capÍtulo i do livro e de seu revestimento -...

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21 CAPÍTULO I DO LIVRO E DE SEU REVESTIMENTO Palavras, o vento leva; o que se escreve permanece: nem os textos, nem as leituras, contudo, escapam às investidas do tempo. Roger Laufer Faz-se aqui uma breve viagem, no tempo e no espaço, para que se conheçam os aspectos mais significativos relativos à construção do livro como objeto, apresentando os diferentes suportes da escrita e os seus variados formatos – até o momento em surgiu a imprensa. Após rápida pausa, retorna-se no tempo para que sejam conhecidas as diversas maneiras empregadas para proteger e revestir o texto principal. A última parada será no Brasil, dando-se ênfase aos profissionais e editoras que tiveram um cuidado maior com a aparência do livro, em especial, com a sua capa. 1. DAS LAJOTAS AO CÓDICE O registro mais antigo que se tem de algo que se aproxima do livro como se conhece atualmente encontra-se na Mesopotâmia do IV milênio antes de Cristo. Segundo Arnaldo Campos (1994, p. 23), As lajotas de barro das bibliotecas mesopotâmic as, com sua escrita cuneiforme, são consideradas os mais remotos ancestrais do livro. Para fabricá-las, recorriam à mesma técnica de fazer tijolos. O barro mole era acomodado em moldes e posto a secar. [...] Para redigir, os escribas ( dubshars) valiam-se de um estilete de metal ou osso, com o qual gravavam os caracteres cuneiformes sobre as lajotas antes de serem postas a secar. Campos (1994, p. 27) afirma que essas lajotas, que não traziam título nem nome de autor, eram colocadas em “nichos feitos nas paredes do recinto palaciano destinado às bibliotecas”, e catalogadas pelas “duas ou três palavras do texto”. Elas são descritas por Alberto Manguel (1997, p.149) como “blocos de argila quadrados, às vezes oblongos, de cerca de 7,5 centímetros; cabiam confortavelmente na mão. Um livro consistia de várias dessas tabuletas, mantidas talvez numa bolsa ou caixa de couro, de forma que o leitor pudesse pegar tabuleta após tabuleta numa ordem predeterminada”. Já no Egito antigo, o papiro foi utilizado como suporte para a escrita. Tipo de vegetação abundante às margens do rio Nilo, o papiro era descascado e, de seu miolo, faziam-

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CAPÍTULO I – DO LIVRO E DE SEU REVESTIMENTO

Palavras, o vento leva; o que se escreve permanece: nem os textos, nem as leituras, contudo, escapam às investidas do tempo. Roger Laufer

Faz-se aqui uma breve viagem, no tempo e no espaço, para que se conheçam os

aspectos mais significativos relativos à construção do livro como objeto, apresentando os

diferentes suportes da escrita e os seus variados formatos – até o momento em surgiu a

imprensa. Após rápida pausa, retorna-se no tempo para que sejam conhecidas as diversas

maneiras empregadas para proteger e revestir o texto principal. A última parada será no

Brasil, dando-se ênfase aos profissionais e editoras que tiveram um cuidado maior com a

aparência do livro, em especial, com a sua capa.

1. DAS LAJOTAS AO CÓDICE

O registro mais antigo que se tem de algo que se aproxima do livro como se conhece

atualmente encontra-se na Mesopotâmia do IV milênio antes de Cristo. Segundo Arnaldo

Campos (1994, p. 23),

As lajotas de barro das bibliotecas mesopotâmicas, com sua escrita cuneiforme, são consideradas os mais remotos ancestrais do livro. Para fabricá-las, recorriam à mesma técnica de fazer tijolos. O barro mole era acomodado em moldes e posto a secar. [...] Para redigir, os escribas (dubshars) valiam-se de um estilete de metal ou osso, com o qual gravavam os caracteres cuneiformes sobre as lajotas antes de serem postas a secar.

Campos (1994, p. 27) afirma que essas lajotas, que não traziam título nem nome de

autor, eram colocadas em “nichos feitos nas paredes do recinto palaciano destinado às

bibliotecas”, e catalogadas pelas “duas ou três palavras do texto”. Elas são descritas por

Alberto Manguel (1997, p.149) como “blocos de argila quadrados, às vezes oblongos, de

cerca de 7,5 centímetros; cabiam confortavelmente na mão. Um livro consistia de várias

dessas tabuletas, mantidas talvez numa bolsa ou caixa de couro, de forma que o leitor pudesse

pegar tabuleta após tabuleta numa ordem predeterminada”.

Já no Egito antigo, o papiro foi utilizado como suporte para a escrita. Tipo de

vegetação abundante às margens do rio Nilo, o papiro era descascado e, de seu miolo, faziam-

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se tiras que, entrecruzadas e sobrepostas, eram “umedecidas e batidas com um macete de

madeira”, posteriormente, recebiam “um tratamento com óleo de cedro”, formando-se uma

folha que, “depois de seca ao sol, era polida com pedra-pome”, tornava-se adequada à escrita

(CAMPOS, 1994, p. 43). Depois, era preparado o rolo: vinte folhas retangulares colocadas em

seqüência formavam um volume que, enrolado, trazia um suporte de madeira em cada

extremidade. Ainda, segundo Campos (1994, p.43), “os egípcios escreviam em colunas [...]

que os latinos chamariam de paginae,” dispostas “em posição perpendicular ao eixo do rolo”.

Como as folhas eram muito finas e quebradiças, o texto era escrito apenas no reto (a parte da

frente da folha).

O papiro, que prevaleceu como suporte da escrita por vários séculos, foi sendo

substituído pelo pergaminho – nome dado à pele do animal, geralmente caprino ou ovino,

que, submetida a diferentes procedimentos, transformava-se em uma superfície própria para a

escrita. A palavra pergaminho deriva do nome da cidade de Pérgamo. Segundo Katzenstein

(1986, p. 179), “admite-se que no século II a.C. ele tenha sido inventado nesta cidade ou, que

aí tenha sido introduzido um novo método de limpá- lo, esticá- lo e raspá- lo, o que tornou

possível a utilização dos dois lados de uma folha para escrever”. Essa possibilidade e o fato de

ser um material mais resistente foram fundamentais para fazer do pergaminho o suporte

predominante do século IV ao século XII.

