projeto fome zero

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Verso 3

PROJETO

ZEROO U T U B R O / 2 0 0 1

FOME

UMA PROPOSTA DE POLTICA DE SEGURANA ALIMENTAR PARA O BRASIL

Verso 3

INSTITUTO CIDADANIA Presidente PAULO OKAMOTTO Equipe BERNARDO KUCINSKI CARLOS TIBRCIO CLARA ANT FABIANA VEZZALI (estagiria) GILBERTO CARVALHO GUIDO MANTEGA JOS CARLOS ESPINOZA JOS GRAZIANO DA SILVA LUCIANA FRAGATO MARISETE BEU MONICA ZERBINATO OSVALDO BARGAS PAULO VANNUCHI REGINA BRASILEIRO RICARDO ZERBINATO SPENSY PIMENTEL TATIANE RIGOLIM

PROJETO FOME ZERO Promoo INSTITUTO CIDADANIA Ficha Tcnica I Coordenao Geral LUIZ INCIO LULA DA SILVA JOS ALBERTO DE CAMARGO Coordenao Tcnica JOS GRAZIANO DA SILVA WALTER BELIK MAYA TAKAGI

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R. Pouso Alegre, 21, Ipiranga-SP CEP: 04261-030 Fone: (11) 6915-7022 www.icidadania.org.br e-mail: [email protected]

III Colaboradores ALEXANDRE GUERRA, ALTIVO ANDRADE ALMEIDA CUNHA, ANTNIO CESAR ORTEGA, CHRISTIANE COSTA, DULCE CAZZUNI, EDSON MARTINS, ELISABETE SALAY, FBIO HOLANDA, FERNANDO GAIGER SILVEIRA, FLVIO VALENTE, FRANCISCO MENEZES, FREDERICO A. TOMICH, GUILHERME COSTA DELGADO, IVONE DE SANTANA, JOS APARECIDO CARLOS RIBEIRO, JOSELY DURES, LAURA TAVARES SOARES, LENA LAVINAS, LUCIA SALLES FRANA PINTO, LUIS CARLOS FABRINI FILHO, LUIS CARLOS G. DE MAGALHES, MARCOS ANTNIO DE OLIVEIRA, MARIA REGINA NABUCO, MARIA JOS PESSOA, MARINA VIEIRA DA SILVA, MARIO ANTONIO BIRAL , MAURO DEL GROSSI, MIRIAM NOBRE, MOEMA HOFSTAETTER , MOISS MACHADO, NEWTON GOMES, PEDRO PAULO MARTONI BRANCO, PEDRO SERGIO BESKOV, RAIMUNDO SILVA, RENATA COUTINHO, RENATO CABRAL , RENATO S. MALUF, RODOLFO HOFFMANN, SALVADOR WERNECK VIANNA, SILVIO PORTO, SONIA MORAES, WALTER SOBOLL IV Apoio Executivo CLARA ANT PASCOAL BORDIGNON V Secretaria MARIA APARECIDA DA CUNHA SANCHES MARIA SEBASTIANA NOGUEIRA RICARDO ZERBINATO

VI Parceria FUNDAO DJALMA GUIMARES VII Reviso MNICA ALTERTHUM CAMILA KINTZEL ELISABETE SUH VIII Capa e Editorao Eletrnica ANA BASAGLIA

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SEMINRIO DE SO PAULO 20/08/2001 Debatedores convidados Dom MAURO MORELLI, Senador EDUARDO SUPLICY , Senadora HELOSA HELENA, Senadora MARINA DA SILVA, JOO FELCIO presidente da Central nica dos Trabalhadores, MANUEL DA SERRA Presidente da Contag Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, DIRCEU DRESHER Presidente da Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar Fetraf-Sul, JOS ALBINO DE MELO presidente da Central de Movimentos Populares, FLVIO VALENTE (Secretrio Geral do Frum Brasileiro de Segurana Alimentar e Nutricional e consultor da ONG gora), RENATO MALUF (professor da UFRRJ e consultor do Instituto Polis), JOS HERMETO HOFFMANN Secretrio de Agricultura do Rio Grande do Sul, CARLOS LESSA decano do Centro de Cincias Jurdicas e Econmicas e professor da UFRJ Debatedores inscritos para comentrios ALBANEIDE PEIXINHO e DENISE COITINHO (Asbran), VERA CASTELLANI (Blumenau-SC), MARIA ALBERTINA (Ao da Cidadania Comit So Paulo), MAURO DUTRA (Instituto Ethos), SILVIA VINHOLI e ANDRA SALAZAR - IDEC

SEMINRIO DE FORTALEZA 06/09/2001 Debatedores convidados CLUDIO RGIS QUIXAD ex-reitor da Universidade Federal do Cear; FRANCISCO MIGUEL CONTAG; ROQUE TERTULHIANO Presidente da CUT estadual-CE; REMIGIO TODESCHINI Coordenador Nacional da Agncia de Desenvolvimento Solidrio CUT; SILVIA ALCNTARA PICCHIONE Articulao do Semi-rido; FLVIO LIMA Critas CNBB; ROSALHO DA COSTA E SILVA Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-CE; JOS ROBERTO MATOS Arquidiocese Fortaleza; OLINDA MARQUES Vice-Diretora Executiva do Cear Periferia; MANUEL MESSIAS MOREIRA DA SILVA Coordenador do Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza Debatedores inscritos para comentrios Sindicato dos trabalhadores Rurais de Viosa CE; GORETE FERNANDES Federao da Associao de Bairros e Favelas de Fortaleza; JLIO CSAR ALEMO Vereador; ANTNIO IBIAPINO Direo da CUT-CE; JOS MARIA PONTES Vereador Fortaleza e diretor do Sindicato dos Mdicos; FRANCISCO BRANDO; NEHEMIAS; SALMITO; ALBA LUCI; LUIZA FATI CUT Nacional; ELIA J. SILVA Coordenador da Comunidade e Movimento; DIRCEU DRESCHER Fetraf-Sul

SEMINRIO DE SANTO ANDR 19/09/2001 Estiveram presentes representantes de diversas secretarias municipais ligadas s reas de abastecimento, agricultura, educao, promoo social, cidadania, planejamento, entre outras, e representantes da sociedade civil e de empresrios ligados a 23 municpios: SANTO ANDR-SP, SO PAULO-SP, DIADEMA-SP, MAU-SP, GUARUJ-SP, EMBU-SP, SO ROQUE-SP, CAMPINAS-SP, PIRACICABA-SP, MARING-SP, CAIEIRAS-SP, PONTA GROSSA-SP, JANDIRA-SP, GUARULHOS-SP, RIBEIRO PIRES-SP, JACARE-SP, RIBEIRO PIRES-SP, SUMAR-SP, LONDRINA-PR, PRESIDENTE VENCESLAU-SP, SO CARLOS-SP, RIO CLARO-SP, CATANDUVA-SP e IPATINGA-SP.

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PARA ACABAR COM A FOME com satisfao que entrego ao debate pblico, em nome do Instituto Cidadania,o Projeto Fome Zero Uma Proposta de Poltica de Segurana Alimentar para o Brasil. Este projeto a sntese de um ano de trabalho de muitos companheiros e companheiras,com a participao de representantes de ONGs, institutos de pesquisas, sindicatos,organizaes populares,movimentos sociais e especialistas ligados questo da segurana alimentar,de todo o Brasil. A alimentao de qualidade um direito inalienvel de todo cidado, sendo dever do Estado criar as condies para que a populao brasileira possa efetivamente usufruir dele.O pblico a ser contemplado nesta proposta grande: 9,3 milhes de famlias (ou 44 milhes de pessoas) muito pobres,que ganham menos de um dlar por dia ou cerca de R$ 80,00 por ms.Essa pobreza no ocasional: o resultado de um modelo perverso, assentado em salrios miserveis e que tem produzido crescente concentrao de renda. Esse quadro assustador vem piorando nos ltimos anos com o crescimento do desemprego e o aumento das outras des-pesas no alimentares das famlias mais pobres (moradia, transporte, sade, educao). Como mostram as pesquisas da Embrapa, nossos agricultores tm potencial para produzir toda a comida de que a populao necessita. Existe fome no porque faltam alimentos. Mas porque falta dinheiro no bolso do traba-lhador para poder compr-los. A tarefa de erradicar a fome e assegurar o direito alimentao de qualidade no pode ser apenas uma proposta de governo,mesmo que sejam articulados com eficincia todos os rgos setoriais nos nveis federal, estadual e municipal. vital engajar nessa luta a sociedade civil organizada: sindicatos, associaes populares, ONGs, universidades, escolas, igrejas dos mais distintos credos, entidades empresariais todos esto convocados a participar. Garantir a segurana alimentar promover uma verdadeira revoluo, que envolve alm dos aspectos econmicos e sociais, tambm mudanas profundas na estrutura de dominao poltica. Em muitas regies do Brasil, as condies de pobreza so mantidas porque inclusive facilitam a perpetuao no poder de elites conservadoras que h sculos mandam neste pas. Queremos deixar claro nesta apresentao que o eixo central do Projeto Fome Zero est na conjugao adequada entre as chamadas polticas estruturais voltadas redistribuio da renda, crescimento da produo,gerao de empregos,reforma agrria,entre outros 5

e as intervenes de ordem emergencial, muitas vezes chamadas de polticas compensatrias. Limitar-se a estas ltimas quando as polticas estruturais seguem gerando desemprego, concentrando a renda e ampliando a pobreza como ocorre hoje no Brasil significa desperdiar recursos,iludir a sociedade,perpetuar o problema. Tambm no admissvel o contrrio.Subordinar a luta contra a fome conquista prvia de mudanas profundas nas polticas estruturais representaria a quebra da solidariedade que dever imperativo de todos perante os milhes de brasileiros hoje condenados excluso social e insuficincia alimentar. As polticas estruturais requerem anos e s vezes dcadas para gerar frutos consistentes. A fome segue matando a cada dia.Ou produzindo desagregao social e familiar,doenas,desespero e violncia crescente. por isso que o Projeto Fome Zero de domnio pblico e aberto, portanto, aplicao por mandatrios de qualquer partido busca combinar as duas ordens de medidas.Mas no resta dvida de que nossa prioridade mxima consistiu em sistematizar as medidas que podem ser implementadas j, imediatamente, sem perder de vista e sem deixar para segundo plano as mudanas profundas apontando a construo de um novo Brasil. Um Brasil plenamente vivel e promissor, onde a democracia se estenda ao territrio econmicosocial, a justia seja meta de todos e a solidariedade, a regra geral de convivncia. Esta proposta pretende deslanchar um processo permanente de discusso, aprimoramento e aes concretas para que nosso pas garanta a seus cidados o direito bsico de cidadania que a alimentao de qualidade. Estamos conscientes de que este Projeto Fome Zero ainda pode ser aperfeioado e receber modificaes. Precisamos, por exemplo, detalhar os aspectos operacionais das vrias propostas, nos diferentes nveis de interveno. E o que fundamental: precisamos encontrar mecanismos permanentes para envolver toda a sociedade civil numa ampla mobilizao pela garantia de alimentao saudvel para todos. Trata-se de um esforo nacional sem trguas para banir o espectro da fome do nosso pas,sonho e compromisso de nossas vidas.

