capÍtulo i introduÇÃo - psicopatologia fundamental · não apenas teórica, mas essencialmente...

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1 CAPÍTULO I INTRODUÇÃO A condição psíquica fragilizada e desestabilizada de algumas pessoas após enfrentarem a perda junto a um ser amado, seja a morte, a ruptura do relacionamento ou mesmo uma grande decepção, é tema que há algum tempo desperta meu interesse de estudo. Sempre considerei especialmente intrigante que as pessoas em questão, cujas vidas afiguravam-se organizadas antes da ocorrência da perda, pudessem se desorganizar e declinar quase irremediavelmente, muitas vezes em todas as áreas da existência. Enfrentando séria crise psíquica e em estado depressivo de difícil superação, algumas delas chegam para atendimento psicoterapêutico desgastadas por intenso sofrimento que, por vezes, já se estende há anos. Como psicanalista tenho me indagado sobre a natureza e as características do vínculo dessas pessoas com esse ser amado, do modo como este lhes é tão absolutamente necessário. Poderiam em algum momento voltar a ser as mesmas de antes? Conseguiriam um dia superar o colapso, a quebra que parecia tão irreparável? Qual seria a fissura em seu mundo interno que se ampliara a ponto de se tornar um abismo intransponível? O interesse de investigação psicanalítica a respeito do que poderiam ter perdido nesta dura passagem foi se fortalecendo a partir do atendimento clínico de vários pacientes que enfrentavam essa situação crítica. Em geral, após a morte ou a separação de um ser amado que era seu apoio no mundo externo. A sensibilidade clínica apontava que eles estariam revivendo uma perda profunda e abissal, relativa

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Page 1: CAPÍTULO I INTRODUÇÃO - Psicopatologia Fundamental · não apenas teórica, mas essencialmente atrelada à práxis. Ele procedeu à articulação do campo do psicopatológico com

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CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO

A condição psíquica fragilizada e desestabilizada de algumas pessoas após

enfrentarem a perda junto a um ser amado, seja a morte, a ruptura do relacionamento

ou mesmo uma grande decepção, é tema que há algum tempo desperta meu interesse

de estudo.

Sempre considerei especialmente intrigante que as pessoas em questão, cujas

vidas afiguravam-se organizadas antes da ocorrência da perda, pudessem se

desorganizar e declinar quase irremediavelmente, muitas vezes em todas as áreas da

existência. Enfrentando séria crise psíquica e em estado depressivo de difícil

superação, algumas delas chegam para atendimento psicoterapêutico desgastadas por

intenso sofrimento que, por vezes, já se estende há anos.

Como psicanalista tenho me indagado sobre a natureza e as características do

vínculo dessas pessoas com esse ser amado, do modo como este lhes é tão

absolutamente necessário. Poderiam em algum momento voltar a ser as mesmas de

antes? Conseguiriam um dia superar o colapso, a quebra que parecia tão irreparável?

Qual seria a fissura em seu mundo interno que se ampliara a ponto de se tornar um

abismo intransponível?

O interesse de investigação psicanalítica a respeito do que poderiam ter

perdido nesta dura passagem foi se fortalecendo a partir do atendimento clínico de

vários pacientes que enfrentavam essa situação crítica. Em geral, após a morte ou a

separação de um ser amado que era seu apoio no mundo externo. A sensibilidade

clínica apontava que eles estariam revivendo uma perda profunda e abissal, relativa

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ao mais essencial de seu mundo interno. Seu eu1 parecia desabar pela absoluta falta de

sustentação interna, o que os enfraquecia e impossibilitava após esta perda de

impacto, como se tivesse sido levada sua coluna de sustentação psíquica. Não viam

saída por suas próprias mãos e sentiam-se impotentes diante da própria condição. Esta

vivência representava um sofrimento a abalar profundamente sua razão de existir.

Restavam em uma sobrevivência sem vida, despojos do passado do que haviam sido.

Às voltas com este enigma nascido da prática clínica, percebi-me procurando

formular um problema que sintetizasse minha busca por um estudo mais profundo,

que constituísse um tema de investigação. Em minha dissertação de Mestrado em

Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

MARRACCINI (1999), já me ocupara da questão da crise psíquica vivida na meia-

idade feminina. A partir dessa pesquisa, fortaleceu-se o sentido do presente trabalho,

investigação em busca da metapsicologia2, para finalmente rumar em direção à escrita

do produto destes esforços.

Este estudo seria sobre o sofrimento e falência pessoal que se produzia ou

advinha de um estado depressivo-melancólico instalado em toda plenitude, depois da

perda de um ser amado ou após um profundo abalo neste vínculo. Nele, procurei

confluir o interesse por aqueles cuja existência não se sustenta por si, por aqueles para

quem a separação é impossível de ser processada, e ainda, por uma condição psíquica

em que o luto não consegue ser consumado.

A pesquisa clínica realizada norteou-se pela hipótese inicial de que, no

paciente que se desestrutura emocionalmente e fragiliza-se excessivamente com a

1 A opção neste trabalho foi de que o ―eu‖ designe o todo da pessoa. Sendo sempre grafado em

minúsculas, exceto quando referência pertinente a outros autores. 2 Na teoria psicanalítica, metapsicologia consiste na descrição dos processos mentais distinguida por

Freud como mais completa, ao levar em consideração os aspectos econômico, topográfico e dinâmico

dos referidos processos. (FREUD, 1920)

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decepção, a ruptura ou a morte de um ser amado, teria lugar não apenas uma

regressão. Porém, nestas circunstâncias, ao se desarticular o esquema defensivo

erigido, se revelaria a subjacente e precária estruturação psíquica do sujeito.

Desvelando-se por detrás desta perda objetal e do luto impossível, uma falha ou

fragilidade constitutiva que resultaria na falta de sustentação psíquica promotora de

seu colapso a partir da perda junto ao ser amado, em última instância, um

representante do objeto primário.

Na medida do possível, havia o interesse em identificar os fatores

favorecedores para que o sujeito não tivesse constituído uma estruturação psíquica

mais sólida, resultando em uma existência na alienação ao objeto. Além disso,

buscava investigar de que forma o estado depressivo tomava o cenário psíquico e a

natureza desta depressão específica. Assim, fazia sentido a investigação para além de

qualquer categoria ou quadro psicopatológico.

Uma vez que o ser humano porta em germe a potencialidade de todas as

desordens psíquicas, idéia cara a FÉDIDA (1994) ao calcar-se em Freud e descrever o

princípio essencial da Psicopatologia Fundamental. Como nesta direção confluem

ainda os esquemas conceituais kleiniano e winnicottiano, sinalizava-se um rumo que a

investigação, neste trabalho, poderia seguir.

Da maneira como havia vislumbrado meu objeto de pesquisa e a hipótese que

levantava, desenvolver este trabalho no seio do Laboratório de Psicopatologia

Fundamental dos Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo foi um contexto propício para levar a cabo a

tarefa a que me propus e que compunha meu desejo. O diretor deste Laboratório e

meu orientador, Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, ao acolher este objeto de estudo,

propiciou a opotunidade para que eu tivesse esta experiência.

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Iniciei este percurso ao lado de colegas que viviam demanda semelhante,

dispondo-se a apreender o pathos3 que se manifestava nos casos clínicos que atendiam

e na prática clínica que, em grande maioria, desenvolviam. Outros colegas de áreas

distintas também haviam sido capturados por desejo semelhante, tendo em vista um

diálogo transdisciplinar no âmbito da Psicopatologia Fundamental, que fertilizasse e

possibilitasse desenvolver seu projeto de pesquisa.

Paralelamente às disciplinas cursadas e os acréscimos que estas trouxeram, a

riqueza destes encontros em grupo contribuiu sobremaneira para minha pesquisa e

investigação científica, do mesmo modo auxiliou na busca do aprimoramento da

escrita a fim de comunicar a experiência vivida na clínica.

O desvelar da metapsicologia contida em um caso clínico, absolutamente

singular em sua expressão e subjetividade compreendida, foi o balizador fundamental

para a metodologia empregada na construção de caso desta pesquisa clínica

psicanalítica. A produção de uma tese atendia ao desejo de pôr em palavras o

testemunho desse percurso, mais uma etapa da minha trajetória profissional, como um

modo de compartilhar o que o solitário trabalho na clínica psicanalítica pode

propiciar.

A escrita parecia atender à necessidade de tentar me ―curar pela palavra‖ desta

espécie de pathos peculiar ao psicanalista, que o faz adentrar cada vez mais no

padecer do sofrimento humano. E, por intermédio das ressonâncias transferenciais e

do trabalho elaborativo próprio, abrir caminho para o desempenho de sua função

analítica. Como sensivelmente apreendeu FÉDIDA (1988), o psicanalista, ao cuidar

3 Pathos, aqui grafado em itálico, respeitando a opção de Fédida ao introduzir esta noção, no sentido em

que neste trabalho foi utilizado. Nos demais termos ou expressões que possam ter a mesma condição,

ou que digam respeito a transcrições, citações, manter-se-á a grafia e a opção de estilo – maiúsculas,

minúsculas, itálicos ou negritos – dos autores em questão, em relação aos termos-chave descritos.

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do Eros doente, lança mão de si mesmo e de seu inconsciente como o instrumental de

trabalho mais precioso com que pode contar neste ofício.

Psicopatologia Fundamental: ao encontro do pathos

De que ordem seria o sofrimento humano que aflora naquele paciente que

chega à clínica padecendo enormemente após a morte, a ruptura ou uma grande

decepção com o ser amado?

Foi no âmbito da Psicopatologia Fundamental que vislumbrei um caminho

para tentar apreender o pathos humano, da forma como ali podia estar se

manifestando, ciente de que esta apreensão seria impossível de ser esgotada. Esta

perspectiva constituiu a abertura de uma dimensão que ampliava o enfoque clínico em

grande angular, porém sem descuidar do foco, devendo este ser cada vez mais preciso.

Em busca de uma aproximação singular e das palavras justas, para exprimir a

intimidade desta experiência única vivida a dois, paciente e psicoterapeuta, que é a

clínica psicanalítica.

O pathos coloca em ação algo da ordem do excesso e da desmesura, que faz

com que o eu não consiga se assenhorear deste acontecimento, a não ser como

paciente, passivo diante do sofrimento ou da paixão que dele toma conta, ou como

ator apenas (BERLINCK, 2000). Este é o sujeito que nestes momentos emerge,

enquanto sujeito do inconsciente que impõe ao indivíduo algo que nele tem origem,

mas, ao mesmo tempo, é estrangeiro em seu interior. Apenas a isto reagindo, sentindo

como se algo o acometesse ―de longe‖ e ―de fora‖, esta reação não se circunscreve à

mente, engloba o corpo que também padece, em totalidade de palco e cenário para o

desenrolar deste drama subjetivo.

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O pathos é o ―estrangeiro‖ que necessita ser compreendido, ser posto em

palavras. A idéia de FÉDIDA (1988) de que o médico cuidaria do Eros doente

exercendo esse cuidado por meio da terapêutica, traz consigo a possibilidade de

ensinamento interno. Isto ocorre apenas na presença de um terceiro, o médico, que ali

está para ajudar o paciente a transformar o vivido em experiência. Além disso, o

médico acaba por se dispor na clínica a acolher este sofrimento singular do paciente,

sendo também afetado por esta experiência. O pathos é sempre objeto de

transferência, e necessita ter na figura do médico um interlocutor que seja capaz de

transformar o que é vivido e narrado em experiência, criando a possibilidade de pensar

o que antes ainda não havia sido (BERLINCK, 2000).

A psicanálise resultou da dedicação de Freud em construir uma nova

abordagem clínica para o sofrimento humano, baseada na escuta sob transferência do

sujeito afetado por suas próprias paixões. Desse modo, impôs inovadora perspectiva e

definição do campo do psicopatológico, compreendendo a subjetividade e enfocando

as perturbações psíquicas como dependentes da função simbólica inerente e fundadora

do humano (PEREIRA, 2003-2004).

A experiência humana, enquanto marcada pela incompletude, pelo conflito e

pela paixão é, em si mesma, psicopatológica, e a descrição de tal condição

apaixonada, com todas suas vicissitudes, é irredutível aos discursos

naturalizantes fundados nas ciências biológicas, o que exige uma teorização

propriamente metapsicológica para dar conta dessa dimensão passional e

pática do existir psíquico. (PEREIRA, 2003-2004, p. 46)

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A psicanálise modificou profundamente os parâmetros do pensamento

psicopatológico, não opondo o normal ao patológico, mas interessando-se pela

continuidade dos processos psíquicos e pelos acontecimentos críticos desses

processos. A psicanálise assenta-se no parâmetro de que todo ser humano compreende

em si o potencial para todas as desordens psíquicas, enfatizou FÉDIDA (1994).

Por sua vez, a investigação de Fédida teve início no contexto da psicanálise,

não apenas teórica, mas essencialmente atrelada à práxis. Ele procedeu à articulação

do campo do psicopatológico com a experiência psicanalítica e sua hipótese

metapsicológica do Inconsciente. Como resultante de suas reflexões sobre essa

questão, surgiu a ―Psicopatologia Fundamental‖, rebatendo a generalidade da

―Psicopatologia Geral‖ de Karl Jaspers e na contracorrente dos avanços da psiquiatria

norte-americana, característica da segunda metade do século XX. Naquele crucial

momento histórico, com a implantação mundial dos sistemas operacionais de

classificação das doenças mentais, tornava-se flagrante o desprezo à subjetividade e às

suas nuances, tal como a negligência às manifestações psicopatológicas individuais

observadas na prática, e, além de tudo, a desconsideração das vicissitudes da própria

humanidade do clínico que se empenhava no tratamento.

Apesar de ter tido sua origem no campo psicanalítico, a Psicopatologia

Fundamental não deve ser confundida com uma psicopatologia psicanalítica

(PEREIRA, 2003-2004). No entanto, a perspectiva psicanalítica, como uma

construção que se produz mediante a elaboração metapsicológica do que resulta da

escuta em transferência, consistiu no contexto propício para que se desenvolvesse o

enfoque do sintoma e do sofrimento como uma via para o reencontro do sujeito

consigo mesmo e com seu próprio desejo.

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No entender de Fédida, o próprio processo psíquico deve ser entendido como

crise, distanciando-se e superando a noção normalizante que entende o sintoma como

algo resultante de um acidente crítico da existência humana. Além do mais, PEREIRA

(2003-2004) reiterou em sua exposição sobre as idéias de Fédida que a teoria deve ser

continuamente modificada e transformada de acordo com o real da clínica e com o

fenômeno psicopatológico, o que provoca avanços e novas elaborações teóricas.

A forte disposição para a escuta clínica e para a liberdade de pensamento,

talvez tenha sido a manifestação mais marcante de Fédida e sua maneira de estar no

mundo, com profundo respeito pelas palavras do outro, e a extrair delas um recurso

para sua própria atividade de pensamento. Ele era um espírito inquieto, acreditando

não haver discurso que pudesse esgotar o pathos psíquico, relembrou BERLINCK

(2002).

O analista porta-marcas

O pathos provoca sofrimento e, no entanto, faz parte da natureza humana e

designa o que é vivido, que pode se tornar experiência. Em si, o pathos nada ensina e

pode conduzir à morte, se não for ouvido por aquele que está fora, que em tal posição

pode escutar sua expressão única e singular. É na clínica que isto se torna possível,

reiterou BERLINCK (2000), junto àquele que está na posição de psicoterapeuta,.

O tempo do silêncio para o psicanalista é aquele em que se forma uma

tentativa de construção do que ocorreu, podendo surgir a partir disto uma questão,

relativa à angústia da relação com o outro. Era assim que FÉDIDA (1988) concebia o

trabalho do psicanalista na transferência, e esperava manter até o fim da sua vida esta

angústia em relação ao pensamento sobre um novo paciente que chega, pois ele é o

desconhecido total.

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Retomando as palavras de Freud ao dizer que era o amor o responsável por

tornar o paciente capaz de entender o que o analista lhe diz, havendo a ressonância

interna de suas palavras, FÉDIDA (1988) aponta que não seria amor de transferência,

mas amor na transferência. A psicanálise só existe porque, enquanto psicanalistas, nos

enamoramos do desconhecido, e sua descoberta nos desafia em cada tratamento e a

cada momento, indo em busca desse desconhecido do tratamento, do desconhecido em

nós mesmos.

O corpo do psicoterapeuta é o porta-marcas, no qual se manifestam afetos do

não saber transferido pelo paciente. O ―mal-estar‖ sentido mediante o tropeço

patológico do paciente faz com que o psicoterapeuta procure em si a palavra

representativa do vivido na clínica, e, ao encontrá-la, caminhe em direção à autoria,

elaborando uma posição subjetiva em que o trabalho no próprio texto proporcione um

sossego interior, por atingir o que pretendia dizer. O Laboratório de Psicopatologia

Fundamental é um ambiente que acolhe este mal-estar do psicoterapeuta e o

acompanha neste percurso de busca de sua própria palavra, de seu lugar no logos

(BERLINCK, 2003).

O relato da experiência

Na direção de desvelar a metapsicologia em germe que se encontra em um

caso clínico, iniciei um percurso que buscava transformar o vivido na clínica

psicanalítica em uma experiência a ser compartilhada pela escrita deste trabalho. O

caso clínico investigado consistiu em um atendimento realizado anos antes em meu

consultório particular, este trabalho atém-se fundamentalmente ao período inicial do

tratamento.

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Trata-se de uma paciente em condição clínica que suscitava intensos cuidados,

em função do acentuado estado depressivo em que se encontrava desde a morte de sua

mãe, vários anos antes. Seu quadro geral havia se agravado pelo progressivo e

doloroso conflito com o único filho, jovem que forçava independência e a ameaçava

com o afastamento e a ruptura de relacionamento. Nos bastidores do sofrimento em

torno destas perdas, figurava sua separação conjugal ocorrida anos antes da morte da

mãe, situação da qual guardava ainda enorme ressentimento.

A desarticulação da vida profissional e as dificuldades financeiras haviam

progressivamente tomado a cena depois da instalação do estado depressivo,

terminando por configurar uma séria condição de inadimplência. Como fator adicional

a ser considerado, a idade madura em que se encontrava a confrontava com o início do

envelhecimento; isso a fazia padecer do descrédito de que pudesse contar com forças e

o tempo necessário para as reformulações em sua vida, que, em alguma medida,

percebia importantes e urgentes.

Considerei este caso clínico, multifacetado em relação às perdas sofridas, uma

profícua possibilidade de estudo do tema a que me propunha. Tratava-se de uma

expressiva manifestação do pathos afetando o sujeito, as angústias vividas

promovendo idéias suicidas que podiam efetivamente ser postas em prática. A

paciente encontrava-se em franco processo autodestrutivo, seu corpo indicando

descuidos, com doenças instaladas e condição em que algum distúrbio ainda mais

aniquilante poderia surgir. Configurava um ―eu em ruína‖ que necessitava muito de

ajuda.

A partir deste Capítulo I, Introdução, houve a opção de seguir o relato desta

pesquisa e investigação psicanalítica no Capítulo II, Vivido na clínica, apresentando o

que se passou do início deste atendimento clínico até o momento em que despontou no

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tratamento a possibilidade de se desencadear o processo de separação, efetivando-se o

luto até então completamente paralisado.

Sempre partindo da clínica e tentando não perder de vista a complexidade do

caso escolhido para esta pesquisa, algumas opções foram imprescindíveis para

direcionar o trabalho investigativo junto a autores e esquemas conceituais na

psicanálise. Inicialmente, pretendia-se realizar uma retomada dos textos freudianos

que confluíssem na direção do tema a que me propunha estudar, isto tendo me

proporcionado enorme satisfação e a renovação da imensa gratidão a Freud. No

pioneirismo de seu estudo, ele nos faz render-lhe homenagens qual seja o autor ou

linha de pensamento que se enfoque no vasto universo teórico psicanalítico,

constituído em pouco mais de um século de existência.

No Capítulo III, Sobre o narcisismo, o estudo da tessitura narcísica era

imperativo. E não seria possível levá-lo adiante sem o enfoque de aspectos essenciais,

desenvolvidos por Freud. Não foi possível constar um estudo histórico sistemático de

suas descobertas em relação ao narcisismo, dado o amplo espectro de aspectos do caso

clínico que mereciam ser abordados, mesmo que alguns deles apenas brevemente.

Nesse capítulo, foi introduzida uma seção que tentou aproximar a teoria sobre o

narcisismo de Freud às concepções de Klein e Winnicott, autores que privilegiam as

relações objetais em esquemas conceituais nos quais vinha anteriormente

aprofundando meus estudos. Em alguns aspectos pontuais, foram destacados autores

como Rosenfeld e Green, por concepções como o ―narcisismo destrutivo‖ e o

―narcisismo de morte‖, respectivamente, noções importantes para a metapsicologia do

caso que vinha sendo construído.

No Capítulo IV, O processo identificatório, foram examinados os elementos e

mecanismos que compõem este processo, iniciando-se desde o nascimento do bebê e

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sua relação com o objeto primário. Partindo das idéias de Freud a respeito da

identificação primária com as figuras parentais primordiais da infância, foram

destacadas algumas distinções essenciais entre os mecanismos que compõem o

processo identificatório, sendo este uma construção de toda a vida. A abordagem

realizada por Abraham e Torok em torno dos mecanismos da incorporação e da

introjeção ofereceu uma perspectiva de valor teórico muito esclarecedora para a

clínica psicanalítica.

Além disso, o conceito de identificação projetiva introduzido por Klein,

possuindo a mais alta significância para a clínica com pacientes de funcionamento

mental mais primitivo, também encontrou espaço para ser enfocado. E, por último,

porém não em ordem de importância, foi considerado o papel de espelho

desempenhado pela mãe no início do desenvolvimento do bebê, noção das mais

preciosas no sensível arcabouço teórico de Winnicott.

No Capítulo V, Sobre a perda e a impossibilidade do luto, considerou-se

imprescindível examinar a interface entre luto, melancolia e mania postulada tanto por

Freud como por Karl Abraham. Também foi considerado importante o enfoque na

noção de posição depressiva, descrita por Klein, em suas relações com o luto, tanto

quanto a articulação dos estados maníaco-depressivos vividos pelo bebê com a

psicopatologia no adulto. As dores e os conflitos enfrentados na relação com o objeto

original, associados por Abraham e Torok à perda original sofrida pelo psiquismo no

confronto com a realidade, mostraram-se relevantes na abordagem do problema em

estudo. No enfoque do processo que subjaz ao processamento da realidade, desde os

primórdios da vida mental, foram consideradas as contribuições de Winnicott entre

outras.

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A abordagem da problemática edípica, desde a situação edípica primitiva até o

complexo de Édipo clássico e o estabelecimento da triangularidade efetiva no

psiquismo infantil, além de breve consideração sobre o Édipo feminino, foi essencial

para entender as perdas enfrentadas pela paciente e os conflitos vividos. No mesmo

sentido, considerar a origem do simbolismo e da sublimação. Ao final, a abordagem

de aspectos sobre o período de vida que costuma ser descrito como meia-idade

destacou ângulos das experiências vividas pela paciente na maturidade.

Ao final, no Capítulo VI, Conclusões, figuram os resultados desta pesquisa

clínica em psicanálise, conduzida no âmbito da Psicopatologia Fundamental,

enfatizando não apenas as perdas objetais, mas também as perdas narcísicas que

povoavam o acometimento melancólico desta paciente. Sua organização narcísica não

possibilitara tolerar a perda de um ser amado, considerado imprescindível para a

própria sustentação psíquica. A perda do objeto externo ameaçava com a perda do

objeto interno, sem o qual o psiquismo experimentava a emergência do pathos como

amplamente desestruturante para a subjetividade.

Antes de finalizar este capítulo introdutório, tendo em vista este trabalho

integrar referências a esquemas conceituais diversos na psicanálise, assim como trata

de noções que, por vezes, comportam distintos significados, a seguir temos algumas

considerações que visam esclarecer a utilização de determinados termos e o contexto

em que foram empregados. Sem excluir demais especificações que, quando

necessárias, serão realizadas a seu tempo, pelo próprio texto ou em notas de rodapé.

Primeiro, cabe esclarecer que o ―eu em ruína‖ refere-se a uma denominação

que cunhei tendo em vista o pathos que acomete e faz o eu sucumbir; corpo e mente

padecem enormemente por esta afetação que pode emergir e atingir o eu. A concepção

de uma unidade mente–corpo é a perspectiva na qual se pautou este trabalho, para a

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qual conflui não apenas a visão freudiana, mas os esquemas conceituais de Klein

acerca do desenvolvimento mental primitivo e de Winnicott a respeito da unidade

indistinguível entre psique e soma.

O que se considera como fazendo parte do eu e o que se considera como sendo

externo ao eu, no sentido do outro–estrangeiro, apresentam enorme variação na

atualidade, e são concepções que convivem com grande amplitude de sentidos, como

apontou BERLINCK (2000). Entre suas características, o eu é uma construção cultural

e apresenta uma história, porém, distingue-se da noção de sujeito freudiano, o eu

fracassando diante da manifestação do sujeito. Esta ótica remete a subjetividade ao

âmbito da psicopatologia fundamental, perspectiva que norteou a escrita deste

trabalho.

Na introdução ao artigo de Freud ―O ego e o id‖ (1923), STRACHEY (1969)

advertiu que o termo ―das Ich‖ seria empregado por Freud em dois sentidos principais.

Um deles sendo aquele em que o eu de alguém como um todo é distinguido de outras

pessoas, e o outro sentido, denotando uma parte específica da mente caracterizada por

atributos e funções especiais, constituindo o ego propriamente dito. Paralelamente,

ressaltou que nos artigos freudianos vinculados à noção de narcisismo, o que é

referido como ego pareceria corresponder efetivamente ao eu, nem sempre sendo fácil

traçar uma linha divisória entre o emprego destes dois sentidos.

Por seu lado, Klein utiliza de modo intercambiável os termos self, ego e sujeito

ao longo de seus escritos. Desde o início de suas formulações sobre o

desenvolvimento primitivo da mente, o termo ego e o termo sujeito são por essa

autora utilizados como complemento do termo objeto. Conforme notou

HINSHELWOOD (1992), apenas ao final de sua obra Klein definiu mais claramente o

termo self, indicando abarcar a totalidade da personalidade, e assim incluindo não

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apenas o ego mas também os instintos reunidos no id, o ego sendo a parte organizada

do self.

Ao longo da obra de Winnicott nem sempre há uma distinção clara entre o self

e o ego, embora considerando-as noções que não se confundem. Em sua teoria, o self

refere-se fundamentalmente a ― [...] uma descrição psicológica de como o indivíduo se

sente subjetivamente, sendo o ―sentir-se real‖ o que coloca no centro do sentimento de

self‖ (ABRAM, 2000, p. 220). Em termos de desenvolvimento, o self é potencial do

recém-nascido, que poderá desdobrar-se ao contar com um ambiente suficientemente

bom para seu desenvolvimento, estabelecendo-se a distinção entre eu e não-eu.

Enquanto para Winnicott o self é composto por todos os diferentes aspectos da

personalidade que constituem o eu, uma forma distinta do não-eu, o ego constitui um

aspecto do self que tem função bastante particular: organizar e integrar a experiência.

É possível conferir que a mesma condição de múltiplos usos e sentidos se dá

em relação ao conceito de objeto, seja dentro de um mesmo esquema conceitual, mas

principalmente quando referidos diferentes esquemas conceituais na psicanálise.

Freud não desenvolveu uma teoria unificada sobre a noção de objeto, como em

relação a muitos outros conceitos. Foi possível a MEREA (1994) destacar algumas

destas especificações: objeto da percepção, objeto imaginário ou da fantasia, objeto da

pulsão, objeto da identificação, objeto interno ou estrutura endopsíquica. Além disso,

indicou estarem presentes simultaneamente dois níveis em toda relação com o objeto:

num deles o sujeito vinculando-se com o objeto por um propósito particular e, no

outro, esta relação implicando uma função estruturante. Importante ter-se isto em

mente, para ser depreendido o sentido em que a cada vez os termos e conceitos

possam ser empregados, não sendo possível neste trabalho estender-se mais

longamente sobre os detalhes destas especificações.

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Quanto ao conceito de objeto no pensamento kleiniano, BARANGER (1994)

assinalou que ele se origina na linha de elaboração que Freud apresentou em ―Luto e

melancolia‖ (1917[1915]), sendo diferente do conceito objeto da pulsão como referido

no texto ―Três ensaios sobre a teoria da sexualidade‖ (1905). Nos textos de Klein há

mudança de ênfase, deslocando-a da pulsão para o objeto, seu aprofundamento teórico

concentrando-se na estruturação arcaica do psiquismo do bebê a partir da relação com

o objeto. Em sua teoria figuram várias noções, as mais destacadas: objeto interno e

objeto externo, objeto parcial e objeto total, objeto cindido e objeto integrado, objeto

bom e objeto mau, objeto idealizado e objeto persecutório, objeto indene e objeto

danificado. Ao longo deste trabalho, será realizada a elucidação necessária, sempre

que for considerada imprescindível.

No pensamento de WINNICOTT (1975), a noção de objeto transicional

pertencente ao espaço transicional entre sujeito e objeto, é conceito básico em sua

teorização da interação primitiva entre o bebê e o ambiente que o cerca. O objeto

transicional constitui a primeira possessão ―não-eu‖ do bebê, provinda do exterior,

porém sob o ponto de vista do bebê, não faz parte deste e nem do seu próprio interior.

O objeto transicional é encarado onipotentemente como criação do próprio bebê,

precedendo o estabelecimento do teste da realidade.

No decorrer deste trabalho, foi respeitada a forma de utilização dos termos de

cada autor, no contexto específico em que foi feita a referência. Porém, quando se

tratava de exprimir a compreensão obtida de suas idéias, procurou-se seguir um

emprego mais uniforme dos termos. Assim sendo, foi feita a opção de designar por

―eu‖ o todo da pessoa (self), coincidindo com uma das concepções de Freud e com a

noção de self de Winnicott. Apesar de na obra kleiniana o termo não ter sido

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empregado, este é um sentido que guarda alguma expressão para seu esquema

conceitual.

Será entendido por ―ego‖ neste trabalho, a parte específica da estrutura mental

que corresponde à segunda tópica freudiana, com função estruturante e organizadora

no psiquismo, sendo responsável pelo contato com a realidade além de intermediar

conflitos entre as demais instâncias psíquicas. Este sendo também o sentido que

adquire maior significância na obra kleiniana.

Finalmente, a noção de sujeito adventício indicada por BERLINCK (2000), na

qual sobressai sua característica de estranho ou intruso, é uma emergência que se dá

ali onde o eu falha. Baseia-se na concepção do sujeito freudiano e aproxima-se da

visão adotada neste trabalho. No entanto, nem sempre o termo ―sujeito‖ foi utilizado

nesse sentido, pois no enfoque da teoria das relações objetais proposta por Klein, o

termo sujeito, em geral, é utilizado em contraposição ao termo ―objeto‖, sentido que

estará com alguma freqüência adquirindo ao longo deste trabalho.

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Capítulo II

VIVIDO NA CLÍNICA

A psicanálise só existe porque, enquanto psicanalistas, “[...] somos

enamorados do desconhecido e a descoberta dele em cada

tratamento nos desafia a cada momento. Somos enamorados desse

desconhecido do tratamento, do desconhecido em nós mesmos[...]”

(Fédida, 1988, p. 55)

A. Prólogo de uma tentativa de resgate

Ao chegar para a primeira entrevista, a figura de Carmen4 era exótica e

exuberante, lembrando os filmes de Federico Fellini5. Os cabelos muito longos e um

tanto despenteados encimavam um corpo obeso, cujas vestes sobrepostas indicavam

pertencer a tempos melhores e de maior fausto. Divisavam-se por detrás da senhora

madura traços da beleza da juventude maltratada pelo tempo e afetada pelo vivido.

Seu estado de sofrimento denunciava-se a quem pudesse divisar para além da sua

figura causadora de impacto.

Adentrou o consultório a passos largos, tentando se assenhorear da situação,

quer pela figura excêntrica, quer pela determinação que transparecia. Iniciou

entregando o prospecto de uma exposição de seus trabalhos em artes plásticas. Ao

mesmo tempo, dizia que, embora pudesse ser inacreditável, aquela na foto era ela,

alguns anos antes, magra, bonita e profissional de sucesso. Hoje, a ruína que se pode

conferir.

4 Os nomes referidos neste trabalho assim como dados identificatórios foram suprimidos ou alterados,

com a finalidade de preservação do sigilo da paciente. 5 Federico Fellini: cineasta italiano nascido em 1920 e falecido em 1993. Sua inspiração contou com o

sonho, a fantasia e o grotesco como matéria-prima de sua carreira. ―Dizer que tal filme ou tal

personagem é ‗felliniano‘ significa identificá-lo com a estética ao mesmo tempo barroca e popular de

seus trabalhos das décadas de 60 e 70, em que o exagero e a predileção pelo inusitado conduzem, na

verdade, a uma reflexão séria – e muitas vezes cruel – sobre o cotidiano de seres humanos frágeis e

anônimos‖ (Gerbase, 1998, p. 1)

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Carmen parecia estar convocando, ou mesmo desafiando, a psicanalista a lhe

restituir o que perdera. E isto parecia ser não apenas o que ela mais abertamente

explicitava, mas o que poderia estar camuflado por detrás daquela aparência

penetrante e causadora de impacto. Saberia ela o que de fato perdera? Estaria

cobrando de volta algo que sentia lhe ter sido tomado?

Na seqüência, destacou que a morte da mãe dera início à sua depressão que

perdurava havia muitos anos, conduzindo-a ao estado deplorável em que se

encontrava. Sua imagem perdida de outrora e a figura materna desaparecida pareciam

se sobrepor e confundir. Ecoava a pergunta: até onde haveria a fantasia de ter de volta

a mãe que se fora, e até onde iria o desejo de que sua imagem pudesse retomar a vida

que sentia não mais habitá-la? Sujeito e objeto confundidos, justapostos, sem

fronteiras, em um destino de morto-vivo: Carmen meio morta em vida, e sua mãe sem

poder ser enterrada e recuperada introjetivamente, encontrando um lugar de paz em

seu interior.

Com o desaparecimento da figura materna, Carmen sentia ter perdido aquela

sem a qual sentia-se incapaz de se sustentar emocionalmente; além disto, a

identificação com a mãe, que fora depressiva em algum período de sua vida, forçava

Carmen seguir pela mesma trilha. Assim, ela se refugiara cada vez mais no vínculo

com o filho Augusto, que, para sua decepção e desespero, constituía um

relacionamento que havia alguns anos vinha soçobrando. Atingira o ponto da

convivência insuportável sob o mesmo teto.

O acentuado conflito que se instalara na relação com o filho único era o foco

principal de sua angústia nos últimos tempos. Após tanto investimento e renúncia, a

decepção com o jovem Augusto, era a dor mais intolerável que Carmen jamais

imaginara. Era o motivo que a fazia recorrer novamente ao tratamento

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psicoterapêutico, tentando superar os ressentimentos com antigos profissionais.

Sentia-se à beira do abismo, somando esta possível separação e ruptura com o filho à

perda da mãe, ambos sustentáculo vital na existência de Carmen. Apenas por ter

chegado a este limite, Carmen indicava ter-se aberto para a possibilidade de tentar

obter ajuda pelo tratamento, dividida que estava entre necessitada, desconfiada e

ressentida.

O prolongado sofrimento, a crescente solidão e o profundo desamparo faziam

Carmen fomentar idéias de suicídio, duvidando das chances de se reerguer: Será que

ainda tenho tempo para melhorar tudo isso?

Encontrava-se inativa profissionalmente havia alguns anos, e falida

financeiramente mais recentemente. Principalmente após a reforma numa casa que

comprara em ruínas, transformando-a no palacete excêntrico de seus sonhos.

Imaginara lá viver em companhia do filho e retomar seu ateliê de trabalho. A falta de

recursos para sustentar o sonho de lá habitar, e o relacionamento abalado entre eles,

fazia tudo perder sentido. A restauração da casa não implicara na real construção de

novas possibilidades de vida, restavam o sonho desabitado e o fracasso encarnado. Era

um ―eu em ruína‖ que pedia por resgate.

Rastros de uma história

Desde o primeiro encontro analítico, ao desfiar trechos de sua história e

experiências, Carmen suscitava variadas indagações. Eram vivências intensas que se

sucediam, não apresentando um fio norteador nítido, mesclando-se o que pertencia ao

passado ao que parecia ser relato de sua atualidade. Com isto, provocava certo

impacto, semelhante à sua figura, despertando na psicanalista a necessidade de buscar

em si uma bússola para orientação, naquele mar de emoções e experiências

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turbulentas. Em vários momentos, a dúvida sobre a realidade dos fatos mesclava-se

com a surpresa sobre o inusitado vivido. Eram relatos envolventes, instigantes, mas

também provocativos. Havia a tentativa de captura do olhar e da obtenção de uma

escuta, de tal modo que Carmen tornava-se demandante imperativa do eu da

psicanalista, que custosamente procurava manter-se não fusionada. O risco de tombar

capturada, presa do pathos que insidiosamente ameaçava enovelar paciente e

psicanalista.

Entre tantos, um fato destacado em seu relato foi ter vivido, havia mais de

vinte anos, a separação litigiosa do marido, que se estendera judicialmente por

dolorosos anos, com direito a disputas em torno do patrimônio e da guarda do único

filho. Este parecia ter sido o preço pago por Carmen para finalizar uma relação

conjugal problemática e conturbada, que gerou tanta decepção e rancor, o que, no seu

entender, tornou inviável o estabelecimento de nova ligação amorosa confiável,

estável e duradoura. Apaixonara-se algumas vezes depois, mas algo sempre acabava

interceptando sua felicidade, transformando-se, a cada vez, em realização

inalcançável. Esta era marca que se repetia na vida de Carmen, o extravio do que

conquistava e o desvio do que conscientemente desejava. Muitas vezes, após ter

lutado arduamente para conseguir algo, sem saber como, nem por quê, percebia-se em

meio à perda. Neste extravio sem sentido, a culpa era freqüentemente atribuída ao

outro. Sentia-se vítima de ciladas, presa fácil por sua boa-fé, resultando em ódio e em

ressentimentos intermináveis, por mais que o tempo transcorresse. Em algumas

ocasiões, bastante raras no início de seu atendimento, entrevia alguma questão que a

fazia perguntar a si mesma sobre este infeliz destino.

No mesmo período da morte da mãe, quando indicava ter-se iniciado seu atual

fracasso pessoal, Carmen vivera outras situações de perda e de decepção. Por ter tido

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dificuldade na venda de seus trabalhos de arte durante um período de economia

conturbada no Brasil, ela empreendeu uma viagem ao exterior para tentar

comercializá-las, mas não obteve o retorno desejado. Em seu retorno, teve de fechar

seu ateliê, passando a sobreviver do aluguel de um imóvel.

Nesse mesmo período, uma situação surpreendente foi o roubo por parte de

uma gerente de banco, a quem Carmen confiara suas economias para investimento,

sem cuidar do comprovante das operações. Durante uma mudança de residência, lhe

teriam sido roubadas várias peças de sua criação artística, as quais não conseguira

recuperar. Coroando este suceder de reveses, decepcionara-se com um homem por

quem se apaixonara, descobrindo seu vício pelo álcool e muitas de suas mentiras. Foi

neste clima de decepção, mágoa e desesperança, que Carmen sofreu enorme abalo

com o desaparecimento repentino da mãe. Em estado depressivo, cessara sua

capacidade criativa e seu trabalho produtivo, a partir daí iniciando-se o afastamento

ressentido em relação ao mundo externo. Cada vez mais sua vida passou a andar para

trás.

Carmen dizia ser muito difícil vislumbrar um futuro para si, desacreditando

que o estado em que se encontrava pudesse ser revertido. Esta ―tarefa impossível‖, ela

delegava à psicanalista, aludindo o poder que seria necessário para reerguê-la. Neste

verdadeiro desafio, parecia desejar conferir se seria possível atrair para si investimento

capaz de lhe devolver à vida, morta-viva que se sentia após a morte da mãe e tantas

decepções acumuladas. Não bastasse isto, que algo pudesse lhe restituir o filho

idealizado que fora perdido, áspero onde era amável, bruto onde era afetuoso,

desrespeitoso onde outrora fora só cuidados e atenção para com ela. A decepção

mesclava-se à mágoa, a raiva fazendo-a se perguntar sobre qual erro teria cometido.

Isto a levava desejar a morte, em boa parte para punir ao filho por tamanha ingratidão

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e injustiça. Tal ―projeto‖ já posto em curso resultava em sua condição física precária,

havia muitos anos descuidando do corpo, sacrificado nos impasses vividos interna e

externamente.

Além de obesa, apresentava artrose, hipertensão arterial, início de enfisema

pulmonar e de diabetes. Havia muitos anos não fazia acompanhamento ginecológico,

e os dentes pediam cuidados urgentes. A necessidade de avaliação médica incluiu

atendimento psiquiátrico clínico, sendo medicada com antidepressivo, depois

acrescido ansiolítico. Sua insônia fazia com que dormisse durante o dia,

permanecendo indisposta a maior parte do tempo de vigília. Tentava parar de fumar os

dois a três maços de cigarro diários, o que a fazia comer e engordar ainda mais,

aumentando seu desgosto consigo própria.

Em uma extensa galeria de situações nas quais se sentira vítima de perdas,

roubos, explorações e injustiças as mais variadas, destacava-se a figura do ex-marido.

Porém, figuravam também advogados, empregadas domésticas e prestadores de

serviços os mais variados. Sugeria viver condição paranóide, rodeada de inimigos por

todos os lados. Sem confiar em ninguém, suas relações com o mundo externo haviam

se distanciado, recolhendo-se no refúgio doméstico, abandonada na cama, expectadora

da vida que adentrava pela televisão. Trancada em seu quarto, coabitava com o filho,

que também se trancava para evitar o contato. Cada um deles encerrado em mágoas e

ressentimentos, um túmulo em vida.

Apesar de toda a aparência de alguém vivida, sensível e perspicaz, Carmen não

indicava suspeitar e antecipar os constantes enganos em que terminava como vítima

prejudicada. Nocauteava seus recursos discriminatórios e autoprotetores, perseguindo

soluções mágicas e buscando alguém com função de mentor ou protetor. Ela

continuava a sofrer perdas, como o roubo de suas jóias remanescentes por uma

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empregada que descobrira o ingênuo esconderijo. Ainda lhe restava o medo de

denunciar o roubo do qual fora alvo, temendo danos ainda piores. Ao final,

permanecia a descrença na seriedade das pessoas e na isenção do auxílio que

porventura recebia, sentindo-se irremediavelmente só, traída e injustiçada. O

sentimento de impotência e o ódio ressentido agregavam-se como novos elos na

corrente de seu penar.

O pathos assim se expressava no sofrimento e na passividade de Carmen, o

que revelava sua dependência permanente de um outro, reagindo ao que sentia afetá-la

desde o exterior, mas que atingia seu corpo e mente. Constituía vivência que

necessitava ser transformada em experiência, produzindo um ensinamento interno que

só poderia ocorrer na presença de um outro, o psicoterapeuta, que ao escutá-la poderia

lhe abrir a possibilidade de pensar e colocar em palavras o teor de seu sofrimento.

Carmen parecia desejar muito mudar esse panorama interno e externo, de

algum modo atribuindo ou desafiando o tratamento como sua derradeira tentativa de

salvação. Ao conferir que só poderiam trabalhar em conjunto, não podendo a

psicanalista tomar para si o encargo de seu penar, o efeito foi o de fazer com que a

desolação começasse a dar lugar a algum estímulo para que Carmen tentasse se

levantar. Se, sozinha, sentia não poder ir além do abismo em que se encontrava,

acompanhada parecia se sentir um pouco mais encorajada e vislumbrando alguma

esperança. Sentia surgir alguma chance de superar o que enfrentava, e, quem sabe, da

relação analítica retirar a seiva que poderia lhe devolver a vida.

Talvez o fato de a psicanalista ter sido colocada inicialmente em um lugar

vago de sua realidade externa a partir da morte da mãe, poderia ser um primeiro passo

para dar início à constituição de um verdadeiro lugar para a alteridade. Isto poderia

culminar na constituição da real possibilidade de contar com um outro, sem com ele

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internamente se misturar, sobrepor ou confundir? Eram questões que ecoavam no

interior da psicanalista, e que iriam demandar algum tempo para revelar uma luz.

Marcas de origem

Carmen nascera no exterior, em país diverso daquele de onde se originavam

seus pais. Fora filha única mimada até os oito anos de idade, quando os pais tiveram

outro filho, nascido com um problema congênito de saúde. A partir de então, a mãe

voltou para ele seus principais cuidados.

Carmen sabia-se ressentida por esta perda de afeto materno, tentando suplantar

sua dor de abandono destacando-se como filha, tentando oferecer à mãe tudo o que

esta pudesse carecer ou desejar. Era inteira dedicação a este amor primário,

insuperável em toda sua existência. Seria verdadeiramente à mãe a quem tudo

oferecia, ou nela Carmen divisava seu próprio eu, que assim procurava restituição e

reparo para a experiência infantil em que fora atingida por perda narcísica tão

dolorida?

O irmão teria reedições ao longo da vida, na figura daqueles que sempre lhe

tomavam o que mais estimava e desejava. Aliás, o irmão parecia ter sido o único que

efetivamente representara a ameaça de um terceiro e a perda de amor na relação com a

mãe. O pai jamais fora um verdadeiro rival nesta relação pré-edípica, tão fortemente

estabelecida e jamais sobrepujada. Além do mais, nesta dinâmica familiar, a figura de

homem rude, que se sentia fragilizado perante a relação impenetrável da mulher com a

prole constituía uma espécie de estrangeiro indesejável no idílio materno-filial. O

lugar que lhe era destinado parecia ser, em grande parte, apenas o daquele que

fertilizava o útero materno.

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Até que ponto também não estaria sendo reservado à psicanalista o papel de

―inseminadora‖ circunstancial, cujo valor maior seria fecundar Carmen, sentindo-se

estéril em estado de profunda depressão? O vínculo analítico seria possível, ou o porte

da tarefa tornava-a uma missão impossível? Assim, o trabalho teve inicío, permeado

de perguntas e dúvidas, algumas delas fundamentais. Carmen seria capaz de

sobreviver a seus impulsos destrutivos? O que estava reservado à psicanalista neste

vínculo que procurava se assentar em terreno de areia movediça? Poderia, talvez, ser

esta mais uma morte anunciada. Ou, quem sabe, antecipadamente estivesse o

tratamento sendo condenado ao mesmo destino de morto-vivo, de inimigo íntimo, tão

enredada que estava Carmen em seus conflitos.

Experiências e excessos

A fala de Carmen mal cabia nas sessões, desfilava suas experiências em

discurso envolvente, indicando buscar seja a admiração, seja o reconhecimento.

Algumas dessas falas soavam exageradas ou inverossímeis, pouco a pouco

apresentando as excentricidades vividas e a intensidade de sentimentos

experimentados.

Entre muitas questões, destacavam-se suas escolhas amorosas, com prioridade

para a relação conjugal que durara vários anos de conturbada infelicidade. Aliás,

Carmen diagnosticava: Eu sabia que não seria feliz no amor, pela vida que meus pais

tinham. Ele completamente apaixonado por ela, e minha mãe nunca havia deixado de

amar o noivo que morrera na guerra.

Com isto, Carmen parecia registrar que entre o casal parental sempre houvera a

sombra de outro, o amado que fora perdido, imaginária e parcialmente resgatado por

meio dos filhos, continuidade narcísica de uma mulher que teve seu destino

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prematuramente atravessado pela dura realidade da morte. A sombra do morto

impedia a ligação amorosa e vitalizada com um outro homem, esta era a bagagem que

trazia a mãe de Carmen para sua infeliz união conjugal. Reservava ao marido apenas o

papel do macho que a inseminava, e, aos filhos, destinava serem aqueles que lhe

renderiam homenagem e não poderiam dela se separar.

A conveniência complementar vantajosa, minha mãe foi o braço direito do

meu pai, aquela que o empurrava para a frente com sua capacidade e determinação

para vencer obstáculos na atividade profissional, parecia ter feito o pai tolerar ser

coadjuvante de uma história na qual o poder matriarcal imperava.

A rudeza e a rispidez paternas conviviam com esta fraqueza e inoperância no

vínculo conjugal e familiar. Porém, ele possuía dotes artísticos, dizia Carmen, deles

sentindo-se herdeira, assim como seu filho Augusto. Estes dotes indicavam a

potencialidade com que pareciam contar, porém eram recursos que não conseguiam

ser empregados e desenvolvidos de modo a erigir uma existência firmemente plantada,

independente e direcionada. Carmen tropeçara muitas vezes durante a vida, decaindo

profundamente após a morte da mãe, enquanto Augusto não conseguia se pôr em pé,

apesar do diploma e das capacitações que possuía. Não seria a figura do pai de

Carmen, que identificatoriamente reaparecia nas gerações seguintes, condenada ao

fracasso como homem de sua mãe e como comerciante, não fosse a capacidade

administrativa da esposa? Os negócios do pai acabaram falindo logo após ter

expulsado a mulher da administração, uma vez que ela havia se negado a dar

continuidade às relações sexuais entre eles. Interceptada esta via de descarga e escape,

seu pai não deixara restar pedra sobre pedra.

Como é possível divisar, a ruína aqui também já pertencia à história desta

família, encontrando-se diretamente associada à saída de cena da figura de um outro

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necessário para se manter em pé. Após a separação conjugal, o pai de Carmen se

casara novamente e tivera dois filhos, porém nunca mais se reerguera financeiramente.

Deixou quase nada ao falecer, sua morte ocorrendo anos após o falecimento da mãe de

Carmen. O pouco que restara, ainda dependia de procedimento legal para ser

resgatado. Carmen pensava nos problemas que este dinheiro viria resolver, porém a

inércia a condenava a apenas devanear sobre os benefícios, sem ação possível. Seu

desejo era de que o filho se ocupasse disto, fazendo as vezes do parceiro que lhe

faltava, do solucionador de problemas que sentia não ter mais forças para ser, e, assim,

ela não conseguia se colocar no rumo do enfrentamento e da solução. E lá vinham

lamentos, mágoas, decepções e ressentimentos, este sendo o mar em que Carmen

vinha navegando havia tempos, podendo aí permanecer indefinidamente.

Vida de desamores

As idéias suicidas de Carmen haviam se apresentado em dois outros períodos

de infelicidade e desespero. Da primeira vez, ainda bastante jovem, Carmen desiludiu-

se profundamente com o noivo estrangeiro que conhecera em uma viagem que fizera

na companhia da mãe. Sua descrição sobre a corte deste rapaz durante a viagem,

destacava o quanto seu comportamento era imensamente sexualizado quando estavam

sob o olhar dos outros, contrastando com os momentos em que se encontravam a sós,

quando imperavam a frieza e a distância. Questão intrigante para a jovem Carmen,

que depois se sentia levada às alturas na excitação transbordante causada pelo

recebimento das cartas do namorado distante. Apenas uma viagem em companhia da

mãe ao país de origem do rapaz, sob a investigação de um detetive como o olhar de

um terceiro, foi capaz de pôr fim ao engodo. O rapaz homossexual parecia andar atrás

de dotes financeiros. Que destino poderia ter tido a apaixonada Carmen!

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Sua escolha seguinte não a conduziu a um porto muito diferente. Em

companhia do futuro marido, vivera inicialmente a ilusão de um sonho, sentia através

dele poder realizar seu desejo de alçar a um mundo de cultura e oportunidades sociais

que a seduziam. Ele era um homem estrangeiro que poderia conduzi-la para longe do

bairro e da cultura familiar, que sentia oprimi-la em seus anseios por liberdade e por

ganhar o mundo. Embora não estivesse perdidamente apaixonada ao se casar,

vislumbrava realizações sonhadas, para depois se haver com uma espécie de pesadelo

bastante real. A decepção logo apontou no horizonte desta relação, porém passaram-se

vários anos de infeliz convivência, até que Carmen levasse a efeito sua ameaça de

separação. Carmen desejou morrer por ocasião de sua dolorosa e tumultuada

separação do marido, pois embora a tratando fria e sadicamente, ele não desejava

romper a união. Ele foi apontado como quem a fez sentir ódio pela primeira vez,

sentimento que até então não conhecia. Segundo ela, eu era jovem, bonita, ingênua,

virgem e cheia de vida, e ele me sugou completamente, acabou com a minha vida.

Depois dele, alguns relacionamentos foram profundamente decepcionantes ou

não tiveram continuidade, muitas vezes Carmen tendo abdicado por me sentir gato

escaldado ou em favor de manter o filho sob minha guarda, sentindo-se ameaçada

pelo ex-marido. Ela sabia do peso de suas garras e do poder que tinha por meio de

seus relacionamentos influentes. Conferira na própria pele as injustiças financeiras

que este homem, contrariado e abandonado, fora capaz de produzir — ao longo da

vida em comum e, em versão clímax, por ocasião do litígio judicial.

Seu desespero pelo péssimo relacionamento com o filho parecia dar seqüência

a esta galeria de homens que sentia a terem enganado, maltratado e desamparado.

