Jakob serve como um exemplo
de identidade formada na multiplicidade cultural provocada, neste caso, pela
93
ocorrência da Segunda Guerra Mundial. A personagem possui características que
a inserem no cenário contemporâneo e dessa forma é possível estudar a
constituição identitária de Jakob feita a partir das várias influências sofridas por ele
em todos os ambientes geográficos pelos quais ele passou durante sua vida. Sua
identidade não se faz na singularidade da cultura judaica. No pós-guerra, momento
da história representado no romance que foi tomado como corpus deste trabalho, o
homem é apresentado por seus estudiosos como o resultado das mudanças em
todos os setores da sociedade: um homem sem referência soberana e unilateral
como aquele que serviu de base do estudo cartesiano, um homem que se
apresenta fragmentado e que não pode mais ser mostrado em sua completude,
visto que ele influencia outras culturas na mesma proporção que sofre influências
delas. Essas influências sofridas pelo homem contemporâneo são apresentadas
por Hall como o resultado das descolonizações que o mundo presenciou no final
do século XIX e durante quase todo o século XX. Uma vez responsáveis pelo
mosaico cultural que se forma no interior de um indivíduo, essas influências
determinam a identidade desse indivíduo. De acordo com Hall (2003), em seu
estudo sobre a identidade cultural na pós-modernidade, o homem contemporâneo
não deve ser visto mais como nos séculos XVIII e XIX porque o cenário histórico
do século XX não permite pensar em um homem racional, soberano e dividido em
mente e matéria. As conseqüências das guerras mundiais e das descolonizações
tiveram influência na mudança desse paradigma. Hall explica, tendo como base
essas descolonizações que fizeram parte do cenário dos séculos XIX e XX, que a
identidade cultural de um povo colonizado não é algo definido pelos seus
colonizadores, mas sofre modificações, como também propicia mudanças no outro.
94
O homem contemporâneo não segue mais a linha de pensamento que o explicava
a partir do verbo “ser”, sendo explicado agora, a partir do verbo “tornar-se” – ou
dito de outra forma “vir a ser”. Essa mudança de pensamento ocorre porque dentro
da constituição da identidade cultural pós-moderna há rupturas e descontinuidades
que fazem com que elas sejam pensadas como algo que tem histórias e efeitos
reais; como identidades que são construídas pela memória, pelos fatos, pelas
narrativas e pelas fantasias; e que se torna um dos vários posicionamentos
possíveis servindo à instabilidade da constituição da identidade. Para Hall, as
identidades culturais devem ser pensadas nesse eixo de tensão que existe entre
ser e tornar-se, entre o que é fixo e o que se faz na fluidez.
Antes de nos aprofundarmos nesta questão do “tornar-se”, que explica
de uma certa forma a situação da personagem Jakob aqui estudada, é necessário
fazer um levantamento histórico das transformações ocorridas no que se entende
por identidade. O homem pós-moderno tem uma consciência do nascimento e da
morte da concepção de sujeito moderno e justamente por ter essa consciência é
que ele se vê jogado à mercê da História, como será esclarecido a seguir.
Para Hall, a concepção de sujeito nasce com o Humanismo
Renascentista e com o Iluminismo do século XVIII, quando o homem é visto como
o centro do universo. O indivíduo é, na época, considerado como soberano,
racional, como um homem explicado pela ciência, apenas pela ciência, e de acordo
com essa concepção ele é dividido em mente e matéria como coisas distintas. Já a
morte dessa concepção acontece quando as ciências sociais passam a perceber
que esse sujeito já não é mais capaz de ocupar um lugar dentro desse tipo de
sociedade, criticando, dessa forma, a individualização racional do sujeito
95
cartesiano. Nesse deslocamento temporal do Iluminismo para o século XX e com a
transformação marcante efetuada pelas duas grandes guerras, o homem perdeu
seu ponto de referência individual e social e se viu jogando com o próprio limite de
sua construção identitária. Se levarmos em consideração principalmente os povos
do leste europeu e os judeus do pós-guerra, perceberemos que esse homem
contemporâneo não pôde mais se fixar em seu local de origem porque ele
percebeu a fragilidade e a instabilidade desse lugar, assim como não pôde
encontrar na história um fim para se agarrar, porque o conceito de telos que se
vincula à história, um fim redentor ao qual a história pretendia chegar, perdeu seu
valor no jogo das relações humanas. Com essas transformações, os estudiosos
da cultura passaram a perceber como os problemas sobre identidade têm um
vínculo muito estreito com a questão cultural.
Para entender o descentramento do sujeito cartesiano citado
anteriormente, quando as ciências humanas deixam de creditar ao homem uma
importância soberana, é preciso recorrer às três concepções de identidade, que
explicam o sujeito em seu respectivo tempo, apresentadas por Hall em sua obra:
a) sujeito do Iluminismo, b) sujeito sociológico e c) sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. (...) A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava.
96
(...) O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. (...) Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. (Hall, 2003: 10-12)
Dentre essas três visões de sujeito, a última é a que mais interessa aqui, visto que
as transformações que acompanharam a pós-modernidade reforçam-na mais de
perto. A idéia de descontinuidade identitária dentro do processo de globalização
permite pensar no processo de fragmentação e seus possíveis resultados. Essa
idéia teve início com a própria modernidade e apresenta suas conseqüências
sobre as identidades culturais, de modo a desintegrá-las ou reforçá-las ao mesmo
tempo em que permite o surgimento de novas identidades.