Luiz Incio Lula da Silva INSTITUTO CIDADANIA, OUTUBRO DE 2001

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NDICEIntroduo .................................................................................. 1 Princpios Gerais: A Segurana Alimentar e o direito alimentao ............................................................................ 2 O Problema da fome ................................................................ 2.1 Desconstruindo mitos........................................................ 3 Avaliao dos programas existentes.......................................... 3.1 A poltica alimentar na dcada de 1990 ............................ 3.2 Programas especficos ........................................................ 3.2.1 O Programa de Alimentao do Trabalhador PAT .................................................................................. 3.2.2 O Programa de Combate s Carncias Alimentares e o Bolsa-Sade.............................................. 3.2.3 O Programa de Cestas Bsicas PRODEA ............ 3.2.4 Estoques de alimentos de segurana ........................ 3.2.5 Cupons de alimentao ............................................ 3.3 O papel da reforma agrria.................................................. 3.4 Polticas de apoio agricultura familiar e de subsistncia ................................................................ 3.5 Apoio ao autoconsumo ...................................................... 3.6 A tributao dos alimentos bsicos.................................... 3.7 Polticas de renda mnima e bolsa escola .......................... 3.8 O papel da previdncia social universal ............................ 3.9 Qualidade e Segurana dos Alimentos .............................. 3.10 A Busca de Uma Alimentao Saudvel............................ 3.11 A Descentralizao das Polticas de Segurana Alimentar e Combate Fome ............................................ 3.11.1 Fruns estaduais de segurana alimentar ................ 3.11.2 Restaurantes populares ............................................ 3.11.3 Doao de alimentos e combate ao desperdcio: a experincia dos bancos de alimentos e o atendimento aos moradores de rua .................... 3.11.4 O poder pblico e a ao junto s redes de supermercados .................................................... 3.11.5 Combate desnutrio e mortalidade infantil atravs da ao comunitria ...................................... 3.11.6 A descentralizao da merenda escolar .................... 3.11.7 Compra institucional ................................................ 4 Definio do pblico beneficirio ............................................ 4.1 Avaliao dos conceitos: a fome, a desnutrio e a pobreza .......................................................................... 9 11 16 16 23 23 26 26 29 30 32 34 36 38 41 43 44 45 47 51 53 53 54 4.2 Metodologia utilizada para definio do pblico beneficirio ........................................................................ 4.3 Resultados .......................................................................... 5 Propostas para uma Poltica Integrada de Segurana Alimentar e Combate Fome Sntese .................................. 5.1 Introduo .......................................................................... 5.2 Polticas estruturais ............................................................ 5.2.1 Aumento da renda e diminuio da desigualdade.... a) Polticas de gerao de emprego e aumento da renda.... b) Intensificao da reforma agrria .................................. c) Previdncia social universal............................................ d) Bolsa escola e renda mnima.......................................... 5.2.2 Incentivo agricultura familiar ................................ 5.3 Polticas especficas ............................................................ a) O Programa Cupom de Alimentao PCA........................ b) Ampliao e redirecionamento do Programa de Alimentao do Trabalhador PAT .................................... c) Doaes de cestas bsicas emergenciais .............................. d) Combate desnutrio infantil e materna .......................... e) Manter estoques de segurana.............................................. f) Ampliao da merenda escolar.............................................. g) Segurana e qualidade dos alimentos .................................. h) Educao para o consumo e educao alimentar ................ 5.4 Polticas Locais .................................................................. 5.4.1 Programas municipais de segurana alimentar ........ 5.4.2 Programas para reas metropolitanas ...................... a) Restaurantes populares .................................................. b) Banco de alimentos ........................................................ c) Modernizao dos equipamentos de abastecimento .... d) Novo relacionamento com as redes de supermercados .............................................................. 5.4.3 Programas para reas urbanas nometropolitanas (pequenas e mdias cidades) .......... a) Banco de alimentos ........................................................ b) Parcerias com varejistas.................................................. c) Modernizao dos equipamentos de abastecimento .... d) Agricultura urbana ........................................................ 5.4.4 Programas para reas rurais ...................................... a) Apoio agricultura familiar............................................ b) Apoio produo para o autoconsumo ........................ 71 74 79 79 84 85 85 86 86 87 87 87 87 89 89 90 90 91 92 92 93 93 94 94 94 95 95 96 96 96 96 96 97 97 98

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5.5 Pblico potencial beneficirio das propostas .................... 98 5.6 Custos dos programas........................................................ 100 5.7 A nova institucionalidade .................................................. 104 Referncias bibliogrficas ............................................................ 105 Anexos .................................................................................. 109

NDICE DE TABELASTabela 1 Porcentagem de adultos (25 anos e mais) com baixo ndice de Massa Corporal (IMC) Brasil 1989 ............ Tabela 2 Porcentagem de mulheres em idade reprodutiva com baixo ndice de Massa Corporal (IMC) Brasil 1975-1996 .................................................................... Tabela 3 Evoluo dos benefcios tributrios do PAT Brasil 1992, 1995 e 1999........................................................ Tabela 4 Distribuio dos empregados que recebem ou no algum tipo de auxlio alimentao Brasil 1999 ........ Tabela 5 Evoluo do nmero de trabalhadores beneficiados pelo PAT e totalidade dos trabalhadores formais segundo faixas salariais Brasil 1992/1999 .............. Tabela 6 Dias de consumo interno abastecidos com os estoques de gros disponveis Brasil 1989/2001 ............ Tabela 7 Valor mdio per capita do consumo alimentar domiciliar da produo para autoconsumo nos assentamentos do Estado de So Paulo, segundo a origem do produto 1999/2000................................................................................ Tabela 8 Distribuio dos alunos que efetivamente consomem as refeies do Programa Nacional de Alimentao Escolar, de acordo com a regio 1997 .................. Tabela 9 Distribuio dos alunos que efetivamente consomem as refeies do Programa de Alimentao Escolar, de acordo com o tipo de convnio Brasil 1997 ...................... Tabela 11 Estimativas de indigncia de autores selecionados Brasil 1990-1999.............................................. Tabela 10 Linha de pobreza baseada na renda mdia familiar per capita de US$ 1,08 dirios. Base: Nordeste Rural Brasil 1999 .................................................................. Tabela 12 Estimativa de pobres no Brasil, segundo as regies Brasil 1999 ................................................................

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INTRODUO Este projeto visa suprir uma lacuna importante na agenda poltica brasileira: a falta de uma poltica de segurana alimentar e nutricional que consiga coordenar e integrar as diversas aes nos estados, municpios e sociedade civil. O Direito Alimentao, que est inserido no pacto internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais, deve ser garantido pelo Estado. O reconhecimento desse direito implica no apenas o acesso mas a qualidade e confiabilidade dos alimentos consumidos pela populao. Segundo Flvio Valente, Secretrio Geral do Frum Brasileiro de Segurana Alimentar e Nutricional: O direito alimentao um direito humano bsico. Sem ele no podemos discutir os outros. Sem uma alimentao adequada, tanto do ponto de vista de quantidade como de qualidade, no h o direito vida. Sem uma alimentao adequada no h o direito humanidade, entendida aqui como direito de acesso riqueza material, cultural, cientfica e espiritual produzida pela espcie humana."O direito a alimentar-se significa o direito de estar livre da fome, o direito a um padro de vida adequado para assegurar alimentao, vesturio e moradia adequados e o direito ao trabalho.Extrado de Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

A prioridade do combate fome e misria uma bandeira que vem sendo levantada pela sociedade brasileira h mais de uma dcada. Assim, as propostas apresentadas nesse documento so o resultado da mobilizao de nossa sociedade em torno desses aspectos e de novas questes que foram surgindo nos ltimos anos com respeito a qualidade da alimentao consumida pela nossa populao, como por exemplo a questo dos alimentos geneticamente modificados. Em termos concretos, a mobilizao popular em torno dessas questes teve como antecedentes a iniciativa do Partido dos Trabalhadores em 1991, corroborada pela Ao de Cidadania Contra a Fome e a Misria e Pela Vida (1992-1993) que deram origem e vitalidade ao Programa de Combate Fome e Misria durante o perodo do Governo Itamar Franco (19931994). Um movimento social muito amplo, liderado pelo socilogo Herbert de Souza e que se expressou na formao de milhares de comits de solidariedade, animou a ao governa-

mental e propiciou um enorme ganho de legitimidade ao do governo. Passados alguns anos, vemos, hoje, que a sinergia da mobilizao pelo combate fome, corroborada pela implementao das regras de seguridade social da Constituio de 1988, teve conseqncias concretas, fazendo refluir um contingente de pessoas abaixo da linha da pobreza. Mobilizao popular, parceria entre governo e sociedade e luta pela conquista da cidadania, vinculando o combate fome conquista de direitos sociais, so elementos do movimento iniciado em 1993 que devem ser assumidos integralmente agora. Na ltima dcada assistimos emergncia de um movimento articulado de entidades que vm marcando presena em torno da solidariedade e da resistncia mercantilizao das relaes entre pessoas e natureza. Nesse sentido, ganha destaque o debate sobre a Segurana Alimentar como eixo estratgico de desenvolvimento. O problema alimentar de um pas vai alm da superao da pobreza e da fome. O fundamental garantir a Segurana Alimentar. O combate fome deve ser inserido nesta estratgia maior, pois a face mais visvel da insegurana alimentar, e no queremos conviver com ela, como temos feito h sculos. O eixo principal da proposta do Projeto Fome Zero associar o objetivo da segurana alimentar a estratgias permanentes de desenvolvimento econmico e social com crescente eqidade e incluso social. Para introduzir este debate, vale a pena retomar brevemente as propostas apresentadas anteriormente. Em outubro de 1991, o Governo Paralelo organismo que antecedeu o Instituto Cidadania elaborou e apresentou sociedade uma Poltica Nacional de Segurana Alimentar PNSA1, que serviu de base para um debate nacional e participativo sobre o problema da fome e as formas de combat-la. A proposta contida no programa era: Garantir a segurana alimentar, assegurando que todos os brasileiros tenham, em todo momento, acesso aos alimentos bsicos de que necessitam". Para isso, a disponibilidade agregada nacional de alimentos deveria ser suficiente, estvel, autnoma, sustentvel e eqitativamente distribuda. As principais polticas propostas foram: gerao de empregos, recuperao dos salrios e expanso da produo agroalimentar, com os seguintes eixos de atuao: a) polticas de in1 Silva, L. I. L; Gomes da Silva, J. (1991): Poltica Nacional de Segurana Alimentar.So Paulo, Governo Paralelo.