Augusto, a quem educara para ser um gentleman, que ele sabe ser com os outros,

menos comigo atualmente, era alvo de suas fantasias idealizadas, e finalmente se

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constituíra em alguém tão decepcionante, egoísta e agressivo como o pai, exatamente

o que queria evitar. Chegar ao impasse neste relacionamento fazia com que Carmen

experimentasse enorme abalo em seu narcisismo. Sentia-se a mãe que não sabia em

que ponto falhara junto ao filho que primorosamente educara e que era sua principal

razão de viver. Via-se como aquela que tudo por ele fizera, inclusive abrindo mão de

meu grande amor que exigiria me mudar de país, o que não pude, pois poderia perder

meu filho, para ser ao final injustamente atacada e penalizada. Reiterava seus

sentimentos de decepção e de fracasso, mas resistia em reconhecer o ódio que

alimentava seu ressentimento. Por mais que eu fique uma porcaria, paralítica, não

muda o fato de ele não reagir e começar a tomar conta das coisas.

Clamando por um filho desejado

Um dado de importância a respeito da filiação de Augusto foi

progressivamente elucidado por Carmen. Ao longo de vários anos de casamento, ela

não conseguira engravidar, apesar dos tratamentos realizados. Foi se fortalecendo a

convicção de que seu marido lhe escondia ser estéril. Ao longo da vida em comum,

seu marido fora se assemelhando cada vez mais ao seu próprio pai, traindo e

tratando-me horrivelmente.

Como o casal vivia muito mal, Carmen também começou a ter

relacionamentos extraconjugais, justificando-os pelo distanciamento sexual do

marido, iniciado na lua-de-mel e agravando-se até ficarem semanas sem ter relações

sexuais. Assim, Carmen terminou por escolher um amigo com a anuência velada do

marido para ser o pai do filho tão desejado. A escolha do inseminador norteou-se por

ser ele homem bonito, viril e com características de personalidade que denotavam ser

um machão. Era assim que Carmen idealizava seu filho, sempre imaginando-o do sexo

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masculino. A única pessoa a quem revelara a origem biológica de Augusto fora sua

mãe, pois queria que ela ficasse feliz, porque caso fosse filho de meu marido, do jeito

que ele era, ninguém ficaria contente.

O relato sobre uma situação vivida junto ao futuro inseminador merece

destaque. Carmen costumava por vezes visitar este amigo, quando em uma ocasião diz

tê-lo encontrado a ponto de saltar pela janela. Comecei a dançar muito e a atrair sua

atenção. Ele terminou por não saltar e acabou indo a uma festa comigo. Algum tempo

depois, foi ele o pai biológico do filho que eu não conseguia ter com meu marido

estéril. Minhas entranhas clamavam por um filho, e eu não engravidava apesar dos

inúmeros tratamentos que fizera, e que meu ex-marido se recusava a submeter-se,

pois sabia que me escondia sua esterilidade desde antes de nos casarmos.

Os resultados dos exames pré-nupciais nunca haviam chegado às mãos de

Carmen, sempre parecendo ter havido uma cumplicidade inconsciente entre o casal.

Além da ambigüidade que se revelava em seu comportamento, pois, embora Carmen

desejasse demais ter um filho, passara muitos anos tomando anticoncepcionais,

alegando não poder deixar-se engravidar de outro que não o marido. Assim, tempos

depois, o filho do inseminador selava o acordo tácito entre o casal, muito

provavelmente a ser mantido para sempre, não fosse Carmen ter pretendido sua

libertação conjugal.

Com o filho nos braços, não havia mais poder algum no marido que poderia

interessá-la e muito menos detê-la. Até o médico obstetra Carmen imaginava ter

iludido sobre o prazo de sua gravidez, uma forma de mascarar a real paternidade de

seu filho. Finalmente ela sentia que ganhava o mundo, para o qual o marido e o

inseminador teriam lhe servido de passaporte. O filho sendo reconhecido pelo marido

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também lhe teria garantido, pelo menos legalmente, que Augusto não seria apenas um

filho de mãe.

Deste modo, as distorções, os segredos e as cumplicidades se multiplicavam,

fortalecendo cada vez mais a exclusão masculina desta união entre a mãe de Carmen e

ela, e entre esta e a criança que foi desta forma gerada. Nesta família de mulheres, os

homens encontravam-se em repetida condição de ausência, como o avô desaparecido

precocemente ou o noivo da mãe morto na guerra. Como foi possível ir conferindo,

aos parceiros não era destinado um lugar valorizado de inclusão. Em fantasia, e por

vezes na concreta realidade, pareciam servir apenas como inseminadores,

transmitindo à cria características desejadas, conforme sonhara Carmen. O desfile de

justificativas não cessavam de reafirmá-la, mesmo assim, apenas como vítima

indefesa, alegando que reagira à violência dos enganos e omissões a que se sentia

submetida pelo ex-marido. Olho por olho, dente por dente...

No início do tratamento, Carmen apresentava imensas dificuldades em olhar

para si e divisar algo sobre suas próprias questões, ou seu quinhão de responsabilidade

nas situações em que se via envolvida. O papel de vítima parecia indicar os ataques

dos quais não conseguia se proteger, mas também desviá-la da culpabilização que

poderia dirigir a si própria, caso divisasse sua participação no infeliz jogo de violência

que se estabelecia, estendia e repetia. Como admitir que podia ter trabalhado na

contramão de si própria?

Inconscientemente, ela acabava repetindo a história transgeracional, dando

continuidade à herança familiar de mulheres infelizes no amor, vivendo sem homens,

ou ao lado daqueles que eram rudes, sádicos e até mesmo violentos. O privilégio era

sempre da relação mãe–filho, principal ligação narcisista ao longo da existência das

mulheres desta família.

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A avó de Carmen enviuvara muito cedo e trabalhara arduamente para prover o

sustento dos filhos. Não poupando sacrifícios pessoais, economizava o dinheiro do

transporte para despender com doces para os filhos, investindo narcisicamente na

idealização da prole. Para esta matriarca, que depois ajudou a criar Carmen, as

crianças eram reis, não mensurando sacrifícios. Foi esta a escola de Carmen, a relação

com seu próprio filho Augusto como comprovação. Este, por sua vez, parecia estar

tentando desesperadamente romper de algum modo com esta herança em cadeia, que

comprometia pelo menos três gerações de sua família.

Se os homens da vida de Carmen revelavam um aspecto sádico predominante,

fazendo-a sentir-se quase sempre como pessoa maltratada e desamparada, isto parecia

se relacionar à complexa teia de conflitos e identificações que abrigava. De um lado,

ela reproduzia parte da vivência da mãe submetida à violência do pai explosivo, mas,

por outro lado, era ela a mulher que agora era penalizada pelo que apontava seu crime

e castigo, junto a vários dos homens em torno dela, o que parecia ser o ajuste de

contas que Augusto punha em ação em nome de todos.

As agressões sádicas do ex-marido devem ter-se exacerbado a partir da

gravidez de Carmen, prova viva de sua infidelidade conjugal. Perante ela, o cônjuge

parecia sentir que apenas poderia reagir indiretamente, atingindo-a por meio de

traições ostensivas com mulheres próximas. As brigas e as implicâncias, as mais

variadas, indicavam a revolta daquele que silenciava, sendo parceiro no jogo de

enganos e de mentiras que ajudara a montar. Finalmente, teria um filho nesta

complementaridade patológica, em que era extremamente difícil distinguir o algoz,

todos vítimas infelizes das próprias armadilhas. Vá dormir em outro quarto, pois

preciso estar em condições de amamentar, e não com o leite talhado pelo ódio que me

dirige. Seria o filho Augusto aquele a quem estava destinado saldar todas estas dívidas

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acumuladas no âmbito familiar, saneando o território amoroso minado pelo engano e

pelo ódio?

Um símbolo da posição que Augusto ocupava no mundo fantasmático de

Carmen era o carro com que ela lhe presenteara. Após seu divórcio, ela comprara um

vistoso carro esportivo, para compensação de tudo o que havia passado e para ter o

prazer de ser admirada circulando dentro dele. Na ocasião, pensara no futuro

presenteá-lo ao filho, como efetivamente cumpriu. Assim ele poderia passear e se

destacar aos olhos de seus colegas. Ele seria o único a ter aquele carro antigo e

especial. Este permanecia havia muito tempo encostado na garagem, sem seguro e

sem condições de circulação. Porém, não se inclinavam a vendê-lo, apesar das

enormes dificuldades financeiras e de Augusto possuir outro automóvel presenteado

pelo pai. A hipoteca narcísica deste bem material, com amplos e vários significados,

tornava mãe e filho impedidos de disponibilizar deste objeto idealizado e investir em

outros, mais realísticos e adequados às necessidades do momento. Congelados neste

ideal, não era apenas o carro que não podia ter outro destino. A relação de ambos

vinha soçobrando por não conseguirem alçar vôo rumo à separação e à independência,

abertura para o mundo, vital para ambos.

B. Embates analíticos

Os encontros analíticos iniciais foram povoados de excessos e de

desorientações. Carmen comparecia por vezes confusamente, em dias e horários

diversos dos combinados, ora bastante atrasada, ora com muito tempo de

antecedência. Isto provocava alguns transtornos junto aos demais pacientes, por vezes

a psicanalista sentindo-se invadida em seu espaço. No entanto, Carmen poucas vezes

chegou a esquecer-se do compromisso. Quando ocorria, telefonava a seguir, sentindo-

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se muito culpada para consigo mesma, passageira de uma vida tão carente de

cuidados, chegando de maneira errática para ser acolhida incondicionalmente pela

psicanalista. Talvez com a acolhida e a tolerância que apenas uma mãe como a que

idealizava em sua fantasia conseguiria oferecer ao filho. O pathos desta forma se

fazendo presente indicava seu desamparo psíquico, sua falta de limites na demanda

onipotente ao outro. E, deste modo, por vezes foram necessárias intervenções firmes,

que a confrontassem com este transbordamento, este excesso e o incômodo que

provocava.

Alguns momentos de destaque

Algumas referências mais antigas davam idéia de quem fora Carmen. Quando

profundamente magoada pelo enganoso noivo interesseiro e homossexual, Carmen

refugiou-se em um trabalho voluntário. Ajudou muitas crianças, desde o berço até

adolescentes que necessitavam de emprego. Lançava mão de seus dotes de juventude,

beleza e sedução para agendar entrevistas com dirigentes de empresa. Revelava seu

real objetivo apenas posteriormente: tentar colocação para os adolescentes, que não

poderiam ser deixados na rua para se tornar marginais. Argumentos louváveis e

generosos que se mesclavam ao seu jeito envolvente e, por vezes, dissimulado de ser.

A questão era: até que ponto ela mesma não vivia certa ilusão sobre si mesma,

sentindo-se mais profundamente ―a desprovida‖ de condições reais que per se

pudessem valer?

Tendo morado alguns anos no exterior, Carmen colocou-se o desafio de

conseguir um emprego e aprender a língua do país. Valeu-se do marido na

interlocução com o contratante, auxiliando-a no disfarce de seu desconhecimento

profissional e da língua estrangeira. Tendo obtido o emprego, reproduzia com rapidez

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e eficiência o que executavam os colegas, tendo sido logo promovida. Ficou o sabor

mágico-onipotente de seu desempenho, inflando o desejo de se separar do marido,

uma vez que adquiriu independência financeira e se envolveu com um outro homem.

Por seu lado, o marido convenceu-a a retornar ao Brasil, sob pretexto de auxiliar na

conturbada separação de seus pais. Para socorrer a mãe, não havia nada que a

detivesse, o marido bem o sabia. Como na tenra juventude, Carmen mais uma vez

desistia de permanecer no estrangeiro e ter uma vida própria, o amor à mãe a

recapturando. Separação impossível, presa de uma trama que não dava a Carmen a

possibilidade de ser alguém por si e para seus próprios desejos. O afeto sempre me fez

abrir mão de meus desejos. É pelo afeto que as pessoas me pegam.

Uma experiência marcante ocorrera apenas alguns anos após seu casamento.

Em viagem ao exterior, o marido quis assistir um espetáculo de sexo explícito, e o

casal foi convidado para ver artistas que pintavam cenas eróticas com modelos ao

vivo. Inicialmente, Carmen assustou-se com a proposta, porém assegurou-lhe o

marido que, em sua companhia, nada teria a temer. Lá chegando, o casal de modelos

que mantinha relação sexual convidou seu marido para participar com a moça, ele

prontamente aderindo. Indicou-lhe que ele entraria, porém Carmen não. No início, ela

permaneceu espectadora passiva da troca de carícias entre eles. O marido, por sua vez,

não conseguia ereção. Diante de tal fiasco, me levantei e fui acariciá-lo, ele

prontamente se excitando. Eu não podia deixá-lo naquele vexame. A seguir, ela

manteve relações sexuais com os cinco homens presentes, porém não atingindo um só

orgasmo. O que mais me doeu nisto tudo não foi o sexo, mas perceber que meu

marido acariciava afetiva e delicadamente a moça, coisa que eu tanto desejava e não

obtinha. Após isto, Carmen e o marido permaneceram dois dias encerrados no quarto

do hotel, tendo inúmeras relações sexuais, nunca mais falando ou tendo outras

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experiências daquele tipo. Naquele momento algo se quebrou no nosso

relacionamento, talvez se eu tivesse consentido em viver uma vida mais livre, com

experiências diversas como aquela, quem sabe a relação tivesse dado certo. Se deu

certo para melhorar o sexo entre nós no hotel, talvez tivesse sido uma saída. Depois

daquilo, me senti livre para iniciar meus relacionamentos extraconjugais, só que

sempre o fiz em vôo solo.

Carmen teve variadas experiências, muitas delas com homens ocasionais,

outras com alguns de suas relações sociais. Em determinada época, um amigo

homossexual acompanhava o casal a boates, o marido de Carmen geralmente

espectador enquanto ela dançava com homens sedutores. Assim, o casal seguia,

cúmplices de uma relação em que a sombra de um terceiro por ali pairava, num jogo

de se exibir e contar com o outro como espectador, em interlúdio em que um se valia

do outro, para o próprio gozo.

Conhecendo o filho ingrato

Cerca de três meses após o início da psicoterapia de Carmen, foi solicitado

atendê-la em uma entrevista conjunta com o filho Augusto. Nesta oportunidade, ele

demonstrou suas próprias mágoas, falou de seus desconfortos pessoais e dos embates

que enfrentava no convívio com a mãe. Por seu lado, Carmen pedira para que o filho

comparecesse, pois parecia necessitar o referencial de um terceiro, a psicanalista, tão

sem bússola que se sentia no impasse em que desembocara a relação com o filho.

Carmen, que sempre tendia a falar excedendo o tempo da sessão, ao lado do

filho, permaneceu silenciosa, desejando ouvi-lo. Havia muito tempo, aquele momento

era inexistente entre eles, que só conseguiam se engalfinhar nas dependências da casa

coabitada.

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Augusto era um jovem bonito, com olheiras cansadas e aparência em certo

desalinho, mais do que uma figura apenas despojada. Ele aparentava não abusar do

chuveiro, nem se preocupar muito com a limpeza dos trajes, parceiros meio ensebados

de um andarilho um tanto perdido na vida. De qualquer modo, parecia muito

inteligente, articulado e desenvolvia raciocínio bastante coerente em torno de suas

premissas. Esta era uma maneira de ser considerado, pela psicanalista, como o pólo

saudável daquela relação que claudicava na doença. Indicava o quanto sua mãe

necessitava melhorar para ficar de razoável convivência, não reconhecendo em si

responsabilidade alguma nesta relação tão imbricada e insatisfatória para ambos. As

culpas também ele transferia para o outro, sendo um digno sucessor desta marca

familiar de atribuição de responsabilidade ao outro e funcionamento projetivo.

Chegou a apontar dificuldades pessoais em se estruturar profissionalmente,

assumindo eventuais trabalhos desgastantes por necessitarem muito de dinheiro para

sobreviver. Queixava-se de que a mãe não compreendia seus esforços pessoais,

solicitando-o com as mais variadas requisições domésticas, enquanto ele se

encontrava trabalhando. Sua ira em relação a ela, Augusto atribuía a este

comportamento que considerava incontido e invasivo, por mais que lhe solicitasse

observar isto. Justificava que dormia durante o dia pois passava a noite trabalhando,

não lhe sendo possível acordar para ocupar-se de tarefas ou socorrer a mãe nos

obstáculos do cotidiano.

Apesar disso, Augusto revelou reconhecimento do valor de Carmen, ao

construir tudo em cima de nada, referindo-se ao fato de a mãe ser autodidata nas artes

plásticas e ter-se constituído na principal provedora do núcleo familiar que haviam

formado junto com a avó materna. Reconhecia nela a força de uma leoa, enfrentando

obstáculos sérios como o remar contracorrente de seu pai, o ex-marido de Carmen.

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Segundo Augusto, ele não facilitava a vida deles, como sempre figurara

impiedosamente no plano afetivo. Ouviam-se ali suas próprias mágoas, apontando

também o difícil caminho de constituir em si a figura de um pai, o terceiro, que não

fosse apenas alguém egoísta e cruel. Triste sina, o pai novamente ausente, ou presente

como figura má, gerando desconforto, privação ou mesmo crueldade. Sinônimo de

sadismo do homem, ou expressão de uma revolta masculina pela exclusão do vínculo

mãe–filho? Homens que não conseguiam construir para si um lugar melhor. Seria este

também o destino que aguardava Augusto, rebelde que só podia ser ouvido em seus

brutos trancos, mesmo assim não provocando em Carmen a escuta necessária? Seria

isto o que a psicanalista teria a contribuir para a dupla mãe–filho? Ou seria esta uma

clara indicação de que não havia espaço para ser terceiro enquanto psicanalista,

embora divisado como necessário?

Ao final da entrevista, Augusto foi confrontado com duas importantes

colocações de Carmen. A primeira, de que sua depressão se iniciara com a perda da

mãe, quando também se decepcionara amorosamente com um namorado e com o

roubo pela gerente do banco. Surpreso, não se dera conta que a mãe se abandonara

havia tanto tempo. A segunda colocação, de que Carmen realmente não desejava mais

viver, caso a relação entre eles não pudesse retomar um bom curso. Ela se encontrava

no limite, desejando que Augusto pudesse se alertar para isto. Os problemas eram

mais profundos e sérios do que apenas atritos de convivência ou impasses triviais.

Algum retorno deveria ser possível, ou então restava o salto sem volta no abismo.

Na sessão seguinte, Carmen compareceu com um longo casaco de pele

artificial, tenho dois verdadeiros, mas que são muito pesados. Este é mais leve, bonito

e confortável, uso muito quando faz frio. Parecia uma referência ao que sentira como

sendo a pele-potência que emprestara da psicanalista, para poder enfrentar o filho na

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sessão anterior. E quem sabe uma pele ―artificial‖ emprestada da psicanalista, para

poder construir a própria, menos baseada em idealizações e mais compatível com a

realidade? Ou, ainda, talvez acenasse com a possibilidade de prontamente ―vestir uma

pele‖, porém falsa e magicamente.

Quando vejo meu filho apaixonado pela moça da internet, lembro do homem

por quem me apaixonei logo depois de separada, abdicando dele por medo de perder

a guarda do Augusto. Este homem morava no exterior, e Carmen teria de se mudar

para lá. Meu ex-marido poderia querer lutar ainda mais pelo Augusto. Por vezes

cheguei a pensar em deixá-lo aqui com ele, e ter outros filhos lá. Carmen indicava o

alto preço para manter o filho consigo, tendo inclusive declinado de uma gravidez

posterior, por medo de perder Augusto para o ex-marido. Estas contas com o filho e

com o ex-marido permaneciam em aberto, só podendo trazer-lhe algum consolo, caso

Carmen mantivesse só para si o filho por quem tanto fizera. Pareciam débitos que

dificilmente poderiam ser saldados.

Quando, algum tempo depois, Augusto decidiu ir ao encontro da namorada que

conheceu na internet, Carmen angustiou-se, ele não quer cuidar de nada, muito

menos da mãe doente, é muito egoísta. Tinha verdadeiro pavor de que Augusto

resolvesse se mudar definitivamente para o exterior, vivenciando tal possibilidade

como reedição de seu próprio desejo na juventude, abortado fundamentalmente pela

mãe, que não tolerou esta emancipação filial.

Aos poucos, Carmen foi conferindo estar mais tranqüila após a partida do

filho. Não vivia mais o pesadelo dos embates cotidianos. E, para sua própria surpresa,

começou a tratar ativamente de vários assuntos pendentes: Estou aflita, mas não estou

derrubada. Algumas sessões depois, Carmen trouxe flores pela primeira vez: trouxe

orquídeas da minha coleção. Eram expressão de sua gratidão pelo que sentia receber

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da psicanalista, e, em parte, visavam compensar o pagamento atrasado. Por sentir-se

culpada com relação a isto, considerava por vezes interromper o tratamento, sendo

incerto o prazo em que poderia fazer o acerto.

As flores pontuaram a relação analítica em diversos momentos, Carmen

indicando sua ligação à pessoa da psicanalista, reconhecimento pelos avanços do

tratamento, assim como uma compensação pelo pagamento atrasado, entre outros

significados. Alguns deles talvez menos passíveis de ficarem expostos, por exemplo,

uma tentativa de atrair para si um afeto especial por parte da psicanalista. Em outra

ocasião, ofereceu um trabalho artístico de sua criação, inteiramente recuperado por ela

para presentear a psicanalista, quando acertava contas atrasadas pouco antes do Natal.

Para a psicanalista sempre se apresentava a possibilidade de ser esta uma maneira de

Carmen impor-se no ambiente, para além de sua presença, ou quem sabe distinguir-se

como analisanda predileta.

Quase um ano após o início do tratamento, o filho de Carmen solicitou ser

atendido novamente. Desta vez, ela decidiu não participar, mas desejou que o

encontro se desse. Augusto preocupava-se com a mãe, que novamente se recolhera e

apresentava oscilações emocionais, tendo deixado de tomar a medicação

antidepressiva. Como filho preocupado e certamente também desconfiado, desejava

informações sobre o andamento do tratamento. Por fim, Augusto aproveitara o espaço

de escuta para si próprio. A psicanalista da mãe foi escolhida para acolhê-lo em suas

angústias, transbordante que estava. O limite imposto pela psicanalista, de que seria

aquela a última vez deste tipo de atendimento, era um incentivo para que ele fosse à

procura de um atendimento para si. Porém, ele não aceitou a oferta paterna para o

pagamento deste tratamento, dadas as dificuldades de relacionamento entre eles.

Carmen procurara o ex-marido para discutir não apenas a necessidade de psicoterapia

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para Augusto, mas também sua preocupação com as dificuldades profissionais

enfrentadas pelo jovem.

Alguns meses antes, Carmen pedira-lhe ajuda para a situação financeira que

ela e o filho viviam, o ex-marido esquivando-se. Desta vez, atingido pelo afastamento

do filho, aceitou. De modo geral, ela conduziu bem a situação, objetivando seu

discurso sem se perder em desvios e detalhes excessivos, assim como não insistindo

no remoer das mágoas do passado entre eles. Algo indicava estar se fazendo

internamente. Uma retomada em torno do filho, para reordenar lugares, para tentar

deixar o passado na memória e viver o presente em suas requisições imperativas,

procurando lançar olhos para o futuro. Sinto-me em parte culpada de estar

melhorando, enquanto vejo que o Augusto está mal e disse que só fará terapia quando

tiver dinheiro próprio para pagar.

Começaram a ocorrer, por vezes, situações de angústia mais flagrante em

Augusto. Onde foi parar minha mãezinha? foi um desabafo em lágrimas diante do

confronto com a pessoa em que Carmen se transformara. Você não está tão velhinha

assim para estar tão fraca, esquecida e atrapalhada com as coisas. Ao que Carmen

respondeu O que se deu é que ela já não consegue mais ser a provedora que sempre

foi. Augusto nesse período, procurava ir dormir na cama da mãe, como uma criança

frágil e ameaçada.

Uma constatação de Carmen fora de que quando o filho se encontrava

completamente desorganizado em suas angústias, ela por vezes se centrava, mais

objetiva e assertivamente. Interessante observar este sistema de compensação

emocional, por vezes um tentando suprir a função faltante do outro. Além disto, a

―dupla mensagem‖ indicativa da ambivalência entre ―cuidar e agredir‖ fora

perspicazmente identificada nos bombons que Carmen ganhou no Dia das Mães,

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necessitada que estava de emagrecer e cuidar de seu diabetes inicial. Ora ele brigava

para ela se cuidar, para logo depois ofertar-lhe o que podia agravar-lhe o estado de

saúde.

No entanto, um ano e meio após o início do tratamento, as relações entre

Carmen e Augusto eram mais cordiais, levando-os a se ocuparem com presentes

natalinos de um para o outro, embora visivelmente contemplando mais o gosto do

ofertante do que aquele do presenteado. A troca afetiva deu direito ao convite de

Augusto para jantar e ir ao cinema. Uma Carmen radiante o acompanhou, embora

parecesse tentar não mais se cegar pelo sonho de um filho ideal, a realidade dos

embates entre eles ajudando neste processo.

Algum tempo antes, indicando dramaticamente seu sofrimento com relação à

discriminação e à separação do filho, relembrara que o parto de Augusto fora por meio

de cesariana. Eu não tive a experiência de maternidade completa porque o Augusto

me foi arrancado, não senti ele saindo no parto. Foi com dor que relembrou isto, do

mesmo modo que em outra oportunidade: O Augusto é que largou do meu peito.

Quando tinha sete meses, eu tinha bastante leite e não houve mais maneira de lhe dar

o peito, só queria as papinhas. Não fui eu quem o desmamou, foi ele quem não quis

mais saber do seio.

Aliás, quando confrontada com a realidade da concepção de Augusto nas bases

narcisistas e apropriativas em que se dera junto ao inseminador, Carmen argumentava:

Mas eu não fiz nada que na natureza não ocorra. Os animais-fêmea escolhem o

reprodutor para sua cria, isto é completamente natural. Não vejo o que poderia haver

de errado ou culposo nisto. Além do que, Augusto ser um filho dedicado à mãe, e eu

ser uma mãe que se guia prioritariamente pela sua existência, é nada mais do que

expressão do amor entre mãe e filho. Nâo é normal isto também?

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Certa vez, durante uma conversa franca, Carmen respondeu a Augusto: Você é

oitenta por cento da importância em minha vida. Ao que ele se surpreendeu: Está

tudo errado, você deve falar sobre isto com sua psicoterapeuta.

Alguns capítulos do interlúdio analítico

Após alguns poucos meses de tratamento, Carmen começou a comparecer nas

sessões nos horários devidos. Estava ativa, desfazendo-se de restos de antigos

projetos acumulados ao longo dos últimos anos, agilizando mudança para a casa que

reformara. Liberava espaço externo, tentando separar-se dos pedaços de um passado e

criar algum espaço interno, para tentar empreender uma nova direção em sua vida.

Começava a resolver problemas do cotidiano, para os quais antes se sentia tão

desencorajada. E estes foram muitos, tendo em vista que o filho viajara e ela fazia

tudo sozinha. Parecia estar com os dois pés fincados na urgência de tomar novos

rumos. Extenuada, porém satisfeita com a vida que via brotar, como em seu

desempenho de outrora. Encarava os obstáculos como desafios, diante dos quais

conferia sua potência. A reclusão em estado de depressão parecia estar cedendo,

assim como reduziam-se as idealizações e auto-recriminações que funcionavam como

estorvo para o enfrentamento da realidade.

A partir daí, iniciou-se um período em que muitos e diversificados projetos

tiveram lugar, Carmen empolgava-se de forma excitada, para depois cair em

esvaziamentos, frustrações ou inoperâncias. Eram todas tentativas desesperadas de

sanar as dificuldades pessoais e a falência financeira. Porém, não decolavam rumo a

uma realização direcionada e consistente. Desvaneciam-se quase do mesmo modo

como surgiam.

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Entretanto, Carmen abria-se para novos contatos sociais e retomava outros,

saindo de seu isolamento patológico, por vezes, até sentindo-se passageiramente

interessada em algum homem que cruzava seu caminho. O filho temporariamente

viajando parecia ter em parte estimulado esta disposição, Carmen sentindo-se melhor

sem as brigas horríveis que mantinham. Acenava-se finalmente para ela algum

benefício em empreender a separação deste filho adorado, que lhe despertava tanta dor

e revolvia seu ódio, sentimento jamais admitido até aquele momento.

Após ameaças de permanecer indefinidamente no exterior, o filho retornou,

frustrado em seus projetos e expectativas. Carmen o aguardava saudosa, porém

apreensiva. Mandou arrumar o antigo carro esportivo que mantinham encostado, pois

o filho vendera o que ganhara do pai para viajar. Carmen continuava providenciando a

acomodação da mudança recém-realizada, enquanto desfazia-se em cuidados com o

filho que à casa retornava. Porém, os embates cotidianos entre eles voltaram a se

acentuar. Não foi esta cobra que eu criei. Além da tensão e descarga de cada embate,

Carmen revoltava-se com a falta de compromisso do filho com a situação financeira

que demandava urgente ganho financeiro, e não os poucos trocados que nem lhe

cobrem as próprias despesas do cartão de crédito, eu tendo de pagar ao final de cada

mês.

No transcurso de oscilações que iam do estado depressivo à hipomania,

Carmen cortou os imensos cabelos, o que não fazia havia muitos anos, desde a morte

da mãe. Apresentava-se progressivamente mais arrumada, observava uma alimentação

mais saudável e começava a emagrecer. Providenciou alguns cuidados médicos e

dentários que conduzia de forma extremamente econômica. Retomara o pagamento de

um convênio médico sério, após o embuste do anterior. Quando algum dinheiro

permitiu, comprou e mandou confeccionar roupas com finos tecidos herdados da mãe,

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em costureira de preço irrisório. Sua figura foi mudando, sentia-se satisfeita com suas

novas roupas e ao se ver podendo levar a cabo tais realizações.

As preocupações com a condição financeira e a dificuldade em alavancar uma

atividade profissional continuavam a angustiá-la, por vezes, excessivamente. Nestas

ocasiões, sua pressão arterial aumentava, não cedendo facilmente com medicamentos.

Chegava a parar de fumar, mas logo voltava, para desespero do filho. Por vezes,

afirmava sentir que estava usufruindo injustamente da casa, não possuindo condições

financeiras para mantê-la adequadamente. A maior parte do tempo, fazia as vezes de

faxineira, procurando manter tudo em ordem. Por seu lado, o filho vivia num

chiqueiro, cercado de restos de comida, roupas jogadas no chão, banheiro imundo,

papéis e objetos espalhados pelo chão. Quando Augusto bagunçava excessivamente

seu quarto, dormia no escritório, depois passava para o ateliê de Carmen, não

organizando seus espaços nem permitindo que ela entrasse para limpar. Sua comida,

implora para que eu não faça, pois não quer ser interrompido para vir almoçar ou

jantar. Tenho vergonha das meninas que traz para dormir com ele neste horror.

Por vezes, Carmen conseguiu alugar o apartamento da praia que estava à venda

havia muito tempo. Pouco dinheiro, porém muito providencial. Estava inadimplente

com as contas de condomínios atrasados, fizera um acordo para tentar se organizar

financeiramente. Sofria com o fato de estar ameaçada de perder este imóvel, pelos

impostos que estavam atrasados. O apartamento estava em nome do filho desde sua

separação conjugal, e mortificava-se por não ser capaz de saldar estes débitos e, assim,

preservar este bem para Augusto. No entanto, repudiava a idéia de vendê-lo muito

abaixo do preço para sanear sua situação financeira e atender as necessidades tão

prementes. Este imóvel era mais uma herança de seu passado, congelada em seus

significados de vitória ou vingança junto ao ex-marido, não conseguindo ser

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disponibilizado. Carmen guardava o cetro e a coroa, apesar do manto puído que a

descobria.

Algum tempo após o início do tratamento de Carmen, o filho teve uma ruptura

com o pai, tentando sustar o sofrimento deste contato, frio e distante, por vezes cruel,

que contava com a participação ciumenta da esposa do pai. O filho que uma vez

frustrara os planos de Carmen de viver com ele no exterior, não desejando viver longe

do pai, alegava não mais suportar conviver com a figura paterna por obrigação e para

ter dele algum dinheiro. Resolveu afastar-se, dizia, também para ajudar Carmen a

retirá-lo de sua própria vida, pois ela não conseguira definitivamente eliminar de sua

vida este homem, que não era seu amigo e tanto mal lhe fizera. Perguntava-lhe o que a

fizera demorar tantos anos para se separar. O filho a acusava de ter-lhe privado de

conhecer o pai biológico, proporcionando-lhe um mau pai para conviver. A angústia

em Carmen elevava-se como sua pressão arterial. Apresentava vômitos e sintomas de

labirintite, diarréia e diverticulite faziam sua aparição em períodos de maior tensão

interna ou nos embates mais sérios com o filho. Nestes momentos, dizia eu sei que

vou morrer logo, poucos anos me restam do jeito como estou.

Um momento extremamente importante em sua análise foi quando trouxe fotos

antigas. Na principal delas, lá estava ela, jovem, de pé ao lado da mãe sentada. A filha

rendia homenagem à majestade da mãe, que, por sua vez, guardava um sorriso de La

Gioconda6, conhecedora de seu poder e ascendência sobre Carmen. Em outra foto, em

um grupo de amigos, Carmen se destacava, pela juventude, beleza e vivacidade. O

marido, homem feio e sem graça sempre lá atrás observando, me deixando na frente

6 O quadro Mona Lisa, do pintor italiano Leonardo da Vinci, realizado por volta de 1503, é também

desta forma conhecido, o sorriso notabilizando-o como o retrato mais famoso na história da arte.

Sigmund Freud interpretou ―o sorriso‖ como uma atração erótica subjacente de Leonardo para com sua

mãe, sendo muitos aqueles que se dedicaram a decifrar o enigma que este sorriso escondia. (Disponível

em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mona_lisa. Acesso em: 2007.)

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para me exibir. E eu, na foto, do lado deste outro homem bonito, que bem poderia ser

o meu parceiro, dada a disposição em que estávamos na foto.

Em outra ocasião, ela trouxe a foto do inseminador para que fosse conferida a

semelhança com seu filho, homem bonito e sedutor que era. Importante destacar que

cerca de três anos antes de iniciar o tratamento, Carmen contara ao filho sobre seu pai

biológico, e ele não a perdoara de não lhe ter dado a chance de conhecê-lo antes de

morrer, e por ter-lhe dado um mau pai na figura de seu ex-marido. Ainda criança,

muito antes de ter conhecimento sobre seu verdadeiro pai, Augusto dizia parece que

meu pai não é meu pai, de tanto que me faz sofrer com seu comportamento sádico.

Neste aspecto, talvez o que Carmen sentia ser meu crime e castigo, embora

não saiba por quê. Quis dar um pai melhor a Augusto na biologia e um pai para

educá-lo, e no final ele me acusa e eu me sinto culpada. É o machão que se volta

contra mim. Carmen bendizia o momento em que tivera coragem de contar toda a

verdade a Augusto, pois quando ele rompeu com o pai, este chegou a explicitar para

Carmen: Você sabe que não posso ter filhos. Ao que ela respondeu: Sim, eu sei.

Finalmente, o antigo casal explicitava o ―não-dito‖ que os tornara cúmplices em torno

do filho, por mais de duas décadas. E ali entrevia-se a possibilidade de o ex-marido

pôr em curso uma retardada ação judicial de ―negação de paternidade‖. Quanta

vingança desferida um ao outro e a este filho, amado tão condicional e

ambivalentemente.

Em períodos de recaída, a desorganização e os esquecimentos de Carmen

enraiveciam o filho, a ela própria decepcionando. Chaves eram perdidas, documentos

não encontrados. Certa vez, teve de vir de ônibus para a sessão, incapaz de encontrar

as chaves do carro. Estas ocasiões faziam-na sentir como uma criança censurada e

punida por Augusto, que furiosamente a desqualificava por suas falhas. O filho insistia

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para que Carmen fizesse o mesmo que a avó, carregando em seu pescoço todas as

chaves da casa. Com isto, sentia que ele a humilhava, com todo o peso da

identificação com a mãe idosa e ainda sentindo-se Carmen menos eficiente do que

ela.

Certa vez, Carmen teve um sonho que se dava em uma sessão analítica, na

qual ia passar por uma avaliação em um consultório diferente, com parede azul de

metileno e umas tiras de fita crepe na parede, que eu ia retirando e olhando para a

psicanalista, para conferir se estava indo bem. Jogava-me no chão, nos divertíamos e

ríamos muito durante a sessão, eu e você. Suas associações a levaram a um filme em

que um garoto, ao ficar sozinho em uma ilha, mantinha-se muito próximo de um

cavalo selvagem, brincando com ele, e este rolando sobre as costas, em manifestação

evidente de prazer, alegria e afeto. Carmen indicava parte do que a relação analítica a

fazia viver, relatando com grande prazer o sonho que tivera. Seja pelo afeto, seja pela

leveza da brincadeira, seja porque sentia que podia se sair bem na avaliação que a

nutria narcisicamente.

Em vários períodos ao longo do tratamento, Carmen voltava aos sentimentos

de fracasso pessoal que culminavam em diminuição mais aguda da auto-estima e em

auto-recriminações insistentes. Quando isto ocorria, ela se sentia fracassando também

na análise, não sendo preciso dizer que, então, imputava ineficácia também ao

tratamento. Reafirmava seu vínculo com a psicanalista, a importância de tê-la

reerguido da séria depressão em que se encontrava, porém talvez considerasse ser

muito tarde para conseguir um rumo para voltar a ganhar a vida, desenvolvendo

alguma atividade produtiva. Será que vai dar tempo? Eu já deveria estar me mexendo

para ganhar dinheiro. Reconhecia que perdia-se nos detalhes infinitos de seu estreito

cotidiano doméstico, ou às voltas com procedimentos burocráticos que a ocupavam

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excessivamente. Quando percebia-se mais ativa e competente em atividades fora de

casa, algo repentinamente a detinha novamente. Disse à psicanalista: ouço a voz de

minha mãe, mas principalmente de minha avó, dizendo que estou saindo e deixando

minha casa muito bagunçada e suja. Aí tenho que me pôr a limpar e organizar tudo,

me cansando e deixando de fazer o que vinha fazendo fora de casa. Era assim que

Carmen tudo interrompia e voltava a se consumir dentro de casa, sentindo que não

teria mais jeito. Mesmo quando se recordava de algumas experiências nas quais a

rudeza do pai a magoara e demolira seus ímpetos criativos, parecia ser esta voz

materna interiorizada aquela que mais a destruía e recapturava.

Eu possuo um pé na terra e um pé na lua, foi como Carmen definiu sua

oscilação entre o desânimo profundo e os novos projetos com os quais se

entusiasmava e comportava-se hiperexcitada, fantasiando em uma guinada sair do

buraco financeiro e da inatividade profissional em que se encontrava. Dizia ser assim

seu jeito de ser e fazer, de outra forma, deixaria de ser ela mesma. Por vezes,

ressentia-se com a psicanalista, quando esta lhe apontava seu funcionamento

extremado que desconsiderava aspectos da realidade.

Seus projetos e promessas culminavam fatalmente em desestímulo pessoal, ou

nas decepções que acumulava em torno daqueles que elegia como parceiros. Ela

impunha-se o desafio como o pai, disparava como um touro cheio de energia, para

depois não sustentar a realização, decepcionando-se por não possuir a eficiência

materna. Seus sonhos e planos eram fogos de artifício, belos e brilhantes, porém

extremamente efêmeros, sem sustentação. Ao final, não conseguia sustentar a si

própria, desabando a cada vez. Este funcionamento fazia com que Carmen não

conseguisse, de fato, se fortalecer com as experiências vividas e no enfrentamento da

realidade. Como seu físico, engordava, mas não se fortalecia.

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Quando Carmen pensava em sua profissão, dizia não desejar remontar um

ateliê e oficina, com funcionários e máquinas como tivera. Pretendia vender as peças

que haviam restado e gostaria de empresariar alguma atividade ligada às artes. Sentia-

se desestimulada para retomar plenamente a criação de trabalhos de arte.

No momento em que Carmen iniciou uma tentativa de trabalho com um amigo,

retomou o uso de relógio, há muitos anos eu me desabituei, tal como os índios, me

guiando mais pela natureza. Logo fez notar a psicanalista, como se exibisse o pé na

terra e a responsabilidade que ganhava terreno.

Certa vez, Carmen trouxe um tapete oriental para tentar saldar parte da dívida

que acumulava no tratamento. Não estou me sentindo mal de dispor dele para este

fim. Apesar disto, o compromisso analítico não recomendava este tipo de negociação.

Carmen acolheu compreensivamente. Na mesma sessão, trouxe sua primeira escultura.

Representava uma mulher de longos cabelos, braços escorridos ao longo do corpo.

Com as mãos vazias e sem rosto, sem identidade, era assim que me sentia naquela

época, as outras desta série foram quebradas pelo meu marido durante as nossas

brigas.

Em períodos de muita angústia por sua inatividade profissional e

inadimplência financeira, Carmen chegava a tricotar como nunca fizera, seguindo o

modelo materno e da avó. Afogar-se nas agulhas e lãs era tentativa de dispersar o

sentimento de desamparo e viver a ilusão de ganhar dinheiro suficiente com isto.

Ocupava as mãos, só que não mais com os trabalhos artísticos que fora capaz em

outros tempos.

Em alguns períodos, Carmen desenterrou tecidos e lãs maternos para

revivificá-los em novas roupas para si, ou então para matar as saudades do calor

quentinho do suéter tricotado pela mãe. Junto com este baú de memórias, Carmen

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retomava o uso de peças e acessórios que havia muito permaneciam no fundo de seu

próprio guarda-roupa. Adornava-se para vir à análise, em seu reensaio para a vida.

Paralelamente, por vezes telefonava desesperada, desorganizada após alguma briga

mais séria com o filho. Como uma criança, ela procurava alento no colo da mãe-

analista. O Augusto não está bem, ele se sente sufocado e eu, abandonada.

Após férias analíticas, Carmen podia retornar alegre e ansiosa pelo contato, ou

profundamente abatida e desanimada, sentindo mesmo que fora bom não ter o

compromisso de sair de casa para vir às sessões. Quando assim era, arrastava-se na

descrição dos momentos infelizes, nas agruras do cotidiano sem dinheiro, nos

impasses com relação a sentir-se decepcionada e injustiçada com relação ao filho que

a agredia maldosamente, sentindo-se um fracasso como mãe, não sei onde errei para

Augusto acabar tão igual ao pai. Tudo fiz e agora ele se comporta assim.

Possivelmente uma referência a sentimentos de decepção consigo e de fracasso com

relação às expectativas que nutria em torno da rapidez do tratamento e eficiência da

mãe-analista.

Pouco a pouco, Carmen foi capaz de regularizar algumas pendências.

Conseguiu finalmente se aposentar e garantir, além do recebimento regular,

provimentos atrasados que lhe deram um pequeno respiro financeiro. O acerto de sua

dívida no tratamento era preocupação freqüente, sentindo-se muito feliz quando podia

fazê-lo, agradecendo a espera e a compreensão. Caso a rigidez analítica não tivesse

permitido uma forma de, apesar dos atrasos financeiros, dar continuidade ao

atendimento, Carmen jamais teria tido condições de dar seqüência ao tratamento.

Foram circunstâncias que foram se colocando, a sensibilidade clínica tendo indicado o

que era possível flexibilizar.

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Por vezes, Carmen angustiando-se após algum embate com Augusto,

telefonava em busca de suporte emocional, perdida e desamparada nestas

circunstâncias. No entanto, em um período em que se encontrava mais fortalecida,

Carmen enfrentou o filho: impôs-lhe contas bancárias separadas para que se

responsabilizasse por seus próprios gastos, assumiu uma divisão nas despesas comuns,

e, atendendo aos insistentes pedidos dele, deixou de lavar as roupas e fazer sua

comida. De forma tragicômica, viveu a situação de negar-lhe sair com seu carro,

interpondo-se na frente do veículo e desafiando-o a passar por cima dela. Marcava o

que lhe pertencia, o carro e a casa, vetando ao filho acesso e controle incondicional,

como se tornara hábito entre eles. Após este embate, algo se fez em direção à

discriminação com relação ao filho. O relacionamento melhorou, dando chances até

mesmo para abraços e gestos carinhosos, procurada pelo filho para esta troca.

Em um momento em que Carmen recebera algum dinheiro, optou por acertar

suas contas atrasadas com a análise, em vez de viajar ao encontro de seus irmãos e de

sua madrasta, convite que recebera em nome da gratidão que nutriam por ela em seu

passado. Dizia sentir-se sensibilizada e desejosa de viajar, porém admitia que havia

outras prioridades que necessitava atender. Estou frustrada, porém não desmoronada.

Quase dois anos após o início do tratamento, sonhou que estava com um

homem bonito de torso nu por quem nutria afeto, ele mergulhava no mar e era por

Carmen admirado. Do outro lado da ponte de estrada de ferro em que se encontrava,

havia um rio onde se divisavam quatro ameaçadores tritões (entidades metade homem

e metade peixe). Ela avisou o homem para não mergulhar ali, aviso que ele

desconsiderou, sendo devorado pelas entidades. Estranhou serem tritões e não sereias,

pois não tinham nada a ver comigo. Associou os tritões ao ex-marido. A seguir,

referiu ter deixado em consignação peças artísticas de sua autoria para vender. Eram

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esculturas reveladoras de uma ―divisão‖ e de algo ―oculto‖: o rosto de um fauno

metade em pedra e metade em bronze, uma peça representando um eclipse e uma

pequena sereia cravejada de pedras. Carmen parecia estar se aproximando da

consciência de sua divisão interna, entre outros significados, caminhando para a morte

um aspecto seu que se exibia negando onipotentemente a realidade. Algo dentro dela

começava a zelar por sua vida.

C. O luto põe-se em marcha: exumação dos mortos

Cuidando de providências no cotidiano e resolvendo situações que havia muito

esbarravam em freqüentes obstáculos, Carmen sentia-se animada com seu

desempenho e satisfeita ao conferir seus recursos. Começava a dizer que se sentia

muito próxima de dar a virada, sinto que estou bem perto.

Nesse período, Carmen começava a pôr em marcha o plano, havia algum

tempo gestado, de exumar os restos mortais de sua mãe, enterrada em túmulo

emprestado de amigos, pois falecera repentinamente. Não tínhamos jazigo, e eu tive

de cuidar de tudo sozinha. Nem velório deu para fazer, pois passei a madrugada

tomando as providências. Tive de acionar seu cardiologista para impedir a necrópsia,

pois ela dizia ter horror de se imaginar toda retaliada. Carmen tivera de ir buscar as

roupas, lamentava não a terem deixado vesti-la. Vestiram-na com o bordado da blusa

ao contrário, e não pude nem ajeitar. Pobre da minha mãe, tão cuidadosa que era

com estes detalhes, e eu não consegui nem que ela fosse enterrada do jeito que

merecia.

Havia algum tempo, Carmen vinha pensando em cremar os restos mortais da

mãe e jogá-los no mar, dando um destino para estas cinzas, o que me daria a

sensação de missão cumprida, dando a ela finalmente o que merecia, um lugar seu.

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Percorreu os crematórios, informou-se detalhadamente das condições em que todo o

procedimento costumava se dar. Questionou muito se teria a garantia sobre as cinzas

que lhe seriam entregues, se conteria a integridade delas sem misturar-se ou

confundir-se com as de outra pessoa. Foi tão insistente e emocionalmente contagiante,

que obteve uma permissão especial para presenciar o reservado procedimento no

crematório. Carmen ainda relutava, ora dizia ser pelo dinheiro, acionando o irmão

para dividir despesas, mas não contava com ele para pôr em marcha esta decisão,

sentindo-a eminentemente de sua alçada. No entanto, este era um processo dolorido e

custoso internamente, e que ainda lhe demandaria um percurso. A angústia e a culpa

poderiam desta vez liberar passagem, para que este encerramento finalmente se

fizesse?

Imediatamente após a longa explanação sobre os restos mortais da mãe e seu

novo destino, na sessão seguinte Carmen revelou que retomara o caminho que a

conduzia ao imobilismo depressivo, aos obstáculos intransponíveis, às auto-

recriminações incessantes. Eram os pseudópodes que a recapturavam de volta à união

em que a separação era impossível, não podendo permanecer viva e ativa, se a mãe

morta seguia seu destino. Recomeçava a tropeçar nos esquecimentos, nas perdas de

chave e do controle remoto do portão. Fracasso nas pequenas coisas do dia-a-dia,

sofro muito com isto. Meu filho fica dizendo que tenho de fazer como minha mãe,

carregar as chaves em corrente pendurada no pescoço, para não perdê-las.

Neste percurso de regressão e mergulho na culpa, Carmen novamente resumia-

se aos afazeres domésticos e a cozinhar para si e para o filho, tentando encontrar aí um

sentido para sua própria vida. Deste modo, ela também enveredava pelo

questionamento em torno da análise. Eu me sinto muito mal de não estar aproveitando

o tratamento como poderia. Percebo seus esforços, confiro sua capacidade como

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analista, mas não consigo fazer a minha parte, sair e ganhar dinheiro. Vou ficando

angustiada, minha pressão sobe e não há jeito de eu conseguir. Agregou que o filho

apontara sua grande melhora naqueles dois anos de tratamento, devendo se preocupar

em se restabelecer melhor, e não interrompê-lo por causa de dinheiro. Disse que vai

me ajudar com os gastos e dívidas, mas eu me sinto muito mal. Eu que sempre fiz

tanto, que consegui sustentar tudo, e agora completamente fracassada.

A resposta de Carmen sugeria, além das oscilações que habitualmente

permeavam seu fluir mental, a presença de resistências ao tratamento. Parecia

constituir-se em recuo após o início da promoção do luto final pela morte de sua mãe.

A psicanalista, no papel de terceiro que ajudava a promover esta separação,

necessitava por ela ser neutralizada ou eliminada, como tantos outros que no passado

podiam ter ocupado esta posição.

Um sonho importante sobreveio: seu cachorro havia desaparecido e ficara

muito aflita porque o adorava. Ele sumira porque minha mãe havia deixado o portão

aberto, e estava fazendo suas tarefas domésticas sem se importar com este

desaparecimento. Fiquei com muita raiva por ela ter deixado o portão aberto e

porque estava desencanada. Observou que achara curioso sua mãe ter aparecido no

sonho. As associações livres levaram Carmen a contar que esse cachorro fora

adquirido por causa da morte da mãe. Seu filho lhe pedira, pois a casa estava

excessivamente silenciosa. Tempos depois, o cachorro afeiçoou-se mais a Carmen,

inclusive defendendo-a quando os dois brigavam. Se ele sumisse, seria uma grande

perda para mim, pois é ele quem me recebe, abanando o rabo quando chego em casa.

Ao acordar, tranqüilizou-se ao ver o cachorro dormindo aos pés de sua cama.

Ao voltar do período em que passei três meses no exterior trabalhando,

encontrei minha mãe excessivamente magra, tinha perdido uns doze quilos, pois

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estava em depressão. Acho que isto foi pelo meu afastamento, somando-se à

responsabilidade de ter de tocar tudo em casa. A depressão da mãe, sua preocupação

e os cuidados com ela; os dólares que custaram tanto a ser ganhos e que, feito o

investimento, foram roubados pela gerente do banco; a decepção amorosa com o

namorado mentiroso e alcoólatra; a morte da antiga cachorrinha. Tudo veio junto,

culminando na morte abrupta da minha mãe.

Algumas faltas de Carmen foram se apresentando no tratamento, uma delas

por crise de diverticulite. Na sessão seguinte, compareceu bastante desanimada,

arrastando-se. Trouxe um cheque, menor do que eu gostaria, mas tive também outros

pagamentos. Vendi a cabeceira da cama de minha mãe que estava há muito para ser

vendida. Foi um custo para acertar com o antiquário, mas acabei recebendo. Suas

queixas se renovavam, com o mesmo teor auto-acusatório e decepcionante sobre si

mesma, mas desta vez reclamando também do funileiro que estava demorando para

concluir os reparos na lataria de seu carro. Carmen indicava sentimentos ambivalentes

em seu sonho e nesta referência ao funileiro, despontando a possibilidade de dirigir

sua hostilidade a quem a acolhia e ajudava, substitutos maternos sem dúvida. Nesta

medida, registrava que estava desanimada para comparecer à sessão, demonstrando

haver algum desagrado quanto ao tempo requerido pela psicanalista para os ―reparos

analíticos a serem feitos‖.

Durante a sessão, Carmen acabou narrando como se dera a compra daquela

cabeceira de cama: Vínhamos pelo trânsito, quando minha mãe viu numa caminhonete

aquela cabeceira. Ela não era dada a caprichos, mas disse que sempre desejara ter

uma cabeceira como aquela. Segui a caminhonete por longo percurso, pois eu fazia

sinal e o motorista não parava. A mãe ficara eufórica, quando Carmen fez a

encomenda para ela, realizada com sua cama de viúva. Agora, como já estava no

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antiquário havia muito tempo, eu pensava em trazê-la para ser minha própria

cabeceira de cama. No final, fiquei feliz que foi vendida e vai para o quarto de uma

menina. Eu também, quando era meninota, recebi de meus pais um quarto completo,

com cama, penteadeira, criado-mudo e armário, era lindo, todo em marfim. Ao final

desta sessão, Carmen solicitou sair para ir ao banheiro. A evacuação era premente. Os

movimentos de expulsão faziam seu trabalho. Quem seria finalmente expulsa nesta

encruzilhada: a mãe ou a psicanalista? Haveria chance desta expulsão, permeada de

dor que a acometia, se tornar o necessário processo de separação e luto do objeto?

