carlos walter geografia da riqueza fome e meio ambiente
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.R E V I S T A I N T E R N A C I O N A L I N T E R D I S C I P L I N A R I N T E R T H E S I S - PPGICH UFSC
GEOGRAFIA DA RIQUEZA, FOME E MEIO AMBIENTE: PEQUENA CONTRIBUIO CRTICA AO ATUAL MODELO AGRRIO/AGRCOLA DE USO DOS RECURSOSNATURAIS
WEALTH GEOGRAPHY, ENVIRONMENT AND HUNGER: SMALL CRITIC CONTRIBUTION TO THECURRENT AGRARIAN/AGRICULTURAL MODEL OF THE NATURAL RESOURCES USAGE
Carlos Walter Porto Gonalves
Resumo:O texto discute a questo geopoltica implicada no debate sobre a fome e o meioambiente. Critica o atual modelo agrrio/agrcola de uso dos recursos naturais, afirma ser este um modelo de desenvolvimento econmico das regies temperadas que tem sido imposto com um alto custo ecolgico, cultural e poltico para o mundo todo. Este modelo tem se colocado em confronto com o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitrio caracterstico de populaes com racionalidades distintas da racionalidade atomstico-individualista ocidental com graves riscos segurana alimentar. Analisa asconseqncias socioambientais do atual modelo agrrio/agrcola e os resultadoscontraditrios do aumento da capacidade mundial de produo de alimentos e o aumento da fome no mundo. Os significados da Revoluo Verde a partir dos anos 70; Osimpactos socioambientais do agronegcio nos cerrados brasileiros; A complexidade do uso dos produtos transgnicos. Critica a sustentabilidade ecolgica restrita, baseada num realismo poltico e prope uma reflexo sobre uma nova racionalidade para o desafio ambiental. Conclui que a fome no um problema tcnico, pois esta no se deve falta de alimentos mas ao modo como os alimentos so produzidos e distribuidos. A fome convive hoje com as condies materiais para resolv-la.
Abstract:The text questions the geopolitical issue implied in the argument about hunger and the environment. It criticizes the current agrarian / agricultural model of the natural resources usage, stating it is a model of economic development of mild regions that has been imposed all over the world at a very high ecological, cultural and political cost. This model has faced the patrimonial, collective and community knowledge, characteristic ofpopulations with distinct rationality from the occidental atomistic-individualistic one, with severe risks to the feeding safety. It analyzes the social-environmental consequences of the current agrarian / agricultural model, the contradictory results of the increase of the world capacity of food production, hunger in the world, the meanings of the Green
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2Revolution from the seventies on, the social-environmental impacts of the agrarianbusiness in the Brazilian cerrado and the complexity of the use of transgenic products. It criticizes the restricted ecological sustentation based on a political realism, and proposes a reflection upon a new rationality for the environmental challenge. It concludes that hunger is not a technical problem, for it does not happen because of the lack of food, but because of the way the food is produced and distributed. Today hunger lives with the provisions necessary to overcome itself.
Introduo
O mdico e gegrafo Josu de Castro escrevia em 1946 que a fome era o
problema ecolgico nmero um1. E o fazia sem nenhum sentido antropocntrico a que,
geralmente, est associada essa afirmao. Afinal, todo ser vivo precisa se alimentar. O
que surpreende que Josu de Castro tenha dito isso numa poca em que a questo
ecolgica sequer estava pautada e que os ambientalistas, ainda hoje, sequer o
considerem como um dos mais importantes pensadores e ativistas da questo. At
mesmo o PNUMA Programa das Naes Unidas para o Meio Ambiente - em seu ltimo
relatrio Perspectivas del Medio Ambiente Mundial GEO-3 ignora completamente a
problemtica da fome2 (Ver Questes chaves para o meio ambiente por regio GEO,
GEO-3: 31).
Cerca de 30 anos aps a morte de Josu de Castro, ocorrida em 1973, nos vemos diante
de questes que ele vinha se ocupando cada vez mais, qual seja, a questo geopoltica
implicada no debate sobre a fome e o meio ambiente. Hoje sabemos melhor que sua
poca que as regies tropicais, as que detm a maior produtividade biolgica do planeta,
no so aquelas onde maior a produtividade econmica3. Entretanto, essa maior
produtividade econmica das regies temperadas tem um alto custo ecolgico, cultural e
poltico para o mundo todo na medida que a extrema especializao, tanto no sentido da
monocultura, como da dependncia de alguns poucos cultivares, torna esses
agroecossistemas vulnerveis no s a pragas e s variaes climticas como, tambm,
os tornam extremamente dependentes de insumos externos, como adubos, agrotxicos e
energia vindos de outras regies.
Salientemos que toda uma cincia agronmica e florestal, com base na
racionalidade cientfica europia, tem sido desenvolvida para tornar mais eficientes em
produo de biomassa exatamente reas, como as regies temperadas, que dispem de
menor intensidade de energia solar em relao s regies tropicais, num contra-senso
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3que s se explica pela importncia que um certo tipo de conhecimento, o conhecimento
tcnico-cientfico, e a regulao jurdica da propriedade a ele associada (patentes e
quetais), passa a ter para os pases hegemnicos e as grandes corporaes que, hoje,
praticamente detm o monoplio no do conhecimento tout court, mas desse tipo de
conhecimento especfico que, cada vez mais, depende de recursos maiores para a
pesquisa e desenvolvimento 4.
Essa concentrao de dependncia se aplica a cada um dos quatro principais
gros - trigo, arroz, milho e soja para o ano de 2001. Apenas cinco pases - Estados
Unidos, Canad, Frana, Austrlia e Argentina - so responsveis por 88% das
exportaes mundiais de trigo (Santamarta, 2002). Tailndia, Vietn, Estados Unidos e
China representam 68% de todas as exportaes de arroz. No caso da soja, apenas trs
pases EUA, Brasil e Argentina so responsveis por 82% da produo mundial. No
milho, a concentrao ainda maior, com os Estados Unidos responsveis por 78% das
exportaes e a Argentina por 12%. Uma autoridade indiana declarou pateticamente que
"nossas reservas esto nos silos do Kansas" (Brown, 2001)5.
Assim, com o conhecimento produzido em laboratrios de grandes empresas em
associao cada vez mais estreita com o Estado e, deste modo, passvel de apropriao
privada, a propriedade intelectual individual (patentes) se coloca em confronto direto com
o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitrio caracterstico das tradies
camponesas, indgenas, afrodescendentes e outras matrizes de racionalidade distintas da
racionalidade atomstico-individualista ocidental (Porto -Gonalves, 1989).
Esse conflito se manifesta na reiterada recusa em no reconhecer os direitos
coletivos e patrimoniais de populaes que detm conhecimentos ancestrais, conforme
pudemos observar recentemente no Mxico com o parlamento se colocando contra o
pleito dos zapatistas de direitos territorriais e culturais dos indgenas (Cecea, 2002).
Assim, longe de nos regozijarmos com o fato de a Conveno de Diversidade Biolgica
reconhecer a soberania dos Estados para regular sobre o acesso aos recursos genticos,
preciso ver, aqui, uma estratgia de transferir aos Estados nacionais a responsabilidade
e o nus de se colocarem contra as populaes indgenas, afrodescendentes e
camponesas6 que, mais do que quaisquer outros segmentos sociais, tm conseguido se
inserir no debate globalizado chamando a ateno para o fato de que suas prticas
culturais especficas serem aquelas que mais se coadunam com os interesses da
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4humanidade e da ecologia do planeta e que, por isso, devem ser respeitadas enquanto
tais.
Esses conhecimentos ancestrais so, paradoxalmente, reconhecidos de facto pelas
grandes corporaes, que deles se apropriam com o apoio dos Estados onde residem
seus principais proprietrios e acionistas que lhes do a segurana de jure (patentes e
direitos de propriedade intelectual individual). O trigo hoje cultivado no Canad, por
exemplo, tem genes procedentes de 14 pases diferentes. O milho manipulado nos EUA
tem sua origem no Mxico, assim como os genes dos pepinos ali cultivados so
procedentes da Birmnia, da ndia e da Coria, todos esses genes tendo sido adquiridos
sem nenhuna contrapartida econmica, diferentemente das sementes melhoradas que
exportam os pases hegemnicos. Segundo Jos Santamarta 7, as multinacionais dos
EUA, da Unio Europia e do Japo pretendem obter grtis, sobretudo nos pases do
Terceiro Mundo, os recursos genticos para logo lhes vender a preos de usura as
sementes, animais ou medicamentos obtidos, com base na "propriedade intelectual".
Assim, o conhecimento, sempre essencial para a reproduo8, tende a se dissociar
daqueles os camponeses, os povos originrios ou, na linguagem europia, os nativos,
aborgenes, indgenas - que, at aqui, o construram. O fazer tende a separar-se do
pensar. Deste modo, alm da separao da agricultura tanto da pecuria como da caa,
da coleta e da pesca caracterstica do mundo moderno-colonial, o que est em jogo, hoje,
a separao, ainda mais radical, do saber e do fazer que, agora, se d por meio da
dissociao do conhecimento acerca da reproduo do alimento nosso de cada dia.
Cerca de 90% de nossa alimentao procede de apenas 15 espcies de plantas e
de 8 espcies de animais. Segundo a FAO, o arroz prov 26% das calorias, o trigo 23% e
o milho 7% da humanidade. As novas espcies de cultivares substituem as nativas
uniformizando a agricultura e destruindo a diversidade gentica. S na Indonsia foram
extintas 1.500 variedades de arroz nos ltimos 15 anos. medida que cresce a
uniformidade, aumenta a vulnerabilidade. A perda da colheita da batata na Irlanda em
1846, a do milho nos Estados Unidos em 1970 ou a do trigo na Rssia em 1972, so
exemplos dos perigos da eroso gentica e mostram a necessidade de preservar
variedades nativas das plantas, inclusive para criar novas variedades melhoradas e
resistentes s pragas, nos alerta Jos Santamarta. E, continua, a engenharia gentica
levar perda de milhares de variedades de plantas, ao cultivar-se s algumas poucas
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5com alta produtividade, para no falar de outros muitos perigos, agravando os efeitos da
revoluo verde das dcadas passadas (Santamarta, idem).
No estranhemos, pois, quando sucessivos acordos e tratados diplomticos que
falam de transferncia de tecnologia no passem de gasto de tinta e papel, sem nenhuma
conseqncia prtica. Alis, estamos imersos aqui numa contradio de fundo da
sociedade moderno-colonial atual e de seu modo de produo de conhecimento, que se
deu, e se d, negando ao outro, ao diferente, at mesmo a idia de que produz
conhecimento da falar-se sem-cerimnia, de transferncia de conhecimento e no de
dilogo entre matrizes de racionalidade distintas. Vimos, entretanto, que tal como dissera
Galileu Galilei, o mundo se move, e o conhecimento local, seja ele campons, nativo,
aborgene, indgena, autctone ou outro nome que a eles se atribui, continua sendo
produzido e, como vimos, apropriado sem reconhecimento por grandes corporaes
extremamente ciosas da propriedade quando prpria e no alheia.
