carlos walter geografia da riqueza fome e meio ambiente

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  • .R E V I S T A I N T E R N A C I O N A L I N T E R D I S C I P L I N A R I N T E R T H E S I S - PPGICH UFSC

    GEOGRAFIA DA RIQUEZA, FOME E MEIO AMBIENTE: PEQUENA CONTRIBUIO CRTICA AO ATUAL MODELO AGRRIO/AGRCOLA DE USO DOS RECURSOSNATURAIS

    WEALTH GEOGRAPHY, ENVIRONMENT AND HUNGER: SMALL CRITIC CONTRIBUTION TO THECURRENT AGRARIAN/AGRICULTURAL MODEL OF THE NATURAL RESOURCES USAGE

    Carlos Walter Porto Gonalves

    Resumo:O texto discute a questo geopoltica implicada no debate sobre a fome e o meioambiente. Critica o atual modelo agrrio/agrcola de uso dos recursos naturais, afirma ser este um modelo de desenvolvimento econmico das regies temperadas que tem sido imposto com um alto custo ecolgico, cultural e poltico para o mundo todo. Este modelo tem se colocado em confronto com o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitrio caracterstico de populaes com racionalidades distintas da racionalidade atomstico-individualista ocidental com graves riscos segurana alimentar. Analisa asconseqncias socioambientais do atual modelo agrrio/agrcola e os resultadoscontraditrios do aumento da capacidade mundial de produo de alimentos e o aumento da fome no mundo. Os significados da Revoluo Verde a partir dos anos 70; Osimpactos socioambientais do agronegcio nos cerrados brasileiros; A complexidade do uso dos produtos transgnicos. Critica a sustentabilidade ecolgica restrita, baseada num realismo poltico e prope uma reflexo sobre uma nova racionalidade para o desafio ambiental. Conclui que a fome no um problema tcnico, pois esta no se deve falta de alimentos mas ao modo como os alimentos so produzidos e distribuidos. A fome convive hoje com as condies materiais para resolv-la.

    Abstract:The text questions the geopolitical issue implied in the argument about hunger and the environment. It criticizes the current agrarian / agricultural model of the natural resources usage, stating it is a model of economic development of mild regions that has been imposed all over the world at a very high ecological, cultural and political cost. This model has faced the patrimonial, collective and community knowledge, characteristic ofpopulations with distinct rationality from the occidental atomistic-individualistic one, with severe risks to the feeding safety. It analyzes the social-environmental consequences of the current agrarian / agricultural model, the contradictory results of the increase of the world capacity of food production, hunger in the world, the meanings of the Green

  • 2Revolution from the seventies on, the social-environmental impacts of the agrarianbusiness in the Brazilian cerrado and the complexity of the use of transgenic products. It criticizes the restricted ecological sustentation based on a political realism, and proposes a reflection upon a new rationality for the environmental challenge. It concludes that hunger is not a technical problem, for it does not happen because of the lack of food, but because of the way the food is produced and distributed. Today hunger lives with the provisions necessary to overcome itself.

    Introduo

    O mdico e gegrafo Josu de Castro escrevia em 1946 que a fome era o

    problema ecolgico nmero um1. E o fazia sem nenhum sentido antropocntrico a que,

    geralmente, est associada essa afirmao. Afinal, todo ser vivo precisa se alimentar. O

    que surpreende que Josu de Castro tenha dito isso numa poca em que a questo

    ecolgica sequer estava pautada e que os ambientalistas, ainda hoje, sequer o

    considerem como um dos mais importantes pensadores e ativistas da questo. At

    mesmo o PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente - em seu ltimo

    relatrio Perspectivas del Medio Ambiente Mundial GEO-3 ignora completamente a

    problemtica da fome2 (Ver Questes chaves para o meio ambiente por regio GEO,

    GEO-3: 31).

    Cerca de 30 anos aps a morte de Josu de Castro, ocorrida em 1973, nos vemos diante

    de questes que ele vinha se ocupando cada vez mais, qual seja, a questo geopoltica

    implicada no debate sobre a fome e o meio ambiente. Hoje sabemos melhor que sua

    poca que as regies tropicais, as que detm a maior produtividade biolgica do planeta,

    no so aquelas onde maior a produtividade econmica3. Entretanto, essa maior

    produtividade econmica das regies temperadas tem um alto custo ecolgico, cultural e

    poltico para o mundo todo na medida que a extrema especializao, tanto no sentido da

    monocultura, como da dependncia de alguns poucos cultivares, torna esses

    agroecossistemas vulnerveis no s a pragas e s variaes climticas como, tambm,

    os tornam extremamente dependentes de insumos externos, como adubos, agrotxicos e

    energia vindos de outras regies.

    Salientemos que toda uma cincia agronmica e florestal, com base na

    racionalidade cientfica europia, tem sido desenvolvida para tornar mais eficientes em

    produo de biomassa exatamente reas, como as regies temperadas, que dispem de

    menor intensidade de energia solar em relao s regies tropicais, num contra-senso

  • 3que s se explica pela importncia que um certo tipo de conhecimento, o conhecimento

    tcnico-cientfico, e a regulao jurdica da propriedade a ele associada (patentes e

    quetais), passa a ter para os pases hegemnicos e as grandes corporaes que, hoje,

    praticamente detm o monoplio no do conhecimento tout court, mas desse tipo de

    conhecimento especfico que, cada vez mais, depende de recursos maiores para a

    pesquisa e desenvolvimento 4.

    Essa concentrao de dependncia se aplica a cada um dos quatro principais

    gros - trigo, arroz, milho e soja para o ano de 2001. Apenas cinco pases - Estados

    Unidos, Canad, Frana, Austrlia e Argentina - so responsveis por 88% das

    exportaes mundiais de trigo (Santamarta, 2002). Tailndia, Vietn, Estados Unidos e

    China representam 68% de todas as exportaes de arroz. No caso da soja, apenas trs

    pases EUA, Brasil e Argentina so responsveis por 82% da produo mundial. No

    milho, a concentrao ainda maior, com os Estados Unidos responsveis por 78% das

    exportaes e a Argentina por 12%. Uma autoridade indiana declarou pateticamente que

    "nossas reservas esto nos silos do Kansas" (Brown, 2001)5.

    Assim, com o conhecimento produzido em laboratrios de grandes empresas em

    associao cada vez mais estreita com o Estado e, deste modo, passvel de apropriao

    privada, a propriedade intelectual individual (patentes) se coloca em confronto direto com

    o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitrio caracterstico das tradies

    camponesas, indgenas, afrodescendentes e outras matrizes de racionalidade distintas da

    racionalidade atomstico-individualista ocidental (Porto -Gonalves, 1989).

    Esse conflito se manifesta na reiterada recusa em no reconhecer os direitos

    coletivos e patrimoniais de populaes que detm conhecimentos ancestrais, conforme

    pudemos observar recentemente no Mxico com o parlamento se colocando contra o

    pleito dos zapatistas de direitos territorriais e culturais dos indgenas (Cecea, 2002).

    Assim, longe de nos regozijarmos com o fato de a Conveno de Diversidade Biolgica

    reconhecer a soberania dos Estados para regular sobre o acesso aos recursos genticos,

    preciso ver, aqui, uma estratgia de transferir aos Estados nacionais a responsabilidade

    e o nus de se colocarem contra as populaes indgenas, afrodescendentes e

    camponesas6 que, mais do que quaisquer outros segmentos sociais, tm conseguido se

    inserir no debate globalizado chamando a ateno para o fato de que suas prticas

    culturais especficas serem aquelas que mais se coadunam com os interesses da

  • 4humanidade e da ecologia do planeta e que, por isso, devem ser respeitadas enquanto

    tais.

    Esses conhecimentos ancestrais so, paradoxalmente, reconhecidos de facto pelas

    grandes corporaes, que deles se apropriam com o apoio dos Estados onde residem

    seus principais proprietrios e acionistas que lhes do a segurana de jure (patentes e

    direitos de propriedade intelectual individual). O trigo hoje cultivado no Canad, por

    exemplo, tem genes procedentes de 14 pases diferentes. O milho manipulado nos EUA

    tem sua origem no Mxico, assim como os genes dos pepinos ali cultivados so

    procedentes da Birmnia, da ndia e da Coria, todos esses genes tendo sido adquiridos

    sem nenhuna contrapartida econmica, diferentemente das sementes melhoradas que

    exportam os pases hegemnicos. Segundo Jos Santamarta 7, as multinacionais dos

    EUA, da Unio Europia e do Japo pretendem obter grtis, sobretudo nos pases do

    Terceiro Mundo, os recursos genticos para logo lhes vender a preos de usura as

    sementes, animais ou medicamentos obtidos, com base na "propriedade intelectual".

    Assim, o conhecimento, sempre essencial para a reproduo8, tende a se dissociar

    daqueles os camponeses, os povos originrios ou, na linguagem europia, os nativos,

    aborgenes, indgenas - que, at aqui, o construram. O fazer tende a separar-se do

    pensar. Deste modo, alm da separao da agricultura tanto da pecuria como da caa,

    da coleta e da pesca caracterstica do mundo moderno-colonial, o que est em jogo, hoje,

    a separao, ainda mais radical, do saber e do fazer que, agora, se d por meio da

    dissociao do conhecimento acerca da reproduo do alimento nosso de cada dia.

    Cerca de 90% de nossa alimentao procede de apenas 15 espcies de plantas e

    de 8 espcies de animais. Segundo a FAO, o arroz prov 26% das calorias, o trigo 23% e

    o milho 7% da humanidade. As novas espcies de cultivares substituem as nativas

    uniformizando a agricultura e destruindo a diversidade gentica. S na Indonsia foram

    extintas 1.500 variedades de arroz nos ltimos 15 anos. medida que cresce a

    uniformidade, aumenta a vulnerabilidade. A perda da colheita da batata na Irlanda em

    1846, a do milho nos Estados Unidos em 1970 ou a do trigo na Rssia em 1972, so

    exemplos dos perigos da eroso gentica e mostram a necessidade de preservar

    variedades nativas das plantas, inclusive para criar novas variedades melhoradas e

    resistentes s pragas, nos alerta Jos Santamarta. E, continua, a engenharia gentica

    levar perda de milhares de variedades de plantas, ao cultivar-se s algumas poucas

  • 5com alta produtividade, para no falar de outros muitos perigos, agravando os efeitos da

    revoluo verde das dcadas passadas (Santamarta, idem).

    No estranhemos, pois, quando sucessivos acordos e tratados diplomticos que

    falam de transferncia de tecnologia no passem de gasto de tinta e papel, sem nenhuma

    conseqncia prtica. Alis, estamos imersos aqui numa contradio de fundo da

    sociedade moderno-colonial atual e de seu modo de produo de conhecimento, que se

    deu, e se d, negando ao outro, ao diferente, at mesmo a idia de que produz

    conhecimento da falar-se sem-cerimnia, de transferncia de conhecimento e no de

    dilogo entre matrizes de racionalidade distintas. Vimos, entretanto, que tal como dissera

    Galileu Galilei, o mundo se move, e o conhecimento local, seja ele campons, nativo,

    aborgene, indgena, autctone ou outro nome que a eles se atribui, continua sendo

    produzido e, como vimos, apropriado sem reconhecimento por grandes corporaes

    extremamente ciosas da propriedade quando prpria e no alheia.