Ao discutir a descentralização do sujeito cartesiano e o espaço ocupado
pela identidade cultural na pós-modernidade, Hall revela a fragilidade do conceito
de espaço. O espaço passa a ser visto como um conceito móvel, oscilante, e
essas identidades não procuram suas origens em um espaço fixo, mas em seu
diálogo com as outras áreas do conhecimento – História, Filosofia, Sociologia,
Antropologia – diminuindo as fronteiras existentes entre elas. Nesse diálogo, as
identidades se favorecem percebendo que podem reconstruir seu passado
histórico de uma maneira contrária à arbitrariedade da imposição cultural. De que
forma? A partir do momento em que a identidade cultural passa a ser estudada
não apenas vinculada à origem e por isso autônoma no que diz respeito à sua
formação, mas como tendo um forte reforço no que diz respeito às outras áreas do
conhecimento, seus estudiosos conseguem retirar os subsídios que interessam ao
97
estudo da identidade na contemporaneidade. Podemos exemplificar, tomando
como amostra, os países colonizados. Não importa quando estes países
tornaram-se nação, importa o sentimento que o tornar-se nação revela. A
identidade cultural se firma e afirma como tal não apenas pela origem daqueles
povos colonizados, mas pelas influências que os colonizadores tiverem sobre
eles. As conseqüências dessas descolonizações não se fazem como o marco de
um novo estado, pelo contrário, se fazem como reforço de um desejo anterior à
consumação desse estado, já que o processo de independências revela o desejo
anterior que determinado povo tem de se tornar tão soberano quanto seu antigo
colonizador. De acordo com a história das descolonizações, vemos que há um
anseio pela liberdade de expressão cultural de quem se viu colonizado por muito
tempo – é claro que esse anseio não foi o único responsável pelas
independências, a história também deixa claro os interesses econômicos e
políticos dos envolvidos no processo.
O texto de Hall apresenta mais de perto a questão desse
descentramento do pensamento voltado pela unidade do sujeito relacionando-o
com a mudança do cenário histórico durante a modernidade. Em virtude de todas
as descolonizações antes ou depois das guerras e das diásporas que as
sucederam, esse cenário histórico já não se torna o local de origem da identidade
e sim o espaço ocupado por ela. Analisado como espaço, o cenário histórico se
torna também, assim como a identidade cultural, um espaço oscilante. Esse
espaço passou a predominar por ter um significado mais flutuante que o de lugar.
O conceito de lugar se aproxima mais do conceito de raiz ou pertencimento.
Podemos exemplificar essa mudança tomando como modelo, novamente, Jakob.
98
Ele pertencia a um lugar fixo, a Polônia, sua terra natal. Entretanto sua identidade
cultural não se fez na Polônia, pelo contrário, ela se fez em todos os espaços
móveis que ele ocupou – a Grécia e o Canadá. Da Polônia ele tinha apenas a
referência familiar, nem mesmo a referência religiosa, referência essa que ele
readquiriu sob a influência grega e canadense de seu koumbaros.
Essa mudança de paradigma ocorreu tendo em vista a própria fluidez da
sociedade, como bem observou o sociólogo Anthony Giddens:
Em condições de modernidade, o lugar se torna cada vez mais fantasmagórico: isto é, os locais são completamente penetrados e moldados em termos de influências sociais bem distante deles. O que estrutura o local não é simplesmente o que está presente na cena; a ‘forma visível’ do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza. (Giddens,1991:27)
Essas relações distanciadas são substancialmente importantes na constituição de
um procedimento inerente a desconstrução da identidade – o procedimento da
memória. Uma vez que se entende essa constituição como um artefato rico no
que se refere à identidade, a memória será o fio condutor da elaboração de seu
próprio discurso. Dentro da memória estará toda a relação entre lembrar e
esquecer que constitui esse processo. Retomando a explicação dada por Benedict
Anderson, em Imagined Comunities (1991), essa questão da memória permeia
todo o discurso que se faz para entender como a identidade cultural se transforma
em seu interior, transformando igualmente quem a influencia. Assim como Hall,
Anderson dá como exemplo dessa influência cultural os países colonizados.
O homem contemporâneo passou a perceber que sua identidade
nacional era formada e transformada no interior de sua representação, a cultura. A
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cultura nacional foi uma característica marcante na industrialização e um forte
dispositivo da modernidade. Esse modo de construir sentidos, chamado de
cultura, produzia sentidos, também, sobre a nação, criando identidades que
Anderson (1991) chamou de comunidades imaginadas. Essa forma de se pensar
a nação como produto de uma identidade cultural se prendia à memória do
passado, a um desejo de viver em conjunto e à perpetuação da herança.
Anderson explica a maneira como os representantes de certa cultura agiam para
falar de seus povos. Eles retroagiam no tempo e explicavam seus costumes e
atitudes de acordo com seus antepassados, incluindo suas próprias vozes para
complementar o discurso. Isso acontecia como uma forte tentativa de não deixar
morrer suas tradições; o que eles não percebiam ou preferiam não perceber é que
mesmo suas tradições estavam sendo recontadas sob influências de seus
colonizadores.