Com o monoplio das sementes (e do novo modo de produo do conhecimento a
ele associado) a produo tende a se dissociar da reproduo (Shiva, 2001) e, assim, a
segurana alimentar perseguida por cada agrupamento humano durante todo processo de
hominizao, passa a depender de algumas poucas corporaes que passam a deter
uma posio privilegiada nas novas relaes sociais e de poder9 que se configuram. A
insegurana alimentar passa a ser, paradoxalmente, cada vez mais a regra e no
somente entre os pases e povos coloniais e semi-coloniais. A agricultura inglesa, por
exemplo, importa cada vez mais. De cada cinco frutos vendidos, quatro vm do exterior e
no dos pomares domsticos, antes to numerosos no campo ingls. Na Argentina,
muitos analistas diziam que o pas es el granero del mundo, mas esse um diagnstico
equivocado. O atual modelo agropecurio, baseado na produo de soja GM, est nos
transformando em uma republiqueta sojera. O monocultivo est destruindo a segurana
alimentar e a vida rural e, nesse sentido, a ante-sala da fome, sentenciou Jorge Rulli do
Grupo de Reflexo Rural (GRR) da Argentina.
Walter Pengue, especialista em Melhoramento Gentico Vegetal da Universidade
de Buenos Aires UBA, adverte que se estn reemplazando otros cultivos y sistemas
productivos, y si esto se pudiera cambiar al ao siguiente no sera un problema, pero lo
que est sucediendo es que se estn levantando montes enteros, frutales, tambos, para
la siembra de soja y se est eliminando la diversidad productiva. Em muitos sentidos a
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6Argentina no era um tpico pas tipicamente agroexportador, porque exportvamos os
mesmos produtos que consumamos, e isso era uma fonte de segurana alimentar, mas a
introduo dos cultivos de soja GM incrementou fortemente nossa vulnerabilidade.
Produtos bsicos da dieta argentina como arvejas, lentilhas, porotos ou o milho amarelo
comeam a ser mais escassos, porque estamos entrando num esquema de ser
monoprodutores e se est uniformizando tudo com a soja, adverte Pengue (Citado por
Bacwell e Stefanoni).
No Brasil, o desenvolvimento do novo modelo agrrio/agrcola tambm mostra o
mesmo sentido ao apontar para um modelo onde o monocultivo acentua a dependncia
do agricultor diante do complexo industrial-financeiro altamente oligopolizado e, com isso,
aumenta a insegurana alimentar, tanto dos agricultores e suas famlias como do pas
como um todo. A produo de soja no Rio Grande do Sul, at os anos 60, estava
associada produo de trigo, de milho e a pastagens para gado bovino, alm da criao
de porcos e todos os seus derivados (banhas, lingias etc.). Desde os anos 70 esse
sistema de uso da terra, e toda a cultura a ele associado, vm sendo substitudo por um
sistema que tende para o monocultivo sobretudo da soja, com todas as implicaes que
da deriva. Consideremos que no antigo sistema de rotao de culturas, a soja, na
verdade, subsidiava o solo com azoto (nitrognio) e, alm disso, a criao de animais
garantia no s descanso (pousio) da terra, como tambm parte do adubo (esterco) e,
com isso, proporcionava as condies ideais para o cultivo exigente do trigo. O trigo se
constitua no centro desse sistema de uso da terra, que visava garantir o abastecimento
nacional do po nosso de cada dia e, assim, a segurana alimentar. Assim, a segurana
alimentar que esse sistema representava mantinha fortes relaes com a prpria estrutura
agrria da Zona Colonial gacha que, desde o incio, visava o abastecimento das tropas
que guardavam as fronteiras na Campanha Gacha. V-se, assim, que esse sistema de
uso da terra estava associado idia de um projeto nacional. No estranhemos, pois, que
a insegurana alimentar mantenha fortes relaes com um sistema agrrio/agrcola que
visa a mercantilizao generalizada como o que vem caracterizando o perodo neoliberal.
Com o novo sistema, observamos no s a tendncia ao monocultivo, como,
tambm, a concentrao fundiria chegando a regies do RS, como a Zona Colonial,
onde a propriedade familiar camponesa era caracterstica e, assim, contribuindo para
aumentar a dependncia do agricultor do complexo industrial-financeiro10. Atualmente
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7existem, na regio Sul, propriedades com at 1.000 hectares plantados com soja. S para
tornar possvel uma comparao na dimenso dos plantios, a rea mdia dos
estabelecimentos agrcolas no Corn Belt norte-americano de 120 a 150 hectares
(Rezende, 2002: 09). O surgimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MST tem uma forte ligao com essas transformaes de uma agricultura camponesa
para uma agricultura capitalista11.
Na verdade, como arremata Jorge Rulli para a Argentina, estamos ocupados pelas
transnacionais de sementes. Cargill, Nidera e Monsanto nos converteram em um pas
invivel, produtor de sojas transgnicas e exportador de forragens. Produzimos o que a
todos sobra e o que cada vez vale menos (Rulli, J. E.). O mesmo pode ser dito do que
vem se passando no Brasil.
O que mais surpreende nesse novo modelo agrrio/agrcola que ele se expande
apesar da constante queda de preos dos produtos agrcolas no mercado mundial.
Vejamos mais de perto esse milagre.
A revoluo (nas relaes sociais e de poder por meio da tecnologia) verde
O mundo rural com a Revoluo Verde com suas sementes hbridas e seu mais
recente desdobramento com a biotecnologia dos transgnicos e do plantio direto, est
sofrendo mudanas profundas tanto ecolgicas, como sociais, culturais e, sobretudo,
polticas. medida que o componente tcnico-cientfico passa a se tornar mais importante
no processo produtivo, maior o poder das indstrias de alta tecnologia que passam a
comandar os processos de normatizao (candidamente chamados normas de
qualidade).
Essas importantes transformaes nas relaes de poder por meio da tecnologia
comearam a ganhar concretude ainda nos anos 50, quando mais de 70% da populao
mundial habitava o mundo rural. Temos experimentado todos os dias nos enormes
aglomerados humanos urbano-perifricos, sobretudo na Amrica Latina e Caribe, o que
vem significando essa desruralizao da populao, sobretudo dos anos 70 para c,
muito embora essa desruralizao ainda no tenha atingido a maior parte da
humanidade12.
Havia fortes razes, logo aps o fim da 2 Guerra, para a nfase que ganhariam as
transformaes nas relaes de poder por meio das tecnologias conhecidas como
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8Revoluo Verde. A fome se apresentava, ento, como um fenmeno europeu. Os
europeus sabem o que significou no s ver a guerra no seu dia a dia como, tambm, o
significado da insegurana alimentar que se segue destruio das redes de
comunicao e transportes e ao fato de a maior parte dos homens em idade ativa serem
convocados para a guerra13. O espectro da fome rondava o mundo num contexto
marcado por forte polarizao ideolgica, o que tornava as lutas de classes
particularmente explosivas no perodo.
A prpria denominao Revoluo Verde para o conjunto de transformaes nas
relaes de poder por meio da tecnologia indica o carter poltico e ideolgico que estava
implicado. A Revoluo Verde se desenvolveu procurando deslocar o sentido social e
poltico das lutas contra a fome e a misria, sobretudo aps a Revoluo Chinesa,
Camponesa e Comunista, de 194914. Afinal, a grande marcha de camponeses lutando
contra a fome brandindo bandeiras vermelhas deixara fortes marcas no imaginrio. A
revoluo verde tentou, assim, despolitizar o debate da fome atribuindo-lhe um carter
estritamente tcnico15. O verde dessa revoluo reflete o medo do perigo vermelho, como
se dizia poca. H, aqui, com essa expresso Revoluo Verde, uma tcnica prpria da
poltica16, aqui por meio da retrica.
Todo um complexo tcnico-cientfico, financeiro, logstico e educacional (formao
de engenheiros e tcnicos em agronomia) foi montado contando, inclusive, com a criao
de organismos internacionais como o CGIAR, alm do envolvimento de grandes
empresrios, como os Rockfellers. Os resultados dessa verdadeira cruzada foram de
grande impacto, no s pelos nmeros que nos so apresentados mas, sobretudo, pela
afirmao da idia de que s o desenvolvimento tcnico e cientfico ser capaz de
resolver o problema da fome e da misria. Pouco a pouco a idia de que a fome e a
misria so um problema social, poltico e cultural vai sendo deslocada para o campo
tcnico-cientfico, como se esse estivesse margem das relaes sociais e de poder que
se constituem, inclusive, por meio das tcnicas. Meio sculo dessa tentativa de resolver
por meios tcnicos os problemas da fome j so suficientes para avaliarmos seus
resultados. o que veremos agora.
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9As contradies do sucesso da revoluo - nas relaes de poder por meio da tecnologia verde
Segundo a FAO, entre 1950 e 2000, a produo de gros em todo o mundo
aumentou 2,9 vezes, de 631 para 1.835 milhes de toneladas. No mesmo perodo,
entretanto, o consumo de fertilizantes aumentou de 10,1 vezes, passando de 14 milhes
de toneladas, em 1950, para 141 milhes de toneladas em 2000. A produtividade anual
que foi de 2,1% ao ano em mdia, entre 1950 e 1990, caiu para 1,1 % entre 1990 e 2000.
Segundo Samir Amin, a produtividade entre o mais avanado segmento capitalista da
agricultura mundial e o mais pobre, que estava [na razo] em torno de 10 para 1 antes de
1940, est agora a aproximar-se dos 2.000 para 1! Isto significa que a produtividade
progrediu muito mais desigualmente na rea da agricultura e da produo alimentar do
que em quaisquer outras reas. Esta evoluo conduziu simultaneamente reduo dos
preos relativos dos produtos alimentares (em relao a outros produtos industriais e de
servios) a um quinto do que era h cinqenta anos atrs. A nova questo agrria resulta
deste desenvolvimento desigual 17.
Considere-se, ainda, que a melhoria considervel nas condies de
armazenamento, transportes e comunicaes permitiram no s um aumento da
produtividade social total18 como, tambm, que novas reas pudessem ser incorporadas
ao mercado pela expanso da rede de transportes em todo o mundo19. Os financiamentos
do Banco Mundial e outras agncias multilaterais para ajuda ao desenvolvimento
cumpriram um papel fundamental para esse xito.