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centivo produo agroalimentar (reforma agrria, poltica agrcola e poltica agroindustrial); b) poltica de comercializao agrcola (preos mnimos, estoques reguladores e gesto de entrepostos; c) distribuio e consumo de alimentos por meio de medidas de descentralizao do setor varejista, controle de preos e margens, ampliao dos programas de distribuio de alimentos bsicos; d) aes emergenciais de combate fome. Propunha-se ainda a criao de um Conselho Nacional de Segurana Alimentar CONSEA, para coordenar a implantao desta poltica e concretizar a integrao dos diversos setores governamentais, inclusive estaduais e municipais, contando com a participao da sociedade civil. Segundo o documento, a Poltica Nacional de Segurana Alimentar constitui-se prioridade de governo e no numa responsabilidade setorial, devendo portanto estar diretamente ligada Presidncia da Repblica, sob a forma de uma Secretaria Especial para a Segurana Alimentar. Defendia ainda que a elaborao desta poltica no implicava abandono da perspectiva de descentralizao das iniciativas. A estrutura do CONSEA chegou a funcionar durante o Governo Itamar Franco como resultado desta iniciativa, e foi acompanhada por uma intensa mobilizao social, trazendo resultados positivos e expressivos no combate fome e s carncias sociais. Em 1995, no entanto, o Conselho foi desmontado. Das propostas contidas no PNSA reforma agrria para atingir 3 milhes de famlias em 15 anos, recursos para pequenos e mdios agricultores expandirem a produo de alimentos, apoio comercializao agrcola, fortalecimento do PAT, erradicao da desnutrio infantil, entre vrios outros ainda h muito em que avanar. Os prprios nmeros utilizados pelo governo indicam que h no pas 54,4 milhes de pessoas que no possuem renda suficiente para os gastos bsicos como alimentao, vesturio, moradia e sade, dos quais cerca da metade, ou 24 milhes de pessoas, no tm renda suficiente sequer para se alimentar adequadamente2. Alm disso, verifica-se uma crescente vulnerabilidade do pas em relao segurana alimentar diante das constantes oscilaes de preos dos alimentos, crescente dependncia de alimentos importados e diminuio dos estoques pblicos de produtos agrcolas.2 Conforme Gazeta Mercantil, 05.03.2001: FHC define linha de combate a problemas sociais com base nas estimativas de Rocha (2000).

Diante desta situao, o Instituto Cidadania est propondo uma nova poltica de segurana alimentar e combate fome, denominado Projeto Fome Zero, cujo objetivo mostrar que possvel garantir para toda a populao este direito bsico que a alimentao adequada. No entanto, este direito social deve ser garantido pelos governantes e pela sociedade civil mobilizada. Por isso, essa uma proposta que exige a mobilizao de todos, incluindo os governos nos trs nveis federal, estadual e municipal e a sociedade civil (associaes, ONGs e empresas). A prpria elaborao do Projeto Fome Zero demonstra uma maneira participativa de se fazer polticas pblicas. O texto preliminar foi elaborado a partir de contribuies de uma centena de especialistas durante mais de seis meses. Foram realizados trs grandes encontros em So Paulo, Fortaleza e Santo Andr, que reuniram ao todo mais de 1000 participantes que debateram e contriburam para a verso preliminar da proposta. Foram realizados ainda, vrios debates com a participao de tcnicos e especialistas de todo o Brasil.3 A verso preliminar dessa proposta foi enviada, tambm, para entidades da sociedade civil, parlamentares, sindicatos, empresrios e especialistas nacionais e internacionais que analisaram e propuseram modificaes ao documento base. Todas as sugestes consideradas pertinentes foram reunidas nessa verso final, o que demonstra que a elaborao de uma proposta pode servir tambm de elemento de mobilizao para as polticas que se quer implementar. O resultado deste debate tem sido a reinsero do tema da Segurana Alimentar e Combate Fome na agenda nacional, vinculando tambm avaliao dos cinco anos da Cpula Mundial da Alimentao. Pretende-se que este documento sirva de subsdio para constituio de uma agenda permanente de discusso e de aes para buscar a garantia da Segurana Alimentar e a erradicao da fome no pas, como prioridade pblica. Apresenta-se, a seguir, o documento-guia contendo elementos de diagnsticos do conceito de segurana alimentar, do problema da fome e das polticas existentes e uma sntese das propostas apresentadas.

3 Os seminrios e encontros foram realizados em: Salvador-BA (13/08/01); SoPaulo-SP (07/11/00, 14/08 e 20/08); Juazeiro-BA (02/09/01); Fortaleza (06/09/01); Recife-PE (15/09/01) e Santo Andr-SP (19/09/01).

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1. PRINCPIOS GERAIS: A SEGURANA ALIMENTAR E O DIREITO ALIMENTAO Conforme abordado na Introduo, esta proposta de combate fome est includa no princpio da segurana alimentar. Neste tpico ser explicitado o conceito de segurana alimentar que orienta o projeto. Foi pouco depois de terminada a Primeira Guerra Mundial que se comeou a ter registro, na Europa, da utilizao do termo segurana alimentar". A traumtica experincia da guerra havia demonstrado, mais uma vez, que um pas poderia dominar o outro caso controlasse seu fornecimento de alimentos. Os Estados Nacionais davam-se conta de estar frente a uma poderosssima arma, uma vez que populaes inteiras no poderiam sobreviver sem alimentao e, diante desta situao, um pas poderia ser submetido a outro pas, por motivos polticos ou econmicos, a uma grave forma de dominao. Assim, fortaleceu-se a idia de que a soberania de um pas tambm dependia da sua capacidade de auto-suprimento de alimentos. A alimentao adquiriu um significado estratgico de segurana nacional, impondo a necessidade a cada pas de assegurar por conta prpria o suprimento da maior parte dos alimentos que sua populao consome, fazendo inaugurar um conjunto de polticas especficas, entre as quais a formao de estoques de alimentos. Uma conseqncia dessa preocupao foi o fortalecimento da noo de que a questo alimentar de um pas estava estritamente ligada sua capacidade de produo agrcola. Tal noo, que acabava excluindo outros aspectos da questo, manteve-se at quase o final da dcada de 1970. Nos primeiros anos dessa dcada, vivia-se um momento delicado, em que os estoques mundiais de alimentos estavam bastante escassos, com quebras de safra em importantes pases produtores e consumidores. O caso mais grave era o da antiga Unio Sovitica, que, atravessando invernos extremamente rigorosos, viu reduzir-se drasticamente sua capacidade de produo de trigo e outros gros, recorrendo ao mercado internacional com compras vultosas e esgotando ainda mais os estoques j reduzidos desses produtos. A idia de que a segurana alimentar estava quase que exclusivamente ligada produo agrcola mostrou-se dominante na Conferncia Mundial de Alimentao, promovida pela FAO Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e Alimen-

tao, em 1974. A discusso ento travada deu-se quase exclusivamente sobre as polticas agrcolas, reforando a crena de que a segurana alimentar dependia fundamentalmente de uma poltica de armazenamento estratgico, devendo-se fazer crescer os estoques e assegurar a consolidao de acordos internacionais sobre diferentes produtos agrcolas. Aproveitando-se desse contexto, veio tona toda uma argumentao propagandista das empresas ligadas indstria de agroqumicos que, naquele momento, buscavam fazer deslanchar em todo o mundo o processo que ficou conhecido como Revoluo Verde. Procurava-se convencer a todos que o flagelo da fome e da desnutrio no mundo desapareceria com o aumento significativo da produo agrcola, o que estaria assegurado com a adoo de um modelo agrcola de grandes propriedades monocultoras e o emprego macio de insumos qumicos (fertilizantes e agrotxicos). A produo mundial de alimentos recuperou-se ainda na dcada de 1970 e os preos dos alimentos, que haviam alcanado nveis extremamente elevados, baixaram. Mas nem por isso desapareceram os males da desnutrio e fome, manifestaes principais de insegurana alimentar que continuaram atingindo to gravemente parcela importante da populao mundial. dentro dessa realidade que se comeou a perceber que a capacidade de acesso aos alimentos era dificuldade crucial para a segurana alimentar por parte dos povos, mais do que a oferta de alimentos. Isso se reflete na definio apresentada pelaa FAO, em 1982, originada na 8- Sesso do Comit Mundial de Segurana Alimentar, que afirma que o objetivo final da segurana alimentar mundial assegurar que todas as pessoas tenham, em todo momento, acesso fsico e econmico aos alimentos bsicos que necessitam []", ainda que tambm fazendo clara referncia importncia da oferta em quantidade suficiente de alimentos e sua estabilidade. Claro est que fatores ligados capacidade de produo tambm podem ser causadores de agudas crises de insegurana alimentar. Em casos mais extremos aparecem as situaes de guerra e conseqente desestruturao da capacidade de produo, como tem ocorrido em diversos pases da frica, ou as situaes de bloqueio econmico, sofridas geralmente por pases que recusam submeter-se s grandes potncias econmicas e militares. Situaes extremas so tambm as catstrofes naturais, em que a agricultura e a distribuio de alimentos nos pases atingidos so parcial ou totalmente destrudas.

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Entre o final da dcada de 1980 e da de 1990, observa-se o crescimento das preocupaes com a qualidade dos alimentos (nutricional, biolgica, sanitria e tecnolgica) e sua sanidade (no-contaminao biolgica ou qumica). Esses elementos so da maior importncia em um contexto atual que favorece o desbalanceamento nutricional das dietas alimentares e o envenenamento dos alimentos em nome de uma maior produtividade agrcola ou com a utilizao de tecnologias cujos efeitos sobre a sade humana permanecem desconhecidos. Teve um papel destacado nesse perodo, a Conferncia Internacional de Nutrio, promovida pela FAO e pela Organizao Mundial da Sade OMS, realizada em 1992. A Conferncia reafirmou a incorporao desses atributos e chamou a ateno para a idia de segurana alimentar domiciliar", destacando a importncia dos cuidados promovidos no lar (carinho, ateno, preparo do aleitamento materno, estimulao psicossocial, informao e educao, entre outros). A construo do conceito de segurana alimentar no Brasil A introduo do tema da segurana alimentar no Brasil aparece tardiamente. Conforme os registros disponveis, o conceito foi formulado pela primeira vez por tcnicos e consultores engajados na elaborao de documento para uma poltica de abastecimento, no mbito do Ministrio da Agricultura, em 1986. A concepo assumida pelos tcnicos assemelhava-se quela que a FAO ento adotava, a partir de seu escritrio na Amrica Latina, com nfase na auto-suficincia alimentar nacional (Arroyo, 1988), mas tambm na questo do acesso universal aos alimentos (Schejtman, 1988). Na mesma medida, valorizava-se o papel estratgico da agricultura camponesa, num modelo de desenvolvimento endgeno com nfase no mercado interno (Maluf, 1994). importante assinalar que nessa oportunidade tambm se props a constituio de um Conselho Nacional de Segurana Alimentar, que deveria estar formalmente ligado a uma Secretaria Especial, diretamente vinculada Presidncia da Repblica. Toda essa inovadora proposta no teve conseqncias prticas. Ainda em 1986, a Primeira Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio reafirmava a compreenso de que a alimentao um direito bsico. Propunha-se a criao de um Conselho Nacional de Alimentao e Nutrio CNAN, vinculado ao Instituto Nacional de Alimentao e Nutrio INAN