Entretanto, com as modificações geográficas ocorridas em decorrência
das guerras do século XX, percebeu-se a inaplicabilidade desses fatores, ou seja,
era impossível recorrer ao passado exclusivamente para rever a memória perdida.
A dispersão de alguns povos, a destruição de alguns estados e a fragilidade do
conceito de lugar favoreceram a possibilidade de se reconstruir um povo ou uma
nação sob forte influência de outras culturas. Segundo Hall, as culturas nacionais
devem ser vistas como um dispositivo discursivo que representa a diferença como
unidade ou identidade, sendo essas identidades heterogêneas e complexas.
A construção da identidade passou a se beneficiar da memória coletiva
ou individual que serviu de subsídio para sua construção e/ou desconstrução,
relacionando-se mais de perto com as questões históricas e culturais acima
100
mencionadas. A contribuição da memória se faz na medida em que busca na
lembrança das pessoas os fatos vivenciados por elas ou pelos seus
antepassados. Assim, a memória propõe reaver a importância cultural que esses
fatos representam, memória perdida graças à distância temporal entre
acontecimento e o lembrar esse acontecimento e também graças ao
esquecimento proposital que a história tradicional sempre impôs. Existe um quê
de utilidade ao retomar da memória os acontecimentos que originalmente se
tentou esquecer. Essa utilidade se faz presente na desconstrução de discursos
hegemônicos acerca dos grandes fatos que marcaram a humanidade ao longo de
sua história. No que se relaciona à identidade, esse processo de esquecimento,
que na verdade revela mais do que oculta, é o responsável para que haja uma
retomada da importância da memória. A relevância consiste em buscar naquilo
que se tenta esquecer ou omitir os detalhes que completam os fatos. A memória
reconstruída fornece àquelas pessoas que não vivenciaram a história, relatos de
acontecimentos muito importantes para a sua constituição identitária. A escritora
canadense Anne Michaels, em uma entrevista dada ao Jornal do Brasil42, em
1997, por ocasião do lançamento da tradução do livro aqui no Brasil, livro cujo
estudo está sendo desenvolvido neste trabalho, alega que sem utilidade a
memória morre.
Quando as pessoas buscam construir um discurso que as une como um
grupo que comunga os mesmos interesses, é preciso que haja um subsídio
cultural que sirva de alicerce nessa construção. Dentro da memória, esse alicerce
pode ser encontrado e reconduzido para seu lugar já que ele possui toda a
42 MICHAELS, Anne. “Sem utilidade a memória morre”. Jornal do Brasil, sábado, 17 de Maio de 1997. p. 6. entrevista concedida a Cláudia Nina.
101
matéria prima. Retomando o que Benjamin explica sobre o conceito de
experiência como sendo um intercambiar de vozes que constitui um discurso
acerca de qualquer assunto, e que é alimentado pela memória de seus
interlocutores, entendemos que a memória é o próprio alicerce que subsidia a
comunhão de interesses de um grupo que deseja contar ou recontar fatos que
estão dentro da história ou que permaneceram fora dela por algum tempo. É
importante salientar, ainda, que esse alicerce não é tão rígido, imóvel e perene
quanto essa palavra possa querer dizer. Na verdade, a memória oferece apenas
fragmentos da lembrança de maneira parcial. Em outras palavras, de cada um se
tem apenas um lado da história. A contribuição de várias vozes é que vai
sustentar, de fato, o discurso que constrói uma identidade. É por isso que o
conceito de experiência foi tão importante no capítulo em que se estuda memória:
para se entender a necessidade de comungar várias vozes – se não há troca, não
há narrativa, a memória fica sem utilidade. Sendo assim, respeitando a
diversidade, o discurso acerca da identidade que entra na era da pós-
modernidade, quer assim desconstruir a homogeneização cultural da identidade.
Apesar do processo dialético da memória-esquecimento parecer um ato de
simples rememoração, ele vai além dessa busca nostálgica implicando em um
diálogo do antes com o depois.
Segundo a teoria da memória de Bergson (1990), estudada com mais
cautela no primeiro capítulo, encontram-se três tipos de memória: a) a lembrança
pura, aquela que seria a percepção nascente, b) a lembrança-imagem, que
relaciona a lembrança-pura com a percepção e c) a percepção, que é justamente
o resultado desse relacionamento. Para se trabalhar com a questão da memória
102
será mais proveitoso que se atente para o terceiro tipo, apesar de se saber que
eles se relacionam e que não existem individualmente. A percepção se faz
importante aqui porque é ela quem dá cor às rememorações e é ela que permite
que essas rememorações sejam retomadas sem serem simplificadas em sua
busca. Se pensarmos, por exemplo, em fatos que ocorreram durante a Segunda
Guerra Mundial, como o Holocausto, é possível entender o jogo da memória. Hoje,
mais de meio século já se passou e se fazem presentes as várias vozes desse
horror. O mundo inteiro presenciou a guerra e por algum tempo se calou, como foi
explicado no capítulo anterior, em que tanto a questão do luto quanto a questão
do trauma foram essenciais para a discussão desse problema. Mas, a
contemporaneidade e o presente discurso a respeito da identidade cultural, cujos
estudos foram sendo fortalecidos na segunda metade do século XX, retomaram o
problema e reavivaram sua discussão. O fato “Holocausto” não pode ser apagado
da história da humanidade, mas tem sido rasurado ao ser reconstruído. O que se
pretende dizer com rasura, é a impossibilidade de se apagar o Holocausto da
história, e fazer da época uma verdadeira tábula rasa para se começar de novo.