O uso do pergaminho propiciou o desenvolvimento de um novo formato para o livro: o

códice. A bem dizer, o formato códice já era empregado no Egito: as folhas de papiro

“também podiam ser dobradas de modo a constituir um códice [...] as folhas unidas em

cadernos. Entretanto, devido à fragilidade das fibras, suportavam apenas uma dobra, e assim o

códice se produzia pela junção de folhas com quatro páginas cada uma”. Por seu lado, a

possibilidade de se utilizar as “duas faces do pergaminho (reto e verso) daria nascimento aos

modernos códices, cujas folhas se reuniam pelo dorso e eram em seguida encadernadas, vale

dizer, cobertas com uma capa.” (ARAÚJO, 1986, p. 370-371).

Para Chartier (1994, p.101), “a substituição do volumen pelo códex – do livro em

forma de rolo pelo livro composto por cadernos reunidos –, nos primeiros séculos da era

cristã” representou “uma revolução dos suportes e formas de transmissão do escrito”. Isso

porque, além de reduzir o custo de produção do livro (por causa da utilização dos dois lados

do papel) e de poder reunir vários textos em um mesmo volume, o códex permite

uma localização mais fácil e uma manipulação mais agradável do texto; ele torna possível a paginação, o estabelecimento do índex e de correspondências, a comparação de uma passagem

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com outra, ou ainda o exame do livro em sua integridade pelo leitor que o folheia . [...] É com o códex que o leitor conquista a liberdade: pousado sobre uma mesa ou escrivaninha, o livro em cadernos não exige mais a total mobilização do corpo. Em relação a ele, o leitor pode distanciar-se, ler e escrever ao mesmo tempo, indo, ao seu be l-prazer, de uma página à outra. É igualmente com o códex que se inventa a tipologia formal que associa os formatos e os gêneros, os tipos de livros e as categorias de discurso, portanto, que se organiza um sistema de identificação e de localização de textos dos quais a imprensa será a herdeira e que é ainda o nosso (CHARTIER, 1994, p. 102-103).

Os aspectos apontados fizeram com que, em tempo relativamente curto, o códice fosse

adotado como formato predominante. Conforme Araújo (1986, p. 39), a “adoção do códice

[...] no século II, por exemplo, acha-se representada na literatura pagã do Egito com apenas

2,31%, no século III com 16,8%, mas já no século IV tal proporção ascende a nada menos de

73, 95%”.

2. DO CÓDICE AO LIVRO IMPRESSO

Mais que lavrar a terra, faz bem copiar livros: ali trabalhamos para a barriga, aqui para a alma.

Alcuíno

A produção de livros manuscritos ganhou significativo impulso durante a Idade

Média. Conforme Araújo (1986, p.41), “aceita-se pacificamente que, no Ocidente, o maior

impulso de estudos e de recuperação de textos se deveu, até o século XV, à iniciativa dos

monges que estenderam sua atividade por toda a Europa”. Foi um período em que se buscou

“não só a conservação dos textos clássicos através de cópias, como, ainda, pretendeu-se

reagrupar em grandes enciclopédias e compêndios todo o conhecimento adquirido”

(ARAÚJO, 1986, p.41).

Umberto Eco, em seu romance O nome da rosa ambientado em uma Abadia em fins

de novembro de 1327, apresenta alguns trechos que descrevem o lugar (o scriptorium) e o

trabalho dos monges copistas.

Os lugares mais iluminados eram reservados aos antiquários, miniaturistas mais habilidosos, aos rubricadores e aos copistas. Cada mesa tinha tudo o era necessário para miniaturar e copiar: chifres de tinta, penas finas que alguns monges estavam afinando com uma faca afiada, pedra-pomes para deixar liso o pergaminho, réguas para traçar as linhas sobre as quais se estenderia a escritura. Junto a cada escriba, ou no topo do plano inclinado de cada mesa, ficava um atril, sobre o qual se apoiava o códice a ser copiado, a página coberta por moldes que enquadravam a linha que era transcrita no momento. E alguns tinham tintas de ouro e de outras cores. (ECO, 1988, p. 81)

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Esta descrição dá conta, ainda que parcialmente, da divisão dos trabalhos realizados no

scriptorium e dos instrumentos utilizados. Há que se acrescentar que o trabalho era dirigido

por um armarius ou bibliothecarius – monge que exercia as funções de um supervisor

editorial. A preparação das páginas do pergaminho era executada por noviços ou por monges

menos hábeis. Os trabalhos realizavam-se somente sob luz natural, uma vez que a utilização

de luz artificial, em um ambiente altamente inflamável, colocava em risco as vidas humanas e

as obras. Era muito cansativo e demorado – especialmente, no inverno (ARAÚJO, 1986, p.

42; CAMPOS, 1994, p. 145).

Eu passara até então uma pequena parte de minha vida num scriptorium, mas em seguida passei uma boa parte, e sei quanto sofrimento custa ao escriba, ao rubricador e ao estudioso passar em sua mesa as longas horas do inverno, com os dedos que se contraem sobre o estilo (ao passo que, já com temperatura normal, após seis horas de escritura, a terrível cãibra apodera-se dos dedos do monge e o polegar dói como se estivesse esmagado). E isso explica por que, freqüentemente, encontramos à margem dos manuscritos frases deixadas pelo escriba como testemunhos do sofrimento (e de impaciência), tais como “Graças a Deus logo vai ficar escuro”, ou “Oh, tivesse eu um bom copo de vinho!”, ou ainda “Hoje faz frio, a luz está fraca, este velo é peloso, alguma coisa está errada”. Como diz um antigo provérbio, três dedos seguram a pena, mas o corpo inteiro trabalha. E dói. (ECO, 1988, p. 136)

O ano em que transcorre a narração do romance – 1327 – corresponde, ainda, a uma

época em que mosteiros, conventos e abadias sofriam com a concorrência de outros lugares

em que se produziam manuscritos. Febvre (1972, p. 26-27) afirma que, entre o final do século

XII e o início do XIII, “as universidades fizeram surgir um novo público leitor – clérigos, é

claro, em sua maioria, mas que não estão estreitamente ligados a outros estabelecimentos

eclesiásticos”. Os professores e os estudantes necessitavam de textos que nem sempre

estavam disponíveis. Isso fez surgir, nas proximidades dos centros universitários, “uma

verdadeira corporação de profissiona is do livro, clérigos ou bem freqüentemente, leigos (os

livreiros eram leigos, os copistas ou ‘escritores’ muitas vezes clérigos) que foram logo

considerados como parte da Universidade”.