A pressão arterial de Carmen permanecia elevada e resistindo aos efeitos da

medicação. A compra de um aparelho para medi-la diariamente, por recomentação

médica, ocorreu em loja do outro lado da rua do hospital em que fora internada e

falecera sua mãe. Sabe que eu até estranhei? Antes quando eu só passava ali de carro,

já me vinha a imagem do ataúde de minha mãe. Que horror! E desta vez, fui à loja,

comprei o aparelho e não tive a mesma sensação.

Ela tinha ido em busca da documentação sobre a desapropriação de um terreno

dos pais. Ao cometer novamente o ato falho de substituir o ano desta desapropriação

pelo ano da morte da mãe, atribuía isso às falhas de memória e à desatenção que tanto

irritavam seu filho. Carmen estava atravessando a rua, tentando encontrar a si mesma

perante o processo de ―desapropriação‖ pessoal que vinha passando desde a perda da

mãe. Ao mesmo tempo, tentava apropriar-se de sua própria vida e história sem atolar-

se em culpa ou memórias paralisantes. Era este um caminho em curso, cheio de

tropeços e armadilhas.

Aos poucos, Carmen foi podendo conferir movimentos próprios que

evidenciavam a existência de forças internas que trabalhavam contra seus propósitos

conscientes. A conta de luz altíssima eu atribuía ao Augusto, com luz acesa de

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madrugada. De repente, constatei que eu própria, havia esquecido o ferro elétrico

ligado de um dia para o outro. Como era possível, Carmen se perguntava, que tendo

tantos problemas financeiros, ainda causasse este desperdício. Eu tinha brigado com

ele sobre isto, mas daí fui pedir desculpas, explicando o que havia ocorrido. Aí

conversamos sobre o meu tratamento e aquela idéia de interrompê-lo para não

gastar. Foi uma conversa muito boa, ele foi legal e me disse que venho melhorando

muito, que não devo interromper.

Estive pensando muito, e você tem toda razão em dizer que vivo do passado.

No meu presente não tenho nada, não saio, não convivo, e também não vejo futuro.

Não há avanço sem separação, como não há separação sem desilusão que inclua o

ódio que separa. Aí residia a luta maior de Carmen: desprender-se do ―morto‖ para

ganhar vida mediante o que poderia permanecer do que se foi. A cabeceira partia, mas

a lembrança poderia ficar, o dinheiro podendo ser investido no que necessitava na

atualidade. Do mesmo modo, sua imagem de outrora, muito mais próxima da

idealização, também se desmanchava. O que poderia disto se restabelecer, em um

padrão realista?

Assim, o tratamento teve continuidade por mais algum tempo. Entre avanços e

recuos, suas oscilações emocionais apresentavam-se, embora paulatinamente tendo

diminuído a magnitude com que em outros períodos haviam se manifestado. O

enfrentamento de suas realidades interna e externa foi ganhando terreno, e Carmen

constituiu um processamento que anteriormente era impossível, em função dos falhos

alicerces de sua constituição e de sua sustentação psíquica. O tratamento acabou sendo

interrompido fundamentalmente, por questões financeiras.

Nesta altura, este relato sobre o “Vivido na clínica”, se detém. Para efeitos

deste trabalho, possui amplitude suficiente para tentar dar conta do objetivo proposto.

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Capítulo III

SOBRE O NARCISISMO

O que teria acontecido a Carmen a partir da morte da mãe, quando destacava

ter-se iniciado a depressão que havia tantos anos perdurava? O que havia retornado à

cena psíquica no luto impossível que se arrastava? Qual elo de sustentação psíquica se

rompera ou fraquejara? A imagem do eu fulgurante de outrora e a amada figura

materna desaparecida sobrepunham-se e confundiam-se. De que perda então se

tratava?

Desta dor, confronto e enfrentamento, Carmen refugiara-se cada vez mais no

vínculo com o filho único, porém, para seu desespero, este tornara-se relacionamento

intensamente conflitivo. A angústia era extrema e, além do mais, traduzia-se em

manifestações somáticas que a abalavam profundamente, entre outras, a sua pressão

arterial indo às alturas. A decepção com Augusto, depois de tanto investimento e

renúncia, era uma dor insuportável, pois aquele em quem investira amplamente seu

projeto desejante, desvanecia-se da condição de idealizado, para transformar-se no

algoz que sentia torturá-la injustamente. Chorava a perda do sonho, a falha do projeto,

a incapacidade de constituí-lo espelhado na imagem idealizada de si mesma. Era o

reavivar de uma ferida narcísica, aberta uma vez mais.

Sentia-se à beira do abismo, assolada pelo desamparo diante da provável

separação e ruptura com o filho após a perda da mãe, ambos sustentáculo vital na sua

existência. Assim, as idéias de suicídio eram freqüentes, depositando a expectativa de

ser salva por meio do tratamento, último recurso que dizia empreender.

Na relação analítica projetava uma vez mais sua demanda de amor e sua

fantasia onipotente, refletindo o colorido idealizado com que Carmen revestia o

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vínculo inicial no tratamento. No terreno dos ideais, Carmen sufocava-se e submergia,

parecia não ter construído uma estrutura habitável, uma solidez egóica cimentada na

relação com a realidade.

Estava inativa profissionalmente havia anos e falida financeiramente mais

recentemente, principalmente após a reforma da casa comprada em ruínas. O sonho de

lá viver em companhia do filho e retomar seu trabalho em artes plásticas perdia

sentido a partir das dificuldades de relacionamento que enfrentavam. Restava o sonho

desabitado, a mortificação infinda pela frustração com o investimento idealizado, a

decepção pela recuperação que não se dera. E, sobretudo, o gosto amargo do que

sentia ser mais um fracasso pessoal, agravada pela idade madura que sentia não lhe

reservar tempo suficiente para reerguer-se ou constituir o que sentia lhe faltar.

Algo resistia ao encerramento de seu sofrimento, fazendo Carmen se perguntar

sobre qual teria sido sua falha, seu crime. Sentia o peso da autopunição que se

renovava melancólica e ressentidamente, fazendo-a vítima desesperançada de uma

vida que se tornara extremamente esvaziada, solitária e infeliz.

Este retrato da condição da paciente quando chegou para tratamento indicava a

importância de um estudo aprofundado sobre sua tessitura narcísica. Sendo um dos

pilares em que se assentava a investigação deste trabalho, em torno da perda que

conduz à ruína do eu.

A. A tessitura narcísica

A importância do conceito de narcisismo reside no fato de ser o eixo em torno

do qual se estruturam os alicerces da subjetividade, erigindo-se o edifício do eu, que

estará sempre em construção ao longo da vida. É por meio do narcisismo que se dá o

investimento de que somos alvo antes mesmo de existirmos, inscrevendo com

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anterioridade a herança desejante dos pais, sem a qual não poderíamos ser quem

somos. Somente pelo narcisismo do ego é que se pode amar e proteger a si mesmo ao

longo da vida, defendendo-se dos ataques a que se está sujeito pela pulsão de morte,

pelas investidas do objeto e nos embates com a realidade externa. É ainda na morada

do narcisismo que se abre uma janela para o mundo dos objetos, destino revelador das

pulsões e por meio do qual se desvela o mais básico do humano, um ser nascido para

viver em relação com o outro e o mundo externo.

O objeto abriga a semente de vida psíquica, seja porque dele emerge o que

imprime no animal a condição humana, seja porque, se ao objeto não é possível

ascender, resta a fatalidade de se encerrar no mundo dos próprios impulsos, elegendo

a si mesmo como objeto. Fecham-se as portas da possibilidade de realização da

natureza social e relacional do ser humano. Nesta circularidade extrema, após uma

vida que encarna este drama, é possível que se feche o próprio destino com o clímax

da morte antecipada, uma vez o sofrimento insuportável de ser humano e não poder

sê-lo.

Em outra direção, o narcisismo pode ser ainda a via pela qual o sujeito se

aliena no objeto amado, não podendo dele se separar, desistir ou deixá-lo partir, pois

não sabe existir sem a seiva da qual depende. Não divisa a possibilidade de, mediante

o ódio pela separação e pela perda necessárias, construir a rica oportunidade de se

dirigir aos substitutos que o devem suceder, fertilizando a continuidade da vida

psíquica. É neste fluir que pode se ampliar o horizonte de alternativas, que pode se

criar o mundo para o sujeito, liberando-o da condenação de estar alienado ao destino e

ao desejo do objeto amado, sem trajetória própria. Criando-se, desse modo, a

possibilidade de perder o objeto para não se perder enquanto sujeito, pois este sim é

único e insubstituível. Descobrir a possibilidade de reconquista interna do objeto

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perdido pelo processo introjetivo combate o empobrecimento subjetivo pela via segura

que o instala no interior do próprio sujeito.

Neste ponto, pode-se lembrar do que reiterou MIGUELEZ (2005)

[...] o conceito de narcisismo está longe de ser uma clara unanimidade. Um

dos mais complexos da psicanálise, ele resulta da articulação de vários

termos: pulsão, objeto de pulsão, libido, eu, auto-erotismo, outro – para

mencionar apenas alguns. Mais do que um simples conceito, ―narcisismo‖ é o

resultado de uma complexa articulação conceitual. (p. 11)

Além do mais, relembrou que este conceito situa-se como uma dobradiça entre

a oposição pulsões sexuais/pulsões de autoconservação, e aquela que adveio

posteriormente em 1920, entre pulsões de vida/pulsões de morte. Em seu entender,

sendo o narcisismo um conceito plural, ele referiu-se a derivações que perdem a

riqueza de sua especificidade ao se tentar confluir em um só conceito cada uma das

faces que apresenta. Para tanto, exemplificou com as noções de ideal do ego e ego

ideal, o narcisismo participando em ambas, porém de modo distinto. Além disso, ele

salientou que mesmo que se possa considerar o narcisismo anobjetal como pretendia

Freud, a ausência de objeto não significa ausência de objeto de pulsão, uma vez que é

o próprio eu investido de pulsão, pedra angular do conceito de narcisismo.

Para pensar sobre o narcisismo, é muito difícil isolá-lo totalmente, estudando-o

em si mesmo, pois, como disse GREEN (1988), ―ele é o próprio coração de nosso

Eu‖. No movimento que não quer saber a não ser de si mesmo, o sentido do

narcisismo só é desvendado na oposição do objeto ao eu. Nas relações complexas que

compreende, para alguns autores norteados pela teoria das relações objetais, as

relações do eu consigo mesmo são narcísicas, um modo de conciliar o importante

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conceito do narcisimo com a existência de relações objetais desde o início da

constituição mental. Além do mais, a estrutura psíquica do sujeito conta com a

participação dos objetos da realidade, constituindo o que para o sujeito serão o objeto

real e o objeto da fantasia, o que estabelecerá uma relação conflitiva com o eu. São

estas apenas algumas das questões que coloca o estudo do narcisismo.

Tendo em vista o caso de Carmen, considerou-se imprescindível o estudo de

diferentes aspectos da constituição narcísica. Seja no sentido da herança dos pais no

narcisismo primário, na direção da transmissão psíquica geracional, na orientação da

construção do amor a si mesma, como na natureza das relações de objeto amplamente

coloridas pelo aspecto narcisista, sendo este um aspecto significativo em todas as

relações que mantinha, fossem elas com objetos internos ou externos.

Sobre o narcisismo primário

Um dos importantes conceitos abrigados sob a égide da estruturação narcísica

da subjetividade é a noção de narcisismo primário, conceito que passou por diferentes

enfoques ao longo da obra freudiana. Inicialmente, FREUD (1914) o definiu como um

estágio do desenvolvimento libidinal, entre o auto-erotismo e a escolha objetal.

Estando presente em todos, pertence à patologia apenas a fixação nesse estádio

narcisista, ou suas formas excessivas, relembrou KAUFMANN (1996).

Em alguns casos, este narcisismo manifesta-se dominantemente, adquirindo o

caráter de uma escolha de objeto narcisista, como indicou Freud em seu texto magno

de 1914. Nesse tipo de escolha, a pessoa amaria o que ela própria é, o que ela própria

foi, o que ela própria gostaria de ser, ou alguém que uma vez foi parte dela mesma.

Em contrapartida, no caso da escolha objetal anaclítica, o indivíduo amaria as pessoas

que o alimentaram, protegeram e que dele cuidaram, deslocando este amor para os

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substitutos que venham a sucedê-los ao longo da vida. Estes dois tipos de escolha

objetal são possibilidades em aberto para o indivíduo, embora em cada qual possa

haver predominância de um ou de outro tipo.

Fundamentalmente, nessa introdução de seu estudo sobre o narcisismo,

FREUD (1914) define o narcisismo primário como fruto da projeção do narcisismo

dos pais sobre o filho desejado, antecedendo seu nascimento e sendo determinante do

lugar que essa criança ocupará nesse projeto desejante. No imaginário dos pais, o filho

deverá realizar o projeto com o qual o investiram. Este narcisismo renascido dos pais

é a origem do amor objetal pelo filho, revelando sua natureza anterior. Assim,

conforme bem lembrou MAGALHÃES (2004), o narcisismo primário, não sendo

passível de ser observado, é um construto teórico que indica união e separação entre

pais e filho, e esta é a origem da estruturação narcisista do filho, constituindo alicerce

da sua subjetividade. Com total anterioridade, este filho vem ao mundo para encarnar

um projeto do Outro, permeado da fantasmática parental, trazendo consigo os mitos

que são transmitidos transgeracionalmente.

É de intensa discussão na Psicanálise a afirmação de Freud sobre o narcisismo

primário como conceito rigorosamente anobjetal. Considera-se com MAGALHÃES

(2004) que aí residiria a dificuldade de se produzir como seu derivado a constituição

de separação e alteridade, determinante da existência fundamental do objeto para a

estruturação psíquica do sujeito. Por outro lado, sem nunca deixar de existir, o

narcisismo primário resulta no narcisismo secundário, que, por sua vez, consiste no

retorno para o ego do investimento libidinal que fora dirigido ao objeto,

transformando a libido objetal em libido narcísica.

No tema do narcisismo, encontram-se envolvidas ao mesmo tempo a formação

do eu e a questão da apreensão do objeto. Assim, oferece a oportunidade para se

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conferir o que mais tarde na patologia constituirão pontos de fixação e ocasiões de

regressão (KAUFMANN, 1996). A idéia de investimento libidinal nos objetos

externos, previamente ao investimento no próprio eu, posição adotada por Freud a

partir de 1923, destaca o fundamental papel estruturante do objeto para a formação da

representação do eu próprio, a imagem de si. E, assim, poder tomar a si como objeto

amoroso, tal como anteriormente fora tomado o objeto primário.

O eu é responsável por uma imagem sintética de si, pela administração de uma

organização interna, sendo encarregado dos investimentos que são administrados pelo

aparelho psíquico e protegendo-o de forças externas que possam atingir com mais ou

menos violência sua superfície (BERLINCK, 2000).

Quando o eu adoece, ele se torna despersonalizado e sujeito a paixões.

Tornamo-nos sujeitos a impulsos que não controlamos e apresentamos uma

incapacidade de nos proteger dos estímulos do mundo externo. O eu se

enfraquece também quando nos deixamos enamorar e ficamos muito

identificados com um objeto. (p. 172)

O narcisismo dos pais encrustrado no amor ao filho é fundador do narcisismo

neste novo psiquismo. Este ―amor ao objeto‖ dos pais norteia-se em tomar a si

próprios como referência nesta escolha e investimento objetal narcísico. Compreende,

assim, o retorno do investimento amoroso no filho para o próprio ego; a formação de

uma ―imagem de si‖ no filho que é fundamentalmente baseada no objeto, o que

promove um viés nesta representação de seu próprio eu. Além de essencialmente

constituir uma escolha objetal anaclítica dos pais que concorre com a predominância

da escolha objetal narcísica, o filho sofrendo seus efeitos. São estas algumas das

questões em torno do narcisismo que se colocam quando se enfoca a problemática de

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constituição da subjetividade, implicando a união e a separação do sujeito em relação

ao objeto.

Em seu avanço teórico, Freud, ao postular a segunda tópica no texto ―O ego e

o id‖, de 1923, diferenciou as instâncias psíquicas id, ego e superego, assim como

apontou ser o id o reservatório da libido. O eu apenas seria alvo de investimento

libidinal secundariamente, quando o ego retiraria a libido dirigida aos objetos para

redirecioná-la a si, transformando a libido objetal em libido narcísica. Nesta medida,

considera-se junto com MAGALHÃES (2004) que, apesar de não comungar com a

mesma visão de Freud neste momento teórico, ressaltou a importância desta revisão

do conceito de narcisismo primário, considerado a partir de então

[...] um primeiro estado de vida, anterior até à constituição de um ego, sendo

que a distinção entre auto-erotismo e narcisismo é suprimida. Esta concepção

de narcisismo primário é a mais comum atualmente no pensamento

psicanalítico... este narcisismo como um estado rigorosamente anobjetal, ou

pelo menos indiferenciado, sem clivagem entre sujeito e o mundo externo. (p.

53)

Um aspecto relevante é o fato de que o narcisismo primário é constitutivo do

psiquismo, relacionando-se diretamente com o desejo e a fantasia dos pais em torno da

criança que idealizam para seu filho, e, desse modo, imbricando-se no seio da noção

de Complexo de Édipo. Entendendo-se com MAGALHÃES (2004), que o triângulo

está sempre presente, mesmo quando um dos pais está ausente, qualquer que seja o

motivo. Isto porque o próprio desejo de se ter um filho, assim como a realização da

célula narcisista, sempre ocorre em relação a um terceiro, o qual pode ser repudiado

(forcluído), renegado, reprimido ou desejado. Na célula narcisista, a mãe representa

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para o filho o que se passa, sendo que as representações, as identificações, têm a

natureza de ser por si a presença de uma ausência.

Concorda-se com FAIMBERG (2001) que ―A história não é transmitida sob

forma de mensagem explícita, mas está relacionada com o modo do dizer e do não-

dizer dos pais‖ (p. 85).

A constante exclusão dos homens na família matriarcal de Carmen; a

concepção de Augusto fora do casamento e a fantasia onipotente de tê-lo como o filho

ideal, reunindo aspectos privilegiados do pai biológico e do pai legal; o segredo

compartilhado com a mãe; sua cumplicidade com o marido em torno da infertilidade

masculina não explicitada, estes são alguns dos dados de uma história que foi

representada para Augusto sem que nada lhe fosse explicitado até a idade adulta,

algum tempo antes do início do tratamento de Carmen. Parece que meu pai não é meu

pai, de tanto que me faz sofrer com seu comportamento sádico, era a fala de Augusto

ainda criança.

Os aspectos anteriormente referidos fazem parte do ―não-dito‖ que é

transmitido e são reveladores de fantasias que permeiam, em parte consciente e em

parte inconscientemente, os investimentos parentais que são destinados ao bebê

mesmo antes de seu nascimento. Neste cenário, a subjetividade de Carmen indicava

ter sido alvo e também promovedora de marcas profundas e determinantes,

configurando a hipoteca a que estavam sujeitos tanto ela quanto Augusto. Refletindo-

se em ambos a não apropriação de um lugar de sujeito em sua própria história.

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Sobre o ideal do ego

Em seu livro La maladie d’idéalité, CHASSEGUET-SMIRGEL (1990)

retomou a evolução do conceito de ideal do ego na obra de Freud. A seguir, há uma

breve síntese de pontos importantes que essa autora destacou.

Na concepção de 1914, o ideal de ego foi definido por Freud como herdeiro do

narcisismo primário, envolvendo a projeção deste narcisismo sobre os pais e

norteando-se pela busca da fusão com o objeto primário. Distingue-se, desse modo, da

noção de um ideal referido à identificação aos modelos parentais e ideais coletivos

que são introjetados, como conceberia Freud mais tarde, em 1921. Por outro lado, o

ideal do ego diferencia-se do conceito de superego, introduzido posteriormente em

1923, este último considerado como o herdeiro do Complexo de Édipo, com função de

barrar o incesto e figurando como a instância de observação crítica e consciência

moral.

Sendo o substituto da perfeição narcísica primária, como foi concebido

inicialmente, o ideal do ego encontra-se inteiramente relacionado à prematuridade

humana e à impotência primária do bebê, projetando sobre o objeto sua fantasia de

onipotência narcísica, de modo a constituí-lo como seu primeiro ideal de ego, tentando

perseguir eternamente esta parte de narcisismo que a desfusão primária lhe tomou.

Nutrindo nostalgia do passado, na fantasia de que era suficiente por si mesmo

e constituía seu próprio ideal, o ser humano mantém em seu ideal do ego o papel de

motor que o impulsiona para frente em seu desenvolvimento, estando, portanto, a

serviço de Eros. A cada etapa, gratificações suficientes para que não busque retornar,

como frustrações suficientes para que não tenda a se fixar e deter seu avanço no

desenvolvimento. A mãe deve ajudar a criança a ter esperança em sua evolução e a

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projetar ―adiante de si mesmo‖ seu ideal de ego, que para sempre guardará

características narcísicas.

Cada nova aquisição da evolução infantil resulta na perda, pelo menos parcial,

do objeto, como do modo de ser precedente, implicando em luto que conduzirá à

aquisição da coesão egóica e a valorização de suas diversas funções. Tal condição

gera tensão entre o ego e o ideal do ego, como depende do delicado papel materno de

confirmação narcísica. Este pode oscilar entre o muito que diminui a distância entre o

ego e o ideal do ego, e o pouco que pode subtrair do ego sua megalomania, podendo

conduzi-la à extinção prematura. Idéias de Grunberger que foram destacadas por

CHASSEGUET-SMIRGEL (1990).

Toda satisfação narcísica é acompanhada de uma diminuição da distância entre

o ego e o ideal do ego, resultando de um reinvestimento do ego por um quantum de

libido narcísica liberada. Por outro lado, o acesso à realidade só é possível na ausência

da satisfação total dos desejos, pois esta, tendo por base a união à mãe, pode impedir a

diferenciação de instâncias e o desenvolvimento de funções egóicas. A operação de

substituições por objetos sucessivos pela via de deslocamentos, compreendida nas

atividades simbólica e sublimatória, pode permanecer impedida, caso a fantasia

onipotente desta união mãe–criança perdure.

O ideal de ego edipiano, além de reunir os ideais de ego pré-genitais, tem a

missão de integrar as organizações pré-genitais, englobando uma correspondência

entre o desenvolvimanto do ego e da libido. Integrando as identificações resultantes

das diferentes etapas da evolução, nele reside a promessa de realização narcísica, que

é fantasiada no coito genital. Toda lacuna nesta integração é vivida, no nível do ideal

do ego genital, como castração.

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Quanto mais se afasta de 1914, são mais raras as alusões de Freud a esta noção

de ideal de ego como projeção do narcisismo sobre os pais, configurando-se mais

como a incorporação dos pais idealizados. Assim, passando de um ideal de ego que o

sujeito constitui por si mesmo, a fim de reconquistar sua perfeição perdida, para

constituir-se em ideal de ego referido aos modelos parentais.

Se no momento teórico em que se ocupou com o estudo do narcisismo, Freud

estabeleceu distinções, adiante em sua obra empregou de modo indiscriminado as

instâncias de ego ideal e ideal de ego, como por vezes também intercambiou ideal de

ego e superego, promovendo ambigüidades conceituais que nem sempre foram

completamente superadas ao longo de seus escritos. Entretanto, cabe relembrar que,

enquanto sua teoria se ocupava da conceituação sobre o narcisismo, o superego era

reconhecido apenas como um ―agente de censura‖. Anos mais tarde, assentou o ideal

do ego como uma das partes constitutivas do superego, instância psíquica definida, em

1923, no texto ―O ego e o id‖ como herdeiro do Complexo de Édipo, inclusive

apontando que o superego derivava das primitivas relações objetais da criança, como

indicou em caráter elucidativo o editor inglês STRACHEY (1969).

Coincidindo com outros autores, CHASSEGUET-SMIRGEL (1990) não

considerou necessária a distinção entre ideal do ego e ego ideal, uma vez que o ego

ideal consiste nas diversas maneiras de reconquista do narcisismo perdido. No

entanto, como a maioria dos autores não utiliza estes conceitos indiferentemente,

recorre-se às definições de LAPLANCHE e PONTALIS (1976). O ideal do ego sendo

instância resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das

identificações com os pais constitui um modelo ao qual o indivíduo procura

conformar-se, servindo de referência para apreciar as suas realizações efetivas. E, por

seu lado, o ego ideal é definido como formação intrapsíquica que constitui um ideal

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narcísico de onipotência forjado a partir do modelo do narcisismo infantil, que o

indivíduo toma como objetivo reconquistar.

Quando alguém é concebido, funda-se um Eu ideal (―Ele ou ela será aquilo

que não fui.‖) que se traduz na consigna ―sua majestade o bebê‖. Mas funda-

se, também, um Ideal de eu (―Ele ou ela será aquilo que não fui, mas desejava

ter sido.‖) que remete o sujeito para fora da instituição familiar de origem. A

felicidade, no Ocidente, é, pois, realizar o irrealizável, ou seja, preencher a

falta parental (―ser o que não sou‖) mas, também, realizar o sonho parental

(―ser o que desejava ter sido mas não sou‖) que implica numa transgressão.

(BERLINCK7, 1997, p. 45).

A título de conferir o lugar da noção de ideal do ego junto à teoria das relações

objetais, destaca-se que o pensamento de Klein refere-se à idealização em

contraposição à persecutoriedade, sendo aquele um mecanismo defensivo para refutar

a ação da pulsão de morte no organismo. O objeto idealizado é alvo da identificação

projetiva das boas partes do próprio sujeito, e será reintrojetado nesta condição, dando

origem ao objeto interno idealizado, com o qual o sujeito se identifica. Cabe ressaltar

que esta objetalização do ideal distingue-se da noção de Freud baseada na teoria do

narcisismo primário e ligada ao seu desenvolvimento como formação espontânea. Por

seu lado, Rosenfeld, seguidor das idéias de Klein, destacou o papel das identificações

aos objetos idealizados portadores do narcisismo do sujeito, sejam eles parciais ou

totais, para a constituição do ideal do ego. No entanto, na visão de CHASSEGUET-

SMIRGEL (1990), estas identificações deveriam ser consideradas mais

7 Este autor entende a transgressividade, neste contexto, como implicação de uma superação dos limites impostos

pela tradição familiar.

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apropriadamente como efeito do ideal do ego, cujo objetivo seria o de diminuir a

margem que separa o sujeito do ideal do ego, e, assim, incluir os objetos idealizados.

Além de distinguir as noções do ideal do ego e do superego, CHASSEGUET-

SMIRGEL (1990) considerou ser claramente identificável que o ideal do ego não seja

absorvido pelo superego, podendo inclusive entrar em conflito com ele. Por exemplo,

nos casos clínicos em que há imensa dificuldade em conformar-se às exigências

impostas pela realidade e pelo superego enquanto representante da lei e advindo da

identificação com o superego das imagens parentais. Conforme sugeriu, mesmo um

superego bem estabelecido não chega a fornecer ao homem os alimentos narcísicos do

qual tem necessidade para uma evolução harmoniosa, o sujeito conciliando as

exigências de seu superego com os antigos desejos de completude, e desse modo, o

ideal do ego podendo mesmo atingir uma boa convivência com o superego.

Carmen revelava-se infeliz e encontrava-se melancolizada por não conseguir

atingir as expectativas do ideal de ego, constituído a partir de seu próprio narcisismo e

pelo qual se balizava, o que a fazia se sentir, reiteradamente, um fracasso. Seu

abastecimento narcísico atingido, ao não conseguir alimentá-lo por intermédio de suas

realizações, e assim tentar aproximar-se das exigências de seu ideal, ela restava

decepcionada por seu desempenho efetivo e inferiorizada perante os outros e a própria

realidade.

O ego ideal sendo sacrificado, os modelos que lhe serviam de referência a

partir da identificação com os pais pareciam apenas lhe servir para indicar sua

insuficiência e sua inferioridade. Se, por um lado, traçara a meta narcísica de superá-

los, quando chegava ao início de seu envelhecimento, conferia sua defasagem. E, além

do mais, padecia enormemente pela realidade das insuficiências do filho, enquanto

investido e idealizado para ser uma Carmen de sucesso incondicional. Planejado,

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gerado e educado para tanto, fruto flagrante não apenas de seu narcisismo materno,

mas de suas identificações projetivas maciças.

Fazendo de Augusto o representante no mundo externo em quem projetava o

drama e os conflitos que vivia em torno dos seus ideais e da ação de seu superego, ela

sentia-se profundamente inferiorizada com as críticas contundentes que ele lhe tecia,

como experimentava a enorme infelicidade de não poder ser mais aquela de quem o

filho poderia se orgulhar e em quem se espelhar. Ao mesmo tempo, quando sentia que

Augusto poderia estar reproduzindo identificatoriamente seus mesmos conflitos e

impasses, lamentava-se e crucificava-se, ora por se sentir culpada em ser um mau

modelo, ora por afogar-se na raiva de vê-lo não conseguir ter um destino melhor do

que o dela, com todas as capacidades que contava e as condições que procurara lhe

ofertar. Ao final, ambos padecendo do fracasso do ideal e fenecendo de evidente

projeção da função superegóica, com frequência imputando um ao outro a

responsabilidade pela respectiva condição.

Sobre a transmissão psíquica geracional

Considerou KAËS (2001) que a perspectiva aberta por Freud, em 1914, no

texto ―Sobre o narcisismo: uma introdução‖, coloca o sujeito singular como elo, o

servidor, o beneficiário e o herdeiro da cadeia intersubjetiva de que procede.

Acrescentando: ―[...] sempre aparece necessidade de transferir-transmitir para um

outro aparelho psíquico o que não pode ser mantido e albergado no próprio sujeito, ou

entre sujeitos ligados entre si por uma forte aliança de interesses inconscientes‖ (p.

16). Por outro lado, podendo emergir a urgência de interromper esta transmissão, o

sujeito tenta sair de um lugar alienante, no qual se sente instalado pela herança

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inconsciente recebida, para realizar a aquisição apropriativa do que recebe, assumindo

o pensar sobre a herança e seu lugar.

Pensando no caso clínico de Carmen, havia indicações de ela ter sido a filha

desejada por uma mãe narcisista, mulher que sofrera a perda de seu grande amor na

guerra, amando a prole como extensão de si mesma, sem espaço para separação e

perda. Realizava-se no papel materno, e assim sacrificava ser a mulher de um homem.

O pai de Carmen jamais parece ter sido reconhecido para além do papel de reprodutor

e provedor. Possivelmente tendo realizado o desejo feminino em relação a outro,

aquele que na guerra fora perdido para sempre, mas, que na fantasia, podia

eternamente estar presente mediante aquele deslocamento exclusivo em direção à

prole, união idealizada e indissolúvel mesmo após a morte. E, assim, podem ser

divisados estes ecos inconscientes repetidos por Carmen junto à mãe e ao próprio

filho.

Sob o poder da hábil matriarca que parecia ter sido a mãe de Carmen, teriam

restado o homem enfraquecido e a prole subjugada sem uma figura paterna forte o

suficiente para se contrapor à soberania materna. Configurando-se complexa trama

narcísica no seio da família, imprimindo-se no mais íntimo de cada um deles e

sacrificando a existência separada, conseqüentemente a triangularidade edípica para

sempre comprometida.

A mãe de Carmen indicava traços identificatórios marcantes com sua própria

mãe, viúva precoce vivendo para os filhos e depois para os netos. Os homens

condenados à condição de excluídos, pois não sendo reconhecidos eram impedidos de

se constituir em parceiros de um casal efetivo junto aos filhos. Essencialmente,

revelavam-se sujeitos alijados no desejo narcisista das mães desta família, posição de

impotência fálica que se reproduzia nos homens pelo menos por três gerações. Assim,

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a transmissão psíquica geracional parecia ter contribuído de modo determinante para o

lugar a ser ocupado por Carmen, como filha e como mãe, necessitando dele se libertar

pela apropriação da própria herança, o que modificaria seu lugar de sujeito nesta

história. Caso isto fosse possível, abriria espaço para construir uma posição de mulher

para um homem, assim como de uma mãe que pudesse reconhecer a alteridade do

filho, admitindo as diferenças que o constituíam, sem ressentimento ou vingança.

Essa complexa trama narcísica enovelava a todos nesta família,

comprometendo destinos antes mesmo do nascimento. Transparecia

inconscientemente determinado que a triangularidade fosse desconsiderada ou apenas

uma roupagem, mascarando a ligação impenetrável entre mães e filhos, para

fundamentalmente se perpetuar entre eles uma união narcísica, fusional e

indiferenciada. Essencialmente, o outro sendo sentido por estas mulheres como

complemento de satisfação narcísica mediante o qual reafirmavam sua potência fálica,

fosse ele o homem ou o filho. Deste modo, há pelo menos três gerações parecia reinar

absoluta, ―Sua majestade, a mãe‖8.

Considerando-se outro ângulo de idealização narcísica, FREUD (1914)

destacou:

Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens

permanece fria, há um caminho que leva ao amor objetal completo. Na

criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta como um

objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, podem então dar

um amor objetal completo. (p. 106)

8 Expressão cunhada pela autora deste trabalho, por similaridade à expressão freudiana ―Sua majestade,

o bebê‖.

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Como derivação paralela desta posição de mãe-soberana inconteste, o sistema

narcisista na família de Carmen deflagrava-se na atribuição de todas as perfeições ao

filho, colocando-o como o centro e o âmago da criação. ―Sua Majestade, o bebê‖.

Augusto fora alojado em posição em que outrora os pais imaginavam para si próprios,

e com a função de concretizar os sonhos dos próprios pais que jamais conseguiram ser

realizados, foi assim que FREUD (1914) concebeu. O sistema narcisista enlaçava

Carmen e Augusto na armadilha amorosa que obstaculizava a cada um deles ter um

destino por si. Figurando no terreno dos ideais e nas idealizações de parte a parte,

emergiam representantes simbólicos desse universo fantástico na concreta relação

entre mãe e filho. Mantinham uma relação permeada de identificações inconscientes

que diziam respeito ao que se recorda que FAIMBERG (2001) abordou como o

―tempo narcísico do Édipo‖e salientou ser regido pelas funções de intrusão-

apropriação características da regulação narcísica. Indicou também que Freud, em seu

estudo sobre o narcisismo de 1914, apontara que a criança poderia permanecer cativa

dos ideais narcísicos dos pais. O conceito de desamparo inicial sendo indispensável

para a compreensão deste processo de enxerto do narcisismo parental no filho. Além

disso, o reconhecimento do filho como separado de si exigiria a elaboração desse

narcisismo parental, a fim de poderem se situar em verdadeira posição edipiana, e

assim favorecendo a constituição da triangularidade no psiquismo da criança.

Retomando a síntese realizada por FAIMBERG (2001) em alguns de seus trabalhos

[...] o amor que o ego dedica a si mesmo e aos objetos, baseado na sua ilusão

de ser o centro e o senhor do mundo. Esse amor passa pelo ego, que se ama

como objeto, e esse amor, assim como essa ilusão, está relacionado com a

própria constituição do ego. (p. 79)

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A contradição abrigada pelo narcisismo seria de que, por sua própria origem,

necessita da aprovação do outro, inicialmente pai e mãe. E, ao mesmo tempo, declara-

se auto-suficiente. Isto explicaria, na opinião desta autora, porque clinicamente a

relação possa ser ao mesmo tempo uma relação objetal e uma relação narcísica.

Com a concepção de Augusto, Carmen concebia um filho para si e segredava

sua origem apenas para a própria mãe, fantasiando o que isto proporcionaria à velha

senhora: um filho com carga genética bela e máscula, com o qual presenteava a mãe;

um filho assumido por um marido enfraquecido e destituído de um digno lugar como

homem; e, ainda, um filho de origem clandestina, concretizando possivelmente a

fantasia de um filho incestuoso, que, ao partilhar com a mãe o segredo, Carmen

poderia ter tentado aplacar a fúria materna que poderia advir. Estes poderiam ser

alguns dos significados daquele filho que vinha ao mundo sem destino próprio,

herdeiro de uma história da qual parecia estar tentando na idade adulta se libertar. Por

meio do agressivo repúdio, procurava o caminho da desidentificação, condição da

liberação do desejo e da constituição do futuro, como destacou FAIMBERG (2001),

caminho que Carmen ensaiara algumas vezes na juventude, sempre sucumbindo pelo

afeto e dependência em relação à figura materna.

Amor a si mesmo

É uma longa história do narcisismo primário absoluto à sexualização das

pulsões do eu, indicou GREEN (1988). A unificação das pulsões parciais, que ocorre

antes de o eu conceber a si mesmo como ser inteiro, limitado, separado, é uma das

realizações de Eros. Esta unificação se dá ao preço de não poder ser mais do que eu, o

amor por si mesmo sendo uma compensação pela perda do amor fusional com o

objeto.

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MIGUELEZ (2005) destacou que, para Freud, o narcisismo primário infantil,

por ser tramado numa rede intersubjetiva, a supervalorização que advém dos pais pode

gerar uma visão supervalorizada de si mesmo.

Retomando o caso de Carmen quando chegou para o tratamento, sua libido

narcísica se excedia demasiadamente, como advertiu FREUD (1917[1915]),

configurando seu afastamento progressivo do mundo externo, ressentida pela perda e

pela decepção com os dois objetos amorosos mais significativos ao longo de toda sua

vida: a mãe e o filho, respectivamente. Assim, a libido previamente dirigida a estes

objetos em forma de escolha amorosa retornava a um estado de libido narcísica, o que

tornava Carmen recrudescente em relação a novos investimentos libidinais.

Seu eu padecia, por vezes, do excesso amoroso que o esvaziava narcisicamente

em favor do objeto amoroso, uma hemorragia do eu em proveito da libido de objeto,

que fragiliza o eu assim desprovido de narcisismo. Então, o objeto amoroso sendo

superinvestido, Carmen se entregava a tentar encarnar o ideal para este objeto também

idealizado, como salientaram as palavras de KAUFMANN (1996) retomando as idéias

de Freud.

O narcisismo do eu, fundamentalmente secundário na visão freudiana, seria

egresso desta retirada de investimento libidinal previamente dirigido aos objetos. O eu

se oferecendo então como objeto de amor para si, desta feita mais desenvolvido e

fortalecido do que o ego corporal que inicialmente encontrava-se em estado

indiferenciado com o id (FREUD, 1923). A idéia de investimento libidinal nos objetos

externos como sendo prévio ao investimento no próprio eu, indica o valor estruturante

do objeto para a formação da representação do eu, a imagem de si. E, assim, o eu

poder tomar a si como objeto amoroso tal como fora tomado o objeto primário.

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Algum tempo após o nascimento de Augusto, Carmen com o filho desejado

nos braços finalmente decidiu pela separação conjugal, levando alguns anos o litígio

promovido pelo marido que não desejava se separar. Como compensação do que

reputava enorme sofrimento em sua vida, Carmen adquiriu um vistoso carro esporte

conversível, que imaginara presentear a Augusto para que se beneficiasse do brilho e

destaque que Carmen, por meio dele, buscava reconquistar. Seu filho era fiel herdeiro

dos ideais de Carmen, assim, a hipoteca narcísica deste carro os impedia de dispor

deste bem material para sanar agudas necessidades financeiras. Congelados no ideal e

na fantasia de triunfo narcísico compartilhada, permaneciam impedidos de assumir os

próprios limites e lidar com as restrições da realidade.

O palacete de Carmen, emergindo da reforma de uma casa em ruínas com o

emprego de materiais de demolição, indicava a categoria idealizada em que se

inscrevia esta construção. Era mais um dos contrastes de sua vida, Carmen oscilando

entre os estados melancólicos que a faziam afundar e as reações maníacas que a

lançavam às alturas, à procura de uma medida que pudesse lhe dar alguma

estabilidade e enraizamento na realidade. Eu tenho um pé no céu e um pé na terra,

esta sou eu, não sei ser de outro jeito.

A casa que Carmen erigira era mais um de seus projetos superdimensionados,

fadado a revelar em algum momento sua falta de sustentação. Onipotentemente

imaginada como solução financeira e habitação idílica para ela e para o filho, Carmen,

ao concebê-la, afastava-se da própria realidade financeira e desconsiderava que entre

eles o relacionamento era extremamente conflitivo havia algum tempo.

Cabem aqui as perguntas de CERVINI (2003): De que obra se tratava, a

construção desta casa? O que Carmen queria reconstruir, ou necessitava reparar? Após

a morte da mãe, a depressão que a acometera e os abalos na relação com Augusto,

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parecia haver muitos ―restos de demolição‖ que necessitavam ganhar nova vida para

que ela pudesse se reerguer. Ela não medira esforços para torná-la a morada de sua

imaginação, nela imprimindo traços arquitetônicos do país de origem dos pais,

apontando ter a casa muito de si. Era casa para se amar ou para se odiar, conforme

indicara um corretor de imóveis. Espaço da infância, abrigo uterino, lugar exclusivo

para ser compartilhado entre mãe e filho. Seria este um desejo habitável, um espaço

para trabalhar com as heranças familiares, com os restos edípicos, a construção da

mulher e a habitação da feminilidade?

Em que posição predominante Carmen poderia ser vista, diluída ou projetada

no objeto, sem vida própria e esvaziada do valor que nele imprimia, ou imensamente

reclusa em seu imaginário, de forma que não podia dar conta de uma realidade que a

estava tragando pelos pés? Fosse um objeto excessivamente presente ou um ego

transbordando de seus limites, Carmen indicava portar combalido narcisismo que não

conseguia efetivamente sustentá-la, o que a impedia de abdicar do objeto idealizado, a

casa apenas sendo mais um deles.

Relembrando-se o que MIGUELEZ (2005) destacou tendo em vista as idéias

de Freud, o amar a si mesmo e o amor dirigido ao outro tratam de uma polaridade que

se evidencia pelo narcisismo, sendo o amor pelo outro o que torna possível que exista

a renúncia narcisista. No entanto, sendo o amor a si mesmo que trabalha para a

preservação do indivíduo. Complexo equilíbrio a ser atingido por cada sujeito em

relação ao próprio narcisismo, nos casos patológicos evidenciando-se a desproporção

e o desequilíbrio.

FREUD, em seu texto de 1914, ao conceitualizar o narcisismo, enfocou a

questão da auto-estima, indicando que

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Tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo remanescente do sentimento

primitivo de onipotência que sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a

aumentar sua auto-estima... a auto-estima depende intimamente da libido

narcisista [...] a finalidade e satisfação em uma escolha objetal narcisista

consiste em ser amado. (p. 115)

E afirmou ainda que

O amar em si, na medida em que envolva anelo e privação, reduz a auto-

estima, ao passo que ser amado, ser correspondido no amor, e possuir o

objeto amado, eleva-a mais uma vez [...] A volta da libido objetal ao ego e

sua transformação no narcisismo representa, por assim dizer, um novo amor

feliz; e por outro lado, também é verdade que um verdadeiro amor feliz

corresponde à condição primeira na qual a libido objetal e a libido do ego não

podem ser distinguidas. (p. 117)

Além da parte da auto-estima que é primária, sendo resíduo do narcisismo

infantil, uma segunda é decorrente da onipotência que se corrobora por meio da

experiência, realizando exigências do ideal do ego. Além disso, uma terceira parte da

auto-estima provém da satisfação da libido objetal, como Freud descreveu.

Carmen apresentava-se como um ―eu em ruína‖, fracasso total após ter tido o

que indicava como significativo sucesso pessoal. Em referência explícita à sua

realização profissional como artista plástica, fazendo tudo sobre quase nada, como

indicava Augusto, que também sofria desesperadamente ao ver desabar a Carmen de

outrora: onde foi parar a minha mãezinha? Aqui se apresentava uma questão crucial:

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Carmen perdera algo que erigira em seu mundo interno, ou, finalmente, revelava o

quanto padecia de problemas na constituição de seu eu, erigido fragilmente desde

sempre?

Muito além do que parecem ter sido as oscilações permanentes na vida de

Carmen, desmanchara-se no ar a sua figura de outrora. Desmontara-se o eixo de

sustentação subjetiva proporcionado pelo objeto imprescindível que fora efetivamente

perdido com o desaparecimento materno, ou na iminência de sê-lo na ameaça de

ruptura com o filho. Era ela a expressão encarnada de uma luta interior que a estava

arrastando para o mesmo destino do objeto que partira, morta-viva que se encontrava.

O desespero de ver o filho com dificuldades para arranjar trabalho e também

sucumbindo à depressão a fazia sentir nele o mesmo desperdício de talento, a mesma

incógnita incrustrada neste fracasso do ideal.

Neste destino comum com o objeto, Carmen indicava a impossibilidade da

separação e do luto pelo objeto primário, enquanto vivência necessária de ausência

que oferece ao psiquismo inicial a possibilidade de enfrentamento da falta subjetiva e

a separação estruturante do objeto. Em seu lugar, mais do que o vazio e o

empobrecimento do ego, talvez tivesse lugar a presença de um objeto ―mau‖ que

abandona e desperta o ódio e a culpa, dos quais o ego não consegue deixar de padecer

em penitência. Acusando, por vezes, e auto-recriminando-se, outras tantas. Nem

sempre em exclusiva ocorrência.

No entanto, ao sabor das decepções em seus investimentos no objeto, o

processo de deslocamento da libido do eu para o objeto podia inverter-se, e, na mesma

medida, Carmen enveredar pelo recolhimento narcísico que tangenciava uma retirada

esquizóide com poderosas fantasias de teor persecutório. Assim, este narcisismo

secundário, que se desvelava pelo retorno da libido objetal à libido narcísica, era

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impregnado da onipotência absoluta que caracteriza o estado primordial do narcisismo

primário, conforme postulado por FREUD (1914).

Referindo-se à forma como estariam inscritas na realidade psíquica do sujeito

as imagos parentais e a sua específica participação na estruturação do psiquismo, as

palavras de FAIMBERG (2001) soam esclarecedoras. Descreveu no amor narcísico a

função de apropriação dos pais internos com relação à identidade positiva do filho,

enquanto no ódio narcísico destacou a função de intrusão, quando os pais internos

nutririam ódio pelo que advém do filho e a ele atribuíssem o que não aceitam em si

próprios. São estas as características da regulação narcísica dos pais internos. Não há

espaço para que a criança desenvolva sua identidade, livre do poder alienante do

narcisismo dos pais, que é sempre sentido como poder estrangeiro. O sistema

narcísico de apropriação-intrusão determina no sujeito o surgimento de identificações

aos pais internos, pertencentes à geração que o antecede.

[...] não podem amar o filho sem dele se apoderar, nem reconhecer sua

independência sem odiá-lo e sujeitá-lo a sua própria história de

identificações... os próprios pais não são os únicos protagonistas dessa

relação, mas estão, por sua vez, inscritos inconscientemente em seu próprio

sistema familiar. Isso nos explica por que três gerações estão implicadas

nesse tipo de identificação. (FAIMBERG, 2001, p. 82)

Como mulher bela e atraente, Carmen quando jovem não era apenas admirada

por todos que a cercavam, mas sentia-se portadora de encantos que a destacavam.

Sabia de seu potencial de sedução e o exercia amplamente. Por vezes, no início do

tratamento, trouxera fotos que atestavam seus encantos da juventude. Desejava

mostrar sua bela imagem de outrora para a psicanalista; em uma ocasião reforçou que

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era ela quem escolhia seus homens, sendo sempre aqueles que também destacavam-se

pela bela aparência. Com todos eles indicava ter tido sucesso, o único que não

escolhera fora seu ex-marido. No entanto, este homem de traços e origem diversa da

sua, constituíra-se no estrangeiro que Carmen sentia poder lhe apresentar um mundo

novo de oportunidades sociais e culturais.

Ela se emaranhara nesta rede, tentando alçar vôo para outras paragens, longe

do bairro e do modo de vida que levava na casa paterna. Isso indicava a busca de um

ideal que se encontrava longe dali, uma liberação do vínculo apropriativo com a

própria mãe, como a partida exogâmica que acenava com a chance de constituir seu

próprio casal. Assim, o ex-marido parecia se constituir em um instrumento para obter

o que Carmen sempre sonhara, imaginando-o talhado para este objetivo

eminentemente narcisista, em que os raios de sua própria onipotência a faziam crer

que seria ele mais um que se renderia a seus encantos para servir-lhe, quais fossem

seus desejos. Aos poucos foi conferindo o quanto ele a empregava como antepara e

baluarte para seu próprio narcisismo.

Conferiu a força rude e violenta daquele que a fez crer toda poderosa, mas que,

anos mais tarde, a rendeu, vingando-se amplamente quando Carmen deu curso a seu

desejo de separação. Ele parecia ser mais um que não podia suportar que o objeto

amado de maneira narcisista tomasse outro rumo. Como apontou Carmen, foi ele

quem a fez sentir ódio pela primeira vez, sentimento que até então não conhecia.

Segundo ela, eu era jovem, bonita, ingênua, virgem e cheia de vida, e ele me sugou

completamente, acabou com a minha vida. Provavelmente por poder apreender este

ódio e de algum modo expressá-lo, Carmen pôde dar curso à separação conjugal e

sentir-se desafiada a iniciar uma vida profissional independente. De sua atividade

profissional extraiu o benefício de durante muitos anos colher o sustento do núcleo

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familiar que formava com o filho e a própria mãe. Havia sido um desafio especial

conquistar independência financeira, a partir daí criando para si uma vida da qual

eliminava fantasticamente a presença do algoz que a despojava. O que Carmen não

previa era não ser esta a forma de libertar-se definitivamente. Levava consigo seu

principal inimigo.

Aproximação entre narcisismo e relações objetais

O conceito de narcisismo como prescindindo inteiramente do objeto não existe

no pensamento de Klein, sendo este um dos pontos de divergência mais polêmicos

com Freud, permanentemente apontado por aqueles que comparam ambas as teorias.

Embora ela tivesse reconhecido que não utilizava diretamente a noção de narcisismo,

a discípula HEIMANN (1998) destacou que em sua teoria ele lá estava

significativamente, considerando a condição narcisista ligada a uma catexia libidinal

de objetos internos; desta forma, entende-se a possibilidade de aproximação que tem

lugar neste trabalho.

A concepção kleiniana do mundo psíquico primitivo, considerando-se o

estabelecimento de relações objetais pelo ego desde o nascimento, mesmo sendo o ego

ainda incipiente e carecendo de uma distinção nítida com relação ao objeto, foi uma

das mais profícuas contribuições à psicanálise. Algumas de suas idéias deram vez a

controvérsias instigantes para o desenvolvimento desta, sendo muitas aquelas

concepções que deram origem a esquemas conceituais que progrediram a partir de

suas descobertas. Não sendo possível neste espaço um amplo apanhado de suas

contribuições, há o interesse teórico e clínico de tentar destacar em sua teoria o

equivalente do conceito freudiano de narcisismo.

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Na teorização kleiniana, a fantasia inconsciente encontra-se em operação desde

o princípio da vida mental, estando inicialmente atrelada às sensações corporais,

sendo que estas vão se equivalendo ao ego corporal no funcionamento psíquico

primitivo. Como conferiu HEIMANN (1998), ao analisar as divergências entre os

pensamentos freudiano e kleiniano a respeito do auto-erotismo e do narcisismo, neles

a libido volta-se para um objeto introjetado, que é representado pelo próprio corpo do

bebê. Além disso, a libido não seria completamente retirada do objeto externo e, na

perspectiva kleiniana, a diferença entre auto-erotismo e narcisismo seria mais uma

questão de gradação e não uma nova ação psíquica, como conceituava Freud.

Conseqüentemente, em nossa opinião, as fases auto-erótica e narcísica são

menos absolutas, isto é, não tão completamente isentas de relações objetais

externas, como os termos da ―fase de desenvolvimento‖ auto-erótico e

narcísico parecem indicar. Não acreditamos que haja uma fase claramente

demarcada de vários meses (a Srta. Freud recentemente sugeriu os primeiros

seis meses de vida) na qual a libido tenha um caráter exclusivamente auto-

erótico ou narcísico. Acreditamos que os primeiríssimos meses são

caracterizados pela ocorrência de estados transitórios de natureza auto-erótica

ou narcisista, que atingem seu auge durante este período. A retirada auto-

erótica e narcisista do bebê não é contínua; ele volta repetidamente ao seio, e

sua relação com a mãe real se desenvolve gradativamente durante estes

primeiros meses, como a observação cotidiana o demonstra indubitavelmente.

(HEIMANN, 1998, p. 513)

O ego e o objeto vão se estruturando simultaneamente a partir das vivências

corporais de prazer e de desprazer que ocorrem desde o nascimento. Quando a

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satisfação oral com o seio conduz ao prazer, esta experiência vai sendo representada

mentalmente como o bom objeto e quando o desprazer provocado pela frustração da

fome faz sentir a falta do bom, começa a se dar a representação do mau objeto.