e de um Sistema de Segurana Alimentar e Nutricional SSAN, no mbito do Ministrio do Planejamento, ambos com participao de representao da sociedade civil. Observe-se que esta conferncia foi possivelmente o nascedouro da idia de interdependncia entre a segurana alimentar e a nutricional. Na proposta, a identificao da incapacidade do acesso aos alimentos por parte significativa da populao brasileira ganhava destaque no diagnstico da situao de insegurana alimentar do pas. Dessa forma, a antiga viso que atribua o problema estritamente ao tema do abastecimento, ficava superada. Dentro de uma perspectiva muito mais abrangente, aponta-se a pobreza e o desemprego como as causas principais da fome, constatando-se que o aumento da capacidade de produo e os ganhos de eficincia ocorridos nas duas dcadas anteriores no resultaram na diminuio relativa dos preos dos alimentos e na maior capacidade de aquisio desses alimentos pelos setores mais empobrecidos da populao. A retomada do crescimento econmico, com maior eqidade, e a necessidade de regulao dos preos passavam a figurar, respectivamente, como meta e poltica a serem buscadas para que o pas se aproximasse de uma melhor condio de segurana alimentar. Ao lado disso, a descentralizao e a diferenciao regional das polticas tambm constituam pontos importantes dessa proposta (Maluf, 1994). Na primeira metade da dcada de 1990, o marco principal da construo de uma proposta de segurana alimentar para o pas se deu na Primeira Conferncia Nacional de Segurana Alimentar, em Braslia, em julho de 1994. As discusses realizadas desde o plano local, na preparao da conferncia e depois, durante a prpria conferncia, que contou com cerca de dois mil delegados, deixaram evidente o diagnstico de que a concentrao da renda e da terra constituam os determinantes principais da situao de fome e insegurana alimentar no Brasil. Em documento posterior, que sistematizou os eixos e prioridades desse intenso processo de discusso, vo ser encontradas as preocupaes referentes ao acesso alimentao, necessidade de assegurar sade, nutrio e alimentao a grupos vulnerveis e de garantir qualidade aos alimentos e ao estmulo a prticas alimentares e de vida saudveis (CONSEA, 1994). O resultado da Conferncia consolidou dois aspectos bsicos. O primeiro, de que o processo de desenvolvimento econmico-social do pas necessita garantir, obrigatoriamente, a segurana alimentar e nutricional para todos. O segundo as-

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pecto foi a comprovao, na prtica, da exigncia de uma articulao entre sociedade civil e governo para avanar na busca das condies de segurana alimentar, respeitadas todas as diferenas de papis prprios de cada parte. Nos ltimos anos, o pas retrocedeu do patamar antes alcanado, em que a segurana alimentar era declarada como um objetivo estratgico de governo. Fechou-se o CONSEA e os setores organizados da sociedade civil engajados na luta contra a fome e pela segurana alimentar tiveram de buscar novos espaos para prosseguir em suas aes. Porm, no campo da formulao conceitual a respeito da segurana alimentar, ofereceuse uma oportunidade rica para a consolidao de posies que h muito j vinham amadurecendo: a preparao brasileira para a Cpula Mundial da Alimentao, em Roma, em 1996. Nessa ocasio, constituiu-se um grupo de trabalho, composto de representantes dos ministrios e da sociedade civil (incluindo o setor empresarial), para elaborar o documento oficial brasileiro para a Cpula, que sistematizou a definio que: Segurana Alimentar e Nutricional significa garantir a todos acesso a alimentos bsicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em prticas alimentares saudveis. Contribuindo assim, para uma existncia digna em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana". Alguns pontos da definio brasileira merecem ser destacados. Em primeiro lugar, ela representava um conceito bastante abrangente. Comportava as noes de alimentao e de nutrio, enfatizando os aspectos de acesso, qualidade e disponibilidade em termos de suficincia, continuidade e preos estveis e compatveis com o poder aquisitivo da populao. Valorizava os hbitos alimentares adequados e colocava a segurana alimentar e nutricional como uma prerrogativa bsica para a condio de cidadania (Menezes, 1998b). Destaca-se a articulao estabelecida entre a segurana alimentar e a segurana nutricional, como duas faces de uma mesma moeda", no se podendo garantir uma delas sem que a outra tambm esteja assegurada. Procurava-se assim romper com a separao mecnica que freqentemente se estabelece e que tem como efeito a gerao e aplicao de polticas de formas setorializadas e estanques. No mais se podia aceitar a viso de que o alimentar uma questo para ser tratada pelas reas da economia e agricultura; e o nutricional, como atribuio especfica da rea de sade.

importante observar que esta definio no se limitava a defender a idia do acesso aos alimentos simplesmente, mas vinculava a esta condio a necessidade de que os alimentos fossem de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente. A exigncia da qualidade dos alimentos vem se tornando uma reivindicao que se coloca no mesmo patamar de importncia do acesso aos alimentos. Nos pases europeus e da Amrica do Norte utiliza-se freqentemente a noo de alimento seguro" como prerrogativa principal da segurana alimentar. No caso brasileiro, os consumidores ainda no atingiram um grau de organizao e conscincia de seus direitos que assegure alimentos de qualidade como uma exigncia de mercado e, muito menos, que esta condio se estenda aos contingentes da populao em situao de pobreza. No estgio em que se encontra hoje o debate e confirmando que se trata de um conceito ainda em construo, poder-seia acrescentar outros pontos que ampliam ainda mais sua abrangncia. Assim, quatro outros aspectos, que sero discutidos adiante, devem ser incorporados ao conceito: a soberania alimentar, o respeito e preservao da cultura alimentar, a sustentabilidade do sistema alimentar e, por fim, o direito humano alimentao. O emprego da noo de soberania alimentar comeou a surgir com fora no debate sobre a segurana alimentar no prprio ano de 1996. Durante a Cpula Mundial da Alimentao, no foro paralelo da sociedade civil, tambm realizado em Roma, a reivindicao da soberania alimentar apareceu com grande destaque. A importncia da autonomia alimentar dos pases est associada gerao de emprego dentro do pas e menor dependncia das importaes e flutuaes de preos do mercado internacional. Recentemente, este conceito foi reafirmado no Frum Mundial sobre Soberania Alimentar (ver Box). O segundo aspecto est relacionado necessidade de preservao da cultura alimentar de cada povo. Um pas no consegue assegurar sua soberania alimentar se permite que lhe seja imposto um padro alimentar estranho a suas caractersticas e tradies. O reconhecimento dessa assertiva oferece a dimenso exata do quanto a soberania alimentar est ameaada nos pases mais fragilizados perante o avano da globalizao. Outro aspecto que tambm ficou ausente na definio alcanada at a realizao da Cpula Mundial, mas que se mostra imprescindvel na demarcao do conceito de segurana alimentar, diz respeito idia da sustentabilidade do sistema

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alimentar. A necessidade de manter a oferta de alimentos em

condies de atender milhes de consumidores em cada pas traduz a maior dificuldade. A sada aparentemente fcil da intensificao da produo, pela via da especializao (monocultura) e do uso abusivo de insumos qumicos produz indiscutveis danos sustentabilidade (Menezes, 1998A). Sob a tica aqui apresentada, pode-se afirmar que a segurana alimentar est regida por um princpio bsico. Trata-se de considerar o direito humano alimentao como primordial, precedente a qualquer outra situao, de natureza poltica ou econmica, pois parte componente do direito vida. Assinale-se que o direito alimentao, como direito humano bsico, reconhecido no tratado internacional dos Direitos Econmicos,Sociais e Culturais DESC.Quando este direito no observado,est ocorrendo sua violao,devendo recair a responsabilidade sobre o Estado, que tem a atribuio de assegur-lo. Direitos Humanos so todos aqueles que os seres humanos tm, nica e exclusivamente, por terem nascido e por serem parte da espcie humana. So direitos inalienveis e independem de legislao nacional, estadual ou municipal especfica. Eles foram firmados na Declarao Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, pelos povos do mundo, por intermdio de seus chefes de Estado e de governo.A Soberania Alimentar dos PasesDe 3 a 7 de setembro de 2001 quatrocentos delegados de organizaes camponesas, indgenas, organizaes no governamentais e acadmicos de 60 pases reuniram-se em Havana no Frum Mundial sobre Soberania Alimentar. O objetivo do encontro foi o de analisar a perda de soberania sobre os recursos alimentares das naes do Terceiro Mundo ao mesmo tempo em que se impulsionava novos enfoques, polticas e iniciativas capazes de assegurar um presente e um futuro digno e sem fome para todos. Entre as concluses tiradas da reunio destacam-se: A soberania alimentar a via para erradicar a fome e a m-nutrio e garantir a segurana alimentar duradoura e sustentvel para todos os povos. Entendemos como soberania alimentar o direito dos povos de definir as suas prprias polticas e estratgias sustentveis de produo, distribuio e consumo de alimentos que garantam o direito alimentao para toda a populao, com base na pequena e mdia produo, respeitando as suas prprias culturas e a diversidade dos modos camponeses, pescadores, indgenas de produo agropecuria, de comercializao e de gesto dos espaos rurais nos quais a mulher desempenha um papel fundamental. A soberania alimentar favorece a soberania econmica, poltica e cultural dos povos. A soberania alimentar implica, ademais, na garantia do acesso a uma alimentao s e suficiente para todas as pessoas, principalmente para

A Declarao foi elaborada e assinada em um momento em que a humanidade tomou conscincia da barbrie que representou o Holocausto. Este pacto universal, baseado em princpios ticos e morais, reconhece que a diversidade a nica coisa que todos os seres humanos tm em comum e que esta deve ser respeitada e tratada com eqidade. A Declarao representou um avano para um novo patamar no tortuoso caminho percorrido pela humanidade em seu processo evolutivo. O Direito Alimentao comea pela luta contra a fome, ou seja, pela garantia a todos os cidados do direito ao acesso dirio a alimentos em quantidade e qualidade suficiente para atender as necessidades nutricionais bsicas essenciais manuteno da sade. Mas no pode parar por a. O ser humano precisa de muito mais do que uma rao bsica nutricionalmente balanceada. A alimentao para o ser humano tem outros aspectos importantes. A alimentao humana tem de ser entendida como processo de transformao de natureza no seu sentido mais amplo em gente,em seres humanos,ou seja,em humanidade.Isto ,quer se ressaltar que alimentao deve ser acessvel com DIGNIDADE. O ato de alimentar-se , para o ser humano, um ato ligado sua cultura, sua famlia, a seus amigos e a festividades coletivas. Ao alimentar-se junto de amigos, de sua famlia, comendo

os setores mais vulnerveis., como obrigao incontestvel dos estados nacionais e o exerccio pleno da cidadania. O acesso alimentao no deve ser considerada como compensao assistencialista dos governos ou uma caridade de entidades pblicas, privadas, nacionais ou internacionais. H, tambm, uma referncia importante e uma recomendao para que os Estados elaborem um Cdigo de Conduta sobre o Direito Humano Alimentao Adequada, que sirva efetivamente como instrumento para a implementao e promoo desse direito, e cujo contedo legal e as obrigaes do Estado fariam parte de uma conveno internacional relativa aos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Nesta linha, propem a criao de uma nova ordem democrtica e transparente para regular o comrcio alimentar internacional e o fortalecimento da Unctad Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e Desenvolvimento como espao de negociaes multilaterais em torno de um comrcio alimentar justo. Ressalta o documento que os delegados presentes apiam: O direito alimentao dos povos, includo na Declarao dos Direitos Humanos e ratificado na Cpula Mundial da Alimentao em Roma, em 1996, por estados membros da FAO/ONU.(extrado da Declarao Final do Frum Mundial sobre Soberania Alimentar, Havana, Cuba, 7 de setembro de 2001)