No romance de Eco (1988, p. 131-132), há uma passagem que revela essa situação e o

desconforto que ela causava em um dos personagens. Quando Guilherme de Baskerville

afirma que a Abadia parecia ser “um lugar de homens admiráveis pela santidade e doutrina”,

Aymaro de Alexandria lhe responde: “Era. Quando os abades eram abades e os bibliotecários,

bibliotecários. [...] Nós estamos aqui, e lá embaixo, nas cidades estão agindo... Outrora, de

nossas abadias, governava-se o mundo”. Mais adiante, Aymaro acrescenta: “Nós guardamos o

nosso tesouro, mas lá embaixo acumulam-se tesouros. E mesmo livros. E mais bonitos que os

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nossos”. E, contrário às decisões do Abade, que “pôs a biblioteca nas mãos de estrangeiros e

conduz a abadia como uma cidadela erigida em defesa da biblioteca”, Aymaro propõe que os

livros cheguem às universidades (“se sabemos fazer belos livros, fabriquemo-los para as

universidades”) e que a biblioteca se transforme em local mais aberto e acessível (“Abramos a

biblioteca aos textos em vulgar, e subirão para cá também os que não escrevem mais em

latim.”).

A segunda proposta de Aymaro revela que, além dos professores e estudantes, surgira

um novo público leitor – a nova classe burguesa que também queria ter acesso à cultura.

Conforme Febvre (1972, p. 32), no final do século XIII, “Jurisconsultos, conselheiros leigos

dos reis, ‘altos funcionários’ de toda espécie, um pouco mais tarde, ricos negociantes ou

burgueses, numerosos indivíduos precisavam de livros”, e procuravam tanto por obras

necessárias à profissão, quanto por obras literárias que eram redigidas, em sua maior parte, em

língua vulgar. Textos originais, inicialmente, poemas e, depois, também em prosa;

“remanejamento de obras antigas, traduções ou adaptações de obras latinas clássicas ou

medievais iam em breve pulular”. Para atender à demanda desse novo e maior público, foi

necessário que se estabelecesse “uma nova organização da produção de livros”.

Se a produção dos manuscritos nos mosteiros já apresentava uma divisão de tarefas e,

em cada parte de elaboração dos livros, o emprego de monges especialistas – que trabalhavam

no mesmo local –, a expansão do público provocou o surgimento de oficinas leigas separadas

de acordo com cada especialidade: “umas de copistas, outras talvez de rubricadores, outras

enfim, certamente de iluminadores”; nascendo, lentamente, “verdadeiras correntes de

produção nas quais um grande número de artesãos tem suas tarefas bem definidas” (FEBVRE,

1972, p. 37).

Assim, quando em 1456, Gutenberg imprimiu os primeiros exemplares da Bíblia com

42 linhas por página (a B42), a imprensa encontrava um cenário propício às mudanças que ela

trazia: um público maior que poderia absorver a quantidade de livros que seriam produzidos a

partir daquele momento. Assistiu-se, então, a uma grande mudança no processo de produção

do livro que foi possível graças à chegada na Europa – desde o final do século XIII até o

início do século XV – de duas inovações orientais: o papel e a xilogravura. O primeiro já era

conhecido pelos chineses desde o século II; a segunda, conhecida na Coréia desde meados do

século VIII e, na China, desde o final do século IX.

Conforme Manguel (1997, p. 158), o processo de impressão de livros produziu efeitos

imediatos e de grande alcance: “quase imediatamente muitos leitores perceberam suas grandes

vantagens: rapidez, uniformidade de textos e preço relativamente barato”. Essas vantagens,

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entretanto, não são suficientes para que Chartier considere a imprensa como uma revolução.

Para Chartier (1994, p. 96), o surgimento da imprensa no século XV, quando foram

modificados “os modos de reprodução dos textos e de produção dos livros”, não pode ser

apontado como uma verdadeira revolução, pois, em sua materialidade, “o livro impresso

mantém-se fortemente dependente do manuscrito até por volta de 1530, imitando-lhe a

paginação, as escrituras, as aparências e, sobretudo,” o seu acabamento feito à mão. Chartier

(1994, p. 96) conclui afirmando que a “revolução da imprensa não consiste absolutamente

numa ‘aparição do livro’. Doze ou treze séculos antes do surgimento da nova técnica, o livro

ocidental teria encontrado a forma que lhe permaneceu própria na cultura do impresso”.

Para reforçar a idéia de que a invenção de Gutenberg, embora fundamental, não foi o

único fator que garantiu uma grande circulação do livro impresso, Chartier (1994, p. 97) lança

seu olhar para o Oriente e explica que, embora tenham inventado e utilizado os caracteres

móveis em terracota no século XI, na China, e em caracteres metálicos, na Coréia, no século

XIII, ou seja, bem antes de Gutenberg, esse conhecimento ficou restrito aos poderes dos

imperadores ou dos mosteiros. Foi a xilografia que, no Oriente, teve a função de disseminar

os textos impressos. E isso ocorreu porque ela se adaptava bem às características da escrita

daqueles países, mantendo um “laço estreito entre a escrita manuscrita e a impressão”, além

de, “graças à resistência de madeiras duráveis”, possibilitar “o ajuste entre a tiragem e a

demanda.”.

Um aspecto que corrobora a posição de Chartier pode ser observado no objeto livro

produzido por Gutenberg, que se mantém muito semelhante àquele produzido

manuscritamente. Aluísio Magalhães (1975, p. 99) afirma que Gutenberg queria fazer um

livro que

para Gutenberg era o manuscrito. Assim ele não tinha condições de se aperceber naquele momento da extensão do que estava inaugurando. Não tinha condições de perceber que, naquele gesto, transformava o conceito de civilização ocidental. Era impossível, na cabeça dele, ter essa visão em conjunto. Por isso Gutenberg se desesperava para fazer um livro que fosse parecido com um manuscrito, a ponto de complicar enormemente o seu processo.

Esse esforço está presente na escolha dos tipos para impressão, segundo Magalhães

(1975, p. 98), “ele foi fiel à manutenção de uma tradição anterior a ele e procurou fazer com

que seus caracteres já de chumbo ou liga metálica fossem parecidos com o manuscrito.

Tentava desesperadamente que eles tivessem algo parecido com a letra manuscrita”.