    Com o monoplio das sementes (e do novo modo de produo do conhecimento a

    ele associado) a produo tende a se dissociar da reproduo (Shiva, 2001) e, assim, a

    segurana alimentar perseguida por cada agrupamento humano durante todo processo de

    hominizao, passa a depender de algumas poucas corporaes que passam a deter

    uma posio privilegiada nas novas relaes sociais e de poder9 que se configuram. A

    insegurana alimentar passa a ser, paradoxalmente, cada vez mais a regra e no

    somente entre os pases e povos coloniais e semi-coloniais. A agricultura inglesa, por

    exemplo, importa cada vez mais. De cada cinco frutos vendidos, quatro vm do exterior e

    no dos pomares domsticos, antes to numerosos no campo ingls. Na Argentina,

    muitos analistas diziam que o pas es el granero del mundo, mas esse um diagnstico

    equivocado. O atual modelo agropecurio, baseado na produo de soja GM, est nos

    transformando em uma republiqueta sojera. O monocultivo est destruindo a segurana

    alimentar e a vida rural e, nesse sentido, a ante-sala da fome, sentenciou Jorge Rulli do

    Grupo de Reflexo Rural (GRR) da Argentina.

    Walter Pengue, especialista em Melhoramento Gentico Vegetal da Universidade

    de Buenos Aires UBA, adverte que se estn reemplazando otros cultivos y sistemas

    productivos, y si esto se pudiera cambiar al ao siguiente no sera un problema, pero lo

    que est sucediendo es que se estn levantando montes enteros, frutales, tambos, para

    la siembra de soja y se est eliminando la diversidad productiva. Em muitos sentidos a

  • 6Argentina no era um tpico pas tipicamente agroexportador, porque exportvamos os

    mesmos produtos que consumamos, e isso era uma fonte de segurana alimentar, mas a

    introduo dos cultivos de soja GM incrementou fortemente nossa vulnerabilidade.

    Produtos bsicos da dieta argentina como arvejas, lentilhas, porotos ou o milho amarelo

    comeam a ser mais escassos, porque estamos entrando num esquema de ser

    monoprodutores e se est uniformizando tudo com a soja, adverte Pengue (Citado por

    Bacwell e Stefanoni).

    No Brasil, o desenvolvimento do novo modelo agrrio/agrcola tambm mostra o

    mesmo sentido ao apontar para um modelo onde o monocultivo acentua a dependncia

    do agricultor diante do complexo industrial-financeiro altamente oligopolizado e, com isso,

    aumenta a insegurana alimentar, tanto dos agricultores e suas famlias como do pas

    como um todo. A produo de soja no Rio Grande do Sul, at os anos 60, estava

    associada produo de trigo, de milho e a pastagens para gado bovino, alm da criao

    de porcos e todos os seus derivados (banhas, lingias etc.). Desde os anos 70 esse

    sistema de uso da terra, e toda a cultura a ele associado, vm sendo substitudo por um

    sistema que tende para o monocultivo sobretudo da soja, com todas as implicaes que

    da deriva. Consideremos que no antigo sistema de rotao de culturas, a soja, na

    verdade, subsidiava o solo com azoto (nitrognio) e, alm disso, a criao de animais

    garantia no s descanso (pousio) da terra, como tambm parte do adubo (esterco) e,

    com isso, proporcionava as condies ideais para o cultivo exigente do trigo. O trigo se

    constitua no centro desse sistema de uso da terra, que visava garantir o abastecimento

    nacional do po nosso de cada dia e, assim, a segurana alimentar. Assim, a segurana

    alimentar que esse sistema representava mantinha fortes relaes com a prpria estrutura

    agrria da Zona Colonial gacha que, desde o incio, visava o abastecimento das tropas

    que guardavam as fronteiras na Campanha Gacha. V-se, assim, que esse sistema de

    uso da terra estava associado idia de um projeto nacional. No estranhemos, pois, que

    a insegurana alimentar mantenha fortes relaes com um sistema agrrio/agrcola que

    visa a mercantilizao generalizada como o que vem caracterizando o perodo neoliberal.

    Com o novo sistema, observamos no s a tendncia ao monocultivo, como,

    tambm, a concentrao fundiria chegando a regies do RS, como a Zona Colonial,

    onde a propriedade familiar camponesa era caracterstica e, assim, contribuindo para

    aumentar a dependncia do agricultor do complexo industrial-financeiro10. Atualmente

  • 7existem, na regio Sul, propriedades com at 1.000 hectares plantados com soja. S para

    tornar possvel uma comparao na dimenso dos plantios, a rea mdia dos

    estabelecimentos agrcolas no Corn Belt norte-americano de 120 a 150 hectares

    (Rezende, 2002: 09). O surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

    MST tem uma forte ligao com essas transformaes de uma agricultura camponesa

    para uma agricultura capitalista11.

    Na verdade, como arremata Jorge Rulli para a Argentina, estamos ocupados pelas

    transnacionais de sementes. Cargill, Nidera e Monsanto nos converteram em um pas

    invivel, produtor de sojas transgnicas e exportador de forragens. Produzimos o que a

    todos sobra e o que cada vez vale menos (Rulli, J. E.). O mesmo pode ser dito do que

    vem se passando no Brasil.

    O que mais surpreende nesse novo modelo agrrio/agrcola que ele se expande

    apesar da constante queda de preos dos produtos agrcolas no mercado mundial.

    Vejamos mais de perto esse milagre.

    A revoluo (nas relaes sociais e de poder por meio da tecnologia) verde

    O mundo rural com a Revoluo Verde com suas sementes hbridas e seu mais

    recente desdobramento com a biotecnologia dos transgnicos e do plantio direto, est

    sofrendo mudanas profundas tanto ecolgicas, como sociais, culturais e, sobretudo,

    polticas. medida que o componente tcnico-cientfico passa a se tornar mais importante

    no processo produtivo, maior o poder das indstrias de alta tecnologia que passam a

    comandar os processos de normatizao (candidamente chamados normas de

    qualidade).

    Essas importantes transformaes nas relaes de poder por meio da tecnologia

    comearam a ganhar concretude ainda nos anos 50, quando mais de 70% da populao

    mundial habitava o mundo rural. Temos experimentado todos os dias nos enormes

    aglomerados humanos urbano-perifricos, sobretudo na Amrica Latina e Caribe, o que

    vem significando essa desruralizao da populao, sobretudo dos anos 70 para c,

    muito embora essa desruralizao ainda no tenha atingido a maior parte da

    humanidade12.

    Havia fortes razes, logo aps o fim da 2 Guerra, para a nfase que ganhariam as

    transformaes nas relaes de poder por meio das tecnologias conhecidas como

  • 8Revoluo Verde. A fome se apresentava, ento, como um fenmeno europeu. Os

    europeus sabem o que significou no s ver a guerra no seu dia a dia como, tambm, o

    significado da insegurana alimentar que se segue destruio das redes de

    comunicao e transportes e ao fato de a maior parte dos homens em idade ativa serem

    convocados para a guerra13. O espectro da fome rondava o mundo num contexto

    marcado por forte polarizao ideolgica, o que tornava as lutas de classes

    particularmente explosivas no perodo.

    A prpria denominao Revoluo Verde para o conjunto de transformaes nas

    relaes de poder por meio da tecnologia indica o carter poltico e ideolgico que estava

    implicado. A Revoluo Verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e

    poltico das lutas contra a fome e a misria, sobretudo aps a Revoluo Chinesa,

    Camponesa e Comunista, de 194914. Afinal, a grande marcha de camponeses lutando

    contra a fome brandindo bandeiras vermelhas deixara fortes marcas no imaginrio. A

    revoluo verde tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um carter

    estritamente tcnico15. O verde dessa revoluo reflete o medo do perigo vermelho, como

    se dizia poca. H, aqui, com essa expresso Revoluo Verde, uma tcnica prpria da

    poltica16, aqui por meio da retrica.

    Todo um complexo tcnico-cientfico, financeiro, logstico e educacional (formao

    de engenheiros e tcnicos em agronomia) foi montado contando, inclusive, com a criao

    de organismos internacionais como o CGIAR, alm do envolvimento de grandes

    empresrios, como os Rockfellers. Os resultados dessa verdadeira cruzada foram de

    grande impacto, no s pelos nmeros que nos so apresentados mas, sobretudo, pela

    afirmao da idia de que s o desenvolvimento tcnico e cientfico ser capaz de

    resolver o problema da fome e da misria. Pouco a pouco a idia de que a fome e a

    misria so um problema social, poltico e cultural vai sendo deslocada para o campo

    tcnico-cientfico, como se esse estivesse margem das relaes sociais e de poder que

    se constituem, inclusive, por meio das tcnicas. Meio sculo dessa tentativa de resolver

    por meios tcnicos os problemas da fome j so suficientes para avaliarmos seus

    resultados. o que veremos agora.

  • 9As contradies do sucesso da revoluo - nas relaes de poder por meio da tecnologia verde

    Segundo a FAO, entre 1950 e 2000, a produo de gros em todo o mundo

    aumentou 2,9 vezes, de 631 para 1.835 milhes de toneladas. No mesmo perodo,

    entretanto, o consumo de fertilizantes aumentou de 10,1 vezes, passando de 14 milhes

    de toneladas, em 1950, para 141 milhes de toneladas em 2000. A produtividade anual

    que foi de 2,1% ao ano em mdia, entre 1950 e 1990, caiu para 1,1 % entre 1990 e 2000.

    Segundo Samir Amin, a produtividade entre o mais avanado segmento capitalista da

    agricultura mundial e o mais pobre, que estava [na razo] em torno de 10 para 1 antes de

    1940, est agora a aproximar-se dos 2.000 para 1! Isto significa que a produtividade

    progrediu muito mais desigualmente na rea da agricultura e da produo alimentar do

    que em quaisquer outras reas. Esta evoluo conduziu simultaneamente reduo dos

    preos relativos dos produtos alimentares (em relao a outros produtos industriais e de

    servios) a um quinto do que era h cinqenta anos atrs. A nova questo agrria resulta

    deste desenvolvimento desigual 17.

    Considere-se, ainda, que a melhoria considervel nas condies de

    armazenamento, transportes e comunicaes permitiram no s um aumento da

    produtividade social total18 como, tambm, que novas reas pudessem ser incorporadas

    ao mercado pela expanso da rede de transportes em todo o mundo19. Os financiamentos

    do Banco Mundial e outras agncias multilaterais para ajuda ao desenvolvimento

    cumpriram um papel fundamental para esse xito.

    Assim, a diminuio da renda diferencial por localizao obtida graas expanso

    e melhoria da rede de transportes e comunicaes, a diminuio da renda diferencial por

    fertilidade da terra em funo do prprio modelo agrrio/agrcola capital intensive e a

    expanso da rea cultivada vm contribuindo tanto para o aumento do volume de

    produo como para uma acentuada queda dos preos dos gros e, ainda, para uma

    concentrao de capital e diminuio do trabalho.

