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88 CAPÍTULO III DO PARATEXTO OU NÃO NOS ENUNCIADOS O Autor, o editor e o paratexto – 2ª parte Alguns anos se passaram. O Autor publicou outros dois livros após o sucesso do primeiro. O segundo trazia, logo debaixo do título: “O Autor de...”. Tiragem de 30000. O terceiro: mais 30000 e sempre com aquela frase debaixo do título. Os dois com capas chamativas, antecipando parte do enredo. Agora sem prefácios. Apenas breves elogios, assinados por autores prestigiados, na quarta capa. Na orelha direita de cada um deles, uma foto do Autor acompanhada de pequena biobliografia. Entrevistas, resenhas, noite de autógrafos, palestras em escolas, em universidades. Ah! Os direitos autorais haviam melhorado. Aliás, pelo terceiro livro, até recebeu adiantado! “Agora, bem que algum diretor podia querer comprar meu livro para fazer um filme”. Sonhava o Autor. “Ou a TV! Uma minissérie!” Sonhava ainda mais o Autor. E o sonho virou realidade na forma de um telefonema. Era a secretária de um diretor de televisão. Queria marcar uma entrevista. “Minissérie! Minissérie! Não aceito outro tipo de adaptação. Sabe, tem mais prestígio. É o único produto nobre da TV”. Imaginava-se exigente o Autor. Entrevista com o diretor. E o seu editor também estava lá. Conversas amenas, no início. O diretor disse que havia lido os três romances dele. “Você tem um jeito de escrever que gruda no leitor”. Depois de elogios ao estilo, ao enredo, à força da personagem X. “E o detetive? Olha, não fica devendo nada a Poirot! A Sherlock Holmes! Claro, o seu é único. E você fez ele bem brasileiro. Muito bom, mesmo!” “Tá, certo. Mas quando ele vai fazer a proposta? Minissérie. Só se for minissérie! E com uns quarenta capítulos”. Pensava o Autor. “Olha, a gente tava pensando em fazer alguma coisa com esse seu último livro”. “Ih! Começou mal. Vai me propor um desses programas especiais de um dia só!” Imaginava o Autor. “Eu conversei com nossos escritores de telenovela, de minissérie. Eles também gostaram muito dos seus romances. Conversamos muito e...” “Meu Deus! Fala logo. Uma minissérie!” “... pensamos em uma minissérie, uns trinta capítulos ou mais. Que que você acha?” Aceitou, mas não concordou com a proposta financeira. O editor entrou na conversa. “Sabe, começa assim. Depois pode ter outra adaptação. Aí você vai ser mais conhecido na mídia. Seu nome na TV. Entrevista nos telejornais. O nome da minissérie...”. Voltou-se para o diretor. “Vai ser o mesmo do livro, não vai?” O diretor meio que concordou com a cabeça. “É quase certo. Tem sido assim quase sempre”. “Então, mesmo título do livro, você vai vender mais livro. Perde um pouquinho aqui pra ganhar lá”. Resignado, o Autor também aceitou. Assinaram o contrato. Quando os trabalhos de adaptação começaram, pensou em não acompanhar nada. “TV é outra coisa. É outra linguagem, como eles costumam dizer. Vão mexer na história. Vão colocar mais personagens. Vai precisar de mais plots . Mais ganchos.” Conformava -se o Autor. Por uma nota aqui num jornal, outra notinha ali em outro jornal, passou a conhecer alguns detalhes da produção. A grande atriz X estava escalada. O detetive seria feito pelo consagrado ator Y. “Acho que vou ver uma gravação. Uma só. Não quero ficar nervoso”. Propunha-se o Autor. Viu uma. Viu duas. Viu todas. Tirava fotos ao lado da grande atriz X. Almoçava com o diretor. Batia longos papos com o autor da minissérie. “Mas é assim mesmo. Eu sei. Televisão é outra linguagem”. Explicava o Autor para o autor. Um dia em casa, viu na TV a chamada para a sua minissérie. “Estréia, dia 09 de março, a nova minissérie...” Gostoso ouvir o nome do meu livro na voz desse locutor, saboreava o Autor. “...intrigante história de autor ...” “Como? A história é minha!” Indignava -se o Autor. “... quarenta capítulos de mistério e paixão! Com a grande atriz X, o consagrado ator Y e grande elenco.” Enquanto a música de fundo subia, o Autor já havia se esquecido do autor. “Num oferecimento de ...”. Primeira semana da minissérie no ar, o editor o chamou para uma reunião urgente. A urgência deixou o Autor intrigado. No começo, achou que o editor estava meio misterioso. “O que será que ele está escondendo?” Pensava o Autor, enquanto conversavam sobre coisas triviais. Aí entraram no assunto. “Você viu a audiência?” perguntou o editor. “Não. E aí? Você tá sabendo alguma

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CAPÍTULO III – DO PARATEXTO OU NÃO NOS ENUNCIADOS

O Autor, o editor e o paratexto – 2ª parte Alguns anos se passaram. O Autor publicou outros dois livros após o sucesso do primeiro. O segundo trazia, logo debaixo do título: “O Autor de...”. Tiragem de 30000. O terceiro: mais 30000 e sempre com aquela frase debaixo do título. Os dois com capas chamativas, antecipando parte do enredo. Agora sem prefácios. Apenas breves elogios, assinados por autores prestigiados, na quarta capa. Na orelha direita de cada um deles, uma foto do Autor acompanhada de pequena biobliografia. Entrevistas, resenhas, noite de autógrafos, palestras em escolas, em universidades. Ah! Os direitos autorais haviam melhorado. Aliás, pelo terceiro livro, até recebeu adiantado! “Agora, bem que algum diretor podia querer comprar meu livro para fazer um filme”. Sonhava o Autor. “Ou a TV! Uma minissérie!” Sonhava ainda mais o Autor. E o sonho virou realidade na forma de um telefonema. Era a secretária de um diretor de televisão. Queria marcar uma entrevista. “Minissérie! Minissérie! Não aceito outro tipo de adaptação. Sabe, tem mais prestígio. É o único produto nobre da TV”. Imaginava-se exigente o Autor. Entrevista com o diretor. E o seu editor também estava lá. Conversas amenas, no início. O diretor disse que havia lido os três romances dele. “Você tem um jeito de escrever que gruda no leitor”. Depois de elogios ao estilo, ao enredo, à força da personagem X. “E o detetive? Olha, não fica devendo nada a Poirot! A Sherlock Holmes! Claro, o seu é único. E você fez ele bem brasileiro. Muito bom, mesmo!” “Tá, certo. Mas quando ele vai fazer a proposta? Minissérie. Só se for minissérie! E com uns quarenta capítulos”. Pensava o Autor. “Olha, a gente tava pensando em fazer alguma coisa com esse seu último livro”. “Ih! Começou mal. Vai me propor um desses programas especiais de um dia só!” Imaginava o Autor. “Eu conversei com nossos escritores de telenovela, de minissérie. Eles também gostaram muito dos seus romances. Conversamos muito e...” “Meu Deus! Fala logo. Uma minissérie!” “... pensamos em uma minissérie, uns trinta capítulos ou mais. Que que você acha?” Aceitou, mas não concordou com a proposta financeira. O editor entrou na conversa. “Sabe, começa assim. Depois pode ter outra adaptação. Aí você vai ser mais conhecido na mídia. Seu nome na TV. Entrevista nos telejornais. O nome da minissérie...”. Voltou-se para o diretor. “Vai ser o mesmo do livro, não vai?” O diretor meio que concordou com a cabeça. “É quase certo. Tem sido assim quase sempre”. “Então, mesmo título do livro, você vai vender mais livro. Perde um pouquinho aqui pra ganhar lá”. Resignado, o Autor também aceitou. Assinaram o contrato. Quando os trabalhos de adaptação começaram, pensou em não acompanhar nada. “TV é outra coisa. É outra linguagem, como eles costumam dizer. Vão mexer na história. Vão colocar mais personagens. Vai precisar de mais plots. Mais ganchos.” Conformava-se o Autor. Por uma nota aqui num jornal, outra notinha ali em outro jornal, passou a conhecer alguns detalhes da produção. A grande atriz X estava escalada. O detetive seria feito pelo consagrado ator Y. “Acho que vou ver uma gravação. Uma só. Não quero ficar nervoso”. Propunha-se o Autor. Viu uma. Viu duas. Viu todas. Tirava fotos ao lado da grande atriz X. Almoçava com o diretor. Batia longos papos com o autor da minissérie. “Mas é assim mesmo. Eu sei. Televisão é outra linguagem”. Explicava o Autor para o autor. Um dia em casa, viu na TV a chamada para a sua minissérie. “Estréia, dia 09 de março, a nova minissérie...” Gostoso ouvir o nome do meu livro na voz desse locutor, saboreava o Autor. “...intrigante história de autor ...” “Como? A história é minha!” Indignava-se o Autor. “... quarenta capítulos de mistério e paixão! Com a grande atriz X, o consagrado ator Y e grande elenco.” Enquanto a música de fundo subia, o Autor já havia se esquecido do autor. “Num oferecimento de ...”. Primeira semana da minissérie no ar, o editor o chamou para uma reunião urgente. A urgência deixou o Autor intrigado. No começo, achou que o editor estava meio misterioso. “O que será que ele está escondendo?” Pensava o Autor, enquanto conversavam sobre coisas triviais. Aí entraram no assunto. “Você viu a audiência?” perguntou o editor. “Não. E aí? Você tá sabendo alguma

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coisa?” “No primeiro dia, bateu em 38. Na média, uns trinta por cento. Fora o share. Aí chega a uns 45!” “Share? ” Pensava o Autor. “45? Pela felicidade do editor deve ser coisa boa”. Imaginava o Autor, enquanto o editor falava em merchandising, audiência rotativa. ”Mas ele me chamou com urgência para isso? Isso ele podia ter falado por e-mail, por telefone”. Intrigado, o Autor. Conversaram mais um pouco, comentando a atuação dos atores. O Autor achava que a grande atriz X estava perfeita no papel, mas o consagrado ator Y deixava o seu detetive um tanto caricato. O editor ia concordando com o Autor, assim, assim, enquanto se encaminhava até a estante. Apanhou um livro. Escondeu-o sob o paletó, de forma que o Autor pudesse ver esse seu gesto furtivo. “Que que você tá escondendo aí?” O editor não falou nada. Tirou o livro de debaixo do paletó e o exibiu como se fosse um troféu. “A nova capa do seu livro!” O Autor pegou o livro. Na primeira capa, a cena era uma reprodução de uma das imagens de abertura da minissérie. O título usava a mesma tipologia usada para identificar a minissérie. O seu nome continuava no alto. Debaixo do título, uma pequena frase: “O livro que deu origem à minissérie da TV”. Enquanto examinava, o editor continuava falando. “A gente precisa aproveitar o momento. O livro já vendeu bem antes da minissérie. Agora, então!” O Autor gostava mais da capa anterior. “Mas, vem cá. Precisava mudar tudo aqui na capa?” “Sabe, a capa agora ficou com a cara da minissérie. O público bate o olho e... tcham!” “Tá. Mas me explica. Se o público vê a minissérie, o título é igual ao do meu livro! Pra que tudo isso?” “Sabe, a idéia é fazer uma interface com a TV. Um link. Bateu o olho... Tcham! Olha lá o livro da minissérie! E vai pegar na mão. E vai dar uma olhada. E vai comprar.” Da coisa, o Autor entendeu bem o tcham. “Mas interface? Link?” Tentava traduzir o Autor. “Mandamos fazer mais 50000. Hoje mesmo vai pra todo o canto.” O Autor concordou, até porque já estava tudo pronto. O editor ia falando e o Autor olhando para a capa. Ficou cismado com aquela pequena frase “O livro que ...”. Se a capa estava com a cara da minissérie, não precisavam ter escrito também aquela frase. Mas não disse nada. “Sabe, a gente queria pôr o consagrado ator Y e a grande atriz X na capa.” “Ah! É. Por que não puseram?” “Direito de imagem, sabe como é. O cachê que eles queriam ia comprometer o investimento”.

continua

Para verificar se os enunciados verbais e/ou não-verbais impressos em capas de livros –

escritos por autores brasileiros e adaptados para o cinema ou para a televisão – que associam

o livro à obra cinematográfica ou televisiva podem ou não ser classificados como paratexto,

estabeleceu-se um corpus que, quanto à perenidade dos enunciados e à sua visibilidade,

considerou os seguintes parâmetros:

1. Não selecionar cinta promocional ou sobrecapa, uma vez que estas formas são

facilmente descartáveis.

2. Tendo como referência o livro como produto exposto em um balcão de uma livraria,

do conjunto capa, foram escolhidos os seus dois pontos de maior visibilidade, a saber:

a primeira e a quarta capas.