Evidencia-se, portanto, segundo Chartier (1999, p. 9), “uma continuidade muito forte entre a

cultura do manuscrito e a cultura do impresso”, ou seja, não ocorre uma “ruptura total entre

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uma e outra”. Acrescente-se, ainda, que o manuscrito sobreviveu por muito tempo,

simultaneamente, com o livro impresso.

Entretanto, é preciso destacar a importância desse primeiro passo dado por Gutenberg.

Conforme afirma Magalhães (1975, p. 100), com o livro impresso, ocorria “pela primeira vez:

a possibilidade de repetição e alcance maior. Até então, por mais que se fale no livro

manuscrito como objeto já codificado e já repetido, a diferença era profunda entre a

possibilidade mecânica que se repetia no livro”. Inaugurava-se, assim, “a possibilidade de

fixação do pensamento humano em termos mais permanentes e de maior difusão”. Tanto que

as novas técnicas de impressão rapidamente se espalharam pela Europa, como aponta

Thompson (2002, p. 55): “Em 1480 já havia tipografias instaladas em mais de cem cidades

pela Europa toda e um florescente comércio de livros tinha surgido”.

Fecha-se, aqui, a prometida e breve viagem pela história do livro, entendendo-se que,

com o nascimento da imprensa, deu-se o primeiro impulso no sentido de garantir a

reprodução, a sistematização e a difusão do livro. Impulso este que ganharia maior amplitude

ao longo dos séculos seguintes, quando, por meio das muitas inovações tecnológicas foi

possível aprimorar-se o processo de impressão, fazendo com que aquela prática artesanal de

produção de livros se transformasse em atividade industrial.

3. ENCADERNAÇÃO: A ARTE DE EMBALAR PRODUTO TÃO NOBRE

No período em que o suporte era o barro, não se tem informação de que as lajotas

recebessem algum tipo de proteção. Alberto Manguel (1997, p. 149), com base em

representações (“objetos semelhantes a códices”) encontradas em monumentos funerários de

pedra, levanta a hipótese de que tais livros fossem encadernados à semelhança dos livros

atuais: “talvez uma série de tabuletas presas umas às outras dentro de uma capa”. No entanto,

informa o autor que nenhum desses “objetos” foi encontrado até hoje.

O rolo, de papiro ou de pergaminho, conforme Chartier (1999, p. 14), “para ser lido,

[...] deve ser segurado com as duas mãos. Enrolado nas extremidades sobre dois suportes de

madeira, o texto é desdobrado diante dos olhos de seu leitor”. Pode-se dizer, metaforicamente,

que tais suportes de madeira constituíam-se em uma espécie de capa, uma vez que

asseguravam a integridade física do texto e davam sustentabilidade à leitura. Porém esses

suportes não traziam qualquer identificação da obra. Para isso, havia outra solução [Fig. 3], os

“rolos eram armazenados em caixas de madeira (semelhantes a caixas de chapéu), com

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rótulos de argila no Egito e de pergaminho em Roma, em estantes com etiquetas (o index ou

titulus) à mostra, para que o livro pudesse ser facilmente identificado” (MANGUEL, 1997,

p.153). Ainda, sobre esse formato, Dorothée de Bruchard (2004) afirma que, no Egito, os

rolos de papiro tinham as bordas protegidas por tiras coladas. Na Grécia e em Roma,

costumava-se “envolvê-los em capas de pele ou pano ou, em se tratando de obras mais

valiosas, em bibliotecas, (biblio + theka, cofre para livros), ou seja, cilindros de madeira,

pedra ou metal onde se acomodavam vários rolos” [Fig.4].

Quando da passagem do rolo para o códice, surge a encadernação. Afirma Dorothée

(2004) que, como uma das características do pergaminho era que suas folhas tendiam a

ondular,

Figura 3: Gravura

copiada de um baixo-

relevo mostrando um

método de guardar rolos

na Roma antiga.

Observem-se as

etiquetas penduradas na

ponta dos rolos.

Fonte: Manguel (1997,

p. 152).

Figura 4: cofre usado para guardar os rolos

Fonte: http://escritoriodolivro.org.br. Acesso em 15/04/2004.

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para manter as folhas planas, criou-se o hábito de prendê-las entre duas tabuletas de madeira. O passo seguinte foi prender a essas tabuletas as pontas das tiras que já prendiam os cadernos, a seguir cobrindo com couro as tabuletas ao mesmo tempo que o dorso, criando-se assim a lombada. Estavam dados os princípios da encadernação tal qual a conhecemos.

Nas encadernações, eram colocadas “tachas destinadas a proteger a própria

encadernação, pois os livros são guardados deitados ou conservados sobre cavaletes”

(FEBVRE, 1972, p. 165). Segundo Dorothée (2004), essa forma de guardar os livros persistiu

até o Renascimento e as tachas eram úteis também para manter os livros acima da superfície,

evitando a umidade. Guardados dessa forma, a lombada ficava do lado de dentro do armário,

assim, para a localização de uma obra, o título era “escrito em etiquetas, não raro protegidas

por chifre transparente, atadas à capa” (BRUCHARD, 2004). Já Emanuel Araújo (2000, p.

471), confirma que, “até pelo menos o século XVI usava-se colocar o livro na estante com o

lombo virado para o fundo”, porém, quanto à forma de identificar a obra, diz que “o título

vinha escrito a tinta sobre o corte das folhas”. Por fim, Rubem Borba (1998, p. 71), sem

mencionar a que época está se referindo, afirma que

Durante muito tempo usou-se colocar nas estantes o livro de pé, com o lombo virado para o fundo, exatamente ao contrário do que usamos. No lombo não vinha indicação alguma do nome do autor e do título. Para distinguir os volumes, escrevia -se o título a tinta no corte arredondado das folhas externas que os franceses chamam muito apropriadamente de gouttiere [calha].

Independentemente das pequenas diferenças que podem ser encontradas entre os

autores, evidencia-se grande preocupação com a identificação do livro – de nada adiantaria

possuir tal objeto se não houvesse meio de localizá-lo. Assim, para objeto tão frágil e de

difícil confecção, era necessário empregar materiais que pudessem protegê- lo com eficiência.

Objeto frágil, sim, mas também muito valioso! O manuscrito (como será depois, e por muito

tempo, o livro impresso) era um produto raro e caro, merecedor, portanto, de todo cuidado,

conforme afirmação de Febvre (1972, p. 163): “Que essa preocupação com a solidez, que a

qualidade das matérias utilizadas outrora para confeccionar encadernações que ainda hoje,

muitas vezes, causam admiração aos profissionais, não nos espantem”.