    Editorial do jornal francs Le Monde assinala que nos ltimos dez anos,

    desapareceram (25%) dos estabelecimentos agrcolas [na Frana]: restam somente

    168.000. A renda da produo ficou ainda mais concentrada: somente 5 grandes grupos

    controlam totalmente a distribuio e impem, facilmente, suas posies e seus preos

    aos agricultores-empresrios (...).

  • 10

    Entre 1979 e 2001 a produo de soja no mundo aumentou 166% enquanto seus

    preos caram, em 2001, para 45% do que eram em 1979. Por conseguinte, os preos

    correntes dos produtos agrcolas aumentaram menos depressa que os outros produtos e

    os preos agrcolas reais (inflao no includa) baixaram muito. Em menos de 30 anos o

    preo real do trigo nos EUA, por exemplo, se reduziu a 1/3 aproximadamente, enquanto o

    do milho e do acar caiu a menos da metade, segundo Marcel Mazoyer (Mazoyer,

    2003).

    A queda dos preos agrcolas no atingiu somente produo de gros (trigo,

    milho, arroz, soja) ou de produtos de origem animal mas, tambm, a cultivos tropicais de

    exportao que competiam com os cultivos motomecanizados dos pases desenvolvidos

    (beterraba contra cana de acar, soja contra outras culturas oleaginosas tropicais,

    algodo do sul dos EUA, etc.), ou com os produtos industriais de substituio (borracha

    sinttica contra o cultivo de hvea, txteis sintticos contra o algodo). Por exemplo, o

    preo real do acar foi reduzido a menos de 1/3 em um sculo, enquanto o da borracha

    se reduziu a 10%. Por ltimo, a revoluo agrcola tambm foi aplicada a outros cultivos

    tropicais (banana, pinha, etc.) de forma que a tendncia de baixa dos preos reais se

    estendeu progressivamente a quase todos os produtos agrcolas (Mazoyer, 2003).

    Para alm do discurso bastante difundido de que toda essa revoluo nas relaes

    de poder por meio da tecnologia conhecida por revoluo verde proporcionou o

    abastecimento de uma crescente populao no mundo inteiro e, em particular, de uma

    populao que se urbanizava, importante assinalar que os efeitos dessas

    transformaes no mundo rural so mais complexos e contraditrios do que vem sendo

    admitido.

    Um primeiro aspecto a ser destacado foi a mudana na composio da cesta do

    trabalhador. A diminuio dos preos dos produtos agrcolas, embora no tenha sido

    transferida integralmente ao consumidor final, liberou parte significativa dos salrios para

    consumo de produtos industrializados. Ricardo Abramovay demonstrou como o operrio

    francs gastava nos anos 80 muito menos do que nos anos 50 com alimentos, ainda que

    para se alimentar melhor. Deste modo, pode-se admitir que boa parte do boom de

    crescimento no consumo bens de origem industrial se deveu a essas transformaes que

    tornaram menor os gastos com alimentos na cesta bsica do trabalhador, mormente nos

    pases que lograram urbano-industrializar parcela importante de sua populao20.

  • 11

    Entretanto, medida que avana a queda de preos, os agricultores que no tm

    podido investir nem obter ganhos de produtividade considerveis caem abaixo do umbral

    de renovao econmica de sua explotao: seus ingressos monetrios resultam

    insuficientes para comprar os bens de consumo indispensveis que no podem produzir

    ou, s vezes, para pagar os impostos. (...) Em outras palavras, uma explotao agrcola

    cujos ingressos caem abaixo do umbral de renovao s pode sobreviver custa de uma

    autntica descapitalizao (venda de gado vivo, apetrechos cada vez mais reduzidos e

    sem manuteno), do subconsumo (camponeses andrajosos e descalos), da desnutrio

    e a curto prazo do xodo, a menos que se dedique a cultivos ilegais: coca, papoula,

    cnhamo.) (Mazoyer, 2003). E essa opo tem se apresentado muito concretamente para

    populaes situadas em regies geograficamente de difcil acesso e que, deste modo,

    vm se dedicando a cultivos ilcitos o caso do Afeganisto, da Bolvia (Xapare), da

    Colmbia, do Peru e, ainda, do Polgono da Maconha no sub-mdio So Francisco no

    nordeste brasileiro.

    O fenmeno da urbanizao, sem dvida, est entre aqueles que mais contribuiu

    para a grande expanso mercantil da agricultura aps a Segunda guera mundial. Afinal,

    os urbanos, apesar do crescente fenmeno da agricultura urbana (PNUMA, 2002 - GEO-

    3), no tm espao disponvel para garantir a energia alimentar de que carecem. Assim, a

    crescente urbanizao no mundo21 vem contribuindo para a expanso da agricultura de

    mercado. Entretanto, esse aumento espetacular da produtividade na agricultura esbarra,

    ainda, em outros obstculos srios para sua reproduo ampliada, tanto do ponto de vista

    socioeconmico como ambiental.

    Observemos o quadro a seguir,

    Quadro 1 - Classes Sociais da Populao Urbana Mundial.

    CENTRO PERIFERIA MUNDOClasses Mdias e Ricas 330.000 390.000 720.000Classes Populares 660.000 1.620.000 2.280.000Estabilizados 390.000 330.000 720.000Precrios 270.000 1.290.000 1.560.000Total de Pop. Urbana 33% 67% 100%Populao Total 1.050.000 1.950.000 3.000.000

    Fonte: Elaborao prpria a partir de dados de Samir Amin, op. cit.

    As classes populares mdias e ricas representam 720 milhes de habitantes

    urbanos do planeta, enquanto as classes populares correspondem a da populao

  • 12

    urbana do mundo, com 2 bilhes e 280 milhes de habitantes. Observemos que do total

    de 3 bilhes de habitantes urbanos do mundo, cerca de 52% pertencem s classes

    populares que vivem precariamente (1 bilho e 560 milhes), sendo que 82,7% destes

    vivem nos pases perifricos (1 bilho e 290 milhes). Alis, 66,2% dos habitantes

    urbanos dos pases perifricos pertencem a essa categoria de precrios.

    O cientista social egpcio Samir Amin afirma que a principal transformao social

    que caracteriza a segunda metade do sculo XX pode ser resumida numa nica

    estatstica: a proporo das classes populares precrias ascende de menos de um quarto

    para mais da metade da populao urbana global, e este fenmeno de pauperizao

    reapareceu numa escala significativa nos prprios centros desenvolvidos. Esta populao

    urbana desestabilizada aumentou em meio sculo de 250 milhes para mais de 1,50

    bilhes de indivduos, registando uma taxa de crescimento que ultrapassa aquela que

    caracteriza a expanso econmica, o crescimento da populao ou o prprio processo de

    urbanizao. Pauperizao no h palavra melhor para designar a tendncia evolutiva

    durante a segunda metade do sculo XX (Amin, 2003, op. cit).

    Com base em dados do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, o

    agrnomo francs Marcel Mazoyer nos diz que 2 bilhes e 800 milhes de pessoas

    dispem, hoje, de menos de 2 dlares por dia, e 1 bilho e 200 milhes delas dispem de

    menos de 1 dlar por dia. Esta imensa insolvncia das necessidades sociais, este

    subconsumo gigantesco, constitui hoje o fator que limita mais gravemente o crescimento

    da economia mundial22. Considere-se que esse perfil de precariedade nas condies de

    acesso ao mercado, dado pela escassez de renda da maior parte da populao , ele

    mesmo, parte da estrutura de poder entre as classes sociais e, assim, no algo que se

    resolva numa perspectiva de distribuio, como se fora externo s relaes sociais e de

    poder. Ao contrrio, essa distribuio desigual de renda produzida pela estrutura de

    classes23. A pauperizao assinalada por Samir Amin atinge, hoje, at mesmo cerca de

    25,7% dos habitantes urbanos dos pases centrais que vivem, tambm, precariamente

    (vide tabela acima). Este nmero vem aumentando significativamente, sobretudo, depois

    da derrota imposta pelo capital aos sindicatos e partidos polticos social-democratas,

    socialistas e comunistas desde os anos 70, tendo nos anos 90 se agravado ainda mais 24.

  • 13

    A expanso das terras cultivadas ameaa diversidade biolgica e cultural

    Vejamos um pouco mais de perto a evoluo recente da expanso desse modelo

    agrrio/agrcola que vai nos esclarecer parte do mistrio em que, mesmo com queda de

    preos, cresce a rea plantada, aprofundando as contradies entre produo de

    alimentos e aumento da fome no mundo.

    Comparemos duas regies produtoras de soja, Iowa e Mato Grosso, situadas em

    dois pases que, embora diferentes, dispem, igualmente de vastas extenses de terras,

    EUA e Brasil25.

    Quadro 2 - Comparao da Estrutura de Custos da Produo de Soja - Iowa (EUA)e Mato Grosso (BRASIL) 2001 -(Mdia Por Hectare em US$)

    Iowa EUA Mato Grosso BrasilCusto com Custo por

    HectareCusto porCada Saca

    Custo porHectare

    Custo porCada Saca

    Terra 350.0 6,36 57.50 0,96Trabalho 33.90 0,62 12.50 0,21Capital 274,32 4,87 365.0 6,63Outros 38.78 0,71 40.00 0,66Custo p/ hectare 697.0 12,67 475.0 7,91Sacas p/ hectare - 55 - 60

    Fontes: Elaborao prpria a partir de Duffy, Michael and Darnell Smith, 2000; Galinkin, 2002 eJoo G. Martines-Filho, apud Baumel, C. P., McVey, M. J. and Wisner, R.N.,"Impact of BrazilianSoybean Competition on Lock Extensions on The Upper Mississippi River?, Iowa University: Iowa, 2001.

    Em Iowa obtm-se 55 sacas de soja a um custo de produo por hectare de US$

    697 e, em Mato Grosso, so 60 sacas a um custo de somente US$ 475! Em outras

    palavras, Mato Grosso apresenta uma produtividade 9,1% maior (60 contra 55 sacas por

    hectare), com custo de produo por hectare equivalente a 68% do de Iowa!

    Em Iowa, a terra corresponde a 50,2 % do custo de produo total por hectare e,

    em Mato Grosso, a apenas 12%! Com relao ao custo do trabalho, em Iowa corresponde

    a 4.9% e, em Mato Grosso, a 2,6% do custo total de produo por hectare! J com

    relao aos gastos relativos a sementes, fertilizantes, herbicidas correspondiam, em Iowa,

    a 27% do custo total de produo por hectare e, em Mato Grosso, a 61,4%!