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Já, a seleção dos livros analisados, levou em consideração dois dos critérios estabelecidos

por Genette que permitem reconhecer um paratexto: a substância e a localização. Assim,

chegou-se à seguinte definição:

a) somente enunciados verbais na primeira capa;

b) tanto enunciados verbais quanto não-verbais na primeira capa;

c) enunciados verbais na primeira e na quarta capas;

d) somente enunciados verbais na quarta capa;

e) tanto enunciados verbais quanto não-verbais na quarta capa;

f) tanto enunciados verbais quanto não-verbais na primeira e na quarta capas e

g) somente enunciados não-verbais na primeira e na quarta capas.

No quadro a seguir, relacionam-se os livros selecionados, associando-os aos critérios

acima definidos, e à obra adaptada. Esclarece-se ainda que enunciados semelhantes, presentes

em outros livros, serão apresentados para mostrar as diferentes formas como eles podem ser

construídos e para confirmar e ampliar as análises dos enunciados constantes dos livros

selecionados.

QUADRO I: RELAÇÃO DOS LIVROS CUJOS ENUNCIADOS FORAM ANALISADOS

Critério Título Autor Editora Ano Adaptação

Sombras de julho/1995 a

Sombras de

julho

Carlos Herculano

Lopes Atual 1996

Minissérie /TVCultura

Olga/2004 b Olga Fernando Morais

Companhia

das Letras 2004

Filme

A muralha/2000 c A muralha Dinah Silveira Queiroz Record 2000

Minissérie/TV Globo

O que é isso, companheiro? d O que é isso,

companheiro? Fernando Gabeira

Companhia

das Letras 1996

1997/ Filme

Floradas na serra e

Floradas na

serra Dinah Silveira Queiroz José Olympio 1954

1954/ Filme

A escrava Isaura/1976-1977 f

A escrava

Isaura Bernardo Guimarães Bels 1976

Telenovela/ TV Globo

Cleo e Daniel g Cleo e Daniel Roberto Freire Brasiliense 1970

1969/ Filme

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Definidos os livros, quanto sua materialização e sua localização, encaminha-se, então

para a análise dos enunciados presentes nesses livros e que fazem referência à obra adaptada.

Como definido anteriormente, tais enunciados, já que se localizam em uma capa de livro, são

entendidos como fazendo parte do gênero discursivo extratextual. Cabe, então agora, testá- los,

analisá- los para confirmar se eles se constituem ou não em elementos paratextuais. A

incerteza quanto a defini- los, de imediato, como paratextos, surge porque, como os

enunciados também dizem de produtos comunicacionais externos ao livro, em que medida

eles atenderiam à propriedade essencial do paratexto? Em que medida eles estão a serviço do

texto principal?

Para responder a essa questão, estabeleceu-se um roteiro para a análise desses

enunciados, considerando-se os preceitos da análise do discurso conforme propostos por

Rosalind Gill (2002, p. 267) e os da análise retórica apresentados por Joan Leach (2002, p.

316-317):

• descrever as condições de produção que mostraram ser oportuno e

conveniente o relançamento de um livro. Nessa descrição, contemplam-se,

assim, os critérios de temporalidade e de situação (pragmática) em que um

paratexto se manifesta;

• identificar o tipo de discurso persuasivo característico de cada enunciado,

ou seja, se epidêitico, em que se louva algo – neste caso, a própria obra –

ou deliberativo, pelo qual se pretende agir sobre o outro, e

• aplicar, a cada enunciado, os cinco cânones retóricos: 1. invenção – em que

se define a quem se atribui a responsabilidade pela produção dos

enunciados e se estes utilizam apelo emocional ou racional; 2. disposição –

como o discurso vem organizado; 3. estilo – como se caracteriza a

linguagem utilizada; 4. memória – em que se considera que os

conhecimentos (de mundo, culturais, lingüísticos, entre outros) são

partilhados entre os participantes do discurso (emissores e público) e 5.

apresentação – o veículo pelo qual os enunciados se propagam – neste

caso, ele já vem definido: a capa de um livro.

A identificação do tipo de discurso e os resultados obtidos com a aplicação dos

cânones retóricos permitirão compreender para que os enunciados analisados foram

produzidos, ou seja, que funções eles exercem. Por fim, com base nas reflexões propiciadas

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pela análise, será possível categorizar aqueles enunciados como paratextos ou não. E, em não

sendo, a que categoria eles pertencem.

1. SOMBRAS DE JULHO

Em 1990, com o romance Sombras de julho, Carlos Herculano Lopes obteve o prêmio

de Melhor Romance, na 5ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira. No ano seguinte, a obra foi

publicada pela Editora Estação Liberdade. Em 1995, conforme Ismael Fernandes (1997, p.

474-475), a TV Cultura apresentou a minissérie Sombras de julho, entre 17 e 20 de janeiro. O

Figura 25:

Primeira capa de

Sombras de Julho

Arquivo do autor

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que a Cultura exibiu, na verdade, foi a edição adaptada para a televisão do filme Sombras de

julho, com roteiro de Júlia Altberg, dirigido por Marco Altberg, que, segundo Antonio Leão

da Silva Neto (2002, p. 767), foi lançado no ano de 1996. Assim, nesse mesmo ano, quando a

editora Atual publicou a 5ª edição do livro, havia uma situação conveniente a esse novo

lançamento, pois o título do romance circulara em duas mídias diferentes e, de certo modo,

estava presente na memória das pessoas.

Para destacar essa condição, optou-se por colocar, na primeira capa, o seguinte

enunciado “O livro que deu origem à minissérie da TV”. Num primeiro instante, essa decisão

parece estranha. Por que não associar ao filme que se exibia naquele ano? A decisão em

descartar a associação com o filme pode ter sido causada pelas diferenças de exibição de um

filme e de uma minissérie. Mesmo que se leve em consideração o fato de ter sido apresentada

pela TV Cultura, emissora caracterizada por pequena audiência, a minissérie é acessível a

maior público e em diferentes lugares do país. Já a distribuição de um filme e, em especial,

brasileiro, é irregular e nem sempre chega a muitas cidades. Outro conhecimento que pode ter

apoiado aquela decisão diz respeito à qualificação do público que costuma assistir a

programas exibidos pela TV Cultura. Foi, então, nesse contexto e sob tais condições que

surgiu a quinta edição do livro Sombras de julho [fig. 25].

Considerando-se apenas os enunciados verbais, observa-se que, à exceção de um, os

demais correspondem a informações referentes ao livro e dão conta de sua edição, título e

autoria, mencionando, ainda, o prêmio conquistado pela obra. Eles correspondem, portanto, à

função referencial da linguagem e estão centralizados, ocupando a dimensão vertical da

primeira capa. Já o único enunciado verbal que foge ao padrão é justamente aquele que

associa a obra a sua exibição na TV. Colocado no canto inferior à direita, sobreposto a uma

faixa marrom na diagonal de baixo para cima, esse enunciado afirma: “O livro que deu

origem à minissérie da TV”.

Embora esteja em tamanho pequeno, esse enunciado desperta atenção não somente por

destoar da diagramação comum aos demais enunciados, mas também por sua localização e,

dessa forma, configura-se uma estratégia que põe em relevo a função fática. Isso, porque, ao

escolher o canto inferior à direita, explorou-se um espaço de muita ênfase visual. Devido à

tradição da escrita, no mundo ocidental, ao ler uma página, o olho do leitor caminha numa

diagonal que parte do canto superior à esquerda e chega ao inferior à direita. E. ao colocar o

enunciado nesse local, reproduziu-se uma prática muito comum em peças publicitárias

impressas. Conforme Vestergaard e Schröder (2000, p. 46), ainda que essa diagonal não possa

ser considerada “um princípio universal” empregado na elaboração de peças publicitárias, ela

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está presente em grande número de “anúncios em que o nome do produto [...] surge no canto

inferior direito da peça”.

O enunciado, além de se destacar dos demais e de ocupar um ponto de destaque na

primeira capa, a princípio, parece ser objetivo. Tem-se a impressão de que, como os outros

enunciados, trata-se de função referencial, pois está ali apenas para informar. Tanto que não

seria estranho se fosse encontrado em um trecho de texto jornalístico semelhante a este: “A

editora Atual acaba de lançar a 5ª edição do romance Sombras de julho, o livro que deu

origem à minissérie da TV Cultura, exibida em janeiro do ano passado”. Porém para que

informar algo que parece ser do conhecimento partilhado entre o público e o produtor do

enunciado? Afinal, a exibição da minissérie pela televisão, sua posterior exibição em salas de

cinema, as notícias veiculadas por jornais, revistas, televisão, os anúncios que divulgaram

aqueles produtos, enfim, todos já sabem. Será, então, que se deseja apenas informar? Essa

questão levanta a possibilidade de que, nesse enunciado, possam ser encontradas outras

funções da linguagem, como se verá a seguir.

Principia-se pelo sentido produzido por algumas das palavras escolhidas na elaboração

do enunciado. Assim, o uso do artigo definido “o” destaca a palavra “livro”: não se trata de

“Um livro” e nem de “Este livro”, mas sim “O livro”, como que lido em voz alta, esse trecho

atribui valor ao produto. Esse mesmo raciocínio pode ser percebido na expressão “deu

origem” que marca significativamente o princípio de anterioridade da obra em relação às

adaptações e, mais do que isso, atribui ao livro o princípio da gênese, como se ele, por sua

qualidade, tivesse feito nascer aquelas adaptações, responsabilizando-se por elas. Acrescente-

se, ainda, que, na primeira capa, há um enunciado que referenda esse valor: trata-se de

romance premiado que chega, portanto, legitimado e, por extensão, configura-se como

autoridade – dentre tantos romances, este foi o melhor. Dessa maneira, aquele enunciado que

parecia informar, subentende-se como epidêitico, uma vez que louva e enaltece o próprio

objeto e, por isso, compreende-se tratar-se da função expressiva da linguagem.

A função expressiva pode ser observada também pela presença das palavras minissérie

e TV, pois a lógica racional apresentada pelo enunciado, pode ser revelada por meio de uma

construção silogística: Se o livro é bom e a minissérie foi feita a partir dele, então a

minissérie também é boa. Por extensão, Se a minissérie é boa e a TV a exibe, então a TV

também é boa. Tem-se, desse modo, sentidos que se caracterizam pela afirmação, ou seja,

qualificam os produtos (livro e minissérie) e o veículo (TV) de forma positiva: todos possuem

boa qualidade. A afirmação é, segundo Citelli (2004, p. 61), um importante recurso

persuasivo, uma vez que “a dúvida e a vacilação são inimigas da persuasão”.

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Ora, se o leitor tem em mãos um livro tão bom que é capaz de, a partir dele, provocar

o nascimento de outros produtos midiáticos, então por que não comprá- lo? Esse enunciado

poderia ser lido de outra forma: “Compre o livro Sombras de julho que é muito bom, tanto

que foi adaptado para minissérie e exibido na TV”. Assim, evidencia-se que o enunciado, que

somente parecia informar, passa a ser subentendido como um apelo que tem por objetivo fazer

com o público adquira o livro, ou seja, persuadi- lo a isso. Dizendo-se de outra forma, o

enunciado revela-se deliberativo, compreendendo-se que a linguagem foi empregada como

função conativa.

Quanto a sua estruturação, o enunciado assemelha-se a um slogan que, conforme

Oliver Reboul (s/d, p. 23), possui um estilo marcado pela concisão e “que, pela sua própria

forma, produz um resultado”. Trata-se de uma espécie de fórmula breve “que é conseguida

mediante a forte eliminação das palavras-ferramentas (preposições, conjunções, artigos, etc.)

em benefício das palavras plenas (verbos, adjetivos e sobretudo nomes).” Adilson Citelli

(2004, p. 56) substitui a expressão “palavras plenas” por “palavras gramaticais”, afirmando

que um “bom slogan tem entre quatro e sete palavras gramaticais”. Desconsideradas as

“palavras-ferramentas”, o enunciado “O livro que deu origem à minissérie da TV” apresenta

cinco “palavras plenas”: livro, deu, origem, minissérie, TV que, por si mesmas, dão sentido ao

enunciado (ressalve-se, como afirmado antes, a importância que uma palavra-ferramenta, o

artigo, possui nessa construção). Por fim, há um dado significativo: a localização do

enunciado no canto inferior direito que, nas peças publicitárias impressas, é o local mais

comum em que os slogans podem ser vistos.

Pela linha de raciocínio aqui estabelecida, tem-se que o enunciado surge, a princípio,

como simples informação. Porém, pelo estilo slogan, por sua localização, pelos valores

positivos que atribui ao romance que, pela lógica construída a partir disso, deve ser comprado,

é possível caracterizá- lo como um enunciado típico àqueles produzidos em um discurso

publicitário que se manifesta na primeira capa do livro Sombras de julho, ou seja, ele se

inseriu ao discurso extratextual. Resta, ainda, confirmar se se trata de um enunciado

paratextual ou não? Por ora, esta questão ficará em suspenso, reservando-se, pois, a resposta

para depois que esteja concluída a análise dos enunciados presentes nos demais livros

selecionados e que, à luz das regularidades e dos desvios encontrados, possa-se dizer se eles

são, ou não, paratextos.