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pratos caractersticos de sua infncia, de sua cultura, o indivduo se renova em outros nveis alm do fsico, fortalecendo sua sade fsica e mental e tambm sua dignidade humana. Assim, o Direito Alimentao passa pelo direito de acesso aos recursos e meios para produzir ou adquirir alimentos seguros e saudveis que possibilitem uma alimentao de acordo com os hbitos e prticas alimentares de sua cultura, de sua regio ou de sua origem tnica. Ao comer, portanto, no s satisfazemos nossas necessidades nutricionais, como tambm nos refazemos, nos construmos e nos potencializamos uns aos outros como seres humanos em nossas dimenses orgnicas, intelectuais, psicolgicas e espirituais. No sem razo que muitos rituais religiosos envolvem atos de preparo e comunho de alimentos. De acordo com este conjunto de normas legais universais, cabe s sociedades humanas, sob a responsabilidade do Estado, cumprirem as obrigaes de respeitar, proteger e realizar os Direitos Humanos de cidados e grupos populacionais que residem em seu territrio. Ao mesmo tempo, parte-se da convico de que a segurana alimentar e nutricional somente ser assegurada por meio de uma participao conjunta de governo e sociedade, sem que com isso se diluam os papis especficos que cabem a cada parte. Aos governos (em todas as suas instncias),cabe implementar as polticas pblicas de segurana alimentar. Mas devem esses saber conceb-las em conjunto com a sociedade, que por sua vez precisa exercer seu papel de monitorar a aplicao dessas polticas. Nesse sentido, so necessrias tambm, articulaes internacionais para garantia do direito alimentao. interessante que o Brasil apie a realizao de uma convocao de uma Conveno Global de Segurana Alimentar, que deve servir de respaldo global aos planos nacionais de segurana alimentar, soAs Mulheres e a Segurana AlimentarApesar do acesso desigual renda, as mulheres contribuem com seu trabalho produtivo e reprodutivo para o desenvolvimento e o bem-estar da sociedade brasileira. Na sociedade atual, a diviso entre trabalho produtivo e masculino, e reprodutivo e feminino define que a alimentao das famlias uma atribuio das mulheres. Este modelo nem sempre encontra correspondncia na realidade das famlias (mulheres que trabalham fora de casa, que sustentam sozinhas suas famlias), mas organiza as percepes que se tem dos lugares de mulheres e homens. Este modelo sobrecarrega as mulheres no trabalho domstico e de cuidado, e tende a desvalorizar seu trabalho. As polticas pblicas, ao considerar a famlia como uma unidade, sem

brepondo-se OMC Organizao Mundial do Comrcio, partindo-se da premissa que a regulamentao do comrcio alimentar deve se inserir no princpio de justia social. A questo alimentar tem impactos sobre interesses diversos e at contrrios, o que faz com que a definio do significado da segurana alimentar se transforme em um espao de disputa muitas vezes rduo, e o enfrentamento das questes relativas aos alimentos, um espao de conflitos constantes (Sen, 1984). Alm do mais, o conceito no pode ser dado como estabelecido, mas como ainda em processo de construo. Vista destes ngulos, fica clara a importncia da elaborao de uma argumentao slida, fundamentada nos princpios j enunciados e que se faz a partir de um debate amplo e ao mesmo tempo consistente. Nesse sentido, partindo da base conceitual enunciada na definio apresentada no documento brasileiro levado Cpula Mundial da Alimentao e incorporando as demais questes relevantes que tm surgido no debate mais recente, prope-se definir que:Segurana Alimentar e Nutricional a garantia do direito de todos ao acesso a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e de modo permanente, com base em prticas alimentares saudveis e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais e nem o sistema alimentar futuro, devendo se realizar em bases sustentveis. Todo pas deve ser soberano para assegurar sua segurana alimentar, respeitando as caractersticas culturais de cada povo, manifestadas no ato de se alimentar. responsabilidade dos Estados Nacionais assegurarem este direito e devem faz-lo em obrigatria articulao com a sociedade civil, cada parte cumprindo suas atribuies especficas.

avaliar as desigualdades que operam em seu interior, reforam este modelo. O poder pblico deve considerar a atuao das mulheres na busca por uma alimentao saudvel, como interlocutoras privilegiadas, reforando a sua liderana. importante, tambm, numa proposta desta natureza, enfatizar o Direito da mulher a amamentar seus filhos. Muitas vezes este direito no garantido pelas empresas, patres e rgos pblicos, pelas condies econmicas e por falta de orientao, resultando no prejuzo da formao das crianas e na sade da prpria mulher. O direito amamentao no deve se contrapor ao direito das mulheres ao emprego, cabendo ao poder pblico a fiscalizao do cumprimento da lei.

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P2. O PROBLEMA DA FOME

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buscando derrubar certos mitos que tm contribudo para a perpetuao da fome no mundo. 2.1 D ESCONSTRUINDO M ITOS 1) A fome NO tem diminudo no mundo A preocupao com o no acesso alimentao por parcelas significativas da populao mundial e nacional, resultando em fenmenos como a fome e a desnutrio,4 sempre foi assunto de grande preocupao por parte de pesquisadores, organizaes no-governamentais, organizaes de fomento internacionais e do poder pblico. Mas essa preocupao vem crescendo nos ltimos anos. Em especial com relao s organizaes internacionais, percebe-se uma ao mais coordenada em torno de programas de combate pobreza (Banco Mundial, 2000 e PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, 2000) ou segurana alimentar (FAO, 2000). Essas preocupaes refletem o fato de que a manuteno da pobreza e de nveis agudos de fome (e mesmo o seu aumento em alguns continentes) o grande calcanhar de Aquiles para o sucesso" do sistema capitalista mundial na sua verso global. A Cpula Mundial da Alimentao de 1996, que reuniu 186 pases em Roma, definiu como meta reduzir pela metade o nmero de desnutridos at o ano de 2015, o que fez com que a FAO adotasse uma metodologia para acompanhamento da quantificao da fome no mundo. Similarmente, o Banco Mundial acompanha os dados de pobreza mundial desde 1993, sendo que seu ltimo relatrio sobre desenvolvimento mundial (2000/2001) denomina-se Luta contra a Pobreza". O PNUD, na mesma linha, adotou o compromisso de reduzir pela metade a pobreza extrema no mundo e tambm publica anualmente avaliaes sobre o estado de desenvolvimento humano do mundo, acompanhando indicadores sociais. Os resultados do ltimo relatrio da FAO, o Relatrio da Insegurana Alimentar no Mundo (SOFI 2000), demonstram que pouco tem se evoludo para atingir a meta da4 A fome ocorre quando a alimentao diria no supre a energia requerida para manuteno do organismo e para exerccio das atividades normais do ser humano. A desnutrio decorre da manifestao de sinais clnicos que provm da inadequao quantitativa (energia) ou qualitativa (nutrientes) da dieta ou tambm de doenas que provocam o mau aproveitamento biolgico dos alimentos ingeridos (baseado em Monteiro,1995).

A fome como problema social uma das manifestaes mais nefastas da humanidade. Enquanto uma nao no capaz de dar acesso a alimentos em quantidade suficiente e qualidade sua populao, no pode ser considerada civilizada, pois tratase da necessidade mais bsica e elementar do ser humano. Por isso, prover uma alimentao de forma digna ao seu povo deve ser visto como o primeiro dos objetivos de uma nao. Fome gera fome. Seus efeitos perpetuam-se e criam um crculo de misria difcil de ser superado. Os efeitos mais diretos da fome so: a morte, o deficiente desenvolvimento fsico e mental, a menor resistncia s doenas. Estudos cientficos mostram que os filhos dos famintos tm cinqenta vezes mais probabilidade de morrer antes do primeiro ano de vida do que os filhos dos bem alimentados. verificada a incidncia de doenas como kwashiorkor (quando a criana fica inchada por falta de protenas), marasmus (quando a criana fica enrugada por falta simultnea de calorias e protenas), deficincias de vitaminas e sais minerais, bcio endmico, raquitismo, pelagra, anemia por deficincia de ferro, beriberi, cegueira por deficincia de vitamina A, entre vrias outras anomalias ainda presentes no terceiro milnio (George, 1976). No Brasil, verificou-se que o efeito prolongado da fome reduz a estatura das pessoas originando homens e mulheres anes, chamados no Nordeste brasileiro de homens-gabirus". Mas no preciso ir longe para observar, nas grandes cidades, famlias morando nas ruas, implorando por comida. O nosso modelo de desenvolvimento, de um lado, exclui cada vez mais pessoas do consumo e da modernidade e, do outro, faz com que as pessoas includas adotem, cada vez mais, o padro de vida das naes desenvolvidas, contribuindo para aumentar a distncia entre ricos e pobres. As pessoas excludas passam a depender, cada vez mais, das boas aes" de terceiros que doam os alimentos que sobram e que, de outra forma, iriam para o lixo (e grande parte ainda vai), e de programas pblicos. Ou ento sobrevivem pela violncia e pelo roubo. Esta a soluo" da barbrie, que tambm se almeja erradicar se desejamos uma nao que possa ser chamada de civilizada. Para se atacar com eficcia um problema necessrio, em primeiro lugar, ter clareza da natureza do mesmo. Para tanto, comeamos por fazer um diagnstico do problema da fome,

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Cpula Mundial. O nmero estimado de 826 milhes de pessoas subnutridas no mundo, para o perodo 1996-98, no mostrava diferena em relao aos dados do perodo anterior, de 1995-97.Para alcanar a meta do Compromisso, ns devemos atingir uma reduo de no mnimo 20 milhes por ano at 2015. A taxa atual de pouco menos de 8 milhes por ano desde o incio dos anos 90 pesarosamente inadequada" (FAO, 2000).

No Brasil, h diversos estudos e metodologias para quantificar os pobres, indigentes e pessoas que passam fome, que do origem a nmeros diversos. As estatsticas oficiais" mais recentes tm mostrado que, aps uma acentuada reduo dos nveis de pobreza e indigncia 5 entre os anos 1993 e 1995, verifica-se uma manuteno dos nveis entre 1996 e 1998, com ligeiro aumento em 1999 (Grfico 1).Grfico 1 - Estimativas de Pobres e Indigentes no Brasil*

(1) Dados do IPEA (2001) dados "oficiais" do governo federal. * Refere-se proporo de indigentes e pobres calculados a partir da medio de uma linha de indigncia e outra de pobreza.