O seio como representante da mãe real que nutre e cuida do bebê vai sendo

instalado como objeto interno no mundo mental em formação por meio da introjeção,

que no período oral do desenvolvimento vai se dar essencialmente pela fantasia de

incorporação, incluindo os movimentos de sucção e devoração, uma vez que a libido

está associada à agressividade desde o princípio. No pensamento kleiniano, a

agressividade é sinônimo de sadismo e é representante da ação da pulsão de morte no

organismo, gerando a angústia de aniquilamento que emerge no bebê a partir deste

perigo instintivo que abriga. O ego põe-se em movimento para defender-se destes

impulsos ameaçadores e, com isto, começa a desenvolver-se. Assim, vai se

estabelecendo, em abreviada síntese, um seio interno ―persecutório‖, baseado na

frustração em relação ao objeto externo e resultante da projeção dos impulsos

agressivos do bebê sobre o objeto, surtindo como decorrência a necessidade do objeto

ideal e perfeito a quem possa amar e pelo qual possa ser amado, destacou KLEIN

(1945). O objeto idealizado consiste na fantasia onipotente de um seio portador de

todo o bom, estabelecendo-se no mundo interno primitivo e sendo projetado no objeto

externo que gratifica o bebê. Assim, o objeto idealizado que o ego vai constituindo, e

com o qual vai se identificando mediante a troca projetiva-introjetiva que se dá desde

o início, é o que estrutura, na concepção da teoria kleiniana, o narcisismo do ego que

configurará a imagem ideal de si e do objeto.

Com efeito, os ensinamentos da clínica autorizam-nos a pensar que haja

estruturas narcisistas e transferências narcisistas, isto é, onde o narcisismo

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está no cerne do conflito. Mas nenhum destes pode ser pensado e interpretado

isoladamente, negligenciando as relações objetais e a problemática geral das

relações do Eu com a libido erótica e destrutiva [...]. (GREEN, 1988, p. 14)

Os auto-ataques e os ataques aos objetos intercalavam-se em Carmen, ora

indicando o ego empobrecido e esvaziado a sugerir que a perda do objeto lhe era

insuportável por abrir um ―buraco‖ no mais íntimo de seu ser, ora por experenciar a

ausência ou a ameaça de separação como um movimento agressivo por parte do objeto

ao qual reagia veladamente com muito ódio. Ora a perda desvelava um bom objeto

que partia, ora era o mau objeto que se apresentava em seu lugar. No primeiro caso,

era nítido o desamparo e a fragilidade egóica sem a sustentação interna e externa que

ilusoriamente lhe proporcionava o objeto idealizado. No segundo caso, revelava-se a

faceta má e persecutória do objeto, que, fugindo ao seu controle onipotente, a atingia

sem que conseguisse ter um sistema de auto-proteção assentado a partir do próprio

narcisismo.

Em outra perspectiva, tendo ainda por base a premissa do desenvolvimento de

relações objetais desde o nascimento, WINNICOTT (1975) propôs uma teoria da

criatividade que situa nos primórdios da vida e no centro da relação mãe–bebê, e,

assim, possuindo relação direta com o conceito de narcisismo, conforme veio sendo

analisado.

No seu entender, a criatividade primária é um impulso inato que faz com que o

bebê, ao alucinar o seio, esteja criando-o como um fenômeno subjetivo, a partir de um

todo indiferenciado entre o eu e o não-eu. A partir da troca projetiva-introjetiva inicial

com o objeto, esta possibilidade de criação se dá tendo por base o estado de

dependência absoluta inicial do bebê com relação à mãe. Por outro lado, assenta-se

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também na experiência do bebê de encontrar a mãe em estado de ―preocupação

materna primária‖9, um estado retraído de sensibilidade aumentada que a coloca

voltada e disponível para descobrir e adaptar-se às necessidades iniciais de seu filho,

proporcionando-lhe um ambiente favorável para seu desenvolvimento.Ao atendê-lo,

por meio desta delicada sintonia emocional e adaptação ativa às necessidades do filho,

a mãe proporciona no bebê o surgimento da ilusão onipotente de que foi ele quem

criou o objeto de sua satisfação. Além do mais, ela fornece um ―setting‖ em que

[...] a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de

desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode experimentar um

movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a esta fase inicial

da vida [...] fracassos maternos produzem fases de reação à invasão e estas

reações interrompem o ―continuar a ser‖ do bebê [...] a base para o

estabelecimento do ego é um suficiente ―continuar a ser‖, que não foi

interrompido por reações à invasão. (WINNICOTT, 1988, p. 495)

O objeto de amor primário é sentido na fantasia como uma criação própria do

bebê, o que promove enorme frustração quando realística e concretamente ele é

privado do seio no desmame (WINNICOTT, 1990). A perda definitiva do seio

enquanto representante da mãe confronta o bebê com o fato de que o objeto não é ele,

assim como também não lhe pertence. A mãe constituindo-se apenas como

―suficientemente boa‖ e não como ideal demonstra-lhe sua autonomia, é passível de

frustrá-lo e dele se afastar, o que abala profundamente o seu controle onipotente e sua

9 Preocupação materna primária é estado em que a mulher grávida sadia ingressa pouco antes de dar à

luz e algumas semanas após o parto. A saúde psicológica e física do bebê, na concepção de Winnicott,

depende de a mãe ser capaz de ingressar e sair desse estado tão especial de ser (Abram, 2000, p. 183).

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ilusão de união ideal com o objeto. Esta frustração, que introduz para o bebê o

princípio de realidade, provoca nele a emergência de impulsos agressivos e de

destruição com relação ao objeto, que, pela privação, apresenta-se como objeto

distinto, o objeto mau. Apesar disto, ― [...] a destruição desempenha um papel na

criação da realidade, colocando o objeto fora do eu [...] essa destruição torna-se pano

de fundo inconsciente para o amor a um objeto real, situado fora da área do controle

onipotente do sujeito‖ (WINNICOTT, 1975, p. 127).

Inicialmente, a mãe nutrindo a ilusão do bebê em sua capacidade onipotente de

atendê-lo, proporciona desta forma que o bebê inicie a estruturação de seu mundo

interno e desenvolva sua capacidade de ser e criar como um self independente e

verdadeiro. Entretanto, é necessário que a mãe tenha como tarefa final ―desiludir‖

gradativamente seu bebê, o que possibilitará que ele estabeleça a diferenciação entre

―[...] aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido,

[...] não existe saúde para o ser humano que não tenha sido iniciado suficientemente

bem pela mãe (WINNICOTT, 1975, p. 26).

A capacidade do bebê saudável de lidar com esta ambivalência e de se

deprimir, conferindo que o objeto amado da satisfação libidinal é o mesmo que impõe

frustração a seus desejos, ao final, leva à construtividade em seus relacionamentos.

Promove uma nova categoria de relação objetal, na qual o teor narcísico restringe-se e

o interesse pelo objeto e sua sobrevivência independente libera e habilita o ego para

relacionamentos mais maduros. Quando o bebê conta com cuidados maternos

contínuos e pessoais, cria capacidade de reparação maior, o que lhe dá maior liberdade

instintiva, indicou WINNICOTT (1990).

De acordo com a visão winnicottiana acerca do processo de desenvolvimento

infantil, que vai da dependência absoluta passando pela dependência relativa até

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chegar à independência, relembra-se por meio das palavras de LEJARRAGA (2002)

que no estágio inicial de total dependência do bebê, em que está presente seu impulso

vital criativo, o fundamental é o processo silencioso da integração, personalização e

adaptação à realidade que realiza o bebê, sustentado pela provisão do amor materno,

condição que possibilita conquistas posteriores. Em condições favoráveis, ele

desenvolverá a capacidade de se preocupar, reparar e construir uma relação afetiva. A

criança se tornará responsável e preocupada com o objeto amado, integrando a

frustração e a raiva no sentimento amoroso; passará a reconhecer o outro como uma

pessoa total e aprenderá a cuidar dele, o que constitui a base das relações amorosas.

No entanto, sem a provisão ambiental suficientemente boa, o self infantil pode

nunca se desenvolver. A sensação de realidade encontra-se ausente, o que, se não

provoca o caos, promove a sensação de futilidade. As dificuldades não podendo ser

atravessadas, será ainda mais difícil o alcance de satisfações, o que promove o

surgimento de um falso self que oculta o self verdadeiro, obediente às demandas,

reagindo aos estímulos e livrando-se das experiências pulsionais passando por cima

delas. O self estaria apenas ganhando tempo, não se desenvolvendo, afirmou

WINNICOTT (1988).

A criatividade primária e o que ela contém de potencial para expressão e

desenvolvimento do verdadeiro self do bebê como um self distinto e estruturado,

conflui no pensamento de Winnicott para o estabelecimento da segurança interna a

respeito de suas próprias capacidades e poder criativo. Fazendo com que o objeto

configure-se como o outro imprescindível para a troca humana, porém completamente

afastado da noção de objeto idealizado interno ou externo. Portanto, contando com um

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ambiente facilitador representado pela mãe que oferece o holding10

para as

necessidades do bebê, o poder onipotente de sua criação deverá evoluir solidificando o

amor por si mesmo. Essa circunstância proporcionará a chance de se cristalizar uma

auto-imagem sustentada na valorização realística de suas capacidades, o que se

estenderá para o reconhecimento do mesmo com relação ao objeto.

Possivelmente a capacidade da mãe de Carmen e sua disponibilidade em

descobrir e adequar-se às necessidades reais e profundas de sua filha, enquanto bebê e

ao longo da vida, foram comprometidas por sua personalidade narcísica. Ela indicava

muito mais pretender deter o controle sobre o objeto, colocando-o a serviço de suas

próprias necessidades de complementação narcísica. Isto deve ter impedido que se

voltasse para o bebê Carmen de modo a reconhecê-la como existência importante por

si e pelo que podia contar de seu.

Deste modo, presume-se que a condição de Carmen em estabelecer e

solidificar sua capacidade de ser e criar de forma segura deva ter originariamente se

comprometido pela falta da provisão ambiental necessária. O desenvolvimento de um

self verdadeiro assentado na confiança em si mesma e um ego estruturado solidamente

a partir de sua continuidade havia por fim se tornado impossível.

A sua necessidade em ser aprovada e admirada pela mãe, e todos os que a

sucederam, parece ter tomado o lugar do importante movimento de ser reconhecida

em sua natural e espontânea expressão. O desempenho transformou-se em mais

importante a ser exibido do que o próprio fato de ser vista, ser capaz de existir e

sentir-se real.

10

―Todas as particularidades do cuidado materno que antecedem e advêm depois do nascimento

convergem para a composição do ambiente de holding. Isto inclui a preocupação materna primária da

mãe, que lhe possibilita fornecer ao bebê o necessário suporte egóico. Tanto o holding psicológico

como o físico são essenciais ao bebê ao longo de seu desenvolvimento, e o serão por toda sua vida. O

ambiente de holding jamais perde sua importância‖ (Abram, 2000, p. 135).

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Carmen era capaz de criar em sua imaginação, vivenciar a ilusão onipotente

desta criação, porém, a partir daí não conseguia conduzir-se para uma realização

sólida nos padrões da realidade. Como se em sua fantasia inconsciente permanecesse

tentando produzir efeitos de brilho ofuscantes, e portanto mágico-onipotentes, apenas

para exibir-se perante o outro (a mãe) sem conseguir suportar a frustração de ter de

adequar sua ilusão à realidade. Se assim o fizesse, parecia sentir que estaria condenada

a nada ser, ou pelo menos a nada suscitar de interesse para o outro. Nesta medida, o

objeto fixou-se como mais importante que o próprio sujeito, gerando a idealização do

objeto e a contrapartida de um self que se sentia essencialmente um fracasso. Esta era

a situação que Carmen dramaticamente revelava em seus vínculos essenciais com a

mãe e o filho.

Em alguma medida, Carmen procurava se defender dessa condição subjetiva

por meio da incorporação e da identificação com o objeto idealizado, tentando trazer

para seu self enfraquecido o brilho e o poder que atribuía fundamentalmente ao objeto.

Assim, obliterava sua consciência e mascarava o ódio e a decepção para com o

objeto.

Sobre o narcisismo de morte e o narcisismo destrutivo

Destacando a concepção de Freud sobre as pulsões de vida e de morte,

introduzidas em seu texto de 1920, ―Além do princípio do prazer‖, e a idéia de fusão

instintiva em vários graus identificada no texto de 1923, ―O ego e o id‖, GREEN

(1988) registrou: ―Assim, na própria vida, certas forças – até mesmo o princípio do

prazer! – colaboram apesar de si, com as pulsões de morte‖ (p. 11). É este um

destaque para uma teorização de extrema valia principalmente para a clínica, em

especial para a compreensão do masoquismo, do sentimento inconsciente de culpa,

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das reações terapêuticas negativas e da resistência ao tratamento, ressaltou

ROSENFELD (1988).

As controvérsias suscitadas pela noção de pulsão de morte não cessaram de ter

curso desde a formulação freudiana. Como indicou GREEN (1988), o reconhecimento

de que todos os elementos constitutivos das teorias anteriores de Freud sobre as

pulsões pudessem estar reunidos sob a égide de Eros, sendo defesa contra os efeitos

devastadores das pulsões de morte, não conseguiu ainda hoje ser uma idéia aceita por

muitas correntes dentro da psicanálise.

O conceito de narcisismo perdeu terreno nos escritos de Freud em proveito das

pulsões de destruição, não tendo sido feita uma integração dos problemas colocados

pelo narcisismo sob o ângulo da segunda tópica e da última teoria das pulsões.

Portanto, as relações entre narcisismo e pulsão de morte GREEN (1988) propôs

chamar ―narcisismo negativo‖, considerando-o uma morte psíquica na qual ocorreria o

alívio de todo desejo, o objeto tendo sido morto na aurora deste processo. Neste

estado, o retorno ao estado inanimado proposto por FREUD (1920) seria governado

pelo que Green denominou de Neutro, não sendo o desprazer que substitui o prazer,

mas a petrificação do eu visando a anestesia e a inércia na morte psíquica. Em sua

concepção, não se tratando de depressão, mas sim de anorexia do viver.

O conceito de ―narcisismo negativo‖ proposto por Green pode ajudar a pensar

na atuação das pulsões de morte no caso clínico de Carmen, ela sugerindo estar

tomada prioritariamente por um estado de depressão narcísica. De qualquer modo, era

intrigante a forma como Carmen envolvia-se em situações sem critério, entregava-se a

algozes para dela se aproveitarem, expunha-se a experiências de excesso e situações

que beiravam o surrealismo. Sua falta de limite, de medida, de orientação, de auto-

preservação, indicavam que algo a impulsionava em direção a experiências nas quais

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―brincava com granadas‖, como em uma ocasião foi possível ser interpretado. A

questão do quanto nisto estava compreendida a ação da pulsão de morte talvez fosse

mais relativa à auto-punição e ao sentimento de culpa inconsciente, denotando a ação

de uma destrutividade ativa.

Nesta direção, ROSENFELD (1988) chamou a atenção para a importância da

agressão e destrutividade incorporadas à vida do indivíduo narcisista, estudando os

aspectos libidinosos e agressivos do narcisismo. O aspecto libidinal sendo observado

pela supervalorização do self, baseada fundamentalmente em sua idealização.

A meu ver, esse tipo de narcisimo muitas vezes age como um protetor

essencial do self, e alguns pacientes tornam-se excessivamente vulneráveis

quando, através de frustrações e humilhações, a proteção narcisista é rompida

e cria brechas. Isso torna essencial distinguir o lado positivo da idealização do

self de seu lado negativo [...] Ao considerarmos o narcisismo a partir do

aspecto destrutivo, observamos que a idealização do self mais uma vez

desempenha um papel fundamental, mas agora são as partes destrutivas e

onipotentes do self que são idealizadas. (ROSENFELD, 1988, p. 139)

Nos estados narcisistas em que predominam os aspectos libidinais, a

destrutividade manifesta pode se evidenciar quando a idealização onipotente do self é

ameaçada pelo conferir do objeto como separado. Isto reverte-se em sentimento de

humilhação perante as qualidades valiosas que o objeto possui, produzindo

ressentimento e vingança por ter sido seu narcisimo onipotente roubado, além de

ataques aos elos que o unem ao objeto, o que indica destrutividade ativa.

Nos casos em que os aspectos destrutivos do narcisismo predominam, a

exposição da destrutividade é muito mais difícil, a inveja do objeto como fonte de

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vida e de bondade fazendo emergir o desejo de destruí-lo. Assustado com esta

revelação, o paciente em análise poderá produzir violentos impulsos autodestrutivos,

inclusive tentando destruir os avanços analíticos. É freqüente nesse momento desejar

abandonar o tratamento apresentando reações terapêuticas negativas, além de atuações

autodestrutivas que atingem suas relações pessoais e seu sucesso profissional. Por

vezes, deprimem e idealizam a morte como solução para seus problemas. A força de

oposição a viver e se curar pode chegar até este limite, quando a pulsão de morte entra

em cena nestas circunstâncias. Em outros casos, tal circunstância condena à

resistência paralisadora crônica, o que pode deter o processo analítico por muitos

anos. ROSENFELD (1988) observou que esta força destrutiva tende a se tornar mais

ameaçadora quando o paciente está se voltando mais para a vida e confiando mais na

ajuda proporcionada pela análise.

Carmen indicava flagrantes abalos no seu narcisismo. O aspecto libidinoso

desinflava e o destrutivo ganhava terreno. A oscilação sem saída entre o sucesso ideal

e o fracasso humilhante, processo orquestrado pela onipotência, não deixara espaço

para o sólido erigir de um amor-próprio auto-sustentável ao longo do tempo e

resistente às perdas impostas pela realidade. As conquistas facilmente se desvaneciam,

enquanto as perdas narcísicas persistiam em feridas que não cicatrizavam. Como

antepara, o objeto constituía um apanágio para o que não podia ser enfrentado no

âmago da própria subjetividade, no confronto especular consigo mesma.

O ressentimento e a auto-acusação podiam mesclar-se de modo a não ser

possível aquilatar se odiava mais a si seja pelo que fora capaz de se autopromover ou

evitar de se infringir, seja por culpabilizar o objeto pela devassa em sua vida, ódio

àquele de quem não suportava separar-se. Os acordes melancólicos outrora invisíveis

desvelavam-se, deixando para trás a Carmen que outrora se sentira engrandecida

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narcisicamente e um belo exemplar de potência fálica, restando completamente

esvaziada de tudo o que transbordava como brilho e poder pessoal.

Entre lágrimas ressentidas e impotentes, Carmen presumia um inimigo

desconhecido em algum recôndito esconderijo dentro de si. Afirmava não entender a

força oculta que a impedia de libertar-se e realizar o desejo de viver e se curar, como

ROSENFELD (1988) considerou ao estudar o ―narcisismo destrutivo‖. Resultante da

ação destrutiva da pulsão de morte fusionada em diferentes graus à pulsão de vida,

esta dualidade pulsional identificada por FREUD (1920) é imensamente cara para a

clínica, principalmente nos casos em que a patologia acentua a desfusão instintiva.

Existindo na teoria freudiana uma relação óbvia entre narcisismo, retraimento

narcisista e pulsão de morte, como apontou ROSENFELD (1988).

Carmen avançava no trabalho analítico, para logo a seguir retroceder, por

vezes a resistência atingindo-o diretamente. Reapresentava comportamentos que

ameaçavam ou a expunham a perder sessões, seja por problemas de saúde, faltas ou

confusões de horário. Entrava em cena a personagem que se desorientava, que a

empurrava de volta em verdadeira compulsão à repetição, aos afazeres domésticos e

às tarefas maternas, encarnando a figura da mãe e da avó. E, assim, Carmen regredia

consumindo-se no reacender do conflito identificatório que a submergia em

impossibilidade de se individualizar, de se separar de seus objetos amorosos e

introjetá-los, assim como criar horizontes exogâmicos para realizar seu potencial

criativo. De algum modo, nesses momentos fechava as portas à ajuda analítica e à

possibilidade de investimento libidinoso no tratamento, por estarem mais

recrudescentes os impulsos destrutivos em relação a si e a tudo que a cercava.

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Capítulo IV

O PROCESSO IDENTIFICATÓRIO

Quem era Carmen?

Desde o início do seu atendimento, registrava-se a presença de aspectos

contrastantes em sua personalidade e nas relações objetais que estabelecia,

denunciando a ampla divisão interna que abrigava. Na transferência, revelava-se a não

integração egóica, sendo por vezes flagrantes os esforços requeridos para tentar

apreender uma unicidade em Carmen, que não conseguia amalgamar-se de maneira

mais consistente e demarcada. Quando algo apontava na direção de determinado tipo

de funcionamento, logo a seguir revelavam-se aspectos contrastantes ou mesmo

contraditórios.

À psicanalista parecia estar reservada a função de coletar, reunir, ordenar e

conciliar as partes de Carmen, que ora brigavam entre si, ora contrapunham-se ao

tentar uma unicidade e delinear sua identidade. Por vezes, podia se reconhecer o

desenvolvimento mais apurado de algumas funções egóicas, mas, a seu lado,

escancaravam-se lacunas e falhas quase inacreditáveis.

Em um discurso freqüentemente loquaz e emocionado, o relato aglutinado de

experiências em diferentes épocas da vida de Carmen era desnorteante. Ela basculava

entre sonho e realidade; entre a parte psicótica e a não-psicótica de sua personalidade;

entre as edificações quase improváveis e a ruína incontrolável; entre o sucesso

fulgurante e o fracasso estrondoso; entre o objeto excessivamente presente em si e a

projeção maciça de si no objeto; entre uma morte em vida alienada ao objeto que não

deixava partir e a luta para não se deixar arrastar para o mesmo destino do objeto. Por

vezes indicava que as perdas objetais eram o principal foco de seu sofrimento, mas

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por outras revelava flagrante lacuna deixada por perdas narcísicas não toleradas e

muito menos superadas.

Carmen possuía talentos múltiplos e incompetências pueris; oscilava entre a

sagacidade esperta e a inocência cega; entre a abertura para o mundo e a clausura em

seu universo doméstico e modelos identificatórios; entre a percepção de limites e o

pensamento mágico; entre a antecipação experiente e a concretude de ações

precipitadas; entre tudo planejar e nada concluir; entre o alto preço de seus

investimentos e a impossibilidade de se beneficiar das próprias conquistas; entre

múltiplas escolhas amorosas e a impossibilidade de desligamento do privilegiado

amor ao objeto primário.

Para quem procurava uma bússola para se orientar neste início de atendimento

clínico, a experiência era francamente desnorteadora. Por vezes, Carmen parecia vagar

de forma errante, à procura de um solo para se plantar por si. Outras vezes vinha à

procura de braços aos quais pudesse se entregar inteiramente, apossando-se do espaço

e da mente separada do outro. Embora tentando não estigmatizá-la sob um rótulo

diagnóstico, eram freqüentes as indagações que a psicanalista se colocava a respeito

de seu funcionamento predominante: histérico, maníaco, perverso, melancólico,

fronteiriço ou psicótico?

Suas identificações mesclavam-se e sobrepunham-se em um caleidocópio onde

cada traço parecia compor-se mutantemente com os demais, permanentemente

plantando dúvidas se seria ela o agente ou o reagente, a vítima ou o algoz. Se a

psicanalista estaria se lançando em empreitada clínica factível, ou estaria tentando

onipotentemente reunir, integrar e desenvolver sobre quase nada, tal como castelo no

ar, ou, no máximo, castelo de areia, dada a alta vulnerabilidade de todas as ondas que

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atingiam Carmen. A paciente apresentava uma ―insuficiência imunológica psíquica‖11

ou a psicanalista necessitava viver na gradação extrema da onipotência à impotência, a

sensação de insuficiência psíquica própria? Por vezes, insinuava-se a procura insana

de alguém a quem atribuir a culpa por tudo o que se apresentava em Carmen. Eram

estes os reflexos preocupantes da relação transferencial absorvente e invasiva que se

configurava no início deste atendimento clínico

A. A importância do processo identificatório

A noção de identificação necessita ser compreendida como integrante de um

verdadeiro processo identificatório que se inicia no nascimento e tem curso ao longo

de toda a existência. É por intermédio deste processo que se constitui a subjetividade,

tem origem o mundo interno e se constitui a matriz da identidade do sujeito. Diante do

desamparo essencial que emerge a partir do nascimento, o objeto constitui suporte

essencial para a travessia inaugural do bebê pelo mundo humano.

É por meio desta interação íntima entre sujeito e objeto, na qual inicialmente

não há distinção entre o eu e o não-eu, o estado de indiferenciação dominando entre

eles, que tem início o processo identificatório do ser humano. Esse processo

possibilitará que, a partir do estado de fusão do bebê com o objeto, possa ter lugar a

separação e a individuação, avançando por mecanismos de progressiva distinção e

complexidade, mas que, no entanto, nunca deixam inteiramente de existir, em menor

ou maior grau.

11

―Insuficiência imunológica psíquica‖ é noção originalmente cunhada por BERLINCK (2000) que

descreve pacientes que apresentam estrutura psíquica em que revelam grande incapacidade de proteger-

se de ataques virulentos externos, além de apresentar disponibilidade a ataques virulentos internos que,

freqüentemente, conduzem à própria destruição. Adiante neste trabalho, esta noção será objeto de

consideração.

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Os mecanismos identificatórios mais primitivos podem ser suplantados, dando

lugar a outros que os sucedem na evolução do funcionamento mental normal. Porém,

em personalidades mais primitivas ou comprometidas, a intensidade e a freqüência

desses mecanismos poderá se manter inalterada ou ser exarcebada, principalmente no

transcurso de experiências de impacto, que demandam ampla reorganização interna, e

por vezes também externa.

O aparelho psíquico, primariamente composto pelo id e dando origem às

instâncias do ego e superego, foi deste modo concebido por Freud em 1923, ao

formular a teoria estrutural da segunda tópica. Nesta perspectiva, o aparelho psíquico

compreende a presença objetal em sua própria fundação, a identificação primária com

a mãe sendo a matriz de todo o processo identificatório que se dará a partir de então.

Em diferentes níveis, este processo compreende mecanismos como a

identificação primária, a incorporação, a introjeção e a identificação projetiva.

Inicialmente estruturantes e self-formativos, são mecanismos imprescindíveis nesta

função para o psiquismo nascente. Além de fundamentais para o princípio da vida

mental, esses mecanismos identificatórios serão elementos constitutivos de outros

mecanismos mais tardios, e como eles, também desempenhando uma função

defensiva.

Neste trabalho, serão enfocadas algumas das principais idéias de Freud sobre o

processo identificatório, procurando integrá-las com o pensamento de autores que

buscaram clarificar aspectos destes mecanismos, ou chegaram a conceituar demais

mecanismos inter-relacionados no processo identificatório. E, sem dúvida, o caso

clínico de Carmen foi o ponto de partida e a convergência para os recortes e destaques

realizados, imprescindíveis para a compreensão do seu processo identificatório.

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B. O nascedouro do conceito

O conceito de identificação passa por toda uma evolução na obra freudiana,

sendo interessante seguir-se a sistematização dos diferentes momentos que realizou

PECHANSKY (1979). No período inicial de seus escritos, Freud começou por

considerar a identificação histérica e, em função disso, destacou no mecanismo

identificatório a noção de imitação. Porém, em 1900, no texto ―A interpretação dos

sonhos‖, Freud já incluía na noção de identificação a participação de processos

inconscientes, reconhecendo a íntima relação que se estabelece entre o sujeito e o

objeto da identificação. O mecanismo de identificação consistindo em uma

assimilação por parte do sujeito de traços ou de características objetais que promovem

uma semelhança entre eles. Estes elementos comuns permanecem no inconsciente do

sujeito.

Em seu texto magno sobre o narcisismo, FREUD (1914) distinguiu as escolhas

de objeto narcísica e anaclítica, ao mesmo tempo em que introduziu o conceito de

ideal de ego, base do que posteriormente seria definido no ano de 1923, em ―O ego e o

id‖, como a instância psíquica do superego. Já naquele período inicial, ele reservava

para a identificação importante papel na escolha de objeto, mesmo ao se tratar de um

ego muito rudimentar e não totalmente diferenciado.

O segundo período teórico na concepção freudiana do mecanismo de

identificação tem um marco no texto ―Luto e melancolia‖ de (1917[1915]), pois a

identificação passa a ser reconhecida como etapa preliminar da escolha de objeto.

Neste texto, ele analisava a perda real ou emocional de um objeto amado, destacando

que, na melancolia, a libido investida no objeto perdido do mundo externo retornava

para o ego provocando sua identificação com este objeto.

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É desta forma que, no entender de FREUD (1917[1915]), a melancolia

constitui fundamentalmente uma neurose narcísica, o ego permanecendo sob a sombra

do objeto perdido, uma vez regredindo da escolha objetal para a identificação

narcísica com este objeto. Tal movimento regressivo foi apontado como

especialmente relevante nas afecções narcisistas, havendo a coexistência de intensos

sentimentos de amor e de ódio para com o objeto perdido, a perda real promovendo a

emergência do ódio outrora reprimido. Este sentimento de ódio, em última instância,

em função da identificação narcísica implicada, finalmente se voltaria contra o próprio

ego do sujeito melancolizado.

Além de destacar que incorporação e identificação são mecanismos distintos,

embora intimamente relacionados, Freud ocupou-se em (1917[1915]) da aproximação

e da diferenciação entre o luto e o processo melancólico. Considerou a identificação

do sujeito com o objeto real perdido como uma tentativa de resolução de determinados

conflitos internos, enfatizando, assim, uma visão patológica em torno do processo.

Como terceiro momento teórico no enfoque do mecanismo da identificação,

nos trabalhos ―Psicologia de grupo e a análise do ego‖, de 1921, e em ―O ego e o id‖,

de 1923, Freud ampliou o conceito de identificação, considerando-o um processo

importante na estruturação e no desenvolvimento da mente, deixando de pertencer

exclusivamente ao terreno da psicopatologia. ―A identificação é conhecida pela

psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa‖

(FREUD, 1921, p. 133). Portanto, enfatizando que na constituição do sujeito a origem

deste processo identificatório seria a relação primária com a mãe, embora em sua

teorização global tenha dado maior relevo à importância da identificação da criança

com a figura paterna.

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Por outro lado, dizia FREUD (1921) que o ego por vezes molda-se na pessoa

que não é amada, e, por vezes, naquela que é. Além disto, a identificação

caracterizando-se por ser fundamentalmente parcial e limitada, realizada sobre traços

isolados da pessoa que é tomada como modelo, promove alterações egóicas em função

disto. Neste processo, o objeto em si mesmo é renunciado, seja completamente ou

apenas preservado no inconsciente do sujeito. E o sujeito pode constituir divisões

egóicas em maior ou menor grau, de acordo com as identificações que leva a cabo, a

força e a intensidade que venham a adquirir no desenvolvimento do ego infantil.

Quando em 1923, no texto ―O ego e o id‖, Freud discutiu a formação do

superego, considerando como seu precursor o ideal de ego, terminou por remeter esta

formação às primeiras identificações orais da criança, mediante a incorporação do

objeto. Assim, referindo-se a um aspecto primitivo originário do superego, embora

essencialmente tivesse concebido sua estruturação em momento mais tardio do

desenvolvimento. Confere-se junto com CARDOSO (2002) que na obra freudiana

delineia-se, simultaneamente, duas versões teóricas, que a rigor seriam inconciliáveis:

a de um superego pulsional pré-edípico ligado a uma primeira identificação, e a de um

superego edípico, ligado à castração e herdeiro do Complexo de Édipo. Apesar disso,

no final da obra Freud teria vencido esta dicotomia mediante uma conciliação entre

estas duas faces contrastantes do superego, o que se deu ao considerar a pulsão de

morte como a origem instintiva do superego e postulando a interiorização dos aspectos

punitivos de um pai originário.

A noção de identificação por projeção vai ser mais bem caracterizada por

Freud apenas em seu texto de 1921, ―Psicologia de grupo e a análise do ego‖,

distinguindo-se da identificação por introjeção que até então vinha

predominantemente enfocando em seu estudo sobre a melancolia. Quando o ego se

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empobrece ao projetar-se no objeto externo, processo que se verifica no amor em

demasia, pois uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o

objeto, que desta forma se torna idealizado. O objeto sendo alvo desta projeção de

fantasias e impulsos amorosos é tratado como um substituto do ideal do ego,

representante de algo inatingido pelo próprio sujeito, que tentaria atingi-lo de forma

indireta, por meio do próprio objeto.

Esta síntese do percurso freudiano em torno da noção de identificação

realizada por PECHANSKY (1979) ressalta a importância de algumas distinções

centrais em relação aos mecanismos básicos de incorporação, introjeção e

identificação, compreendidos no processo identificatório do sujeito. Além destes,

componentes intrínsecos ao processo na concepção freudiana, o conceito de

identificação projetiva originalmente formulado por KLEIN (1946) é um mecanismo

com características marcantes incorporado no âmago da psicanálise, dada sua

importância e abrangência clínica. Foram estes os mecanismos estruturantes, por

vezes adquirindo função defensiva, que o caso clínico pesquisado neste trabalho

requisitou que fossem mais detalhadamente estudados.

C. O processo identificatório: características e mecanismos

Entre os mecanismos que compõem o processo identificatório do sujeito, a

identificação primária encontra-se envolvida na própria fundação do aparelho

psíquico, por meio da ligação com o objeto original. Paradoxalmente, é uma noção

que figura pouco ao longo da obra freudiana, como tiveram oportunidade de destacar

LAPLANCHE e PONTALIS (1976). É conceito essencial para se compreender os

primórdios da vida mental, e tem função essencial no momento inicial em que sujeito

e o objeto ainda constituem um todo onipotente e indiferenciado. Neste início

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constitutivo, o investimento no objeto e a identificação com ele são processos

basicamente indistingüíveis um do outro, reconheceu Freud em seu texto de 1923.

Talvez, por conta deste início de vida mental, no qual há tais indistinções,

vigore ainda hoje certa confusão entre introjeção e identificação na literatura

psicanalítica. TOROK (1995a) busca esclarecer alguns aspectos distintivos destes

mecanismos, compreendidos na descrição freudiana do processo identificatório.

Na identificação, o sujeito mira-se em um objeto externo, em uma Imago ou

personagem complementar, em busca do que pode ser desejado pelo próprio sujeito.

Quando a identificação se dá a partir de um objeto externo que realiza este Ideal,

configura-se então uma identificação narcísica. Esta, no entanto, é essencialmente da

ordem da projeção e não da identificação, pois se estabelece uma aliança com o objeto

tendo em mira a Imago visada de si mesmo. Quando a identificação não constitui um

encaminhamento para a introjeção de uma relação, ela deveria ser considerada como

uma defesa, na realidade como o é a identificação com a Imago ou com o

complemento ideal do próprio sujeito, opondo-se, portanto, à evolução segura da

imagem de si mesmo, do ser si mesmo.

Voltando a Freud, quando destacava a importância do processo de

identificação, descrevia inicialmente o mecanismo da identificação por introjeção.

Tomava por base o conceito de introjeção formulado inicialmente por Ferenczi em

1909, em seu texto ―Transferência e introjeção‖. Esta concepção pioneira definia o

processo de introjeção como um movimento de ampliação do ego em direção aos

objetos, de forma a investi-los de libido e abraçá-los, deste modo podendo incluir uma

série destes objetos. Nesta época, antes da conceituação freudiana da segunda tópica, é

preciso ter em vista que os objetos que eram referidos diziam respeito a pessoas,

coisas, interesses e causas, assim como o sujeito era o próprio indivíduo, a sua pessoa.

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A partir disso, a força-motriz da introjeção não poderia ser a perda efetiva de

um objeto de amor, como retomou ABRAHAM (1995). Isto porque a aspiração da

introjeção não era da ordem da compensação, mas sim da ordem do crescimento, de

acordo com a concepção de Ferenczi. A introjeção buscava introduzir no ego o

conjunto das pulsões e de suas vicissitudes, sendo que o objeto (e o analista) era o

próprio contexto e o mediador deste processo para o inconsciente do sujeito.

Contrariamente, na teoria psicanalítica em geral, e em particular no

pensamento kleiniano, estabeleceu-se uma visão do mecanismo de introjeção por

oposição ao conceito de projeção, e assim sendo caracterizado fundamentalmente

como mecanismo de internalização do mundo exterior e seus objetos, portanto, com

traços opostos à visão original de abertura para o mundo. No entanto, é importante a

retomada da concepção ferencziana original, apontando a introjeção

fundamentalmente como movimento erótico de dentro para fora, por meio do qual os

objetos de alguma forma viriam a fazer parte deste eu distendido em direção ao

mundo dos objetos. Esta visão indica a tendência do sujeito em investir libido no

mundo externo, indo em busca do objeto. Pensar a introjeção nesta ótica equivale à

idéia de investimento no objeto e à idéia de identificação, correspondendo a uma fusão

dos objetos com o eu, o que culminaria na idéia de investimento narcísico. Assim, sob

este ponto de vista e no início da teorização freudiana, as noções de transferência,

introjeção e identificação figurariam em alguma medida como noções praticamente

sinônimas, como chamou a atenção TOROK (1995a).

Além do mais, o ego, na tentativa de internalizar o objeto na fase oral

canibalística do desenvolvimento libidinal, só conseguiria fazê-lo devorando-o, por

meio do mecanismo de incorporação, destacando-se assim a flagrante fusão instintiva

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imbricada no próprio mecanismo. Como indicou FREUD (1905), a incorporação do

objeto é o protótipo do processo de identificação.

Concordando com a visão de TOROK (1995a), a incorporação constitui um

processo de caráter instantâneo e cuja magia recuperadora não se encontra presente na

introjeção. Uma vez que este último é um mecanismo do ego mais progressivo, que

amplia e enriquece os interesses predominantemente auto-eróticos do eu com as

identificações que colhe junto aos objetos, processo este que se orienta na direção de

pôr fim a esta dependência objetal. Evidentemente, restaria no psiquismo sempre a

possibilidade de fracasso da introjeção, o sujeito regredindo à incorporação do objeto,

um processo fundamentalmente mais primitivo, que não consegue pôr fim à

dependência objetal.

No processo de incorporação do objeto, o ego toma o lugar do objeto e torna-

se alvo do ódio que fora dirigido ao objeto perdido. Assim, a melancolia, enquanto

quadro psicopatológico, guarda características superegóicas sádicas, culpabilizantes e

auto-recriminatórias com relação ao ego. O que se evidencia é a ausência do objeto

amado e idealizado, despertando o ódio do sujeito para com o objeto perdido, e

portanto, emergindo acentuado conflito interno perante a imagem dissociada de um

objeto que é cindido entre idealizado e persecutório, como distinguiu KLEIN (1935)

em seu esquema conceitual.

Pode-se identificar a origem da concepção kleiniana de conflito entre objetos

internos, nas colocações de FREUD (1921) a seguir:

A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se

expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo de afastamento

de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização

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da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é

assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. (p. 133)

Incorporação e fracasso da introjeção

É de grande interesse teórico e extremamente esclarecedor para a clínica

psicanalítica, a distinção entre incorporação e introjeção que TOROK (1995a) levou a

cabo. No seu entender, o mecanismo da incorporação procura contornar e não

propriamente processar a perda do objeto que coloca em marcha este processo, o que

sem dúvida é um aspecto importante a ser pensado. Neste sentido, constitui um

obstáculo intransponível para que se dê a introjeção propriamente dita.

A incorporação como forma de compensação mágica e instantânea visa a

reinstalação do objeto perdido no interior do sujeito por uma via bastante distinta e

que opera em corrente contrária à da introjeção, pois é mecanismo que se encontra

muito mais ligado ao princípio do prazer e opera processos próximos da realização

alucinatória. A incorporação funciona em segredo, negando o veredicto do objeto e da

realidade, escapando ao olhar do próprio ego, e assim reforçando uma ligação de

dependência ao objeto, que a introjeção busca por fim.

No entanto, TOROK (1995a) indicou que no nível mais arcaico do

funcionamento mental, os mecanismos de incorporação e de introjeção podem se

confundir ou ser duas faces do mesmo mecanismo. Habitualmente, em psicanálise, o

mecanismo primitivo da incorporação é descrito como a fantasia de ingestão oral pelo

ego na ausência do objeto. Porém, essa autora esclareceu que isto apenas ―engana‖ a

fome real de introjeção de objetos, que permanece viva. Na posição maníaca, o ego

sedento em realizar introjeção ilude-se, pois alucina que, por meio do procedimento

mágico da incorporação do objeto, possa saciar sua ―fome‖ de introjeção. É deste

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modo que o ego, que tem a aspiração de introjetar, pode ―comer‖, mas não se

―alimentar‖, regredindo para este nível aquele ego que tem obstaculizado seu

progressivo enriquecimento libidinal.

Além disso, ABRAHAM (1995) destacou que o Ego permanece eclipsado

tanto na mania como na melancolia, subsistindo apenas uma das Imagos, a da mãe

arcaica e onipotente, a quem permanece alienado.

O sujeito, conforme seja ele maníaco ou melancólico, fixa-se seja na própria

Imago – como na identificação maníaca – seja no complemento ideal da

Imago – como na auto-acusação melancólica. O que confere tal poder a uma

das Imagos? Certamente, não o fato de ter sido introjetada uma vez, mas

muito mais por não ter resistido à prova da realidade. A morte, a maldade, a

inconstância de seu homólogo externo determinaram a reintrojeção da Imago,

isto é, sua reconstituição idealizada a partir do próprio sujeito. Ora, a mania-

depressiva se desencadeia, não com a perda do objeto externo, mas com a

ameaça de perder o objeto interno indispensável. Nos dois casos, trata-se de

negar o ―crime‖ que é, em última análise, o de ter introjetado o objeto. A

supervalorização da culpa não engana ninguém a não ser a Imago. Trata-se de

esconder dela que ela foi introjetada no prazer. Da mesma forma, a tríade

maníaca de negação, de desprezo triunfante e do domínio onipotente – já que

diz respeito a uma identificação com a própria Imago – oferece uma excelente

garantia de que o ―crime‖ da introjeção nunca será conhecido. (p. 126)

Estas idéias, além de fundamentais para a clara distinção entre mecanismos

interligados no processo identificatório do sujeito, são de grande valia para a nitidez

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conceitual de noções freudianas que por vezes são referidas, porém nem sempre

especificadas e esclarecidas.

Um crime originário e um ódio atávico

A perspectiva e os detalhes em que se deteve ABRAHAM (1995) ao descrever

os mecanismos do processo identificatório são de especial contribuição para a clínica

psicanalítica, indicando importantes aspectos dos mecanismos de introjeção,

incorporação e identificação. . Este autor descreveu que o processo de introjeção, em

si essencialmente prazeroso, se modificaria pelo elemento de sofrimento associado à

culpa inscrita na etapa mais arcaica na constituição egóica. Esta culpa refere-se ao

crime imaginário de, mediante o processo de introjeção, deixar o estado de inocência

original e despertar a si para o mundo.

A perda do mito do Paraíso inicial determinaria uma relação nostálgica

daquele estado de felicidade de simbiose com a mãe, em função da emergência de um

desejo que desperta culpa. Se a Imago inconsciente vier a permanecer excessivamente

marcada por este pecado indizível, o sujeito se constituiria em vítima, acusado interna

e anonimamente por ter dado início ao processo natural em direção à introjeção.

Tratar-se-ia, então, de uma culpa primeira sem juiz nem delito, que se encontra

intrínseca à constituição da duplicidade sujeito-objeto. No entanto, podendo

cristalizar-se numa culpa produzida pelo fato de o objeto ter sido incorporado, não

chegando a poder ser efetivamente introjetado, o que já seria uma possibilidade de

superação desta culpa. Sendo então neste terreno e desta forma, que ―[...] as punições

infligidas por seu homólogo exterior encontram um lugar no sujeito‖ (ABRAHAM,

1995, p. 122). Ter-se-á oportunidade de retornar a estas idéias adiante neste trabalho.

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Em uma direção contraposta, mas não necessariamente excludente, figura a

concepção de STEIN (1988) de que todos os homens teriam sido alvo do ódio da

própria mãe pela separação instaurada no nascimento. Isto provoca que o próprio

sujeito se odeie, carregando em si o ódio representado pelas Erínias de uma mãe,

vingança que não se esgota, o que garantiria uma ligação indestrutível com a figura

materna, assim como a perseguição por sua vingança, com seu ódio. Este autor

associou o ―cair do ódio materno sobre o filho‖ à descrição de Freud sobre a

melancolia, quando a sombra do objeto recaindo sobre o ego faz desta característica

sua fundamental diferenciação do processo de luto. Assim, o ódio da mãe, ao provocar

como resultado o ódio do sujeito a si próprio, revelar-se-ia como um dos fatores de

maior resistência na análise.

Nesta perspectiva, STEIN (1988) ressaltou que se referia à melancolia

constitutiva do homem, importante noção a ser considerada e que se articula ao

esquema conceitual kleiniano em sua concepção do desenvolvimento primitivo. A

melancolia constitutiva estaria intimamente ligada à figura de uma mãe, na versão

patológica sendo

[...] fundada sobre o ódio inextinguível, imortal, que assegura um laço

indestrutível com uma mãe [...] ―Eu me odeio‖ e ―ela me odeia‖ são duas

proposições intercambiáveis, representando uma única e mesma indizível

unidade no ódio. Assim, retrospectivamente, é a partir do dia da separação

instaurada pelo nascimento que este ódio passa a garantir uma ligação à toda

prova com aquela da qual nascemos [...] O ódio nasce com o objeto, e ‗a

sombra do objeto caiu sobre o ego‘, de onde a depreciação de si. Desde o dia

do meu nascimento, o ódio de minha mãe caiu sobre mim; eu me odeio.

(STEIN, 1988, p. 47)

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Por sua vez, BERLINCK (2000) cunhou a denominação de ―insuficiência

imunológica psíquica‖ para a condição de pacientes que apresentam uma estrutura

psíquica na qual tem lugar grande incapacidade de se proteger contra ataques

virulentos externos e uma disponibilidade a sofrer ataques endógenos, que

freqüentemente podem levar à sua destruição. Esta noção expressa de modo muito

apropriado uma condição observada com alguma freqüência na clínica psicanalítica.

Esse autor considerou esta destrutividade psíquica inconsciente como uma herança,

associando-a ao ódio destrutivo que permeia, em especial, a relação das mães

narcisistas com seus filhos. Neste ponto, aproximou suas idéias da noção de ―erínias

de uma mãe‖ desenvolvida por Stein e anteriormente citada.

Associado ao amor materno que dedica aos filhos, tem lugar um ódio

destrutivo materno, que pode se expressar inclusive pela superproteção destas mães

fálicas em relação aos filhos, podendo constituir base para que a melancolia tenha

lugar. Como conseqüência, os filhos se constituem na incapacidade de se cuidar e

proteger, uma vez que o poder é plenamente atribuído e concentrado na mãe fálica.

Configuram-se em sujeitos lançados ao âmbito do desamparo passivo, podendo

entregar-se ao outro para ser explorados e manipulados e, assim, perdurando uma

condição nefasta de submissão e impotência na qual permanece em cultivo sua

―insuficiência imunológica psíquica‖.

Identificação projetiva

O importante conceito de identificação projetiva tem sido amplamente referido

em psicanálise desde que Klein o definiu em 1946. Tem-se configurado em um rico

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conceito sob o ponto de vista metapsicológico, revelando-se de grande importância

para a clínica psicanalítica, em especial junto a pacientes fronteiriços e psicóticos.

A identificação projetiva consiste em uma fantasia onipotente de clivagem e

expulsão de conteúdos intoleráveis para o ego, não apenas projetando-os para dentro

do objeto, mas visando controlá-lo e dele tomar posse. Assim, a identificação

projetiva foi concebida originariamente por KLEIN (1946) como conceito-ponte entre

a projeção e a identificação, constituindo mecanismo característico da posição

esquizo-paranóide.

Cabe relembrar que a conceituação kleiniana ―teoria das posições‖ estabelece-

se em perspectiva distinta daquela da divisão em fases do desenvolvimento libidinal,

que norteava a teoria freudiana. As idéias de Karl Abraham conduzindo a uma síntese

genética mais compreensiva e integrada da evolução libidinal proposta por Freud

referiam-se às defesas, aos estados egóicos e relações de objeto que ocorriam em cada

momento, além de estabelecer divisões importantes no interior das fases libidinais,

como ter-se-á oportunidade de conferir adiante neste trabalho. Embora tenha sido este

o ponto de onde partiu KLEIN (1935), ela concebeu o desenvolvimento mental em

termos originais, como atesta sua ―teoria das posições‖.

A noção de posição foi criada por Klein como unidade de desenvolvimento

composta por uma constelação de impulsos, fantasias, angústias e defesas específicas,

tendo lugar em determinado momento do desenvolvimento egóico primitivo. Além

disso, ao longo da vida permanece a possibilidade, em maior ou menor grau, de o

indivíduo transitar entre o funcionamento característico da posição esquizo-paranóide

e o mais evoluído da posição depressiva. O anterior modo de funcionamento podendo

se reapresentar, seja de forma eventual e transitória em todos os indivíduos, ou

obedecendo a fixações mais marcantes e determinantes na patologia.

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Fundamentalmente, na ênfase do desenvolvimento mental no primeiro ano de

vida do bebê, KLEIN (1935) estabeleceu a posição esquizo-paranóide tendo lugar nos

primeiros três meses de vida do bebê, e a posição depressiva iniciando-se em torno do

quarto ou quinto mês de vida. Adiante neste trabalho, será possível consideração mais

detalhada sobre este alicerce teórico do pensamento kleiniano. Por ora, retoma-se a

identificação projetiva.

A identificação projetiva é mecanismo estruturante do psiquismo, fazendo

parte do intercâmbio projetivo-introjetivo com o mundo externo e integrando o

processo identificatório do sujeito com o objeto desde sua origem mais remota. Tem

por base a relação de objeto que o sujeito estabelece antes mesmo de uma nítida

diferenciação entre o eu e o não-eu, entre mundo interno e externo, portanto sendo

mecanismo característico da posição esquizo-paranóide. No entanto, a intensidade e a

extensão em que é utilizado pode configurá-lo em mecanismo essencialmente

patológico, com predominância da fusão entre sujeito e objeto. A identificação

projetiva é a base das relações narcisistas de objeto nas personalidades de estrutura

narcisista ou psicótica.

Em seu estudo aprofundado e crítico da teoria kleiniana, PETOT (1988)

considerou a identificação projetiva muito mais um precursor do mecanismo de

identificação do que propriamente uma identificação verdadeira, especificação

bastante pertinente tendo em vista o processo que comporta e a forma como constitui

um especial tipo de relação objetal. Sendo um mecanismo com caráter self-formativo

e defensivo, deve ser encarado como componente do processo identificatório global

que estrutura o primitivo ego infantil. Em função disso, a identificação projetiva pode

apresentar-se, mesmo que em proporções reduzidas e expressões passageiras, nas

personalidades de desenvolvimento normal e ao longo de toda a vida. No processo

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analítico, suas manifestações fazem-se sentir mais flagrantemente em momentos ou

períodos mais conturbados da relação transferencial, quando afloram conteúdos e

defesas de características de teor mais psicótico.

Ao cindir as partes más do self (ou o self mau todo) e projetá-las com ódio

para dentro do objeto, danificando, controlando e dele procurando se apossar, a

identificação projetiva caracteriza-se primitivamente como o protótipo de uma relação

objetal agressiva. O ódio a partes do self é desviado pelo sujeito inicialmente para o

seio, objeto parcial, que por efeito deste mecanismo de cisão do ego e projeção no

objeto, converte-se em um objeto persecutório. Quando o emprego do mecanismo de

identificação projetiva é excessivo, reforça-se a persecutoriedade tanto interna quanto

externamente, o ego e o bom objeto sendo ameaçados. Isto se dá particularmente por

ocasião da tentativa de reintrojeção e de integração egóica do que fora previamente

cindido e projetado.

Em contrapartida, KLEIN (1946) não deixou de enfatizar que também podem

ser alvo de identificação projetiva sentimentos e partes boas do self, o que, em última

instância, constitui um mecanismo essencial para o desenvolvimento da capacidade do

bebê em estabelecer boas relações de objeto e integrar o próprio ego. No entanto, este

processo pode configurar-se na projeção excessiva de partes boas do self pelo

predomínio da persecutoriedade interna. Se assim for, partes boas serão sentidas como

se tivessem sido perdidas e, em contrapartida, o seio (ou a mãe) enquanto objeto

idealizado converte-se em ideal de ego do sujeito. Tal circunstância produz efeito

negativo, uma vez que o enfraquecimento e o empobrecimento egóicos resultam em

extrema dependência do sujeito ao objeto que contém suas partes boas. O ego sente-se

frágil para tomar de volta as partes por ele projetadas no mundo externo; em função

disto, permanece atado ao objeto, por vezes prolongada e irremediavelmente.

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A identificação projetiva patológica define-se pelo grau de ódio e violência da

cisão do ego e intrusão no objeto; a qualidade do controle onipotente e da fusão com o

objeto; a quantidade de ego que é perdida; o objetivo específico em destruir

especialmente a percepção da realidade interna. Uma vez mais, PETOT (1988) foi

esclarecedor ao considerar que, na sua forma mais patológica, a identificação projetiva

consiste no evacuar violento de um estado mental penoso, resultando na fantasia de

ingresso forçado em um objeto e uma forma de alcançar alívio imediato,

freqüentemente com o objetivo de controle intimidador do objeto.

Porém, a identificação projetiva também pode se estabelecer com o objetivo de

comunicação a respeito de um estado mental do sujeito, dirigindo-se a um objeto no

qual busca a continência e a empatia para com seus sentimentos e fantasias. No

entanto, nem sempre na clínica a diferença entre o objetivo de evacuação e de

comunicação é completamente nítida, pois ambos os sentidos e objetivos da

identificação projetiva podem mesclar-se.