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2. OLGA

O livro Olga [fig. 26], de Fernando Morais, biografia de Olga Benário Prestes, teve

sua 17ª edição lançada pela Companhia das Letras em 2004. No mesmo ano, os cinemas

passavam a exibir o filme Olga, com roteiro de Rita Buzzar e direção de Jayme Monjardim.

Essa simultaneidade já mostra o momento oportuno para publicar o livro e, em sua capa,

proceder a alterações, associando-o ao filme. Neste caso, dois procedimentos foram adotados:

a inserção de um enunciado verbal na parte inferior da primeira capa, pouco acima do

Figura 26 – Primeira capa do livro Olga Arquivo do autor

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logotipo que identifica a editora; e de um enunciado não-verbal constituído por uma imagem,

emoldurada por fios vermelhos, em que se destaca um rosto de mulher que se sobrepõe a

imagens difusas, esmaecidas, de rostos humanos, compondo o plano de fundo desse conjunto.

Esses enunciados, bem como os demais, encontram-se centralizados ao longo da primeira

capa. Os outros enunciados caracterizam-se como informações (função referencial) quanto à

identificação do autor (na parte superior); do título (em tipos grandes e vermelhos, disposto

logo abaixo do rosto feminino e ocupando a parte central) e da editora (logotipo em branco,

na parte inferior). Também informativo e ainda na parte central, abaixo do título, há o

enunciado “A vida de Olga Benário Prestes, judia comunista entregue a Hitler pelo governo

Vargas” que, além de identificar quem é Olga, faz saber que este livro é uma biografia.

Uma das relações do livro com sua adaptação se dá por meio do enunciado não-verbal

que domina boa parte da primeira capa. O conhecimento que o público tem a respeito de

livros biográficos permite, a princípio, que se identifique no rosto feminino a representação da

pessoa biografada, Olga Benário, já que se trata de um procedimento muito comum adotado

nesse tipo de livro: um rosto colocado em sua primeira capa refere-se à pessoa biografada.

Esse raciocínio apóia-se no próprio conceito de imagem que, conforme Martine Joly (2000, p.

38), sendo material “ou imaterial, visual ou não, natural ou fabricada, uma ‘imagem’ é antes

de mais nada algo que se assemelha a outra coisa” [grifos da autora]. Outro aspecto a se

considerar é que o título, colocado sob o rosto, cria uma relação de dependência entre eles, de

forma que a palavra Olga repousa sob aquele rosto como se fosse uma etiqueta: “Esta é

Olga”. Intensifica-se, dessa maneira, a analogia entre o rosto e a biografada.

Figura 27: Cartaz do filme Olga Fonte: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/olga/olga.asp Acesso em 15 janeiro 2007

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Porém, essa analogia não é confirmada, pois uma simples aproximação dessa primeira

capa com o cartaz de divulgação do filme [fig. 27] evidencia que, mais do que associar o livro

ao filme, o editor trouxe para a primeira capa um enunciado que fazia parte de outro discurso,

o publicitário, incorporando-o ao discurso extratextual. Para esse procedimento, ele leva em

conta o conhecimento compartilhado com o público, já que este saberá compreender que há

identidade entre livro e cartaz: as mesmas imagens e a mesma tipografia utilizada no título. E,

espera-se que, pelo conhecimento que possui quanto a cartazes de divulgação de um filme

(mesmo quando biográfico) o público tenha condições de compreender que aquela imagem

colocada na primeira capa do livro representa o rosto de uma atriz (Camila Morgado) que, por

sua vez, atua no filme, representando Olga Benário.

Caminhando-se para a análise dos efeitos de sentido que o enunciado não-verbal

provoca, nota-se, a princípio, o caráter informativo de que se reveste, já que, mesmo sendo

representada por uma atriz, de algum modo identifica Olga, reconhecendo-se, dessa forma, o

emprego da função referencial. Porém, ela passa a se diluir, antes pela própria ambigüidade

que se estabelece nessa relação atriz/pessoa biografada, depois pela força da imagem que

ocupa quase a totalidade da moldura definida pelos fios vermelhos e, em especial, do rosto

feminino que preenche a metade superior da imagem. Além de sua dimensão espacial, é ele a

única parte da imagem que está iluminada, destacando-o daquele conjunto de imagens difusas

que o rodeiam e do preto que domina todo o espaço exterior à imagem. O rosto – cujo olhar

parece se dirigir ao público – exerce forte atração e desperta atenção. Por essas características,

configura-se a presença da função fática.

A essa força atrativa, caracterizadamente emocional, associa-se o apelo racional

existente no enunciado verbal (“O livro que deu origem ao filme de Jayme Monjardim”) que

vem no rodapé da imagem, fechando o circuito dos sentidos provocados pelo não-verbal. O

seu texto repete a fórmula analisada, anteriormente, em Sombras de julho. São cinco palavras

plenas que formam o enunciado. Possui a mesma força apresentada pelo artigo (“O livro”).

Utiliza a mesma expressão deu origem. Identifica o formato em que a obra adaptada se

apresenta (naquela, minissérie; aqui, filme). A alteração maior ocorre pela menção ao nome

do diretor do filme. Isso pressupõe que ele é possuidor de credibilidade, destaca-se no cenário

midiático e, portanto, empresta esse valor ao livro.

A partir daí, o raciocínio lógico presente neste enunciado verbal é semelhante ao que

já se viu na análise feita em Sombras de julho. O livro Olga é tão bom a ponto de dar origem

a um filme e, por isso, deve ser comprado, ou “Compre o livro Olga que é muito bom, tanto

que foi adaptado para o cinema”. Sob a forma de informação, enaltece-se a obra (presença do

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epidêitico, da função expressiva) e, dessa maneira, tenta-se persuadir o público (evidencia-se

o deliberativo, a função conativa). E tudo isso dentro de uma moldura que presentifica a obra

adaptada, pois, ao trazer o cartaz para a primeira capa do livro, transporta-se também parte do

filme (a atriz e as imagens difusas).

3. A MURALHA

Figura 28 – Primeira capa do livro A muralha Arquivo do autor

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O romance A muralha, de Dinah Silveira de Queiroz, que tem como tema a fundação

da cidade de São Paulo, foi publicado em capítulos ao longo do ano de 1954 – quando São

Paulo comemorava o seu Quarto Centenário – pelas edições O Cruzeiro. Ainda em 1954, a

editora José Olympio o lançou sob a forma de livro (HALLEWELL, 2005, p. 496). Esse

romance teve várias adaptações para a televisão. Segundo Ismael Fernandes (1997, p. 110-

111), sua primeira adaptação aconteceu em 1958, na TV Tupi, a segunda, em 1963, na TV

Cultura e a terceira, na TV Excelsior, entre julho de 1968 e março de 1969. Mais tarde, surgiu

a quarta adaptação, quando a TV Globo exibiu, de 4 de junho a 28 de março de 2000, a

minissérie A muralha, escrita por Maria Adelaide Amaral e João Emanuel Cardoso e com a

Figura 29 – Quarta capa do livro A muralha Arquivo do autor

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colaboração de Vincent Villari. Segundo o Dicionário da TV Globo (2003, p. 367), “a série

foi concebida como parte dos eventos comemorativos do aniversário de 500 anos do

Descobrimento do Brasil”.

Em 2000, a editora Record lançou uma nova edição do romance A muralha que traz

tanto na primeira capa quanto na quarta [fig. 29 e 30], enunciados verbais que fazem

referência à obra adaptada para a televisão. Na parte inferior da primeira capa, pouco acima

do logotipo da editora, há a frase “Romance que inspirou a minissérie”. No alto, está o nome

da autora e, no centro, o título. Todos os enunciados estão centralizados e sobrepostos a uma

imagem representando parte de uma floresta. Esta imagem ocupa toda a primeira capa,

atravessa a lombada e invade cerca de um terço da quarta capa. Uma linha amarela vertical

separa esta imagem dos demais elementos presentes na quarta capa. No alto da quarta capa,

em tamanho menor, repete-se o título da obra e, abaixo, há um texto que inicia pela expressão

“Romance que inspirou a minissérie da TV Globo [...]” e segue-se uma síntese do romance,

destacando-se os principais personagens e encerrando com alguns dados biobliográficos da

autora. Abaixo desse texto, seguem-se outros dois menores que tecem elogios à obra e são

assinados por Rachel de Queiroz, o primeiro, e José Lins do Rego, o segundo.

Assim, as duas ocorrências de enunciados verbais são quase idênticas, aliás, a segunda

(na quarta capa) é extensão daquela inscrita na primeira. Nesta, o enunciado “Romance que

inspirou a minissérie” apresenta construção semelhante ao dos enunciados verbais trabalhados

nos livros anteriores: poucas palavras plenas (neste caso, 3), repetindo, portanto, o estilo

slogan tanto que, por sua disposição, pode ser lido: A muralha. Romance que inspirou a

minissérie. Porém, na seleção de palavras, optou por mencionar romance em lugar de livro e

pelo verbo inspirou em lugar de deu origem. A palavra romance destaca o gênero a que

pertence o texto da autora. O verbo inspirar pode significar influir, estimular. No universo da

criação artística, inspirar é mais do que isso (basta lembrar Musa inspiradora). Alguém ou

algo (um romance, por exemplo), por sua beleza, por seu encanto, por suas virtudes poderá

inspirar em outro o desejo de criar. Ou seja, dar origem! Já, no emprego da expressão a

minissérie, sem identificar o veículo que a exibiu, o artigo a dá ênfase ao produto derivado,

numa espécie de qualificação positiva.

O enunciado verbal colocado na quarta capa encontra-se como parte de um texto

maior, de modo que o seu caráter informativo poderia ficar mais bem definido. Porém ele,

praticamente, repete o anterior e o complementa, pela menção do veículo e da emissora que

exibiu a minissérie : “Romance que inspirou a minissérie da TV Globo, A muralha narra a

bravura [...]”. Afora isso, o que parece apenas informar ganha outros sentidos, quando se vê

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que é o aposto que abre o texto e não o sujeito da oração. Colocada em ordem direta, o trecho

assim ficaria: A muralha, romance que inspirou a minissérie da TV Globo, narra a bravura

[...]. Ou seja, o aposto – precisamente o enunciado que se repete – foi utilizado como tópico,

um termo acessório da oração foi destacado. Numa leitura em voz alta, as diferenças são mais

bem percebidas.

Acrescente-se, ainda, que, enquanto no primeiro enunciado, ao não mencionar veículo

e emissora, espera-se que o público, ativando sua memória, complete aquele enunciado; neste

é a explicitação que ativa a memória do público. Se ele se lembrou antes, aqui na quarta capa

isso será confirmado; caso tenha se esquecido, aqui o enunciado o fará lembrar-se. A

referência à TV Globo torna-se significativa, uma vez que se trata da emissora que, desde

meados da década de 1970, se tornou hegemônica no cenário brasileiro.

Por fim, vistos em conjunto, os dois enunciados verbais analisados, semelhantemente

ao que se observara na análise dos enunciados verbais dos livros Sombras de julho e Olga,

apresentam-se, ao primeiro olhar, como informativos, utilizam a linguagem em sua função

referencial. No entanto, percebe-se que ela possui uma lógica pela qual se pode subentender

um elogio à obra (o romance é bom, por isso foi adaptado), configurando-se a função

expressiva. Por extensão, esses aspectos indicam que esses enunciados estão ali pretendendo

fazer com que se dê a persuasão à compra do livro, ou seja, o discurso se define como

deliberativo pelo emprego da função conativa.

Há que salientar ainda, que a estratégia de repetir os

enunciados em locais diferentes da capa é muito comum no

discurso publicitário. Conforme Adilson Citelli (2004,

p.61), pela reiteração, reforça-se “a possibilidade de

aceitação” dos argumentos apresentados pelo emissor. A

repetição ocorre, ainda, em outro ponto da primeira e da

quarta capas: a forma tipográfica como se apresenta o título

do livro que se assemelha àquela utilizada na abertura da

minissérie, repetida depois na capa do DVD [Fig. 30]

produzido a partir da minissérie. Dessa maneira, pelo apelo

à compra e pela estratégia da repetição, verifica-se, também

no livro A muralha, que o discurso publicitário pode ser

encontrado em meio ao discurso extratextual.

Figura 30 – Capa do DVD A muralha Arquivo do autor

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4. O QUE É ISSO , COMPANHEIRO?

O livro O que é isso, companheiro?, conforme Antonio Leão da Silva Neto (2002, p.

677), foi adaptado para o cinema com roteiro de Leopoldo Serran e direção de Bruno Barreto,

no ano de 1997. Um ano antes, em 1996, a Companhia das Letras lançava uma edição do livro

em que, na sua quarta capa [fig. 31], se faz referência ao filme que, naquele momento,

encontrava-se em estágio de produção. Verifica-se, assim, que a estratégia editorial, tendo

conhecimento de que aquele livro ganharia divulgação por meio da obra adaptada, considerou

oportuno mencionar em texto que apresenta a obra ao leitor.