    Considerando-se os gastos com o setor industrial como um todo, isto , o que o

    setor agrcola gasta comprando herbicidas, fertilizantes, sementes e, ainda, com

    mquinas, obtm-se, para Iowa, 39,6% dos custos totais de produo por hectare e, para

    Mato Grosso, de 76,8 % ! Enfim, a terra custa 6 vezes mais em Iowa que em Mato

  • 14

    Grosso; o trabalho 2,7 vezes mais em Iowa, enquanto, o custo de capital por hectare de

    apenas 75% em Iowa do que em Mato Grosso26. Atentemos, agora, para a estrutura de

    custos quando se exclui o custo com a terra27.

    Quadro 3 - Estrutura Comparada de Custos por hectare excludo o Custo da TerraIowa (EUA) e Mato Grosso (Brasil) - 2001 (em %)

    Gasto com Iowa (EUA) Mato Grosso (Brasil)Capital 79,1 86,4Trabalho 9,8 3,0Outros 11,1 9,6Total 100 100

    Um mercado mundializado (commodities) como o de gros impe agricultura um

    elevado padro cientfico e tecnolgico tornando-a extremamente dependente do capital,

    bastando observar que, excluda a terra, so os fertilizantes, herbicidas, inseticidas,

    praguicidas, sementes e as mquinas os itens que mais pesam na estrutura de custos

    totais por hectare, tanto em Iowa, onde correspondem a 79,1% como em Mato Grosso,

    com 86,4%28. Com os custos de capital to altos, tanto em Iowa como em Mato Grosso,

    o preo da terra e o do trabalho que acabam fazendo a diferena, e assim a expanso do

    cultivo de gros vem sendo acompanhada (1) por um aumento da concentrao fundiria,

    (2) por novas tecnologias que diminuam os custos do trabalho (plantio direto, tratores-

    computadores e organismos transgnicos), uma diminuio significativa do trabalhador no

    processo produtivo e (3) a disponibilidade de terras acaba se constituindo num fator

    decisivo para o desenvolvimento desse modelo agrrio-agrcola 29.

    Atente-se, pois, para a realimentao recproca entre o aumento da rea cultivada

    e o consumo de insumos. Afinal, cada novo hectare necessita de igual quantidade fsica

    de adubos, fertilizantes, sementes e, assim, quanto mais terras cultivadas maior o

    consumo desses insumos numa espiral ascendente que se nutre de terras baratas

    frente e, na retaguarda, no raro terras so abandonadas pela eroso dado o uso

    intensivo. Afinal, terras baratas frente so um convite a que no se invista na

    manuteno do fundo de fertilidade natural da terra. A regio do Alto Araguaia, em Gois,

    j acusa vastas extenses de terras abandonadas onde grande a eroso, como pode

    ser vista pela presena de gigantescas vossorocas, alm de inmeras ravinas.

    Ainda recentemente, em maio de 2003, em uma srie de reportagens denominada

    O Brasil que deu certo, exibida pela maior rede de televiso do Brasil, exaltava-se os

  • 15

    mritos do agronegcio e regozijava-se de um trator, aparelhado com computador e

    equipado para o plantio direto, que custava a importncia de nada mais, nada menos US$

    230.000 (duzentos e trinta mil dlares)! Imaginemos a rea necessria para tornar

    rentvel um estabelecimento agrcola que usa um trator que custa US$ 230.000!

    Na Argentina, a superficie semeada dedicada produo de soja aumentou de

    quase 5 milhes de hectares, no comeo dos anos 90, para 11,6 milhes em 2001/02. No

    mesmo perodo, a produo fsica da oleaginosa passou de 10 milhes de toneladas a um

    rcorde de 30 milhes, transformando a Argentina no segundo produtor mundial de soja

    transgnica atrs dos EUA - e no primeiro exportador de leo e farelo de soja. Segundo

    estimativas oficiais, seu cultivo passou a representar ao redor de 42% da superficie e a

    44% do volume total de gros produzidos a nvel nacional.30

    O agrnomo francs Marcel Mazoyer alerta que nem todos os produtores

    exportadores que se beneficiam da revoluo agrcola ou da revoluo verde podem

    ganhar terreno ou simplesmente manter-se, a menos que disponham de certas vantagens

    competitivas complementrias. Este precisamente o caso dos latifundirios

    agroexportadores bem equipados sul-americanos, sul-africanos e zimbabweanos e ...

    amanh, qui, os russos ... que dispem ao mesmo tempo de vastos espaos, baratos,

    e de mo de obra entre as menos caras do mundo. tambm o caso dos produtores de

    alguns pases desenvolvidos com renda alta, como EUA ou da Unio Europia, que

    contam com meios oramentrios para subvencionar amplamente seus agricultores. (...)

    Nestas condies, os preos internacionais dos produtos agrcolas s resultam vantajosos

    para uma minoria de agricultores que podem, deste modo, continuar investindo,

    avanando e ganhando pores do mercado; so insuficientes e desfavorveis para a

    maioria dos agricultores do mundo: insuficientes em geral para que possam investir e

    progredir; insuficintes a mido para que possam viver dignamente de seu trabalho,

    renovar seus meios de produo e conservar suas pores de mercado; e, inclusive,

    insuficientes para que a metade menos equipada, menos dimensionada e pior situada dos

    camponeses do mundo possa se alimentar corretamente (Mazoyer, 2003).

    preciso considerar, entretanto, que a queda dos preos dos produtos agrcolas

    se deve no s ao aumento da produtividade mas, tambm, diminuio da renda

    diferencial por localizao31 pela expanso da rede de transportes e de toda a sua

    logstica (silos, armazens, portos, sistemas de gesto just in time, just in space). Em

  • 16

    linguagem corrente, a diminuio nos custos de deslocamento tornou possvel, em grande

    parte, a queda dos preos dos produtos agrcolas32.

    Por isso, a criao de estradas, hidrovias e portos se tornou uma verdadeira

    obsesso, como o demonstram expanso da rede de transportes no Brasil aps a

    fundao de Braslia (1960) que abriu ao mercado todo o Planalto Central do pas, com

    seus Cerrados, e a Amaznia com a inaugurao da Rodovia Bernardo Sayo Braslia-

    Belm (1962). Essa presso continua se fazendo presente como se pode ver na

    insistncia na construo da Hidrovia do Paran Paraguai, no Pantanal paraguaio-

    brasileiro e, ainda, a presso, que tende a se acentuar, sobre a Amaznia haja vista (1) o

    porto de Itacoatiara no rio Amazonas, parte do complexo da Hidrovia do Madeira, sob o

    controle do Grupo Maggi; (2) o recm inaugurado porto de Santarm, na foz do Rio

    Tapajs, construdo por um consrcio de empresas liderados pela multinacional Cargill, a

    que est associado o interesse pela construo da Br 163 que liga Cuiab-Santarm,

    assim como pela construo da Hidrovia Tapajs - Teles Pires; (3) a Hidrovia Rio Branco -

    Rio Negro (Roraima e Amazonas) e a ligao com Caracas, na Venezuela, da Rodovia Br

    174 Manaus Caracara - Boa Vista; (4) a Hidrovia Rio das Mortes Araguaia

    Tocantins e a sada pelos portos ou de So Luiz ou ou Belm e, ainda: (5) a sada para o

    Pacfico pelo Acre com o asfaltamento da Br 364.

    Pelo sentido geogrfico dessas vias v-se que seu destino a exportao de

    commodities. O impacto socioambiental do agronegcio vem atingindo em cheio os

    Cerrados assim como a prpria floresta ombrfila densa na Amaznia, pondo em risco

    toda a riqueza em diversidade biolgica e cultural, com o aumento do desmatamento em

    Rondnia, Mato Grosso, Par e no Amazonas, que j se coloca para alm do famoso

    arco do desmatamento (Amaznia Meridional e Oriental - Mato Grosso, Tocantins e

    Par), e j invade a margem esquerda do Rio Amazonas (Br 174 Manaus-Caracara).

    Cada vez mais comearemos a falar no mais de arco de desmatamento e, sim, de

    fragmentao da floresta, o que expe a rea a uma nova fase de seu processo de

    desmatamento com conseqncias imprevisveis.

    A expanso da fronteira agropecuria vem ameaando seriamente, tambm,

    reservas de biodiversidade no norte argentino na floresta dos Yungas, cuja superfcie est

    sendo progressivamente ocupada pela soja. Segundo Javier Corcuera, da Fundao Vida

    Silvestre, na zona j se perderam para sempre - mais de 130.000 hectares de floresta

  • 17

    no Piemonte, devido ao avanco de monocultivos, como a cana de acar, banana e soja

    e alertou que se continua este caminho, Salta viver um futuro prximo com mais

    inundaes e menos recursos naturais para seus habitantes33.

    Dlares e dores - a expanso recente do agronegcio nos cerrados brasileiros.

    Salientemos, inicialmente, que as prticas de domesticao de espcies de plantas

    e animais sempre conviveram com outras atividades como o extrativismo da caa, da

    coleta e da pesca e, assim, alm das terras manejadas de modo mais simplificado, como

    caracterstico de qualquer agroecossistema, sempre esteve presente uma relao com

    os espaos circundantes, geralmente com mltiplas formas de uso comum dos recursos

    naturais. Nessas reas comuns se recolhiam frutos, ervas medicinais, aromticas,

    estticas (flores), assim como madeiras para utenslios e lenha.

    O advento do capitalismo se tornou possvel por meio do cercamento de terras

    comuns (enclousers) e os camponeses assim privados de terras e no mais conseguindo

    se reproduzir enquanto tais vieram a se tornar assalariados rurais ou urbanos34. Na

    Amrica, houve simplesmente a apropriao manu militari de todas as terras que, a rigor,

    no conheciam a propriedade privada, alm de tornar escrava a mo de obra trazida da

    frica e estabelecer a servido indgena. Esse processo, aqui sumariamente descrito, se

    reproduz ainda hoje em vastas regies de expanso capitalista. Antes de tudo, esse

    modelo de expanso agropecurio ignora outros sistemas de uso da terra que, como

    vimos, combinavam de diferentes modos a agricultura e a pecuria com os extrativismos,

    o que tem trazido conseqncias socioambientais graves.

    Exploremos, aqui, guisa de ilustrao o que vem ocorrendo nos cerrados

    brasileiros at pela importncia que a regio vem assumindo para o agronegcio. Nessas

    amplas reas dos cerrados, duas grandes unidades da paisagem foram conformadas

    pelas populaes que ali vivem tradicionalmente: as chapadas e os vales - o grande

    serto e as veredas - na linguagem de Guimares Rosa, o escritor que melhor soube

    captar os mistrios da regio e dos seus camponeses. Assim, os povos que vivem pelos

    cerrados desenvolvem sistemas de uso da terra que combinam a agricultura, geralmente

    nos fundos dos vales, nos brejos, nos brejes, nos pantamos, nos varjes; nas encostas e

    nas chapadas, reas onde a gua mais difcil de ser captada sem tecnologias de

    captao em profundidade35, deixam o gado solta, fazem a coleta do pequi, da fava

  • 18

    danta, do baru e outros frutos e resinas, recolhem madeira e lenha, geralmente fazendo

    uso compartilhado, sobretudo dessas terras das chapadas.

    Ao contrrio, para os grandes empresrios do agronegcio, as terras das chapadas

    tm um significado distinto. Sendo terras planas significam custos energticos menores.