Outros dados importantes para o acompanhamento do problema so aqueles vinculados rea da sade e nutrio. Monteiro (1995) considera que o ndice de Massa Corporal (IMC) abaixo de determinado valor o ndice mais adequado

para avaliar a incidncia da fome entendida como falta de ingesto calrica (quantitativa). Calcula-se o IMC dividindo-se o peso de uma pessoa pelo quadrado de sua altura. O valor limite, que indica um valor mnimo de reserva energtica, 18,5 kg/m2. Consideramos que estes dados refletem o efeito contnuo da fome nas pessoas, mas possivelmente no englobam as pessoas vulnerveis, que se alimentam de forma descontnua (por meio de doaes, por exemplo) mas no sofrem oscilaes de peso. Este ndice medido apenas para adultos (mais de 24 anos de idade). Para a OMS, normal que haja de 3% a 5% de pessoas com IMC menor que 18,5 kg/m2 em um pas, pela existncia de pessoas constitucionalmente magras. Assim, os parmetros definidos pela OMS para os pases so: prevalncia de dficit energtico leve: entre 5% e 9% da populao maior de 24 anos com IMC < 18,5 kg/m2 prevalncia moderada: entre 10% e 19% da populao maior de 24 anos com IMC < 18,5 kg/m2 prevalncia alta: entre 20% e 39% da populao maior de 24 anos com IMC < 18,5 kg/m2 prevalncia muito alta: mais de 40% da populao maior de 24 anos com IMC < 18,5 kg/m2 Para o Brasil, Monteiro (1995) calculou esta proporo, a partir dos dados da PNSN (Pesquisa Nacional de Sade e Nutrio, de 1989),6 chegando ao valor de 4,9% da populao, com 4% nas reas urbanas e 7,5% nas reas rurais (Tabela 1). Essa proporo, aplicada para a populao contada no Censo Demogrfico de 1991, representa cerca de 1,1 milho de pessoas na rea rural e 2,2 milhes na rea urbana, totalizando 3,2 milhes de pessoas de 25 anos ou mais com baixa reserva energtica. No entanto, importante ressaltar que, dentro dessa populao, inclui-se uma parcela da populao constitucionalmente magra, que no necessariamente composta por pessoas que sofrem de carncia alimentar.

5 A proporo de pobres e indigentes calculada a partir da definio de uma linha de pobreza e de indigncia. Aqueles que recebem uma renda inferior a cada uma destas linhas chamado de pobre ou indigente, respectivamente. A linha de indigncia refere-se renda mnima necessria para adquirir o valor de uma cesta de alimentos com quantidades energticas mnimas ou recomendadas. A linha de pobreza superior linha de indigncia pois inclui, alm do valor da cesta de alimentos, todas as outras despesas no-alimentares como vesturio, moradia, transportes etc.

Em porcentagem

6 Esta foi a ltima pesquisa desta natureza feita no Brasil, o que demonstra a faltade prioridade dada ao acompanhamento da situao nutricional da populao.

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Tabela 1 - Porcentagem de adultos (25 anos e mais) com baixo ndice de Massa Corporal (IMC) Brasil 1989(1)Regio Urbana Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste Brasil 4,4 5,2 3,9 2,6 4,2 4,0 reas Rural 9,4 7,2 4,1 6,3 7,5 Total 4,4 6,8 4,4 3,0 4,7 4,9

Fonte: Monteiro (1995). (1) Refere-se a pessoas com mais de 24 anos com IMC < 18,5 kg/m2

Dados mais recentes foram obtidos apenas para mulheres em idade frtil, o que pode ser considerado um indicador da taxa global, se considerarmos que a taxa evolui igualmente para homens e mulheres (Tabela 2).Tabela 2 - Porcentagem de mulheres em idade reprodutiva com baixo ndice de Massa Corporal (IMC)(1) Brasil 1975-1996Regio/rea1975 Anos 1989 1996 Variao Anual (%) 1975-89 1989-96

A proporo de mulheres em idade reprodutiva com baixo IMC passou de 9,7% em 1975 para 5,8% em 1989 e 6,2% em 1996, ltimo dado disponvel (Monteiro, 1997). Verifica-se que, embora tenha ocorrido uma melhoria sensvel entre os anos de 1975 a 1989, no perodo mais recente, de 1989 a 1996, os dados mostram uma estabilizao da proporo de mulheres com dficit de reservas energticas. Esta estabilidade foi provocada por um aumento da proporo nas reas urbanas (do Nordeste e do Centro-Sul), bem como da rea rural do Centro-Sul. A nica regio que apresentou queda na proporo de 1989 a 1996 foi a regio rural do Nordeste, que apresenta, tambm, o maior valor absoluto. Dessa forma, verifica-se que o problema da fome, na sua forma mais aparente, afetando as reservas energticas, ainda presente no pas. Enfim, como pode-se verificar, no h demonstrao de que a pobreza e a indigncia estejam diminuindo de forma contnua no Brasil. Os nmeros atuais para o Brasil sero analisados adiante. 2) A fome NO causada pelo aumento da populao NEM pela falta de alimentos no mundo Durante muito tempo, a ateno das organizaes internacionais e dos pases desenvolvidos esteve voltada para a soluo do problema da fome no mundo, considerando-a como um problema concentrado geograficamente e relacionado falta de produo de alimentos. A Conferncia Mundial da Alimentao de 1974, em Roma, apontava como principais solues medidas de ordem tecnolgica com nfase na produo, em vez da distribuio eqitativa dos alimentos. No entanto, mesmo com a enorme quantidade produzida de alimentos no mundo, como resultado da Revoluo Verde, verifica-se a permanncia de milhes de pessoas em situao crtica em diversos pases, mesmo onde h excesso de disponibilidade calrica. A metodologia adotada pela FAO para acompanhamento da situao da fome no mundo calcula a disponibilidade calrica mdia em cada pas e a proporo de pessoas que tm uma ingesto calrica abaixo do valor mnimo recomendado. Os dados j citados do SOFI 2000 mostram que a fome atinge 98 pases subdesenvolvidos e mais 27 pases desenvolvidos e em transio (Europa Oriental e antiga Unio Sovitica). Esses pases tm uma populao total que varia de 400 mil (Suriname) a 1,2 bilho (China). Dos 98 pases, verifica-se que apenas seis deles tm uma disponibilidade calrica

Urbana Norte Nordeste Centro-Sul Brasil Rural Nordeste Centro-Sul Brasil Total Nordeste Centro-Sul Brasil(2) (2) (2)

12,2 10,8 7,1 8,6 13,3 9,6 11,2 11,8 7,8 9,7

5,5 5,2 4,6 4,8 12,2 5,1 8,6 8,4 4,7 5,8

5,5 6,3 5,8 5,9 8,8 6,1 7,4 7,7 5,8 6,2

-3,9 -3,7 -2,5 -3,2 -0,6 -3,3 -1,7 -2,1 -2,8 -3,6

0,0 3,0 3,0 3,3 -4,0 2,8 -2,0 -1,2 3,3 1,0

Fonte: Monteiro (1997).(1) Mulheres de 18 a 49 anos de idade que so mes de crianas menores de cinco

anos com IMC< 18,5 kg/m2.(2) Refere-se aos resultados das regies Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

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total per capita7 abaixo do mnimo requerido. Ou seja, apenas seis pases no tm disponibilidade de alimentos suficiente para alimentar toda a populao, diferentemente dos demais 92 pases, cujo problema a distribuio desigual da alimentao. Esse mesmo estudo estimou no Brasil a disponibilidade de 2.960 quilocalorias por pessoa e por dia, bastante acima do mnimo recomendado de 1.900 kcal/pessoa/dia. Os subnutridos brasileiros teriam um consumo mdio de 1.650 kcal/pessoa/dia e dficit de 250 kcal/pessoa/dia. O Brasil classificado na categoria 3 (de 1 a 5, para propores crescentes de subnutridos), juntamente com pases como Nigria, Paraguai e Colmbia, por exemplo. Naturalmente, trata-se de uma simplificao do problema, pois os pases tm dficits alimentares mais ou menos profundos, que variam, segundo a FAO, de 100 a 400 kcal/pessoa/dia. Mas ilustra bem o problema: se os alimentos fossem igualmente distribudos entre a populao desses pases, a fome no mundo se reduziria a alguns poucos pases com dficit crnico de alimentos, quase todos localizados na frica e sia.

3) Existe um mercado da fome no mundo George (1976) cita dados do Banco Mundial, que conclui que um bilho de pessoas que vivia nos pases com renda per capita abaixo de duzentos dlares por ms consumia apenas cerca de 1% da energia consumida pelos norte-americanos. Acredita-se que esta situao tenha mudado pouco, ainda que se considere o aumento da conscientizao sobre o excesso de consumo alimentar em funo do problema da obesidade e doenas associadas. A autora, ao fazer uma anlise das causas da fome no mundo, levanta, de forma contundente, a existncia de interesses polticos e econmicos comerciais em manter7 Refere-se quantidade de alimentos para consumo humano, expressa em kcal/pessoa/dia, calculada como o volume da produo alimentar remanescente para o consumo humano aps as dedues de todo consumo no-humano: exportao, alimentao animal, uso industrial, sementes e perdas.

certas pessoas famintas e em alimentar outras. Trata-se da existncia de um mercado da fome", suprido pelas empresas transnacionais ligadas aos alimentos e apoiado pelos governos nacionais e organizaes internacionais de fomento. Esse mercado, ou indstria, da fome altamente dinmico e lucrativo e manifesta-se de diversas formas, segundo os imperativos da acumulao capitalista. O papel da alimentao foi primordial no desenvolvimento do capitalismo industrial, podendo-se classificar dois momentos, que Friedmann e McMichael (1989) chamam de diferentes regimes alimentares. No primeiro regime alimentar, que vai do perodo da consolidao do capitalismo industrial no final do sculo XIX at o incio do ps-guerra, a agricultura teve um papel primordial na diviso internacional do trabalho, por meio do fornecimento de matrias-primas e alimentos para os pases europeus e para as metrpoles. A expanso do mercado de trabalho para a indstria nascente contou com a entrada de alimentos e matrias-primas baratas dentro de um mercado mundial regulado. Para dar conta desse imperativo, desenvolveu-se uma especializao da produo agrcola voltada para a exportao nos pases colnias, crescentemente competitivos. Esse modelo favoreceu o domnio crescente da produo e do fornecimento de alimentos por alguns poucos pases, particularmente os Estados Unidos e o Canad. Como conseqncia, v-se que, em 1970, os EUA empreendiam cerca de 35% das exportaes mundiais de trigo,50% de milho,90% dos gros de soja e 30% dos farelos. Isso foi resultado de uma poltica deliberada de difuso do modelo de produo e consumo norte-americanos. Os excedentes americanos eram desovados no mundo, juntamente com a difuso do padro americano de produo, baseado em alta mecanizao, diminuio macia da fora de trabalho agrcola, especializao das tarefas no processo de produo, revoluo tcnica para utilizao de insumos industriais e de sementes altamente produtivas e criao de animais com base em alimentao produzida pela indstria (Tubiana, 1985).