Figura 31 – quarta capa do livro o que é isso ,companheiro? Arquivo do autor

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O enunciado verbal que associa o livro ao filme encerra o texto que apresenta a obra,

em dois parágrafos. No primeiro, como a obra é de cunho autobiográfico, o leitor é informado

de quem é Fernando Gabeira e de sua participação na guerrilha urbana, ao final da década de

1960. No segundo, a primeira parte dele diz dos fatos que poderão ser encontrados na obra e

da sua relevância, enaltecendo-a. Na segunda parte, o texto é eminentemente laudatório,

reiterando as qualidades do livro. Foi no final desta parte que se inseriu a referência ao filme:

“Relato lúcido, irônico, comovente, o livro se transformou num verdadeiro clássico do

romance-depoimento brasileiro e está sendo filmado pelo diretor Bruno Barreto” [grifo

nosso].

Afirmar-se que um filme está sendo realizado é uma informação. Quanto a isso não há

dúvida. O que chama a atenção é como ela se insere no conjunto do texto: como se fosse o seu

arremate. Antecede-se a ele, uma série de elogios ao livro, permitindo que, por sua força, se

possa fazer uma nova leitura: Relato lúcido, irônico, comovente, o livro se transformou num

verdadeiro clássico do romance-depoimento brasileiro e, por esse motivo, está sendo filmado

pelo diretor Bruno Barreto. Não somente pelas palavras utilizadas, como também pelo ritmo

da frase, observa-se uma relação de causa (boa qualidade do livro) e conseqüência (ele está

sendo filmado). Por extensão, cria-se a expectativa de que o filme também será bom. Essa

expectativa apóia-se, ainda, na revelação do diretor que o filma. Seu nome somente está aí,

pois se trata de alguém reconhecido no universo do cinema, buscando-se, assim, que o

público, a partir da memória, do conhecimento construído nessa área, também o reconheça e,

em o reconhecendo, elabore conceitos positivos tanto em relação ao livro como ao filme.

O uso do gerúndio “está sendo filmado” dá conta de algo que acontece no momento

em que aquela edição está disponível para a compra. Essa informação – que diz do presente –

tem um valor de futuro, exatamente pela utilização do gerúndio que possui um aspecto verbal

que se caracteriza pela idéia de um presente dinâmico, que se projeta em direção ao depois.

Por exemplo, se se afirma “eu filmo”, tem-se o presente do indicativo que tanto pode dar a

idéia de uma ação que se realiza no momento em que se afirma, quanto a idéia de algo que se

faz, não necessariamente no instante em que é pronunciada. Já “está sendo filmado” não gera

essa dubiedade: trata-se de uma ação que se realiza naquele momento e que gera a perspectiva

de que terá continuidade até quando se dê por encerrado o filme. Assim, além de afirmar, o

enunciado antecipa que o filme, talvez, em breve, estará em exibição. Ele funciona como uma

espécie de promessa a ser cumprida, que é procedimento comum do discurso publicitário.

Concomitantemente, esse enunciado tem força persuasiva, pois atua no público de

modo a querer dizer: “leia o livro antes”. Promete-se o filme, mas, antes, se oferece a

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oportunidade de ler o livro (e, para isso, comprá- lo). Essa lógica é diferente das que foram

vistas nos exemplos anteriores. Naqueles, a obra adaptada, que circulou ou está circulando, é

tomada como referência para persuadir o público. Aqui a obra ainda está sendo adaptada.

Considerado o texto em seu conjunto, as funções referencial e expressiva estão

claramente definidas. Contém informações sobre autor e obra. O epidêitico se manifesta na

quantidade de adjetivos que qualificam a obra positivamente. No entanto, o texto se mostra

deliberativo, uma vez que a função conativa se produz a partir das informações prestadas e,

especialmente, dos elogios à obra. Ou seja, agir sobre o público de modo a persuadi- lo a

comprar o livro. Tem-se, desse modo, a presença do discurso publicitário em meio ao discurso

extratextual.

5. FLORADAS NA SERRA

Dinah Silveira de Queiroz teve a primeira edição de seu romance Floradas na serra

lançada em 1939, pela José Olympio, obtendo, conforme Hallewell (2005, p. 446), “o prêmio

Antônio de Alcântara Machado da Academia Paulista de Letras”. Face ao sucesso, “teve uma

reimpressão no mesmo mês do seu lançamento e outra no começo do ano seguinte”.

Posteriormente, conforme Ismael Fernandes (1997, p. 249 e 376), em 1981, pela TV Cultura,

Figura 32: quarta capa do livro Floradas na serra Arquivo do autor

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e, em 1991, pela TV Manchete, ele foi adaptado, nas duas vezes, por Geraldo Vietri. Antes,

em 1954, conforme Antonio Leão da Silva Neto (2002, p. 356), fora adaptado para o cinema

em roteiro de Fábio Carpi e sob a direção de Luciano Salce. Todas as adaptações foram

exibidas com o mesmo título do romance. Também, em 1954, era lançada a sétima edição do

romance que traz, em sua quarta capa, enunciados verbais e não-verbais referentes ao filme

[fig,32].

Observando-se a reprodução aqui colocada, tem-se a impressão de que se trata de uma

página jornal e não a quarta capa de um livro, uma vez que se nota grande semelhança com os

procedimentos adotados nos jornais: a foto- legenda, caracterizada pela imagem e, sob ela, um

enunciado verbal que a explica ou a descreve. Se, porém, for retirada a legenda, a imagem se

assemelha a um cartaz de divulgação do filme [fig. 33].

A legenda informa que aquela imagem refere-se a uma cena do filme em que Cacilda

Becker contracena com Jardel Jercolis Filho. Não se esconde, portanto, que se trata de algo

externo ao livro, não se pretende dizer algo por outra coisa. Há muitas referências que

caminham nesse mesmo sentido: artista, tela, Vera Cruz, direção, Luciano Salce. O que gera

ambigüidade é a chamada da foto: “‘Floradas na serra’ na tela”. Como o filme recebeu o

mesmo nome do romance, pode estar significando o título da obra adaptada. Porém, como se

encontra na quarta capa do livro, pode corresponder ao seu título. Diante disso, por sua

localização, entende-se que esse enunciado apresenta lógica semelhante àquela observada em

análises anteriores: qualifica-se positivamente o livro por meio de sua associação ao filme.

Fig.33: cartaz do filme Floradas na serra Fonte: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/floradas-na-serra/floradas-na-serra-poster01.jpg. Acesso em 15 janeiro 2007

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Essa compreensão se reforça pela menção aos nomes dos atores, do diretor, da companhia que

produziu o filme e pelo adjetivo grande com que se enaltece a atriz.

A imagem, por sua vez, exerce grande atração sobre o público, quer seja pelo espaço

que ocupa, quer seja pela presença de atores, mas, principalmente, pelo jogo de luz e sombra

que enfatiza os rostos dos personagens. Traçando-se uma diagonal entre o canto superior

esquerdo e o inferior direito, pode-se verificar que os rostos situam-se no centro dessa

diagonal, portanto num dos pontos de ênfase visual daquele espaço. Dessa maneira,

evidencia-se a função fática: tentar despertar a atenção do público. A expressão dos rostos e o

jogo de luz e sombra e o apelo emocional produzem um efeito estético que também atrai. Pela

função poética, essa cena configura-se como convite a que o público tente compreender o que

acontecia no instante em que a cena se fixou naquela imagem.

Enquanto a legenda persuade pela relação de boa qualidade que se atribui ao livro,

tomando-se a obra adaptada como referência, a imagem participa desse raciocínio como uma

prova do argumento subentendido na legenda. Sua participação se dá pela metonímia, a cena

mostrada é uma parte do filme, porém destacada por sua força estética e sua atratividade,

representa o filme em seu todo. Torna-se possível, então, completar a lógica que leva à

persuasão: se essa cena é bonita, então o filme deve ser bom. E se o filme é bom, então o

romance que o inspirou deve ser também. Compre o livro!

Embora o conjunto enunciado verbal e não-verbal se aproxime do formato foto-

legenda, típico do discurso jornalístico, sua inserção na quarta capa do livro configura-se

como discurso publicitário inscrito no gênero discursivo extratextual, e somente está aí porque

o editor entendeu haver uma boa razão para associar livro e filme: persuadir o público a se

interessar pelo livro e a comprá- lo.

6. A ESCRAVA ISAURA

A telenovela Escrava Isaura, escrita por Gilberto Braga, segundo Ismael Fernandes

(1997, p. 203), constituiu-se num dos maiores sucessos da TV Globo e um dos seus “maiores

produtos de exportação”. Segundo o Dicionário da TV Globo (2003, p. 72), até o ano de

2002, ela já havia sido vendida para cerca de 80 países. Tanto que, passados mais de trinta

anos de sua exibição em 1976, a atriz Lucélia Santos ainda é conhecida nos mais diversos

pontos do mundo, especialmente na China. Escrito por Bernardo Guimarães, o romance A

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escrava Isaura é típico do Romantismo brasileiro e sua primeira edição é de 1875. A edição

que se apresenta [fig. 34 e 35] é de 1976, publicada pela editora Bels.

Ao se deparar com a primeira e a quarta capas desse livro, tem-se a impressão de que

se trata de uma revista exposta em uma banca de jornal. Na primeira capa, uma foto do rosto

da atriz ocupa quase todo o espaço. Acima, o título do livro em que se destaca o nome da

personagem. Sob a foto, no canto inferior à direita, há um círculo vermelho cortado por uma

faixa diagonal branca em que está inserido, em tipos pretos, o enunciado “COM FOTOS”. No

canto inferior à direita, vem o nome da atriz, sob ele, a identificação da emissora que exibia a

telenovela naquele momento e, mais abaixo, a identificação do autor e a palavra “original”.

A quarta capa está dividida em quatro retângulos: no superior, à esquerda, a mesma

foto da primeira capa em tamanho menor; no superior, à direita, anuncia-se uma promoção;

no inferior, à esquerda, o título da telenovela; e no inferior, à direita, outra foto da atriz. Essa

regularidade é quebrada em dois momentos: no centro, o nome da atriz, debaixo do qual se

escreve “estrela de” remetendo para o título da telenovela; na parte inferior, o enunciado “um

clássico em novela da TV” corta os dois retângulos.

A elaboração desse conjunto emprega, de modo reiterativo, a função fática, ou seja,

quase todos os enunciados foram produzidos com o objetivo de atrair o público. O apelo

Figura 35: quarta capa do livro A escrava Isaura Arquivo do autor

Figura 34: primeira capa do livro A escrava Isaura Arquivo do autor

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visual recai sobre a imagem da atriz, que surge de forma reiterada, bem como pela construção

gráfica em que se notam tipos de grande tamanho, destacados pela cor vermelha. Já os

enunciados verbais se caracterizam por um campo semântico comum à televisão: novela, TV,

original, estrela, em que novela e TV e o nome da atriz são reiterados. Esses elementos, a

expressão “com fotos” e a promoção (“vale de Cr$10,00”) completam o quadro a que se

poderia denominar estilo revista popular semelhantes àquelas que tratam de assuntos

relacionados à televisão e, em especial, telenovela.

Por outro lado, tem-se a impressão de que predomina a função referencial, em face da

quantidade de informações presentes em ambas as partes da capa. Porém, essas informações

ficam sufocadas pelo desejo de despertar atenção. E, mais ainda, pelo discurso publicitário

cujo ponto máximo é o anúncio promocional localizado na quarta capa. Mas que se encontra

também na repetição, que como se viu anteriormente, é uma das características desse

discurso. Esse apelo publicitário é tão marcante que o gênero discursivo extratextual quase

que desaparece: será mesmo um livro? Ou será uma revista? Em que medida se está vendendo

a obra de Bernardo Guimarães? Seu nome, quase escondido. O título de seu livro surge num

esforço para que se transforme no título da telenovela.

7. CLEO E DANIEL

Em 1966, Roberto Freire publicou a primeira edição de Cleo e Daniel, pela

Brasiliense. Quatro anos depois, 1970, o filme Cleo e Daniel era exibido nos cinemas com

direção do próprio Roberto Freire que também elaborou o roteiro em companhia de Humberto

Pereira (SILVA NETO, 2002, p. 195). Ainda em 1970, a Brasiliense publicou a quinta edição

do romance [fig.36 e 37] em que se encontram imagens que se referem à obra adaptada.

A primeira e quarta capas desta edição apresentam-se coesas em virtude do contraste

claro/escuro em que foram construídas. Na primeira, é possível identificar-se, no alto, o título

da obra e, logo abaixo, o nome do autor. Abaixo e dominando quase todo o espaço, há a

imagem de dois rostos em perfil e voltados para o lado direito. Pela ordem como os rostos

estão dispostos – acompanham a ordem dos nomes do título –, pode-se identificar o rosto

feminino, em primeiro plano, como sendo o de Cleo; enquanto, o masculino, refere-se a

Daniel. No canto inferior, à direita, informa-se que se trata da quinta edição. Nesse mesmo

local, pode-se notar que a parte que corresponde ao ombro da figura feminina atravessa a

lombada e ocupa parte do canto inferior direito da quarta capa. Enquanto na parte superior,

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predomina o claro em contraste com os tipos em preto; na imagem, predomina o escuro ao

qual se contrasta o rosto feminino iluminado. O rosto masculino encontra-se quase que

totalmente na sombra.