Assim como na antiguidade os palimpsestos detinham as marcas da escrita
apagada e ao receberem novas escritas rasuravam a anterior, as novas versões
das atrocidades da Segunda Guerra Mundial serão suplementos – segundo o
conceito derridiano, elas serão rasuras. As novas versões que recontarão a
Segunda Guerra sempre conterão as marcas da anterior. Ao rever a história
tradicional projetou-se a possibilidade de se ponderar a questão cultural e sua
concomitante discriminação por parte dos historiadores que até então se
dedicavam à parcialidade dos acontecimentos. Dentre o espaço temporal dos
103
acontecimentos e o momento de sua análise, há, inevitavelmente, um
esvaziamento histórico muito grande que permite sua reconstrução do ponto de
vista das minorias. A lembrança-pura e a percepção dos fatos estão ligadas por
um tênue fio temporal. Daí a dialética do esquecimento / lembrança que constitui a
memória.
Para se lembrarem dos horrores da guerra, foi preciso que os judeus se
esquecessem dela primeiro. Ao reaver suas lembranças, as pessoas que sofreram
direta ou indiretamente com o Holocausto fazem seus relatos como tentativa de se
organizarem como aquele grupo que se identifica com o não identificável: as
atrocidades nazistas. Em outras palavras, elas fazem parte de uma comunidade
imaginada com um sentimento de pertencimento a um locus determinado: a
comunidade judaica. Não importa se eles tinham na ocasião da guerra uma
mesma origem territorial, importava a questão cultural de sua origem: ser judeu.
Desse ponto de vista a constituição identitária passa pelo viés da constituição
cultural do individuo e da memória que ele tem dela. Se entendermos nesses
termos, o vínculo identitário não precisa estar ligado ao Estado, aquela dimensão
territorial que determina uma nação, ao contrário, pode estar ligado apenas às
questões culturais que identificam determinados grupos.
A constituição da identidade cultural a partir do século XX deve ser
entendida como uma constituição fragmentada e que opera em ruínas, assim
como a memória. Se a memória oferece apenas parte da história, na comunhão
de várias vozes ter-se-á então um mosaico de identidades a partir de um discurso
que através da heterogeneidade reconstrói o todo. Caso contrário, será repetida a
velha hegemonia da razão ocidental.
104
A justificativa de se tomar Jakob, personagem analisada na obra, como
ilustração, está no fato de que é possível pensar esse homem como fragmentado e
com uma profunda influência cultural exercida pelos espaços geográficos e
humanos que ele ocupa durante sua existência. Apesar de estarmos analisando
um judeu-polonês que não participa do processo chamado descolonização nem
tampouco se insere na questão da diáspora, essas teorias sobre identidade cultural
se aplicam bem a ele. O estudo sobre a identidade cultural dos povos colonizados
abriu a possibilidade de ampliarmos o olhar para as pessoas que por um motivo
diferente sofreram a influência de outras culturas que não se assemelham à sua
cultural original, mas cujo processo de aquisição pode ser comparado ao da
imposição cultural sofrida pelos povos colonizados. Para entender esses
argumentos é importante ter em mente a condição da personagem Jakob: um
judeu-polonês resgatado por um grego logo após uma bomba matar sua família na
Polônia. Dessa forma, Jakob recebe a influência da cultura grega. Mais tarde ele
se muda para o Canadá com seu padrinho e vai ser inserido na cultura canadense.
A personagem também carrega em si a cultura judaica. Ou seja, Jakob não fez
parte do processo descolonizador, mas sua situação de sobrevivente da Segunda
Guerra Mundial e o fato de ter sido criado fora de sua família e seu país de origem,
além de ter recebido influência de outras culturas, permite estabelecer uma
aproximação com as teorias que explicam as transformações a que foram
submetidos os povos colonizados. Além da problematização da interferência
cultural sofrida pela personagem, sua condição de influenciado pela cultura do
outro levanta mais questionamentos. A sensação de ser estrangeiro em si mesmo
passa a assombrá-lo.
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Julia Kristeva (1994) aborda esse assunto para falar da mudança de
paradigma que o conceito da palavra estrangeiro sofreu na contemporaneidade.
Ela explica que o antigo conceito foi substituído por um outro que se aproxima mais
do cenário histórico atual. Se antes estrangeiro era a pessoa que se diferenciava
do grupo, o inimigo das sociedades primitivas, hoje ele habita dentro de nós. De
acordo com Kristeva:
Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo de minha garganta, anjo negro turvando a transparência, traço opaco, insondável. Símbolo do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica de nossa preguiça habitual, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação a caminho, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. (Kristeva, 1994: 09)
Entendido dessa forma, percebemos que Jakob faz com que o leitor o
perceba como um estrangeiro dentro de si mesmo. Sua situação de Outro o
impede de exercer sua tradição judaica, de manter seu primeiro casamento com
Alex e de aceitar a morte de sua irmã. A angústia de ser diferente e de ter perdido
sua referência fazem de Jakob um homem sem ponto de partida nem chegada. É
justamente esse sentimento de estrangeirismo que faz de Jakob um exemplo do
conceito de identidade cultural no mundo pós-moderno. A inaplicabilidade do
conceito cartesiano é que revela a fluidez que se tornou presente no indivíduo do
século XX em resultado de todos os seus acontecimentos.