Investimento em Pesquisa: o Caso do CGIARO CGIAR Consultative Group on International Agricultural Research dedica US$ 350 milhes anualmente atravs da comunidade internacional para investimento em pesquisa agrcola nos pases subdesenvolvidos. O Workshop de San Jos, Costa Rica, em setembro de 1999, teve como tema o combate pobreza: Assessing the Impact of Agriculture Research on Poverty Alleviation. Nesse evento, decidiu-se dedicar 1% do oramento total do Centro para pesquisas em temas ligados pobreza. O objetivo dedicar esse oramento para mapeamento da pobreza, estudos de caso, experimentos e estudos sobre impactos da pesquisa agrcola na reduo da pobreza.Editorial do Workshop, publicado em Food Policy, 18 (6), 2000, pp. 631-650

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A influncia americana ultrapassa amplamente o mbito de um controle dos mercados e relaes comerciais. Constituise, de fato, numa verdadeira hegemonia, pois ela se apia na fora do Estado e no poder dos atores engajados (especialmente firmas multinacionais de origem norte-americana do setor agroalimentar), legitima-se e enraiza-se na eficcia dos modelos tcnicos e cientficos, econmico, social e poltico" (Tubiana, 1985, p. 109). No segundo regime alimentar, que se difundiu no psguerra, a indstria alimentar passou a subordinar a agricultura, tornando-se crescentemente intermediria entre produtores agrcolas e consumidores de alimentos. Com base nas grandes empresas transnacionais, a agricultura se insere nesse processo de acumulao, em que a comida passa a ser no s uma coisa produzida por agricultores e comprada por consumidores, mas um produto lucrativo para empresa capitalista, produzida, processada e vendida transnacionalmente" (Friedmann,1991,p.72). Dessa forma, verifica-se no mais uma especializao de pases produtores versus importadores, mas uma integrao transnacional da produo alimentar, com forte base na produo animal intensiva para criar o complexo produto animal/ rao, que ultrapassa fronteiras. Ps-1973 essa integrao incorporou alguns pases do terceiro mundo, como Brasil e Argentina, na Amrica Latina, e pases da sia. Duas tendncias importantes para os pases subdesenvolvidos participantes desse regime so: a substituio de importao de produtos tropicais do Sul por indstrias agroalimentares dos pases capitalistas avanados, baseada na busca crescente por lucros e na substituio de produtos naturais por sintticos; e a crescente competio e instabilidade geradas atravs do fim dos acordos multilaterais (Friedmann, 1991). Os produtos agrcolas no so mais fornecidos diretamente aos consumidores, mas fazem parte de um sistema complexo de processamento, como matrias-primas, de uma crescente indstria alimentar. A competitividade cresce, junto com a instabilidade do fluxo comercial e dos preos. Alguns pases subdesenvolvidos conseguem se inserir no mercado de fornecimento de matrias-primas, como o caso de Argentina, Brasil e Chile, mas, ao mesmo tempo, passam a ser crescentemente dependentes da importao de alimentos processados pelas empresas dos pases desenvolvidos. Em 1983, o grupo dos pases desenvolvidos realizava mais de 65% das exportaes mundiais de produtos agrcolas. A participao das importaes dos

pases desenvolvidos na demanda mundial passou de 16% em 1967 para 23% em 1980, sendo que a de produtos leiteiros passou de 20% para 34% e a de acar, de 19% para 31%, a de cereais forrageiros de 4% para 18%e de gros oleaginosos, de 9% para 22%, no mesmo perodo (Tubiana, 1985) . As conseqncias desse processo so vrias. Primeiro, verifica-se que a produo, a manufatura e a distribuio de alimentos no mundo so cada vez mais controladas por poucas mos, cujos interesses esto relacionados busca de lucros monetrios e no s necessidades dos seres humanos. Isto faz com que as decises do que e quanto produzir dependam cada vez menos das necessidades da populao dos pases subdesenvolvidos, fornecedores de matrias-primas. As decises so ditadas pelos pases desenvolvidos e pelos imperativos da exportao8.Uma outra conseqncia desse mercado da fome a imposio e a distoro de hbitos alimentares por parte dos pases desenvolvidos nos demais pases. Primeiramente, isso

ocorreu com a ajuda alimentar, no ps-guerra, por meio do qual os Estados Unidos desovaram imensos estoques de trigo, soja e seus derivados e demais cereais (atravs da PL480, Public Law 480), criando uma dependncia nos pases pobres de alimentos que no so por eles produzidos. Num segundo momento, essas mudanas foram forjadas por meio de campanhas publicitrias, das grandes empresas alimentares de produtos processados importados. Nos pases subdesenvolvidos, Friedmann (1991) concluiu que este processo resulta em diferentes dietas alimentares baseadas nas classes sociais (renda). Enquanto aumenta o consumo de alimentos processados, congelados, fast foods, adoantes e pratos prontos nas camadas da populao de maior renda, a maior parte da populao desses pases mantm um padro de consumo tradicional da populao de baixa renda. George (1976) constata que, nos Estados Unidos, o consumo de leite, frutas e verduras decresceu, enquanto o consumo de refrigerantes, batatas fritas empacotadas, pastis, sorvetes e8 No Brasil verifica-se que a produo brasileira de gros crescente. Em 1999, a produo total de gros (milho, soja, arroz, feijo e trigo) foi de 82,44 milhes de toneladas e em 2000 estimou-se uma safra de 85,66 milhes de toneladas, segundo Embrapa-Conab. No entanto, 80% desta produo refere-se a apenas duas culturas: milho e soja. Por outro lado, as produes de arroz, feijo e trigo, representaram, respectivamente, 14,0%, 3,7% e 3,1% da produo de gros em 1999. As culturas de milho e soja apresentaram o maior crescimento de produo entre 1975 e 1999, de respectivamente, 3,1% e 4,9% ao ano, enquanto as produes de arroz, feijo e trigo aumentaram a taxas de 1,7%, 1,3% e 1,5% ao ano, respectivamente (Embrapa/ site www.embrapa.br).

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ps artificiais de frutas cresceu assustadoramente nas ltimas dcadas, ao mesmo tempo em que os lucros das empresas de alimentos so crescentes e radicados cada vez mais nos pases subdesenvolvidos. No Brasil, dados comparativos do consumo domiciliar de alimentos nas regies metropolitanas mostram que houve, de 1987-88 para 1995-96, uma substituio do consumo de po por biscoito, que passou de 3,1 para 3,9 kg per capita/ano, um aumento do consumo de refrigerantes (o consumo de coca-cola passou de 9,6 para 12,6 litros per capita/ano e o de guaran, 2,7 para 4,3 litros per capita/ano) e uma queda do consumo de leite in natura, de 64 para 51,5 litros per capita/ano (Reis, 2000). 4) No Brasil, a pobreza e a fome NO esto concentradas nas reas rurais do Nordeste No h dvidas que a populao rural do Nordeste a mais pobre do pas: Rocha (2000) calculou que, em 1999, 51% da populao rural do Nordeste estava abaixo da linha de pobreza, proporo s menor que a da regio metropolitana de Salvador, de 59,6%, em relao a todas as demais regies do pas. Hoffmann (2001) calculou, para o mesmo ano, que 50,4% das pessoas residentes na zona rural do Nordeste viviam com renda familiar per capita igual ou menor a um quarto do salrio mnimo9, sendo esta a maior proporo verificada em relao s demais regies e reas. No entanto, em termos absolutos, a populao rural do Nordeste representava, em 1999, 15,1% da populao pobre no pas, ou seja, 8,2 milhes dos 54,4 milhes de pobres do pas (Rocha, 2000). Ao comparar a pobreza do Nordeste com a do Centro-sul, no est se querendo igualar" as pobrezas. Elas apresentam diferentes sinais de gravidade e, possivelmente, no Nordeste brasileiro, aparecem em suas formas mais extremas. Alguns analistas falam at mesmo de uma fome africana" no Nordeste, referindo-se desnutrio crnica que ocorre em algumas regies daquele continente. O que est se querendo dizer que ao focalizar o problema da fome em reas especficas especialmente nas reas rurais no se estar atacando o problema global, mas apenas parte dele. Os dados levantados pelo Projeto Fome Zero calcularam9 Refere-se ao salrio mnimo real de agosto de 1980 (R$ 46,15 em setembro de 1999).

que a populao rural pobre do Nordeste representa 21% da populao pobre do pas (9,452 milhes de pessoas), em 1999. Verificou-se, tambm, que exatamente nas reas metropolitanas que a pobreza aumentou nos ltimos anos (Grfico 2). Enquanto o nmero de famlias pobres cresceu a uma taxa de 0,3% ao ano entre 1995-99, nas reas metropolitanas esta taxa foi de 5,4% ao ano no mesmo perodo. Rocha (2000) avaliou que os efeitos redistributivos do Plano Real em nvel nacional j tinham se esgotado em meados de 1996, estabilizando-se num novo patamar. A partir de ento, os ajustes ps-plano tm gerado um agravamento da pobreza metropolitana, que passou de 33%, em 1995 a 37% em todo o pas, em 1999. Seus dados demonstram que, s na Regio Metropolitana de So Paulo, a proporo de pobres passou de 26,9%, em 1995, para 39%, em 1999, representando um aumento de 45% em apenas quatro anos. Segundo a autora, esse agravamento pode estar associado ao rpido processo de excluso da mo-de-obra menos qualificada do mercado de trabalho. Os postos de trabalho de menor qualificao (trabalhadores com menos de quatro anos de escolaridade) foram reduzidos em 1,2 milho entre abril de 1994 e abril de 1999, enquanto aqueles ocupados por trabalhadores com quatro a oito anos de estudo permaneceram estveis, e os postos de trabalhadores com mais de oito anos de estudo continuam a crescer. Como conseqncia, o rendimento total dos trabalhadores com maior escolaridade apresenta os maiores ganhos acumulados no perodo 1994-2000, enquanto os ganhos daqueles com menor escolaridade tm declinado sistematicamente.Grfico 2 - Evoluo de Famlias muito Pobres, segundo reas de Residncia, Brasil, 1999

Fonte: Projeto Fome Zero Nota: Famlias com renda per capita inferior a um dlar dirio

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5) As foras de mercado NO resolvem o problema da fome Nos documentos da Cpula Mundial da Alimentao de 1996, a FAO analisa algumas histrias de sucesso no combate fome no mundo. Os relatos demonstram que a grande maioria dos pases o conseguiu com uma forte atuao do governo junto sociedade civil (ver boxes). No Brasil, acompanhamos a diminuio dos estoques pblicos e uma crescente insegurana alimentar. Alguns exemplos so a crise do milho ocorrida em 1999/2000, quando os preos do milho estavam 30% acima do ano anterior e os produtores continuaram estocando o produto na expectativa de preos mais altos10. Para este ano de 2001 espera-se no Brasil uma demanda para o arroz de 12 milhes de toneladas, acima dos 10,5 milhes previstos de produo interna. A dependncia das importaes de trigo da Argentina tambm fator de insegurana diante da crise econmica por que passa o pas e das oscilaes cambiais. Apesar de alguns avanos obtidos no pases citados, representantes da FAO constatam que ainda so resultados no permanentes e que, na realidade, no h propostas governamentais planejadas para a erradicao da fome. A falta de resultados, assim, no conseqncia da ineficincia dos governos" ou da ineficcia da interveno governamental", pois pouco se veri10 Ver Folha de So Paulo, 11.4.2000.ChinaA China possui o desafio de alimentar quase um quinto da populao do mundo, dispondo de apenas 1/15 da terra arvel. Esse desafio foi enfrentado com elevado investimento na agricultura, desde os anos 1960. Como resultado deste investimento, a disponibilidade alimentar passou de 1.500 kcal/pessoa/dia no incio dos anos 1960, para 2.700 kcal/pessoa/dia no incio dos anos 1990, por meio, basicamente, do aumento da produo domstica. Em 1979 o governo chins iniciou uma srie de reformas visando a dinamizar a agricultura: diversificou a economia rural, especializou a produo, expandiu os direitos terra, alocou as culturas de acordo com a aptido da regio e individualizou a propriedade. Entre 1979 e 1984, o valor da produo agrcola cresceu 11,8% ao ano e a produo de gros, 4,1% ao ano. O perodo de maior crescimento da renda per capita rural ocorreu entre 1979 e 1984. O nmero de pobres rurais declinou de 260 milhes em 1978 para 100 milhes em 1990.Baseado em FAO (1996).

ficou em termos de atuao planejada dos agentes pblicos nessa linha. Quando essa existiu, teve curta durao no pas.