Na quarta capa, também a imagem ocupa boa parte do espaço e, nela, as duas figuras

podem ser reconhecidas como Cleo e Daniel. Aqui, além do contraste entre claro/escuro,

acentua-se o contraste entre as figuras. A feminina ocupa a porção direita, o seu rosto

iluminado se destaca dentro da moldura negra formada pelos cabelos e, no rosto, acentua-se o

sorriso da personagem. De costas para ela, de Daniel vê-se parcialmente o seu perfil, o

restante de seu corpo assemelha-se a uma mancha negra formada pelos cabelos e pela camisa

que ele veste. No canto inferior esquerdo, é possível perceber que ambos estão de mãos dadas.

No canto inferior direito, sob o corpo de Cleo, há um enunciado verbal, assinado pelo autor,

que faz breve apresentação de seu romance.

À primeira vista, parece tratar-se de uma construção comum à maioria das capas de

livros, nas quais se procura facilitar o reconhecimento de duas das informações que dela

devem constar: autor e título. As imagens parecem ter sido escolhidas para apresentar as

personagens principais do romance ao público. Desse modo, evidencia-se a presença da

Figura 36: primeira capa do livro Cleo e Daniel Arquivo do autor

Figura 37: quarta capa do livro Cleo e Daniel Arquivo do autor

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função referencial. Porém, no conjunto, o que se acentua é o jogo entre luz e sombra e a

disposição das figuras humanas, produzindo-se um efeito estético que, além de caracterizar a

função poética, atrai a atenção do público, função fática, portanto. A soma desse poder de

atração aos efeitos estéticos – que parecem conferir qualidade à obra – por sua vez,

caracteriza a função conativa, já que age sobre o público no sentido de persuadi- lo a comprar

o livro. Até aqui a análise parece indicar que a elaboração da capa obedeceu somente às

condições exclusivas do discurso extratextual em que o discurso publicitário está presente,

mas de forma diluída.

Porém, sabendo-se que este livro foi publicado no mesmo ano em que sua adaptação

era exibida nos cinemas, levantam-se algumas questões: como foram escolhidas as figuras

humanas presentes na capa? Seriam modelos selecionados de acordo com as características

apresentadas pelas personagens principais do romance? Ou seriam a atriz e o ator que, no

filme, representaram os papéis de Cleo e Daniel? Destas duas últimas questões, para a

segunda, a resposta é positiva. Sim, a Cleo presente na capa do livro é a atriz Irene Stefania

que, no filme, representou esse papel e o Daniel da capa é o ator Chico Aragão que

representou esse personagem no filme.

Estas constatações permitem responder à primeira questão. As figuras humanas foram

selecionadas tendo em vista a memória que o público tem do produto derivado do romance.

Assim, ele tem condições de estabelecer conexões entre as duas obras. Trata-se de uma

estratégia editorial que, em lugar de o livro informar que este romance “deu origem” ao filme,

deixa essa tarefa a cargo do público. Cabendo a ele, também, desenvolver a lógica de que o

livro é bom, por isso foi para as telas de cinema e, portanto, sentir-se persuadido a adquirir a

obra. Dessa forma, o discurso publicitário se faz presente.

No entanto, ele transita na ambigüidade gerada pela falta de um enunciado verbal que

possa explicitar, ou ao menos, indicar que as imagens de Cleo e Daniel correspondem às

personagens do filme e não às do romance. Apesar de o apelo publicitário se fazer de forma

ambígua e de ser construído pelo público, compreende-se que foi ele que orientou a

elaboração desta capa. Dessa maneira, eliminando-se a impressão anterior de que o discurso

publicitário participa do gênero discursivo extratextual de forma diluída, é possível afirmar

que ele está ali inserido de modo mais explícito.

Page 25: CAPÍTULO III DO PARATEXTO OU NÃO NO S ENUNCIADOStede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/1625/9/Capitulo3.pdf · 88 CAPÍTULO III – DO PARATEXTO OU NÃO NO S ENUNCIADOS O Autor,

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8. DAS CONCLUSÕES A QUE SE CHEGOU

Páginas atrás, ao final da análise do enunciado verbal inserido na primeira capa de

Sombras de julho, indagou-se se ele poderia ser reconhecido como paratexto. A resposta ficou

em suspenso para que outros enunciados pudessem ser analisados. É chegado, então, o

momento de se dar respostas. Todos os enunciados verbais e/ou não-verbais analisados

constituem-se em elementos paratextuais? A resposta tomará como referência os critérios

estabelecidos por Genette para que um paratexto possa ser reconhecido: substância,

localização, temporalidade, pragmática e função.

Quanto à substância, todos os exemplos analisados materializam-se como enunciados

verbais ou não que se oferecem à leitura do público e, neste caso, à análise. Por si só, eles não

são o discurso, mas participam de um discurso: o gênero discursivo extratextual, uma vez que

se encontram dispostos em capas de livros. Com isso, já se dá conta do segundo critério: o da

localização.

As condições em que aqueles enunciados foram elaborados revelam que, quanto à

temporalidade, ocorreram, simultaneamente, ao momento em que a obra adaptada estava em

exibição no cinema ou na televisão. Vê-se, portanto, que se trata de momento conveniente não

somente para a nova publicação, como também para associá-la ao produto que dela derivou.

O único que foge a isso é o enunciado presente em O que é isso, companheiro?, pois, no ano

em que aquela edição fora publicada, o filme ainda estava sendo produzido. Em todo o caso,

essa condição favoreceu para que essa informação fosse colocada no livro.

Todos os enunciados analisados originam-se de alguém que o produz para o outro.

Como a capa de um livro pertence ao peritexto editorial, a responsabilidade de produção dos

enunciados é do editor. Ainda que outros profissionais tenham participado do processo de

elaboração, a decisão final quanto ao que se colocar ou não em uma capa de livro é tomada

pelo editor. Em suas decisões, ele deve ter em conta que toda a construção de um livro tem

um destinatário: o público. Assim, aqueles enunciados fazem parte de uma ação estratégica

que tem por finalidade agir sobre o público.

No entanto, estes quatro critérios, embora necessários, não são suficientes para

reconhecer os enunciados analisados como paratextuais. Falta verificar que função eles

exercem: para que foram produzidos? O paratexto é um elemento dependente, auxiliar e que

está a serviço do texto de tal modo que este possa ser lido de forma mais pertinente pelo

leitor. Decorre daí que todo e qualquer enunciado presente em uma capa de livro (mas poderia

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ser em qualquer parte do livro) para ser reconhecido como paratexto deve atender a dois

fatores:

1. ter em conta o texto principal como sua razão de ser, estar a serviço dele, ou seja, os

enunciados devem ser elaborados tendo como referência, como motivação, o texto

principal e

2. daí decorre a sua função: eles devem ter a finalidade de fazer com que o leitor possa

ler aquele texto de forma adequada.

Estes dois fatores, para Genette são fundamentais. Além de colocá-los na abertura de

seu livro Seuills, o autor os retoma na conclusão de maneira expressiva. Após ter apresentado

as diferentes maneiras de como o paratexto pode se manifestar e em que locais, afirma

Genette (2002, p.410-411) que, dentre as propriedade de um paratexto, a

mais essencial [...], teremos expressado por várias vezes, mas eu gostaria de finalmente insistir, é o caráter funcional. Em que pese qualquer intenção estética que queira ali se investir, o paratexto não tem como objetivo principal “fazer bonito” em torno do texto, mas antes assegurar-lhe um fim em conformidade com os desejos do autor.

Genette (2002, p. 411) entende que o paratexto, colocado à margem, entre o fora e o

dentro de um livro, “intervém entre a identidade ideal, e relativamente imutável do texto e a

realidade empírica (sócio-histórica) de seu público”. Fica claro, assim, o caráter auxiliar de

que se deve revestir um paratexto. Ele deve ajudar “o leitor a passar sem muita dificuldade

respiratória de um mundo a outro, operação por vezes delicada, sobretudo quando o segundo

encontra-se em um mundo ficcional”. Por aí, nota-se que o autor, considerando o texto

principal como a própria essência do livro, quer preservar o sentido original com que o autor o

escreveu. Nada deve se interpor entre o leitor e o texto. E se se interpuser algo, que o seja de

forma a garantir que a travessia do leitor, da realidade em que vive para o mundo trazido pelo

texto principal, possa se fazer de modo a não alterar este mundo.

Após estas considerações, torna-se possível dar resposta à questão: todos os

enunciados verbais e/ou não-verbais analisados constituem-se em elementos paratextuais?

Principia-se pelo enunciado presente na quarta capa de O que é isso, companheiro?: “Relato

lúcido, irônico, comovente, o livro se transformou num verdadeiro clássico do romance-

depoimento brasileiro e está sendo filmado pelo diretor Bruno Barreto” [grifo nosso].

Considera-se que este pode ser reconhecido como paratexto, uma vez que a referência ao

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filme, como ainda não existe, não produzirá alterações na leitura do texto principal. Além

disso, essa informação complementa uma frase que elogia o texto principal e o tem como

ponto de partida. Claro que gera uma expectativa tanto em relação ao livro quanto ao filme. O

público poderá sentir-se motivado a comprar o livro antes que o filme entre em cartaz.

Aliás, essa parece ser a estratégia: que a menção ao filme favoreça a venda do livro.

Tem-se, então, uma informação (função referencial) que se insere em uma parte do texto que

se caracteriza como epidêitico, o emprego da função expressiva, pois enaltece o texto de

Fernando Gabeira. Considerado em seu todo, o texto colocado na quarta capa do livro faz

parte de uma pragmática em que o editor, tomando o texto principal como seu ponto de

partida (referências ao autor, ao contexto da obra e às suas qualidades) age sobre o público de

modo que este se sinta persuadido a comprar o livro por um ou todos os argumentos presentes

nesse texto.

Em relação aos demais enunciados analisados afirma-se que não podem ser

reconhecidos como paratexto. Em primeiro lugar, porque a produção desses enunciados tem

como ponto de partida a obra adaptada. Uma das evidências está, precisamente, nos

enunciados não-verbais analisados: as imagens de Camila Morgado (em Olga); de Cacilda

Becker e Jardel Filho (em Floradas na serra); de Lucélia Santos (em A escrava Isaura) e as

de Irene Stefania e Chico Aragão (em Cleo e Daniel) colocadas nesses livros originam-se das

obras adaptadas e não do texto principal do livro. Outra evidência encontra-se nos enunciados

verbais que, embora façam alguma menção ao texto original (livro, romance) – no caso de A

escrava Isaura, nem isso ocorre –, associaram o lançamento a algo que está fora do livro, fora

do próprio romance. Apóiam-se nas obras adaptadas, buscam essas obras como referência.

Seja pela menção ao gênero – minissérie, novela –; ao veículo ou ao nome da emissora – TV,

TV Globo –; ao formato – filme – ou ao nome do diretor do filme; seja porque, como se viu

nas análises, esses enunciados verbais mais qualificam positivamente a adaptação do que o

texto principal do livro.

Ainda deve ser lembrado que esses enunciados verbais e/ou não-verbais foram

construídos tendo como referência a memória do público, ou seja, a adaptação do livro ou já

foi exibida ou está em exibição no momento em que a nova edição é lançada. Será que o fato

de alguém ter assistido à minissérie ou ao filme propiciará que o comprador do livro faça uma

leitura mais pertinente do romance? Livro é produto muito diferente de filme e de minissérie,

quanto à forma como são produzidos, à linguagem, à forma de aquisição e de leitura. Assim,

depois de ter assistido ao produto derivado, ou, se não assistiu, de ter acompanhado notícias e

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propagandas relativas à minissérie ou ao filme, o público constrói conhecimentos referentes

àquelas obras e não ao livro.

A este argumento poder-se-ia objetar: se o leitor constrói esses conhecimentos, sua

leitura já não é feita sob a influência deles? E isso por si só não tornará a leitura impertinente

aos desejos do autor? Sim, claro que sim. Porém, sobre isso, o editor não tem o que fazer. O

filme, a minissérie, a telenovela, as notícias, as propagandas são elementos que fogem ao

controle do editor. Mas, em relação ao livro, ele tem o que fazer, ele tem controle sobre a sua

produção e é o responsável pela forma como o texto principal será apresentado em um livro. E

a questão é exatamente essa. Em sua estratégia para persuadir o público a comprar um livro,

ao colocar nele esses tipos de enunciados, reitera a interferência externa, ou seja, legitima uma

ação que provoca uma le itura não pertinente ao texto. Pode-se considerar uma ação que busca

o público, porém não favorece o leitor.

Outra objeção poderia ser: o leitor poderá ler o livro e compará- lo ao filme, à

telenovela ou à minissérie para ver as diferenças ou as semelhanças. Será que essa leitura

atenderá aos desejos do autor? Será uma leitura pertinente? Ora, o autor não escreveu seu

texto com esse objetivo. Pode-se até dizer que muitos autores, atualmente, produzem seus

textos pensando, previamente, que poderão virar filmes, virar minisséries. Até Bernardo

Guimarães? Em 1875, ele jamais imaginaria que, 101 anos depois, a escrava Isaura teria o

rosto de Lucélia Santos. O mesmo poder-se- ia dizer de Dinah Silveira de Queiroz. Será que

ela escreveu pensando em Cacilda Becker? Em Mauro Mendonça que representou Dom Brás

na minissérie A muralha? E no caso de Olga, a biografia de Olga Benário?