Klein, em seu artigo de 1955, ―Sobre a identificação‖, sugerira que a

identificação projetiva das partes boas traria como efeito secundário sentimentos de

natureza depressiva, pois o sujeito experimentaria o sentimento de perda do bom self,

como relembrou a análise de PETOT (1988). Além disso, esse processo poderia gerar

o temor de ser absorvido pelo objeto, em retaliação à projeção de partes do self, o que

se refletiria no sentimento de que partes inteiras da personalidade escapariam ao

controle do sujeito, permanecendo inacessíveis ou desaparecendo por completo.

Uma condição que diz respeito à elaboração da posição depressiva, postulada

por KLEIN (1935) como a posição central do desenvolvimento primitivo, é a exitosa

implantação do bom objeto dentro do ego, configurando internamente uma solidez e

constância objetal. Assim, o objeto internamente permanece a salvo, conferindo ao

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ego sentimento de segurança e riqueza próprias, além de confiança em si e no objeto,

o que termina por se refletir na relação com o objeto externo. Sendo superadas as

angústias da posição depressiva e o temor da perda do objeto, poderá ocorrer o

extravasamento de libido e a projeção de partes boas do self no mundo externo. Sem

incorrer no sentimento de estar se enfraquecendo ou se desprovendo, como era

característico do ego mais incipiente e não-estruturado da posição esquizo-paranóide,

ao lançar mão do mecanismo da identificação projetiva de forma excessiva.

No texto de 1957, ―Inveja e gratidão‖, Klein indicou estar a inveja primária

profundamente implicada no mecanismo da identificação projetiva, uma vez se

configurando na fantasia de ingresso forçado no objeto bom com o fim de destruir

suas melhores qualidades. A descoberta da inveja primária consiste neste ataque ao

bom objeto, alvo de investimento libidinal e fonte de recursos preciosos e valorizados;

isso demarcou uma mudança teórica significativa no pensamento kleiniano. Tendo em

vista esta nova perspectiva, a agressividade constitucional foi considerada como

variando em cada individuo, e a inveja primária sendo um obstáculo por vezes

intransponível para o método psicanalítico.

ROSENFELD (1991) durante muitos anos interessou-se pelo estudo do

mecanismo da identificação projetiva e sua importância para a clínica, principalmente

junto a pacientes psicóticos. Destacou como as relações de objeto narcisistas

encontram-se amplamente assentadas neste mecanismo de defesa do ego primitivo,

pois o objeto é incorporado ao sujeito e a fantasia onipotente sugere o

desaparecimento de qualquer identidade separada entre eles. São relações defensivas

contra o reconhecimento da separação entre self e objeto, pois esta clara apreensão

conduziria o sujeito a experimentar sentimentos de dependência do bom objeto.

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A transformação do bom objeto em objeto idealizado, mediante as projeções

que sofre por parte do ego primitivo, estimula a exacerbação da inveja em relação ao

próprio objeto, produzindo impulsos e reações agressivas perante o possível

reconhecimento da dependência de um objeto que não esteja sob o controle onipotente

do sujeito. Deste modo, ROSENFELD (1991) sublinhou que no paciente psicótico o

uso acentuado de identificação projetiva seria mais freqüentemente uma defesa contra

a inveja excessiva. Em sua opinião, por estar inteiramente ligada com o narcisismo do

paciente, adquire a prevalência com relação à defesa contra a ansiedade de separação

diante do objeto, que se diferencia e demonstra sua alteridade. Tal visão tem

implicações clínicas importantes, pois destaca a importância de ser claramente

identificada a angústia básica subjacente ao mecanismo da identificação projetiva, em

quadros psicopatológicos mais comprometidos.

Um espelho humano

O rosto da mãe é um elemento primordial com o qual o recém-nascido interage

em sua trajetória iniciante de bebê humano. Experimentando ao meio que o cerca

como uma extensão de si mesmo, pois a diferenciação entre o eu e o não-eu se dá

gradativamente, o bebê começará a ter idéia de sua existência por meio da forma

como é olhado e investido pelo olhar materno. O que o bebê vê quando olha o rosto da

mãe é a si mesmo, por isto a importância essencial de a mãe poder responder a isto

devolvendo-lhe a própria imagem, em uma troca significativa ímpar que mais tarde se

estenderá para o meio e para o mundo que o cerca. WINNICOTT (1975) reconheceu

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assim a diferença entre esta noção de sua teoria e aquele conceito de uso de espelho

definido por Lacan12

.

Se, porventura, o rosto da mãe não reage ao bebê e seu olhar, este rosto será

algo a ser apenas olhado e não examinado, o bebê não sentindo que a mãe pode vê-lo

e entrar em relação com ele. Como se sabe, este é o caso, por exemplo, de mães

depressivas. De qualquer forma, por vezes o bebê se vê diante da necessidade de

exagerar em suas reações de modo a tentar atrair para si o olhar da mãe que se ausenta

ou que é vazio. Falta-lhe a seiva que pode dar vida humana ao bebê, para que possa

sentir-se verdadeiro e importante por ser quem é.

Desta forma, pode-se dizer que este olhar de investimento materno, é a matriz

identificatória do bebê. A porta principal por meio da qual ele estará, gradativamente,

tendo a chance de constituir uma imagem de si mesmo, com assentamento na

realidade, tendo um balizamento interno sólido e seguro de quem é para si e para o

outro.

Na medida em que a criança se desenvolve e suas identificações se

multiplicam, vai se tornando cada vez menos dependente do olhar da mãe (e depois do

pai) para obter de volta uma noção sobre si próprio. Vai ampliando seu interesse em

relação às pessoas de relacionamento mais próximo, para depois enveredar pela troca

significativa com o meio social mais amplo. Caso algo falhe neste processo, há a

possibilidade de uma distorção egóica que se desenvolve em termos de falso self, que

se sobrepõe onde deveria haver franca e natural expressão do self verdadeiro.

12

Lacan introduziu a noção de estádio de espelho para descrever como nasce a representação no início

da vida psíquica e ilustrar o nascimento do eu. Considerou ser na relação especular que se estrutura,

simultaneamente, a unidade do eu e a do objeto. Para ele, ―[...] o narcisismo primário cosntitui-se no

momento em que a criança capta sua imagem no espelho, imagem esta baseada na imagem do outro,

geralmente da mãe que a sustenta. Neste momento, tal imagem refletida no espelho introduz o

narcisismo secundário‖ (KLAUTAU, 2002, p. 67). Seria, então, mediante a imagem do corpo do outro

vista em sua totalidade, que o bebê obtém, por antecipação a sensação de unificação corporal. Ao

mesmo tempo em que o eu se constitui, a imagem especular é a apreendida como objeto; assim, o eu

constitui-se como objeto, que, por sua vez, equivale à imagem própria do eu (KLAUTAU, 2002).

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122

Em sua conceituação sobre o espaço transicional de experiência, intermediário

e necessário na relação inicial do bebê com a mãe, WINNICOTT (1975) considerou a

mãe a primeira possessão do bebê. Este objeto primário representa o não-eu para o

bebê, que, no entanto, nos primórdios de sua existência, vive intensa e plenamente a

fantasia onipotente de formar um todo indiferenciado com o mundo que o cerca.

Os objetos transicionais e os fenômenos transicionais pertencem ao que no

bebê se configura uma área sob o domínio da ilusão13

, que está na base do início do

que deve ser sua própria experiência. Esta área intermediária, pertencente à realidade

interna e à externa que é compartilhada, constitui a maior parte da experiência do

bebê, sendo conservada ao longo da vida na experimentação intensa que se refere às

artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador, ressaltou

WINNICOTT (1975).

Pertencendo ao mundo externo, o objeto transicional é real, mas não é

vivenciado como totalmente separado pelo bebê. Ele precede o teste da realidade

estabelecido. Este objeto transicional representa o seio, o objeto da primeira relação

do bebê, com o qual passa do controle onipotente para o controle da manipulação,

envolvendo o erotismo muscular e o prazer da coordenação.

O objeto transicional não constitui um objeto interno, fundamentalmente um

conceito mental, mas é uma possessão no mundo externo que guarda conexão com o

objeto interno, pois o bebê pode usar o objeto transicional apenas quando o objeto

interno está vivo, é real e suficientemente bom. ―O objeto transicional pode, portanto,

representar o seio ―externo‖, mas indiretamente, por ser representante de um seio

‗interno‘. O objeto transicional jamais está sob o controle mágico, como o objeto

13

A experiência subjetiva em que a onipotência possibilita ao bebê a crença de que cria o objeto (seio)

e este faz parte dele, processa-se em uma área mental de controle mágico e dominada pela ilusão, que é

favorecida pela mãe ao adaptar-se quase completamente ao bebê. ―A mãe coloca o seio real exatamente

onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato‖. (WINNICOTT, 1975, p. 26)

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interno, nem tampouco fora de controle, como a mãe real‖ (WINNICOTT, 1975, p.

24).

D. No rastro de indícios identificatórios

Era característico no discurso inicial de Carmen referir-se a traços de sua

personalidade que, freqüentemente, reconhecia ora como sendo do pai, ora como

sendo da mãe. Como se fossem próteses parciais destes objetos primários que Carmen

agregara a si, sem no entanto integrá-las mais plenamente ao próprio ego. Repetia isto

quando se referia ao filho, sempre ressaltando a semelhança, a herança, a

identificação. Parecia não conseguir apreender de modo distinto a ninguém, nunca

havendo singularização, pela existência marcante de pontos de união e fusão com

algum outro. Ninguém era por si, ela própria assim se sentindo em relação a seus

objetos.

Desse modo, os modelos identificatórios eram persistentemente referidos,

Carmen não se emancipando deles, possivelmente como ponto de ancoragem

imprescindível para proporcionar-lhe algum sentimento de continuidade e de unidade

subjetiva, jamais tendo constituído uma subjetividade integrada e uma identidade

solidamente plantada.

Em certos momentos, isso era ainda mais flagrante, indicando certo prazer

narcísico em destacar a origem destes traços. Era dessa forma que Carmen ressaltava o

comportamento materno que imperava nas mulheres da família. Era também o tom em

que destacava o aspecto inquieto do pai à procura de constantes desafios.

Em contrapartida, quando destacava a decepção com seu filho Augusto,

penava dolorosamente porque a realidade vivida não se encaixava no modelo de

relação materno-filial pelo qual sempre se pautara, aquele de suas antepassadas e da

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cultura da qual provinham. Parecia também ser dolorido, mas ao mesmo tempo

reconfortante, lembrar-se de que ela não era a primeira na família a se sentir instigada

por desafios, mas tendo a mesma facilidade paterna em abandonar projetos e se deixar

enganar por terceiros. Ele fora aquele que entrara em falência após separar-se da mãe

de Carmen, como se este fosse o preço por ter desmanchado o frágil equilíbrio que

imperara por longos anos em sua relação conjugal e familiar. Ele reconstituíra sua

vida familiar com outra mulher de nível social mais simples, com ela tivera mais dois

filhos, porém seus negócios nunca mais prosperaram e foram lucrativos.

Agora era Carmen quem estava falida e em ruína, afundando-se

melancolicamente em abandono físico e debilitação emocional, sentindo-se

profundamente frustrada, decepcionada e desamparada. Era habitada pelo ódio e pelo

ressentimento por se sentir a vítima injustiçada de uma vida inteiramente sacrificada e

dedicada a seus objetos de amor. Expressava-se como se por eles tivesse sido deixada

a seu próprio desamparo, indicando insistentemente que assim se encontrava pelo

falecimento da mãe e pelo desejo do filho de se libertar do papel que lhe fora

impingido. Em alguns momentos, agregava a este sofrer o penar com o ex-marido, de

quem se sentira vítima espoliada por longos anos, culminando no litígio judicial da

separação conjugal. Esta era uma das maneiras de Carmen indicar a contigüidade de

seus objetos idealizados e objetos persecutórios, com ambos guardando traços

identificatórios marcantes.

A falência profissional e financeira revelava a parcial identificação de Carmen

com a figura paterna, desmontando-se após a partida da mãe, sentida como

sustentáculo de sua vida e alicerce de seu mundo interno, que agora lhe faltava. Pelo

lado contrário, a separação do marido representara um desafio para construir uma

carreira autodidata como artista plástica. O combustível do ódio a movera para defesas

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maníacas e fantasias onipotentes, naquela ocasião proporcionando-lhe o sentimento de

triunfar, negar e controlar o objeto de quem na realidade se separava. Descartava com

isto, de algum modo, a possibilidade de sentir-se perdendo algo com esta separação.

Por outro lado, Carmen também apontava para a identificação com o modelo

da mãe, que na velhice entregara-se para ser acolhida amplamente pela filha, para

deixar de trabalhar e se dedicar apenas ao que gostava dentro de casa. Sendo

cuidada, protegida e amparada pela filha devota. Esta era a poderosa fantasia

idealizada de Carmen, resultando em maciça identificação projetiva sobre o filho,

visando dele receber nada menos do que ela mesma lhe devotara desde o nascimento,

assim como dedicara à própria mãe durante toda a vida.

Augusto parecia ter sido gerado com um destino do qual, a duras penas, estava

tentando se destacar. Parecia ter sido ele sempre imaginado na posição de filho

incondicionalmente devoto, que não se constituiria como sujeito para seu próprio

destino. Destino este flagrantemente configurado a partir da relação original, na qual

como filho de uma mãe narcisista, deveria estar esvaziado em sua submissão e

devoção à mãe fálica em que se configurava Carmen. Assim parecia ser havia algumas

gerações nesta família dominada por mulheres.

Carmen veio para a análise à procura de alívio para seu sofrimento após o

desaparecimento de sua mãe, e buscando mudança em seu desconsolo e decepção no

relacionamento com Augusto. Além destas perdas objetais, tornara-se para ela um

desafio, que transferia à psicanalista, a ressureição de seus dias de glória, perda

narcísica ainda mais incisiva, circunscrição de sua problemática em um âmbito ainda

mais profundo. Como fator adicional, o início do envelhecimento a fizera confrontar-

se com uma vida em que não erigira internamente estruturas sólidas que a

sustentassem para tal enfrentamento. Pois, pautando-se pelo externo em detrimento do

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interno, quando as perdas ―para fora‖ manifestavam-se mais acentuadamente, ela

restara sem ter no que se sustentar, uma vez perdidas a jovialidade, a alegria, a

juventude e a beleza que tanto lhe haviam assegurado narcisicamente junto ao mundo

externo.

No entanto, Carmen concentrava-se no que considerava como seu objetivo

prioritário, tentar reverter o abismo entre si e o filho, o que os tornara uma espécie de

inimigos íntimos.Quando se produziam associações que a levavam a revisitar a

epopéia de sua história de vida, por vezes Carmen se impacientava por não identificar

onde o repisar destas águas passadas pode me ajudar a sair da depressão, começar a

fazer algo para ganhar dinheiro e melhorar minha relação atual com Augusto?

Reapresentavam-se insistentemente sentimentos, fantasias e lembranças que a

habitavam como fantasmas de longa data, ameaçando-a a maior parte do tempo, e no

entanto não sendo possível a ela encontrar-lhes um destino dentro de si que pudesse

absorvê-los e acalmá-los. Para o desespero circular de Carmen, cada vez mais eram

revigorados de modo idêntico. Em especial as ofensas narcísicas pareciam feri-la

como esporões na alma, não possibilitando a cicatrização calmante que adviria da

integração da dor, do perdão das mágoas, assim como do reconhecimento de seus

próprios impulsos, que nem sempre encontravam-se a serviço de preservá-la ou

conduzi-la na direção de Eros.

Era um destino pessoal que a remetia sempre ao mesmo beco sem saída, apesar

de Carmen se sentir imensamente prejudicada por variados infortúnios. Poderia ela

constituir-se em ―dona de seu destino‖ como parecia pretender, vencendo quem sabe

sua história que podia abrigar herança determinante, a qual ela indicava não conseguir

neutralizar? O destino prévio de seu narcisismo primário que assim a posicionara,

somando-se aos fortes laços identificatórios com os objetos originais que a tornavam

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cativa, poderiam dar lugar a uma existência e uma trajetória singular e independente?

O peso cumulativo destes determinismos pareciam fazê-la fundamentalmente sentir-se

não autora nem gestora efetiva em sua vida.

Infeliz personagem em busca de um rosto e de uma identidade, como destacara

Carmen ao trazer para a sessão de análise a sua primeira escultura moldada em barro.

Assim indicando não apenas seu processo, mas possivelmente a ausência de uma troca

significativa com o rosto materno no início de seu desenvolvimento. Quem sabe

denunciasse o olhar vazio ou o olhar de uma mãe que não conseguia enxergar o bebê

Carmen, de modo a refletir-lhe como um espelho sua própria imagem. Para que

pudesse constituir uma imagem de si consistente e desenvolver seu eu verdadeiro, em

uma identidade solidamente construída e singularizada. Quem sabe Carmen ainda

estivesse à procura de uma experiência com o outro que pudesse oferecer-lhe esta

oportunidade básica, e, desse modo, apresentando-se tão exageradamente exuberante e

requisitante, de modo a atrair olhares que pudessem vê-la para além da própria casca

ofuscante.

As identificações lhe pesavam condenatoriamente; no entanto, quando delas

tentava se afastar pelo processo de desidentificação, assolava-a outra espécie de

desconsolo e temor. Ser quem, se não seria o ressoar e a continuidade dos que a

antecederam? Que destino poderia lhe advir neste desabrigo? As balizas de seus

modelos identificatórios pelo menos lhe eram conhecidas, pensava saber onde iriam

dar, mesmo que o olhar crítico e a observação realística lhe revelassem o beco sem

saída em que haviam desembocado.

O que Carmen revelava, mas não divisava, era o vazio subjetivo em que se

encontrava. Intuitivamente, no entanto, desde sempre, ela temera afastar-se da ―pele‖

e do abrigo que os objetos originais lhe ofereciam, pois sentia sua existência correr

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riscos, ao desfazer a montagem recortada de identificações parciais e não integradas

que abrigava. Era este um risco que desde sua tenra infância mais temia e que

vivenciava, sem ao menos compreender.

Quando tinha início a conquista de alguma independência efetiva na própria

vida, Carmen parecia padecer da culpa por abandonar suas origens e os modelos de

seus antepassados. Era este o domínio de seu superego cruel e implacável. Isto a

desviava de sua abertura para o mundo e a relançava para o lugar daquela que não

podia constituir uma trajetória própria, passageira culpada de um ―crime originário‖

que sempre a fazia retornar às origens.

E. Em busca de novos rumos

Foram vários os homens na vida de Carmen. Um casamento mais longo, com

alguns deles manteve vínculo mais significativo e com outros teve encontros

ocasionais. Porém, em todos eles a repetição da marca de uma felicidade inatingível.

Em vários, a ilusão desfeita, gradativa ou abrupta, a remeter-lhe de volta para os

braços de seu primeiro amor, a figura materna que jamais dera lugar a seus

necessários substitutos, Obstaculizando, sem dúvida, o avanço pela consolidação da

triangularidade edípica, que se encontrava comprometida.

Reinava acima de todas a ligação pré-edípica, com persistentes características

de dependência oral e controle anal, que Carmen reproduzia em menor ou maior grau

em seus relacionamentos. Era poderosa a fantasia idílica de completude, o que fizera

com que ela não conseguisse uma diferenciação que lhe garantisse a chance de se

tornar a mulher parceira amorosa de um homem que escolhesse e a satisfizesse. Nestas

escolhas, imperavam a frustração e a decepção, quando não o grave emergir de

relações com características sádicas e masoquistas, nas quais Carmen podia ser ora o

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algoz, ora a vítima, sendo posições não excludentes e ainda podendo interagir. No

inconsciente: culpa de Carmen ou vingança materna? Possivelmente ambos,

configurando-se em um superego que sempre a atingia e vitimizava.

Os homens aparentemente salvadores e guardiães, como inicialmente o

próprio marido, ao final lhe ofereciam a escravidão a um vínculo de dependência e de

características sádicas, como fiéis representantes da atuação superegóica em seu

interior. Mesmo quando Carmen se posicionava em outro extremo na relação, de

algum modo dominante e auto-suficiente, seus homens não chegaram a se constituir

em parceiros de fato, ou como objetos a quem desejava por si, mas, no máximo, como

inseminador. Por vezes, figuras narcísicas que se beneficiavam do brilho que dela

emanava, devolviam-lhe alguma admiração fugaz com o que alimentava seu próprio

narcisismo. Relações objetais fundamentalmente pautadas pelo uso de identificações

projetivas amplas e freqüentemente maciças.

Ela procurava um lugar ao sol para germinar sem sucumbir no engolfamento

em relação ao objeto, mas também sem se atolar em uma culpa irreparável em relação

a seus desejos e impulsos em direção ao outro. Carmen era um sujeito em busca de um

destino menos comprometido, pois a argamassa que a constituíra nunca deixara de

incluir a projeção de ideais que não permitiram o desenvolvimento de um eu

estruturado, coeso e verdadeiro.

A identificação com o objeto primário tornava-a escrava de repetições

nefastas, reincidindo em relações plenamente contaminadas, sem perspectiva de se

tornarem vínculos progressivos. A identificação com a figura paterna, embora

deixasse rastros, estava longe de se constituir mais amplamente como objeto de amor,

por ser continuamente remetida à impossibilidade da separação da figura materna.

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Assim, não ocorrera a solidificação da triangularidade imprescindível, reveladora de

um avançar menos comprometido.

A projeção de seu ideal de ego em Augusto resultara que, desde o berço, o

filho constituísse um objeto narcisicamente idealizado, devendo dar continuidade às

realizações maternas, e assim, valer-lhe como reposição narcísica de seus fracassos.

Para Augusto, foram drenadas todas as expectativas, realizados os mais altos

investimentos a fimde que pudesse ser uma Carmen de sucesso.

Certa vez, Carmen contou uma lenda que lhe fora transmitida pela mãe e pela

avó, para destacar o papel de mãe-mártir e seu investimento narcísico na figura do

filho, o que sentia que herdara de sua cultura e das mulheres da família: Após ter seu

coração arrancado pelo próprio filho, o coração materno, ainda sangrando, se

preocupava em saber se o filho cruel se machucara ao tropeçar quando partia em

disparada. Carmen fazia seu relato na língua materna de suas antepassadas,

acompanhando-o com risos de quem percebia do que se tratava, porém sentindo

algum prazer em ser este um destino ao qual parecia não desejar muito radicalmente

se evadir. Penosamente, parecia estar galgando alguma separação de Augusto apenas

pela decepção, pelo afastamento e pela rispidez que ele lhe impunha, não sendo este

um desejo que nutria originariamente.

A repetição em Augusto de múltiplos talentos inaproveitados ou inexplorados,

faziam Carmen transtornar-se, entre ódio e decepção. Se ele falhava, não lhe sobrava

mais esperança; restava-lhe o refúgio melancólico de quem se pune amarguradamente

com o próprio fracasso, pessoal e materno. Entregando-se a maior parte das vezes

passivamente às agressões sádicas do próprio filho, Carmen parecia incitá-lo a puni-la

por sua existência insuficiente, suas capacidades inaproveitadas ou infrutíferas, seus

investimentos enganados e suas construções não realísticas.

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Apesar de tudo, na transferência Carmen indicava estar sedenta de um modelo

identificatório diverso daqueles que trazia pela incorporação de seus objetos

primitivos, como se houvesse uma fome de introjeção não saciada. Ao mesmo tempo,

esta fome antiga e voraz desviava-se para o controle sobre a psicanalista: indagando,

observando, buscando explicações para seus atos, ou inferindo seus estados

emocionais. A psicanalista necessitava buscar para si uma posição mais confortável,

de maior preservação e cautela. Carmen parecia tentar olhar e examinar cada detalhe

para abstrair como era vista, o que provocava no outro, como poderia a isto reagir. Era

a ancoragem no olhar do outro para encontrar a si. Porém, não era só.

Com freqüência, era como se Carmen ―comesse a analista com os olhos‖, de

modo a incorporar um objeto que pudesse tamponar seu vazio interior que não se

preenchia com a própria ―carne‖. Talvez tentando, com esta ―pele artificial‖, constituir

a si enquanto sujeito e, ao mesmo tempo, para não perder de vista o objeto e afrouxar

seu controle sobre ele. Por vezes, Carmen não deixava muito espaço para a

psicanalista produzir sua ―obra analítica‖ em forma de interpretações, sem que ela

pudesse de perto acompanhar, controlar. Quem sabe fantasiando onipotentemente ser

ela além de beneficiária final, a artífice original e detentora das glórias finais. Por

vezes, recusava-se a deitar-se no divã, pois dizia: frente a frente eu a vejo melhor,

ouço melhor e absorvo mais o que me diz. Não desejo perder nada, pode ser

importante.

A idealização e a busca identificatória junto à psicanalista coexistiam com o

desejo flagrantemente controlador próprio da paciente, provocando ressonâncias

contratransferenciais. Uma ligação libidinosa, porém apropriativa e intrusiva, e que

não permitia o relaxamento do controle e a existência independente. Por outro lado, o

controle visaria não colher de volta a projeção de conteúdos maus, que poderiam

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correr o risco de serem reintegrados pela introjeção. Em um e em outro sentido, o

mecanismo de identificação projetiva manifestava-se muito presente na relação

analítica, como ocorria na vida e nas relações de Carmen.

F. Tentativa de desvelar um sentido

Diante dos obstáculos e dos embates que Carmen enfrentava na vida e nas

relações que estabelecia, com especial destaque para o relacionamento com seu filho

Augusto, ela afirmava com alguma freqüência que parecia estar vivendo seu crime e

castigo. Com isto querendo enfatizar o absurdo das situações vividas, seu excessivo

penar e a falta de lógica, de sentido e de justiça sobre qualquer falha ou ataque que

sentisse ter cometido. Esta questão remetia a algo muito maior e profundo do que ela

concretamente podia divisar nas penosas circunstâncias daquele seu momento.

Enquanto o tratamento prosseguia, a psicanalista procurava identificar e

dimensionar o quanto essa condição resultaria do sentimento de culpa inconsciente

por seus impulsos agressivos, impondo ao ego de Carmen submeter-se ao sadismo do

objeto externo. Uma reprodução na relação com o objeto externo da cobrança e da

punição superegóicas, de modo a fazer o ego padecer em função do ―crime‖ cometido

contra o objeto. E de que ordem seria este crime? Pela ―introjeção primordial‖ do

objeto? Pela identificação projetiva dos conteúdos maus e impulsos intoleráveis para o

próprio ego? Por todos os ataques a que teria submetido seus objetos originais e seus

substitutos, em fantasia ou na realidade?

Qual seria este objeto que se reapresentava em diferentes roupagens no mundo

externo, embora sempre imputando a Carmen grandes perdas e duros sacrifícios? A

certeza sobre a maldade e a injustiça dos objetos externos indicava a fragilidade de

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Carmen diante deles ou a força implacável de objetos investidos com excessivo

poder?

No estado em que se encontrava, as fantasias suicidas talvez sugerissem ser a

morte a única certeza que Carmen conseguia divisar, uma vez que vivia em intenso

conflito e divisão externa, o que repercutia amplamente em sua relação com o mundo.

A psicanalista vivenciava na contratransferência a apreensão sobre se Carmen

sobreviveria ou daria cabo de sua vida com as próprias mãos. Como destacar-se para

ajudá-la a partir disso, era questão essencial para o tratamento.

Em parte, ela deixava-se morrer, e, aí, o conceito de narcisismo negativo de

Green auxiliava a identificar a ação da pulsão de morte, agindo de modo a conduzi-la

de volta ao estado inorgânico, tentando reduzir as tensões a zero e havendo o alívio de

todo desejo, aproximação da morte psíquica. Como FREUD (1917[1915]) indicara, há

estreita relação entre narcisismo e depressão.

Por outro lado, o narcisismo destrutivo conceituado por ROSENFELD (1988)

traduzia a atividade destrutiva que Carmen imprimia em sua vida. Ela não se rendia à

morte apenas na atualidade, mas vivera toda uma vida na qual procurava equilibrar-se

no meio-fio de sua tendências instintivas. E, assim, neste cenário, tentando erigir a si e

a seu bom objeto interno de maneira sólida e estável

Podia ser conferido que em Carmen a introjeção do bom falhara, como

ressaltou KLEIN (1935) ao descrever os estados maníaco-depressivos originários na

estruturação da mente primitiva. Um eu falho no estabelecimento da tessitura narcísica

necessária para permanecer estruturado após a separação e a perda do objeto primário,

ganhando-o para sempre por via introjetiva e identificatória. Essa passagem e

elaboração da posição depressiva no desenvolvimento primitivo teria possibilitado a

sólida constituição subjetiva e estruturação egóica que faltava em Carmen. Adiante

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neste trabalho, figurando em detalhes a exposição destas idéias, a posição depressiva

sendo crucial para o desenvolvimento e saúde mental.

A perda da mãe somada à decepção com o filho adorado desvelara uma ferida

narcísica nunca cicatrizada em Carmen. Na falta e na falha do objeto, revelava-se a

impossibilidade de, em sua constituição psíquica, ter realizado o luto pelo objeto

perdido, isto desde os primórdios tempos de sua relação estruturante com o objeto

primário. Sua angústia não era apenas perder o objeto externo, mas perder o objeto

interno indispensável, como reafirmaram ABRAHAM e TOROK (1995), na esteira do

pensamento kleiniano.

Em parte Carmen sugeria uma fidelidade jamais suplantada a um objeto que

não conseguiu ser esquecido nem distanciado, por ter-se fixado psiquicamente na

condição de ―objeto absolutamente necessário‖, e, portanto, não dando lugar à

representação e, por conseqüência, à simbolização. Estruturalmente tornando-se

excessivamente presente e com função intrusiva predominante, conforme relembraram

as palavras de FIGUEIREDO e CINTRA (2004) ao discorrerem sobre o caráter

constitutivo do ―trabalho do negativo‖ sugerido por Green, envolvendo complexa

noção da qual destacar-se-á apenas que

Sem esta perda para dentro, o objeto estará sempre demais, no que Green

chamará logo a seguir de excesso de presença [...] o indivíduo não consegue

se manter vivo e ativo sem um aporte contínuo de estimulação externa e, de

preferência, auto-produzida artificialmente [...] uma depressão narcísica

sempre à espreita. (FIGUEIREDO e CINTRA, 2004, p. 20)

A idealização como o corolário da persecutoriedade resulta na constituição de

objetos internos e externos cindidos em idealizados e persecutórios, que predominam

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na posição esquizo-paranóide. No advento da posição depressiva, emerge uma

ambivalência extremada a partir da unificação em um objeto total, porém, é condição

que ainda se encontra longe da integração dos aspectos distintos do objeto em um todo

realista.

Para Carmen, junto a seu filho Augusto tinha lugar um complexo de fantasias e

sentimentos extremados e primitivamente determinados. Envolviam não apenas

investimento amplo, devoção irrestrita e submissão plena, mas também raiva imensa,

mágoa profunda, ressentimento indissolúvel e culpa não saldável. Neste beco sem

saída da imago que criara e à qual se escravizava, Carmen buscava uma via de

salvação e apaziguamento. Para si e para Augusto, cada um cativo do próprio inferno

particular, mas também daquele compartilhado, desde a herança identificatória até a

coabitação intolerável.

Por vezes Carmen dizia: O problema é que com a morte de minha mãe eu

deixei de ser filha para me tornar a mãe. Essas palavras podiam compreender

múltiplos significados: seu lamento e sua raiva por ter de assumir responsabilidades

adultas na realidade externa mais ampla, para além do mundo doméstico; o reavivar

de seu desamparo e de sua fragilidade por ter de ser não apenas o esteio financeiro,

mas também a retaguarda emocional do núcleo familiar; a exigência que cultivava de,

como mãe, ter de ser eficiente e capaz (como sua própria mãe) a fim de manter o filho

em condição emocionalmente infantilizada, mas, paradoxalmente, desejando que ele

ocupasse o papel de provedor e de seu cuidador. Ou mesmo o temor de que Augusto

estivesse desferindo seus ―golpes à mãe‖, como ela provavelmente sempre desejara,

mas estivera impedida de o fazer, pelo menos na magnitude em que emergiam; ou

ainda significar que, como seu pai, Carmen se encaminhara para a falência e a ruína

pessoais após a saída de cena da figura materna (sendo possivelmente este seu desejo

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inconsciente de vingança em relação à própria mãe e a Augusto, quando imaginava

suicidar-se); talvez ainda se sentisse ameaçada de, ao assumir mais integralmente o

destino de uma mãe narcisista e controladora, provocar no filho ódio imenso (como

ela própria certamente teria sentido em relação à própria mãe).

Estes eram alguns dos significados que ressoavam repetidamente no

atendimento clínico de Carmen. Assim, era no terreno da constituição subjetiva que

Carmen indicava ter enfrentado obstáculos intransponíveis na tenra infância, desde a

relaçào com os objetos originais. O ―eu em ruína‖ que emergira na vida adulta

desvelara uma condição psíquica subjacente desde sempre.

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CAPÍTULO V

SOBRE A PERDA E A IMPOSSIBILIDADE DO LUTO

No caso de Carmen, havia muito tinha sido ultrapassado o período normal de

luto, com duração de um a dois anos. Estando obliterado o fluir deste processo em

reação à perda de um ser amado ou alguma abstração que ocupe este lugar, como

indicou Freud em ―Luto e melancolia‖, obra de 1917[1915].

Em estado depressivo que poderia durar indefinidamente, Carmen sabia quem

perdera, porém não tinha consciência do que havia perdido. Desde a morte de sua

mãe, tendo lugar um padecimento que havia muitos anos a consumia. Confluíam,

portanto, esta perda objetal, a ambivalência de sentimentos em relação ao objeto que

fora perdido e a regressão da libido em direção ao ego, configurando as precondições

de um acometimento melancólico. O que, de acordo com FREUD (1917[1915]), pode

tomar o lugar do luto normal em pessoas com disposição patológica.

Diante das imprecisões conceituais que sempre circundaram a diferenciação

entre depressão e melancolia, seja na psiquiatria ou na psicanálise, considera-se com

BERLINCK (2000) que a depressão pode manifestar-se em qualquer estrutura clínica.

Sempre que o psiquismo solicita restauração de seu narcisismo, em função de um

estado de desamparo e com graves insuficiências imunológicas, a depressão se

manifesta.

Nesta direção, considerou-se imprescindível o estudo da questão do luto, a

problemática que comporta e as dificuldades que podem ocorrer, obstaculizando seu

processo normal. Dificuldades ligadas à constituição subjetiva conduzem para o

enveredar de um acometimento melancólico, manifestando-se em toda sua essência a

partir da perda de um ser amado ou uma abstração que tenha tomado este lugar.

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A. Interface entre o luto e a melancolia

Após a ocupação com os conceitos de narcisismo e ideal de ego em 1914, teve

lugar o estudo freudiano do processo de luto e de sua interface com a melancolia,

afecção concebida fundamentalmente como neurose narcísica. A sombra do objeto

perdido recai sobre o ego, que com ele se identifica narcisicamente, e foi considerada

por FREUD (1917[1915]) a circunstância que obstaculiza um curso normal para o

processo de luto.

A ausência do ser amado sendo comprovada na realidade, tem lugar no

processo de luto um desligamento gradativo do objeto e o reinvestimento libidinal no

ego. Com a introjeção do objeto perdido no ego, ao final há a possibilidade de ligação

com um novo objeto. No entanto, como a melancolia comporta perda de natureza mais

ideal, constitui um processo bem mais complexo, podendo emergir mesmo quando o

objeto é perdido apenas enquanto objeto de amor. Além disso, a melancolia encontra-

se associada a uma perda que se encontra subtraída da consciência, e o paciente não

conhece o que perdeu nessa pessoa ou o que vinha ocupando este lugar.

Com causas de amplitude maior do que o luto, a melancolia tem na

ambivalência de sentimentos em relação ao objeto um elemento distintivo essencial, e

que promove o conflito que permanece na raiz desse processo patológico. O que pode

ser de origem constitucional, ser um elemento de toda relação amorosa deste ego

particular ou estar relacionado a experiências que envolveram ameaça de perda do

objeto (FREUD, 1917[1915]).

Devido à relação entre a melancolia e a fase oral-sádica do desenvolvimento

libidinal, o objeto perdido, em vez de ser introjetado no ego como se dá no luto, será

incorporado, constituindo assim um mecanismo que conjuga a internalização pelo

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amor ao objeto e o ódio pelo modo canibalista como isto se dá. Outro aspecto desta

tendência ao adoecimento melancólico refere-se à predominância, neste ego

específico, de um tipo narcisista de escolha objetal.

Se o amor pelo objeto não puder ser renunciado, tem lugar uma identificação

narcisista e uma divisão no ego. Uma de suas partes, tomando a outra como objeto

substitutivo, lhe dirige seu ódio fazendo o ego sofrer, degradando-o e tirando

satisfação de seu sofrimento, devido a uma regressão da libido ao sadismo. Deste

modo, instala-se no seio do psiquismo o embate entre amor e ódio que se originou

junto ao objeto amado perdido, ou à abstração que ocupava este lugar.

Pela via da identificação narcisista com o objeto perdido, há perda no ego, que

se sente empobrecido e esvaziado. O abatimento em seu amor-próprio e a insatisfação

consigo mesmo dão lugar a auto-recriminações e sentimentos de culpa em relação ao

objeto e à perda sofrida. Pelo caminho indireto da autopunição, o sujeito vinga-se do

objeto e o tortura por meio de sua doença, a esta recorrendo a fim de evitar a

expressão aberta de sua hostilidade. No entanto, apesar deste desvio para si, na

regressão narcísica em que envereda, o sujeito acometido de melancolia revela um

sentimento insistente de ser alvo de injustiça, deixando entrever sua revolta

subjacente, não apresentando a humildade que poderia ser esperada.

Mais tarde, FREUD (1924), lançando mão da formulação de sua segunda

tópica do aparelho psíquico descrita em ―O ego e o id‖, de 1923, apontou que na

neurose o ego entra em conflito com o id, a serviço do superego e da realidade.

Destacou a etiologia comum da psiconeurose e da psicose, localizando-a na frustração

que pode proceder do mundo externo ou então do superego, como agente interno

representante das exigências da realidade. E, por fim, mais especificamente,

caracterizou a melancolia como exemplo do conflito entre ego e superego, encarando-

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a como psiconeurose narcísica. Separou-a das neuroses de transferência, em que o

conflito se dá do ego em relação ao id, e das psicoses, nas quais o conflito é instalado

entre ego e mundo externo. Além desta formulação, Freud anunciou a possibilidade de

o ego ―[...] evitar uma ruptura em qualquer direção deformando-se, submetendo-se a

usurpações em sua própria unidade e até mesmo, talvez, efetuando uma clivagem ou

divisão de si próprio‖ (FREUD, 1924, p. 193).

Como é possível reconhecer, Carmen, ao chegar para o tratamento, enfrentava

um estado depressivo eminentemente de cunho melancólico. Ela atribuía à perda da

mãe a emergência de um processo que a conduzira à depressão e subseqüente ruína,

destacando ainda a enorme decepção com o filho único, o relacionamento entre eles

tendo se deteriorado progressivamente. Paralelamente, lamentava, ressentida, a perda

em si mesma, conferindo não conseguir restabelecer-se por seus próprios meios,

recompor o que sentia ter o poder de conduzi-la à morte, fosse pela emergência de

doenças que cada vez se somavam, ou pelo próprio suicídio.

Referindo-se à sua idade madura, Carmen lamentava que nos anos mais

recentes houvesse perdido o que antes lhe causava orgulho, fosse sua bela e atraente

aparência, seu vigor e disposição, mas primordialmente sua agilidade no

enfrentamento de desafios e dificuldades. De algum modo, a vida de Carmen parecia

carecer de sentido a partir destas perdas que elencava, fossem elas perdas narcísicas

ou perdas objetais. Como era possível conferir, Carmen abrigava conflitos que se

encontravam seja entre suas instâncias psíquicas, seja no confronto com a realidade ou

com os objetos do mundo externo.

Em suma, o melancólico, por ser um enlutado com a vida, encontra-se

mergulhado numa perda em relação a si próprio, verdadeira ferida aberta que se situa

na esfera psíquica, constitui um destino de perdedor e uma ânsia de amor inesgotável,

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como bem sintetizaram as palavras de PERES (1996). O empobrecimento do ego

resulta da contingência interior que devora o sujeito numa ―constelação psíquica da

revolta‖, sendo ―por ofensa real ou decepção‖ que a relação de objeto fica abalada, o

suicídio do melancólico representando essencialmente um retorno a si do desejo de

matar o outro.

Como se pode lembrar, FREUD (1917[1915]) acreditava apenas ser possível o

indivíduo se matar, como anunciava Carmen, na medida em que o ego tratasse a si

mesmo como objeto, e, assim, dirigisse contra si a hostilidade nutrida originalmente

em relação a um objeto do mundo externo.

Apesar de se saber da possibilidade de a melancolia assumir várias formas

clínicas, a questão da destrutividade e dos sentimentos de culpa são traços essenciais

nesta afecção. Na clínica psicanalítica evidencia-se sua distinção em relação à

depressão, o que infelizmente não tem constituído uma constante no enfoque

psiquiátrico, como advertiu MOREIRA (2002) em seu trabalho; muitas vezes,

confere-se que tal circunstância torna a melancolia invisível por detrás da depressão.

Relembrando-se Fédida por meio das palavras de BERLINCK (2000): os

antidepressivos não são antimelancólicos.

Retomando a valorização freudiana da questão identificatória na constituição

do ego, PERES (1996) relembrou que, ao conceituar a melancolia como uma neurose

narcísica, Freud teria localizado sua conflitiva no cerne da estruturação narcísica,

manifestando-se em forma de uma fissura estrutural, condição para tal afecção ser

apreendida no domínio de uma zona limítrofe entre neurose e psicose.

Assim sendo, foi possível conferir em Carmen o que as palavras de

LAMBOTTE (1996) tiveram a possibilidade de ressaltar:

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Na falta de uma imagem narcísica suficientemente afirmada, o sujeito

melancólico encontra o nada que o define. E, provavelmente, para retomar a

interrogação freudiana, ele se aproximou demais dessa verdade que adoece,

aquela que destrói a falsa segurança da identidade, denunciando a natureza

ilusória do eu. (p. 329)

Desse modo, tem lugar a extrema necessidade do sujeito melancólico em não deixar

escapar o objeto que porta suas marcas ideais de identidade.

Embora Carmen indicasse sofrer pela perda objetal na morte da mãe, seu

principal penar indicava tratar-se de uma perda inconsciente. Por sob a sensação de

que o mundo tornara-se pobre e vazio como ocorre no luto, ela era invadida por este

sentimento com relação ao próprio ego. Essa contingência era resultante de sua

identificação narcísica com o objeto que resistia em admitir perder, pela importância

em sustentá-la com relação ao próprio narcisismo insuficientemente estruturado.

Consumindo-se na enorme dor de se sentir mãe injustamente penalizada e

profundamente ressentida com o filho decepcionante, seu ideal de ego nele projetado

fora frustrado. A condição pessoal do filho diante da própria vida e as circunstâncias

em que estava pautado o relacionamento entre eles reavivavam e reforçavam a auto-

estima de Carmen profundamente rebaixada, culminando no sentimento de uma

existência que sentia finalmente ampla e completamente falida. Em vários momentos,

evidenciava-se como Augusto parecia padecer de um mal semelhante, repudiando a

semelhança com Carmen, para essencialmente revelar uma identificação narcísica da

qual também sofria.

Se por um lado Carmen perguntava-se acusatoriamente onde teria errado em

seu papel e função maternos, deixava entrever o ódio que nutria perante a enorme

frustração de seus anseios narcísicos em relação ao filho. Por entre as auto-

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recriminações que seu superego severo fazia voltar contra o ego, eram flagrantes as

acusações ao objeto amado, conflitantes com seu sentimento de imenso amor por ele.

Por conta desta ambivalência, Carmen retornava o ódio para o ego, em processo

regressivo que partia da escolha objetal narcisista em direção ao próprio narcisismo,

como descreveu FREUD (1917[1915]). Era deste modo que, pela autopunição,

vingava-se indiretamente do objeto, fosse este a mãe falecida, o filho decepcionante

ou as circunstâncias desfavoráveis da realidade externa, torturando com a própria

doença, chegando a ameaçar com o próprio suicídio.

Em que medida o próprio sujeito antecipa a ruptura que atribui depois ao

outro? Nisso reside sem dúvida a interpretação da repetição do fracasso, na

medida em que o outro se vê na obrigação de carregar os traços de uma

imagem ideal que não deve fraquejar, custe o que custar. (LAMBOTTE,

1996, p. 328)

A falha narcísica na melancolia, estando no nível da constituição dessa imagem, faz

com que o rígido modelo ideal permaneça sempre fora do alcance do sujeito, a

dinâmica que se instala acaba sendo determinada pelas instâncias ideais do eu.

Na evolução freudiana da noção de melancolia retomada por MOREIRA

(2002), confere-se que Freud, em 1895, no ―Rascunho G‖, havia relacionado a

melancolia a uma perda na vida pulsional, enquanto em 1917[1915], no texto ―Luto e

melancolia‖, definiu-a como uma perda objetal, que se transformava em uma perda

para o ego, fazendo a analogia com uma ―ferida aberta‖ e indicando que na melancolia

o buraco é na esfera psíquica. Em 1897, no ―Rascunho N‖, ele havia considerado a

melancolia no eixo do complexo de Édipo, apontando-a como uma manifestação da

acusação pela morte dos pais, muito antes de considerá-lo conceito fundamental da

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psicanálise e do complexo nuclear das neuroses a partir dos anos vinte. Nesta

abreviada síntese, identificam-se idéias que originaram enfoques diversos da

melancolia, nem sempre excludentes, e que poder-se-á em parte conferir na visão de

distintos autores, um pouco adiante neste trabalho.

A seguir, as palavras de MOREIRA (2002) têm o poder de traduzir o que

foram as sensações e os sentimentos vividos pela psicanalista no atendimento inicial

de Carmen, mas que, naquela ocasião, eram apenas ressonâncias internas que

aguardavam por uma possibilidade de compreensão.

Diante de um melancólico que demanda uma escuta para seu sofrimento, há

uma espécie de urgência que invade o analista e uma hesitação, uma vaga

expectativa do pior, uma espera que parece necessária, diante daquilo que se

apresenta como algo inominável pairando. A transferência, na clínica

psicanalítica de um melancólico, é uma hesitação diante da urgência, como

quando se está diante de um abismo perigoso à frente e a sensação física é

dada pela lei da gravidade mesma: um empuxo para baixo criando

imediatamente a hesitação diante do perigo e a urgência de proteção. Estar

com um melancólico é, assim, hesitação e urgência. Algo ali se precipita no

vazio e a parceria entre paciente e analista, quando se faz, fica premida pela

busca de salvação, que é preciso reconhecer. (MOREIRA, 2002, p. 74)

Entre a identificação com uma pessoa morta, ou com alguém que ainda está

vivo mas o indivíduo deseja que morra, FREUD (1928[1927]) destacou a última

circunstância como mais significativa, a crise melancólica tendo o valor de punição

pelo crime desejado. O superego tem especial papel na crueldade mortífera com que

sacrifica o ego, por abrigar impulsos destrutivos em relação ao objeto, e isto pode

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conduzir o indivíduo ao suicídio, em função de ser ele ao mesmo tempo ―o assassino

que vela e o morto pelo qual chora‖, como indicou MOREIRA (2002). Assim, pode-se

dimensionar o conflito e a dor que tomavam Carmen, sendo possivelmente o filho

adorado aquele objeto a quem mais odiava, estando constantemente exposta a este

dificílimo impasse.

Em 1926, Freud havia ressaltado que à perda do objeto conferida pela via

perceptiva quando este se ausenta soma-se a perda do amor do objeto, perigo muito

mais duradouro e determinante de ansiedade. Nesta direção, podendo-se identificar

fatores que se somavam na trajetória de Carmen, fosse a perda da mãe e do amor que

esta lhe destinava, ou os conflitos com o filho e a ameaça de perdê-lo, não apenas por

afastamento, mas estando a perda de seu amor associada a esta ruptura. Além de não

poder ser desconsiderada a fantasia sobre o crime desejado, o estado que enfrentava

podia configurar o caráter punitivo em relação a isto.

Além do mais, Carmen vinha enfrentando ampla perda de condições, havia

algum tempo tendo dificuldades em sustentar o sucesso pessoal e profissional de

outrora, assim como a situação financeira que um dia gozara. Em seu caso, era

também possível que um golpe narcisista contra o ego tivesse possuído o poder,

independentemente do objeto, de produzir a melancolia, como uma ferida aberta, de

acordo com a descrição de FREUD (1917[1915]). Assim, ficavam apontadas

possibilidades, nas quais alguma origem poderia ter privilégio sobre as demais, porém,

todas elas concorrendo no cenário psíquico de Carmen.

Embora as relações que Carmen estabelecesse fossem saturadas de teor

narcísico, paradoxalmente, o seu narcisismo não lhe oferecia sustentação suficiente

para, em vez de enveredar pelo acometimento melancólico, conduzir um trabalho de

luto que lhe possibilitasse o desprendimento do objeto perdido e o fortalecimento do

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ego no enfrentamento da realidade. Assim, ela permanecia em condição de

afastamento ressentido do mundo e das relações, sentindo-se terrivelmente só e

fracassada em sua própria companhia. Um círculo negativo e corrosivo que não lhe

oferecia saída possível, a não ser pela escuta de um terceiro, o psicoterapeuta, como

indicou FÉDIDA (1988).

Cabe lembrar que Carmen podia enveredar pela reversão de seu acometimento

melancólico no seu oposto maníaco, ou pelo menos para um estado de hipomania,

tendência identificada por FREUD (1917[1915]), ao descrever que, em dois pólos do

mesmo processo, na melancolia o ego sucumbe, enquanto na mania coloca de lado o

complexo ou o domina. O ego em estado maníaco oculta o que estaria dominando e

sobre o que estaria triunfando, sendo a regressão da libido para o próprio narcisismo a

principal responsável da reversão que ocorre.

Esta saída pela mania parecia ter sido recorrente em momentos difíceis na vida

de Carmen, um modo de se transpor magicamente para o pólo oposto da dor e dos

impasses, negando não apenas a realidade psíquica, mas também recusando-se a

acolher a realidade externa. Apesar disto, sempre se enfrentando com o retorno para

condição na qual o substrato melancólico denunciava sua complexa luta inconsciente,

na qual não conseguia avançar. No entanto, ela indicava não mais conseguir proceder

à reversão maníaca de outrora, o que a seu modo muito lamentava. Divisando-a como

perda de estímulo, disposição e energia, que em alguns momentos atribuía à depressão

que a assolara após o desaparecimento da mãe, em outros à decepção consigo e com o

filho, em outros ainda, às duras frustrações da realidade ou ao avançar da idade.

Fundamentalmente, por detrás da perda da figura materna e da decepção com o

filho, Carmen indicava ter o ego mergulhado na sombra de sua própria ferida

narcísica. Eros sucumbia doente em Carmen pela ação da pulsão de morte,

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flagrantemente atuando em seu interior de modo a comprometer patologicamente a

ação da pulsão de vida.

Depois de Freud, muitos foram os autores que contribuíram para a

metapsicologia do processo melancólico. Este trabalho pode referir-se apenas a

alguns, cujas concepções ou idéias pontuais confluem para a direção que foi tomando

esta pesquisa psicanalítica e demandando a construção deste caso clínico.

B. Trilha iniciada por Karl Abraham

Em estudo de 1911 sobre a psicose maníaco-depressiva e estados afins, Karl

Abraham14

lançou algumas pedras fundamentais para o estudo psicanalítico da

melancolia, ponto de partida para Freud alguns anos após. Em 1924, ele retomou este

estudo, a partir das conclusões de Freud em 1917[1915]. Suas idéias foram de especial

relevância, inclusive para o estudo de Klein sobre a psicogênese dos estados maníaco-

depressivos, que será enfocado adiante neste trabalho.

Reiterando que para Freud o fator fundamental para o desencadeamento da

melancolia é a perda do objeto de amor, Karl ABRAHAM (1924) destacou que, na

tentativa de recuperar o objeto, ocorre a regressão ao nível oral canibalesco, ponto de

fixação para o qual a organização mental regride. Assim, ocorre a incorporação pelo

ego, via pela qual o sujeito tenta chamar o objeto perdido novamente à vida,

estabelecendo paralelamente um tipo de relação com o objeto que guarda afinidade

com o erotismo anal. O sujeito encara a pessoa amada como alguém sobre quem

exerce propriedade, conduzindo-se como com seu primeiro objeto de propriedade

privada, as fezes.

14

Importante notar que aqui trata-se de Karl Abraham, contemporâneo de Freud. As idéias que neste

ponto serão expostas encontram-se em seu trabalho de 1924. Em outros trechos ao longo do presente

trabalho, foram feitas referências ao trabalho de Nicholas Abraham, autor cuja obra é de 1995.

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Encontrando-se especialmente interessado no processo que considerou uma

forma arcaica de luto, esse autor ressaltou concorrer no inconsciente a tendência

sádica a destruir ou expulsar o objeto, junto com a tendência a retê-lo e controlá-lo. Se

as tendências sádico-anais mais primitivas, que visam destruir e expelir o objeto,

forem vitoriosas, o paciente cai em depressão melancólica. Estabeleceu também uma

diferenciação importante entre as fases anal sádica e a subseqüente anal retentiva,

dando-se uma modificação essencial na atitude do ego para com o objeto, tendo início

a necessidade egóica em preservar o objeto.