E não apenas protegido, como também ricamente ornamentado [Fig. 5]. De início,

prevaleceu a encadernação funcional, como afirma Dorothée (2004): “A princípio um formato

‘pobre’, o livro plano foi contudo se transformando, com a expansão e crescente poder da

Igreja, num suporte privilegiado para verdadeiras obras de arte.”, citando são Jerônimo que,

no século IV, reclamava: “Tinge-se o pergaminho de cor de púrpura, traçam-se letras com

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ouro líquido, revestem-se de gemas os livros, mas totalmente nu diante de suas portas, Cristo

está morrendo”. Apesar da reclamação de são Jerônimo, os códices continuaram a ser

encadernados de forma luxuosa, utilizando-se marfim, cobre, prata, ouro maciço e pedras

preciosas (BRUCHARD, 2004).

Nos primeiros anos após o advento da imprensa, o processo de encadernação não se

altera e os incunábulos – como são denominados os livros produzidos entre 1456 e 1500 –

apresentam-se, ainda, em sólidas e pesadas encadernações. Esse quadro, aos poucos, começa a

se modificar a partir do momento em que aumenta o público interessado em livros. Conforme

Febvre (1972, p. 165), “os particulares, em número cada vez maior, organizam as suas

bibliotecas, o livro cessa de ser mais ou menos exclusivamente monástico”. Mas deve-se

registrar que, embora alcance maior público, afirma Febvre (1972, p. 165) que, “até o século

XVIII, o livro permaneceu destinado sobretudo a uma elite relativamente restrita e rica”.

Nesse primeiro momento do livro impresso, destaca-se a figura de Aldo Manuzio que,

entre 1494 (quando montou sua tipografia, em Veneza) e 1515 (quando morreu), produziu

inovações significativas nos aspectos materiais do livro. Entendendo que o livro deveria ser

Figura 5: Encadernação do Código de St. Emeran (870), em ouro e pedras preciosas.

Fonte: http://escritoriodolivro.org.br. Acesso em 15/04/2004.

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acessível ao maior número de leitores, Manuzio lançou “uma coleção de bolso in-octavo (...)

impressos com elegância e editados meticulosamente.” (MANGUEL, 1997, p. 162).

Preocupou-se, ainda, em utilizar um tipo de letra que fosse adequado a esse formato, adotando

a letra cursiva, conhecida, atualmente, como itálica (CAMPOS, 1994, p. 181-182). Quanto à

encadernação, que nos primeiros anos do impresso, era feita, predominantemente, em couro

grosso e em pergaminho – materiais que o associavam ao manuscrito –, Aldo encontrou

soluções revolucionárias e permanentes: “a invenção da lombada reta; a substituição das

capas de folha de madeira pelas de papelão; a implantação da pele de cabra fina e douração a

quente, e as marcas nos cadernos do livro para ordená- los com rapidez e segurança no

processo de agrupamento e costura.” (SATUÉ, 2004, p. 133). As inovações de Aldo

resultaram na produção de um livro sóbrio e elegante e foram bem aceitas, tanto que passaram

a ser “imitadas em toda a Europa.” (MANGUEL, 1997, p. 163).

Com o passar do tempo, cada vez mais livros são produzidos e o mercado comprador

se expande, fazendo com que a técnica de encadernação se altere para fazer frente à maior

demanda e para atendê- la com maior rapidez e, dessa forma,

adquire-se o hábito de substituir as antigas pranchas de madeira por pranchas de papelão, de velhos papéis colados uns sobre os outros: antigas provas de impressão, refugo de livros velhos, correspondência ou contas de empresas ou ainda antigos arquivos. De maneira que a desmontagem das encadernações desse tempo reserva, aos que as realizam, surpresas muitas vezes interessantes (FEBVRE, 1972, p. 166).

Prática comum, após o desenvolvimento da imprensa e que perdurou por muito

tempo, diz respeito à circulação dos livros, ou, como diz Rubem Moraes (1998, p. 71-72),

das “folhas tipográficas” que

eram remetidas ao livreiro de um país a outro em barricas. Usava-se esse método para poupar peso e economizar frete. O livreiro mandava encadernar alguns exemplares para "amostra", para oferecer ao freguês, e guardava o resto em folhas. À medida que ia vendendo uns, ia mandando encadernar outros.

Afirma Febvre (1972, p. 166) que é de se “supor que, bem freqüentemente, o

comprador preferia adquirir uma obra em folhas para poder mandar encaderná- la a seu gosto”.

Nesses casos, sendo ele rico ou colecionador, marcava sua propriedade, mandando “gravar

suas armas no centro da capa” (FEBVRE, 1972, p. 169). A partir do século XIX, a prática de

encadernação de livros ficará mais restrita às pessoas de alto poder aquisitivo, bibliófilos e,

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conforme Rubem Borba (1998, p. 72), “muita gente” que “coleciona encadernações com o

mesmo entusiasmo e paixão que os bibliófilos colecionam livros”.

Interrompe-se, por breve instante, a ordem cronológica, para se buscar dois exemplos

do século XXI indicadores de que esse interesse e esse entusiasmo podem alcançar outros

públicos, conforme se pode notar adiante. O primeiro diz respeito ao prestígio que uma capa

de couro pode dar a uma obra como o manuscrito Caminhos revividos, de Paulo Coelho e

Christina Oiticica, em tiragem única de duzentos exemplares, vendidos ao preço de

R$9500,00 cada um e editados, por Guilherme Rodrigues, na Lithos Edições de Arte, em

agosto de 2005. O que desperta a atenção é a participação da grife francesa Louis Vuitton que

produziu, especialmente para o livro, duas capas de couro natural. Neste caso, as capas não

serviram para encadernar o livro de Paulo Coelho e Christina Oiticica e tampouco foram

colocadas à venda [para mais detalhes, ver Anexo 1].

Um outro exemplo revela que obras encadernadas podem interessar também a pessoas

que possuem poder aquisitivo muito alto. Trata-se de pessoas que, em sebos, compram livros

encadernados em bom estado para somente decorar as estantes, procurando, dessa forma,

aparentar intelectualidade. Nesses casos, muitas vezes, os livros não são adquiridos por

unidade, mas por metro. Vinte exemplares de romances franceses encadernados em couro

correspondem a, aproximadamente, um metro. Os mais exigentes, escolhem obras de arte ou

de filosofia – neste caso, os da Antiguidade são os preferidos, desde que os nomes de autores

como Aristóteles, Platão, Sócrates, estejam bem visíveis. Há, até mesmo, profissionais da área

de decoração que auxiliam seus clientes quanto ao que comprar – assim, recomendam não

comprar enciclopédias, que não estão mais em moda – e como dispor as obras na estante ou

no ambiente [para mais detalhes, ver Anexo 2].