    Essa uma regra geral do espao agrrio brasileiro, onde a grande explorao comercial,

    quase sempre, de exportao, ocupa as reas de topografia mais planas ou suavemente

    onduladas, deixando aos camponeses as terras mais acidentadas36. A grande expanso

    recente pelo agronegcio dos amplos cerrados, volta a se aproveitar desse legado natural

    de topografias planas, acrescido do fato de serem terras de uso comum das populaes

    locais ou pertencentes a grandes fazendeiros criadores de gado que, at os anos 60,

    faziam uma pecuria extensiva e, no raro, permitiam livre acesso aos camponeses para

    a coleta de frutos, resinas, ervas e remdios em geral. A apropriao dessas terras seja

    por grilagem, prtica amplamente utilizada, ou adquiridas a baixo preo de fazendeiros

    pecuaristas, foi a forma com que se deu a expanso privada sobre as terras de chapadas

    que o campesinato aproveitava na forma de uso comum extensivo (importncia do

    extrativismo), associado a outros usos nas encostas e baixadas (brejos, vrzeas,

    pantamos). comum a denominao de gerais dessas terras indicando que eram de

    todos, gerais.

    Tradicionalmente os camponeses convivem nessas terras sem nenhum registro

    formal de propriedade, ao lado de fazendeiros que mantinham grandes reas com

    pastagem, geralmente natural, para uma criao extensiva de gado. At mesmo entre

    fazendeiros e camponeses haviam regras de uso compartilhado dos recursos naturais,

    como o caso do pequi ou, j numa rea adjacente ao cerrado, como a zona dos cocais

    do Maranho, a coleta do babau. O fazendeiro podia ser proprietrio da terra, mas no

    do babau, ou do pequi, ou do baru, ou da fava danta, o que mostra uma modalidade

    mais complexa de apropriao dos recursos naturais onde as territorialidades no so

    mutuamente excludentes, onde a propriedade privada absoluta, sobretudo quando

    capitalista, acaba por instaurar uma relao conflituosa. Com a expanso do agronegcio,

    a luta pela manuteno do livre acesso coleta do babau e do pequi (Luta pelo Babau

    Livre e pelo Pequi Livre) vem sendo empreendida pelos camponeses, no caso do

    Maranho, sobretudo pelas camponesas, pela mulheres quebradeiras de coco babau.

  • 19

    Desde os anos 60, com a abertura de estradas e, sobretudo, nos anos 70 e 80,

    com a colaborao dos estudos da Embrapa sobre correo e adubao de solo e na

    seleo de sementes adaptadas regio, e o barateamento relativo de tecnologias de

    captao de gua a 100 e 200 metros de profundidade, as chapadas passaram a se

    constituir em objeto de ateno das grandes empresas do complexo agropecurio, dando

    origem ao latifndio produtivo do agronegcio. O cercamento dos campos, tal como na

    Inglaterra, no tardou a se fazer contando, inclusive, com o apoio formal do Estado

    privatizando grande parte das terras devolutas, com contratos de concesso por 20 anos

    para empresas de plantao de eucalipto, como os efetuados pela Ruralminas durante o

    regime ditatorial sob tutela militar, em Minas Gerais.

    Por toda regio quebrou-se a complementariedade que havia entre o grande serto

    e a vereda, isto , entre a chapada e o fundo do vale, entre a agricultura, a pecuria e os

    extrativismos. A apropriao e separao das chapadas foi, em grande parte, facilitada

    pela ausncia, at mesmo, das casas dos camponeses que, geralmente, esto

    localizadas no fundo dos vales ou nas encostas, onde esto as nascentes.

    A monocultura chegou, assim, aos grandes sertes e, com ela, a homogeneizao

    de uma regio que se caraceterizara por sistemas de uso mltiplo dos recursos naturais,

    de manejo de uma enorme riqueza de diversidade biolgica que essas populaes

    camponesas, indgenas, de afrodescendentes, de geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros,

    retireiros (Araguaia) tornaram possvel que chegasse aos nossos dias com um

    diversificado acervo como patrimnio cultural.

    O uso intensivo de adubos e fertilizantes trazem conseqncias danosas, como j

    vimos, sendo que aqui cabe destacar, ainda, o profundo desequilbrio hdrico que se

    instaura com os latifndios produtivos de agronegcio, com a captao de guas em

    profundidade trazidas superfcie para uma irrigao, com sistemas de piv central, de

    baixssima eficincia, onde se perde at 70% da gua por evaporao direta e, assim,

    com a quebra/inverso da funo de caixa dgua das chapadas. No fundo dos vales, a

    gua j no jorra o ano todo, as fontes e crregos secam, rios se tornam intermitentes, o

    que passa a exigir, inclusive, barragens para regularizar o cursos de rios permanentes,

    como o So Francisco, que nasce nos cerrados, como tantos rios.

  • 20

    At mesmo a agricultura camponesa/tradicional de fundo de vale se torna

    impraticvel, ela que j sofrera um duro golpe com a supresso das chapadas para deixar

    o gado solta, recolher um remdio, uma resina, uma madeira, lenha, um fruto ...

    O cerrado brasileiro, com a sua enorme diversidade biolgica e cultural, vem se

    transformado, assim, numa rea de expanso de grandes latifndios produtivos, pelas

    enormes vantagens que oferece, seja pela riqueza hdrica que abriga, seja pela topografia

    plana de suas chapadas e de seus chapades. Avalia-se que 70% da rea das chapadas

    j esteja ocupada por esse tipo de empresa, seja com cultivo de gros, algodo ou de

    monoculturas de plantao de madeira (eucaliptos e pinnus alba e pinnus elliotis).

    Compelidos pela exigidade de terras, os camponeses se vem compelidos a fazer

    um uso dos recursos naturais com tcnicas que desenvolveram e estavam adaptadas a

    terras disponveis em grande extenso. Os camponeses dos cerrados se vem, hoje,

    desapropriados por um modelo que, por sua prpria lgica, no democratiza seus

    benefcios, seja pela elevada magnitude de capital que exige para aceder a todo o pacote

    tecnolgico, seja pelas enormes extenses de terras, seja, ainda, pela diminuio de

    preos agrcolas que provoca, impedindo que cheguem ao mercado aqueles que esto

    abaixo do nvel de produtividade mdio, sempre rebaixado pelas grandes empresas do

    agronegcio. Por sua vez, esse modelo transfere para a soceidade como um todo e, at

    mesmo, para as geraes futuras sua enorme ineficincia energtica global e seus danos

    ambientais diversos.

    Assim, populaes empobrecidas, premidas por esse modelo, tambm pressionam

    o uso dos recursos naturais elas que, geralmente, ocupam as terras mais acidentadas e,

    deste modo, esse modelo agrrio-agrcola, por meio de seu lado de menor poder, tambm

    amplia o desmatamento, a eroso, a desertificao, como vemos na savana e no sahel

    africanos, nas encostas e vales andinos e himalaios, no semi-rido brasileiro e, mesmo,

    em reas acidentadas da Mata Atlntica ou da Amaznia onde, recentemente, nos anos

    70 e 80, milhes de brasileiros foram habitar impelidos pela contra-reforma agrria

    chamada colonizao.

    tambm o que se v na Colmbia, onde populaes indgenas e camponeses, ao

    contrrio de separarem os pisos altimtricos dos Andes, como os livros de geografia

    costumam assinalar - as tierras calientes, as tierras templadas e as tierras frias -

    manejavam os diferentes pisos ao longo das estaes do ano e que, hoje, tambm se

  • 21

    vem ameaadas por empresas que tm interesse em somente cada um desses pisos

    por serem adequados isoladamente s suas monoculturas. No Equador, o mesmo se

    observa para a expanso do cultivo de flores em vales andinos, levando comunidades

    indgenas e camponesas fome e misria. No litoral do Equador, ou no Cear, no

    Brasil, o mesmo se v com a extino de reas de manguezais com a expanso do

    cultivo de camares, geralmente para exportao.

    Acrescente-se, ainda, um outro paradoxo, o de que todo esse processo de

    expanso da fronteira agrcola, possvel graas a toda uma complexa logstica de

    transportes, mesmo tendo contribudo para diminuir os preos dos produtos agrcolas,

    deixou de beneficiar parcelas importantes da populao por sua prpria estrutura

    socialmente injusta. que a sua prpria estrutura impede que essa mesma rede j

    construda de portos, de silos, de armazens e de estradas por onde se exporta seja

    tambm via de importao. Enfim, sendo essas regies dominadas pelo agronegcio

    pouco empregadoras de mo de obra, com pequena participao do trabalho no conjunto

    da renda do sistema como um todo, toda a rede logstica torna-se, em mais de um

    sentido, de mo nica. Ela exporta mas no importa, na medida que a estrutura de

    distribuio da riqueza no conforma um mercado a montante. Assim, o prprio modo

    como se produz que se constitui numa forte razo para que o chamado custo -pas se

    mantenha alto. Enfim, a injustia social do prprio sistema impede que todo o esforo feito

    com recursos em grande parte pblicos e, assim, de todos para a construo dessas

    infra-estruturas s beneficie, de fato, uma parcela diminuta de pessoas, quando a mesma

    estrutura, sem nenhum custo adicional, poderia beneficiar mais gente fosse mais

    democrtica e justa.

    A demanda por terras pela dinmica expansiva do capital criando as condies de

    acessibilidade, como assinalamos acima, comportou a apropriao privada de modo

    violento e conflituoso37 de terras at ento apropriadas de modo comunitrio38, coletivo ou

    com outras modalidades de uso comum dos recursos naturais. Dados recentes

    divulgados pela CPT do conta de que os estados brasileiros por onde se expande o

    agronegcio so os estados onde maior o nmero de lideranas rurais assassinadas e

    de famlias despejadas. Em somente um desses estados, o Mato Grosso, governado pelo

    maior produtor de soja do mundo, o Sr, Blairo Maggy, somente no ano 2003, o

    equivalente 6,2% da populao rural foi, simplesmente, despejada de suas terras ou das

  • 22

    terras que reivindicam. Isso implicaria que em menos de 15 anos toda a populao rural

    do estado estaria despejada. Nem no perodo colonial se conseguiu tal faanha (Porto-

    Gonalves, 2004).

    Assim, nesse processo de expanso no s se perde diversidade biolgica, mas

    tambm diversidade cultural e mltiplas formas de propriedade distintas da propriedade

    privada que, como se v, no tem contra si somente a propriedade estatal que, na

    verdade, no passa de uma modalidade extrema de propriedade privada posto que,

    tambm, priva a sociedade do poder de decidir sobre o uso dos recursos e das riquezas.

    A ineficincia energtica do agronegcio e uma agricultura sem agricultores.

    Vimos que o processo de reproduo ampliada do capital que opera o atual modelo

    agrrio/agrcola est ancorado em dois pilares bsicos: (1) no uso de um modo de

    produo de conhecimento prprio do capital que se traduz na supervalorizao da

    cincia e das tcnicas ocidentais (que se querem universais) e (b) na expanso das terras

    cultivadas, sobretudo em regies onde as terras so baratas.