Como o conflito ambivalente é inerente ao processo melancólico, o sentimento

de ódio varre os sentimentos de amor debilmente fixados. Ao tentar fugir disso, o

sujeito volta contra si a hostilidade originalmente dirigida ao objeto, expressando-se

em autopunição ao ego e provocando elevado grau de desprazer, mesmo que possa ser

identificado o valor de prazer masoquista de seus sintomas.

Outro ponto importante, foi K. Abraham ter diferenciado a fase oral de sucção,

em seu ponto de vista pré-ambivalente, da subseqüente fase oral sádica. Na primeira, a

incorporação não poria fim à existência do objeto, assim como não haveria distinção

marcada entre o eu e o objeto. Em contrapartida, na fase oral sádica haveria a

concorrência de sentimentos de amor e ódio, associando-se à incorporação o morder

que destrói o objeto, gerando sentimentos ambivalentes em relação ao seio, primeiro

objeto de amor do bebê. Sendo a este nível que o melancólico regride após a perda de

seu objeto de amor, o conflito ambivalente atenua-se apenas gradualmente, na medida

em que o desenvolvimento da libido segue em direção à organização genital, para

então atingir um completo amor objetal, mesmo que em certa medida permaneça

algum nível de ambivalência.

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Os conflitos especialmente graves que assolam o melancólico, e que atingem

as raízes de sua relação com o objeto amado, geram seu afastamento não apenas do

objeto original, mas estende-se a outras pessoas, como foi possível conferir em

Carmen. O retraimento de sua libido afetava tudo o que anteriormente a interessava,

incluindo sua profissão, os passatempos e interesses. Queixando-se desta perda e

relacionando-a a seus sentimentos de inferioridade, não identificava que havia muito

se encontrava predisposta a tal perda. Em função do alto grau de ambivalência de sua

vida emocional, desempenhava-se em áreas como a profissão e interesses intelectuais,

de forma forçada e irregular, sempre sob o risco de abandoná-los. Suas alternâncias de

estados depressivos e maníacos relacionavam-se com a ambivalência de sua libido em

relação ao ego, mesmo nos ―intervalos livres‖ apresentando estados mentais

depressivos ou hipomaníacos em justaposição imediata. Na superestimação e na

subestimação do ego, ora manifestava-se um narcisismo positivo ora um narcisismo

negativo.

Dando seqüência à descrição de certas características mais visíveis em alguns

pacientes melancólicos, K. Abraham apontou traços que eram muito flagrantes em

Carmen. O sentimento de superioridade que parecia estar presente mesmo nos

intervalos livres de sua doença, demonstrava-o em relação às pessoas próximas e ao

mundo em geral. A psicanalista também fora alvo desse sentimento, pois logo na

primeira entrevista Carmen referira-se aos antigos psicanalistas não confiáveis,

demonstrando certo ceticismo quanto às descobertas e à eficácia do tratamento

psicanalítico. No entanto, isso se alternava com uma atitude de acentuada humildade,

quando implorava à psicanalista que a ajudasse.

Traço comum entre pacientes melancólicos, Carmen era especialmente

resistente a intervenções em seu modo de pensar, devido ao caráter narcísico do curso

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de seu pensamento, além de apresentar certo desprezo quando suas idéias eram

confrontadas com os padrões de realidade. Por detrás de seus ―delírios de

inferioridade‖, encontrava-se grande quantidade de auto-admiração, em especial por

seus próprios pensamentos, sentimentos e comportamento. Mesmo em relação a seus

sentimentos de ódio, tendia a representá-los como muito poderosos.

Além de tudo, K. Abraham reforçou que a crise de depressão melancólica é

provocada indubitavelmente por um desapontamento amoroso, no sentido mais amplo

que cada caso possa comportar. Ele destacou que o poder patogênico do

acontecimento vivido pelo paciente encontra-se associado ao reviver inconsciente de

uma experiência traumática infantil, uma tendência a esta repetição compulsiva sendo

especialmente marcante nos melancólicos, o que promove as recidivas de estados

maníaco-depressivos a que se encontram vulneráveis.

Enunciando os fatores etiológicos da depressão melancólica, enfatizou ainda a

importância da presença de todos eles, pois, isoladamente, poderiam estar presentes

em outras formas de psiconeurose. Seriam eles: a) um fator constitucional ligado à

exarcebação do erotismo oral que poderia ser herdado; b) uma fixação especial da

libido no nível oral, resultando em grandes exigências de gratificação e reação de

grande desprazer a toda frustração oral; c) uma grave lesão ao narcisismo infantil

produzida por sucessivos desapontamentos amorosos, produzindo a impressão de ter

sido completamente abandonado e gerando tentativas repetidas de obtenção do amor

de uma pessoa do sexo oposto, o que estaria intimamente ligado ao desapontamento

inicial junto a ambas as figuras parentais; d) um primeiro desapontamento amoroso

importante antes que os desejos edipianos houvessem sido superados, os instintos

sádico-orais podendo imprimir uma associação permanente entre o complexo edipiano

e o estágio canibalesco da libido, o que se refletiria na introjeção dos objetos de amor

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parentais; e) a repetição do desapontamento primário na vida ulterior, o que

desencadearia a depressão melancólica.

Não é preciso insistir como tais fatores encontravam-se reunidos em Carmen,

desde sua imperiosa necessidade de ser amada até o enorme ressentimento que

alimentava por acreditar-se, em diferentes momentos de sua vida, decepcionada,

desamparada e ferida em seu narcisismo. As suas tentativas amorosas junto a vários

parceiros amplamente frustrantes, ou junto a homens com quem não mantinha vínculo

afetivo, indicavam sua necessidade narcísica de amor junto ao sexo oposto.

A decepção com o filho, que tanto a castigava quando chegara ao tratamento e

junto a quem nutria hostilidade não passível de ser diretamente reconhecida, em

função do amor e da idealização presentes, seria a reedição do que teria vivido junto

às figuras parentais, em especial a mãe, e que, ao longo da vida, teria se repetido, em

diferentes graus, junto às mais diversas pessoas que frustraram sua necessidade

narcísica de amor. Suas auto-acusações, autocríticas e idéias delirantes eram queixas

efetivamente dirigidas ao objeto amado, e teriam sido introjetadas no papel de

consciência (superego). Mesmo em seus intervalos livres, o estado mental do

melancólico o predispõe a sentir-se decepcionado, traído ou abandonado, deste modo,

repetindo os sentimentos de ódio, raiva e resignação de ser abandonado e achar-se sem

esperança, que ocorreram em sua primeira infância (ABRAHAM, 1924).

Embora todo o processo psicológico na melancolia centralize-se

predominantemente em torno da mãe, este autor destacou que diversos sintomas

indicam claramente sua relação original com ambos os pais. Seu intenso anseio pela

época em que se encontrava preso ao seio materno indica que sua retirada foi

dramaticamente vivida como castração primária. Diante desta decepção intolerável,

tende a expelir e a destruir o objeto amado, para logo depois introjetá-lo e devorá-lo,

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fazendo-o pela identificação narcísica. A sede de vingança sádica se satisfaz ao

atormentar o ego, atenuando-se apenas quando o perigo de destruir o objeto amado é

gradualmente afastado, sendo possível a restauração no mundo exterior. Entretanto, o

melancólico inconscientemente considera esta libertação como ato de evacuação, uma

vez que o ato de expulsão finalizaria esta forma arcaica de luto, que é a melancolia.

Freud adentrou mais na natureza dos estados depressivos do que nos estados

maníacos que representam seu reverso. K. Abraham conseguiu ir pouco além,

destacando a relação de ambos os estados com a ação do superego e sua função de

crítica, excessiva na melancolia. No entanto, na mania, o ego sentir-se-ia livrando-se

deste jugo, a sensação de auto-suficiência e poder o fazendo triunfante junto ao objeto

amado, que abandonou e introjetou. Entregando-se ao frenesi desta libertação, o

narcisismo entra numa fase positiva e prazerosa, voltando sua libido para o mundo

exterior, com o aumento dos desejos orais e excesso de voracidade, fantasiando

assimilar todos os objetos, para logo evacuá-los com o mesmo prazer. Em sua fuga de

idéias, tem lugar um rápido e agitado processo de receber e expelir novas impressões,

todos os objetos passando por este metabolismo em ritmo acelerado.

Ao estabelecer uma correspondência entre este processo patológico e o final

do processo de elaboração do luto normal, K. Abraham considerou que, ao desprender

gradualmente sua libido do objeto perdido, a pessoa experimenta um aumento de seus

desejos libidinais, festejando desta forma excessiva sua libertação. Esta reação

maníaca se dissipa apenas de modo gradual, ao diminuírem suas exigências narcísicas,

permitindo, então, a transferência de libido para objetos externos. Em seu entender,

apenas depois destas duas fases a libido atingiria uma relação relativamente estável e

mais objetiva com seus objetos.

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Contrapondo-se a Freud, que apontava tal processo em relação ao crime

primário do pai totêmico, K. Abraham considerou-o primordialmente relacionado a

fantasias criminosas do paciente maníaco em direção à mãe. Havendo a possibilidade

de crises maníacas, sem que o paciente apresente antecipadamente a crise

melancólica. Os estados maníaco-depressivos, podendo se dar de forma aguda,

intermitente e apresentando recaídas, representam a repetida expulsão do objeto

amado. Sendo este um crime que a pessoa não cometeu na realidade, mas que executa

em plano psicológico de tempos em tempos. Considerou ainda haver casos em que a

libido sofre considerável regressão narcísica, embora possa não ser uma regressão

completa. Quando os ataques canibalescos e destrutivos são fantasiados em relação à

destruição apenas de uma parte do objeto, tentam poupar sua existência, mas revelam

a ambivalência de sentimentos e guardam significado óbvio de castração. Apesar do

desejo de manter a propriedade sobre a parte extraída do objeto, neste movimento

encontram-se os primeiros sinais de algum cuidado para com o objeto, embora a

capacidade de reconhecê-lo como outro e amá-lo em sua totalidade ainda se

encontrem distantes.

Nem é necessário destacar como as idéias de K. Abraham e sua descrição do

quadro melancólico com sua reversão em mania forneceram base para a compreensão

do processo que se encontrava em curso em Carmen. Essencialmente, a morte da mãe

e a desilusão com o filho configuraram perdas que colidiram com dificuldades

permanentes e profundas em Carmen, que tentava recuperar a perda pela incorporação

e encarando o objeto como algo de sua propriedade, a ser retido e controlado, ou a ser

expulso e rejeitado. Sua ambivalência de sentimentos era marcante, enquanto a

preocupação em preservar o objeto era incipiente, concorrendo com sua forte

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disposição narcisista e um narcisismo que teria sofrido doloridos impactos junto às

figuras parentais, fixando-se em uma necessidade narcísica de amor.

Carmen padecia da hostilidade impiedosa que voltava contra si em forma de

autopunição e autocrítica exarcebadas, sob a ação de um superego contundente, que

vinha comprometendo de forma ampla sua vida pessoal e a relação com o meio.

Sentindo-se alvo de injustiças, traições, decepções e abandonos, apresentava-se sem

esperança, porém com evidente sentimento de superioridade, como indicou logo que

se apresentou à psicanalista, no primeiro contato.

Mesmo em períodos de intervalo, ela parecia apresentar estados mentais

depressivos ou hipomaníacos. Porém, no início do tratamento, indicando a

persistência de longa duração de um desapontamento amoroso no sentido mais amplo

e profundo que pudesse comportar, faziam emergir idéias suicidas. Seu suplício

melancólico não mais encontrava a anterior saída, pela reversão para o estado

maníaco. Habitualmente, a fantasia narcisista de expulsão como a destruição mágica-

onipotente do objeto e negação de sua dependência costumavam gerar em Carmen a

sensação de auto-suficiência e poder triunfante sobre ele. Este era um ―crime‖ que não

cometera em realidade, mas que indicava cometer em plano psicológico de tempos em

tempos.

Como enfatizou K. Abraham, este processo articula-se privilegiadamente com

as fantasias criminosas onipotentes em relação à mãe, e pode-se avaliar a dimensão

que tomaram no interior de Carmen, quando deu-se a morte da mãe, e nas

circunstâncias em que ocorreu. Ela sentia-se culpada e impossibilitada de dar curso a

reparações que poderiam efetivamente restaurar o objeto perdido, de modo que, pela

introjeção, o ego levasse a cabo uma identificação que não fosse narcísica. Isso

poderia atenuar as repercussões pela perda sofrida, dando curso ao processo de luto

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normal. Os embates com Augusto eram expressão da enorme luta que Carmen vivia

em plano intrapsíquico, e que transpunha para o plano intersubjetivo, em conexão

direta entre os objetos idealizados, da mãe por um lado e do filho por outro.

C. Relação entre posição depressiva, luto e os estados maníaco-depressivos

Dedicando-se ao estudo da psicogênese dos estados maníaco-depressivos,

KLEIN (1935) partiu das idéias de FREUD (1917[1915]), em ―Luto e melancolia‖, e

das idéias de K. ABRAHAM (1924) em seu estudo sobre os estados maníaco-

depressivos, para formular duas concepções interligadas: uma teoria do

desenvolvimento inicial e uma teoria da origem da doença maníaco-depressiva.

Em 1935, Klein criou a noção de ―posição‖ como unidade de

desenvolvimento, dizendo respeito à experiência emocional do bebê e seu

funcionamento psíquico em determinado momento da vida primitiva, compreendendo

uma constelação de impulsos, fantasias, angústias e defesas que caracterizam uma

relação específica do ego com o objeto.

Em 1940, estudou o luto em relação aos primitivos estados maníaco-

depressivos, considerando-o parte integrante da elaboração da posição depressiva, nos

primórdios da estruturação psíquica. Afirmava que a perda de um ser amado, ou

qualquer pesar na vida ulterior, sempre reativa os fenômenos da posição depressiva

infantil, a capacidade de dar curso ao trabalho do luto encontrando-se diretamente

relacionada à sua superação.

Ainda para esta autora, a neurose infantil encontra-se dividida entre a

importância capital do primeiro ano de vida, em especial a partir da posição

depressiva, e os quatro anos subseqüentes, período no qual se dá a perlaboração da

posição depressiva, visando a modificação qualitativa e quantitativa das ansiedades

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arcaicas, como destacou PETOT (1988) em seu estudo amplo e aprofundado do

pensamento kleiniano.

A posição depressiva apresenta papel central na constituição do mundo mental

e dos objetos internos, e é determinante da saúde mental e da capacidade de amar do

indivíduo. A escolha crucial da neurose ou psicose nela está envolvida, como

encontra-se implicada a firme internalização do bom objeto, ponto focal dentro do

ego, como concebeu KLEIN (1946).

A passagem pela posição depressiva foi considerada por KLEIN (1935) uma

melancolia em statu nascendi. Inicialmente, relacionou este quadro psicopatológico

no adulto com a transição entre a posição esquizo-paranóide e a posição depressiva,

para em 1946 considerá-lo resultante de dificuldades não superadas na posição

depressiva.

O emergir da posição depressiva tem lugar a partir do quarto ou sexto mês de

vida do bebê, sendo antecedida pela posição esquizo-paranóide. No entanto, entre

ambas persiste um movimento de continuidade e flutuações, nenhuma delas

dominando completa ou permanentemente. Houve por bem STEINER (1997) apontar

que estas flutuações podem ocorrer em períodos ao longo do tempo, durante o

desenvolvimento de uma análise, podendo ser identificadas até mesmo de momento a

momento em uma sessão. Isso pode se dar em direção do progresso integrativo rumo

ao funcionamento da posição depressiva, ou numa reversão para o funcionamento

esquizo-paranóide, que é pautado pela dissociação, desintegração ou até mesmo pela

fragmentação.

Relacionando a emergência da posição depressiva com o desmame, KLEIN

(1935) associou-a à passagem gradativa da relação original do ego com o seio,

enquanto objeto parcial, para uma relação com a mãe, objeto total e real. Isso

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configura importante mudança resultante do amadurecimento perceptivo do bebê, de

sua maior integração egóica e do início da unificação das experiências de satisfação e

frustração proporcionadas pela amamentação.

O conflito psíquico, provocado pela unificação das partes cindidas do objeto

na posição depressiva, o seio idealizado/bom e o seio persecutório/mau, compreende

ansiedades persecutórias que persistem em paralelo a ansiedades depressivas, pontuou

KLEIN (1948). O bebê vivencia interna e externamente o temor de que o bom objeto

possa estar em risco ou ser perdido como um todo, além de se sentir ameaçado de

retaliação pelo mau objeto, em função dos ataques a ele cometidos em fantasia.

Importante relembrar que, junto com K. Abraham, ela acreditava que a origem

primária da ansiedade relaciona-se ao perigo da ação da pulsão de morte que ameaça o

organismo. Os desejos canibalescos fazem com que o seio frustrador se configure,

pela via projetiva, em objeto persecutório, sendo vivido como um representante

externo da pulsão de morte. Assim, perigos externos são sentidos à luz dos perigos

internos, como contribuem para sua intensificação. O medo de aniquilamento da vida

é fator perpétuo, participando e reforçando todas as situações de ansiedade.

Dada a interação permanente entre os objetos reais e fantasiados, entre os

objetos internos e externos, a perda do seio real no desmame provoca o terrível temor

da perda do objeto bom internalizado, ainda em vias de estabelecimento e sem a

segurança de uma firme implantação dentro do ego.

Com o transcurso da posição depressiva, o ego começa a desenvolver a

possibilidade de introjetar15

e se identificar com o objeto, modificando gradualmente o

tipo de relação que estabelece com ele. Defrontando-se com sua ambivalência de

15

Na teoria de M. Klein, a noção de introjeção é utilizada em oposição à noção de projeção. E,

portanto, em um sentido diverso daquele utilizado por Ferenczi em 1909 e, posteriormente, por Torok

em 1995. Como anteriormente referido neste trabalho.

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sentimentos, experimenta sentimentos de culpa pelo ódio que foi capaz de sentir pelo

objeto, paralelamente ao desejo de preservar o bom objeto. Em paralelo à preocupação

com a sobrevivência do ego, tem início alguma preocupação pelo objeto, surgindo o

ímpeto em reparar o dano pelas fantasias de cunho oral-sádico, tudo pelo amor que

realmente sente pelo objeto. É deste modo que, junto com a integração das partes do

objeto, vão se dando cisões cada vez mais próximas da realidade, ocorrendo a

progressiva mitigação do ódio pelo amor, elaboração ao longo desse processo e

conquista ao final da posição depressiva (KLEIN, 1940).

Se, pelo contrário, houver o uso excessivo de defesas maníacas, inclusive

podendo ser seguido pelo uso demasiado de defesas obsessivas, terá lugar o fracasso

da posição depressiva. Estes movimentos defensivos, em parte, são meios do ego para

controlar os objetos maus e perigosos e, também, visam salvar e restaurar os objetos

amados, tentando anular os efeitos danosos dos ataques cometidos ao objeto em

fantasia. A onipotência, negação e idealização encontram-se ligadas à ambivalência de

sentimentos, permitindo ao ego suportar o desastre de que se sente ameaçado quando a

posição depressiva está no auge, pois não confia plenamente em seus sentimentos

construtivos e reparadores. Por intermédio desses mecanismos defensivos, sente-se

com força para se opor a seus perseguidores internos e contra a dependência submissa

e perigosa em relação aos objetos amados, destacou KLEIN (1940).

No curso da elaboração da posição depressiva deve ganhar lugar a reparação

efetiva, consistindo na diminuição da onipotência maníaca e das tendências à

reparação de natureza obsessiva. Mediante o enfrentamento de sentimentos de culpa, o

ego deve responsabilizar-se pelos danos cometidos ao objeto. Apenas deste modo,

poderá ocorrer o efetivo reconhecimento da realidade psíquica e da realidade externa.

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A relação satisfatória com os outros, dependendo do firme estabelecimento dos

objetos internos bons e do êxito contra o caos interior da posição depressiva.

Reunindo os elementos amados e odiados junto à figura materna como objeto

total, o objeto não mais será visto como algo a ser incorporado de modo sádico-oral, e

portanto para ser devorado e consumido ou então rejeitado, como era predominante na

posição esquizo-paranóide, apontaram CINTRA e FIGUEIREDO (2004) em seu

estudo sobre o pensamento kleiniano.

Cada etapa do desenvolvimento inicial torna-se um meio para superar a

posição depressiva. Dons e habilidades crescentes fazem aumentar a crença na

realidade psíquica e nas tendências construtivas, assim como na capacidade de

dominar e controlar impulsos hostis e objetos maus internalizados. Como resultado,

ansiedades são aliviadas, a agressividade diminui e tendem a baixar as suspeitas com

relação a objetos maus externos e internos. O ego fortalecido pode avançar na

unificação das imagos e na mitigação do ódio que conduz ao progressivo processo de

integração (KLEIN (1940).

Carmen indicava ter adentrado a posição depressiva, porém não conseguia

avançar nesta elaboração, apresentando cisões distantes da realidade quando teve

início o tratamento. Havia, portanto, a predominância da angústia persecutória e dos

mecanismos de defesa da posição esquizo-paranóide, como era o caso do mecanismo

da identificação projetiva. Apenas após algum tempo de tratamento, quando teve lugar

alguma possibilidade de aproximação dos distintos aspectos egóicos e dos objetos

defensivamente cindidos, foi possível evidenciar-se o amplo conflito ambivalente que

abrigava Carmen em seu mundo interno. Refletindo-se de forma flagrante em sua

relação com o mundo externo e revelando o quanto se confrontava com intensas

angústias não apenas persecutórias, mas também depressivas.

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A cisão reinante no ego e em relação ao objeto na posição esquizo-paranóide

apresentava em Carmen alguma possibilidade de aproximação, porém costumava

fracassar na discriminação e na integração necessárias, condição de um transcurso da

posição depressiva que pudesse seguir evolução normal. Portanto, tanto interna como

externamente, as angústias a povoavam, ao tentar salvar a si, nessa perturbação

interna, e ao objeto amado. Temendo pela possibilidade de contaminação pelo mau e

pela perda de todo o bom que tentava salvar, quase sempre infrutiferamente, ela

consumia-se em revolta e ressentimento em relação ao outro. Do mesmo modo, era

tomada por auto-recriminações culpabilizantes, revelando o enfrentamento de

angústias depressivas com teor narcísico. E, finalmente, lamentava ter perdido o poder

de dar a volta por cima e construir uma vida mais feliz e exitosa.

Carmen referia-se assim ao fenecer do poder mágico-onipotente de fantasias

que costumava acionar, de modo a promover a reparação maníaca dos ataques e dos

danos aos quais se sentia submetida ou que impunha aos objetos. Outrora punha em

ação negações, cisões e projeções que possibilitavam cultivar uma auto-imagem de

poder fálico, sentindo-se no controle, triunfo e desprezo em relação ao outro, tentando

passar por cima e desconsiderar a própria realidade, tanto interna quanto externa.

A relação objetal narcísica a impossibilitava de sair de si, para apreender e

consolidar o objeto enquanto alteridade em sua ampla autonomia. Por isso, quando o

objeto real desaparecia, como fora o caso da morte da mãe, a identificação narcísica

de Carmen com ele ameaçava-a, melancolicamente, de carregá-la junto. Seja pela

impossibilidade de Carmen se desprender, seja pelos sentimentos de culpa e de

impotência que se abatiam sobre ela por não ter sido capaz de cuidar, e quem sabe,

evitar o desfecho que se produzira. E, assim, não conseguia dar curso normal ao

processo de luto. Terminava por revelar sua frágil estruturação egóica para este

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enfrentamento, o que a inundava com a sensação de desamparo e desesperança

consigo própria.

Nessa mesma direção, se o objeto era sentido como a ameaçá-la com a perda

de amor e a separação, como sucedia com seu filho único, isto a feria profundamente,

na direção da demanda narcísica de amor que abrigava. Carmen imaginava colocar

fim em sua própria vida por sentir não resistir a mais esta perda, atuando contra si o

ódio que vivia na decepção com o filho idealizado. Ódio que permanecia sem poder se

exprimir diretamente, uma vez que ambivalentemente concorria com o amor que lhe

dedicava.

Os sentimentos de amor e ódio degladiando-se em seu interior, ameaçavam a

sobrevivência do próprio ego e do objeto no qual projetava seu ideal do ego. Quando a

discriminação e a separação do objeto tentavam se estabelecer, recuava

defensivamente para uma condição patológica de imantada indiferenciação ou

dependência extrema entre sujeito e objeto. Assim, no início do tratamento figurava

como morta-viva junto à mãe desaparecida, prostrava-se mortalmente ressentida e

impotente junto à decepção e em relação aos insucessos do filho idealizado, como

sucumbia perante o fracasso em continuar sustentando sua auto-imagem de outrora,

que em grande proporção devia-se à identificação com o objeto idealizado.

Algumas distinções na posição depressiva e no luto

Em relação à posição esquizo-paranóide, KLEIN (1935) destacou que a cisão

inicial entre objetos persecutórios e idealizados é uma forma de o bebê organizar suas

experiências boas e más com o objeto e iniciar a estruturação egóica, sendo a cisão

importante mecanismo de defesa para que o desenvolvimento prossiga saudável. Por

outro lado, a cisão ajuda a tolerar a ambivalência por ocasião do início da integração

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do objeto, tendendo à diminuição progressiva na medida em que ocorrem períodos de

integração, o que promove a introdução da posição depressiva.

Além de defender um ―continuum‖ entre as posições esquizo-paranóide e

depressiva propostas por Klein em sua teoria do desenvolvimento primitivo,

STEINER (1994) buscou maior diferenciação dos fenômenos da posição depressiva.

Discriminou uma fase inicial de negação da perda do objeto, na qual o ego procura

retê-lo e dele se apossar, abandonando todo interesse que não lhe diga respeito.

Apenas posteriormente tendo lugar a fase de experiência da perda do objeto, a qual

conduz a um enriquecimento do ego infantil.

Em conseqüência, ele destacou o mesmo processo na pessoa que enfrenta o

luto por um ser amado, pois a posição depressiva tem um de seus pontos críticos na

renúncia ao controle sobre o objeto, permitindo sua independência. Ressaltou ainda

que na fantasia isto significaria o sujeito confrontar-se com sua incapacidade de

proteger o objeto, seu amor e desejos de reparação sendo insuficientes para preservá-

lo. E, assim, o sujeito deve permitir ao objeto morrer, com a desolação, desespero e

culpa subseqüentes (STEINER, 1994).

Pode-se conferir as dificuldades de Carmen em avançar da fase inicial de posse

e retenção do objeto, para a fase onde pudesse experimentar a perda objetal, a fim de

concluir com a exitosa introjeção do objeto perdido dentro do ego. Revertendo-o em

funções egóicas e, portanto, em enriquecimento e crescimento pessoal. Ela

encaminhava este processo, porém, terminava por recuar, apresentando

renovadamente a impossibilidade de encerrar a tarefa magna da posição depressiva.

Porém, apesar de seu recuo profundo, durante o tratamento quando retomava o rumo

em direção à integração das partes do ego e do objeto com a realidade, durante seu

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tratamento era possível perceber que algo havia avançado, em passos diminutos,

porém significativos.

Neste ponto, é importante relembrar KLEIN (1935), salientando que na

tentativa do ego pôr fim ao sofrimento intransponível pela incapacidade de atravessar

a posição depressiva, poderá ocorrer a fuga para o objeto bom internalizado. Isso

resulta na negação da realidade psíquica e externa, que é predominante nos estados

psicóticos. Em outra direção, quando impera a fuga do ego para o objeto bom externo,

pode emergir uma forte dependência em relação aos objetos e um enfraquecimento do

ego, mecanismo característico das neuroses graves.

Carmen revelava angústias profundas relacionadas à perda do objeto bom

internalizado, o que lhe produzia por vezes um estado de desespero, sentindo que seu

mundo interno desmoronava, necessitando ser reconstruído. Diante disto, em parte

tentava refugiar-se no objeto bom internalizado, buscando conforto para as decepções

e perdas reais enfrentadas; como em parte, desenvolvera forte dependência em relação

aos objetos bons externos, buscando apoio para sua fragilidade egóica e uma realidade

interna profundamente abalada. No entanto, indicava que suas intenções e seus

esforços não eram suficientes para a efetiva reparação de seu estado geral e de tudo

que amava ou desejava cuidar e manter. Era flagrante sua necessidade de ser ajudada

pelo tratamento, para ter alguma chance neste processamento. A psicanalista tinha de

buscar acesso a Carmen em seu refúgio interno, o que por vezes era difícil devido às

defesas que empregava. Em contrapartida, por vezes, tinha de se proteger mais

marcadamente da dependência plena que Carmen ameaçava transferir para o vínculo

psicanalítico, de maneira a preservar sua função analítica.

Neste sentido, é importante relembrar que, quanto mais a criança conseguir

desenvolver uma boa relação com sua mãe real, maior será a facilidade com que

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poderá superar a posição depressiva, encontrando uma saída para o conflito entre o

amor e o ódio que abriga em seu interior. Fundamentalmente, porque ainda não conta

com os meios internos de distinguir a perda imaginária do objeto interno da perda real

do objeto amado (KLEIN, 1935).

As experiências com o objeto real externo podem refutar as ansiedades e o

sofrimento relacionado à realidade interna, constituindo prova de que os objetos

interno e externo não se encontram feridos nem tornaram-se vingativos. Isso auxiliará

na gradual superação da depressão e do sentimento de perda. A reparação efetiva do

objeto amado pode ter curso, tanto interna quanto externamente, e há a possibilidade

de ocorrer uma introjeção firme do bom objeto no ego, fonte de bem-estar e segurança

que sustenta o ego, pela vida afora, nos estados transitórios de privação e de

frustração.

Com a introjeção exitosa do bom objeto no ego, poderá haver a identificação

com ele, sendo este o meio pelo qual o objeto é recuperado pela via introjetiva,

finalizando-se o processo de luto. O ego conclui este processo, enriquecido e

fortalecido, ao mesmo tempo em que fortalece sua relação libidinal com o bom objeto

externo. Nesta medida, o ego poderia finalmente discriminar-se, separar-se e até

mesmo do objeto prescindir, quando novas perdas se apresentarem ao longo da vida.

Perante a perda abrupta da figura materna que não apenas representava o

suporte de sustentação no mundo para a vida de Carmen, mas que figurava como

objeto idealizado em seu mundo interno, ela voltara-se integralmente para o filho. Seja

por conta da idealização que junto a ele também tinha lugar, seja porque procurava no

objeto real amado apoio para atravessar a dificílima perda de sua mãe, objeto de amor

original jamais verdadeiramente abdicado.

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Ao encontrar um filho que marchava rumo à desidentificação, tentando fincar-

se defensivamente em uma identidade completamente distinta, os conflitos e as

mágoas entre eles só fizeram aumentar. Ele indicava estar às voltas com um

movimento defensivo de revolta perante a própria dependência afetiva da mãe. Assim,

quanto mais ela necessitava do seu apoio, mais ele se sentia sob a ameaça de ser

engolfado, o que parecia fazê-lo reagir violentamente, recusando desempenhar uma

função acolhedora e protetora em relação à mãe enfraquecida. Era difícil também para

ele enfrentar-se com a Carmen que não mais se encaixava no modelo de eficiência e

capacidade que ele idealmente nutria, e à qual também resistia abdicar, sem atingi-la

cruelmente com seu ódio e sua revolta. E aqui enlaçava-os a trama da situação edípica,

que merecerá enfoque pouco adiante neste trabalho.

A psicanalista gradativamente foi sendo alvo da disposição de Carmen em

transferir para o vínculo analítico o mesmo tipo de relação que lamentava ter perdido

junto a seus objetos de amor. Esta era sua peculiar maneira de apenas repor esta falta

com a pessoa da psicanalista, a quem se ligava e por quem ansiava para findar seu

sofrimento. De maneira evidente, idealizava este suporte em um objeto externo para

não ter de se enfrentar com a tarefa magna de processamento da separação entre

sujeito e objeto. Esta condição restara inacabada em seu desenvolvimento primitivo, e

não fora passível de processamento ao longo da vida, nas inúmeras situações de perda

em que as questões da posição depressiva eram retomadas e apresentavam-se para ser

elaboradas.

Na direção da especificação teórica e da precisão clínica, o estudo aprofundado

de PETOT (1988) destacou que Klein efetivamente descreveu três tipos de ansiedade

depressiva, com nuances importantes para a compreensão de movimentos distintos no

interior do ego e em relação à perda do objeto amado.

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No primeiro deles, uma modalidade particular de ansiedade persecutória com

valor depressivo, onde impera o temor de que os perseguidores destruam o objeto bom

com o qual o ego se identifica. Ao proteger o objeto, esta seria uma preocupação

narcisista do ego em relação à própria sobrevivência.

O segundo tipo consiste na ansiedade de perda do objeto em função da

natureza canibal da introjeção no estágio sádico-oral. O amor pelo objeto seria

ambivalente sem o saber, o sadismo sendo involuntário e a destruição do objeto,

inocente. Por vezes, a ansiedade da posição depressiva é apresentada por Klein desta

forma, embora somente seja considerada eminentemente depressiva quando o ego se

dá conta e reconhece que a fonte de perigo para o objeto está em si, a destruição que

promove sendo intencional. O conflito depressivo consiste na consciência da

hostilidade presente contra o objeto de amor.

Finalmente, o terceiro tipo de ansiedade depressiva refere-se ao

aprofundamento da consciência acerca da ambivalência, fazendo emergir a verdadeira

culpa. Fundada na identificação empática com o objeto amado e com ele buscando se

reconciliar, para, a seguir, preservá-lo. O sentimento de culpa suscita compaixão,

remorso, arrependimento e necessidade de reparar. Como todo amor e sublimação

repousam na reparação, os sentimentos de culpa plenamente experimentados e as

condutas reparadoras simbólicas apenas são bem-sucedidas quando a criança está em

vias de superar a posição depressiva.

Quando se apresentou para iniciar o tratamento, Carmen indicava vivenciar

uma angústia persecutória de valor depressivo, com preocupação narcísica com

relação à preservação do objeto. Por vezes, ela conferia pela reação do filho que

provocava atritos involuntariamente; isto a fazia sentir-se profundamente ferida e

injustamente magoada. Após algum tempo de tratamento, reconhecia sua

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responsabilidade em transgredir algum limite que o próprio filho lhe impusera ou lhe

pedira para respeitar. Assim, decepcionava profundamente a ele e a si, sentindo-se

muito mal ao conferir que não conseguia amar sem ferir, nem mesmo a si própria.

Aprofundava-se assim seu trabalho interno de elaboração, pois o reconhecimento de

seus sentimentos ambivalentes não fora possível anteriormente.

Carmen começou a apresentar paulatinamente a possibilidade de enveredar

pelo exame de algumas de suas responsabilidades e reconhecer a culpa em relação,

principalmente, à sua lida com situações externas. Apresentava-se de modo um pouco

mais humilde perante seus erros ou suas precipitações, admitia ter de conduzir a tarefa

da administração interna e manifestação de seus impulsos, conferia sua imaturidade

diante das demandas da realidade. Nesse sentido, era necessário ajudá-la a não

mergulhar novamente na menos-valia e auto-recriminação melancólicas, de forma a

restringir o avanço de seu superego intransigente. Este a sobrecarregava com

mortificação arrasadora perante si mesma, tentando desqualificar suas iniciativas e

esforços efetivos que não resultavam em solução mágica e instantânea de seus

problemas.

Em trabalho de 1948, ―Sobre a teoria da ansiedade e da culpa‖, Klein antecipa

o momento do surgimento do sentimento de culpa, apontando suas primeiras aparições

em estados transitórios de integração em relação a objetos parciais, característicos da

posição esquizo-paranóide. Do mesmo modo, identificara ansiedades persecutórias em

ação na posição depressiva, concebendo claramente a existência de um ―continuum‖

no desenvolvimento, embora mantendo e demarcando significativa diferença entre o

funcionamento da posição esquizo-paranóide e aquele da posição depressiva.

A impossibilidade do enfrentamento, da elaboração e da conclusão do luto

primitivo pelo objeto amado fazia Carmen permanecer no bascular maníaco-

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depressivo em que havia passado toda sua vida. Tentava equilibrar-se entre um pé no

céu e um na terra, como ela própria identificava.

No luto normal, o indivíduo reintrojeta e reinstala não só a pessoa que

realmente perdeu, mas também os pais amados que são percebidos como seus

objetos ―bons‖ internos. Seu mundo interior, aquele que vinha construindo

desde o início da vida, foi destruído em sua fantasia quando ocorreu a perda

real. A reconstrução desse mundo interior caracteriza o trabalho de luto bem-

sucedido. (KLEIN, 1940, p. 406)

A pessoa enlutada pode inicialmente negar a dor da perda ocorrida, com a

finalidade de evitar o mesmo destino do objeto. O ego, persuadido pelas satisfações

narcísicas a se manter vivo, deve romper seu apego ao objeto. O paradoxo de tal

situação, profundamente dolorosa e conflitiva, é ser necessário de algum modo que o

sujeito permita que o objeto se vá, mesmo sentindo que pode não sobreviver a esta

perda. O trabalho de luto consiste neste enfrentamento e desespero correspondente;

por meio dele, consolida-se a diferenciação entre sujeito e objeto.

Durante o luto, a pessoa passa por um estado maníaco-depressivo modificado e

transitório, podendo ocorrer seja a idealização, seja o desvio de seu ódio para aquele

que acaba de perder. Uma sensação de triunfo maníaco em relação a pessoa morta

pode representar a fantasia de vitória junto às figuras importantes da vida infantil,

fundamentalmente pais e irmãos, em direção aos quais teriam tido lugar desejos de

morte. Isto ocorre mesmo no luto normal, como indicou KLEIN (1940), porém o

processo se retarda quando o sujeito é dominado por estas fantasias.

É flagrante como algumas pessoas são obrigadas a ser sempre malsucedidas,

uma vez que o sucesso implica humilhação ou dano a outra pessoa; tal manifestação

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relaciona-se ao triunfo original sobre os pais e irmãos (KLEIN, 1940). Apesar de

empreenderem esforços construtivos para conseguir algo, este triunfo implícito e o

dano ao objeto podem se sobrepor a seus propósitos, impedindo sua realização. Em

conseqüência, a reparação aos objetos amados, que nas profundezas da mente são os

mesmos sobre os quais o sujeito triunfa, é reiteradamente prejudicada, e a culpa

permanece sem alívio. O sentimento de poder ser alvo do retorno desta tentativa de

triunfo provoca o domínio da desconfiança e dos sentimentos de perseguição,

resultando em depressão ou aumento de defesas maníacas, com controle mais violento

sobre os objetos. Essa condição influencia de modo determinante a posição depressiva

e a habilidade de superá-la, pois os aspectos destrutivos envolvidos no triunfo

prejudicam o luto.

Todo avanço no processo de luto é gradual, resultando em aprofundamento da

relação do sujeito com seus objetos internos. Aumentam o amor e a confiança, há

maior aceitação da imperfeição do objeto e a diminuição do temor de vingança por

parte dele, refletindo-se na relação do sujeito com seus objetos externos e conduzindo

o ego para maior independência tanto interna quanto externa.

Uma diferença da posição depressiva em relação ao luto, é que, no

desenvolvimento mental primitivo, a mãe permanece presente. O que é de extrema

ajuda e importância para esta superação, enquanto no luto há o pesar pela perda real

de uma pessoa no mundo externo. Ter estabelecido a ―mãe‖ boa dentro de si no início

da vida auxilia o indivíduo a superar a posterior perda real do ser amado, experiência

que em vez de avassaladora poderá ser enfrentada e superada pelo sujeito.

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Interface entre a paranóia, a melancolia, a mania e a depressão

Quando um estado de depressão apresenta-se no indivíduo normal, no

neurótico, no maníaco-depressivo ou em casos mistos, estão sempre presentes

ansiedades, sentimentos de pesar e defesas que dizem respeito à posição depressiva.

As dificuldades não superadas no luto primitivo geram a predisposição do sujeito à

doença de natureza depressiva. KLEIN (1935).

Evidencia-se uma conexão genética entre a paranóia e a melancolia, pois, em

função de dificuldades na superação dos embates da posição depressiva, o ego pode

regredir defensivamente e podem emergir medos e suspeitas paranóides. KLEIN

(1935) assim explicou os quadros em que tendências paranóicas e depressivas se

mesclam. Por outro lado, diante da problemática da posição depressiva, podem se

estruturar defesas maníacas e obsessivas imbatíveis. Isto impedirá o curso do

desenvolvimento egóico e poderá fixar-se em funcionamento psíquico que não

consegue ser superado.

Na paranóia, ocorre a introjeção do objeto inteiro e real, porém o ego não

consegue com ele identificar-se, ou pelo menos manter esta identificação. A ansiedade

vivida é em relação ao próprio ego, embora tenha início alguma preocupação pela

preservação dos objetos bons e amados, tanto internos quanto externos. A projeção

dos objetos persecutórios no mundo externo promove o temor de perseguição e

retaliação pelos ataques sádicos desferidos aos objetos odiados. Os medos e as

suspeitas paranóides podem ser reforçados como defesa contra a posição depressiva e

suas conseqüências. No caso de sintomas hipocondríacos, as dores e outras

manifestações resultam da identificação do ego com os objetos bons que sofrem

ataque por parte dos objetos internos persecutórios.

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Por seu lado, o quadro psicopatológico da melancolia está associado à fixação

infantil, seja na passagem da posição esquizo-paranóide para a posição depressiva,

como inicialmente descreveu KLEIN (1935), ou deve-se a uma fixação na posição

depressiva, como em 1946 concluiu. Em função da sua conexão com o quadro da

paranóia que o antecede, na melancolia são vivenciadas angústias tanto persecutórias

quanto depressivas.

O ego instável pode oscilar entre estados maníacos e estados depressivos, pois

não confia completamente em sua capacidade reparatória junto ao bom objeto. A

confiança flutuante na integridade e na bondade do objeto encontra-se relacionada

com a fantasia de internamente serem abrigados objetos amados em risco ou já

danificados, isto reiterando a vivência de perda do iminente objeto amado, tanto

interno quanto externo.

Seriam estas as ansiedades por detrás da depressão e da inibição no trabalho;

pois o ego não confia na sua real capacidade de realizar restaurações. Encontrando-se

sob a pressão de um superego de severidade implacável, emerge o sofrimento por

saber, consciente ou inconscientemente, que o ódio está junto do amor. A culpa e o

desespero subjazem a este pesar, semeando a dúvida sobre sua própria capacidade de

amar e, portanto, restaurar, dar vida, criar.

O superego do melancólico possui características de rigor e severidade

implacáveis. Seja pela exigência dos bons objetos, seja pela crueldade dos objetos

maus internalizados. Ou, ainda, pelos ataques que estes objetos desferem entre si e uns

contra os outros. Por seu lado, o ego busca apaziguá-los e protegê-los, o que

compreende a exigência de restaurar o bom objeto, de modo a torná-lo idealmente

perfeito. Ao mesmo tempo, o ego é submetido ao ódio do id e sente-se ameaçado pela

fantasia de ser alvo de cruéis retaliações por parte do objeto mau internalizado. O ego

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tem de se proteger e sente-se preso a reivindicações contraditórias e impossíveis de

atender, o que gera sentimento de culpa e peso na consciência. Em função de uma

relação que é ainda bastante narcisista com o objeto, as auto-recriminações que são

dirigidas ao ego constituem, de fato, acusações e ataques dirigidos ao objeto

internalizado. Estas revertem-se para o ego e lhe compõem um sofrimento sádico do

qual o ego sente-se preso e impossibilitado de cessar tal escravidão interna.

O próprio suicídio consiste em voltar para o ego – em movimento regressivo e

em função da identificação com o objeto que teve início – o ataque destinado ao

objeto mau introjetado. É uma forma de tentar assassiná-lo, eliminando também o

próprio id que é odiado. Ao mesmo tempo, poderia ser esta uma tentativa extrema de

salvar, seja o objeto amado externo, seja o internalizado. Por serem alvos de impulsos

libidinosos e sentimentos amorosos. Seria ainda uma tentativa de salvar a parte do ego

que com eles está identificada. Ao cometer suicídio, o melancólico buscaria a

preservação de seus objetos bons reais em relação ao seu ódio perigoso e

incontrolável, o que reflete sua luta angustiante na relação primordial com o objeto de

amor primário.

Concordando com a idéia freudiana de que a mania estaria calcada nos

mesmos conteúdos da melancolia, KLEIN (1935) destacou ser aquela um modo de o

ego fugir de uma condição paranóica que não consegue dominar. Tentando livrar-se

da perseguição do id e dos objetos maus internalizados, o ego busca extinguir sua

dependência torturante e perigosa dos objetos amados, com relação aos quais

apresenta profunda identificação, difícil de ser abandonada. Lançando mão do

mecanismo da onipotência, o ego dota-se de força ilusória na identificação com o

objeto interno idealizado, e assim sente-se em condição de domínio e de controle para

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negar a realidade psíquica e externa. Negando a importância dos bons objetos e o

pavor dos objetos maus, o ego, na mania, coincide com o ideal do ego.

A hiperatividade maníaca relaciona-se à ―fome de objetos‖, pois constitui a

tentativa de introjetar o bom objeto no ego. No entanto, o controle, triunfo e desprezo

acabam imperando enquanto defesas, dada a relação onipotente que o ego mantém

com os objetos, seja eles internos ou externos. Quando a reparação é maníaca, ela não

atinge o objetivo de efetiva neutralização e restauração dos danos cometidos ao

objeto, sejam eles na fantasia ou na realidade. A ―fome de objetos‖ deriva da fantasia

onipotente de que o objeto e a relação com ele podem ser facilmente descartados e

substituídos. No entanto, a partir de certo ponto, uma nova reversão do estado

maníaco em estado melancólico conduz à renovação do temor de retaliação do objeto,

e, por conseqüência, do próprio superego, de ação implacável em suas acusações e

cobranças relativas, aos ataques desferidos ao objeto, como em relação ao ideal de ego

não atingido.

Descrevendo as características que são encontradas em pessoas hipomaníacas,

KLEIN (1940) especificou que há uma tendência a avaliações exageradas, seja

admiração (idealização) ou desprezo (desvalorização). Tudo é visto em larga escala,

harmonizando-se com a onipotência, a esta defesa o ego recorre pelo medo de perder

o único objeto insubstituível, a mãe, por quem ainda se encontra em luto. Em paralelo,

há uma tendência em minimizar detalhes, tratando-os com casualidade e desprezando

a meticulosidade, o que no fundo constitui um desprezo que se assenta em negar a

necessidade de reparar o dano feito ao objeto, assim como negar o sofrimento e a

culpa decorrentes.

Quando Carmen chegou para o tratamento, demonstrava em seu

funcionamento boa parte destas características, em uma expressão subjetiva na qual os

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excessos eram evidentes, seja em sua figura, seja na sua forma de expressar-se e

relacionar-se. Inundando o outro de modo transbordante e, ao mesmo tempo,

envolvendo-se em situações em que limites eram diluídos, confundidos ou ampliados.

Fosse no horário das sessões, que no início ela confundia, no desejo expresso de

permanecer horários seguidos em sessão ou aguardando na sala de espera, Carmen

indicava alimentar a fantasia de formar um todo indiscriminado com a psicanalista.

Transferia assim para o vínculo analítico o que se manifestava intensa e diretamente

com o filho, junto de quem os embates em torno da diferenciação/engolfamento ou da

inclusão/exclusão eram exacerbados. Os constantes esquecimentos, as perdas de

objetos e os descuidos variados indicavam seu freqüente desprezo pelo detalhe,

denunciando sua negativa inconsciente em efetivar as reparações necessárias.

A introjeção ter sucesso e haver o restabelecimento interno encontram-se

dependentes da possibilidade efetiva de se dar a reparação do objeto atacado na

fantasia. Assim, o ego tem de ultrapassar a reparação maníaca que se baseia na

onipotência ou então dominar a reparação obsessiva, compulsiva e ineficaz, que se

baseia na satisfação sádica em controlar, vencer e humilhar o objeto. Quando o ego

confere sua capacidade de amar e seus poderes reparadores na realidade externa,

aumenta a confiança em si e no objeto, assim como dilata-se a integração egóica e a

segurança no seu mundo interno bom, o que é um sinal de que a neurose infantil

chegou ao fim.

Carmen manifestava sua enorme alegria ao conferir que as plantas e as flores

que cultivava chegavam a brotar ou florescer de modo saudável e exuberante. Por este

intermédio, conferia que os cuidados que lhes dispensara tinham sido frutíferos. Isto a

recompensava e, em última instância, lhe proporcionava uma confirmação de que

tinha a capacidade de criar e auxiliar algo a se desenvolver. Em contrapartida, sentia-

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se especialmente frustrada em relação a Augusto, que, apesar de ter sido gerado e

educado para ser um grande sucesso, não se desempenhava de acordo com os recursos

que possuía. Seus recursos também não bastavam para fazer florescer em si uma vida

mais significativa e amplamente satisfatória, Carmen sentindo-se enormemente

penalizada pelos constantes os fracassos que se renovavam havia muito tempo,

configurando-se em um ―eu em ruína‖ que vinha para tratamento em busca de resgate.

É importante destacar-se que, em período posterior àquele abrangido pelo

relato do Capítulo II, Vivido na clínica, Carmen começou a estabelecer ou retomar

alguns poucos vínculos afetivos, com pessoas simples e que também contavam com

algumas dificuldadas na vida pessoal. Porém, por intermédio da identificação que se

promovia, ajudavam-se reciprocamente e, assim, surgiam convites para atividades nas

quais Carmen podia começar a usufruir das coisas simples da vida, o que foi

especialmente valorizado na perspectiva do pensamento de Winnicott e cuja

importância FRANCO e WONDRACEK (2006) destacaram. Estas pessoas com as

quais Carmen começou a conviver, inclusive tendo retomado o relacionamento com o

próprio irmão, contribuíam para que ela estabelecesse contato mais direto e menos

turbulento com a realidade externa e acolhesse melhor as frustrações que se

impunham. Evidentemente, isto só fora possível porque Carmen se dispusera para

outra forma de viver sua vida. Tudo isto, em se tratando de Carmen, estava longe de

ser pouca coisa.

D. Sobre a perda original

A interessante hipótese de uma perda originária à qual estaria submetido o

psiquismo foi defendida por ABRAHAM e TOROK (1995) ao considerarem a marca

da ação da realidade nesta situação psíquica fundamental. Estes autores consideraram

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que o processo de introjeção teria início desde o nascimento, graças às experiências de

―boca cheia‖ de objeto materno e ―boca vazia‖ do mesmo objeto. Na presença de uma

figura materna que presta assistência e acolhe a criança com palavras, instaurar-se-ia a

possibilidade psíquica de o bebê enfrentar-se com a ―boca vazia‖, na ausência da mãe.

As palavras cumpririam, então, a função de substituir a presença materna,

possibilitando novas e futuras introjeções, o vazio oral assim encontraria remédio para

todas as faltas que ainda estariam por vir.

Na direção oposta, a fantasia de incorporação visaria anular, de modo mágico,

a marca desta situação psíquica fundamental. Recorrendo ao objeto como elemento

que substitui a ferida narcísica original do sujeito, haveria uma recusa em reintroduzir

em si o que está projetado no objeto e que constitui o verdadeiro sentido da perda. ―A

fantasia de incorporação denuncia uma lacuna no psiquismo, uma falta no lugar

preciso em que uma introjeção deveria ter ocorrido‖ (ABRAHAM e TOROK, 1995, p.

245).

A incorporação ocorreria fundamentalmente quando da perda súbita de um

objeto narcisicamente indispensável, havendo a recusa da introjeção desta perda do

ideal. Nestas circunstâncias, embora a realidade psíquica seja completamente outra, a

incorporação é uma fantasia de segurança para o ego, o objeto como ideal do ego se

constituindo com o objetivo eminente de reparação narcísica.

Em função de tal circunstância, estes autores apontaram que muitas vezes o

enfoque clínico desses pacientes se dá como se fossem histéricos ou histerofóbicos, e

o tratamento pode chegar mesmo a ser concluído sem que tenha sido tocado este

problema de base. A incorporação, considerada como fenômeno críptico, envolveria o

segredo da morte do ideal originário do sujeito, podendo esconder-se por detrás até

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mesmo da ―normalidade‖, porém manifestando-se às claras no delírio ou na neurose

narcísica, que para Freud seria a ―mania-depressiva‖.

Retomando as idéias de Freud acerca da melancolia, com relação aos múltiplos

combates inconscientes entre ódio e amor ao nível das representações arcaicas,

ABRAHAM e TOROK (1995) conceberam que, enquanto a cripta feita com as pedras

do ódio e da agressão resiste e permanece na dissimulação da verdadeira ferida

narcísica, não emerge a melancolia. Muitas vezes, no entanto, a melancolia se declara

no momento em que as paredes se abalam pelo desaparecimento de um objeto que lhe

servia de esteio. Diante da ameaça de desmoronamento da cripta, o ego todo torna-se

cripta. Diante da iminência de perder sua sustentação interna, o núcleo de seu ser, o

ego funde-se com o objeto que incluiu internamente e inicia um luto ―interminável‖. O

ego esforça-se por ―objetalizar‖ a perda e a agressão original, sendo este um último

recurso para seu restabelecimento narcísico.