Assim, retornando no tempo, deve-se observar que, paralelamente à produção de

impressos encadernados, eram também produzidos livros que se destinavam a uma clientela

popular. Nos séculos XVII e XVIII, ocorreu um fenômeno editorial caracterizado pela

multiplicação de “livretos de ampla circulação, destinados a um público que na maior parte é

popular” (CHARTIER, 2004, p. 261). Na Inglaterra, existiam os chapbooks que, conforme

Manguel (1997, p. 165), eram “pequenos livretes e baladas”, de baixo preço, vendidos por

mascates. Na Espanha, vendiam-se os pliegos de cordel, “pequenos livretos de uma ou duas

folhas, e uma difusão maciça, garantida em parte pelos ambulantes cegos que cantam seus

versos antes de vendê-los” (CHARTIER, 2004, p. 262). Na França, surge a Bibliotheque

Bleue. Vendedores ambulantes ofereciam livros, cujos assuntos atendiam ao gosto popular, e

que se distinguiam pelo “seu aspecto físico: geralmente é um livro em brochura, normalmente

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encapado de papel, e de um papel que é mais freqüentemente (mas nem sempre) azul”

(CHARTIER, 2004, p. 278).

A partir do século XIX, os livros apresentam-se ao “público em forma de brochura —

com capas de papel, onde a possibilidade de impressão a cores motivou um desenho gráfico

mais elaborado” (BRUCHARD, 2004). Nessa época, dois fatores foram fundamentais para

que o livro fosse impresso com maior rapidez, em maior quantidade e tivesse seu custo

reduzido: a prensa a vapor e a máquina de produção de papel. O aumento do número de

tiragens de uma mesma obra fez com se deixasse de lado a “encadernação de livros, que serão

vendidos e lidos em simples brochuras” (FEBVRE, 1972, p. 170-171).

Certo que toda essa quantidade de livros, agora mais acessíveis a maior número de

pessoas, acompanhou o ritmo de uma sociedade que se modificava: urbanização acelerada,

maior número de pessoas alfabetizadas, meios de transportes mais rápidos. Tudo isso

propiciou o crescimento do mercado editorial. Como exemplo, pode-se citar a expansão das

ferrovias, na Inglaterra. Conforme Manguel (1997, p. 166), esse fato fez com que os editores

publicassem “livros que se destinavam a ser levados para fora, livros feitos especialmente

para viajar”. Daí, as estações ferroviárias passavam a ser ótimos locais para se vender livros.

Em 1848, “W. H. Smith & Son [...] abriam a primeira banca de livros de ferrovia, na estação

de Euston, em Londres.” (MANGUEL, 1997, p. 167).

No século XIX, conforme Livio Lima de Oliveira (2005), “edições européias de livros

brochados (...) tiveram êxito reconhecido”, destacadamente aquelas produzidas por Carl Jügel,

Tauchnitz, Reclam e Insel-Verlag, na Alemanha; Louis Hachette, na França; e Archibald

Constable, John Murray, Colburn e Bentley, H. G. Bohn, John Dick, Simms and McIntyre,

George Routledge, Henry Morley, George Newne, na Inglaterra. Analisando dados dessas

produções, Hans Schmoller definiu esse período como “the paperback revolution” – a

revolução da brochura –, uma vez que essas experiências bem-sucedidas foram determinantes

para estabelecer “o que o mercado editorial adotaria de formato e acabamento de livros a

partir do século XX – a brochura.” (Oliveira, 2005).

Como, anteriormente, foram mencionadas as ferrovias, conclui-se esta seção, com um

salto até 1934. Conforme conta Alberto Manguel (1997, 168-171), o editor inglês Allen Lane,

enquanto esperava o trem que o levaria de volta a Londres, foi a uma banca de livros da

estação e não encontrou nada que o satisfizesse: os livros de capa dura eram caros e, os de

ficção, não tinham qualidade. Ocorreu- lhe, então, a idéia de editar “livros de bolso baratos,

mas bons”. Depois de um ano, em “30 de julho de 1935, os primeiros dez livros da Penguin

foram lançados a 6 pence cada volume”. Surgiu, porém, um problema: Lane calculara “que

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quebraria mesmo se vendesse 17 mil exemplares de cada título, mas as primeiras vendas não

passaram de 7 mil. A solução, Lane foi buscar com Clifford Prescott, comprador de grande

cadeia de lojas, a Woolworth. Clifford considerou ridícula a idéia de colocar livro à venda ao

lado de pares de meia e de latas de chá.

Por acaso, naquele exato momento a senhora Prescott entrou no escritório do marido, Consultada sobre o que achava da idéia, manifestou-se com entusiasmo. Por que não? – perguntou ela. Por que não tratar os livros como objetos do dia -a-dia, tão necessários e tão disponíveis quanto meias e chá? Graças à senhora Prescott, fechou-se o negócio.

Assim, os livros da Penguin marcariam o mercado editorial por sua qualidade,

variedade de títulos, baixo custo e ampla distribuição. E por falar em distribuição, o que a

senhora Prescott, o editor Allen Lane e, talvez, nem mesmo Alberto Manguel (ao menos

quando escreveu seu livro) sabiam é que, dezessete anos antes, um brasileiro tivera idéia tão

ou mais ousada para distribuir seus livros. Esta, no entanto, é outra história que será contada

em momento oportuno.