Assim, a diminuio da renda diferencial por localizao obtida graas expanso
e melhoria da rede de transportes e comunicaes, a diminuio da renda diferencial por
fertilidade da terra em funo do prprio modelo agrrio/agrcola capital intensive e a
expanso da rea cultivada vm contribuindo tanto para o aumento do volume de
produo como para uma acentuada queda dos preos dos gros e, ainda, para uma
concentrao de capital e diminuio do trabalho.
Editorial do jornal francs Le Monde assinala que nos ltimos dez anos,
desapareceram (25%) dos estabelecimentos agrcolas [na Frana]: restam somente
168.000. A renda da produo ficou ainda mais concentrada: somente 5 grandes grupos
controlam totalmente a distribuio e impem, facilmente, suas posies e seus preos
aos agricultores-empresrios (...).
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Entre 1979 e 2001 a produo de soja no mundo aumentou 166% enquanto seus
preos caram, em 2001, para 45% do que eram em 1979. Por conseguinte, os preos
correntes dos produtos agrcolas aumentaram menos depressa que os outros produtos e
os preos agrcolas reais (inflao no includa) baixaram muito. Em menos de 30 anos o
preo real do trigo nos EUA, por exemplo, se reduziu a 1/3 aproximadamente, enquanto o
do milho e do acar caiu a menos da metade, segundo Marcel Mazoyer (Mazoyer,
2003).
A queda dos preos agrcolas no atingiu somente produo de gros (trigo,
milho, arroz, soja) ou de produtos de origem animal mas, tambm, a cultivos tropicais de
exportao que competiam com os cultivos motomecanizados dos pases desenvolvidos
(beterraba contra cana de acar, soja contra outras culturas oleaginosas tropicais,
algodo do sul dos EUA, etc.), ou com os produtos industriais de substituio (borracha
sinttica contra o cultivo de hvea, txteis sintticos contra o algodo). Por exemplo, o
preo real do acar foi reduzido a menos de 1/3 em um sculo, enquanto o da borracha
se reduziu a 10%. Por ltimo, a revoluo agrcola tambm foi aplicada a outros cultivos
tropicais (banana, pinha, etc.) de forma que a tendncia de baixa dos preos reais se
estendeu progressivamente a quase todos os produtos agrcolas (Mazoyer, 2003).
Para alm do discurso bastante difundido de que toda essa revoluo nas relaes
de poder por meio da tecnologia conhecida por revoluo verde proporcionou o
abastecimento de uma crescente populao no mundo inteiro e, em particular, de uma
populao que se urbanizava, importante assinalar que os efeitos dessas
transformaes no mundo rural so mais complexos e contraditrios do que vem sendo
admitido.
Um primeiro aspecto a ser destacado foi a mudana na composio da cesta do
trabalhador. A diminuio dos preos dos produtos agrcolas, embora no tenha sido
transferida integralmente ao consumidor final, liberou parte significativa dos salrios para
consumo de produtos industrializados. Ricardo Abramovay demonstrou como o operrio
francs gastava nos anos 80 muito menos do que nos anos 50 com alimentos, ainda que
para se alimentar melhor. Deste modo, pode-se admitir que boa parte do boom de
crescimento no consumo bens de origem industrial se deveu a essas transformaes que
tornaram menor os gastos com alimentos na cesta bsica do trabalhador, mormente nos
pases que lograram urbano-industrializar parcela importante de sua populao20.
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Entretanto, medida que avana a queda de preos, os agricultores que no tm
podido investir nem obter ganhos de produtividade considerveis caem abaixo do umbral
de renovao econmica de sua explotao: seus ingressos monetrios resultam
insuficientes para comprar os bens de consumo indispensveis que no podem produzir
ou, s vezes, para pagar os impostos. (...) Em outras palavras, uma explotao agrcola
cujos ingressos caem abaixo do umbral de renovao s pode sobreviver custa de uma
autntica descapitalizao (venda de gado vivo, apetrechos cada vez mais reduzidos e
sem manuteno), do subconsumo (camponeses andrajosos e descalos), da desnutrio
e a curto prazo do xodo, a menos que se dedique a cultivos ilegais: coca, papoula,
cnhamo.) (Mazoyer, 2003). E essa opo tem se apresentado muito concretamente para
populaes situadas em regies geograficamente de difcil acesso e que, deste modo,
vm se dedicando a cultivos ilcitos o caso do Afeganisto, da Bolvia (Xapare), da
Colmbia, do Peru e, ainda, do Polgono da Maconha no sub-mdio So Francisco no
nordeste brasileiro.
O fenmeno da urbanizao, sem dvida, est entre aqueles que mais contribuiu
para a grande expanso mercantil da agricultura aps a Segunda guera mundial. Afinal,
os urbanos, apesar do crescente fenmeno da agricultura urbana (PNUMA, 2002 - GEO-
3), no tm espao disponvel para garantir a energia alimentar de que carecem. Assim, a
crescente urbanizao no mundo21 vem contribuindo para a expanso da agricultura de
mercado. Entretanto, esse aumento espetacular da produtividade na agricultura esbarra,
ainda, em outros obstculos srios para sua reproduo ampliada, tanto do ponto de vista
socioeconmico como ambiental.
Observemos o quadro a seguir,
Quadro 1 - Classes Sociais da Populao Urbana Mundial.
CENTRO PERIFERIA MUNDOClasses Mdias e Ricas 330.000 390.000 720.000Classes Populares 660.000 1.620.000 2.280.000Estabilizados 390.000 330.000 720.000Precrios 270.000 1.290.000 1.560.000Total de Pop. Urbana 33% 67% 100%Populao Total 1.050.000 1.950.000 3.000.000
Fonte: Elaborao prpria a partir de dados de Samir Amin, op. cit.
As classes populares mdias e ricas representam 720 milhes de habitantes
urbanos do planeta, enquanto as classes populares correspondem a da populao
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urbana do mundo, com 2 bilhes e 280 milhes de habitantes. Observemos que do total
de 3 bilhes de habitantes urbanos do mundo, cerca de 52% pertencem s classes
populares que vivem precariamente (1 bilho e 560 milhes), sendo que 82,7% destes
vivem nos pases perifricos (1 bilho e 290 milhes). Alis, 66,2% dos habitantes
urbanos dos pases perifricos pertencem a essa categoria de precrios.
O cientista social egpcio Samir Amin afirma que a principal transformao social
que caracteriza a segunda metade do sculo XX pode ser resumida numa nica
estatstica: a proporo das classes populares precrias ascende de menos de um quarto
para mais da metade da populao urbana global, e este fenmeno de pauperizao
reapareceu numa escala significativa nos prprios centros desenvolvidos. Esta populao
urbana desestabilizada aumentou em meio sculo de 250 milhes para mais de 1,50
bilhes de indivduos, registando uma taxa de crescimento que ultrapassa aquela que
caracteriza a expanso econmica, o crescimento da populao ou o prprio processo de
urbanizao. Pauperizao no h palavra melhor para designar a tendncia evolutiva
durante a segunda metade do sculo XX (Amin, 2003, op. cit).
Com base em dados do Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, o
agrnomo francs Marcel Mazoyer nos diz que 2 bilhes e 800 milhes de pessoas
dispem, hoje, de menos de 2 dlares por dia, e 1 bilho e 200 milhes delas dispem de
menos de 1 dlar por dia. Esta imensa insolvncia das necessidades sociais, este
subconsumo gigantesco, constitui hoje o fator que limita mais gravemente o crescimento
da economia mundial22. Considere-se que esse perfil de precariedade nas condies de
acesso ao mercado, dado pela escassez de renda da maior parte da populao , ele
mesmo, parte da estrutura de poder entre as classes sociais e, assim, no algo que se
resolva numa perspectiva de distribuio, como se fora externo s relaes sociais e de
poder. Ao contrrio, essa distribuio desigual de renda produzida pela estrutura de
classes23. A pauperizao assinalada por Samir Amin atinge, hoje, at mesmo cerca de
25,7% dos habitantes urbanos dos pases centrais que vivem, tambm, precariamente
(vide tabela acima). Este nmero vem aumentando significativamente, sobretudo, depois
da derrota imposta pelo capital aos sindicatos e partidos polticos social-democratas,
socialistas e comunistas desde os anos 70, tendo nos anos 90 se agravado ainda mais 24.
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A expanso das terras cultivadas ameaa diversidade biolgica e cultural
Vejamos um pouco mais de perto a evoluo recente da expanso desse modelo
agrrio/agrcola que vai nos esclarecer parte do mistrio em que, mesmo com queda de
preos, cresce a rea plantada, aprofundando as contradies entre produo de
alimentos e aumento da fome no mundo.
Comparemos duas regies produtoras de soja, Iowa e Mato Grosso, situadas em
dois pases que, embora diferentes, dispem, igualmente de vastas extenses de terras,
EUA e Brasil25.
Quadro 2 - Comparao da Estrutura de Custos da Produo de Soja - Iowa (EUA)e Mato Grosso (BRASIL) 2001 -(Mdia Por Hectare em US$)
Iowa EUA Mato Grosso BrasilCusto com Custo por
HectareCusto porCada Saca
Custo porHectare
Custo porCada Saca
Terra 350.0 6,36 57.50 0,96Trabalho 33.90 0,62 12.50 0,21Capital 274,32 4,87 365.0 6,63Outros 38.78 0,71 40.00 0,66Custo p/ hectare 697.0 12,67 475.0 7,91Sacas p/ hectare - 55 - 60
Fontes: Elaborao prpria a partir de Duffy, Michael and Darnell Smith, 2000; Galinkin, 2002 eJoo G. Martines-Filho, apud Baumel, C. P., McVey, M. J. and Wisner, R.N.,"Impact of BrazilianSoybean Competition on Lock Extensions on The Upper Mississippi River?, Iowa University: Iowa, 2001.
Em Iowa obtm-se 55 sacas de soja a um custo de produo por hectare de US$
697 e, em Mato Grosso, so 60 sacas a um custo de somente US$ 475! Em outras
palavras, Mato Grosso apresenta uma produtividade 9,1% maior (60 contra 55 sacas por
hectare), com custo de produo por hectare equivalente a 68% do de Iowa!
Em Iowa, a terra corresponde a 50,2 % do custo de produo total por hectare e,
em Mato Grosso, a apenas 12%! Com relao ao custo do trabalho, em Iowa corresponde
a 4.9% e, em Mato Grosso, a 2,6% do custo total de produo por hectare! J com
relao aos gastos relativos a sementes, fertilizantes, herbicidas correspondiam, em Iowa,
a 27% do custo total de produo por hectare e, em Mato Grosso, a 61,4%!