De todos os livros analisados, o que poderia levantar mais dúvida é Cleo e Daniel,

romance escrito por Roberto Freire. O filme Cleo e Daniel tem roteiro elaborado por Roberto

Freire e também foi dirigido por ele. Então, as imagens de Irene Stefania e de Chico Aragão

deveriam ser consideradas paratexto? Não. No momento de criação do romance, as

personagens não foram construídas com base nas características desses atores. Mas o autor do

livro é o mesmo do filme! Até esse argumento não encontra amparo. A autoria de um

romance, mesmo que possa receber auxílio de outras pessoas, é de responsabilidade do autor.

Já filme, dadas as condições de sua produção, é obra coletiva da qual roteirista e diretor

participam juntamente com iluminadores, atores, atrizes.

Se esses enunciados não podem ser reconhecidos como paratexto, o que são eles?

Antes, porém, para ampliar a discussão, são apresentados outros livros que trazem enunciados

associados à obra adaptada de forma a se perceber algumas variações que ocorrem em suas

construções. Alguns confirmam os resultados obtidos. Outros trazem questões diferentes que

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merecem uma reflexão maior. Independentemente das diferenças, todos os enunciados que

serão vistos a seguir confirmam a presença do discurso publicitário em meio ao extratextual.

9. DAS REGULARIDADES E DOS DESVIOS

O romance Tieta do Agreste, conforme Ismael Fernandes (1997, p. 349), foi adaptado

para a televisão por Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzohn e Ricardo Linhares, no gênero

telenovela e com o título de Tieta. Ela foi exibida pela TV Globo no período entre 14 de

agosto de 1989 e 31 de março de 1990. No mesmo em que a telenovela era exibida, a Record

publicou a 21ª edição do romance de Jorge Amado [fig. 38]. Porém com uma sensível

diferença no título: sua primeira edição, de 1977, tinha como título Tieta do Agreste e, nesta

de 1989, ele foi reduzido para Tieta. No alto da primeira capa, sob o título, vem o enunciado

“A grande novela da TV”. A disposição gráfica em que título e enunciado se encontram

permite construir um slogan: Tieta. A grande novela da TV., muito semelhante a Volkswagen:

você conhece. Você confia., ou, Hellmann’s. A verdadeira maionese. Poderia ser também uma

Figura 38: primeira capa do romance Tieta Arquivo do autor

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exclamação: A grande novela da TV!. Mas, e o livro, hein? Ah! Sim, é de Jorge Amado. E o

seu nome destaca-se no alto da primeira capa em tipos vermelhos e grandes. Mas essa

primeira capa é quase toda ocupada pela imagem da atriz Betty Faria que representou a

personagem Tieta na telenovela.

Verifica-se que neste livro são repetidos procedimentos semelhantes àqueles

analisados anteriormente: enunciado verbal no estilo slogan e a presença da atriz. E, portanto,

não se constituem elementos paratextuais. Porém, a mudança do título do livro, não somente

na primeira capa, como também na lombada, ganha uma significativa importância. Além de

ser “A grande novela da TV”, é o título da telenovela que se encontra estampado no livro. O

título de um livro é um paratexto que se localiza no peritexto editorial (GENETTE, 2002, p.

11) e tem como principal função, segundo Genette (2002, p. 85), identificar o livro. Assim,

essa alteração mudará a sua condição de paratexto? Nesse caso, não, uma vez que, ainda

mesmo alterado, não se deixou de identificar a obra. Ressalte-se que, em edições posteriores,

o título original Tieta do Agreste retornou à primeira capa. Quanto a essa questão de mudança

de titulo, mais à frente haverá dois casos mais intrigantes. Antes, porém...

Figura 39: Primeira capa de O que é isso, companheiro? Arquivo do autor

Figura 40: Cartaz do filme O que é isso, companheiro? Fonte: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/o-que-e-isso-companheiro/o-que-e-isso-

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O que é isso, companheiro?, conforme Antonio Leão da Silva Neto (2002, p. 677), foi

adaptado para o cinema com roteiro de Leopoldo Serran e direção de Bruno Barreto, no ano

de 1997. A Companhia das Letras lançou, em 1998, a segunda edição da obra de Fernando

Gabeira [fig. 39]. Ou seja, seis anos antes da edição do livro Olga, analisado anteriormente,

observa-se que a estratégia adotada em O que é isso, companheiro? fora a mesma. Assim, os

enunciados que se relacionam ao filme não são considerados paratexto. O mesmo enunciado

(O livro que...) alterando-se apenas o nome do diretor. Embora os tipos sejam menores em

relação àqueles utilizados em Olga, ganham destaque pelo uso da cor vermelha. O espaço em

que foi inserido também lhe dá ênfase: no centro e logo acima do título da obra. O enunciado

não-verbal, por sua vez, foi produzido a partir do cartaz do filme [fig. 40], mas com uma

diferença em relação a Olga: as imagens com as figuras que, no cartaz estão no centro, na

primeira capa do livro, foram substituídas pelo título.

Já, em Presença de Anita...

No Dicionário da TV Globo (2003, p. 372), informa-se que, entre 7 e 31 de agosto de

2001, foi exibida a minissérie Presença de Anita, escrita por Manoel Carlos. Nesse mesmo

ano, o romance de Mário Donato era lançado pela Editora Objetiva [fig. 41]. No alto da

primeira capa, o nome do autor, logo abaixo, o título e abaixo deste, separado por uma linha

vermelha, o enunciado “O livro que inspirou a minissérie da TV”. Por sua evidência, entende-

se que não será necessário explicá- lo. Ou melhor, ele já está analisado.

Figura 41: Primeira capa de Presença de Anita Arquivo do autor

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Com direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, em 1984, era exibido o filme

Memórias do Cárcere (SILVA NETO, 2002, p. 515). Na 21ª edição do livro Memórias do

Cárcere, de Graciliano Ramos, publicado pela Record, em 1986 [fig. 42], é o ator Carlos

Vereza, que interpretou Graciliano Ramos no filme, quem surge no centro da primeira capa.

Não se trata de reprodução de cartaz da obra cinematográfica, não há qualquer enunciado

verbal que apóie a imagem. Esse apoio encontra-se na quarta capa [fig. 43], no canto inferior

esquerdo. E, no alto à esquerda, há uma foto de Graciliano Ramos. À frente da foto, reproduz-

se o título e, sob ele, informa-se que o filme foi premiado no Festival de Cinema de Cannes,

em 1984. Logo abaixo, traz a relação de obras do autor. Os enunciados que foram produzidos

a partir de referências ao filme não constituem elementos paratextuais. O que chama a atenção

é a utilização da foto do ator e não a do autor. Como estratégia, guarda semelhança àquela

vista em Olga. Porém, o estranhamento é maior, pois essa substituição se dá em um livro

autobiográfico.

Figura 42: Primeira capa de Memórias do Cárcere Arquivo do autor

Figura 43: Quarta capa de Memórias do Cárcere Arquivo do autor

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A figura [44] reproduz a quarta capa do romance A muralha, edição de 1969,

publicada pela editora Nova Fronteira. Nesse período, a TV Excelsior exibiu a telenovela A

muralha, em adaptação realizada por Ivani Ribeiro (FERNANDES, 1997, p. 410). A

estratégia é semelhante à que foi empregada em Floradas na Serra, edição de 1954: o uso, na

quarta capa, do estilo foto-legenda, característico do discurso jornalístico, que não se constitui

como paratexto.

Há, no entanto, um fato que relaciona os dois livros. Em 2004, a editora Record

publicou uma edição de Floradas na serra [fig.44] em que, na primeira capa, logo abaixo do

nome de Dinah Silveira de Queiroz, se insere o seguinte enunciado: “autora de A muralha”.

Como já se viu, em 2000, a TV Globo havia apresentado a minissérie adaptada a partir do

romance A muralha. Esse enunciado, então, foi produzido com base na obra de Dinah? Ou foi

por influência da minissérie? A distância de quatro anos, entre a edição do livro e a exibição

da minissérie, pode fazer pensar que foi o romance A muralha. Porém, fica-se na incerteza.

Mais para o final desta seção, apresenta-se o caso do romance Sangue de Coca-Cola. A

estratégia é semelhante a esta e será discutida com mais profundidade.

Figura 44: Quarta capa de A muralha Arquivo do autor

Figura 45: Primeira capa de Floradas na serra Arquivo do autor

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O romance Memórias de um gigolô, de Marcos Rey, teve sua primeira edição lançada

em 1968, pela editora Senzala. Em 1970, foi adaptado para o cinema com roteiro e direção de

Alberto Pieralisi (SILVA NETO, 2002, p. 515). A TV Globo, em 1986, conforme o

Dicionário da TV Globo (2003, p. 32), exibiu a minissérie Memórias de um gigolô, em

adaptação feita pelo próprio autor em parceria com Walter George Durst. Ainda em 1986, foi

publicada nova edição do romance, pela editora Ática, que traz, na primeira [fig.46] e na

quarta [fig. 47] capas, a imagem do ator Lauro Corona que, na minissérie, interpretou o

personagem Mariano. No canto inferior esquerdo, da primeira capa, repete-se a fórmula: “O

livro que inspirou a série de TV”. A diferença aqui é o gênero televisivo ser designado como

série. Todos esses enunciados apontados não são paratextuais.

A motivação para apresentar este exemplo não partiu dos recursos empregados, mas

para evidenciar que a presença de enunciados relacionados à obra derivada tende a

desaparecer dos pontos de maior visibilidade, deslocando-se para espaços internos do livro ou

até mesmo desaparecer por completo. Certo que não é possível mensurar em quanto tempo

isso poderá ocorrer, visto que essa possibilidade estará condicionada ao potencial publicitário

Figura 47: Quarta capa de Memórias de um gigolô Arquivo do autor

Figura 46: Primeira capa de Memórias de um gigolô Arquivo do autor

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que a obra adaptada, emissora, diretor (a), ou ator/atriz ainda possuam depois de encerrada a

exibição e que o editor considere significativo, em sua estratégia de persuasão junto ao

público, associar uma ou mais daquelas informações ao lançamento de nova edição do livro.

Figura 48: Primeira capa de Memórias de um gigolô edição 2003 Arquivo do autor

Figura 49: Quarta capa de Memórias de um gigolô edição 2003 Arquivo do autor

Figura 50: Orelhas esquerda e direita de Memórias de um gigolô edição 2003 Arquivo do autor

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Como se pode ver na primeira [fig.48] e quarta capas [fig. 49] da edição de 2003,

lançada pela Companhia das Letras, não foram utilizadas referências oriundas da minissérie.

Porém, nas orelhas [fig. 50], há texto assinado por Carlos Maranhão que menciona o gênero

da adaptação (minissérie), a emissora (TV Globo) e atriz e atores que dela participaram

(Bruna Lombardi, Lauro Corona e Ney Latorraca). Vê-se que também se refere ao filme, mas

de forma discreta (“para o cinema”). A ênfase nas informações relacionadas à adaptação para

a TV mostra que, decorridos quinze de sua exibição, o gênero, a emissora e os artistas ainda

são entendidos, pelo editor, como necessários à ação de tentar persuadir o público a comprar

este livro. Será que é só coincidência a forma como, nas orelhas, essa parte do enunciado vem

disposta? Afinal, as livrarias, de há algum tempo, passaram a expor os livros em balcões de

modo a dar visibilidade às orelhas.

Se em Memórias de um gigolô as referências deslocaram-se no espaço do livro,

fenômeno diferente aconteceu com Infância dos Mortos, de José Louzeiro, cuja primeira

edição foi lançada pela Record, em 1977. Conforme Antonio Leão Silva Neto (2002, p. 645),

esse livro foi adaptado para o cinema com o título de Pixote, a lei do mais fraco em 1980,

com direção de Hector Babenco, que também elaborou o roteiro em parceria com Jorge

Duran. Depois disso, o título original do livro passou a incorporar o nome do personagem em

sua primeira capa e, de formas variadas.

Figura 51: Primeiras capas de edições diferentes de Infância dos mortos após o filme Pixote – a lei do mais fraco Foto do autor

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Na foto [fig. 51] apresentam-se à esquerda, a edição de 1984, publicada pela Abril

Cultural, em que o destaque é para o título original e Pixote está entre parênteses. A da

esquerda, é a sétima edição, de 1992, publicada pela Global Editora, e o nome Pixote vem

com maior destaque e, além disso, incorpora a imagem de Fernando Ramos da Silva, ator que

interpretou aquele personagem no filme. A editora Ediouro publicou nova edição desse livro

em 1997 [a que está no centro da foto] e, assim, vinte anos depois, o nome Pixote parece ter

sido incorporado ao título original. Isso pode ser observado também nas lombadas [fig.52] de

cada um dos livros: em 1984, Infância dos Mortos; em 1992, Pixote: infância dos mortos e,

em 1997, somente Pixote. Assim, provavelmente, essa obra de José Louzeiro se manterá

assim, identificada como Pixote, de forma que o título original permanecerá como se fosse um

subtítulo, um complemento.