    A expanso exponencial do uso de adubos e fertilizantes, herbicidas, pesticidas e

    fungicidas h dcadas vem sendo objeto de intensas crticas de ambientalistas, de rgos

    ligadas sade e de sindicatos de trabalhadores sobretudo rurais. Nos ltimos 50 anos,

    enquanto a produo de gros aumentou trs vezes, o uso de fertilizantes foi multiplicado

    simplesmente 14 vezes, segundo dados da FAO. Assim, a relao entre produo de

    gros e uso de fertilizantes caiu de 42 toneladas para 13 toneladas de gros por cada

    tonelada de fertilizante usada entre 1950 a 2000. Uma queda significativa 39!

    Quadro 4 - Evoluo da Produo Mundial de Gros e do Uso de Fertilizantes1950 a 2000 (Em milhes de toneladas)

    1950 2000A) Gros 631 1.835

    B) Fertilizantes 14 141Relao A/B 41 13

    Fonte: Websites da CONAB, USDA e FAO (2002)

    Assim, salta vista a limitao ecolgica desses agroecossistemas, posto que

    sendo extremamente simplificados, tornam-se, por isso mesmo, dependentes de insumos

    externos para manter seu equilbrio dinmico. A contaminao das guas dos rios e do

    lenol fretico tem levado diminuio das espcies e do nmero de peixes e, com isso,

    tem trazido prejuzos s populaes ribeirinhas e diversidade biolgica e cultural. Afinal,

  • 23

    a pesca uma atividade historicamente complementar agricultura em muitas regies fica,

    deste modo, prejudicada.

    Ainda recentemente, em novembro de 2002, pudemos constatar no preparo da

    terra para o cultivo de gros na regio do Bico do Papagaio, entre o Maranho e o

    Tocantins, o lanamento, por avio, do desfolhante qumico conhecido como agente

    laranja, de triste memria pelo seu amplo uso na guerra do Vietname. Assim, aqueles que

    trabalham na agricultura sofrem o impacto direto do uso desses derivados da

    agroqumica, com srios danos sua sade, conforme acusa uma ampla literatura

    mdica e cientfica.

    Quadro 5 - Principais Pases Produtores de Soja 2001

    Pas Produtor Produo milhestoneladas% no Mundo Produtividade

    (kg/hectare)Estados Unidos 78.67 43,3 2.560Brasil 41.50 22,8 2.610Argentina 28.75 15,8 2.640China 15.30 8,4 1.690ndia 5.60 3,0 n.d.Paraguai 3,59 2,0 2.965

    Fonte: Websites da CONAB, USDA e FAO (2002)

    Afora a China e a ndia, com 11,4% da produo mundial, pases grandes

    produtores e grandes importadores, os EUA, a Argentina, o Brasil e o Paraguai

    participavam, em 2001, com 84% do total da produo mundial e, assim, se colocam

    como os grandes produtores-exportadores mundiais de soja, um mercado que mexeu, no

    ano 2000, com algo em torno de US$ 21 bilhes de dlares.

    As grandes corporaes do setor vm dirigindo seus interesses para a Argentina, o

    Brasil e o Paraguai, pases que vm disputando a primeira posio no ranking mundial de

    exportadores de gros e farelo de soja. O controle do mercado de sementes que, pela via

    da produo transgnica (tipo RR), pode se fundir com o mercado de herbicidas o que

    est em jogo. Nesse jogo as grandes corporaes se encontram diante de um desafio

    para estabelecer suas prprias estratgias de mercado, na medida que h uma forte

    resistncia a que se aceite, sem as devidas precaues, as sementes transgnicas. O

    Brasil tem sido, at aqui, um exemplo de como se pode sem o uso de sementes

    transgnicas, com alta tecnologia, mesmo que com um elevadssimo grau de

    concentrao fundiria, de capital e de renda40.

  • 24

    Uma agricultura sem agricultores

    A semente de soja transgnica no brinda necessariamente com aumento na

    produtividade por rea cultivada, como salientam vrios estudiosos e, sim, proporciona

    diminuio dos custos principalmente de mo de obra, na medida que os produtores j

    no tm que realizar tarefas de combate a pragas, alm do que com as tcnicas de

    plantio direto facilitam, tambm, as tarefas de semeadura41. Trata-se, portanto, de uma

    tcnica que acentua a tendncia a uma agricultura sem agricultores agravando problemas

    num momento em que o novo padro de poder proporcionado pelas novas tecnologias

    tambm no emprega tanta gente nas cidades-e-suas-periferias, como o fazia poca da

    desruralizao europia e estadunidense.

    Segundo Rulli, o modelo rural que se nos imps simplesmente de exportao de

    commodities, de concentrao de terras e de excluso de populaes. 20 milhes de

    hectares das melhores terras agrcolas esto hoje em mos de no mais de 2.000

    empresas. Nos anos 90 se produziu a maior transferncia de terras de toda a histria do

    pas, sendo deslocada a velha oligarquia pecuarista por uma nova classe empresarial

    oligoplica e prebendria. (...) Atualmente registramos uma cifra ao redor de 300 mil

    produtores expulsos e mais de 13 milhes de hectares embargados por dvidas

    hipotecrias impagveis. A esta situao de catstrofe social agropecuria deveramos

    somar a emigrao massiva dos trabalhadores rurais. S no Chaco, cada mquina

    desempregou 500 braseros. (...) Os novos pacotes tecnolgicos constitudos pelos

    sistemas de plantio direto com enorme maquinaria importada, os herbicidas da Monsanto

    e as sojas transgnicas RR no demoraram em modificar a paisagem instalando uma

    agricultura sem agricultores. No mesmo sentido apontam as anlises de Bacwell e

    Stefanoni - Ao mesmo tempo, as economias de escala derivadas da mecanizao da

    agricultura e os mtodos de plantio direto induziram a uma forte concentrao das

    explotaes que deixou fora uma grande quantidade de pequenos agricultores. Segundo

    estimativas de uma pesquisa privada realizada em quase toda a regio do Pampa, a

    quantidade de explotaes se reduziu em 31% no perodo 1992 e 1997.

    Racionalidade ecolgica ou racionalidade ambiental

  • 25

    Assim, o ambientalismo se v concitado a se posicionar diante de um desafio

    ambiental de novo tipo, onde a sustentabilidade tem que ser confrontada com a

    racionalidade que est conformando a relao da sociedade com a natureza, enfim,

    diante ou de uma racionalidade ambiental, como prope Enrique Leff, ou de uma

    racionalidade econmica mercantil. o que se nos apresenta de diversas questes, como

    a dos transgnicos, a questo energtica e da questo da certificao de madeiras.

    Afinal, pode-se caminhar no sentido de um modelo de sustentabilidade ecolgica, uma

    sustentabilidade restrita, ou de sustentabilidades mais amplas, mais complexas, enfim,

    das racionalidades ambientais (sociedades-natureza). Afinal, possvel se evitar impactos

    ambientais imediatos mas com elevadssima concentrao de riqueza e poder, com um

    modelo ecologicamente sustentvel e ambientalmente insustentvel, posto que afirmando

    a injustia social. Em pases como o Brasil a injustia social tem se mostrado

    historicamente sustentvel h, pelo menos, 500 anos e tem convivido com a devastao

    das matas, dos solos, dos rios! O desafio que se apresenta aos ambientalistas ,

    portanto, o de como evitar pintar de verde a injustia, como sugere a sustentabilidade

    ecolgica restrita.

    Enfim, esse modelo agrrio-agrcola analisado, que se apresenta como o que h de

    mais moderno sobretudo por sua capacidade produtiva, na verdade, atualiza o que h de

    mais antigo e colonial em termos de padro de poder ao estabelecer uma forte aliana

    oligrquica entre (1) as grandes corporaes financeiras internacionais, (2) as grandes

    indstrias-laboratrios de adubos e de fertilizantes, de herbicidas e de sementes, (3) as

    grandes cadeias de comercializao ligadas aos supermercados e farmcias e (4) os

    grandes latifundirios exportadores de gros. Esses latifndios produtivos so, mutatis

    mutantis, to modernos como o foram as grandes fazendas e seus engenhos de produo

    da principal commodity dos sculos XVI e XVII - a cana de acar - no Brasil e nas

    Antilhas. poca no havia nada de mais moderno. A modernidade bem vale uma missa!

    H uma geografia perversa e desigual no uso desses insumos. As estatsticas

    recentes acusam uma diminuio importante do uso desses insumos de capital -

    fertilizantes, herbicidas, inseticidas, praguicidas na Europa, nos EUA e no Canad.

    Entretanto, a lgica moderno-colonial manifesta-se nesse caso com toda fora, na medida

    que o uso desses insumos se expande no mundo como um todo, sobretudo nos pases

    pobres, como assinala o Relatrio do PNUMA (GEO-3).

  • 26

    A diminuio do uso desses insumos nos pases hegemnicos no atual do padro de

    poder mundial e seu uso ampliado na Amrica Latina, frica e sia revela, tambm, um

    limite das respostas s crticas que teimam em permanecer prisioneiras da mesma

    racionalidade econmica mercantil que comanda o modelo atual. Como pedir s

    empresas do setor agroqumico que contribuam para a diminuio do uso do produto que

    fabricam ?

    Saliente-se, ainda, que as empresas do setor agroqumico tm suas sedes, na sua

    quase totalidade, nos pases europeus, nos EUA e no Canad e, assim, essa geografia

    desigual do uso desses insumos no mundo revela o modo desigual como se valorizam os

    lugares, as regies, os pases e seus povos e suas culturas. E, insistimos, preciso ver

    aqui a mesma lgica moderno-colonial que vem comandando o processo de globalizao

    desde 1492. H, como se v, uma injustia ambiental de fundo comandando a geopoltica

    mundial. At mesmo as maiores fbricas de agroqumicos vm se transferindo para os

    pases pobres tendo, inclusive, o acidente mais srio com 3000 vtimas fatais ocorrido em

    Bhopal, na ndia, na fbrica da Union Carbide, hoje Dow Chemical.

    Alm das medidas que procuram melhorar a imagem e contemplar um meio ambiente

    mais sadio, pelo menos no lado rico do planeta, o seu lado moderno, as empresas do

    setor agroqumico vm procurando melhorar a eficncia ecolgica de seus produtos

    reconhecendo, na prtica, a fora dos argumentos de seus crticos. Afinal, com a

    simplificao dos agroecossistemas, mais aguda nas monoculturas, h uma dependncia

    cada vez maior de insumos externos ao sistema, conforme j assinalamos. As

    biotecnologias de novo tipo, como a de transgnicos, podem oferecer cruzamentos

    genticos que diminuam o impacto ecolgico do uso de insumos, por exemplo. Podem,

    at mesmo, aumentar a eficncia de uma espcie melhor adaptada seja seca seja

    umidade e, com isso, melhorando as condies dos agricultores, inclusive, aumentando

    sua autonomia. Todavia, pode-se melhorar a eficncia ecolgica, aumentando o controle

    do mercado e diminuindo a autonomia do agricultor, como bem o demonstra a soja

    Roundup Ready e toda a linha chamada Terminator. Entre uma tecnologia, mesmo

    transgnica, que aponte no sentido da autonomia do campons e aquela que o mantenha

    dependente das compras na empresa que controla a semente, no h dvida que

    estamos diante de, pelo menos, dois caminhos possveis: um de interesse pblico,

    inclusive, dos camponeses mais diretamente e, outro, de interesse privado, comercial,

  • 27

    empresarial. Assim, mais do que ser ou no ser contra ou a favor dos organismos

    transgenicamente modificados, preciso encarar toda a complexidade implicada na

    questo, que longe est de poder ser compreendida enquanto nos mantivermos presos a

    essa lgica maniquesta.