A trajetória de vida dessa personagem é construída em cima de um
alicerce extremamente móvel. Seu único ponto de referência é um grego cristão
106
que é apaixonado por Geologia, Arqueologia e as demais ciências naturais e que o
molda segundo suas próprias crenças. O que contribui para uma abertura cultural
maior é a sensibilidade do grego para perceber a necessidade que Jakob
apresenta em resgatar alguns aspectos de sua cultura. Quando Jakob ouve falar
das atrocidades nazistas (conferir citação da página 55) ele se depara com uma
realidade da qual ele não havia se dado conta. Jakob percebe que sua história não
era somente aquela que estava sendo construída ao lado de seu kumbarous. Era
também a história do povo judeu. Depois de escutar o que acontecera aos judeus
de Corfu, Jakob relata que “As he spoke, the room filled with shouts. The water
rose around us, bullets tearing the surface for those who took too long to drown.
Then the peaceful blue sheen of the Aegean slipped shut again.”43 (FP : 43) Athos
não pôde contribuir para que Jakob fosse inteiramente um judeu, mas de alguma
forma, ainda que tentando proteger Jakob, ele mostra de que forma ele precisa
respeitar sua primeira cultura para então estar pronto para receber o que tanto a
Grécia quanto o Canadá podem oferecer. Desde o princípio, o leitor percebe que
Jakob será reconstruído; ele próprio um mosaico colado cuja cola será a influência
cultural do Outro. Pelo viés da memória, Jakob conta a história de sua vida e de
como ele se tornou um cidadão do mundo. Um cidadão que em qualquer lugar que
estivesse ele seria sempre um judeu perdido da Segunda Guerra, sem pai ou mãe
e ao mesmo tempo um grego por destino e um canadense por necessidade. No
seu cotidiano Jakob não falava sua língua, o ídiche, e nem falava grego.
Trabalhava como tradutor de poemas do grego para o inglês: “(...) I was doing
43 Enquanto ele falava, a sala encheu-se de gritos. A água à nossa volta, balas cortando a superfície para aqueles que demoravam demais para morrer afogados. Depois, o pacífico brilho azul do Egeu tornou a se fechar.
107
translations now in earnest and worked at home (...). I was also translating Greek
poems for Kostas’s friend in London. And for a while I taught night-school English to
other immigrants.”44 (FP: 134).
Em termos lingüísticos a constituição de Jakob era tão múltipla quanto
sua identidade. Ele aprendera todas aquelas línguas assim como também o latim.
Porém nem toda a riqueza intelectual que recebera de seu padrinho pôde lhe
oferecer estabilidade. Sua segurança só pôde ser percebida mais tarde quando ele
conseguira enfrentar a morte:
Our relation to the dead continues to change because we continue to love them. All afternoon conversations that winter on Idhra, with Athos or with Bella, while it grew dark. As in any conversation, sometimes they answered me, sometimes they didn’t.45 (FP: 165)
A construção da identidade de Jakob perpassa todos esses obstáculos
que, ao invés de prejudicarem sua formação, na verdade são a força vitalizante de
sua construção.
44 (...) agora que vivia de traduções e trabalhava em casa. (...) Eu também traduzia poemas gregos para o amigo de Kostas em Londres. 45 Nossa relação com os mortos continua mudando porque continuamos a amá-los. Todas as conversas naquele inverno em Idhra, com Athos ou Bella, enquanto escurecia. Como em qualquer conversa, às vezes eles me respondiam, às vezes não.
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5. PHOSPHORUS
Por trás da história desordenada dos governos, das guerras e da fome, desenham-se histórias, quase imóveis ao olhar – história com um suave declive: histórias dos caminhos marítimos, história do trigo ou das minas de ouro, história da seca e da irrigação, história da rotação das culturas, história do equilíbrio obtido pela espécie humana entre a fome e a proliferação. Michel Foucault, In A arqueologia do saber
Neste capítulo em que pretendo abordar a questão da descontrução do
discurso tradicional e para melhor clarificar os conceitos abordados neste trabalho,
proponho um estudo com a intenção de demonstrar de que maneira a história de
Jakob, personagem de Fugitive Pieces, pode contribuir para se afirmar que a
História tradicional não é mais contada de maneira linear. A escolha dessa
personagem foi feita pelo fato de que ela exemplifica a situação das minorias
marginalizadas pela tradição historicista. Dentro dessa perspectiva, proponho
refletir sobre o conceito de narrativa performática de Homi Bhabha (2003),
desenvolvido em sua teorização a cerca da narrativa da nação moderna, no qual a
inserção de vozes menores no processo de construção identitária de um povo é
que faz com que o discurso tradicional seja alterado. Esse novo modo de
continuar, ou ainda, de recontar a história por outros ângulos, instaura a dúvida e
se faz como uma sombra na tradição.