Figura 52: Lombadas de edições diferentes de Infância dos mortos após o filme Pixote – a lei do mais fraco Foto do autor

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Por falar em lombadas...

Figura 53: Lombadas dos livros Videiras de Cristal e A paixão de Jacobina Foto do autor

Ao ver as duas lombadas reproduzidas acima [fig. 53], o público não terá dúvidas de

que está diante de duas obras diferentes do mesmo autor: Videiras de cristal e A paixão de

Jacobina, de Luiz Antonio de Assis Brasil. Já, exibindo-se a primeira capa de cada um [fig.

54], solicita-se que se olhe atentamente para a de A paixão de Jacobina.

Figura 54: Primeira capa dos livros Videiras de Cristal e A paixão de Jacobina Foto do autor

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Exatamente. Dois livros, mas o mesmo romance. Em 1990, a Mercado Aberto lançou

a primeira edição do romance Videiras de cristal. Entrou em cartaz, em 2002, o filme A

paixão de Jacobina. Em 2002, ainda, a editora Mercado Aberto publicou a sétima edição do

livro, informando, na quarta capa: “A paixão de Jacobina é a sétima edição, especial, do livro

Videiras de Cristal, comemorativa ao lançamento do filme homônimo, dirigido por Fábio

Barreto”. Explicam-se, assim, as diferenças (ou semelhanças) e explícita-se a decisão do

editor em sobrepor, ao título original, o título da adaptação. Porém, da lombada, o título

original desapareceu (caso esta edição tivesse que ser disposta em uma prateleira de uma

livraria, em que ordem alfabética ela seria colocada?).

Ficam evidentes as estratégias de persuasão, mas há uma questão não muito evidente.

As evidentes dizem respeito à associação do livro ao filme: título, tipografia e o uso de

elementos do cartaz do filme [fig. 55].

Figura 55: cartaz do filme A paixão de Jacobina Fonte: http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/paixao-de-jacobina/paixao-de-jacobina-poster01.jpg

Até aí, procedimento semelhante a outros já vistos. Porém, o título do filme faz da

ambigüidade o seu ponto de atração. Determinada parte do público, conforme seu

conhecimento de mundo e de textos em geral, poderá entender que o filme/romance é uma

história romântica, de amor, de uma mulher (Jacobina) apaixonada. Outra parte do público,

sempre de acordo com seus conhecimentos, pensará em se tratar de uma história de

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sofrimento, de suplício (à semelhança da Paixão de Cristo). Uma terceira parte, se conhecer

mais a fundo a história do Rio Grande do Sul, poderá reconhecer no título uma alusão a um

fato ocorrido no século XIX, envolvendo um grupo religioso, liderado por Jacobina Maurer.

Enfim, restará ao público, motivado por uma dessas razões exemplificadas, chegar até o

filme/livro e tomar sua decisão.

O que não é evidente, por ora, é definir se, em uma próxima edição, à maneira do que

ocorreu com Memórias de um gigolô, essas referências desaparecerão de todo o corpo do livro

ou somente de sua primeira capa. Ou, conforme o caso de Infância dos Mortos, se Videiras de

cristal voltará a ser a identificação principal ou única do romance, ou ficará auxiliar,

subordinado ao título do filme. Ou até mesmo pode desaparecer e A paixão de Jacobina

prevalecer como identificação desse romance.

Para encerrar esta parte do trabalho – até porque se deixou uma questão importante a

ser respondida: não sendo paratexto, o que são aqueles enunciados? –, é preciso ressaltar que,

independentemente, das alterações feitas em um título, ele sempre deverá ser reconhecido

como paratextual, já que identifica a obra. Mas, pode-se acrescentar, que não somente por

isso. Também porque o título tem a função de predizer algo sobre o texto principal. Ele

antecipa, prepara o leitor quanto ao que poderá ler. Se uma antologia de poemas tem por título

Sonetos, não será possível saber dos temas e dos possíveis conteúdos, porém espera-se que

todos os poemas possuam quatorze versos. Suponha-se que um livro tenha por título Um

mundo coberto de penas? Que expectativas ele geraria? Pois esse era o título que,

originalmente, Graciliano Ramos dera ao romance Vidas Secas. Conforme se pode na figura

56 (MINDLIN, 2005, p. 164).

Figura 56: Página de rosto

alterada por Graciliano

Ramos pouco antes de a

primeira edição do livro

Vidas Secas ser publicada.

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Retoma-se a questão: Se esses enunciados não podem ser reconhecidos como

paratexto, o que são eles? São textos que se inserem na capa de um livro para persuadir o

público a comprá- lo. São, por isso, enunciados característicos do discurso publicitário e que,

de forma explícita, participam do gênero discursivo extratextual. Isso, porém, ainda não

elucida a questão. Para isso, reafirma-se que o livro é um produto que, como qualquer

mercadoria, precisa ser divulgado, precisa atrair o público. Até, porque, de nada adiantaria

publicar um livro e não criar condições para que ele chegue ao público. Precisa, por isso, do

apoio do discurso publicitário. E a capa do livro participa dessa ação mercadológica.

Especialmente, a primeira capa, parte que, de imediato, se apresenta ao público.

Verifica-se, então, que, em uma capa de livro, no discurso extratextual, o discurso

publicitário pode estar presente de duas formas. Uma delas é pela colocação, na capa, de

enunciados não relacionados com o texto principal do livro. Como se viu, os enunciados que

se analisaram atraem a atenção e podem atuar a favor da venda de um livro, porém não podem

ser reconhecidos como paratextuais, pois não se considera que poderiam atuar a favor de uma

leitura mais pertinente do texto principal.

A outra forma de um discurso publicitário participar do discurso extratextual é pela

produção de enunciados oriundos da própria força do texto. Apresentou-se, anteriormente, um

trecho da obra Roteiro de Arte, de Tomás Santa Rosa em que este capista revela seu processo

de elaboração de uma capa. Para ele, é preciso conhecer o texto principal do livro, captar a

sua “atmosfera espiritual”, familiarizar-se com os personagens, saber de “seus hábitos”. Fica

claro que, para isso, é preciso ler o livro. Sua concepção de capa fo i feita em 1952.

Passados mais de cinqüenta anos, a realidade não é a mesma. Porém, a forma de se

orientar a produção de uma capa, ainda se pauta pela força do texto. Como se pode ver nas

palavras da editora Heloisa Jahn (FERLAUTO; JAHN, 2001, p. 88), para quem uma capa,

“além de ser eficaz em sua função de atrair o olhar dos possíveis leitores, deve denotar com

fidelidade texto e estilo, sendo uma apresentação inequívoca do que o leitor irá encontrar”. Ou

nas da capista Moema Cavalcanti (2005): “Durante muitos anos, eu tive que ler o livro inteiro

antes de pensar na capa. Atualmente, as editoras têm facilitado o trabalho da gente, mandam

um resumo da obra, um capítulo e dizem para que público o texto se dirige”.

Os enunciados presentes em uma capa produzida sob essas condições serão

paratextuais e, ao mesmo tempo, atenderão ao apelo publicitário, atraindo a atenção do

público para o livro e auxiliando-o na sua venda, conforme se pode notar na primeira e na

quarta capas [fig. 57 e 58] do livro Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, de

Ruy Castro, publicado pela Companhia das Letras, em 1995.

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Figura 57: Primeira capa do livro Estrela solitária Figura 58: Quarta capa do livro Estrela solitária Arquivo do autor Arquivo do autor

A primeira capa desperta a atenção graças ao apelo emocional de que a imagem está

carregada. Sua elaboração denota que, além da coerência entre biografado e a sua foto, há

coesão com o título da obra, pois a imagem como que traduz a palavra solitária. O texto da

quarta capa foi elaborado com base no tema do texto principal, destacando aspectos da vida

do jogador de futebol Garrincha e afirmando as qualidades da obra e de seu autor. Enquanto

na primeira capa o apelo publicitário se faz pela composição imagem/título, na quarta capa,

produz-se um enunciado típico do discurso publicitário em que a função conativa se dá pela

afirmação positiva sobre o produto que se vende. E todos os enunciados são paratextuais.

Antes de encerrar, apresenta-se um livro que merece uma reflexão especial é Sangue

de Coca-Cola, de Roberto Drummond, publicado pela Geração Editorial em 1986 [fig. 59].

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Figura 59: Primeira capa do livro Sangue de Coca-Cola

Arquivo do autor

Em Sangue de Coca-Cola, logo abaixo do nome de Roberto Drummond, afirma-se “O

autor de Hilda Furacão”. Porém, há dois fatos a se considerar: 1) Sangue de Coca-Cola teve

sua primeira edição publicada antes da de Hilda Furacão e 2) em 1998, quando o livro teve

nova edição, a TV Globo exibiu a minissérie Hilda Furacão, adaptada da obra de Roberto

Drummond. Os fatos indicam que, provavelmente, o que teria motivado essa estratégia tenha

sido a repercussão da obra adaptada e não o romance. As evidências são muito fortes, pois nas

orelhas, reitera-se a referência a Hilda Furacão [fig. 60]. Na orelha direita, inclusive, há uma

foto do autor com esse mesmo livro nas mãos.

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Considerando-se que a estratégia tenha sido a de se associar ao livro e não à

minissérie, haveria aí o emprego de um recurso comum usado pelos editores: trazer para a

edição de um novo livro o sucesso de vendas de uma obra anterior daquele mesmo autor com

o objetivo de atrair o público, despertando- lhe o interesse em comprar o novo livro. Nesse

caso, o enunciado é um elemento paratextual, pois atende às condições necessárias para ser

reconhecido como tal. Levando-se em conta que a decisão tenha sido tomada pela repercussão

da minissérie, buscou-se apoio em algo exterior ao livro. Então, como se viu antes, o

enunciado não poderia ser entendido como paratexto.

Está-se diante de uma questão que parece sem resposta. O conhecimento de mundo e

as evidências trazidas pelo livro permitiriam dizer que não se trata de paratexto. A resposta do

editor poderia ser que usou o livro, e seria paratexto. A ambigüidade é tanta que parece

colocar o enunciado no limite do limite (se é que existe essa região?). Talvez seja melhor

parafrasear Guimarães Rosa e criar um novo tipo de paratexto: a terceira margem do

paratexto.

Figura 60: Orelhas do livro Sangue de Coca-Cola Arquivo do autor

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10. DAS REFLEXÕES QUE SE PODEM FAZER

O autor , o editor e o paratexo – 3ª parte Mais alguns anos se passaram. O Autor ficara muito conhecido. Seus quatro livros vendiam bem. Sim, ele havia publicado mais um policial. Um dia, depois de fazer um bate-papo com alunos de um colégio, o Autor foi levado à sala dos professores. Um cafezinho. Uma água. Bolachinhas. Essas coisas a que já estava acostumado. E achava bom. Depois de sair dessas conversas, ficava morrendo de sede. Gostava muito desses encontros. Faziam-lhe perguntas interessantes. Queriam saber como ele escrevia. Dava autógrafos. Tudo muito agradável. Estava o Autor posto em seu sossego, quando um professor se aproximou, se apresentou, cumprimentou-o e começou a lhe falar de um trabalho que estava fazendo. “Inclusive o seu terceiro livro faz parte do meu corpus”. “Ah! É. E você está pesquisando o quê. As histórias policiais?” O Autor perguntou por perguntar. Estava cansado. Mas quis ser atencioso. “Na verdade, eu só estou estudando as capas”. “As capas? O livro não?” “Claro que já conheço seus livros. Você tem um jeito de escrever que gruda no leitor. O seu detetive é muito bom. Melhor que Poirot...”. “Xi, tá querendo agradar demais”. Pensou o Autor. E ficou ouvindo o professor explicar o que estava fazendo. No dia seguinte, o Autor ligou para o editor. “Você sabia que tem louco pra tudo?” “É, tem mesmo. Mas por que você tá dizendo isso?” “Ontem fui lá naquela escola...”. “E então, como foi?” “Foi muito bom. Como sempre. É muito bom esse contato com o público. Principalmente com essa meninada”. “Que bom. Mas e a história do louco?” “Então, como eu tava falando. Você sabia que tem um professor daquela escola que tá pesquisando capa de livro?” “Capa de livro?” “Pois é, capa de livro. Eu também achei esquisito, mas...” “Mas pra quê?” “Ih! É uma coisa complicada, dessas que você deve entender.” “Por quê?” “Porque... bom deixa eu ver se consigo te explicar. Aliás, ele colocou você no meio da história. Disse que é coisa de editor”. “Fala logo, o que ele quer com as capas?” “Bom, eu vou ver do que me lembro. Ele falou umas coisas de discurso... É foi isso. Disse que quando a gente fala, escreve, enfim, se comunica... Essas coisas todas.... Vou te dar um exemplo”. “Tá, mas o que isso tem a ver com a capa?” “Ele falou que tá estudando as capas e daí falou que aquela que a gente fez depois da minissérie faz parte do corpus dele. Aí falou de discurso editorial, de extratextual, de paratexto...” “Para o quê?” “Paratexto. Você deve entender disso, porque ele falou que o editor é quem decide essas coisas que vão no livro.” “Isso é verdade, mas a gente não precisa saber a teoria disso tudo, né.” “Ah! É claro. Então, daí ele falou que analisa as capas. Até aquela frase que você colocou... O livro que deu origem à minissérie da TV. Até isso ele analisa!” “Certo, mas para quê?” “Olha, vou ser sincero, não entendi muito bem, não. Só lembro que ele falou que no caso da minha capa, aquela frase não era paratexto.” “E você me ligou só para me dizer isso?” “É, mas foi pra dizer uma coisa que não te disse no dia que você me mostrou aquela capa nova”. “O que foi?” “Naquele dia, acabei concordando com as mudanças. Mas depois eu fiquei cismado com aquela coisa de O livro que...”. “Sei, sei. Por quê?” “Sei lá, achei que não precisava. E agora vem o professor e fala que não é paratexto!!!” “Certo, e daí?” “Daí que eu achei que você soubesse e poderia me explicar. Só isso. Curiosidade.” “Bom, acho que não é nenhum crime não saber essas coisas. Mas a gente podia pesquisar.” “É, isso. Acho que vou procurar na internet.” “Ah! Quer dizer que o Autor está moderninho, agora está navegando!”

continua

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Em meados da década de 1960, passeando pela tradicional Feira de Livros de

Frankfurt, algo incomoda Theodor Adorno: o livro. O objeto livro. Afirma Adorno (1973, p.