Susan George (1976) conclui que os nicos pases subdesenvolvidos que solucionaram o problema alimentar do seu prprio povo fizeram isso a partir de um determinado tipo de planejamento central e descobriram formas de mobilizar o povo". Afirma ainda que a nica forma racional de liquidar as manipulaes de preos e de estoques alimentares pelos gigantes do comrcio seria manter estoques alimentares de cereais nas mos do governo. A FAO vem propondo estoques mundiais seguros de 230 milhes de toneladas, sendo 160 como estoques operacionais e outros 70 milhes como seguro contra safras desastrosas."

IndonsiaDesde o final dos anos 1960, a Indonsia persegue uma poltica persistente para atingir auto-suficincia na produo de arroz visando segurana alimentar. Como resultado, a disponibilidade calrica per capita passou de 2.000 kcal/pessoa/dia para 2.700 kcal/pessoa/dia no incio dos anos 1990. Durante o boom de crescimento econmico do pas de 6% ao ano durante as ltimas dcadas, o setor agrcola, especialmente de arroz, recebeu suporte significativo do Estado. Houve investimento em irrigao, infra-estrutura, pesquisa, extenso e educao. Tudo isso associado a polticas de estabilizao econmica. Isso gerou um crescimento significativo no status da segurana alimentar no pas. A poltica de suporte ao arroz envolve uma agncia de logstica nacional paraestatal, denominada BULOG, que estabelece preos e controla o comrcio internacional, garantindo a estabilidade dos preos domsticos a partir de valores mnimos para produtores e mximos para consumidores.Baseado em FAO (1996).

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3. AVALIAO DOS PROGRAMAS EXISTENTES 3.1 A P OLTICA A LIMENTAR NA D CADA DE 1990 O incio da dcada de 1990 foi marcado pelo desmonte dos principais programas federais na rea de alimentao e nutrio. Imediatamente aps o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992, o Movimento Pela tica na Poltica definiu-se pelo combate prioritrio a outro tipo de corrupo e lanou as primeiras sementes da Ao da Cidadania Contra a Fome e a Misria e Pela Vida. Tal deciso encontrou respaldo tcnico e poltico na proposta de Poltica Nacional de Segurana Alimentar, produzida em 1991 pelo Governo Paralelo11, que previa uma abordagem estrutural da questo da fome e da misria, com propostas de ao a curto, mdio e longo prazos. O grave quadro de insegurana alimentar demonstrado pelos Mapas da Fome12, elaborados pelo IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada documentando a existncia de 32 milhes de brasileiros vivendo em condies de indigncia em todos os recantos do pas mobilizou governo e sociedade em busca de solues para o problema. O Governo Federal, em parceria com a Ao da Cidadania Contra a Fome e a Misria e Pela Vida, criou, em maio de 1993, o CONSEA, integrado por oito ministros e 21 representantes da sociedade civil, em grande parte indicados pelo Movimento Pela tica na Poltica, para coordenar a elaborao e implantao do Plano Nacional de Combate Fome e Misria dentro dos princpios da solidariedade, parceria e descentralizao13. O CONSEA, tendo como pano de fundo o Plano de Combate Fome e Misria, definiu como prioridades: a gerao de emprego e renda; a democratizao da terra e o assentamento de produtores rurais; o combate desnutrio materno- infantil; o11 SILVA, Lula da, L. I. L; Gomes, J. Poltica Nacional de Segurana Alimentar. So Paulo, Governo Paralelo. 12 Ver PELIANO, A. M. (coord). "O Mapa da Fome: Subsdios Formulao de uma Poltica de Segurana Alimentar". Documento de Poltica n 14. IPEA, Braslia, 1993; PELIANO,A.M.(coord).O Mapa da Fome II:Informaes sobre a indigncia por municpios da Federao. Documento de Poltica n 15. IPEA, Braslia, 1993; PELIANO, A. M (coord). O Mapa da Fome III: Indicadores sobre a Indigncia no Brasil (classificao absoluta e relativa por municpios). Documento de Poltica n. 17. IPEA, Braslia, 1993. 13 Ver PELIANO, A (Coord.). Plano de Combate Fome e Misria. Princpios,Prioridades e Mapa das Aes de Governo. IPEA, Braslia, 1993.

fortalecimento, ampliao e descentralizao do Programa Nacional de Alimentao Escolar; a continuidade da utilizao de estoques pblicos para programas de alimentao social (Programa de Distribuio Emergencial de Alimentos PRODEA); e a reviso do PAT. A experincia do CONSEA, como mecanismo inovador de parceria e governabilidade, apresentou resultados extremamente positivos em seus dois anos de existncia. Dois grandes avanos esto ligados criao do CONSEA: 1. O combate fome e misria passou a ser visto como um problema de governo e uma questo estratgica, ficando sua coordenao diretamente vinculada ao gabinete do presidente da Repblica; 2. Implantou-se uma coordenao das aes governamentais de forma intersetorial, nos diferentes nveis de governo, com as aes da sociedade civil no sentido de reduzir duplicidades, superposies e de atingir os objetivos propostos. A atuao vigilante dos representantes da sociedade civil no CONSEA garantiu os recursos para os programas prioritrios, impedindo que sofressem cortes em decorrncia de medidas de conteno. Ao mesmo tempo, transformou-se em um espao privilegiado de debate entre o governo e a sociedade civil, colaborando para a mobilizao da opinio pblica em torno do tema e aprofundando a participao da sociedade civil na formulao e controle das polticas pblicas. Assim, o CONSEA conseguiu incluir de forma efetiva a segurana alimentar na agenda poltica brasileira. O CONSEA representou uma novidade em termos de mecanismos de governabilidade no pas: representantes do primeiro escalo do Governo Federal e da sociedade civil discutiam propostas que poderiam acelerar o processo de erradicao da pobreza e da misria. Foram gestadas e/ou viabilizadas propostas de polticas pblicas inovadoras, tais como: a descentralizao do Programa Nacional de Alimentao Escolar, o Programa Nacional de Gerao de Emprego e Renda, a busca de transparncia na gesto de recursos pblicos e a criao do PRODEA como mecanismo de aproveitamento de estoques pblicos de alimentos a ponto de serem perdidos. Mais inovadoras ainda foram as formas de gesto implementadas no processo, com a criao de mltiplos grupos de trabalho mistos (sociedade civil/ governo) que acabaram por consolidar uma nova prtica e cultura de gesto compartilhada de polticas pblicas.

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Um dos momentos mais importantes da parceria entre sociedade civil e governo no CONSEA ocorreu com a realizao da Primeira Conferncia Nacional de Segurana Alimentar, em Braslia, julho de 199414. Ela representou o marco principal da construo de uma proposta de segurana alimentar para o pas. As discusses realizadas desde o plano local, na preparao da conferncia e, depois, durante a prpria conferncia que contou com cerca de 2.000 delegados deixaram evidente o diagnstico de que a concentrao da renda e da terra constituam os determinantes principais da situao de fome e insegurana alimentar. Em documento posterior, que sistematizou os eixos e prioridades que afloraram desse intenso processo de discusso, so encontradas as preocupaes referentes ao acesso alimentao, necessidade de assegurar sade, nutrio e alimentao a grupos vulnerveis e de garantir qualidade aos alimentos e ao estmulo a prticas alimentares e de vida saudveis, conforme se v no box abaixo (CONSEA, 1994). Uma das grandes limitaes do CONSEA, no entanto, foi que, por definio governamental, as decises referentes poltica econmica continuaram a passar margem das discusses sobre o impacto das mesmas sobre a segurana alimentar, a fome e a misria da populao. Ou seja, a articulao limitava-se aos ministrios da rea social e, muitas vezes, o CONSEA reduziu-se a apenas mais um mecanismo de presso para garantir recursos para polticas e programas sociais. Assim, a deciso de14 Ver, a respeito, o documento: I Conferncia Nacional de Segurana Alimentar deConsea e Secretaria Executiva Nacional da Ao da Cidadania, Braslia, 1995.

transformar o combate fome e misria em prioridade no foi adotada pela rea econmica, que continuou a aceitar as prescries dos organismos financeiros internacionais, independentemente do impacto que pudessem ter sobre o agravamento da excluso social, da fome e da desnutrio. Nas reas de sade e nutrio, a nova forma de gesto de polticas pblicas, apesar de ter representado um enorme avano em relao a iniciativas anteriores, no conseguiu a articulao necessria. A coordenao do Programa Nacional de Alimentao (PRONAN), que inclua aes de vrios ministrios, nunca se efetivou devido s disputas entre os ministrios. Um dos fatores principais para o fracasso da articulao foi o fato de a coordenao estar localizada no Instituto de Alimentao e Nutrio (INAN), rgo do segundo escalo do Ministrio da Sade. Na transio para o governo FHC, a poltica de estabilizao da moeda, articulada ao ajuste da economia brasileira e liberalizao do comrcio internacional, foi definida como o eixo central da poltica governamental em 1995, tendo a consolidao do Plano Real como meta primeira . interessante ressaltar que, como uma de suas primeiras medidas, o novo governo extinguiu o CONSEA criando um outro conselho com estrutura semelhante, mas com carter e objetivos totalmente diferentes. Essa nova instncia, denominada Conselho da Comunidade Solidria, passou a ser apenas um organismo governamental de consulta, tendo sua presidncia exercida por pessoa de escolha do presidente da Repblica, no caso a primeira-dama, Ruth

As Diversas Possibilidades da Segurana Alimentar ComunitriaParalelamente aos programas de ajuda alimentar como o Food Stamp, outras formas de programas alimentares tm surgido. Recentemente, disseminou-se nos EUA o conceito de Segurana Alimentar Comunitria, surgido no final dos anos 1980 e incio dos 1990, a partir de um conjunto de ativistas, educadores, nutricionistas e pesquisadores das reas de agricultura e s