Considerando-se os gastos com o setor industrial como um todo, isto , o que o
setor agrcola gasta comprando herbicidas, fertilizantes, sementes e, ainda, com
mquinas, obtm-se, para Iowa, 39,6% dos custos totais de produo por hectare e, para
Mato Grosso, de 76,8 % ! Enfim, a terra custa 6 vezes mais em Iowa que em Mato
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Grosso; o trabalho 2,7 vezes mais em Iowa, enquanto, o custo de capital por hectare de
apenas 75% em Iowa do que em Mato Grosso26. Atentemos, agora, para a estrutura de
custos quando se exclui o custo com a terra27.
Quadro 3 - Estrutura Comparada de Custos por hectare excludo o Custo da TerraIowa (EUA) e Mato Grosso (Brasil) - 2001 (em %)
Gasto com Iowa (EUA) Mato Grosso (Brasil)Capital 79,1 86,4Trabalho 9,8 3,0Outros 11,1 9,6Total 100 100
Um mercado mundializado (commodities) como o de gros impe agricultura um
elevado padro cientfico e tecnolgico tornando-a extremamente dependente do capital,
bastando observar que, excluda a terra, so os fertilizantes, herbicidas, inseticidas,
praguicidas, sementes e as mquinas os itens que mais pesam na estrutura de custos
totais por hectare, tanto em Iowa, onde correspondem a 79,1% como em Mato Grosso,
com 86,4%28. Com os custos de capital to altos, tanto em Iowa como em Mato Grosso,
o preo da terra e o do trabalho que acabam fazendo a diferena, e assim a expanso do
cultivo de gros vem sendo acompanhada (1) por um aumento da concentrao fundiria,
(2) por novas tecnologias que diminuam os custos do trabalho (plantio direto, tratores-
computadores e organismos transgnicos), uma diminuio significativa do trabalhador no
processo produtivo e (3) a disponibilidade de terras acaba se constituindo num fator
decisivo para o desenvolvimento desse modelo agrrio-agrcola 29.
Atente-se, pois, para a realimentao recproca entre o aumento da rea cultivada
e o consumo de insumos. Afinal, cada novo hectare necessita de igual quantidade fsica
de adubos, fertilizantes, sementes e, assim, quanto mais terras cultivadas maior o
consumo desses insumos numa espiral ascendente que se nutre de terras baratas
frente e, na retaguarda, no raro terras so abandonadas pela eroso dado o uso
intensivo. Afinal, terras baratas frente so um convite a que no se invista na
manuteno do fundo de fertilidade natural da terra. A regio do Alto Araguaia, em Gois,
j acusa vastas extenses de terras abandonadas onde grande a eroso, como pode
ser vista pela presena de gigantescas vossorocas, alm de inmeras ravinas.
Ainda recentemente, em maio de 2003, em uma srie de reportagens denominada
O Brasil que deu certo, exibida pela maior rede de televiso do Brasil, exaltava-se os
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mritos do agronegcio e regozijava-se de um trator, aparelhado com computador e
equipado para o plantio direto, que custava a importncia de nada mais, nada menos US$
230.000 (duzentos e trinta mil dlares)! Imaginemos a rea necessria para tornar
rentvel um estabelecimento agrcola que usa um trator que custa US$ 230.000!
Na Argentina, a superficie semeada dedicada produo de soja aumentou de
quase 5 milhes de hectares, no comeo dos anos 90, para 11,6 milhes em 2001/02. No
mesmo perodo, a produo fsica da oleaginosa passou de 10 milhes de toneladas a um
rcorde de 30 milhes, transformando a Argentina no segundo produtor mundial de soja
transgnica atrs dos EUA - e no primeiro exportador de leo e farelo de soja. Segundo
estimativas oficiais, seu cultivo passou a representar ao redor de 42% da superficie e a
44% do volume total de gros produzidos a nvel nacional.30
O agrnomo francs Marcel Mazoyer alerta que nem todos os produtores
exportadores que se beneficiam da revoluo agrcola ou da revoluo verde podem
ganhar terreno ou simplesmente manter-se, a menos que disponham de certas vantagens
competitivas complementrias. Este precisamente o caso dos latifundirios
agroexportadores bem equipados sul-americanos, sul-africanos e zimbabweanos e ...
amanh, qui, os russos ... que dispem ao mesmo tempo de vastos espaos, baratos,
e de mo de obra entre as menos caras do mundo. tambm o caso dos produtores de
alguns pases desenvolvidos com renda alta, como EUA ou da Unio Europia, que
contam com meios oramentrios para subvencionar amplamente seus agricultores. (...)
Nestas condies, os preos internacionais dos produtos agrcolas s resultam vantajosos
para uma minoria de agricultores que podem, deste modo, continuar investindo,
avanando e ganhando pores do mercado; so insuficientes e desfavorveis para a
maioria dos agricultores do mundo: insuficientes em geral para que possam investir e
progredir; insuficintes a mido para que possam viver dignamente de seu trabalho,
renovar seus meios de produo e conservar suas pores de mercado; e, inclusive,
insuficientes para que a metade menos equipada, menos dimensionada e pior situada dos
camponeses do mundo possa se alimentar corretamente (Mazoyer, 2003).
preciso considerar, entretanto, que a queda dos preos dos produtos agrcolas
se deve no s ao aumento da produtividade mas, tambm, diminuio da renda
diferencial por localizao31 pela expanso da rede de transportes e de toda a sua
logstica (silos, armazens, portos, sistemas de gesto just in time, just in space). Em
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linguagem corrente, a diminuio nos custos de deslocamento tornou possvel, em grande
parte, a queda dos preos dos produtos agrcolas32.
Por isso, a criao de estradas, hidrovias e portos se tornou uma verdadeira
obsesso, como o demonstram expanso da rede de transportes no Brasil aps a
fundao de Braslia (1960) que abriu ao mercado todo o Planalto Central do pas, com
seus Cerrados, e a Amaznia com a inaugurao da Rodovia Bernardo Sayo Braslia-
Belm (1962). Essa presso continua se fazendo presente como se pode ver na
insistncia na construo da Hidrovia do Paran Paraguai, no Pantanal paraguaio-
brasileiro e, ainda, a presso, que tende a se acentuar, sobre a Amaznia haja vista (1) o
porto de Itacoatiara no rio Amazonas, parte do complexo da Hidrovia do Madeira, sob o
controle do Grupo Maggi; (2) o recm inaugurado porto de Santarm, na foz do Rio
Tapajs, construdo por um consrcio de empresas liderados pela multinacional Cargill, a
que est associado o interesse pela construo da Br 163 que liga Cuiab-Santarm,
assim como pela construo da Hidrovia Tapajs - Teles Pires; (3) a Hidrovia Rio Branco -
Rio Negro (Roraima e Amazonas) e a ligao com Caracas, na Venezuela, da Rodovia Br
174 Manaus Caracara - Boa Vista; (4) a Hidrovia Rio das Mortes Araguaia
Tocantins e a sada pelos portos ou de So Luiz ou ou Belm e, ainda: (5) a sada para o
Pacfico pelo Acre com o asfaltamento da Br 364.
Pelo sentido geogrfico dessas vias v-se que seu destino a exportao de
commodities. O impacto socioambiental do agronegcio vem atingindo em cheio os
Cerrados assim como a prpria floresta ombrfila densa na Amaznia, pondo em risco
toda a riqueza em diversidade biolgica e cultural, com o aumento do desmatamento em
Rondnia, Mato Grosso, Par e no Amazonas, que j se coloca para alm do famoso
arco do desmatamento (Amaznia Meridional e Oriental - Mato Grosso, Tocantins e
Par), e j invade a margem esquerda do Rio Amazonas (Br 174 Manaus-Caracara).
Cada vez mais comearemos a falar no mais de arco de desmatamento e, sim, de
fragmentao da floresta, o que expe a rea a uma nova fase de seu processo de
desmatamento com conseqncias imprevisveis.
A expanso da fronteira agropecuria vem ameaando seriamente, tambm,
reservas de biodiversidade no norte argentino na floresta dos Yungas, cuja superfcie est
sendo progressivamente ocupada pela soja. Segundo Javier Corcuera, da Fundao Vida
Silvestre, na zona j se perderam para sempre - mais de 130.000 hectares de floresta
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no Piemonte, devido ao avanco de monocultivos, como a cana de acar, banana e soja
e alertou que se continua este caminho, Salta viver um futuro prximo com mais
inundaes e menos recursos naturais para seus habitantes33.
Dlares e dores - a expanso recente do agronegcio nos cerrados brasileiros.
Salientemos, inicialmente, que as prticas de domesticao de espcies de plantas
e animais sempre conviveram com outras atividades como o extrativismo da caa, da
coleta e da pesca e, assim, alm das terras manejadas de modo mais simplificado, como
caracterstico de qualquer agroecossistema, sempre esteve presente uma relao com
os espaos circundantes, geralmente com mltiplas formas de uso comum dos recursos
naturais. Nessas reas comuns se recolhiam frutos, ervas medicinais, aromticas,
estticas (flores), assim como madeiras para utenslios e lenha.
O advento do capitalismo se tornou possvel por meio do cercamento de terras
comuns (enclousers) e os camponeses assim privados de terras e no mais conseguindo
se reproduzir enquanto tais vieram a se tornar assalariados rurais ou urbanos34. Na
Amrica, houve simplesmente a apropriao manu militari de todas as terras que, a rigor,
no conheciam a propriedade privada, alm de tornar escrava a mo de obra trazida da
frica e estabelecer a servido indgena. Esse processo, aqui sumariamente descrito, se
reproduz ainda hoje em vastas regies de expanso capitalista. Antes de tudo, esse
modelo de expanso agropecurio ignora outros sistemas de uso da terra que, como
vimos, combinavam de diferentes modos a agricultura e a pecuria com os extrativismos,
o que tem trazido conseqncias socioambientais graves.
Exploremos, aqui, guisa de ilustrao o que vem ocorrendo nos cerrados
brasileiros at pela importncia que a regio vem assumindo para o agronegcio. Nessas
amplas reas dos cerrados, duas grandes unidades da paisagem foram conformadas
pelas populaes que ali vivem tradicionalmente: as chapadas e os vales - o grande
serto e as veredas - na linguagem de Guimares Rosa, o escritor que melhor soube
captar os mistrios da regio e dos seus camponeses. Assim, os povos que vivem pelos
cerrados desenvolvem sistemas de uso da terra que combinam a agricultura, geralmente
nos fundos dos vales, nos brejos, nos brejes, nos pantamos, nos varjes; nas encostas e
nas chapadas, reas onde a gua mais difcil de ser captada sem tecnologias de
captao em profundidade35, deixam o gado solta, fazem a coleta do pequi, da fava
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danta, do baru e outros frutos e resinas, recolhem madeira e lenha, geralmente fazendo
uso compartilhado, sobretudo dessas terras das chapadas.