No entender de ABRAHAM e TOROK (1995), a narcísica fantasia de luto do

sujeito consiste em que o objeto que o ama deve perdê-lo e não sobreviver a esta

perda, sendo este o sacrifício supremo que lhe é exigido. O sujeito luta contra o

reconhecimento da fantasia de exaltação narcísica de ver o outro lhe dedicando amor e

enlutado por ele. O que está subjacente ao ódio e à agressão que podem ser

intensamente dirigidos ao objeto, e substitutivamente ao analista. Enquanto esta

condição psíquica não puder ser interpretada e reconhecida pelo sujeito, as

intervenções analíticas correm o risco de se transformarem em nova ferida narcísica.

E, assim, promoverem a reação maníaca regida pela onipotência. A incorporação se

dando onde deveria estar se processando a introjeção, esta impossibilitando o

verdadeiro luto.

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A doença do luto refere-se à fixação do ego em período inicial de sua

constituição, quando o objeto é sentido como se fosse o detentor de tudo aquilo que o

sujeito necessita para seu crescimento, e resulta na criação de um pedestal imaginário

para o objeto. Se o ego não recuperar para si a libido investida nesta idealização do

objeto – libido necessária para seu próprio crescimento inicial –, não conseguirá

concluir o processo de introjeção. E, assim, por ocasião da perda real de um ser

amado, pode haver o desabamento, emergindo então a doença do luto ou a melancolia.

O processo de introjeção inacabado fará com que o ego, incompleto e

dependente, permaneça na esperança de ter algum dia realizado seu desejo de

restituição narcísica por intermédio de algum objeto externo. O analista precisa ajudar

o paciente a encontrar em si esta fantasia, a qual não permite que o objeto possa ser

perdido. Isto para que se solucione este impasse e tenha curso o processo de luto que

se encontra obliterado. Nos casos em que foi viável esta recuperação libidinal, o ego

terá no trabalho de luto um processo doloroso, porém, a sua integridade garantirá a

saída, sem ficar ameaçado de desamparo com o desaparecimento do objeto. Deste

modo, o ego ficará disponível para o investimento em outros objetos necessários à

economia libidinal.

Nos momentos iniciais do atendimento de Carmen, era flagrante o seu

padecimento narcísico, sua revolta pelo abandono e sua frustração perante seus

objetos mais amados, colocados no lugar de absolutamente imprescindíveis. Um eu

ferido e ressentido pela condição em que restava. Desvelava-se seu enorme desamparo

por detrás do que dizia ser a perda da mãe, a desilusão com o filho, as falcatruas e as

decepções com terceiros. Todas estas perdas, reais ou imaginárias, de algum modo se

reportavam diretamente a seu frágil ego quanto à sustentação narcísica desde sua

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constituição. De posse de uma ferida narcísica jamais cicatrizada, ela recorrentemente

lançara mão do objeto ideal para substituir esta perda no psiquismo.

As formulações de ABRAHAM e TOROK (1995), indicam uma aproximação

de sua hipótese ao esquema conceitual kleiniano, fundamentalmente centrado na

constituição psíquica e nos processos originários da vida mental, ao qual este trabalho

se dedicará a seguir.

Ao discorrer sobre o significado da posição depressiva conceituada por Klein,

FÉDIDA (1999) definiu-a como o momento criativo da constituição temporal da

ausência, sendo que a noção de vazio ele relacionou a uma depressão arcaica, anterior

à posição depressiva. Portanto, na mesma direção de Abraham e Torok, ele considerou

ser esta uma condição impeditiva para o sujeito ter acesso à posição depressiva,

trazendo como conseqüência o luto impossível. FÉDIDA (1999) considerou a análise

uma tentativa de permitir ao paciente com depressão maligna aceder à posição

depressiva, por meio do jogo da ausência que se articula e atualiza na transferência.

Os pacientes cujo vazio oral deixado pelo seio torna impossível o luto, podem

receber ajuda pela análise, de modo a saírem do vazio e se enfrentarem com a

ausência do objeto.

A escuta analítica acontece exatamente aí – não para substituir o ausente, nem

preencher o vazio de seu lugar, mas para fundar a relação que ele desconhece:

a da ausência. O ouvido do analista pode ser descrito como o buraco – mas

não é um buraco! – de uma cavidade que só o é devido ao protótipo da boca.

Pois, finalmente, é justamente na boca da fala que o silêncio de uma escuta

virá tomar lugar. (FÉDIDA, 1999, p. 107)

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A análise é um espaço ―potencial‖ ou ―transicional‖, um intervalo singular da

estranha intimidade entre o paciente e o psicoterapeuta. É neste ―entre‖, que é ato de

ruptura e de diferença, de disjunção e desligamento, que está compreendida a perda, a

separação, a castração. A partir do enfrentamento com a perda sofrida, a presença do

analista pode auxiliar na constituição da ausência na subjetividade do paciente. E,

assim, funda um intervalo onde o terceiro simbólico, talvez o pai, possa ter existência

e ser acolhido, conforme indicou FÉDIDA (1999).

A morte da mãe de Carmen indicava não ter fundamentalmente produzido uma

ausência, mas desvelado um vazio, abrindo interminável perda de natureza

melancólica, como uma hemorragia do eu. Pode-se igualmente pensar sobre a

desilusão com Augusto e as demais circunstâncias que frustraram as expectativas

ideais que habitavam Carmen. Fatores cumulativos nesta perda do eu vivida no objeto,

ou em relação a ele.

A perda do objeto (separação, abandono...) só implica em ameaça se provocar

a destruição do eu. A identificação narcísica primitiva é tal que a angústia da

perda do objeto de amor deixa-se interpretar como a angústia do eu de não

conseguir sobreviver para além do desaparecimento do objeto: a melancolia é

menos a reação regressiva à perda do objeto do que a capacidade fantasmática

(ou alucinatória) de mantê-lo vivo como objeto perdido. A ambivalência do

canibalismo pode ser esclarecida se dissermos correlativamente que a

angústia melancólica é canibal e que ela diz respeito, nesse sentido, à

dependência do eu à ameaça de perda de seu objeto: essa ambivalência

significa que o meio mais seguro de se preservar da perda do objeto é destruí-

lo para mantê-lo vivo... O canibalismo seria, então, a expressão mítica de um

luto melancólico – espécie de assassinato – de um objeto, sob o encanto do

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qual o eu foi colocado e do qual ele não consegue resolver-se a se separar,

como mostra a angústia de mantê-lo presente a partir de sua ausência...

Somos tentados a dizer que o canibalismo figura qualquer tentativa de

compreender o outro por identificação projetiva ou introjetiva, quando este se

mostra diferente de si. O canibalismo é o mito de um assassinato para que

seja desconhecida uma diferença e para que seja legitimada a esperança da

identidade possível pela crença na incorporação... mito que conta como, ao se

devorar, cumpre-se o incesto alimentar com o objeto de amor. (FÉDIDA,

1999, p. 66)

E. Édipo: da dor primitiva à triangularidade

No cenário de elaboração da posição depressiva, o ego primitivo tem de lidar

com a emergência da situação edípica, permeada de ansiedades e fantasias

inconscientes relativas a ambos os pais e à relação mantida entre eles, configurando o

complexo de Édipo primitivo, uma triangularidade precoce e incipiente.

Embora a posição depressiva encontre-se mais focada na relação do bebê com

a figura materna, o pai também deve ser estabelecido na mente infantil como pessoa

total, assim como outras pessoas do meio, enfatizou KLEIN (1948). É por este

intermédio que o bebê terá a possibilidade de separar-se da união narcísico-dual com a

mãe, atração fusional da qual terá de libertar-se para constituir a triangularidade

simbólica, fundamental para o psiquismo em sua estruturação.

Na descrição kleiniana, o complexo de Édipo arcaico é um meio de

perlaboração das ansiedades depressivas, em ambos os sexos estruturando-se a partir

da frustração oral com o seio materno e promovendo o desejo de satisfação oral junto

ao pênis do pai, como relembrou PETOT (1988). Nas palavras de FIGUEIREDO

(2006b), o seio mau que se apresenta nas frustrações sofridas junto do seio bom já

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seria uma prévia deste outro, o pai, que acena na ante-sala da triangulação, embora

ainda não configure um outro, como terá lugar por ocasião do complexo de Édipo

clássico, vivido posteriormente junto às pessoas do pai e da mãe.

Em síntese, a situação edípica arcaica vivenciada pelo bebê, ao sofrer a

frustração da perda do seio no desmame, além de demarcar a separação e autonomia

do objeto, promove a fantasia inconsciente de que isto ocorre em favor de um outro,

fundamentalmente o pai. Daí surge a figura combinada, uma associação dos objetos

parentais parciais, dando início à configuração de uma triangularidade edípica, como

indicou PETOT (1988). Deste modo, exacerbam-se os impulsos orais agressivos

contra esta fantasia de união parental, que representa exclusão para o bebê, a eles se

associando os impulsos sádicos anais e uretrais que têm lugar no primeiro ano de vida

da criança. Esta emergência é revestida de um caráter genital precoce, pois ocorre em

momento pré-genital do desenvolvimento.

Nesse primeiro momento da situação edípica primitiva, com o predomínio da

fantasia de uma união perigosa entre os objetos parentais, tem-se a expressão e a

continuidade do temor de reunião entre os objetos amado e odiado, que vigora no

despontar da posição depressiva. A fantasia da figura combinada reúne, e de algum

modo confunde, as figuras parentais em seus limites e identidades na mente infantil.

Nesta perspectiva, os temores vivenciados pelo bebê referem-se à ameaça de vingança

e de retaliação pelos impulsos agressivos dirigidos à união parental.

Os impulsos libidinosos, inicialmente dirigidos ao seio materno, em função da

frustração com o seio e pela própria ação do desenvolvimento libidinal, partirão em

busca de novos objetos para satisfação. E serão dirigidos tanto ao seio materno como

ao pênis paterno, objetos primários dos desejos da criança, para depois serem

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transferidos para a figura total de ambos os pais. Portanto, como objetos amados, é

muito temida e ameaçadora a possibilidade de que sejam perdidos.

No entanto, embora presente desde o início da vida este movimento libidinal,

ele só terá primazia na etapa mais adiantada da posição depressiva e da lida com a

situação edípica primitiva. Segundo PETOT (1988), isso ocorrerá após terem sido

suplantadas as defesas maníacas e obsessivas contra as ameaças de destruição do ego

e do bom objeto internalizado, que têm lugar no transcurso da elaboração depressiva.

Estas defesas antecedem o emergir do sentimento de culpa, o penar pelo objeto e o

desejo de reparação efetiva, referindo-se fundamentalmente às angústias persecutórias

e depressivas vividas na unificação do objeto total e na integração do amor e ódio no

cenário psíquico do bebê.

A partir de então, serão possíveis mecanismos reparatórios pela predominância

das pulsões de vida sobre as pulsões de morte, função primordial na superação da

posição depressiva. Lançando mão dos impulsos libidinosos como meio de reparar os

danos cometidos, o ego infantil alivia o sentimento de culpa por suas fantasias

onipotentes agressivas. Ao final, esse movimento ajuda a instalar e manter

internamente o objeto bom, e o ego desenvolve com ele uma identificação empática.

Tendo em vista este importante processo na mente primitiva infantil, PETOT

(1988) conferiu que Klein, ao referir-se às questões clínicas, distinguiu na situação

edípica um momento inicial, fundamentalmente pré-edípico, e um momento mais

tardio, com características de triangularidade mais configurada. Este último,

destacadamente de caráter edípico, pois é regido de forma primordial pelos impulsos

libidinosos dirigidos a figuras parentais distintas e sexuadas, havendo a alternância do

complexo de Édipo positivo e invertido. A união sexual dos pais, não mais

confundidos em sua identidade, trata então da fantasia clássica da cena primitiva, e

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portanto refere-se a um Édipo mais evoluído. Neste caso, a ansiedade depressiva

sendo aliviada pela distribuição do amor e do ódio em pessoas distintas, a criança

pode alternadamente buscar formar um casal com cada um deles, enquanto o outro é

posicionado como rival, aproximando-se portanto da concepção clássica do Édipo,

descrito por Freud.

Em última instância, a situação edípica primitiva consolidará a distinção entre

sujeito e objeto, mediante a quebra da ilusão onipotente infantil de união com o seio

materno. Havendo a interposição da figura do pai enquanto terceiro e rival, emerge a

fantasia a respeito dos irmãos como sendo produto da fantasia de união entre as

figuras parentais, e portanto sendo alvo de ataques destrutivos dirigidos ao interior do

corpo materno e seus bebês.

Esta ruptura na condição idílica inicial com o seio, faz parte do

desenvolvimento psíquico infantil, pois ―é através do luto desta relação exclusiva

perdida que se pode reconhecer que o triângulo edipiano não significa a morte de uma

relação, mas somente a morte de uma idéia de relação‖ (BRITTON, 1992, p. 84).

O complexo de Édipo e a posição depressiva são fundamentalmente processos

de luto, o processo elaborativo da neurose infantil sendo o fim das ilusões onipotentes

e do narcisismo fálico da primeira infância. Não podendo ser tudo para alguém,

rompe-se a onipotente célula narcisista da relação diádica com a mãe, tendo de ser

admitido que os pais formam um casal que troca prazeres, dos quais a criança está

necessariamente excluída, acentuaram as palavras de CINTRA e FIGUEIREDO

(2004). Se antes alimentava a fantasia em tríade narcísica, sendo a criança

maravilhosa para seus pais em relação sublime e assexuada, há a queda da fantasia de

auto-engedramento e o reconhecimento da filiação. Isso constitui uma espécie de

dívida para com os pais e portanto dificulta a separação afetiva destes.

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A posição depressiva guarda como elemento essencial a distinção entre self e

objeto, e entre o objeto real e o ideal. A situação edípica primitiva impõe ao bebê o

reconhecimento da impossibilidade de seu ideal onipotente de posse exclusiva da mãe,

e pode incorrer na evitação do reconhecimento da ambivalência com relação ao objeto

original. Segundo BRITTON (1994), pela dificuldade de reconhecer a mãe nutridora e

amorosa sendo, ao mesmo tempo, a pessoa sexuada que é parceira sexual do pai.

Assim, a configuração edípica pode perpetuar-se na cisão em dois objetos, dando

continuidade ao universo dividido em um objeto permanentemente bom e outro

permanentemente mau.

Em Carmen, era possível reconhecer que a situação edípica não evoluíra da

triangularidade precoce para a triangulação efetiva e madura do complexo de Édipo

clássico. Nas relações objetais que estabelecia, predominava a fantasia inconsciente

com teor de união narcisista-dual, a figura do terceiro sendo sempre vivida como

perigosa ou destruidora, como certa vez relatou: Lembro-me de uma situação em que

passava com minha mãe por um local onde havia sido morta uma mulher. Como ela

havia brigado como sempre com meu pai, senti um medo enorme de perdê-la, que ela

morresse como a mulher daquele local. Segurei muito forte na mão dela e percebi que

ela também estremeceu quando lá passamos. Acho que tinha medo que meu pai

pudesse fazer aquilo com ela.

Carmen indicava as cisões entre a mãe boa/má e a mãe boa/pai mau que, em

grande medida, ainda perduravam em seu mundo interno. Rejeitava a quebra da ilusão

onipotente de união com o seio bom, não aceitando a morte desta idéia de relação, o

que demandaria a elaboração deste luto e das angústias depressivas associadas.

O encontro edipiano envolve ainda o reconhecimento da diferença da relação

entre os pais em contraposição àquela entre genitor e filho; pois, se a relação entre os

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pais é genital e procriadora, aquela entre pai–filho não o é. Tal reconhecimento se dá

mais proximamente à situação edípica mais madura, como relembrou FIGUEIREDO

(2006b). O complexo de Édipo clássico descrito por Freud engendra os sentimentos de

perda e de inveja, que ao não poderem ser tolerados podem transformam-se em senso

de injustiça ou de autodenegrimento. Além disso, caso o confronto com o

relacionamento parental se dê em momento no qual a criança ainda não estabeleceu o

objeto materno em base segura, a situação edípica se mantém apenas em sua forma

primitiva, não podendo evoluir em direção ao complexo de Édipo clássico.

Em alguns pacientes, o reconhecimento da relação sexual dos pais pode ser

considerado como algo que destrói tudo de bom da mãe, ou do seio, e

portanto destrói o objeto bom interno que seria equacionado com tudo o que é

bom no mundo. Assim, nesses pacientes, a cena primária provavelmente será

vista como uma catástrofe que leva a um mundo que desaba... (BRITTON,

1994, p. 56)

Tudo indicava que a imagem dos pais sexuados e procriativos fora negada por

Carmen até o momento em que deixou de ser a filha única, princesinha dos pais, para

enfrentar-se com o nascimento de seu irmão vários anos depois. Este que, além de

tudo, roubou-lhe a atenção e carinho maternos, pela espécie de cuidados intensivos

que sua moléstia congênita impunha.

Carmen reiteradamente afirmava sua mãe como uma mulher frígida e

desinteressada por sexo, isto tendo culminado no cessar das relações sexuais que

promoveu a tumultuada separação do casal parental. Nessa ocasião, Carmen

abandonara seus planos de viver no exterior e separar-se do marido, para voltar para o

lado da mãe, restabelecendo, em sua fantasia, a união narcísica-dual original. Essa

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circunstância a fez manter a velha senhora junto de si até sua morte, como a fez

estender e projetar na relação com o filho Augusto a união da qual não conseguia se

separar.

A negação da relação sexual entre os pais interfere no desenvolvimento do

senso de realidade, provocando na criança a evitação da renúncia final aos objetos

edipianos. Entretanto, tendo havido o registro deste relacionamento, esta negação

defensiva acabará produzindo a formação de uma ilusão edipiana, indicou BRITTON

(1994). Desta forma, é mantida uma cisão da situação edípica em área do pensamento

que permanece protegida da realidade, fundamentalmente uma área de devaneio ou de

fantasia masturbatória. Sendo este um lugar onde algumas pessoas podem passar a

maior parte de suas vidas, seus relacionamentos externos sendo utilizados para atuar

esses dramas, fornecendo uma espúria pretensão de realidade a estas fantasias, que

não possuem ―senso de verdade‖ com relação à própria realidade psíquica. Em outras

pessoas, pode ser constituída uma espécie de ilha de atividade, tal como uma

perversão, que se mantém separada da corrente principal da vida do indivíduo.

Em algumas pessoas a vida, em vez de ser vivida, pode tornar-se o veículo

para o restabelecimento de tais ilusões defensivas, sendo as relações com o

mundo externo usadas apenas como acessórios de cena para um drama

interno insistente cuja função é negar a realidade psíquica da posição

depressiva e das dores da situação edípica real. (BRITTON, 1994, p. 59)

Caso as ilusões edipianas sejam perpetuadas secretamente, e, neste cultivo, o

sujeito busque refúgio, a fantasia de permanecer o escolhido perdura e o complexo de

Édipo não poderá ser resolvido pelo processo normal de rivalidade e abdicação, pelo

contrário, produzirá ciclos de ilusão e desilusão. O luto é assim evitado pelas ilusões

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edipianas ou pelo refúgio em devaneios, as relações com o mundo externo sendo

cenário deste insistente drama interno.

Podem ocorrer reencenações de situações edipianas estereotipadas na vida

adulta, emergindo a aversão à idéia de sexualidade parental por meio da representação

de um dos pais como repulsivo, ou até mesmo a relação sexual parental sendo vivida

como sado-masoquista ou assassina, dando lugar à fantasia de um casal arruinado em

mundo em ruínas (BRITTON, 1994).

Carmen relatava a divisão e as ilusões alimentadas internamente muitas vezes

por meio de ocorrências em sua vida. Uma vez contou: Depois da desilusão com o

noivo homossexual, ganhei uma carro de último tipo muito bonito e vistoso, meus pais

temendo que eu fizesse alguma besteira. Eu saía sozinha e descobri um bar

freqüentado por boêmios e homossexuais, que lá iam para conhecer pessoas, ter

encontros. Eu permanecia lá sozinha, observando todos e provocando-lhes surpresa,

muitas vezes sendo devorada com os olhos. Quando começavam as abordagens, os

bilhetes, eu sumia. Voltava para casa satisfeita, meus pais jamais imaginando aquela

experiência.

Portanto, era possível divisar o mundo de ilusão em que Carmen encenava seus

devaneios em área protegida da realidade. De algum modo, ela indicava ter levado a

vida atuando seus dramas, tentando fornecer certo ―senso de realidade‖ a suas

fantasias, permanecendo no cultivo defensivo da ilusão edípica, e assim, perpetuando-

se secretamente na fantasia de permanecer a escolhida.

Em outro trabalho, BRITTON (2003) destacou que o triângulo da família

primária, inicialmente concebido em termos de objetos parciais e no registro dos

desejos orais, traz no seu âmago a possibilidade de ligação separada com cada um dos

genitores e seu confronto com a ligação existente entre eles. Tal circunstância geraria

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uma terceira posição, um espaço triangular no qual a criança atua como observador e

não participante. Uma vez atingida esta posição, se instauraria a capacidade do sujeito

poder observar e pensar sobre si mesmo. Assim, o reconhecimento da relação entre os

pais teria o efeito de unir o mundo psíquico da criança, fornecendo uma fronteira que

delimita o mundo interno. Mediante diferentes relações de objeto com cada um dos

genitores, abre-se para a criança esta possibilidade de realização com futuros objetos

substitutos.

Em ciclos de ilusão e de desilusão, Carmen passara toda sua existência

evitando a realidade psíquica da posição depressiva e as dores da situação edipiana

real. Assim, não desenvolvera plenamente a terceira posição, a de observador e não

participante. Pela dificuldade de reconhecimento da relação entre os pais, seu mundo

interno não apresentava fronteiras delimitadas. O ressentimento denegrindo não

apenas o par parental, mas solapando a sensação de um lugar seguro e confiável no

mundo, remetendo-a ao sentimento de desamparo que tão intensamente indicava

experimentar.

Tal condição comprometera especialmente sua vida amorosa. Entregara-se à

ilusão indiscriminadamente, negando a realidade do outro e do tipo de relação que lhe

oferecia, desprezando quem poderia ser um companheiro amoroso e construtivo,

envolvendo-se em união destrutiva da qual não conseguia libertar-se em prol de si

mesma. Além do mais, com freqüência privilegiara relações e situações que se

mantinham ao nível do brilho narcísico de superfície, em detrimento daquelas que

teriam contribuído para sua estruturação narcísica e o desenvolvimento de uma auto-

estima que a sustentasse a partir de dentro.

O reconhecimento de uma relação parental pautada pelo amor é a base para

emergir a confiança de que haja um lugar seguro e confiável no mundo, retomaram

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CINTRA e FIGUEIREDO (2004). Caso contrário, a inveja pela relação entre os pais

ou em relação a outras relações que possam estabelecer, por exemplo, com os irmãos,

o ressentimento experimentado denegrirá o par parental e o que possam eles oferecer.

Assim, deixa de existir a sensação de um lugar seguro e confiável no mundo, o que

intrinsecamente faz crescer no indivíduo o sentimento de desamparo. Além disso, no

complexo de Édipo o poder materno necessita ser relativizado e modificado pelo

poder paterno, o qual deve compatibilizar-se com aquele sem destruí-lo. A

possibilidade desta integração seria então considerada uma boa resolução do

complexo de Édipo na infância.

É importante lembrar que o sucesso deste percurso no desenvolvimento

infantil está diretamente relacionado à natureza e à qualidade da participação das

figuras parentais reais em sua relação com a criança, pois ―[...] o complexo edipiano

depende dos pais criarem um espaço edipiano e, se este espaço não existe, aí então o

complexo edipiano infantil será deformado‖ (BOLLAS, 1992, p. 112). Nesta direção,

uma falsa triangulação primitiva perturba o acesso à triangularidade efetiva, sendo

profundamente comprometedora da saúde psíquica do indivíduo, como relembraram

CINTRA e FIGUEIREDO (2004).

Numa direção própria, característica de seu passado como médico pediatra,

WINNICOTT (1982) ocupou-se com a consideração da pessoa do pai em relação ao

desenvolvimento da criança, e, assim, ressaltou que o pai acabará por conhecer ou não

o seu bebê, em dependência da atitude que a mãe assuma diante desta aproximação.

Para a criança, é incomparavelmente melhor um pai forte, que pode ser amado e

respeitado. Ele é valioso em várias direções, entre elas: a) auxilia a mãe a sentir-se

bem em seu corpo e feliz em seu espírito, a criança sendo bastante sensível à relação

entre seus pais. A união sexual entre eles é um fato que fornece a oportunidade de a

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criança alicerçar as relações triangulares; b) o pai é necessário para dar apoio à mãe,

ser um esteio de sua autoridade sustentando a lei e a ordem que a mãe implanta na

vida da criança, a qual precisa sentir que ele é vivo e real; c) ele é necessário por suas

qualidades positivas e pelo que o distingue dos outros homens, pela vivacidade com

que reveste sua personalidade.

Se o pai estiver presente e quiser conhecer o próprio filho, em circunstâncias

felizes ele enriquecerá o mundo da criança, o que vem a ser um auxílio na formação

dos ideais infantis. Embora sendo natural a idealização dos pais, é muito importante

ter a experiência de conviver com eles e conhecê-los como seres humanos, ao ponto

de os descobrir; isto inclui o fato de a criança se decepcionar com as imperfeições do

pai e sobreviver ao ódio que lhe devota sempre que é desapontada. É da

responsabilidade da mãe enviar o pai ao filho, embora não possa tornar férteis as

relações entre eles, porém, é do seu âmbito possibilitar essas relações. No entanto, ela

tem a possibilidade de, em outra direção, impedi-las ou desfigurá-las (WINNICOTT,

1982).

Por seu lado, as palavras de SAFRA (2006) salientaram não ser apropriado

considerar que Winnicott não atribuiu um lugar significativo à figura do pai. Isto

porque o casal, ao sonhar a presença de uma criança, está lhe dando um lugar humano,

um lugar no casal e no transgeracional. A ―preocupação materna primária‖ só é

possível na medida em que o pai encontra-se na retaguarda, para que a mãe sonhe e

encontre o bebê, além de proteger a mãe do bebê e vice-versa, para que o amor

primitivo se dê sem riscos. Os braços da mãe que sustentam o bebê transmitem a

presença do pai no corpo materno, embora ele possa estar supostamente invisível sob

o ponto de vista da criança.

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Winnicott compreendia o complexo de Édipo tal como Freud, como o

complexo nuclear das neuroses e tendo na repressão o mecanismo de defesa por

excelência, sendo um processo típico da organização genital da libido (Bittencourt

apud OUTEIRAL e CELERI, 2002). Em contrapartida, atribuiu importante papel ao

pai no início da vida da criança, nos estágios pré-genitais, pois quando ele se ausenta

na sustentação da mãe, ou se ela não investe no pai da criança, o desenvolvimento

psíquico infantil se ressentirá. O pai é necessário por seus próprios direitos e não

como uma réplica da mãe, pois, sendo indivíduo separado e conhecido pelo que é, a

criança pode aprender sobre relações de amor e respeito sem idealização. O pai é

responsável por continuar o processo de desilusão iniciado pela mãe, abrindo um

mundo novo para a criança (Davis e Wallbridge apud OUTEIRAL e CELERI, 2002).

Estes autores, em seu trabalho, destacaram serem inúmeras as referências

feitas por Winnicott ao pai e ao seu papel no desenvolvimento da criança, como

elemento imaginário e real do ―ambiente facilitador‖, e como imago que faz parte da

realidade interna da mãe, fazendo o ―holding‖ da ―unidade mãe-bebê‖, e, portanto, em

sua função, constitui-se em um ―pai suficientemente bom‖. Ao referir-se à

triangularidade edípica, Winnicott apontou de forma simples que a criança odeia a

terceira pessoa. O pai possibilita o controle da agressão da criança, a mãe sendo usada

como refúgio (OUTEIRAL e CELERI, 2002).

Por seu lado, ETCHEGOYEN (2002) indicou que Loewald valorizou a

identificação positiva precoce com o pai como poderosa força contra o perigo de

engolfamento com a mãe, identificação esta que se dá antes do complexo de Édipo. A

relação defensiva com o pai ocorreria apenas posteriormente, em resposta à ameaça de

castração que tem lugar no complexo de Édipo clássico.

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Um olhar acerca do Édipo feminino

O início da situação edípica primitiva apresenta característica pulsional

marcante em momento pré-genital do desenvolvimento infantil. Em função da

frustração pela perda do seio no desmame, o bebê, seja ele do sexo masculino ou

feminino, dirige-se ao pênis do pai como um novo objeto de satisfação oral (PETOT,

1988).

Com base no modelo oral de relação receptiva e gratificante com o seio

materno, emerge o desejo da menina em receber o pênis-mamilo do pai na cavidade

vaginal, o conhecimento deste órgão presente no inconsciente feminino desde o

nascimento. Assim, visaria receber os bebês imaginários que, em sua fantasia,

encontram-se no interior do corpo da mãe, concebeu KLEIN (1945).

A inveja do bom seio materno e os ataques destrutivos a ele dirigidos,

intensificam na mente primitiva da menina as ansiedades e os temores de que possa ter

seu próprio interior atacado e roubado em retaliação pela mãe vingativa, tanto interna

quanto externa. O que se reflete em dúvidas e ansiedades a respeito da sua capacidade

em gerar bebês, compreendeu KLEIN (1957).

Portanto, a mãe frustrante revela-se como um mau objeto no plano da

oralidade, pois lhe toma o seio e mantém consigo seu conteúdo de valor; assim como

se constitui em sua rival e perseguidora no cenário da situação edípica primitiva,

possuindo um interior preenchido do pênis paterno e dos bebês que a menina almeja

para si. Cabe indicar, que, no entender de KLEIN (1945), as fantasias que atribuem à

figura materna esta dupla importância como perseguidora, ocorrendo no início da

formação do superego primitivo, é responsável pelo fato de o superego feminico

guardar características severas, cruéis e inflexíveis, caso não consiga contrabalançar

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simultaneamente com a introjeção de bons objetos e contar com bons objetos

externos.

A configuração do Édipo primitivo positivo é de importância fundamental

para o desenvolvimento emocional da menina, produzindo importante efeito em sua

identificação com a mãe enquanto figura feminina, o que é determinante na escolha

amorosa e na qualidade da relação que estabelecerá com a figura masculina, bem

como quanto ao seu futuro na maternidade.

Frustrada pelo pai nos seus intentos de ocupar o lugar da mãe e receber do

pênis paterno os bebês que deseja e imagina que ele tenha para dar, segue-se na

menina o complexo de Édipo primitivo invertido, que consiste em sua identificação

com a figura paterna. A partir da fantasia inconsciente de apossamento do pênis do

pai, a menina volta-se novamente para a mãe, só que, desta vez, sentindo-se

imaginariamente possuidora do órgão masculino. Nos moldes da relação agressiva e

invejosa com o seio materno, em sua fantasia onipotente a menina apossa-se do pênis

do pai para ofertar à mãe os bebês que poderia desejar. Deste modo, procura reparar

os danos imaginários que cometera anteriormente junto à figura materna, o sentimento

de culpa impregnando este retorno à mãe.

Neste aspecto, ressaltou PETOT (1988), é possível identificar claramente a

intersecção existente entre a situação edípica primitiva e a posição depressiva. Os

elementos depressivos sendo responsáveis, depois de certo tempo, pelo abandono da

posição masculina na menina, em função de sentimentos de culpa em relação ao pai e

à mãe.

A emergência de sentimentos de culpa terá de dar lugar a atividades

reparadoras de cunho genital, imaginárias na menina, porém reais na mulher,

proporcionando ao coito um valor reparador. Desde que tenha por base a reativação da

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fantasia infantil de um bom encontro com o seio, o que possibilitaria a cena primitiva

também ser assim representada, destacou KLEIN (1927).

O coito representado como bom anulará as fantasias sádicas vividas junto aos

pais combinados, sendo também um elemento restaurador do próprio corpo feminino,

caso tenha sido aberto caminho para esta reparação na infância. Contribui para tal a

genitalidade que permeia os estágios mais tardios do complexo de Édipo.

A representação da vagina como órgão do interior feminino, que pode restaurar

e cuidar do bom pênis paterno, tem sua origem na boa relação com a mãe

alimentadora, possibilitando a identificação da menina com a mãe nesta posição.

Assim, pode experimentar o pênis do parceiro como um bom pênis, sendo a base de

um relacionamento sexual bem-sucedido e permitindo um elo terno e sensual com o

objeto. Nesta mesma direção, o desejo de maternidade estaria também repleto de

tendências reparadoras, anulando as fantasias sádicas relativas aos objetos parciais,

aos conteúdos do corpo materno e do corpo próprio.

Carmen indicava ter mantido a supremacia da relação pré-edípica com a figura

materna, em vínculo de importância insuperável, o que impedira o avançar da situação

edípica de suas etapas mais primitivas. Comprometendo-se este processo, não

conseguiu progredir para as etapas finais e mais tardias do complexo de Édipo.

Ao mesmo tempo em que guardava ressentimento pela perda da união com o

seio, Carmen resistia ao reconhecimento da união parental como uma relação amorosa

e procriadora. O ódio aflorando pela separação e confronto com outra ligação presente

na vida da mãe, deslocara-se este ódio para o pai e o irmão tardiamente concebido,

vividos como rivais no amor materno. Estes sentimentos negativos haviam se

concentrado especialmente na figura do irmão, revelando-se em vários conflitos que

Carmen teve com ele ao longo da vida.

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Desta forma, muito precocemente os homens foram defensivamente

desqualificados e esvaziados em sua importância, para figurar apenas como meio para

a realização de seus desejos de preenchimento narcísico. Em sua fantasia onipotente

de apossamento do pênis e do filho, Carmen triunfava sobre os homens mantendo a

mãe como cúmplice, no acobertamente do inferior papel de inseminador que ao

homem reservavam, tanto quanto o de possibilitar o exercício de uma paternidade

restrita, sempre controlada pela ingerência materna.

Identificada com os ideais de sua família de mulheres narcisistas com poder

fálico, Carmen nunca conseguira efetivamente destinar um lugar valorizado ao

homem, investindo-o plenamente seja como parceiro amoroso, seja como pai e figura

identificatória positiva junto ao filho Augusto. Em decorrência, promoveu a educação

do filho para sua restituição narcísica, tendo por detrás a fantasia de posse do pênis,

em exercício pleno da falicidade materna. Estava ele destinado a render-lhe

homenagem eterna, jamais substituindo-a em seu amor, e dela sendo a extensão ideal

que poderia realizar aquilo que ela não pudera concretizar em sua própria vida e com

seus próprios meios. Diante disto, Augusto rebelava-se, em nome dos homens da vida

de Carmen, ou apenas sendo mais direto e explícito do que aqueles que aparentavam

aceitar as regras do jogo que ela lhes impunha. No entanto, como estas regras eram

inconscientemente compartilhadas e em parte compreendiam clandestinidade, segredo

e acobertamento, ao final podiam sair eles os machos vitoriosos, que exibiam a presa

feminina sacrificada.

Os sentimentos de culpa que Carmen nutria não conseguiam promover

reparações efetivas, apenas resultando em ataques superegóicos que encarnara em sua

vida, o que culminava na flagrante ruína em que se encontrava quando iniciou o

tratamento. No lugar das restaurações, da integração egóica e das realidades interna e

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externa, a desilusão dera lugar a reparações maníacas e a encenações na vida, refúgio

de ilusão que alimentara a partir de sua organização narcisista tão renitente.

Na constituição da identidade feminina, tem papel preponderante o fato de o

bebê de sexo feminino não exercer sobre a mãe o mesmo fascínio que aquele do sexo

masculino, sendo por ela necessariamente investido de modo bastante distinto,

salientaram as palavras de LOBO (1993). No seu entender, esta experiência original

com a figura materna deixaria no inconsciente feminino a cicatriz de uma ferida

narcísica, absolutamente primária e constitutiva, gerando uma hostilidade que permeia

o vínculo original com a mãe e que perdura, conflitivamente, no inconsciente

feminino.

A mulher necessita sempre do olhar desejante, mas quando o narcisismo

primário está abalado, depende ainda mais do investimento que possa vir do exterior

para abastecer seu narcisismo secundário, reiterou LAZNIK (2003). Assim, um ser

amado e o amor que possa lhe destinar sustentariam, desde fora, o abastecimento

libidinal do qual a mulher pode, fundamental e essencialmente, para sempre depender.

Isso como investimento vital de sustentação para seu narcisismo feminino,

profundamente ferido desde a primitiva relação materno-filial, constituindo um eu que

não se sustentava sem a presença do objeto, ao qual necessitava se manter colada

(MARRACCINI, 2006).

Em vínculos como aquele de mãe para filho, o eu pode ter encontrado um

escoadouro para o próprio narcisismo, destinando para a criança o lugar do ideal de si

mesma, representante do falo que fantasiosamente a restitui e completa. Em alguns

casos, torna-se condenada esta relação materno-filial a viver sob a sombra da ferida

narcísica materna.

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O fato de ser mãe parece acenar, para algumas mulheres, como solução a suas

incertezas da identidade. Ter uma criança pode relacionar-se com o desejo indefinível

de se sentirem excluídas e vazias, o filho vindo ―cauterizar‖ sua ferida narcísica. ―Ter

uma criança é tão importante porque a falta da mesma representa, para ela, a privação,

ou a frustração de não ter um phallus. Então, o phallus representa o único recurso do

sujeito [...] ela quer ser todo-poderosa como é a mãe ou a imagem da mãe‖

(CAMPOS, 2000, p. 12).

Dedicando-se ao exame da noção de inveja do pênis na perspectiva freudiana,

TOROK (1995b) apontou ser esta a inveja de um pênis idealizado, ressaltando o

mérito de M. Klein e E. Jones em considerarem determinante a primeira relação com o

seio materno . ―[...] a inveja do pênis se fundamenta num recalcamento e protege

contra o retorno de angústias pré-genitais, ela é um obstáculo no caminho da

genitalidade, e não poderá, de modo algum, a ele conduzir‖ (p. 139).

Assim, a análise teria de buscar as origens desta inveja por detrás da coisa, um

desejo que, ao mesmo tempo, ela nega e satisfaz, afastando desta investigação o

próprio pênis como realidade objetiva, biológica ou sociocultural. ―A ‗inveja do pênis‘

desaparecerá por si só no dia em que tiver cessado o estado penoso de falta que o

suscitou‖ (TOROK, 1995b, p. 130).

A freqüente associação da ―inveja do pênis‖ ao ódio consciente ou

inconsciente dirigido à mãe denota, por detrás desta idealização do pênis, a falta de

algo que, como menina, poderia sim ter a possibilidade de ter e não tem, e que se

relaciona à mãe, o que implica o ódio que lhe é devotado. Portanto, a ausência do

órgão pênis presta-se a representar o interdito materno às experiências da menina com

seu próprio corpo, sendo ela obrigada a renunciar a este desejo. Tal circunstância

encontra-se associada à agressividade advinda da renúncia sobre o controle

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esfincteriano em proveito da mãe, ao experimentar que o interior de seu corpo cai sob

o controle materno. A ―inveja do pênis‖ surgindo assim, como ―uma reinvidicação

disfarçada não do órgão do outro sexo – mas de seus próprios desejos de maturação e

de auto-elaboração a favor do encontro de si na conjunção das experiências

orgásticas e identificatória‖ (TOROK, 1995b, p. 135).

Esta alegria do despertar maturativo do sujeito deveria prolongar-se e

significar uma abertura para o futuro. Ao se sobrepor a preocupação em agradar a

mãe, cria-se um vazio no sujeito, que é tomado de tristeza, amargura e ciúmes. As

inibições deste encontro consigo mesmo deixam uma lacuna no sujeito, no lugar em

que ocorreria uma identificação vital para ele. ―Com efeito, os gozos orgásticos da

primeira infância são os verdadeiros instrumentos com a ajuda dos quais se pressente

e se elabora o sexo genital e, conseqüentemente, toda a personalidade em formação‖

(TOROK, 1995b, p. 137). Descobre-se neste caminho o poder de fantasiar a sua

identidade para os pais, imaginando-se em todas as posições da Cena primitiva e nos

diversos níveis que ela envolve.

Por outro lado, TOROK (1995b) retomando a idéia de Ferenczi sobre a

importância da masturbação enquanto experiência em si e como reflexo da fantasia

que comporta, indicou que ela caminha lado a lado com a noção de desdobramento do

sujeito (identificação com os dois termos do casal, pois a mão representaria o órgão

genital do sexo oposto). A criança por essa via tornar-se-ia autônoma da relação de

dependência materna, e, ao mesmo tempo, constituiria uma imago materna também

autônoma, passível de sentir prazer sem ter de ser apenas com a criança. Uma mãe

exigente demais dará uma imagem materna ciumenta, vazia e insatisfeita. Não

consegue se bastar, pois apenas o controle sobre o filho pode lhe dar satisfação. Deste

modo, sente ciúmes e se entristece ao ver o filho escapar-lhe ao longo do processo de

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maturação A mãe vazia, ―sem a parte de baixo‖, tem necessidade, para preencher seu

vazio, de conservar o filho como objeto-prazer para si, como um apêndice anexo a ela.

Isso acaba gerando nele a idéia insuportável e a enorme angústia, de que, por

preservar e defender sua autonomia e genitalidade, a mãe torna-se indigente e vazia.

Com efeito, se a criança deve desempenhar o papel de um pênis-objeto

cobiçado e trazer uma completude até então defeituosa, como seria aceita sua

evolução, como seu desabrochar em seu próprio projeto seria desejado e

encorajado por uma Mãe que sem Ela, recairia na amargura e na inveja?

Semelhante Mãe só tem um desejo: guardar a criança-pênis, garantia ilusória

de sua plenitude em estado de eterno apêndice. (TOROK, 1995b, p. 139)

Esta concepção contribui para a compreensão mais precisa a respeito da

fantasmática de Carmen e de sua expressão no relacionamento com Augusto, assim

como indica características da relação dela com a própria mãe. Ser apêndice era um

destino que os impregnava. Uma união e uma condenação marcantes que

atravessavam gerações, da qual Carmen não conseguia libertar-se nem libertar.

F. Sobre o processamento da realidade

O ser humano, desde o nascimento, encontra-se envolvido com a questão entre

o que é objetivamente percebido e o que é subjetivamente concebido, e aí reside um

dos pontos importantes do pensamento de WINNICOTT (1975) a respeito da relação

do sujeito com o objeto e com a realidade Ao nascer, a indistinção entre eu e não-eu

promove a sensação de unidade inseparável entre o bebê e sua mãe. Gradativamente, o

bebê poderá divisar a mãe como um objeto que dele se discrimina, como não-eu.

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A área intermediária caracteriza-se por ser aquela que se estabelece e é

favorecida pela ação da mãe ao adaptar-se às necessidades do bebê, consistindo em

uma área entre a criatividade primária, na qual o bebê vive a ilusão de ser o objeto um

produto de sua criação, e o momento futuro em que poderá se dar a percepção objetiva

do objeto baseada no teste da realidade. Assim, uma maternagem suficientemente boa

na vida primitiva determina em boa parte o processamento da realidade que o

indivíduo terá vida afora.

O processo de desmame inicia na vida infantil a tarefa de aceitação da

realidade, que jamais é completada na vida do sujeito. Importante salientar que o

término da amamentação não constitui propriamente o desmame, pois este relaciona-

se com o processo de desilusão gradativa que a mãe deve proporcionar a seu bebê,

enquanto criador do seio em sua fantasia onipotente infantil. É por este intermédio que

o objeto adquire a qualidade de ser não-eu. Deste modo, a mãe podendo ser separada

do bebê e, possuindo um seio que é, possibilita que o bebê também possa ser.

O objeto transicional representa a transição do bebê do estado de fusão com a

mãe para o estado em que pode se relacionar com ela como algo externo e separado de

si. Portanto, o objeto transicional precede o teste da realidade estabelecido, jamais sob

o controle mágico como o objeto interno, nem tampouco fora de controle como o

objeto real.

Os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da

ilusão, e encontram-se na base do início da experiência. Eles são vividos inicialmente

com o seio materno e geram o significado que a relação com um objeto externo a si

deverá adquirir gradativamente, para o bebê.

O desejo de desmamar deve partir da mãe, sendo bastante corajosa para

suportar a cólera do bebê e as terríveis idéias que a acompanham. Desiludindo-o a

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respeito da criação do seio, ela ajuda o filho a aceitar a realidade, relacionar-se com o

objeto para, finalmente, fazer uso dele. O bebê, amamentado com êxito, sente-se feliz

por ser desmamado em seu devido tempo. Se a mãe providenciar um ambiente estável,

o desmame será uma das experiências que ajudam no desenvolvimento. Caso

contrário, nessa época, poderão ter início as dificuldades. A maioria dos bebês de

cerca de nove meses de idade livram-se de coisas, assim podendo eles próprios decidir

ser desmamados (WINNICOTT, 1982).

Importante destacar como se sentia Carmen quando conduzia a amamentação

de Augusto. Ela assim se dirigia a seu marido, com quem vivia relação bastante difícil

havia anos: Vá dormir em outro quarto, pois preciso estar em condições de

amamentar, e não com o leite talhado pelo ódio que me dirige. E, depois, como se

ressentiu com o desmame promovido por seu filho: O Augusto é que largou do meu

peito. Quando tinha sete meses, eu tinha bastante leite e não houve mais maneira de

lhe dar o peito, só queria as papinhas. Não fui eu quem o desmamou, foi ele quem não

quis mais saber do seio.

Assim ela indicava sua impossibilidade de ser e deixar a criança se constituir

para seu próprio destino, nutrindo o desejo inconsciente de manter para sempre seu

filho colado a si, pregado em seu seio. Não lhe era possível dar lugar ao processo

gradual de demolição de ilusões, sendo esta uma parte da tarefa dos pais. Augusto,

ainda bebê, já tomava iniciativas de desprendimento, porém Carmen restava ressentida

e ao sabor de seu próprio desamparo, pois interpretava o comportamento do filho

como ataque que a atingia em seu próprio narcisismo.

O objeto necessita ser colocado fora da área de controle onipotente do sujeito,

sendo percebido progressivamente pelo bebê como fenômeno externo e entidade por

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seu próprio destino. Isto se faz por meio da fantasia inconsciente de destruição do

objeto na medida em que o torna externo a si.

Na concepção de WINNICOTT (1975), inicialmente impera o estado de

indiferenciação eu e não-eu, a relação de objeto se dando a partir da constituição do

sujeito como ser separado, para, ao final ocorrer o uso do objeto. O que se dá apenas

quando o objeto é necessariamente real, fazendo parte da realidade compartilhada e

não sendo apenas um feixe de projeções.

Portanto, ser destruído é que confere valor à existência do objeto para o

sujeito, o objeto desenvolvendo sua própria vida e autonomia, e assim passando a

contribuir com suas qualidades e características próprias para o sujeito. Como se vê,

na concepção winnicottiana a destruição tem valor positivo, sendo pano de fundo para

o amor a um objeto real.

Por outro lado, para ter uma existência saudável, o adulto deve manter e obter

prazer da área pessoal intermediária, encontrando inclusive algum grau de

superposição com outros, na medida em que compartilha de ideais, valores ou

interesses com outros integrantes de um grupo. E, sobretudo, na experimentação

intensa no viver imaginativo e no trabalho científico criador.

Ao desenvolver a noção de criatividade primária, WINNICOTT (1975) tinha

em vista o estar vivo, relacionando-a com a abordagem do indivíduo à realidade

externa. Interessava-o o impulso criativo na medida em que se faz presente quando

qualquer pessoa inclina-se de maneira saudável para algo, vivendo momento a

momento. Neste sentido, enfatizou que as idéias de Klein sobre o conceito de

reparação e restituição com relação aos impulsos agressivos e fantasias destrutivas não

chegaram ao cerne da noção de criatividade que buscava enfocar.

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No seu entender, a agressividade inata seria variável entre os indivíduos, como

tudo o mais que é herdado, porém seria noção distinta do que descreveu como o

importante processo de destruição do objeto para dar-lhe exterioridade, o que termina

por constituir a realidade para o bebê. Uma diferença a ser acentuada é que, para

Freud e Klein, a agressividade é reativa ao princípio da realidade, enquanto para

Winnicott é o impulso destrutivo que cria a qualidade da externalidade.

Ao esboçar sua teoria, WINNICOTT (1975) preocupou-se com as causas da

perda do viver criativo, quando desaparece o sentimento de que a vida é real ou

significativa. Em sua visão, o conceito de pulsão de morte assumido por Freud e Klein

os afastou da consideração da dependência ao fator ambiental, o objeto real provendo

ou fracassando no atendimento às necessidades do bebê. No seu entender, o fato de o

indivíduo viver criativamente e sentir que a vida merece ser vivida guardaria estrita

relação com a qualidade e a quantidade das provisões ambientais nas fases primitivas

da experiência de cada bebê.

Em trabalho recente, FIGUEIREDO (2006a) ocupou-se do enfoque das

limitações que podem se dar em relação às provas de realidade, o que promove a

incompatibilidade de se dar o aprender por meio da experiência. A seguir, estas idéias

são sintetizadas.

O senso de realidade diz respeito à aceitação de que parte da experiência do

sujeito encontra-se fora da sua área de controle onipotente. Quando isto não pode se

constituir, sem que adquira uma conotação de hostilidade, os testes de realidade não

conseguem garantir ou sustentar um senso de realidade, o que termina por ser

impeditivo para o atingir de formas mais avançadas de processamento da realidade.

Neste sentido, FIGUEIREDO (2006a) reiterou que apenas na posição

depressiva, conceituada por Klein em 1935, a realidade do objeto pode ser tolerada e

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reconhecida. A frustração com o objeto que falta ou falha constitui um primeiro passo

do teste de realidade, o que, por sua vez, estará envolvido nos posteriores

processamentos da realidade.

O processamento da realidade não podendo ser efetivado permanentemente,

por encontrar obstáculos e por ser interrompido com freqüência, perdem-se os ganhos

atingidos com os testes de realidade. Pois, embora estes necessitem continuamente ser

refeitos, mantêm-se sempre ineficazes, insatisfatórios e mesmo perturbadores. Autores

como Robbins e Sadow foram citados por FIGUEIREDO (2006a), pois destacaram

que os testes que discriminam fantasia e realidade, e compõem os testes de realidade,

podem ocorrer no campo de relações diádicas. Porém, os processamentos de realidade

avançados requerem relações triádicas, correspondendo à entrada do sujeito na

triangulação edípica e implicando a aceitação da diferença sexual e da multiplicidade

de posições subjetivas.

O estabelecimento dos ―espaços e dos tempos mentais‖, necessários ao

processamento da realidade e à instalação de um senso de realidade mais sólido,

dependem da articulação da posição depressiva com a travessia do Édipo. Pois, apenas

mediante o reconhecimento de um terceiro e do vínculo parental fecundo, é que se

pode consolidar efetivamente a dualidade. Assim, tanto no plano externo quanto da

realidade interna, a intervenção do terceiro é fundamental para se constituir um senso

de realidade do mundo e de si mesmo, com condições para que o sujeito faça provas

de realidade que sejam sustentáveis. São idéias de BRITTON (2003) que

FIGUEIREDO (2006a) destacou.

As constelações familiares e conjugais com que o sujeito teve de lidar em sua

vida podem jamais ter aberto o horizonte de uma dialética em que exclusão e inclusão,

diferença e continuidade pudessem ter sido articuladas, e portanto o trabalho na

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transferência é fundamental para desmistificar a pura dualidade empática. Constitui

um trabalho conduzido de modo a buscar introduzir o terceiro elemento, visando

ajudar no ingresso e na elaboração da posição depressiva. O que é condição

fundamental para a instalação do espaço triangular e para que os testes de realidade,

em sentido estrito, tornem-se raros e possam dar lugar à ocorrência ininterrupta do

processamento da realidade.

Por seu lado, KANCYPER (1999) destacou a dimensão narcisista que permeia

a conflitiva edípica e o confronto entre gerações. Apontou a múltipla vitória no âmbito

da idealidade, sobre o duplo ideal e sobre o duplo imortal, sobre o duplo especular e o

bissexual, como condição necessária para que possa se dar a irreversível ruptura

narcisista, de que não se é eterno, e que não se pode perpetuar mais no outro. Assim,

podem ter lugar a espacialidade, a temporalidade e a afetividade desalienadas das

idealizações próprias e dos outros.

No intrincado e doloroso processo de desidealização, a intervenção do ódio é

essencial, pois, por sua função de desligamento, promove a diferenciação na relação

de objeto e permite que a prova de realidade possa intervir. Promovendo, portanto, a

distinção entre os estímulos do mundo exterior e aqueles provenientes do interior,

evitando a confusão entre o que o sujeito percebe e o que meramente representa. O

processo de desidealização ainda envolve a retirada do elevado investimento

(maravilhoso ou odioso) que havia recaído no objeto supervalorizado (positiva ou

negativamente), gerando a reestruturação do vínculo objetal e consigo mesmo.

Tomando-se as palavras de BADARACCO (1996), o sujeito não pode elaborar

o luto por falta de recursos egóicos, derivada de uma relação com o objeto estruturante

deficitário, que não permitiu o desenvolvimento de recursos próprios, forçou

identificações patógenas e favoreceu manter uma condição egóica precária.

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Concordando com a idéia de BOLLAS (1992), de que a sombra do objeto esteve

sempre no ego, indicou que a perda de objeto expõe a condição profundamente

carencial do sujeito. Assim, determina a organização melancólica, um triunfo maníaco

ou, nos melhores casos, pode ser uma nova oportunidade para dar lugar a uma

mudança psíquica profunda.