17) que “durante a visita a uma feira de livros fui tomado de uma estranha angústia. Quando

procurei compreender o que ela me queria anunciar, percebi que os livros não têm mais a

aparência de livros. A adaptação ao que se consideram com ou sem razão as necessidades dos

consumidores, transformou sua fisionomia”. A sua angústia tem início exatamente pela capa

do livro, embora não fale explicitamente isso. Adorno entende que o ”livro insinua-se ao

leitor; não surge mais como algo existente por si, e sim por outra coisa, e justamente por isso

o leitor se sente privado do melhor”.

Também, embora não diga, parece que ele tem a sensação de que o discurso

publicitário está ali de modo mais evidente, como se retirasse do livro o que ele teria de

melhor a oferecer: o texto principal, que ele fosse sua própria força de venda e que o seu

revestimento pudesse ser suficiente para demonstrar que, dentro dele, há algo valioso,

insubstituível. E que, passeando por outras partes do livro, pudesse confirmar aquela sua

primeira impressão. Mas, se o livro deveria ter essa qualidade, Adorno espera também que

haja um leitor (ideal) merecedor de produto tão nobre. Conforme Adorno (1973, p.29), “o

leitor ideal, que eles não suportam, saberia, certamente, ao sentir a encadernação nas mãos,

perceber a figura do frontispício, e a qualidade da configuração das páginas, algo do que está

dentro, e perceberia o que ele vale, sem que precisasse ler antes”. Numa mesma afirmativa,

Adorno avalia o livro e o leitor, pois se os livros parecem desqualificados, para ele, parece

que há dois níveis de leitores: o ideal e o não- ideal.

E o que fazer? Adorno (1973, p. 17) não responde à pergunta, mas é taxativo: “impõe-

se que os livros se envergonhem do fato de ainda serem livros e não filmes de desenhos

animados ou vitrines iluminadas à luz de neônio [...]”. E com isso, além dos livros, dos

leitores, agora também, desqualifica por meio dos desenhos animados e da publicidade, tudo o

que ele e Horkheimer, na década de 1940, chamaram de indústria cultural. Ele e Horkheimer

viam a indústria cultural de forma negativa. Para eles (1985, p. 113), “... a cultura

contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas

constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto”.

Trata-se, ainda, de um sistema que também acaba por envolver o público, pois, na visão de

Adorno e Horkheimer (1985, p. 137), essa “indústria só se interessa pelos homens como

clientes e empregados e, de fato, reduziu a humanidade inteira, bem como cada um de seus

elementos, a essa fórmula exaustiva”.

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Muitos dizem que, posteriormente, Adorno teria amenizado essa visão. Mas pelo que

sentiu na feira de livros e pelo que falou em programa de rádio, transmitido em 1963, Adorno

(1995, p.88) mantinha aquele pensamento

... gostaria de chamar a atenção para que não se veja isoladamente a televisão, que constitui somente um momento no sistema de conjunto da cultura de massa dirigista contemporânea orientada numa perspectiva industrial, a que as pessoas são permanentemente submetidas em qualquer revista, em qualquer banca de jornal, em incontáveis situações da vida, de modo que a modelagem conjunta da consciência e do inconsciente só pode ocorrer por intermédio da totalidade desses veículos de comunicação de massa.

Mesmo quando os produtos se apresentam de maneiras distintas, o que se almeja é a

permanência do sistema e a dominação do ser humano, de tal forma que todos sejam vistos

como “simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos

de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos

assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p.

116).

Assim, utilizando a conceituação de Adorno e Horkheimer, há três aspectos que

caracterizam um produto típico da indústria cultural: a “desculpa” de que atende ao público, a

repetição (padronização) e a baixa qualidade. Começando pela repetição. Para Adorno e

Horkheimer (1985, p.139), o estereótipo é marca registrada da indústria cultural, nela,

saudável

é o que se repete, como os processos cíclicos da natureza e da indústria. Eternamente sorriem os mesmos bebês nas revistas, eternamente ecoa o estrondo da máquina de jazz. Apesar de todo o progresso da técnica de representação, das regras e das especialidades, apesar de toda a atividade trepidante, o pão com que a indústria cultural alimenta os homens continua a ser a pedra da estereotipia.

E a repetição manifesta o outro fator: a baixa qualidade. A produção da indústria

cultural tem como princípio tirar todo e qualquer esforço do público que “não deve ter

necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação (...) Toda

ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada”

(ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 128).

Alguns poderiam argumentar que esse é o preço (provisório) que se pagaria na

tentativa de se ampliar o público, dando-lhe acessibilidade a diferentes produtos culturais,

propiciando que, no futuro, todos pudessem escolher livremente e de modo crítico. A essa

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argumentação, Adorno e Horkheimer (1985, p. 123) contrapõem que, para a indústria cultural

a imitação é algo absoluto e, por esse motivo, o público tem, sim, a liberdade de escolha,

contudo a “liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa” (ADORNO e

HORKHEIMER, 1985, p. 156). Tem-se, dessa forma, a impressão de que a indústria cultural

atende a todos e “todos são servidos de alguma coisa” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985,

p. 146).

Neste raciocínio, ao se apresentar como aquela que produz de tudo para todos, a

indústria cultural parece vender a imagem de que é submissa ao seu público – produzo o que

você quer – porém, precisamente porque seus produtos não requerem esforço, o que se tem é

a constituição de um público que a ela se submete: o público cativo. A questão de se ter

acesso aos produtos culturais não se apresenta como fator de crescimento cultural. Para

Adorno e Horkheimer (1985, p. 150), se antes a chamada arte séria, a alta cultura era um

privilégio dos que tinham posses, a possibilidade de ampliar esse acesso a todos, “não

introduz as massas nas áreas de que antes eram excluídas, mas serve, ao contrário, nas

condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da

incoerência bárbara”.

Vive-se, enfim, um círculo vicioso: há quem produz algo que diz ser feito exatamente

para atender ao público. Este compra porque pensa que está sendo atendido e alimenta o

produtor que, agora, terá dinheiro não somente para produzir novos produtos, como também

obterá lucro que lhe proporcionará maior poder econômico e, por extensão, poderá exercer

maior dominação. Além de alimentar essa cadeia comercial, o sistema alimenta também a

visão de mundo dos consumidores, fazendo com que todos entendam que assim é e somente

assim as coisas devem ser. Cria-se “a ilusão de um mundo que não é o que nossa consciência

espontaneamente pode perceber, mas o que interessa ao sistema econômico e político no qual

se insere a indústria cultural” (DUARTE, 2002, p. 39).

No universo da produção editorial, há vozes que concordam com todo esse

pensamento, quando entendem que o produtor editorial, ao se aproximar da indústria cultural,

preocupando-se em atender ao público – melhor seria que se dissesse mercado – está fazendo

exatamente o jogo que interessa ao sistema. É o que se pode ver em Víctor Barrera Enderle

(2003), ao afirmar que “no discurso do mercado, o conceito de valor é fixo, se algo vende,

voltará a vender. A fórmula se petrifica e a aposta pela experimentação se reduz [tradução

nossa]”.

Esta preocupação com a intromissão do mercado também causa indignação em Del

Corral (2000, p. 127), que questiona: “No novo cenário, as decisões empresariais atendem a

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razões de mercado. Onde, porém, fica a função cultural e educativa do editor? O que

acontecerá com a legendária pluralidade e diversidade do setor?”. Para Enderle (2003), existe

o risco de se perder não só a função do editor, como também a do escritor. Os escritores, para

atender às necessidades do marketing, podem se transformar em “difusores, vendedores de

seu próprio produto”. Isso, porque sob “a divisa ‘mais títulos ao alcance de todos’, o

marketing editorial (con)funde autor com obra, e apresentação de livros com sua reflexão

crítica, e troca o antigo editor pelo moderno agente-representante[tradução nossa]”.

Juntando todas as afirmações que vêem o livro, como algo que se desqualifica e, por

extensão, desqualifica quem vive dele ou para ele, se Adorno pudesse falar hoje, talvez o

fizesse e, coloquialmente, mais ou menos assim: “Livros, caiam fora. Não entrem nessa.” Ou

seja, continuem num mundo em que a cultura não seja uma indústria. Mas como esquecer que

o livro é algo que se produz industrialmente. De acordo com J. B. Thompson (2002, p. 54),

O surgimento das indústrias da mídia como novas bases de poder simbólico é um processo que remonta à segunda metade do século XV. Foi durante esse tempo que as técnicas de impressão, originalmente desenvolvidas por Gutenberg, se espalharam pelos centros urbanos da Europa.

E, de certo modo, ainda que não seja um produto que alcance a massa, o grande

público, o livro participa da cultura de mídia que, segundo Kellner (2001, p. 27),

... veicula uma forma comercial de cultura, produzida por lucro e divulgação à maneira de mercadoria. [...] a produção com vistas ao lucro significa que os executivos da indústria cultural tentam produzir coisas que sejam populares, que vendam ou que – como ocorre com o rádio e a televisão – atraíam a audiência das massas.

Parece, então, que se está num beco sem saída. O livro é um produto, participa da

indústria cultural, mantém fortes relações com os demais veículos. Por extensão, como esses

outros veículos não apresentam qualidade e tornam o ser humano atado ao sistema que

caracteriza a indústria cultural, o livro iria pelo mesmo caminho. Porém, essa é uma visão que

reduz muito a questão. Talvez a maior delas esteja em ver que o ser humano é desprovido de

qualquer vontade, sim, para os críticos, sim. Também só se lamentar e colocar a culpa no

sistema é uma atitude imobilista. De certo modo, Adorno parece não acreditar na capacidade

dos editores e dos profissionais da área editorial para trazer novidades a esse mundo da

indústria, como se percebe numa das afirmações iniciais: ele pede aos livros que se

envergonhem!

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Contrapondo-se a esse pensamento, há os que acreditam na capacidade de o próprio

sistema regular essa situação. Hoje mais pessoas estão alfabetizadas, as pessoas têm acesso a

muito mais bens simbólicos e culturais do que antes (de baixa qualidade, diria Adorno), mas

têm, diriam os que entendem que a solução pode se resolver por si mesma. Ou seja, tanto um

pensamento quanto outro deixam o ser humano de fora.

Quem procurou encontrar um meio termo nessa questão, foi Umberto Eco (1998, p.

50) que mostra a atividade editorial como um dos exemplos de que nem tudo é tão negativo.

Para ele, se por um lado, a “fabricação de livros tornou-se um fato industrial”, e isso poderia

ser um grande prejuízo, tais como, “a produção de encomenda, o consumo provocado

artificialmente, o mercado sustentado com a criação publicitária de valores fictícios”, por

outro, o livro é um produto que se distingue nesse universo industrial, pois, ao lado de

“produtores de objetos de consumo cultural agem produtores de cultura”. E, segundo ele, para

a “produção de valores”, o livro seria “o instrumento mais cômodo”.

Uma das propostas de Eco (1998, p. 61) caminha no sentido de que caberia aos

estudiosos não apontar problemas e se lamentar. Ou achar que tudo é assim mesmo e depois

tudo se arranja. Para ele, é preciso que os meios de comunicação de massa sejam

permanentemente analisados e, as mensagens que eles emitem sejam avaliadas. Para que,

dessa forma, possam existir evidências que apóiem um ou outro pensamento.