Ao contrrio, para os grandes empresrios do agronegcio, as terras das chapadas
tm um significado distinto. Sendo terras planas significam custos energticos menores.
Essa uma regra geral do espao agrrio brasileiro, onde a grande explorao comercial,
quase sempre, de exportao, ocupa as reas de topografia mais planas ou suavemente
onduladas, deixando aos camponeses as terras mais acidentadas36. A grande expanso
recente pelo agronegcio dos amplos cerrados, volta a se aproveitar desse legado natural
de topografias planas, acrescido do fato de serem terras de uso comum das populaes
locais ou pertencentes a grandes fazendeiros criadores de gado que, at os anos 60,
faziam uma pecuria extensiva e, no raro, permitiam livre acesso aos camponeses para
a coleta de frutos, resinas, ervas e remdios em geral. A apropriao dessas terras seja
por grilagem, prtica amplamente utilizada, ou adquiridas a baixo preo de fazendeiros
pecuaristas, foi a forma com que se deu a expanso privada sobre as terras de chapadas
que o campesinato aproveitava na forma de uso comum extensivo (importncia do
extrativismo), associado a outros usos nas encostas e baixadas (brejos, vrzeas,
pantamos). comum a denominao de gerais dessas terras indicando que eram de
todos, gerais.
Tradicionalmente os camponeses convivem nessas terras sem nenhum registro
formal de propriedade, ao lado de fazendeiros que mantinham grandes reas com
pastagem, geralmente natural, para uma criao extensiva de gado. At mesmo entre
fazendeiros e camponeses haviam regras de uso compartilhado dos recursos naturais,
como o caso do pequi ou, j numa rea adjacente ao cerrado, como a zona dos cocais
do Maranho, a coleta do babau. O fazendeiro podia ser proprietrio da terra, mas no
do babau, ou do pequi, ou do baru, ou da fava danta, o que mostra uma modalidade
mais complexa de apropriao dos recursos naturais onde as territorialidades no so
mutuamente excludentes, onde a propriedade privada absoluta, sobretudo quando
capitalista, acaba por instaurar uma relao conflituosa. Com a expanso do agronegcio,
a luta pela manuteno do livre acesso coleta do babau e do pequi (Luta pelo Babau
Livre e pelo Pequi Livre) vem sendo empreendida pelos camponeses, no caso do
Maranho, sobretudo pelas camponesas, pela mulheres quebradeiras de coco babau.
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Desde os anos 60, com a abertura de estradas e, sobretudo, nos anos 70 e 80,
com a colaborao dos estudos da Embrapa sobre correo e adubao de solo e na
seleo de sementes adaptadas regio, e o barateamento relativo de tecnologias de
captao de gua a 100 e 200 metros de profundidade, as chapadas passaram a se
constituir em objeto de ateno das grandes empresas do complexo agropecurio, dando
origem ao latifndio produtivo do agronegcio. O cercamento dos campos, tal como na
Inglaterra, no tardou a se fazer contando, inclusive, com o apoio formal do Estado
privatizando grande parte das terras devolutas, com contratos de concesso por 20 anos
para empresas de plantao de eucalipto, como os efetuados pela Ruralminas durante o
regime ditatorial sob tutela militar, em Minas Gerais.
Por toda regio quebrou-se a complementariedade que havia entre o grande serto
e a vereda, isto , entre a chapada e o fundo do vale, entre a agricultura, a pecuria e os
extrativismos. A apropriao e separao das chapadas foi, em grande parte, facilitada
pela ausncia, at mesmo, das casas dos camponeses que, geralmente, esto
localizadas no fundo dos vales ou nas encostas, onde esto as nascentes.
A monocultura chegou, assim, aos grandes sertes e, com ela, a homogeneizao
de uma regio que se caraceterizara por sistemas de uso mltiplo dos recursos naturais,
de manejo de uma enorme riqueza de diversidade biolgica que essas populaes
camponesas, indgenas, de afrodescendentes, de geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros,
retireiros (Araguaia) tornaram possvel que chegasse aos nossos dias com um
diversificado acervo como patrimnio cultural.
O uso intensivo de adubos e fertilizantes trazem conseqncias danosas, como j
vimos, sendo que aqui cabe destacar, ainda, o profundo desequilbrio hdrico que se
instaura com os latifndios produtivos de agronegcio, com a captao de guas em
profundidade trazidas superfcie para uma irrigao, com sistemas de piv central, de
baixssima eficincia, onde se perde at 70% da gua por evaporao direta e, assim,
com a quebra/inverso da funo de caixa dgua das chapadas. No fundo dos vales, a
gua j no jorra o ano todo, as fontes e crregos secam, rios se tornam intermitentes, o
que passa a exigir, inclusive, barragens para regularizar o cursos de rios permanentes,
como o So Francisco, que nasce nos cerrados, como tantos rios.
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At mesmo a agricultura camponesa/tradicional de fundo de vale se torna
impraticvel, ela que j sofrera um duro golpe com a supresso das chapadas para deixar
o gado solta, recolher um remdio, uma resina, uma madeira, lenha, um fruto ...
O cerrado brasileiro, com a sua enorme diversidade biolgica e cultural, vem se
transformado, assim, numa rea de expanso de grandes latifndios produtivos, pelas
enormes vantagens que oferece, seja pela riqueza hdrica que abriga, seja pela topografia
plana de suas chapadas e de seus chapades. Avalia-se que 70% da rea das chapadas
j esteja ocupada por esse tipo de empresa, seja com cultivo de gros, algodo ou de
monoculturas de plantao de madeira (eucaliptos e pinnus alba e pinnus elliotis).
Compelidos pela exigidade de terras, os camponeses se vem compelidos a fazer
um uso dos recursos naturais com tcnicas que desenvolveram e estavam adaptadas a
terras disponveis em grande extenso. Os camponeses dos cerrados se vem, hoje,
desapropriados por um modelo que, por sua prpria lgica, no democratiza seus
benefcios, seja pela elevada magnitude de capital que exige para aceder a todo o pacote
tecnolgico, seja pelas enormes extenses de terras, seja, ainda, pela diminuio de
preos agrcolas que provoca, impedindo que cheguem ao mercado aqueles que esto
abaixo do nvel de produtividade mdio, sempre rebaixado pelas grandes empresas do
agronegcio. Por sua vez, esse modelo transfere para a soceidade como um todo e, at
mesmo, para as geraes futuras sua enorme ineficincia energtica global e seus danos
ambientais diversos.
Assim, populaes empobrecidas, premidas por esse modelo, tambm pressionam
o uso dos recursos naturais elas que, geralmente, ocupam as terras mais acidentadas e,
deste modo, esse modelo agrrio-agrcola, por meio de seu lado de menor poder, tambm
amplia o desmatamento, a eroso, a desertificao, como vemos na savana e no sahel
africanos, nas encostas e vales andinos e himalaios, no semi-rido brasileiro e, mesmo,
em reas acidentadas da Mata Atlntica ou da Amaznia onde, recentemente, nos anos
70 e 80, milhes de brasileiros foram habitar impelidos pela contra-reforma agrria
chamada colonizao.
tambm o que se v na Colmbia, onde populaes indgenas e camponeses, ao
contrrio de separarem os pisos altimtricos dos Andes, como os livros de geografia
costumam assinalar - as tierras calientes, as tierras templadas e as tierras frias -
manejavam os diferentes pisos ao longo das estaes do ano e que, hoje, tambm se
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vem ameaadas por empresas que tm interesse em somente cada um desses pisos
por serem adequados isoladamente s suas monoculturas. No Equador, o mesmo se
observa para a expanso do cultivo de flores em vales andinos, levando comunidades
indgenas e camponesas fome e misria. No litoral do Equador, ou no Cear, no
Brasil, o mesmo se v com a extino de reas de manguezais com a expanso do
cultivo de camares, geralmente para exportao.
Acrescente-se, ainda, um outro paradoxo, o de que todo esse processo de
expanso da fronteira agrcola, possvel graas a toda uma complexa logstica de
transportes, mesmo tendo contribudo para diminuir os preos dos produtos agrcolas,
deixou de beneficiar parcelas importantes da populao por sua prpria estrutura
socialmente injusta. que a sua prpria estrutura impede que essa mesma rede j
construda de portos, de silos, de armazens e de estradas por onde se exporta seja
tambm via de importao. Enfim, sendo essas regies dominadas pelo agronegcio
pouco empregadoras de mo de obra, com pequena participao do trabalho no conjunto
da renda do sistema como um todo, toda a rede logstica torna-se, em mais de um
sentido, de mo nica. Ela exporta mas no importa, na medida que a estrutura de
distribuio da riqueza no conforma um mercado a montante. Assim, o prprio modo
como se produz que se constitui numa forte razo para que o chamado custo -pas se
mantenha alto. Enfim, a injustia social do prprio sistema impede que todo o esforo feito
com recursos em grande parte pblicos e, assim, de todos para a construo dessas
infra-estruturas s beneficie, de fato, uma parcela diminuta de pessoas, quando a mesma
estrutura, sem nenhum custo adicional, poderia beneficiar mais gente fosse mais
democrtica e justa.
A demanda por terras pela dinmica expansiva do capital criando as condies de
acessibilidade, como assinalamos acima, comportou a apropriao privada de modo
violento e conflituoso37 de terras at ento apropriadas de modo comunitrio38, coletivo ou
com outras modalidades de uso comum dos recursos naturais. Dados recentes
divulgados pela CPT do conta de que os estados brasileiros por onde se expande o
agronegcio so os estados onde maior o nmero de lideranas rurais assassinadas e
de famlias despejadas. Em somente um desses estados, o Mato Grosso, governado pelo
maior produtor de soja do mundo, o Sr, Blairo Maggy, somente no ano 2003, o
equivalente 6,2% da populao rural foi, simplesmente, despejada de suas terras ou das
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terras que reivindicam. Isso implicaria que em menos de 15 anos toda a populao rural
do estado estaria despejada. Nem no perodo colonial se conseguiu tal faanha (Porto-
Gonalves, 2004).
Assim, nesse processo de expanso no s se perde diversidade biolgica, mas
tambm diversidade cultural e mltiplas formas de propriedade distintas da propriedade
privada que, como se v, no tem contra si somente a propriedade estatal que, na
verdade, no passa de uma modalidade extrema de propriedade privada posto que,
tambm, priva a sociedade do poder de decidir sobre o uso dos recursos e das riquezas.
A ineficincia energtica do agronegcio e uma agricultura sem agricultores.
Vimos que o processo de reproduo ampliada do capital que opera o atual modelo
agrrio/agrcola est ancorado em dois pilares bsicos: (1) no uso de um modo de
produo de conhecimento prprio do capital que se traduz na supervalorizao da
cincia e das tcnicas ocidentais (que se querem universais) e (b) na expanso das terras
cultivadas, sobretudo em regies onde as terras so baratas.