O texto de Bhabha estuda a construção da narrativa da nação moderna.
Para explicá-la, o autor toma emprestado de Jacques Derrida um termo que serve
109
como explicação para essa construção – disseminação, que deve ser entendida
como fratura e/ou nascimento. Esse termo está relacionado com a própria
experiência de migração pela qual Bhabha passou, sua dispersão e reunião na
diáspora:
Reuniões de exilados, emigrados e refugiados, reunindo-se às margens de culturas ‘estrangeiras’; reunindo-se nas fronteiras nos guetos ou cafés de centros de cidade; reunião na meia-vida, meia-luz de línguas estrangeiras, ou na estranha fluência da língua do outro; reunindo os sinais de aprovação e aceitação, títulos, discursos, disciplinas; reunindo as memórias de subdesenvolvimento, de outros mundos vividos retroativamente; reunindo o passado num ritual de revificação; reunido o presente. Também a reunião de povos na diáspora: contratados, migrantes, refugiados, a reunião de estatísticas incriminatórias, performance educacional, estatutos legais, status de imigração – a genealogia daquela figura solitária que John Berguer denominou o sétimo homem. A reunião de nuvens às quais o poeta palestino Mohamoud Darwish pergunta ‘Para onde devem voar os pássaros depois do último céu?’(Bhabha, 2003: 06)
O objetivo principal do autor não é debater as experiências nacionalistas, ao
contrário, é questionar a certeza histórica desses movimentos tendo como objeto
de estudo a nação, mais especificamente, as estratégias narrativas da nação.
Neste capítulo da dissertação, a intenção de usar esse texto teórico se explica
porque estaremos entendendo a nação não como território e sim como algo que se
relaciona aos problemas de identidade e cultura e que permite pensá-la fora de um
território fixo, como no caso dos judeus.
De acordo com Bhabha, a nação deve ser pensada de forma “obscura e
ubíqua de viver a localidade da cultura” (2003:06) e se apresenta como uma escrita
dupla e ambivalente. Para o autor, não interessa o tempo homogêneo e vazio do
relógio e do calendário que seguiu a era da reprodutibilidade técnica como também
110
discutiu Walter Benjamim (1993). O que se propõe é fazer uma crítica à
perspectiva historicista com uma proposta de uma teoria itinerante que seja capaz
de resistir à equivalência linear e horizontal dos eventos. Bhabha entende que a
escrita da nação exige uma escrita dupla que cruze a estrutura do tradicional e do
novo. Para que esse cruzamento aconteça, Bhabha explica que a narrativa da
nação é uma narrativa dividida entre o eixo pedagógico e performático. O eixo
pedagógico se faz através do objeto histórico de uma pedagogia nacionalista. Ele é
um ensino cujo sujeito representa esse objeto histórico. Já o eixo performático
entende o sujeito como parte de um processo de significação com uma
temporalidade menos palpável interrompendo por vezes o eixo pedagógico, “o
performativo introduz a temporalidade do entre-lugar (‘in-between’), através da
lacuna ou ‘vazio’ do significante que pontua a diferença lingüística” (Bhabha,
2003:20). Bhabha propõe pensar o povo em um tempo performático. Nessa
proposta, o discurso das minorias situa-se no eixo de tensão entre o pedagógico e
performático reconhecendo o status da cultura nacional sem celebrá-la porque o
passado deve ser visto como eventos anteriores que introduzem diferenças no
presente. Pensar a nação desse ponto de vista instaura dúvidas no que se refere à
história tradicional.
Ao instaurar tal dúvida, as pequenas vozes do Outro alimentam um
processo concomitante ao da performance denominado por suplementaridade, que
também se faz presente e desconstrói a noção de totalidade inaugurando a
presença da diferença. Entendemos suplementaridade como acréscimo e não
substituição. Para esclarecer tal conceito, é preciso retomar o que Jacques Derrida
discute sobre isso e que, ao anteceder Bhabha, dele se aproxima. Para Derrida, de
111
acordo com Santiago (1976) como foi dito anteriormente, “suplemento” é algo que
acrescenta ao todo em sua origem sem preencher o vazio que a inaugura. Na
verdade, o suplemento deve ser entendido como um acréscimo que modifica sem
substituir qualquer informação, mas que ao fazê-lo cria uma outra origem
imaginada. De acordo com esse pensamento, a obra Fugitive Pieces serve ao
propósito do suplemento, pois permite uma outra leitura acerca do que foi feito de
um sobrevivente judeu da guerra e das conseqüências trágicas para a família de
outro personagem também judeu. Dessa maneira, a leitura da obra conduz o leitor
para o lado de fora do discurso tradicional. Ao mencionar o eixo performático da
narrativa na pós-modernidade, tanto quanto o eixo pedagógico, o que proponho e
entendo por relevante é o fato de que a personagem desterritorializada de Jakob
pode efetuar sua reterritorialização. De acordo com Bhabha, o eixo identitário é
aquele ponto de cisão entre o tradicional e o novo. Ao fazer esse corte, o novo
instaura a diferença que é essencial na construção da identidade. De acordo com
Renan (apud Bhabha), essa cisão se caracteriza pelo conceito de plebiscito diário,
que permite a escolha e a construção de uma identidade a cada momento em que
esquecer se torna um “menos na origem” que ao mesmo tempo acrescenta novas
informações nessa origem. Ainda que Bhabha esteja teorizando a nação moderna,
seu conceito pode ser aplicado para explicar como Jakob colabora nesse plebiscito
diário. Aos moldes de um pensamento que insere e aceita o outro em sua
diferença e que também o toma como parte da construção do discurso tradicional,
Jakob desconstrói sua tradição ao mesmo tempo em que reflete sobre sua
condição judaica quando apresenta as atrocidades cometidas pelos alemães. De
acordo com o texto de Bhabha, “A diferença cultural deve ser encontrada onde a
112
perda de sentido entra, como um corte, na representação da plenitude das
demandas de cultura” (Bhabha, 2003: 45). Isso faz com que a personagem de
Fugitive Pieces exerça esse papel de corte na linearidade histórica do discurso
tradicional por ser fruto de experiências vivenciadas, subjetivas.