4. CAPA DE LIVROS NO BRASIL: UMA TRADIÇÃO

No Brasil, a atividade editorial somente terá início após 1808, ano em que a corte

portuguesa transferiu-se para cá, instalando-se no Rio de Janeiro. Até aquele ano, a colônia

brasileira estivera proibida de realizar atividades relacionadas à impressão. Com a família

real, chegaram a Biblioteca Real – atual Biblioteca Nacional – e um prelo de fabricação

inglesa, a partir do qual foi criada a Impressão Régia, por ordem de D. João VI. Foi pela

Impressão Régia que se publicou, “em 1810, a primeira obra de literatura, Marília de Dirceu,

de Tomás Antonio Gonzaga.” (PAIXÃO, 1996, p. 12). Esse atraso, afirma Rafael Cardoso

(2005, p. 160), não impediu que o Brasil possuísse “uma longa e rica tradição na área de

design de livros.” Essa afirmação é compartilhada por Chico Homem de Melo (2006) e ganha

maior relevo, exatamente, por se tratar de livros. Segundo Melo (2006, p. 59), o

fato de o mercado editorial constituir a mais consolidada tradição do design no país é uma faca de dois gumes. Por um lado, temos um caminho mais aplainado para o reconhecimento e o respeito pela profissão – ainda que em moldes diferentes do entendimento que temos dela hoje, Por outro, o peso das convenções é maior. Rompê-las torna-se tarefa mais difícil: livros tinham que ser do modo como sempre tinham sido, pois eram fruto de um saber decantado por séculos.

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Esse caminho começou a ser aplainado ainda nos tempos do Brasil-Império, quando o

país ingressou, quase que simultaneamente à Europa e aos Estados Unidos, “no novo regime

industrial de comunicação visual”, a tal ponto que, em relação à confecção de “livros com

capas ilustradas, o caso brasileiro é surpreendente tanto pelo pioneirismo quanto pela

originalidade.” (CARDOSO, 2005, p. 164). Como exemplo desse pioneirismo, Rafael

Cardoso (2005, p. 165) cita o livro Vergastas [fig. 6], de Lúcio de Mendonça, considerado

“um dos primeiros exemplares nacionais de uma capa ilustrada de autoria reconhecida”.

Impresso em 1889, na Typographia e Litographia, de Carlos Gaspar da Silva, esse livro trazia

em sua capa uma ilustração de Raul Pompéia. De certa forma, esse procedimento

acompanhava uma prática – não comum até o final da Primeira Guerra Mundial – que ocorria

em outros países. Conforme Cardoso (2005, p. 165), “uma cultura forte de ilustração de

capas” surgirá somente na década de 1920, “em especial em países de menor tradição

tipográfica, como os Estados Unidos e o Brasil”.

Porém, antes de passar à década de 1920, é necessário traçar um breve panorama – que

irá da metade do século XIX ao início do XX, para se compreender como se apresentavam os

livros no Brasil. Em meados do século XIX, à época em que, no Rio de Janeiro, o mercado

livreiro era dominado pelas livrarias-editoras de Laemmert e Garnier, segundo Alessandra El

Far (2006), se alguém passasse por uma dessas livrarias “veria filas do chão ao alto de

Figura 6: Primeira capa do livro Vergastas, de Lúcio de Mendonça. Fonte: http://www.bazardaspalavras.com.br/?mudar=listar.asp%3Flista%3D24. Acesso 30 janeiro 2007.

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exemplares cuidadosamente encadernados e, dependendo do horário, entusiasmadas

confrarias literárias que reuniam conhecidos homens de letras”.

A venda de livros “cuidadosamente encadernados” atendia a uma demanda que,

conforme Hallewell (2005, p. 219-220), Garnier dizia ser muito pequena, de forma que “a

maioria dos livros não teriam mais de trezentos compradores por ano”. Tratava-se de um

consumidor que, pertencente a uma pequena elite, podia se dar ao luxo de se portar como

europeu ou, mais precisamente, como francês. Esse comportamento foi, dentre outros, um dos

motivos que levaram Baptiste Garnier a imprimir seus livros na França: atender a clientes que

possuíam um

apelo esnobe por tudo que era francês [...], especialmente no caso dos livros mais caros, aos quais se somava ao atrativo adicional de uma encadernação francesa. Um exemplo é sua edição, em 1865, da tradução da Vulgata, por Antonio Pereira de Figueiredo, ilustrada com trinta cópias de velhos mestres gravadas em aço e impressa em dois volumes. A expressão “nitidamente impressa e suntuosamente encadernada em Pariz” aparecia constantemente nos anúncios publicitários da época. (HALLEWELL, 2005, p. 200).

Ao final do século XIX, esse gosto ainda prevalece, conforme se pode ver nas palavras

de Luiz Edmundo (2003, p. 431-432) que, em seu livro de memórias, afirma que o prestígio

do livro francês, porém, continua imoderado e incondicional. Com que avidez o lemos! Nos colégios, ainda se estuda o nosso idioma pelas obras dos clássicos portugueses. Não há biblioteca sem o seu João de Barros encadernado em carneira, as obras de Gil Vicente e de outros marechais das letras lusas, velhos e novos, o infalível busto de Camões em terracota, com uma coroa da mesma massa na cabeça... Contudo persistimos franceses, pelo espírito, e, mais do que nunca, a diminuir por esnobismo tudo que seja nosso. Tudo, sem a menor exceção. O que temos, não presta: a natureza, o céu, o clima, o amor, o café. Bom, só o que vem de fora. E ótimo, só o que vem de França.

Outra estratégia, empregada por Garnier, para atrair o comprador era a publicação de

obras em coleções. Nesse caso, afirma Hallewell (2005, p. 261-262) “a oferta de algum título

individual atrairia o leitor, levando-o a adquirir outros volumes da série. Isto se aplicava aos

autores já falecidos cujas obras pudessem ser reeditadas numa coleção completa”, a autores

consagrados, como Machado de Assis, ou, em casos excepcionais, a algum autor novo, mas

que escrevesse muito, com quem se poderia contar “para a produção ininterrupta de outras

obras semelhantes” – como foi o caso de João do Rio. Se Garnier vivesse no início do século

XXI, poderia dizer que se tratava de uma estratégia com o intuito de fidelizar o cliente –

estratégia que requer, além de um mesmo autor ou de um tema comum, um projeto gráfico

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(em que se destaca, sobretudo, a encadernação ou a capa) padronizado para todos os volumes

da coleção.

Paralelamente àquele mercado elitista, existia um outro constituído de assalariados

alfabetizados e, para ele, havia livreiros que ofereciam livros mais baratos, apresentados em

“capa brochada, papel de baixa qualidade e um projeto gráfico capaz de facilitar o exercício

da leitura.” (EL FAR, 2006). Atender a essa camada urbana do Rio de Janeiro era uma forma

de fazer com que se “passasse a ver o livro não mais como uma mercadoria de luxo, reservada

ao cultivo do saber erudito, mas, também, como um produto acessível, destinado à

informação, ao passatempo e à curiosidade passageira.” (EL FAR, 2006). Dentre aqueles

livreiros, teve destaque Pedro Quaresma, fundador da Livraria do Povo, em 1879. Além de

vender livros novos e usados, Quaresma passou a publicar livros cujos assuntos abordavam

desde temas triviais – Arte de fazer sinais com o leque e com a bengala, Manual dos

namorados, por exemplo – a assuntos mais práticos – entre outros, títulos como O padeiro

moderno, Livro do industrial moderno (PAIXÃO, 1996, p. 20).