    A questo no , portanto, a de que no se possa obter menor impacto ecolgico

    do uso de um ou de outro insumo, mas o de como faz-lo nos marcos de uma

    racionalidade econmico mercantil que teima em se manter e, com isso, impedindo que

    outras solues baseadas em outras racionalidades mais complexas42 possam ser

    encontradas ou, mais ainda, que outras matrizes de racionalidade possam se reproduzir.

    Portanto, a questo para o atual modelo agrrio/agrcola movido pela acumulao

    de capital no simplesmente tcnico-ecolgica mas, sim, como resolver a equao que

    combine a dimenso ecolgica, de um lado, com a acumulao de capital de modo

    ampliado, de outro lado. No o ganho em termos ambientais que move essa lgica, mas

    como faz-lo desde que os marcos da racionalidade econmica mercantil seja mantido43,

    como sine qua non conditio.

    Assim, preciso romper com um falso consenso que vem sendo construdo entre a

    acumulao de capital, que tende para o ilimitado, e a problemtica ambiental que,

    sempre, requer que consideremos as condies naturais e seus limites. Assinalemos que

    esse consenso em torno, por exemplo, da ideologia do desenvolvimento sustentvel, no

    vem sendo construdo a partir de uma anlise preliminar do porqu o atual modelo de

    desenvolvimento considerado insustentvel para que se busque um modelo que seja

    sustentvel. como se um mdico pudesse se satisfazer com os sintomas da doena

    para tentar cur-la no lhe importando quais teriam sido as causas.

    H um realismo poltico44 que vem se colocando acima da necessidade de uma

    anlise verdadeiramente crtica acerca das contradies socioambientais implicadas no

    desafio ambiental contemporneo. O realismo poltico, em si mesmo, externo anlise

    cientfica, nos impede de colocar a prpria racionalidade econmica mercantil em questo

    e, assim, a dimenso poltica que est embutida na prpria problemtica ambiental do

    modelo agrrio/agrcola fica de fora.

    Uma resposta dentro dessa lgica parece estar presente no prprio exemplo da

    linha Roundup Ready e Terminator: o que se perde em termos capitalistas na venda do

  • 28

    herbicida se ganha com o atrelamento da venda da semente. A expresso popular poder

    econmico precisa ser levada mais a srio cientificamente.

    J assinalamos que a diferena entre a nova fase do desenvolvimento da relao

    de poder por meio da biotecnologia da antiga (1) que se rompe com a barreira natural

    de produzir organismos geneticamente modificados (OGMs) e, assim, na atual fase se

    produz organismos transgenicamente modificados (OTMs) e; (2) passa a ocorrer uma

    desapropriao/desqualificao do saber ancestral/atual ou, quando menos, uma

    separao entre o lugar que produz e o que consome conhecimento, cada vez mais

    centralizado nos laboratrios cientficos empresariais com patentes garantidas nos pases

    hegemnicos.

    Assim como no se sabia, ainda em passado recente. quais seriam os efeitos sobre a

    sade humana e ao meio ambiente do uso do DDT, do ascarel, do csio, do brio, do

    penataclorofento de sdio (p da China), enfim, da ampliao e generalizao do uso de

    todos os elementos da tabela peridica da qumica, alm dos novos elementos sintticos

    acrescidos a essa mesma tabela, ou ainda da energia nuclear e, at mesmo, do uso

    continuado de plulas anticoncepcionais sobre o corpo da mulher, tambm no se tem

    pesquisas que assinalem os efeitos dos organismos transgnicos sobre a sade humana

    e sobre meio ambiente, confome hoje reconhece at mesmo o The New Yok Times, como

    vimos acima.

    So graves as conseqncias que se avizinham com a expanso para novas reas

    de uma lgica mercantil que reduz a complexidade dos ecossistemas e de mltiplas

    culturas a agroecossistemas simplificados com os monocultivos de soja, milho, girassol,

    algodo, eucalipto e pinnus. Atente-se, ainda, para o fato de que os diferentes biomas do

    planeta no respondem da mesma forma s aes que sobre eles se fazem. A

    complexidade da dinmica de matria e energia das regies tropicais, sabidamente

    menos conhecida pela cincia ocidental45, com freqncia v todo um sistema tcnico-

    agrcola pensado a partir de uma cincia natural desenvolvida a partir de dinmicas mais

    simplificadas das regies frias e temperadas, ser arrogantemente transplantado com

    conseqncias socioambientais danosas.

    A busca permanente pelo aumento da produtividade remete-nos para os limites tanto

    da entropia, como da produtividade biolgica primria do planeta. Sabemos que o

    aumento da produtividade da indstria sobre as demais atividades primeiras na relao da

  • 29

    sociedade com a natureza - agricultura, pecuria, extrativismo animal (caa e pesca) e

    vegetal se deveu ao domnio da energia solar concentrada na molcula de carbono

    durante um longo tempo geolgico o petrleo e o carvo que proporcionou um

    aumento, que se acreditava, ilimitado na capacidade de transformao da matria. O

    aumento da desordem (entropia) no sistema Terra (efeito estufa e lixo 46) o melhor sinal

    de que esses limites no foram devidamente considerados at aqui. No olvidemos, pois,

    que a energia fssil que vimos utilizando to amplamente contm um tempo geolgico

    embutido sob a forma de carvo e de petrleo.

    Por outro lado, os sistemas vivos trabalham num sentido contrrio entropia

    (neguentropia), na medida que operam em direo auto-organizao (o prprio

    organismo vivo) a partir da transformao da energia solar diariamente renovada que

    permite uma produtividade primria biolgica determinada (fotossntese). A diversidade

    biolgica proporciona uma complexificao das cadeias trficas por onde se d o fluxo de

    matria e energia no interior dos diferentes biomas e entre os diferentes biomas que

    constituem o sistema Terra. Para melhor fixar a imagem do que se est propondo na

    anlise, considere-se que cada espcie um momento-repouso do fluxo de matria e

    energia que flui no sistema Terra como um todo e de modo diferenciado nos diferentes

    ecossistemas.

    De fato, a substituio da complexidade pela simplificao menos grave em

    biomas como o das regies temperadas e frias que so relativamente menos ricos em

    diversidade biolgica. A questo se coloca de modo mais grave quando se trata de

    regies tropicais, onde a diversidade biolgica maior e, portanto, onde so mais

    complexos os circuitos de matria e energia do planeta como um todo. Basta considerar

    que um hectare de floresta ombrfila densa, como a Amaznica, abriga 460 toneladas de

    biomassa por hectare, em mdia, podendo chegar em determinadas reas a atingir 550

    toneladas por hectare. Essa produtividade biolgica o limite mximo de eficincia

    energtica natural alcanado por qualquer regio do planeta e mantm uma correlao

    positiva com a disponibilidade de radiao solar elevada das regies tropicais e com a

    disponibilidade hdrica, assim como com a diversidade biolgica que cria

    complementariedades e antagonismos entre as espcies47. Assim, a energia solar, do que

    as regies tropicais detm o maior potencial, que cada vez mais tomada em

    considerao na geoeconomia e na geopoltica mundial.

  • 30

    Agregue-se, ainda, que alm de todo um processo de eroso gentica, com a

    extino de espcies que sequer conhecemos, h uma outra dimenso, igualmente grave

    que, tambm, deriva da lgica econmica reducionista e simplificadora que acompanha a

    dinmica capitalista e sua diviso do trabalho: trata-se da perda da rede de ligaes intra-

    especficas e inter-especficas por onde flui todo o metabolismo desses complexos

    ecossistemas. E aqui as tentativas de atribuir preos s espcies, que o realismo poltico

    da economia ecolgica vem se esforando em fazer, sem sucesso do ponto de vista

    ambiental, diga-se de passagem, mostra toda a sua limitao, at porque para isso se

    vem obrigados a isolar cada espcie e como cada espcie viva um momento-repouso

    diante de um fluxo de vida um nonsense atribuir-se um valor quando isoladamente

    considerada.

    A expanso das monoculturas com seus agroecossistemas altamente simplificados

    e, por isso mesmo, altamente dependentes de energia de fora, est se dando nesse

    momento sobre reas de florestas tropicais e de savanas (cerrados no Brasil)48. Assim,

    regies de alta produtividade biolgica primria, como a Amaznia, esto sendo

    transformadas em reas importadoras de matria e de energia. Manter elevada a

    produtividade em regies de sistemas complexos, como as regies tropicais exige uma

    permanente importao de energia que, nesse caso, s pode advir de fontes que no seja

    a energia solar diariamente renovada, haja vista serem as regies tropicais aquelas que

    mais energia solar dispem. O balano energtico para essas regies e seus povos ,

    assim, necessariamente negativo, o que contribui decisivamente para manter a

    dependncia dessas reas, em si mesma to ricas em energia, em diversidade biolgica,

    em recursos hdricos e em diversidade cultural, submetidas aos ditames do complexo

    oligrquico financeiro aliado ao da agroindstria, com riscos srios no s para essas

    regies, mas para a humanidade e o planeta como um todo, por sua necessria

    ineficincia energtica.

    A ineficincia hdrica

    Um particular interesse devemos voltar, ainda, ao equilbrio hdrico que est sendo

    rompido com o processo de moderno-colonizao agrrio/agrcola, sobretudo nessas

    duas reas que no s so vizinhas, como ecologicamente complementares - o Cerrado e

    a Amaznia. Registremos que as duas maiores reas continentais alagadas de todo o

  • 31

    planeta so adjacentes aos cerrados o Pantanal brasileiro-boliviano-paraguaio e a rea

    de cerca de 2 milhes de hectares do rio Araguaia, ambas ameaadas por presses para

    construo de hidrovias e pelo agronegcio. Alm disso, dos cerrados saem os mais

    importantes afluentes da margem direita do rio Amazonas (Madeira, Tapajs e Xingu), o

    Araguaia-Tocantins, os formadores do Paraguai, do Paran, alm do Orenoco e outros.

    Guimares Rosa chamara os gerais (os cerrados) de caixa dgua.

    A Amaznia sul-americana, com uma extenso de terras de cerca de 800 milhes

    de hectares, abriga em suas florestas aproximadamente 460 toneladas de biomassa por

    hectare. Consideremos que essa biomassa , em mdia, 70% formada por gua.