A expanso exponencial do uso de adubos e fertilizantes, herbicidas, pesticidas e
fungicidas h dcadas vem sendo objeto de intensas crticas de ambientalistas, de rgos
ligadas sade e de sindicatos de trabalhadores sobretudo rurais. Nos ltimos 50 anos,
enquanto a produo de gros aumentou trs vezes, o uso de fertilizantes foi multiplicado
simplesmente 14 vezes, segundo dados da FAO. Assim, a relao entre produo de
gros e uso de fertilizantes caiu de 42 toneladas para 13 toneladas de gros por cada
tonelada de fertilizante usada entre 1950 a 2000. Uma queda significativa 39!
Quadro 4 - Evoluo da Produo Mundial de Gros e do Uso de Fertilizantes1950 a 2000 (Em milhes de toneladas)
1950 2000A) Gros 631 1.835
B) Fertilizantes 14 141Relao A/B 41 13
Fonte: Websites da CONAB, USDA e FAO (2002)
Assim, salta vista a limitao ecolgica desses agroecossistemas, posto que
sendo extremamente simplificados, tornam-se, por isso mesmo, dependentes de insumos
externos para manter seu equilbrio dinmico. A contaminao das guas dos rios e do
lenol fretico tem levado diminuio das espcies e do nmero de peixes e, com isso,
tem trazido prejuzos s populaes ribeirinhas e diversidade biolgica e cultural. Afinal,
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a pesca uma atividade historicamente complementar agricultura em muitas regies fica,
deste modo, prejudicada.
Ainda recentemente, em novembro de 2002, pudemos constatar no preparo da
terra para o cultivo de gros na regio do Bico do Papagaio, entre o Maranho e o
Tocantins, o lanamento, por avio, do desfolhante qumico conhecido como agente
laranja, de triste memria pelo seu amplo uso na guerra do Vietname. Assim, aqueles que
trabalham na agricultura sofrem o impacto direto do uso desses derivados da
agroqumica, com srios danos sua sade, conforme acusa uma ampla literatura
mdica e cientfica.
Quadro 5 - Principais Pases Produtores de Soja 2001
Pas Produtor Produo milhestoneladas% no Mundo Produtividade
(kg/hectare)Estados Unidos 78.67 43,3 2.560Brasil 41.50 22,8 2.610Argentina 28.75 15,8 2.640China 15.30 8,4 1.690ndia 5.60 3,0 n.d.Paraguai 3,59 2,0 2.965
Fonte: Websites da CONAB, USDA e FAO (2002)
Afora a China e a ndia, com 11,4% da produo mundial, pases grandes
produtores e grandes importadores, os EUA, a Argentina, o Brasil e o Paraguai
participavam, em 2001, com 84% do total da produo mundial e, assim, se colocam
como os grandes produtores-exportadores mundiais de soja, um mercado que mexeu, no
ano 2000, com algo em torno de US$ 21 bilhes de dlares.
As grandes corporaes do setor vm dirigindo seus interesses para a Argentina, o
Brasil e o Paraguai, pases que vm disputando a primeira posio no ranking mundial de
exportadores de gros e farelo de soja. O controle do mercado de sementes que, pela via
da produo transgnica (tipo RR), pode se fundir com o mercado de herbicidas o que
est em jogo. Nesse jogo as grandes corporaes se encontram diante de um desafio
para estabelecer suas prprias estratgias de mercado, na medida que h uma forte
resistncia a que se aceite, sem as devidas precaues, as sementes transgnicas. O
Brasil tem sido, at aqui, um exemplo de como se pode sem o uso de sementes
transgnicas, com alta tecnologia, mesmo que com um elevadssimo grau de
concentrao fundiria, de capital e de renda40.
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Uma agricultura sem agricultores
A semente de soja transgnica no brinda necessariamente com aumento na
produtividade por rea cultivada, como salientam vrios estudiosos e, sim, proporciona
diminuio dos custos principalmente de mo de obra, na medida que os produtores j
no tm que realizar tarefas de combate a pragas, alm do que com as tcnicas de
plantio direto facilitam, tambm, as tarefas de semeadura41. Trata-se, portanto, de uma
tcnica que acentua a tendncia a uma agricultura sem agricultores agravando problemas
num momento em que o novo padro de poder proporcionado pelas novas tecnologias
tambm no emprega tanta gente nas cidades-e-suas-periferias, como o fazia poca da
desruralizao europia e estadunidense.
Segundo Rulli, o modelo rural que se nos imps simplesmente de exportao de
commodities, de concentrao de terras e de excluso de populaes. 20 milhes de
hectares das melhores terras agrcolas esto hoje em mos de no mais de 2.000
empresas. Nos anos 90 se produziu a maior transferncia de terras de toda a histria do
pas, sendo deslocada a velha oligarquia pecuarista por uma nova classe empresarial
oligoplica e prebendria. (...) Atualmente registramos uma cifra ao redor de 300 mil
produtores expulsos e mais de 13 milhes de hectares embargados por dvidas
hipotecrias impagveis. A esta situao de catstrofe social agropecuria deveramos
somar a emigrao massiva dos trabalhadores rurais. S no Chaco, cada mquina
desempregou 500 braseros. (...) Os novos pacotes tecnolgicos constitudos pelos
sistemas de plantio direto com enorme maquinaria importada, os herbicidas da Monsanto
e as sojas transgnicas RR no demoraram em modificar a paisagem instalando uma
agricultura sem agricultores. No mesmo sentido apontam as anlises de Bacwell e
Stefanoni - Ao mesmo tempo, as economias de escala derivadas da mecanizao da
agricultura e os mtodos de plantio direto induziram a uma forte concentrao das
explotaes que deixou fora uma grande quantidade de pequenos agricultores. Segundo
estimativas de uma pesquisa privada realizada em quase toda a regio do Pampa, a
quantidade de explotaes se reduziu em 31% no perodo 1992 e 1997.
Racionalidade ecolgica ou racionalidade ambiental
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25
Assim, o ambientalismo se v concitado a se posicionar diante de um desafio
ambiental de novo tipo, onde a sustentabilidade tem que ser confrontada com a
racionalidade que est conformando a relao da sociedade com a natureza, enfim,
diante ou de uma racionalidade ambiental, como prope Enrique Leff, ou de uma
racionalidade econmica mercantil. o que se nos apresenta de diversas questes, como
a dos transgnicos, a questo energtica e da questo da certificao de madeiras.
Afinal, pode-se caminhar no sentido de um modelo de sustentabilidade ecolgica, uma
sustentabilidade restrita, ou de sustentabilidades mais amplas, mais complexas, enfim,
das racionalidades ambientais (sociedades-natureza). Afinal, possvel se evitar impactos
ambientais imediatos mas com elevadssima concentrao de riqueza e poder, com um
modelo ecologicamente sustentvel e ambientalmente insustentvel, posto que afirmando
a injustia social. Em pases como o Brasil a injustia social tem se mostrado
historicamente sustentvel h, pelo menos, 500 anos e tem convivido com a devastao
das matas, dos solos, dos rios! O desafio que se apresenta aos ambientalistas ,
portanto, o de como evitar pintar de verde a injustia, como sugere a sustentabilidade
ecolgica restrita.
Enfim, esse modelo agrrio-agrcola analisado, que se apresenta como o que h de
mais moderno sobretudo por sua capacidade produtiva, na verdade, atualiza o que h de
mais antigo e colonial em termos de padro de poder ao estabelecer uma forte aliana
oligrquica entre (1) as grandes corporaes financeiras internacionais, (2) as grandes
indstrias-laboratrios de adubos e de fertilizantes, de herbicidas e de sementes, (3) as
grandes cadeias de comercializao ligadas aos supermercados e farmcias e (4) os
grandes latifundirios exportadores de gros. Esses latifndios produtivos so, mutatis
mutantis, to modernos como o foram as grandes fazendas e seus engenhos de produo
da principal commodity dos sculos XVI e XVII - a cana de acar - no Brasil e nas
Antilhas. poca no havia nada de mais moderno. A modernidade bem vale uma missa!
H uma geografia perversa e desigual no uso desses insumos. As estatsticas
recentes acusam uma diminuio importante do uso desses insumos de capital -
fertilizantes, herbicidas, inseticidas, praguicidas na Europa, nos EUA e no Canad.
Entretanto, a lgica moderno-colonial manifesta-se nesse caso com toda fora, na medida
que o uso desses insumos se expande no mundo como um todo, sobretudo nos pases
pobres, como assinala o Relatrio do PNUMA (GEO-3).
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A diminuio do uso desses insumos nos pases hegemnicos no atual do padro de
poder mundial e seu uso ampliado na Amrica Latina, frica e sia revela, tambm, um
limite das respostas s crticas que teimam em permanecer prisioneiras da mesma
racionalidade econmica mercantil que comanda o modelo atual. Como pedir s
empresas do setor agroqumico que contribuam para a diminuio do uso do produto que
fabricam ?
Saliente-se, ainda, que as empresas do setor agroqumico tm suas sedes, na sua
quase totalidade, nos pases europeus, nos EUA e no Canad e, assim, essa geografia
desigual do uso desses insumos no mundo revela o modo desigual como se valorizam os
lugares, as regies, os pases e seus povos e suas culturas. E, insistimos, preciso ver
aqui a mesma lgica moderno-colonial que vem comandando o processo de globalizao
desde 1492. H, como se v, uma injustia ambiental de fundo comandando a geopoltica
mundial. At mesmo as maiores fbricas de agroqumicos vm se transferindo para os
pases pobres tendo, inclusive, o acidente mais srio com 3000 vtimas fatais ocorrido em
Bhopal, na ndia, na fbrica da Union Carbide, hoje Dow Chemical.
Alm das medidas que procuram melhorar a imagem e contemplar um meio ambiente
mais sadio, pelo menos no lado rico do planeta, o seu lado moderno, as empresas do
setor agroqumico vm procurando melhorar a eficncia ecolgica de seus produtos
reconhecendo, na prtica, a fora dos argumentos de seus crticos. Afinal, com a
simplificao dos agroecossistemas, mais aguda nas monoculturas, h uma dependncia
cada vez maior de insumos externos ao sistema, conforme j assinalamos. As
biotecnologias de novo tipo, como a de transgnicos, podem oferecer cruzamentos
genticos que diminuam o impacto ecolgico do uso de insumos, por exemplo. Podem,
at mesmo, aumentar a eficncia de uma espcie melhor adaptada seja seca seja
umidade e, com isso, melhorando as condies dos agricultores, inclusive, aumentando
sua autonomia. Todavia, pode-se melhorar a eficncia ecolgica, aumentando o controle
do mercado e diminuindo a autonomia do agricultor, como bem o demonstra a soja
Roundup Ready e toda a linha chamada Terminator. Entre uma tecnologia, mesmo
transgnica, que aponte no sentido da autonomia do campons e aquela que o mantenha
dependente das compras na empresa que controla a semente, no h dvida que
estamos diante de, pelo menos, dois caminhos possveis: um de interesse pblico,
inclusive, dos camponeses mais diretamente e, outro, de interesse privado, comercial,
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empresarial. Assim, mais do que ser ou no ser contra ou a favor dos organismos
transgenicamente modificados, preciso encarar toda a complexidade implicada na
questo, que longe est de poder ser compreendida enquanto nos mantivermos presos a
essa lgica maniquesta.