Na verdade, Jakob contraria toda e qualquer possibilidade de
sobrevivência. Ele tem apenas sete anos de idade quando se vê diante de seus
pais mortos no chão. Em sua fuga pela floresta ele passa fome, frio e medo. Perde
também seu ponto de referência, sua pátria, sua família. Ao crescer ao lado de
Athos ele não retoma sua cultura e não a vive dentro dos parâmetros tradicionais.
Ele a revive nas atrocidades alemãs, nos relatos que ouve durante sua infância e
adolescência e na tentativa intelectual de Athos de reconstruí-lo. Nos livros
pedagógicos que estudamos ao longo de nossas vidas muito se omitiu a respeito
das pequenas vozes sobreviventes dos escombros da Segunda Guerra Mundial.
Os Estudos Culturais e sua expansão têm permitido, há algum tempo, retomar
esses pequenos discursos e inseri-los dentro do discurso tradicional,
desconstruindo-o. A história de vida de Jakob representa muito mais essa
desconstrução. Um judeu que não exerce sua tradição, um polonês que ganha a
vida traduzindo poemas gregos para o inglês, um grego de coração que vive quase
toda sua vida no Canadá, Jakob é por assim dizer desterritorializado no que se
entende por raiz, pertencimento. Ele não tem uma estabilidade territorial porque, na
verdade, não há como se fixar a algum lugar, e principalmente porque, como foi
discutido no capítulo anterior, o conceito de raiz perdeu seu efeito na pós-
modernidade dando lugar a um outro bem mais fluido, o conceito de espaço
oscilante. Entretanto, se Jakob puder ser entendido como o sujeito explicado pelo
113
eixo identitário de Bhabha, ele tende a se reterritorializar. Como entender esse
processo sem correr o risco de retomar o discurso tradicional? Num primeiro
momento é preciso entender o pós-guerra como um tempo de grandes
transformações no mundo. Existe uma outra redistribuição da cultura. O espaço do
pós-guerra também sofre modificações com uma demanda do global. Devido a
essas mudanças não é possível mais pensar a identidade como algo “natural’, ela
é cultural. Ora, se entendemos que a identidade é cultural, então entendemos
como a formação identitária de Jakob se insere na nova constituição do pós-
guerra. As grandes transformações no mundo se situam em todas as áreas do
conhecimento. Principalmente porque começou a se perceber que a ideologia,
presente no discurso tradicional, não respondia eficazmente aos questionamentos
dos sobreviventes da guerra, uma vez que eram embasadas em discursos
hegemônicos que pouco se preocupavam com os eventos particulares que
realmente sustentavam tais discursos. Por esse motivo, os Estudos Culturais
contribuíram para que houvesse uma desconstrução do pensamento historiográfico
tradicional ao chamar para si as áreas que não se excluíam – a Antropologia, a
Filosofia, a Sociologia, a História e as Artes, pelo contrário, se aproximavam.
114
6. SEM UTILIDADE A MEMÓRIA MORRE
Já não coleciono selos. O mundo me inquizila. Tem países demais, geografias demais. (...) Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. (...) O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu desvendasse. Lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrâneo. Vidros agressivos Ferem os dedos, preço de descobrimento: a coleção e seu sinal de sangue; a coleção e seu risco de tétano; a coleção que nenhum outro imita. (...) Carlos Drummond de Andrade, “Coleção de cacos”, In: Boitempo
Os questionamentos e estudos a cerca das modificações no cenário
pós-guerra, nos levam a perceber que os teóricos vêm desenvolvendo suas
argumentações de modo a tentar interpretar essas transformações pelas quais
elas passaram e comunngar todas as áreas do conhecimento e assim, eles
passaram a entender o homem dessa época também de forma heterogênea e
fragmentada.