Nas vicissitudes da transferência-contratransferência é que haveria a

possibilidade de serem abertos espaços mentais que abarquem cada vez mais

mudanças transicionais e o desenvolvimento de novos recursos egóicos que

possibitem o luto. BADARACCO (1996) considerou que os processos de

desidentificação são elaborados no vínculo estruturante com o analista.

G. Sobre o simbolismo e a sublimação

No caso de Carmen, sendo ela uma artista plástica que encerrara sua atividade

profissional a partir da deflagração de seu estado depressivo, considerou-se importante

uma análise sobre as bases em que isto poderia se assentar.

O simbolismo foi considerado por KLEIN (1930) a base de toda fantasia e

sublimação, como da relação com o mundo externo e a realidade em geral. No

entanto, concebeu-o de forma distinta de Freud, que enfatizava o fenômeno energético

e sua relação com os impulsos libidinosos. Por ser a visão kleiniana centrada nos

impulsos destrutivos e as circunstâncias reparatórias que podem ter lugar, considerou-

se importante averiguar sua relação com o que vinha constituindo os ataques que

Carmen promovia a si mesma.

O desenvolvimento do ego e a relação com a realidade encontram-se

diretamente relacionados com a capacidade de tolerar a pressão das primeiras

situações de ansiedade, desde os primórdios do desenvolvimento. Certa quantidade de

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ansiedade é necessária para que a formação de símbolos e a fantasia ocorram em

abundância, como é essencial que o ego possua a capacidade adequada de tolerar a

ansiedade, de modo a elaborá-la de forma satisfatória (KLEIN, 1930).

A situação edípica primitiva, com as fantasias sádicas que comporta, favorece

uma expulsão defensiva para o exterior. Isso se dá com o objetivo de proteção egóica

quanto ao perigo representado pela ansiedade, assim como para o desvio das fantasias

agressivas em relação aos objetos originais para objetos substitutos. As ansiedades em

jogo são muito iniciais, relativas não apenas ao corpo da mãe, mas também ao pênis

do pai em seu interior. As fantasias sádicas em relação à união dos pais são

diretamente atingidas pela ação do superego sádico primitivo, extremamente cruel em

direção ao ego (KLEIN, 1929).

O que Freud dispôs como a situação de perigo infantil básica – o medo de ficar

sozinha – da perda do amor e da perda do objeto amoroso, no entender de KLEIN

(1929) seria efetivamente uma modificação da primeira ansiedade profunda da

menina, relacionada com a fantasia de ter seu interior atacado pela mãe, em retaliação

por suas fantasias sádicas. Pois, num estágio posterior do desenvolvimento, este medo

é substituído pelo temor de perder a mãe verdadeira, repleta de amor, ficando sozinha

e abandonada. E, assim, considerou que o desejo de fazer reparação, compensando a

injúria feita à mãe e restaurando em si os ataques pela ansiedade vigente, pode

conduzir a reparações simbólicas em obras de arte, direcionando o impulso criativo e

seu poder restaurador.

A noção de equação simbólica definida por SEGAL (1983a) é uma etapa

prévia no processo de formação do símbolo propriamente dito, constitui a base do

pensamento concreto e consiste em uma fusão entre o símbolo e a coisa simbolizada.

No entanto, o que é da ordem do constitutivo e do desenvolvimento pode tornar-se

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uma defesa, uma barreira ao progresso, quando na equação simbólica o objeto

substituto na realidade externa fixa-se como idêntico ao objeto original ou às partes do

eu.

Os símbolos completamente formados processam-se apenas na posição

depressiva. Quando, então, o ego preocupa-se em salvar o objeto de sua própria

agressão e possessividade, assim como procura incorrer em uma culpa menor do que

com relação ao objeto original. Há nisto um estímulo poderoso para a criação de

símbolos, havendo a capacidade inconsciente de vivenciar a perda e sendo possível re-

criar o objeto dentro de si mesmo, com o intuito de sobrepujar a perda.

No entanto, se as ansiedades forem demasiado fortes, pode ocorrer a regressão

para a posição esquizo-paranóide; os símbolos que haviam sido construídos e

funcionavam na sublimação revertem para equações simbólicas concretas. Ao recorrer

à identificação projetiva maciça como defesa contra as ansiedades, o ego confunde-se

novamente com o objeto, o símbolo confunde-se com a coisa simbolizada e

transforma-se em equação, que é utilizada para negar a ausência do objeto ideal ou

para controlar o objeto persecutório.

―Uma nova conquista pertencente à posição depressiva é a capacidade de

simbolizar e desta forma diminuir a ansiedade e solucionar o conflito. Isto é usado

para lidar com conflitos anteriores não resolvidos simbolizando-os‖ (SEGAL, 1983a,

p. 89). O processo de formação de símbolos é um contínuo juntar e integrar o interno

com o externo, o sujeito com o objeto e as experiências anteriores com as posteriores.

A formação de símbolos é a própria essência da criatividade artística. A

percepção interna do sentimento profundo de que o mundo interno encontra-se

estilhaçado leva o artista à recriação inconsciente de um mundo perdido. Constitui

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uma tentativa de resolução do conflito depressivo, que inclui a constelação edípica

arcaica (SEGAL, 1993).

Considerando que a arte, em sua primeira etapa, visa conter a agressividade, o

ato de criação teria que ver com alguma memória inconsciente de um mundo interno

harmonioso e com a experiência de sua destruição, a posição depressiva. Esta

recriação simbólica é um ato psíquico, o impulso de recuperar e recriar esse mundo

perdido, no qual o artista estaria elaborando novamente sua posição depressiva

infantil. Recriando não apenas algo de seu mundo interno e de seus objetos internos,

mas também externalizando-o para dar-lhe vida no mundo externo, o que é essencial

para o sentimento de ter uma reparação concluída. Assim, a incapacidade em

reconhecer e superar a ansiedade depressiva deve conduzir a inibições na expressão

artística.

Não se deve esquecer de que a tendência a reparar deriva da pulsão de vida,

incorre em fantasias e desejos libidinais, tendência que faz parte de todas as

sublimações e que acaba sendo o grande meio pelo qual a depressão é reduzida, como

reiterou BARANGER (1981). ―Integração e síntese, simbolização, assimilação e

discriminação, reparação e sublimação: são todos processos relacionados entre si,

essencialmente eróticos e enfocados na posição depressiva‖ (p. 194). Ao apontar sua

concordância com as idéias de Stokes, SEGAL (1983b), considerou: ―[...] o artista

busca o ponto exato em que pode simultaneamente manter um objeto ideal fundido

com o eu (self) e um objeto percebido como separado e independente, como na

posição depressiva‖ (p. 271).

Em uma perspectiva distinta, porém guardando afinidade com a visão

kleiniana acerca da relação da formação de símbolos e sublimação, entende-se com

CATTAPAN e CARDOSO (2004) que a criação artística possui algo de disruptivo e

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impulsivo que domina o sujeito. A dimensão do ato, ao ocupar lugar central no

processo de criação, não se encaixaria perfeitamente no modelo freudiano da

sublimação, em que é enfatizada a representação. Assim, a questão seria a da

incapacidade de defesa do aparelho psíquico ou de defesas enfraquecidas, diante do

excesso pulsional invasivo como trauma, manifestação da pulsão de morte, que

requisita intensamente o trabalho de Eros.

A criação artística seria então, uma tentativa de ―domar‖ o traumático, uma

vez o sujeito encontrando-se passivo e fascinado por outro. Remetendo-o

regressivamente a uma tentativa de encontro com o outro em modo primário de

relação, de indiferenciação, e que se manifestaria na inspiração. Na direção desta

visão de Laplanche, ―A obra de arte seria um modo de ‗falar‘ daquela verdade que não

consegue se fazer dizer de outro modo, e por esta razão o artista seria impelido a

produzir‖ (CATTAPAN e CARDOSO, 2004, p. 173).

A hipótese de que a criação artística se dá como reação foi contribuição de

Guillaumin que CATTAPAN e CARDOSO (2004) destacaram, ao indicar que ela

consiste em uma defesa do artista contra a autodestruição da pulsão de morte.

Constitui-se em algo da passividade do sujeito em relação ao outro e de

endereçamento direcionado a ele, e, neste sentido, compreende o aspecto de

compulsão a criar. essa visão reforça-se na descrição de Carmen sobre o momento da

criação de sua primeira escultura: Quando conversava com o mestre-artista, senti nele

o desafio quanto à minha capacidade de produzir um trabalho. Varei a noite e criei

esta primeira escultura, esta mulher sem rosto e de braços estendidos, sem

identidade, que era como eu me sentia naquela época. Quando no dia seguinte eu lhe

mostrei, questionou se tivera sido eu mesma a fazer a peça, dada a qualidade do

trabalho.

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[...] o artista, impulsionado que é em sua inspiração pelo excesso pulsional,

pela violência das pulsões diante da qual permaneceu especialmente exposto,

responde a isto em ato, movimento externo/interno, paradoxalmente

progressivo e regressivo, processo de criação que põe em marcha, subjacente

à aprimorada elaboração que esse processo exige, mecanismos elementares e

primários, além do recalque – mas ainda além da sublimação. (CATTAPAN e

CARDOSO, 2004, p. 176)

De qualquer forma, é importante relembrar que Carmen conseguira tornar-se

artista plástica de relativo sucesso, sobrevivendo da venda de suas obras durante

vários anos. Além do mais, possuíra a capacidade de criar algumas peças

artisticamente complexas, como também a versatilidade de criar algumas de caráter

mais simples e facilmente comercializadas. Tudo isto se perdera, consumida em seu

estado de impossibilidades.

Com a emergência de ansiedades destrutivas poderosas, a possibilidade de

criar não conseguia ter curso. O ato criativo que poderia dar um destino para o excesso

pulsional indicava estar impedido pela destrutividade transbordante, sem possibilidade

de escoar-se por esta via. E, portanto, o processo de reparação sequer se esboçava,

muito pelo contrário. Quando chegou para o tratamento, o que Carmen conseguia

produzir como ato era apenas encaminhar a própria destruição, em equivalência a tudo

o que desejava intensamente destruir em sua fantasia, e que não conseguia processar

por meio de símbolos, desviando para objetos substitutos.

Vinculando suas idéias sobre simbolismo e sublimação com o artigo de

JAQUES (1965) sobre a crise da meia-idade, SEGAL (1983b) considerou que antes

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deste período o artista busca mais o objeto ideal, e após passada esta crise, está mais à

procura da recriação do objeto, como na posição depressiva.

H. Sobre a meia-idade

No caso de Carmen, entrelaçavam-se as perdas, entre elas, o início do

envelhecimento: Será que terei tempo de realizar o que preciso? Isto evidenciou-se

como ponto de articulação entre minha dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica

(MARRACCINI, 1999) e o presente trabalho. Aqui, retomando-se alguns aspectos lá

tratados e outros sendo acrescentados, a fim de iluminar este vértice da complexa

trama subjetiva que comportava Carmen e o momento que vivia.

Na época em que se depara com a envelhescência, o desencontro entre o

inconsciente atemporal e o corpo pertencente ao âmbito da temporalidade, ocorre o

pensar sobre a proximidade da morte, a inseparável companheira da vida, indicaram as

palavras de BERLINCK (2000). Modificações no eu diante dos ideais apontam certa

limitação tanto do eu ideal como do ideal de eu; isso pode levar o sujeito a uma

redescrição de seu próprio mito, produzindo no seu imaginário a modificação radical

de seu lugar. Descobre-se que desagradar ao outro é necessário, não podendo a

sedução ser praticada indiscriminadamente, pois o corpo não mais sustenta o que se

promete na fantasia de agradar outrem.

A envelhescência pode ser vivida de várias maneiras e supõe um trabalho do

eu, é um ato de subjetivação, uma recriação do eu. No trabalho de pensar a velhice em

um esforço solitário, o sujeito pode enriquecer seu mundo interno, o que fará toda

diferença entre o envelhecer e a envelhescência, podendo ser esta ―uma boa

oportunidade para a flexibilização do eu e, portanto, para a saúde mental do sujeito‖

(BERLINCK, 2000, p. 198) .

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As crises situam-se a maior parte do tempo no entrecruzamento do real e do

psíquico, tratando-se da elaboração de angústias e de perdas tanto fantasmáticas

quanto reais. Entendeu SCHAEFFER (2005) que constituir uma crise, principalmente

quando se refere ao atravessamento das ―provas da vida‖, como é o caso da crise do

meio da vida, é ter a chance de pôr em curso o trabalho psíquico, pôr à prova a

capacidade de separação e de luto, sendo uma chance para a psique nutrir-se da

invasão pulsional. No entanto, no caso de psicopatologias mais sérias, ocorre o

fracasso e o desmoronamento do trabalho psíquico, o que impossibilita a constituição

de uma crise, ocorrendo a sideração traumática.

Além do que já veio sendo destacado neste trabalho, Carmen indicava

claramente não poder elaborar a travessia imposta pelo início de seu envelhecimento

feminino. Assim, como a juventude e a infância eram tempos passados, fracassava no

enfrentamento da tarefa psicológica de construção de uma vida madura e

independente, conforme caracterizou JAQUES (1965) ao descrever a crise vivida na

meia-idade. Neste estágio da plenitude, paradoxalmente ingressa na cena psicológica a

realidade inevitável da própria morte, o que impõe um futuro circunscrito para a

realização de todo o desejado. Muito terá de ficar inacabado e não realizado.

Com a consciência do início da última metade da vida, apresentam-se

ansiedades depressivas, que demandam a continuidade elaborativa da posição

depressiva infantil. Se houver o predomínio do ódio sobre o amor sem a integração

destes impulsos, ocorre um transbordamento de destrutividade que contamina os

mundos interno e externo, impedindo a mitigação do ódio pelo amor. Os processos de

reparação e sublimação inibem-se ou falham, constituindo um período de perturbação

emocional e colapso depressivo, que se reflete em empobrecimento da vida emocional

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e no comprometimento da capacidade criativa. Sob a luz destas idéias de JAQUES

(1965), a condição de Carmen pode ser reconhecida.

Em contrapartida, nos casos em que há o predomínio do amor sobre o ódio e

este pode ser mitigado, tem curso o processo de reparação, que promove a

recuperação dos aspectos amorosos e positivos das experiências ocorridas

previamente. O saldo amoroso e construtivo conduz, então, à integração e tolerância

das limitações e inevitabilidade da morte, ao crescimento e ao amadurecimento

pessoais reflindo-se na própria criatividade. Apesar disso, esta nunca é uma passagem

fácil, pois compreende o luto pelas perdas, que incluem a infância e a juventude já

passadas. No entanto, neste processo, o sentido de continuidade da vida pode ser

fortalecido, havendo um ganho no aprofundamento da consciência, da compreensão e

da auto-realização.

Outro aspecto ressaltado por JAQUES (1965) foram as mudanças na condição

criativa, quanto ao modo de trabalho que se produz. Na juventude, a criatividade tende

a ser intensa e espontânea, a maior parte do trabalho ocorrendo inconscientemente.

Em contrapartida, na meia-idade teria lugar a criatividade esculpida, o trabalho

inconsciente não sendo menor, porém, compreendendo grande processo até a

finalização da criação. Dando forma e estilo ao produto, trabalhando e retrabalhando o

material, o processo de externalização consiste em uma parte essencial do trabalho na

idade adulta madura. No caso de Carmen, cessando a criação intensa e espontânea que

apresentava em sua juventude, da qual muito se orgulhava, não havia podido ter início

o trabalho de natureza mais madura, incluindo o enfrentamento e a elaboração das

angústias de natureza depressiva.

No transcurso da crise da meia-idade, ocorre uma resignação construtiva ao se

conferir as imperfeições dos homens, que abrigam tanto impulsos amorosos como

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destrutivos, assim como o conferir das deficiências do próprio trabalho, levando a uma

reelaboração da depressão vivenciada na infância primitiva (JACQUES, 1965). Deste

modo, torna-se possível compreender que as dificuldades de Carmen na elaboração da

posição depressiva se reapresentassem naquele momento de sua vida madura. Porém,

novamente falhava sua tentativa de constituir melhores condições de processamento e

elaboração. O tratamento psicanalítico era a via pela qual a construção desta

possibilidade era buscada.

Em consonância com as idéias expostas, KERNBERG (1989) ressaltou que a

meia-idade traz consigo algumas tarefas específicas. Na relação com os filhos jovens e

adolescentes, emergem afetos ligados às identificações do passado e reativam-se

angústias e culpas edipianas em relação aos próprios pais. Ao ser possível a

elaboração da ambivalência de sentimentos, isto promove a renovada superação do

complexo de Édipo.

Ao emergir o luto, seja pela consciência da natureza efêmera da vida, seja pela

limitação da própria criatividade, ocorre a percepção dos limites do passado e a

restrição para realizações futuras. E, então, coloca-se em pauta a questão do amor e do

ódio para consigo e para com os outros. Deve ocorrer a aceitação das próprias

limitações, o enfrentamento realístico dos ataques que permeiam o ambiente adulto, o

que incorre na aceitação de que a responsabilidade final é para consigo mesmo.

A perda dos pais e demais entes amados reitera as manifestações do próprio

envelhecimento, reforçando a consciência sobre a morte. A aceitação de perdas e

fracassos pessoais deve permitir a sensação de contar com recursos suficientes para a

reconstrução de uma vida significativa. KERNBERG (1989) destacou o narcisismo

patológico na meia-idade, basicamente relacionado com as perturbações que podem

advir no enfrentamento e na realização das tarefas desse período da vida, diante das

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quais Carmen procurava abrir um caminho menos comprometido, enfrentando porém

muitos obstáculos, como pôde ser referido extensamente.

Em enfoque específico da mulher em idade madura, LAZNIK (2003) citou a

especial referência de Lerude a algumas pacientes que são freqüentes na clínica

psicanalítica. São pacientes que desaparecem, desmoronam aniquiladas pela angústia,

quando desaparece o que as autenticava, validando a imagem de seu ideal, a imagem

própria que carregavam e que organizava seu comportamento no mundo.

Esse desinvestimento brutal da imagem do corpo se redobra na decadência do

corpo real, fisiológico, que não se sustenta mais, que desaba; um tal estado

pode sobrevir no momento de uma ruptura amorosa, de uma traição, de um

luto, o que falta então é o olhar de um pai ou de um parceiro e o sujeito

parece perder, ao mesmo tempo, suas referências simbólicas, como se ele não

fosse mais nada. (Lerude apud LAZNIK, 2003, p. 96)

Nesta direção, sendo retomadas as idéias de FREUD (1914) sobre as mulheres

narcisistas, que, especialmente se forem belas, amam apenas a si mesmas. Sua

necessidade é de ser amadas, não de amar. Assim, a imagem do corpo sendo investida

libidinalmente, e sendo idealizada, pode constituir verdadeiro fetiche que substitui

nestas mulheres o falo faltante, o que apontaria na direção salientada por Freud de

uma dimensão perversa do narcisismo. (Lerude apud LAZNIK, 2003)

No entanto, ao abordar o que descreveu como complexo de Jocasta, LAZNIK

(2003) ressaltou não ser raro que muitas mães, devotadas ao amor do filho,

apresentem uma desafetação e até mesmo o abandono da vida sexual por ocasião da

menopausa. Relacionou à retomada de fantasias incestuosas da mãe em relação ao

filho que se tornou homem, considerando a menopausa como um momento crucial no

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remanejamento da economia libidinal de uma mulher. Isso coincidiu com a idéia de

DEUTSCH (1951), sobre um novo reviver do complexo de Édipo em relação ao

objeto incestuoso, que, nesse momento, não é mais o pai, porém o filho, o que, por ser

intolerável, pode fazer emergir em algumas mulheres a luta contra toda fantasia

sexual, em algumas culminando no abandono da sexualidade para guardar o amor do

filho.

Tendo em vista a ligação extrema de Carmen com Augusto, guardar seu amor

poderia ter sido motivo desde sempre para muitas abdicações em sua vida pessoal.

Porém, no momento clímax que vivia quando chegou para tratamento, ela encarnava

uma renúncia que ultrapassava a fantasia sexual. Sentia sua vida perder sentido caso

se extinguisse o amor de Augusto por ela. O afeto sempre me fez abrir mão de meus

desejos. É pelo afeto que as pessoas me pegam. A isto se somava a perda de sua

beleza e juventude, e, com isto, o poder de atração e sedução com o qual sempre

contara, tornando-se em mulher madura que aparentava mais idade do que tinha, em

estado de saúde mais abalado do que poderia ser esperado. Na fala de Augusto: Onde

foi parar minha mãezinha? Você não está tão velhinha assim para estar tão fraca,

esquecida e atrapalhada com as coisas. E como dizia Carmen sobre si mesma: eu sei

que vou morrer logo, poucos anos me restam do jeito como estou. Em sua descrição,

algo se passara a partir da morte de sua mãe: Deixei de ser filha para ser mãe.

Por ocasião do climatério, LAX (1982) indicou ser esperada uma reação

depressiva, sendo que em algumas mulheres gera depressividade que se articula em

evolução e remanejamento libidinal, indo ao encontro do próprio desejo. Em outras,

no entanto, esta reação articula-se com depressão/melancolia. Para outras ainda,

embora não sendo excludente, origina sintomatologia somática exarcebada. Carmen

contava com mais esta questão que a atravessava, o que não era pouca coisa, uma vez

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que pautara sua vida, em boa parte, em torno de seu papel na maternidade, e, com a

menopausa, emergindo o luto pelas perdas narcísicas que comporta.

Na revisão identitária que tem lugar na meia-idade e no remanejamento

libidinal que deve ser feito, enfatizou LAZNIK (2003) a necessidade de a mulher, por

ocasião da menopausa, cumprir um duplo luto. Por um lado, a perda fálica do lado

materno, pelo cessar da fertilidade e pela perda, mesmo que imaginária, da

dependência dos filhos em relação a ela. Por outro assim como a humilhação narcísica

de perder o que conquistara na puberdade, certa falicidade de seu corpo como um

todo. Caso a mulher não tenha constituído objetos internos suficientemente

valorizados, e não conte com um objeto amado que lhe proporcione pelo brilho de seu

olhar um outro espelho, a partir de uma separação ela corre o risco de ter uma queda

depressiva. Na época de uma ruptura amorosa, de uma traição, de um luto, pode lhe

faltar brutalmente este olhar, e a mulher pode perder, concomitantemente, suas

referências simbólicas, como se mais nada fosse (SCHAEFFER, 2005).

Em Carmen, o enfrentamento de perdas reais e fantasmáticas encontrava

muitos obstáculos para a condução da separação e do luto necessários, tanto pelo lado

materno como pelo lado da feminilidade. Evidenciava-se o abismo narcísico em que

tombava Carmen melancolicamente, sem poder constituir uma crise no meio da vida

que pudesse ser conduzida a termo e que finalizasse pelo remanejamento libidinal

imprescindível. Primordialmente a perda da mãe e os sérios conflitos com Augusto,

porém sendo também consideráveis as decepções com parceiros amorosos e pessoas

em quem confiara, deixaram Carmen sem ninguém que lhe dirigisse o brilho do olhar,

do qual se abastecera reiteradamente e do qual tanto dependera ao longo da vida.

A consciência do tempo para Carmen era algo penoso, experimentava sua vida

escoar, sem poder contar com a possibilidade de tudo recomeçar. Assim como remoía

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duras vivências de seu passado e narrava acontecimentos ocorridos há muito, como se

estivessem extremamente vivos e presentes em seu interior. Vivia das glórias de seu

passado, pois não tenho nada em meu presente e não vejo como poderia ser meu

futuro. Isso indicava claramente em Carmen a urgência que havia de criar uma

perspectiva, construir um sentido, constituir uma esperança.

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CAPÍTULO VI

CONCLUSÕES

O tema da perda junto a um ser amado colocava para mim uma questão que

poderia inicialmente ser vislumbrada como da ordem da perda objetal. Nela, a questão

da dependência extrema seria o ponto de articulação entre dois seres distintos que não

podiam efetivamente se separar, pois um deles poderia não sobreviver a isto, ou, pelo

menos, perderia o principal sentido em sua vida. Como se seu existir passasse quase

abruptamente do viver criativo em companhia do ser amado para a sobrevivência sem

sentido à espera da morte. Uma morte em vida, um estado depressivo-melancólico que

é capaz de levar a pessoa para o túmulo por suas próprias mãos, ou por moléstias que

podem atacar seu corpo, uma vez corpo e mente fazendo parte de uma mesma

unidade. Tudo por não agüentar mais tanto sofrer em vida. A partir de determinado

ponto, acena-lhes melhor o sossego da morte, o nirvana da paz.

Na prática clínica, com alguma freqüência se é confrontado com pacientes que

chegam a nós, psicanalistas, neste estado de penúria, de vazio, de exaustão, de

inapetência pela vida. Um estado depressivo com certeza, mas de que ordem? A

magnitude da reação, a desmesura do acometimento, enfim, o transbordar do pathos

pode adentrar nossos consultórios de maneira avassaladora, promovendo impacto.

Como uma invasão para a qual nós, psicanalistas, temos logo de nos organizar e

proteger, ganhar alguma distância, pois, caso contrário, o pathos poderá nos atravessar

e atropelar. De algum modo, sabemos que se pode perder esta guerra num piscar de

olhos. Podemos ser tomados pela insuficiência imunológica psíquica, que tal como

nesses pacientes, nos vulnerabiliza em excesso.

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Quando dei início a meu envolvimento mais direto com o estudo deste tema,

percebi que tentava entender a situação que assolava o paciente no enfrentamento da

perda de um ser amado, pela perspectiva principal da desmontagem de um eu. Um eu

que se encontrava erigido e no exercício de suas competências e funções, mas a partir

da perda vivida teria iniciado uma trajetória regressiva que o levara até a ruína. Seria

sempre a ruína de algo que teria existido e sido demolido. Em sua vida, em seu

interior, clamando por uma reconstrução. No entanto, embora houvesse o

conhecimento de que algo da ordem do muito básico e essencial no núcleo destes

sujeitos apresentasse falhas, eu não tinha a dimensão de quanto estava me ocupando

com uma questão da ordem da construção, da constituição da subjetividade que

falhara, que nunca teria sido posta de pé.

Quando pude ver melhor o que olhava, perceber mais claramente o que ouvia,

transformar em palavras ao que me atravessava na transferência/contratransferência

com estes pacientes, comecei a poder atribuir um sentido ao que se passava. E isto fez

brotar a efetiva questão que me instigava e me conduzia à realização desta

investigação, a pesquisa clínica em psicanálise. Em um esforço para dominar e

processar o traumático, o atravessamento do pathos que se apresentava para ser

compreendido a partir da relação analítica. Como apontou Freud e reiterou FÉDIDA

(2002), ―o tratamento analítico procede da atividade fantasmática do analisando e do

analista‖ (p. 55), creio que se assim não for ou não possa ser reconhecido, não se trata

de um tratamento psicanalítico.

Além disso, entendo que a transferência é apreendida por meio de todo o

material que se apresenta, constituindo uma ―situação total‖ a ser considerada, de

acordo com o que indicou KLEIN (1953) e foi tão detalhadamente descrito por

JOSEPH (1985). O encontro do psicanalista com determinado analisando em dado

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momento é absolutamente singular e tem o poder de modificar não apenas o paciente,

mas também o psicanalista, que jamais será o mesmo após um verdadeiro encontro

analítico.

Além da discussão com pares, da orientação acadêmica recebida, das

supervisões a que recorri, e as quais tive oportunidade de oferecer em casos

assemelhados, penso hoje ser a escrita deste trabalho a forma que eu detinha de me

ajudar a dominar o traumático, o atravessamento que promovia em mim a chegada de

um paciente naquela condição. Eu necessitava produzir palavras, em primeiro lugar,

para mim mesma, e isto me parecia essencial para poder ser capaz de melhor

compreender e proporcionar entendimento interno ao paciente que me consultava. Eu

sentia a necessidade de produzir uma obra que se fizesse em palavras, este trabalho de

pesquisa clínica no âmbito da universidade, para compartilhar um pouco do trabalho

solitário da clínica com a comunidade psicanalítica. Agora é tempo de concluí-lo e

dele separar-me, entregando-o a seu próprio destino.

A reiterada reapresentação das questões que permearam a primitiva relação

com nossos objetos originais jamais nos abandona, porém, quando tudo caminha

razoavelmente, isto encontra seu lugar de paz dentro de nós. Não produz mais os

efeitos avassaladores que tiveram quando primitivamente carecíamos de instrumental

para lidar com a tarefa que se apresentava. Nos primórdios de nossa existência, nosso

ego era incipiente ou engatinhava em sua formação, insuficiência que, nos casos mais

sérios, pode determinar incapacidades. Pelo menos, até o ponto em que possa entrar

em cena o psicoterapeuta, e, por intermédio da escuta do sujeito, pode ajudá-lo a

escutar a si mesmo e a processar internamente o que lhe acontece e que não atinge por

meios próprios.

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W. Bion nos brindou com a noção de reverie16

, tão cara para a prática clínica e

norteadora de conceitos assemelhados junto a outros autores, como BOLLAS (1992) e

seu conceito de objeto transformacional. Embora neste trabalho a noção de reverie

estivesse o tempo todo permeando, até o momento não havia sido possível mencioná-

lo diretamente.

Nessa mesma direção, FÉDIDA (1988) também tomou como modelo a

relação mãe-filho para balizar sua concepção sobre a contratransferência. Considerou

que a mãe, no exercício de um dispositivo pré-consciente, é receptora do que ocorre

com o filho, experimenta a angústia que o acomete, para depois devolver-lhe em

palavras e gestos adequados a significação do que percebeu estar em jogo. Sendo

capaz de ressonância, continência, metabolização e metaforização dos afetos que se

encontravam confundidos e tendiam a transbordar na criança. Desse modo, considerou

ser esta não apenas uma resposta materna, mas um momento crítico de atenção,

instante no qual se constitui a interpretação, na situação analítica.

A presença/ausência de um outro, o psicanalista, pode ser imprescindível para

que o paciente progrida na construção da intimidade e na escuta de si mesmo. Em

consonância com o que se produz na infância precoce, isto pode conduzir ao

desenvolvimento do self verdadeiro e da capacidade de estar só, como apontou

Winnicott. Assim, o sujeito organiza o seu interno, o seu vazio, povoando-o com a

ausência que dá substância e proporcionando diferenciação ao eu. Penso ser este um

trabalho psíquico da mais alta importância para qualquer sujeito, porém, é

16

Reverie: termo adotado por W. Bion em 1962 para se referir a um estado de mente que o bebê requer

da mãe. Ela necessita estar em estado de calma receptividade para acolher os sentimentos da criança

que lhe são intoleráveis, e, por isso, foram expelidos para dentro da mãe por meio do mecanismo de

identificação projetiva. A mãe em exercício de sua função alfa processa o que recebe dentro de seu

próprio psiquismo, para depois devolver ao bebê, dando significado ao que foi projetado. Esta é a forma

pela qual o conteúdo inicialmente intolerável pode ser reintrojetado pelo bebê. Neste processo ele

começa a aprender com a mãe como desenvolver sua capacidade para refletir sobre seus próprios

estados de mente (HINSHELWOOD, 1992).

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fundamental para o psicanalista. Sem esta possibilidade constantemente renovada, o

sujeito que o habita não consegue estar em posição de escutar o pathos próprio e

acolher o que atravessa seus pacientes, de modo a, sobre eles, produzir entendimento

interno, crescimento.

Esta experiência de presença/ausência, que tem a função de ajudar na

constituição do espaço da ausência no mundo interno do paciente, é inerente ao

trabalho analítico. Principalmente se o paciente só tiver conhecido na relação objetal a

fusão, a complementariedade patológica e um terrível vazio quando o objeto real sai

de cena; em uma perpetuação da condição de impossibilidade da perda e da condução

do processo de luto.

É difícil, sutil e delicada a tarefa do psicanalista de construir um lugar

transferencial em que possa acolher e proporcionar o holding necessário à fragilidade

e à imaturidade emocional do paciente, sustentando sua ilusão onipotente em se sentir

o criador do objeto, para possibilitar, no paciente, o emergir de um eu assegurado de

seu potencial e seu valor próprio. Porém, esta mãe/analista, a seguir, deverá desiludi-

lo, para promover a separação imprescindível a seu desenvolvimento como sujeito,

liberando-o para o próprio destino.

Intrigante a função do psicanalista: um analista/mãe que desta se aproxima em

sua função constitutiva, e um analista que barra a mãe, pois necessita ser uma mãe

diferente daquela do início da vida, à qual o bebê se sentia fusionado. Este

analista/mãe deve ajudar na separação sujeito/objeto que pode não ter tido lugar,

propiciando o emergir de um lugar para o terceiro, tanto no mundo interno como na

realidade exterior. É esta a construção que o psicanalista procura realizar na análise.

Quando penso em Carmen e na escolha da construção deste caso clínico para

embasar este trabalho, creio que o escolhi não apenas por ser multifacetado em relação

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às perdas sofridas, mas porque, em Carmen, o excesso, a desmesura, o

transbordamento, o atravessamento, a invasão de espaço, o engolfamento e a recusa da

diferença eram não apenas intensos mas escancarados. Ali tudo se expunha, em uma

aparência de personagem felliniana, que poderia ser entendida como o encarnar do

sofrimento, do pathos que a acometia, na melhor acepção da palavra. Como sabemos,

efeitos da transferência/contratransferência, na qual o conhecimento e a compreensão

são impossíveis de se dar no momento exato em que ocorre a vivência, pois apenas a

posteriori pode ser transformado o vivido em experiência. Aí nos damos conta de que

não há acaso, pelo contrário, há sobredeterminação.

Além disso, em Carmen conviviam aspectos tão contrastantes, divisões e

partes de si sem integração, que o trabalho analítico de tecer era muito mais

significativo do que o de cerzir o que teria se esgarçado. Eram múltiplas e

significativas as perdas que sofrera: com a morte abrupta da mãe, nos conflitos

dificílimos com o filho, pelos relacionamentos amorosos frustrantes e até mesmo nos

constantes roubos e prejuízos que sofria após conquistas que lhe haviam sido difíceis.

Por detrás destas perdas objetais, emergiam perdas narcísicas que viera sofrendo, por

exemplo, como o início do envelhecimento, a perda do sucesso que a beleza lhe

proporcionava, além das dificuldades profissionais e financeiras crescentes que a

faziam sentir-se um fracasso, muito distante da imagem de outrora.

Cabe dizer, no momento inicial do tratamento – considerado por Carmen a

última tentativa para sua salvação –, ela vinha em busca muito mais da ―cura pelo

amor‖ do que da ―cura pela análise‖ (FREUD, 1915[1914]). Esta era uma das muitas

dissonâncias que abrigava.

Tratava-se de tentar constituir na análise a possibilidade de Carmen poder

perder, enlutar-se e poder crescer com o trabalho de separação e luto, o que ela não

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havia levado a termo em seu desenvolvimento inicial. Apesar de mulher madura e

experiente que passara por inúmeras situações que a faziam reviver a radical

experiência de perda do objeto original, Carmen não conseguira lançar mão destas

repetidas reapresentações, para construir possibilidades mais efetivas de elaboração.

As vivências da posição depressiva eram retomadas em todas as situações em que se

impunham perdas, e, em todas elas, Carmen vinha tropeçando.

A reação perante a perda pode constituir o luto normal, o patológico ou a

eclosão de uma melancolia, sendo esta uma questão de grau, conforme considerou

KLEIN (1940). Por outro lado, todos nós guardamos em nosso psiquismo as marcas

das experiências primordiais, as quais podem retornar em diferentes proporções e

intensidades. Os elementos estão todos ali e podem se manifestar, o distintivo é a

gradação com que cada elemento participa da cena psíquica que se monta, a partir do

drama subjetivo que se instala, em determinado momento da trajetória daquele sujeito.

Cada sujeito deve comportar uma sustentação psíquica proporcionada por seu

narcisismo que, ao ser investido no ego, alicerça o narcisismo de vida e lhe fornece

uma coluna de sustentação própria. Para tanto, tem de vencer os avanços da pulsão de

morte e do narcisismo destrutivo. Quando o objeto é colocado como absolutamente

imprescindível pela sustentação que representa para o sujeito, é certo que, quando ele

se for por morte, por ruptura ou submeter o sujeito a grande decepção, o sujeito

desaba melancolicamente. A identificação narcísica que iguala e confunde o sujeito

com o objeto que foi perdido, leva-o a uma situação de morto-vivo, despojos do seu

passado, padecendo sob a sombra daquele que se foi e levou consigo sua alma, sua

razão de existir.

Não são poucos os casos de pessoas que desvelam suas falhas constitutivas

apenas após a desarticulação de uma condição que as mantinha estáveis e funcionantes

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na vida. Carmen era uma dentre aqueles pacientes que reúnem forças para tentar

vencer pelo tratamento, o que lhes parece ser invencível por si mesmo. Com a ajuda

do analista/mãe, que necessita acolher para ajudar a separar, na difícil e sutil tarefa

que restou incompleta ou imperfeita, desde os entraves com o objeto original.

Em casos como o de Carmen, o luto é impossível de ser superado

naturalmente, mesmo depois de passados muitos anos. Pois não se trata do luto

daquele que mais recentemente se foi, e sim do luto arcaico, pelo objeto original, e até

mesmo na perda narcísica original. Aquela que o psiquismo não tolera, não absorve,

tendo de colocar, no vazio que se escancara em seu interior, um objeto idealizado que

tampone a plenitude do ideal do ego perdido. Em tais circunstâncias, não há

internamente a menor possibilidade de perder o objeto. É, novamente, estar diante da

perda original que foi trauma jamais processado, apenas contornado.

Em rota que destrói o sujeito desde dentro, sem palavras para preencher a

boca, que fica aberta e estupefata com a emergência impulsiva avassaladora. O que

afeta o sujeito é sentido como se de fora viesse, fazendo-o procurar o respaldo da

relação analítica para tentar sair de seu refúgio particular na companhia de alguém em

quem se apoiar ou no colo de quem se depositar. No caso, o analista/mãe que possa

ajudá-lo nesta travessia, já que o objeto original não foi suficiente.

Em uma relação assimétrica de estranhos íntimos, o psicanalista necessita

guardar seu lugar de estrangeiro, condição essencial para, no tratamento, ter a chance

de ajudar o paciente a chegar à outra margem. Deixar a rota autodestrutiva para se

engatar na travessia da vida, que, embora árdua, pode reservar prazer, promover

criação e realização. Tudo isso para, ao final, poder dizer: confesso que vivi.

A questão dos níveis em que falhas constitutivas podem ter lugar foi se

revelando um dos importantes aspectos da questão que me interessava neste estudo

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sobre a perda: aprofundar meu entendimento sobre o vazio que se apresenta onde a

ausência deveria estar. De que forma se produzia a delimitação e a separação entre os

limites internos, os limites do eu e os limites do outro. Onde o psiquismo falhava no

reconhecimento de sua própria falta, não conseguindo a partir dela se dirigir ao outro

enquanto outro, diverso em sua alteridade.

No tipo de paciente do qual viemos falando, tendo em vista minha observação

e o acompanhamento junto a Carmen, penso que os diversos níveis e instâncias de seu

psiquismo não conseguiram avançar em direção à elasticidade, que lhe permitiria

atingir uma condição de permeabilidade interna, de importância para seu íntimo

contato com a realidade interna e para o contato menos traumático com a realidade

externa. Considero que a condição de indiferenciação, na qual estes pacientes

permanecem, resulta no fato de que os níveis intrapsíquico, intersubjetivo ou relativo

ao contato do sujeito com a realidade externa se interpenetram, podem permanecer

confundidos, difusos ou mesclados.

Não haveria propriamente o esfacelamento ou a ruptura dos contornos que

podemos divisar nas desagregações psicóticas, mas a magnitude e o dimensionamento

das fronteiras flutuam muito, porém não conseguem ser elásticas. O que foi possível

conferir no tratamento de Carmen, de forma vívida na

transferência/contratransferência, é que ela se expandia e se comprimia, se exibia e se

refugiava, se opunha e se submetia, erigia construções e demolia alicerces. Nem

sempre em alternância, podendo estes pólos se manifestar simultaneamente,

proporcionando a sensação ao psicanalista de que está sem bússola, sem âncora,

vagando em mar aberto. Sem saber quem é e para onde pode ir seu paciente. Foram

estas as sensações muito nítidas no início do atendimento de Carmen.

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Era como se ela estivesse em busca de delineamentos de si própria, tanto

interna quanto externamente. Portanto, era uma paciente que podia acumular e

―engordar‖ com suas experiências, porém não se nutria do alimento. Possivelmente

porque os nutrientes não conseguiam ser conduzidos para a instância devida. Pacientes

como ela podem passar toda uma vida no mesmo lugar, apesar de, por vezes, serem

capazes de muita atividade e produção externa. Como se passassem a vida na ilusão

de que estão crescendo, para depois se flagrarem absolutamente chocados com a

pequenez e a incapacidade que se revelam. A ocasião da perda de um ser amado é

uma delas.

Poderíamos pensar tal condição como uma organização narcísica, na qual o

lugar predominante em que se situa o paciente é o ―entre‖ estados. Todos ali

presentes, porém, o sujeito tangencia um deles, toca o outro, tenta se enraizar em um

outro mais. Para, ao final, sentir que é levado a ser nômade, meio camaleão, na

travessia incessante entre as indiferenciações e divisões que seu eu abriga. Com

oscilações do céu à terra; com exaltações maníacas e caídas depressivas; exibições

histriônicas e encolhimentos pueris; acompanhando fantasias e atuações perversas de

outro, tornando-se incapaz de se opor e proteger, ou tramando ardis para atender a

seus objetivos; retraimentos esquizóides e fantasias persecutórias ou padecimento

depressivo e sentimento de culpa infindável.

Tento transmitir a complexidade e dificuldade do diagnóstico em casos que

abarcam a pluralidade de traços, como se persistisse de forma muito insistente a

indiferenciação da disposição polimorfa perversa que se traz desde o berço. Além da

falta de coesão e estabilidade internas que não proporciona ao sujeito se

individualizar, ter noção de si, constituir uma identidade.

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A reparação, sendo fruto da libido que abre caminho, que restaura danos e se

preocupa com o objeto em si, não é atingida. Apenas acena no horizonte, porém, não

chega a nascer. Para o desespero do paciente, que se sente incapaz de cuidar e

proteger, a si e aos objetos que ama. Quer conservá-los e ajudá-los a crescer, porém

brota apenas a reparação maníaca não efetiva, profundamente decepcionante quando

sai de cena o brilho ofuscante que produz. A tríade defensiva da negação, triunfo e

controle, orquestrada pelo sentimento da onipotência, apenas ilude de maneira fugaz,

não restitui nada. O interior permanece em conflito e em sofrimento pela

ambivalência.

Em outra direção, porém em completa articulação com o que veio sendo

examinado, Carmen me ajudou a entender mais firmemente que o outro está sempre

presente, mesmo que em germe, na indiferenciação inicial eu e não-eu. A triangulação

pode estar incipientemente acenando, porém desde os primórdios da situação edípica

primitiva, pode não se encontrar no lugar que deve ocupar, na forma que deve ter, na

condição à qual deve alçar.

Se os pais investem seu projeto desejante nos filhos, e mediante isto inauguram

o narcisismo primário no bebê, podemos constatar que, no caso de Carmen, seu

projeto de concepção e gestação de um novo ser não era o produto de um casal que se

amava e vislumbrava em um filho a consumação de uma união feliz. Pelo contrário,

permeava sua relação conjugal a cumplicidade do não-dito e o engodo sobre ser uma

união fértil, a clandestinidade das relações extraconjugais, o uso narcísico e abusivo

que cada um podia fazer do outro. Daquela forma, não poderiam, ela e o marido,

produzir um filho amado por si, pois seria ele apenas o fruto de identificações

projetivas, de restos de narcisismo não processados, ocupando um lugar de objeto para

os pais, não de verdadeiro sujeito. Nunca eram dois que ali estavam onde deveria

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haver conjunção e parceria amorosa, mas sempre se apresentavam três, fosse em

sombra, em escancarada exibição perversa ou exposição histriônica. O terreno da

conjugalidade, da união e do projeto de vida comum não havia. A mãe de Carmen,

que permanecia nos bastidores da infelicidade nos vínculos amorosos da filha, era

objeto de amor primário jamais abdicado. Por sua vez, a matriarca também padecia

deste mal, o que se transmitia seja pela via das identificações, seja pela via da

transmissão psíquica geracional. Vejamos.

A mãe de Carmen se casara após perder o noivo amado na guerra. A sombra

deste morto sempre ali estivera, pois não permitia que ela tivesse com o marido um

efetivo encontro amoroso. Era frígida, seu desejo estava em outro lugar, estava na

direção do morto. A prole foi a sua via de drenagem para o amor impossível, por

aquele que perdera precocemente, e com o qual não conseguira consumar o

investimento narcísico e libidinoso de ter filhos. Os filhos que teve foram filhos deste

desejo que nutria pelo falecido, não pelo marido. Este último, condenado a ter apenas

o papel de protetor da prole, pois como homem era frágil e despotencializado. A ele

jamais havia sido atribuída e permitida uma posição valorizada junto aos filhos, pois

embora objetivamente presente, estava ausente no desejo da mãe. Desejo que estava

dirigido a um terceiro, em sombra.

Na ―produção independente‖ em que se constituíra a concepção de Augusto,

como se fosse filho da natureza, dizia ela, Carmen escolheu o reprodutor de

características que admirava, para ser um inseminador na sombra. Deu ao filho o

sobrenome de um pai legitimado que o reconheceu, que não conseguiu porém

considerá-lo sujeito, muito menos amá-lo como filho acolhido, na impossibilidade de

sua infertilidade. Pairava sempre a figura do amante, do terceiro que entrara em cena

pela cumplicidade muda entre marido e mulher, Carmen e o marido não foram

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capazes de constituir um casal amoroso nem de investir seu narcisismo para constituir

um filho que pudesse amar a si mesmo. Augusto era fruto da projeção do narcisismo

dos pais para o próprio gozo.

Augusto jamais pôde deixar de ser idealizado por Carmen e, portanto, dela não

era possível se separar. Não estava previsto que deixasse de permanecer a ela colado

até o fim de seus dias. Do mesmo modo que Carmen, restando como morta-viva após

o desaparecimento da mãe. Este era o ideal melancólico que se transmitia travestido

de amor materno-filial, de idílio eterno e insubstituível, porém abrigando em seu seio

o ódio à diferença, à separação. Era isto que era cobrado e nada podia se extraviar,

tomar novos rumos.

A desidentificação natural de um jovem em busca da afirmação de seu próprio

eu, a realização do self verdadeiro, isto era horizonte que era interditado desejar, e,

portanto, impossível de ser alcançado, tanto para Carmen quando jovem, como para

Augusto. Com muitas semelhanças e algumas diferenças, por exemplo no

comportamento agressivo e beligerante que Augusto adotava. Carmen afirmava jamais

ter se revoltado, pelo menos explicitamente. Suas rebeldias eram clandestinas,

indiretas. A figura materna, em pleno exercício da falicidade de sua função junto ao

filho, sempre se incumbira de, direta ou indiretamente, atrair a cria de volta. Entre

outras possibilidades, por culpa, por restar esvaziada, por inocular com o sentimento

de estar falhando no papel de realização do ideal materno. O que era absolutamente

insuportável para um filho criado neste sistema familiar de mulheres soberanas e

homens enfraquecidos.

A soberania da ―Sua Majestade, a mãe‖ deveria permanecer para sempre

guardada e cultivada como relíquia familiar, homenageada como uma santa em altar.

Por isso, em Carmen, o tom arrogante, a imposição que intimidava, a supremacia que

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procurava transmitir. Apesar de ter seu manto puído, não abdicava do cetro e da coroa,

com a arrogância daqueles que sustentam, pelo menos na aparência, aquilo que

necessitam que o outro acredite sobre si. Por intermédio do encontro analítico, nos

aproximamos, divisamos o vazio. O buraco subjetivo que nunca foi preenchido pelas

introjeções que dariam lugar a identificações, que se diluiriam no interior do sujeito,

nutrindo-o do melhor alimento que o objeto externo pode dar para constituir um ser

humano, subjetivando-o. Em seu lugar, tomaram acento incorporações vorazes,

soluções mágico-onipotentes para um estado de vazio insuportável.

Desta forma, onde deveria estar a coluna de sustentação narcísica do sujeito, só

pode restar o vazio do buraco que não se preencheu. Tamponado com o objeto que

guarda o brilho de ideal, mas que, ao final, é apenas suporte absolutamente necessário

para que a vida tenha algum curso. Até o dia em que uma perda por morte, por ruptura

ou decepção poderá desvelar o que se mascarava nos bastidores do eu. Desmanchando

o sistema defensivo que se armara, eclode a profunda ferida narcísica que permanecia

mascarada. A falha constitutiva surge finalmente na cena pela eclosão do

acometimento melancólico, e o estado depressivo que então se instala pode manter a

melancolia invisível para olhares mais breves e superficiais, aqueles que se atêm na

perda objetal sofrida.

Os psicanalistas vivem na carne, como porta-marcas, sob os efeitos da

transferência/contratransferência, o drama subjetivo do que há de mais profundo em

seus pacientes. E de si mesmos, pois a melancolia constitutiva, todos nós a portamos.

Por muitas vezes, o analista pode sentir-se sem bússola confiável para a vivência que

se dá na clínica, mesmo que a experiência que possuam no atendimento de pacientes

não seja pouca. A surpresa está sempre à espreita, é preciso que se saiba, não que isto

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possa evitar este atravessamento, porém, pode nos possibilitar melhor entendimento

do que se passa na situação analítica e no interior destes pacientes.

A triangularidade tem de ter seu lugar explicitamente garantido e cultivado

para que possa se estabelecer uma união criativa entre um casal ou entre parceiros de

vida, como pais e filhos. O narcisismo de cada um dos elementos em cena na

triangulação edípica deve ter tido chances de estruturar um psiquismo com

sustentação própria, de modo que eles possam transitar por identificações com

liberdade, ser por si e por seu próprio destino. O ódio não pode ter atrapalhado em

demasia. Pois, ele pode cristalizar a fantasia inconsciente de ―crime originário‖ ao se

desprender dos objetos originais para o mundo. E, por outro lado, a mãe tem que

processar e conter seu ódio atávico e perdoar o filho por desprender-se dela com o

nascimento.

O atendimento de Carmen terminou por deixar patente que seu

transbordamento, seu excesso, sua desmesura, sua dificuldade com a separação e os

limites, com a privacidade do outro, eram expressão de uma não estruturação de

diferentes níveis psíquicos, necessários à saúde mental. Onde deveria haver o

narcisismo bem fundado e solidamente estabelecido, estava o objeto absolutamente

necessário, ideal que não se ausentava. Onde deveria estar o objeto objetivamente

percebido, estavam as projeções e identificações projetivas que o tornavam tão

subjetivo, que permanecia extensão narcísica do sujeito. Onde deveria haver a

triangularidade que demarca gerações e dá a cada qual seu lugar na cena primária,

encontrava-se o terceiro da sombra. Porém, fora da cena, este terceiro é condenado a

ser o eterno fantasma, que persegue e não deixa um casal se unir no amor e gerar

filhos, gestar criativamente projetos comuns e cumprir realizações. Seus trabalhos

artísticos eram produções impulsivas, resposta ao trauma, visando extravasamento

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muito mais do que processamento interno; não eram reparação na recriação nem

externalização de um produto elaborado.

Penso que Carmen, além de sucumbir sob a sombra de seu narcisismo ferido,

permanecer sob a sombra do objeto perdido, constituiu uma triangulação de sombra,

sendo profundas as interferências pré-edípicas a que se encontrava sujeita, com

impossibilidade de perder e conduzir o luto pelo objeto original. Em sua vida, o

terceiro encontrava-se sempre nos bastidores. Assim, na relação analítica deveria ter

lugar a analista/mãe que pudesse constituir em Carmen um terceiro de outra ordem,

existindo à luz do dia, sendo reconhecido e bem-vindo. Pois não é assim que a

identificação precoce com o pai salvaguarda o filho do engolfamento que pode ter

lugar junto à figura materna?

Mesmo não sendo objetivo deste trabalho, gostaria de acrescentar algo que foi

se dando no tratamento de Carmen, que teve continuidade por mais algum tempo.

Entre avanços e recuos, entre altos e baixos, com resistências e ataques à analista, mas

também, por vezes, com gratidão, Carmen foi mudando. Teve início um maior

respeito pelas fronteiras e pelos limites do filho, e ela começou a criar seus próprios

espaços e relações. Em parte o fazia por si, em parte por sentir-se sem respaldo do

filho. Planejava chegar o dia em que deveriam morar em casas separadas, cada um

com sua própria vida. Começou a considerar, com sentimento de tristeza, a separação

do filho como necessária para a saúde mental de ambos.

Aqui encerro este relato, concluo este trabalho. Cujas ressonâncias, espero,

ainda possam produzir criações futuras.

“Juntamente com a conquista e o triunfo de terminar,

há sempre um processo muito doloroso de separação.

Um aspecto importante da reparação é deixar que o objeto se vá.

O outro aspecto reparador é, sem dúvida,

a doação que o artista faz de sua obra para o mundo.”

(Segal, 1993, p. 106)

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