A questo no , portanto, a de que no se possa obter menor impacto ecolgico
do uso de um ou de outro insumo, mas o de como faz-lo nos marcos de uma
racionalidade econmico mercantil que teima em se manter e, com isso, impedindo que
outras solues baseadas em outras racionalidades mais complexas42 possam ser
encontradas ou, mais ainda, que outras matrizes de racionalidade possam se reproduzir.
Portanto, a questo para o atual modelo agrrio/agrcola movido pela acumulao
de capital no simplesmente tcnico-ecolgica mas, sim, como resolver a equao que
combine a dimenso ecolgica, de um lado, com a acumulao de capital de modo
ampliado, de outro lado. No o ganho em termos ambientais que move essa lgica, mas
como faz-lo desde que os marcos da racionalidade econmica mercantil seja mantido43,
como sine qua non conditio.
Assim, preciso romper com um falso consenso que vem sendo construdo entre a
acumulao de capital, que tende para o ilimitado, e a problemtica ambiental que,
sempre, requer que consideremos as condies naturais e seus limites. Assinalemos que
esse consenso em torno, por exemplo, da ideologia do desenvolvimento sustentvel, no
vem sendo construdo a partir de uma anlise preliminar do porqu o atual modelo de
desenvolvimento considerado insustentvel para que se busque um modelo que seja
sustentvel. como se um mdico pudesse se satisfazer com os sintomas da doena
para tentar cur-la no lhe importando quais teriam sido as causas.
H um realismo poltico44 que vem se colocando acima da necessidade de uma
anlise verdadeiramente crtica acerca das contradies socioambientais implicadas no
desafio ambiental contemporneo. O realismo poltico, em si mesmo, externo anlise
cientfica, nos impede de colocar a prpria racionalidade econmica mercantil em questo
e, assim, a dimenso poltica que est embutida na prpria problemtica ambiental do
modelo agrrio/agrcola fica de fora.
Uma resposta dentro dessa lgica parece estar presente no prprio exemplo da
linha Roundup Ready e Terminator: o que se perde em termos capitalistas na venda do
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herbicida se ganha com o atrelamento da venda da semente. A expresso popular poder
econmico precisa ser levada mais a srio cientificamente.
J assinalamos que a diferena entre a nova fase do desenvolvimento da relao
de poder por meio da biotecnologia da antiga (1) que se rompe com a barreira natural
de produzir organismos geneticamente modificados (OGMs) e, assim, na atual fase se
produz organismos transgenicamente modificados (OTMs) e; (2) passa a ocorrer uma
desapropriao/desqualificao do saber ancestral/atual ou, quando menos, uma
separao entre o lugar que produz e o que consome conhecimento, cada vez mais
centralizado nos laboratrios cientficos empresariais com patentes garantidas nos pases
hegemnicos.
Assim como no se sabia, ainda em passado recente. quais seriam os efeitos sobre a
sade humana e ao meio ambiente do uso do DDT, do ascarel, do csio, do brio, do
penataclorofento de sdio (p da China), enfim, da ampliao e generalizao do uso de
todos os elementos da tabela peridica da qumica, alm dos novos elementos sintticos
acrescidos a essa mesma tabela, ou ainda da energia nuclear e, at mesmo, do uso
continuado de plulas anticoncepcionais sobre o corpo da mulher, tambm no se tem
pesquisas que assinalem os efeitos dos organismos transgnicos sobre a sade humana
e sobre meio ambiente, confome hoje reconhece at mesmo o The New Yok Times, como
vimos acima.
So graves as conseqncias que se avizinham com a expanso para novas reas
de uma lgica mercantil que reduz a complexidade dos ecossistemas e de mltiplas
culturas a agroecossistemas simplificados com os monocultivos de soja, milho, girassol,
algodo, eucalipto e pinnus. Atente-se, ainda, para o fato de que os diferentes biomas do
planeta no respondem da mesma forma s aes que sobre eles se fazem. A
complexidade da dinmica de matria e energia das regies tropicais, sabidamente
menos conhecida pela cincia ocidental45, com freqncia v todo um sistema tcnico-
agrcola pensado a partir de uma cincia natural desenvolvida a partir de dinmicas mais
simplificadas das regies frias e temperadas, ser arrogantemente transplantado com
conseqncias socioambientais danosas.
A busca permanente pelo aumento da produtividade remete-nos para os limites tanto
da entropia, como da produtividade biolgica primria do planeta. Sabemos que o
aumento da produtividade da indstria sobre as demais atividades primeiras na relao da
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sociedade com a natureza - agricultura, pecuria, extrativismo animal (caa e pesca) e
vegetal se deveu ao domnio da energia solar concentrada na molcula de carbono
durante um longo tempo geolgico o petrleo e o carvo que proporcionou um
aumento, que se acreditava, ilimitado na capacidade de transformao da matria. O
aumento da desordem (entropia) no sistema Terra (efeito estufa e lixo 46) o melhor sinal
de que esses limites no foram devidamente considerados at aqui. No olvidemos, pois,
que a energia fssil que vimos utilizando to amplamente contm um tempo geolgico
embutido sob a forma de carvo e de petrleo.
Por outro lado, os sistemas vivos trabalham num sentido contrrio entropia
(neguentropia), na medida que operam em direo auto-organizao (o prprio
organismo vivo) a partir da transformao da energia solar diariamente renovada que
permite uma produtividade primria biolgica determinada (fotossntese). A diversidade
biolgica proporciona uma complexificao das cadeias trficas por onde se d o fluxo de
matria e energia no interior dos diferentes biomas e entre os diferentes biomas que
constituem o sistema Terra. Para melhor fixar a imagem do que se est propondo na
anlise, considere-se que cada espcie um momento-repouso do fluxo de matria e
energia que flui no sistema Terra como um todo e de modo diferenciado nos diferentes
ecossistemas.
De fato, a substituio da complexidade pela simplificao menos grave em
biomas como o das regies temperadas e frias que so relativamente menos ricos em
diversidade biolgica. A questo se coloca de modo mais grave quando se trata de
regies tropicais, onde a diversidade biolgica maior e, portanto, onde so mais
complexos os circuitos de matria e energia do planeta como um todo. Basta considerar
que um hectare de floresta ombrfila densa, como a Amaznica, abriga 460 toneladas de
biomassa por hectare, em mdia, podendo chegar em determinadas reas a atingir 550
toneladas por hectare. Essa produtividade biolgica o limite mximo de eficincia
energtica natural alcanado por qualquer regio do planeta e mantm uma correlao
positiva com a disponibilidade de radiao solar elevada das regies tropicais e com a
disponibilidade hdrica, assim como com a diversidade biolgica que cria
complementariedades e antagonismos entre as espcies47. Assim, a energia solar, do que
as regies tropicais detm o maior potencial, que cada vez mais tomada em
considerao na geoeconomia e na geopoltica mundial.
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Agregue-se, ainda, que alm de todo um processo de eroso gentica, com a
extino de espcies que sequer conhecemos, h uma outra dimenso, igualmente grave
que, tambm, deriva da lgica econmica reducionista e simplificadora que acompanha a
dinmica capitalista e sua diviso do trabalho: trata-se da perda da rede de ligaes intra-
especficas e inter-especficas por onde flui todo o metabolismo desses complexos
ecossistemas. E aqui as tentativas de atribuir preos s espcies, que o realismo poltico
da economia ecolgica vem se esforando em fazer, sem sucesso do ponto de vista
ambiental, diga-se de passagem, mostra toda a sua limitao, at porque para isso se
vem obrigados a isolar cada espcie e como cada espcie viva um momento-repouso
diante de um fluxo de vida um nonsense atribuir-se um valor quando isoladamente
considerada.
A expanso das monoculturas com seus agroecossistemas altamente simplificados
e, por isso mesmo, altamente dependentes de energia de fora, est se dando nesse
momento sobre reas de florestas tropicais e de savanas (cerrados no Brasil)48. Assim,
regies de alta produtividade biolgica primria, como a Amaznia, esto sendo
transformadas em reas importadoras de matria e de energia. Manter elevada a
produtividade em regies de sistemas complexos, como as regies tropicais exige uma
permanente importao de energia que, nesse caso, s pode advir de fontes que no seja
a energia solar diariamente renovada, haja vista serem as regies tropicais aquelas que
mais energia solar dispem. O balano energtico para essas regies e seus povos ,
assim, necessariamente negativo, o que contribui decisivamente para manter a
dependncia dessas reas, em si mesma to ricas em energia, em diversidade biolgica,
em recursos hdricos e em diversidade cultural, submetidas aos ditames do complexo
oligrquico financeiro aliado ao da agroindstria, com riscos srios no s para essas
regies, mas para a humanidade e o planeta como um todo, por sua necessria
ineficincia energtica.
A ineficincia hdrica
Um particular interesse devemos voltar, ainda, ao equilbrio hdrico que est sendo
rompido com o processo de moderno-colonizao agrrio/agrcola, sobretudo nessas
duas reas que no s so vizinhas, como ecologicamente complementares - o Cerrado e
a Amaznia. Registremos que as duas maiores reas continentais alagadas de todo o
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planeta so adjacentes aos cerrados o Pantanal brasileiro-boliviano-paraguaio e a rea
de cerca de 2 milhes de hectares do rio Araguaia, ambas ameaadas por presses para
construo de hidrovias e pelo agronegcio. Alm disso, dos cerrados saem os mais
importantes afluentes da margem direita do rio Amazonas (Madeira, Tapajs e Xingu), o
Araguaia-Tocantins, os formadores do Paraguai, do Paran, alm do Orenoco e outros.
Guimares Rosa chamara os gerais (os cerrados) de caixa dgua.
A Amaznia sul-americana, com uma extenso de terras de cerca de 800 milhes
de hectares, abriga em suas florestas aproximadamente 460 toneladas de biomassa por
hectare. Consideremos que essa biomassa , em mdia, 70% formada por gua.