115
No romance escolhido para ilustrar as teorias sobre memória, identidade
cultural, luto e desterritorialização, cujas teorias foram exploradas ao longo dos
capítulos desse trabalho, percebemos de que forma podemos entender essas
mudanças. Do ponto de vista da memória, a personagem consegue exemplificar
de que forma a dialética memória-esquecimento opera quando há a necessidade
de se lembrar, entretanto há igualmente uma vontade de esquecer devido às
circunstâncias que ocasionaram os fatos. As teorias estudadas sobre esse
assunto, principalmente com a colaboração de Walter Benjamin e seu estudo
sobre o conceito de experiência, permitiu uma análise do silêncio dos
sobreviventes do Holocausto. Além desse teórico, Bergson, ao estudar a
constituição da memória do ponto de vista filosófico, ajudou a entender esse
processo de lembrar que a memória encerra e foi de grande valia seu conceito
sobre percepção. Com ele, percebemos de que forma Jakob se fez lembrar de
sua infância e adolescência para refletir sobre sua vida e caminhar com a ajuda de
Athos. Anderson colaborou com seu estudo sobre a constituição da identidade das
comunidades imaginadas, termo usado para explicar o surgimento das nações
modernas, tendo como subsídio a memória. Seu argumento sobre a importância
de se relacionar o velho e o novo favoreceu o estudo sobre a relação que se
opera na memória quando se necessita inserir nos fatos acontecidos, as
sensações do presente, influenciando-os inevitavelmente. Com a contribuição
desses autores pudemos entender que o processo que articula a lembrança e o
esquecimento, como exemplificado através dos fatos da vida de Jakob, reflete sua
condição de um sobrevivente órfão da Segunda Guerra Mundial.
116
Anne Michaels diz em sua entrevista que ela não teve nenhuma
experiência pessoal nem familiar com o Holocausto, talvez, a autoridade com a
qual ela se investiu para escrever um romance tão multi-cultural se baseie no fato
de o Canadá ser um país que recebe como imigrantes tantas nacionalidades
européias e, nas últimas décadas, do oriente. Isso traz ao Canadá a abertura para
uma ampla discussão sobre as trocas de influências culturais das quais seu
romance é tão rico. A autora afirma também que, quanto mais distantes da guerra
mais aptos a falar sobre ela estamos. Talvez por isso Jakob só comece a escrever
suas memórias quase quarenta anos depois de sua fuga da Polônia. Ele dá uma
utilidade a seus relatos já que mantém viva a memória de sua vida, escrita em seu
diário. De acordo com Artières, ele arquiva a própria vida.
Não só do ponto de vista memorialístico, mas também a partir de uma
reflexão sobre a manifestação do luto por parte dos sobreviventes do Holocausto,
a obra permitiu que fossem lidas em seu texto as exemplificações dos estudos de
teóricos do luto, dos traumas e das reminiscências da guerra. De acordo com
Rose, dentro desse assunto sobre o luto, discutimos as questões sobre a maneira
de se entender o processo do luto e suas conseqüências, que revelam a
fragilidade do ser humano. Há, como foi discutido no capítulo Os carregadores de
pedra, uma necessidade de se viver o luto para se entender o que a morte
representa e, se não se vive esse tempo, o homem não consegue lidar muito bem
com as questões que o seguem. O luto é apenas uma das conseqüências da
guerra, pois os traumas sofridos pelos sobreviventes também fazem parte desse
arsenal de decorrências. Quando antes falei do estudo de Walter Benjamin a
respeito do silêncio dos sobreviventes, de certa forma estava falando também
117
desse silêncio como resultado de um trauma irrecuperável. Dentro desse
pensamento, os estudos de Van Alphen contribuíram para entender o porquê
desse silêncio. Os cacos que se juntam a esse trauma, as reminiscências da
guerra, fotografias, relatos, etc, como bem observou a teórica Hirsch, resultam em
um estudo que de certa forma reflete o cenário pós-guerra. Um cenário tão
fragmentado quanto a própria memória.
Esse cenário fragmentado pôde também ser observado de certa forma
no estudo sobre as transformações ocorridas do ponto de vista do que se entende
por identidade cultural no panorama pós-moderno, segundo Hall. Essas mudanças
transformaram o conceito de identidade cultural e levantaram questões como a
fragilidade do homem contemporâneo em relação à sua necessidade de se sentir
estável em um universo tão instável. Esse novo modo de ver o homem também
pôde ser exemplificado no texto de Anne Michaels, pois sua personagem, Jakob,
representa essa total fragmentação e desorientação pós-moderna.
Finalmente, pudemos ver de que forma essa desorientação é corrigida,
ainda que sua correção não esteja relacionada aos conceitos de certo ou errado,
mas de diferente, e pudemos tomar mais uma vez a construção identitária da
personagem Jakob para exemplificar essa situação. Jakob, como foi explicado no
último capítulo desse trabalho, deve ser entendido como alguém de fora que conta
a história de sua vida, sem se sucumbir à tradição porque é ao mesmo tempo
alguém de dentro. Ele narra dentro do que Bhabha chamou de narrativa
performática, pois sua contribuição faz um corte transversal na narrativa
tradicional. Assim, é possível para a personagem fazer sua reterritorialização.
Esse processo se revela na articulação das culturas que ele recebe e no uso da
118
língua inglesa em diversas instâncias: como ganha-pão e como veículo para
retomar suas memórias com menos dor para ganhar a vida. Sua reterritorialização
não se vincula à raiz dessa palavra, pelo contrário, está muito mais próxima da
fluidez do conceito de identidade que a época pós-moderna reclama.
119
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