    Estamos, pois, diante de um verdadeiro oceano verde que oferece, por

    evapotranspirao, grande parte das chuvas que vo circular por vastas regies da

    Amrica do Sul e do Caribe, para no falar de sua contribuio na dinmica climtica

    global retendo, na prpria biomassa, energia e gua em grandes extenses de terras.

    Assim, temos a floresta amaznica abrigando em seu prprio corpo um volume

    significativo de gua, tanto nos contrafortes andino-amaznicos, como no Planalto Central

    Brasileiro e no Sistema Parima ou Guiano. desses planaltos que emanam, com seus

    amplos cerrados, a maior parte dos afluentes do Rio Amazonas, da bacia do Paran-

    Paraguai, o Tocantins e da totalidade dos rios que formam a Bacia do Orenoco, na

    Venezuela.

    A riqueza hdrica aqui implicada enorme e todo o seu regime vem sendo alterado

    pela simplificao extrema provocada pelo modelo agrrio-agrcola que vem se

    expandindo contra essas regies, assim como pela explorao petrolfera, sobretudo, nos

    contrafortes andino-amaznicos.

    Cientistas argentinos que vm acompanhando a dinmica socioambiental do

    agronegcio vm assinalando os efeitos do uso de fertilizantes e outros insumos para

    garantir a produtividade, sobretudo quanto eroso dos solos e dinmica hdrica. Jorge

    Rulli diz acreditar que as inundaes sejam o resultado de um modelo agrcola extrativo,

    quase mineiro, que expandiu a fronteira agropecuria sojeira a zonas de bosque nativo e

    que saturou os solos com glifosato pondo em srios riscos sua vida microbiana. De fato

    as estatsticas demonstram que sobre pouco mais de 10 milhes de hectares de cultivos

    transgnicos esto sendo aplicados cerca de 80 milhes de litros de herbicidas anuais.

    Em alguns lugares se tem experimentado o desaparecimento prtico das Azotobacter

  • 32

    (bactrias fixadoras de azoto) do solo e a acumulao dos barbechos que ao no ser

    processada a celulose tende a mumificar-se, tomando uma colorao muito particular que

    mostra a interrupo dos ciclos biolgicos. Esta converso do solo em substrato similar a

    cinzas ou areia impede a reteno da gua e provoca o crescimento das napas

    superficiais que so as que terminan inundando as zonas baixas (Rulli, J. E.

    Biotecnologia e Modelo Rural Argentina).

    H, assim, srios limites para que a dimenso ambiental deixe de ser vista como

    um constrangimento para ser vista como uma oportunidade, como vem sendo repetido ad

    nauseam ultimamente. No que a dimenso ambiental seja um constrangimento s aes

    humanas enquanto tais. O contrrio que estaria bem mais perto da verdade, na medida

    que a sociedade capitalista, ao expressar a riqueza em termos quantitativos, introduz

    uma lgica que tende para o ilimitado diante da materialidade da Physis com seus limites

    (leis da termodinmica, produtividade biolgica primria lquida, entre outras). Afinal,

    embora no haja limites para os nmeros, os recursos naturais tm limites, assim como

    tem limite a resilincia dos diversos ecossistemas.

    H, ainda, uma margem de manobra significativa para uma economia ecolgica,

    embora no ilimitada, at porque a dimenso ambiental no vinha sendo (im)posta aos

    clculos dos agentes econmicos. Como essa dimenso hoje se impe os agentes

    econmicos no tm como ignor-la e, assim, passa a fazer parte do politicamente

    correto e entra para o clculo dos agentes econmicos, no necessariamente como um

    valor a ser tomado como tal, haja vista a lgica do desde que e do como se j

    assinaladas.

    Enfim, s quando se pensa numa escala espacial e temporal limitada, se pode

    acreditar que uma lgica econmica mercantil, geralmente de curto prazo, possa

    incorporar a dimenso ambiental49 de modo sustentvel. Enfim, so os prprios limites da

    lgica de mercado que esto sendo postos prova.

    A questo agrria se urbaniza

    Com cerca de aproximadamente metade da populao mundial se tornando

    urbana, muda completamente o sentido da questo agrria. A questo agrria, hoje, no

    mais uma questo especfica do campesinato, como at recentemente poderia se

    pensar. Ao contrrio, torna-se uma questo tambm urbana ao inscrever o urbano no

  • 33

    circuito metablico da humanidade com o planeta pelas implicaes impostas pela

    necessidade de abastecimento. A questo ambiental exprime melhor do que qualquer

    outra essa imbricao das contradies do capitalismo na sua relao com a natureza. J

    vimos anteriormente como isso se apresenta nos casos da ineficincia energtica e do

    uso dos recursos hdricos do atual modelo agrrio-agrcola.

    H razes ecolgicas no devidamente consideradas no s pelas prticas sociais

    dominantes, mas tambm por uma cincia social reducionista e cartesiana que merecem

    ser vistas. Cresce entre cientistas a convico de que vrus e bactrias que vm

    assolando a espcie humana com epidemias fazem parte de um mesmo tronco evolutivo

    de vrus e bactrias encontradas em outros animais, sobretudo, em mamferos. A

    domesticao de espcies de plantas e animais tende a aproximar essas linhagens

    evolutivas e, assim, tornar mais provveis as contaminaes recprocas.

    Ao mesmo tempo devemos considerar que muitas dessas espcies de vrus e

    bactrias tm uma larga histria de convivncia com transformaes na histria geolgica

    do planeta que os habilitam a viver e sobreviver em situaes muito diversas e, portanto,

    com mais larga adptao biolgica que a prpria espcie humana. Os casos recentes do

    vrus da AIDs, do vrus Ebola, da tuberculose asitica (SARS), da gripe do frango

    deveriam nos servir, definitivamente, de alerta, para no falarmos da doena da vaca

    louca (encefalopatia espongiforme bovina).

    Essa nova situao pode ser experimentada recentemente com a tuberculose

    asitica que envolveu pases to diferentes e distantes entre si como a China, Hong Kong

    e Canad. que antigamente as doenas ficavam restritas geograficamente e hoje, ao

    contrrio, os deslocamentos mais intensos entre lugares torna o mundo mais vulnervel

    como um todo. A prpria febre aftosa era, antigamente, mais circunscrita.

    A simplificao dos agroecossistemas, ao eliminar elos das complexas cadeias de

    fluxo de matria e energia da vida dos ecossistemas, acaba por expor a evoluo da

    nossa prpria espcie. J est devidamente comprovada a relao entre desmatamento

    de reas tropicais e a crescimento de casos de malria, na medida que o mosquito

    transmissor da doena no encontra mais os macacos de que se alimentavam na floresta

    e passa a encontrar nos humanos seu alimento.

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    Vejamos um pouco mais de perto um tema que expressa melhor do que qualquer

    outro essa questo da urbanizao da questo agrria a dos organismos

    transgenicamente modificados.

    Dos organismos geneticamente modificados aos organismos transgenicamentemodificados

    Esclareamos, logo de incio, que a expresso OGM Organismo Geneticamente

    Modificado genrica e imprecisa. Rigorosamente falando, toda a evoluo das

    espcies se d por modificao gentica que, assim, um fenmeno natural. A inveno

    de espcies cultivadas trigo, milho, arroz, mandioca, pupunha so invenes culturais

    cultivares e se fizeram enquanto modificao gentica desenvolvida por diferentes

    povos e suas culturas em ntima relao com a natureza. So, assim, um produto cultural

    e natural. J os OTMs Organismos Transgenicamente Modificados so criaes

    laboratoriais e, portanto, no foram tecidas e experimentadas em convivncia com a

    natureza.

    Tem havido muita generalizao no debate em torno dessa questo que, assim,

    est politizada de ponta a ponta. Deste modo, todo o cuidado pouco. Todavia, a

    politizao no , necessariamente, um problema. No caso implicado, o que sempre

    esteve presente olvidado se coloca, hoje, abertamente como questo poltica. Afinal, se a

    cincia deve trabalhar com os fatos a partir dos prprios fatos, preciso trabalhar essa

    questo sabendo, desde o incio, que dela faz parte, enquanto parte dos fatos, a prpria

    dimenso poltica. Por isso devemos aceitar, preliminarmente, a advertncia do Dr. Fabio

    Faleiro, cientista da rea de Biologia Molecular Vegetal, da Embrapa Cerrados, que nos

    alerta que na verdade, cada planta transgnica tem a sua particularidade, seja pelo

    mtodo utilizado, o gene, o benefcio que ser causado na sociedade ou os interesses

    econmicos envolvidos. Por isso, perguntas sobre benefcios ou riscos devem ser

    direcionadas, ou seja, os transgnicos devem ser analisados caso a caso.

    J assinalamos que duas questes se tornam centrais para o desenvolvimento

    dessa agricultura altamente capitalizada: (1) a imposio de um determinado modo de

    produo de conhecimento e (2) uma ampla disponibilidade de terras. Sabemos, tambm,

    que o conhecimento essencial para a reproduo e isso que se encontra hoje no

    centro da luta que se trava em torno das sementes. No caso da agricultura e da criao

  • 35

    dos animais, o que est em questo , enfim, o controle das tecnologias da vida

    biotecnologias.

    Assim, o que est em questo a modificao radical da natureza da prpria

    biotecnologia50 que tende a se tornar uma produo em laboratrio, com barreira de

    acesso propriedade intelectual - privando a maior parte dos agricultores do acesso

    propriedade das condies de sua reproduo, aqui num sentido tambm muito preciso,

    posto que dizem respeito s condies de produo de sementes. Da a semente ganhar

    a importncia que vem tendo, at porque enquanto tcnica carrega consigo uma ao

    impregnada de intencionalidade (Milton Santos). No caso de uma empresa de carter

    capitalista espera-se que realize a inteno primordial inscrita na prpria natureza dessa

    instituio que a de proporcionar a apropriao da mais valia ao seu proprietrio e no,

    simplesmente, produzir de valores de uso destinados a satisfazer as necessidades, sejam

    elas quais forem.

    Antes que formemos opinies apressadas diante de um tema to decisivo, como o

    que trata dos efeitos ambientais dos organismos transgenicamente modificados, precico

    considerar que estamos diante de um fenmeno rigorosamente muito recente. Segundo o

    Professor Rubens Nodari da UFSC, a biotecnologia de transgnicos comeou somente

    em 1973 na Universidade de Stanford, na Califrnia, quando pesquisadores conseguiram,

    pela primeira vez, isolar fragmentos de DNA de um anfbio e inserir esses fragmentos

    dentro de uma outra molcula. A partir dessa tcnica se pode combinar molculas de um

    animal em uma planta, por exemplo, rompendo-se, assim, com barreiras genticas

    naturais.

    Nos EUA o consumo de transgnicos somente se d a partir de 1994 quando foi

    liberado o tomate longa vida. A soja RR s foi liberada nos EUA em 1996 e, s depois

    dessa data, a batata e o milho Bt. Considerando-se que estamos mexendo com

    organismos que romperam barreiras naturais e que sero ingeridos continuamente e que

    vo fazer parte do metabolismo do corpo humano, de fato, estam