Estamos, pois, diante de um verdadeiro oceano verde que oferece, por
evapotranspirao, grande parte das chuvas que vo circular por vastas regies da
Amrica do Sul e do Caribe, para no falar de sua contribuio na dinmica climtica
global retendo, na prpria biomassa, energia e gua em grandes extenses de terras.
Assim, temos a floresta amaznica abrigando em seu prprio corpo um volume
significativo de gua, tanto nos contrafortes andino-amaznicos, como no Planalto Central
Brasileiro e no Sistema Parima ou Guiano. desses planaltos que emanam, com seus
amplos cerrados, a maior parte dos afluentes do Rio Amazonas, da bacia do Paran-
Paraguai, o Tocantins e da totalidade dos rios que formam a Bacia do Orenoco, na
Venezuela.
A riqueza hdrica aqui implicada enorme e todo o seu regime vem sendo alterado
pela simplificao extrema provocada pelo modelo agrrio-agrcola que vem se
expandindo contra essas regies, assim como pela explorao petrolfera, sobretudo, nos
contrafortes andino-amaznicos.
Cientistas argentinos que vm acompanhando a dinmica socioambiental do
agronegcio vm assinalando os efeitos do uso de fertilizantes e outros insumos para
garantir a produtividade, sobretudo quanto eroso dos solos e dinmica hdrica. Jorge
Rulli diz acreditar que as inundaes sejam o resultado de um modelo agrcola extrativo,
quase mineiro, que expandiu a fronteira agropecuria sojeira a zonas de bosque nativo e
que saturou os solos com glifosato pondo em srios riscos sua vida microbiana. De fato
as estatsticas demonstram que sobre pouco mais de 10 milhes de hectares de cultivos
transgnicos esto sendo aplicados cerca de 80 milhes de litros de herbicidas anuais.
Em alguns lugares se tem experimentado o desaparecimento prtico das Azotobacter
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(bactrias fixadoras de azoto) do solo e a acumulao dos barbechos que ao no ser
processada a celulose tende a mumificar-se, tomando uma colorao muito particular que
mostra a interrupo dos ciclos biolgicos. Esta converso do solo em substrato similar a
cinzas ou areia impede a reteno da gua e provoca o crescimento das napas
superficiais que so as que terminan inundando as zonas baixas (Rulli, J. E.
Biotecnologia e Modelo Rural Argentina).
H, assim, srios limites para que a dimenso ambiental deixe de ser vista como
um constrangimento para ser vista como uma oportunidade, como vem sendo repetido ad
nauseam ultimamente. No que a dimenso ambiental seja um constrangimento s aes
humanas enquanto tais. O contrrio que estaria bem mais perto da verdade, na medida
que a sociedade capitalista, ao expressar a riqueza em termos quantitativos, introduz
uma lgica que tende para o ilimitado diante da materialidade da Physis com seus limites
(leis da termodinmica, produtividade biolgica primria lquida, entre outras). Afinal,
embora no haja limites para os nmeros, os recursos naturais tm limites, assim como
tem limite a resilincia dos diversos ecossistemas.
H, ainda, uma margem de manobra significativa para uma economia ecolgica,
embora no ilimitada, at porque a dimenso ambiental no vinha sendo (im)posta aos
clculos dos agentes econmicos. Como essa dimenso hoje se impe os agentes
econmicos no tm como ignor-la e, assim, passa a fazer parte do politicamente
correto e entra para o clculo dos agentes econmicos, no necessariamente como um
valor a ser tomado como tal, haja vista a lgica do desde que e do como se j
assinaladas.
Enfim, s quando se pensa numa escala espacial e temporal limitada, se pode
acreditar que uma lgica econmica mercantil, geralmente de curto prazo, possa
incorporar a dimenso ambiental49 de modo sustentvel. Enfim, so os prprios limites da
lgica de mercado que esto sendo postos prova.
A questo agrria se urbaniza
Com cerca de aproximadamente metade da populao mundial se tornando
urbana, muda completamente o sentido da questo agrria. A questo agrria, hoje, no
mais uma questo especfica do campesinato, como at recentemente poderia se
pensar. Ao contrrio, torna-se uma questo tambm urbana ao inscrever o urbano no
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circuito metablico da humanidade com o planeta pelas implicaes impostas pela
necessidade de abastecimento. A questo ambiental exprime melhor do que qualquer
outra essa imbricao das contradies do capitalismo na sua relao com a natureza. J
vimos anteriormente como isso se apresenta nos casos da ineficincia energtica e do
uso dos recursos hdricos do atual modelo agrrio-agrcola.
H razes ecolgicas no devidamente consideradas no s pelas prticas sociais
dominantes, mas tambm por uma cincia social reducionista e cartesiana que merecem
ser vistas. Cresce entre cientistas a convico de que vrus e bactrias que vm
assolando a espcie humana com epidemias fazem parte de um mesmo tronco evolutivo
de vrus e bactrias encontradas em outros animais, sobretudo, em mamferos. A
domesticao de espcies de plantas e animais tende a aproximar essas linhagens
evolutivas e, assim, tornar mais provveis as contaminaes recprocas.
Ao mesmo tempo devemos considerar que muitas dessas espcies de vrus e
bactrias tm uma larga histria de convivncia com transformaes na histria geolgica
do planeta que os habilitam a viver e sobreviver em situaes muito diversas e, portanto,
com mais larga adptao biolgica que a prpria espcie humana. Os casos recentes do
vrus da AIDs, do vrus Ebola, da tuberculose asitica (SARS), da gripe do frango
deveriam nos servir, definitivamente, de alerta, para no falarmos da doena da vaca
louca (encefalopatia espongiforme bovina).
Essa nova situao pode ser experimentada recentemente com a tuberculose
asitica que envolveu pases to diferentes e distantes entre si como a China, Hong Kong
e Canad. que antigamente as doenas ficavam restritas geograficamente e hoje, ao
contrrio, os deslocamentos mais intensos entre lugares torna o mundo mais vulnervel
como um todo. A prpria febre aftosa era, antigamente, mais circunscrita.
A simplificao dos agroecossistemas, ao eliminar elos das complexas cadeias de
fluxo de matria e energia da vida dos ecossistemas, acaba por expor a evoluo da
nossa prpria espcie. J est devidamente comprovada a relao entre desmatamento
de reas tropicais e a crescimento de casos de malria, na medida que o mosquito
transmissor da doena no encontra mais os macacos de que se alimentavam na floresta
e passa a encontrar nos humanos seu alimento.
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Vejamos um pouco mais de perto um tema que expressa melhor do que qualquer
outro essa questo da urbanizao da questo agrria a dos organismos
transgenicamente modificados.
Dos organismos geneticamente modificados aos organismos transgenicamentemodificados
Esclareamos, logo de incio, que a expresso OGM Organismo Geneticamente
Modificado genrica e imprecisa. Rigorosamente falando, toda a evoluo das
espcies se d por modificao gentica que, assim, um fenmeno natural. A inveno
de espcies cultivadas trigo, milho, arroz, mandioca, pupunha so invenes culturais
cultivares e se fizeram enquanto modificao gentica desenvolvida por diferentes
povos e suas culturas em ntima relao com a natureza. So, assim, um produto cultural
e natural. J os OTMs Organismos Transgenicamente Modificados so criaes
laboratoriais e, portanto, no foram tecidas e experimentadas em convivncia com a
natureza.
Tem havido muita generalizao no debate em torno dessa questo que, assim,
est politizada de ponta a ponta. Deste modo, todo o cuidado pouco. Todavia, a
politizao no , necessariamente, um problema. No caso implicado, o que sempre
esteve presente olvidado se coloca, hoje, abertamente como questo poltica. Afinal, se a
cincia deve trabalhar com os fatos a partir dos prprios fatos, preciso trabalhar essa
questo sabendo, desde o incio, que dela faz parte, enquanto parte dos fatos, a prpria
dimenso poltica. Por isso devemos aceitar, preliminarmente, a advertncia do Dr. Fabio
Faleiro, cientista da rea de Biologia Molecular Vegetal, da Embrapa Cerrados, que nos
alerta que na verdade, cada planta transgnica tem a sua particularidade, seja pelo
mtodo utilizado, o gene, o benefcio que ser causado na sociedade ou os interesses
econmicos envolvidos. Por isso, perguntas sobre benefcios ou riscos devem ser
direcionadas, ou seja, os transgnicos devem ser analisados caso a caso.
J assinalamos que duas questes se tornam centrais para o desenvolvimento
dessa agricultura altamente capitalizada: (1) a imposio de um determinado modo de
produo de conhecimento e (2) uma ampla disponibilidade de terras. Sabemos, tambm,
que o conhecimento essencial para a reproduo e isso que se encontra hoje no
centro da luta que se trava em torno das sementes. No caso da agricultura e da criao
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dos animais, o que est em questo , enfim, o controle das tecnologias da vida
biotecnologias.
Assim, o que est em questo a modificao radical da natureza da prpria
biotecnologia50 que tende a se tornar uma produo em laboratrio, com barreira de
acesso propriedade intelectual - privando a maior parte dos agricultores do acesso
propriedade das condies de sua reproduo, aqui num sentido tambm muito preciso,
posto que dizem respeito s condies de produo de sementes. Da a semente ganhar
a importncia que vem tendo, at porque enquanto tcnica carrega consigo uma ao
impregnada de intencionalidade (Milton Santos). No caso de uma empresa de carter
capitalista espera-se que realize a inteno primordial inscrita na prpria natureza dessa
instituio que a de proporcionar a apropriao da mais valia ao seu proprietrio e no,
simplesmente, produzir de valores de uso destinados a satisfazer as necessidades, sejam
elas quais forem.
Antes que formemos opinies apressadas diante de um tema to decisivo, como o
que trata dos efeitos ambientais dos organismos transgenicamente modificados, precico
considerar que estamos diante de um fenmeno rigorosamente muito recente. Segundo o
Professor Rubens Nodari da UFSC, a biotecnologia de transgnicos comeou somente
em 1973 na Universidade de Stanford, na Califrnia, quando pesquisadores conseguiram,
pela primeira vez, isolar fragmentos de DNA de um anfbio e inserir esses fragmentos
dentro de uma outra molcula. A partir dessa tcnica se pode combinar molculas de um
animal em uma planta, por exemplo, rompendo-se, assim, com barreiras genticas
naturais.
Nos EUA o consumo de transgnicos somente se d a partir de 1994 quando foi
liberado o tomate longa vida. A soja RR s foi liberada nos EUA em 1996 e, s depois
dessa data, a batata e o milho Bt. Considerando-se que estamos mexendo com
organismos que romperam barreiras naturais e que sero ingeridos continuamente e que
vo fazer parte do metabolismo do corpo humano, de fato, estam