Comparando Garnier e Laemmert a Pedro Quaresma, Luiz Edmundo (2003, p. 432),

afirma que, no final do século XIX, “os mais importantes editores são: o Garnier, que edita o

que de melhor se escreve no país, em matéria de literatura; o Laemmert, que se especializa em

edições de obras científicas ou sérias, e o Quaresma, editor de baixas- letras e que, por isso

mesmo, é popularíssimo”. Em seu livro de memórias, Luiz Edmundo (2003, p. 454), refere-se

à clientela da Livraria do Povo como “toda uma freguesia perguntona, espalhafatosa,

vozeiruda, que arranca notas de dois e cinco mil-réis do fundo de lenços de chita, muito sujos,

armados em carteiras”, enquanto os livros à venda são “brochurinhas, postas em capas de

espavento”.

Para fechar este breve panorama, busca-se, ainda em Luiz Edmundo (2003, p. 415-

422) uma descrição, no mínimo curiosa, de alguns livros publicados, outros, não, no começo

do século XX. Ele afirma que, naquele período, um grupo de jovens escritores era

influenciado por “idéias importadas”, ou, nas palavras de Luiz Edmundo, as “hostes novas da

nossa literatura vivem assanhadas pelo simbolismo” que chegava ao Brasil por meio das obras

de Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Viele Griffin, Émile Verhaeren, Paul Fort, Madame

Rachilde. O grupo passou, então a contestar os consagrados autores brasileiros. Nenhum deles

ficava livre dos seus ataques: desde Gregório de Matos, passando pelos árcades e românticos

e chegando aos contemporâneos, tais como, Olavo Bilac, Coelho Neto e, até mesmo,

Machado de Assis. Desses jovens provocadores, Luiz Edmundo diz tratar-se de uma “legião

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de novos e de loucos que enche as portas da Livraria Garnier” e de quem “há muito de

interessante e pitoresco a dizer e a contar”.

Atendendo ao propósito deste trabalho, apresenta-se somente o “interessante e

pitoresco” aspecto material de alguns daqueles livros lançados por aqueles “escribas novos”.

Além dos ataques aos autores consagrados, além de uma produção literária inusitada, além de

se vestirem e de se comportarem de forma um tanto extravagante, afirma Edmundo (2003, p.

422) que a provocação

chega ao ponto de intervir até na feição material do livro. O que está em moda, reagindo contra a brochura vulgar, é plaquette de 60, de 30 e, até às vezes, de 8 e 4 páginas! Mário Pederneiras publica Agonia e Rodas Noturnas, num formato que ofende a vista do leitor, porque é o dos velhos Memoriais da Casa Laemmert. Júlio Afrânio (Afrânio Peixoto) dá-nos o seu livro de estréia, Rosa Mística, impresso nas sete cores do prisma. É quando Cardoso Júnior pensa em publicar o Primeiro Soneto , quatorze versos distribuídos por catorze largas páginas – uma linha de verso por página impressa em papelão de respeitável grossura, o bloco encadernado, depois, em capa de folha-de-flandres. Por essa época publica Carvalho Aranha o seu segundo livro, Eu, que traz uma capa representando um carvalho e uma enorme aranha caranguejeira! O livro Manchas, de Antônio Austregésilo, justificando o título, aparece de capa branca, manchada pelos dedos dos tipógrafos, depois de metidos em tinta negra de imprimir. Melhor, porém, dá-se com Estácio Florim, que não acha quem lhe queira publicar o Lua-Cheia, livro que ele imaginou em forma circular, a impressão feita, também, em círculo, e com um sistema de encadernação constando de um cordão que, rompendo o centro das páginas, acabe em dois grossíssimos nós.

A partir daqui, retoma-se o fio lançado no início e salta-se diretamente para logo após

o final da Primeira Guerra Mundial, quando a ação de alguns editores fará com que, no Brasil

da década de 1920, a capa ilustrada venha a merecer maior atenção das editoras. Dentre elas,

despontou a Livraria Leite Ribeiro, fundada no Rio de Janeiro, em 1917. Conforme Rafael

Cardoso (2005, p. 193-194), esta casa editorial, entre 1917 e 1920, “parece ter sido a principal

editora do país durante o boom editorial que se seguiu à Primeira Guerra Mundial”, já que foi

nela que se produziram significativas mudanças em relação ao projeto gráfico dos livros, em

especial a elaboração de “capas em que a ilustração se insere em uma estrutura de

diagramação mais complexa e consciente.”, uma vez que se tratava de “um amplo esforço

para tornar atraentes as novas edições mais baratas em brochura.”. Dessa forma, apresentando

ao leitor um livro que se distanciava daquele “objeto de luxo, bem encadernado, com bom

papel e acabamento artesanal”, nota-se que os editores de livros populares, entre 1910 e 1920,

tentavam “compensar com um projeto gráfico vistoso a má qualidade de seus materiais e o

seu péssimo acabamento.” (CARDOSO, 2005, p. 177).

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No período entre 1920 e 1930, Rafael Cardoso (2005, p. 180-181) afirma que as capas

de livros eram produzidas por “artistas e ilustradores renomados à época”. Dentre eles, havia

caricaturistas (tais como Alvarus, Correia Dias, Fritz, Nemésio, Paim, Raul, Trinas Fox e

Voltolino); artistas plásticos (Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor

Brecheret – que produziram capas para obras de autores proeminentes do Modernismo de

1922 –, Wasth Rodrigues, dentre outros) e, ainda, artistas gráficos (Edgar Koetz, Geraldo

Orthof, João Fahrion, Santa Rosa). Cardoso (2005, p. 181) afirma que, em face da quantidade

de capas produzidas e pela qualidade, Paim e Correia Dias foram os que mais se destacaram.

Quanto ao pioneirismo em se elaborar capas ilustradas, Rafael Cardoso (2005, p. 165)

não considera Monteiro Lobato “o primeiro editor a romper com o padrão então vigente de

capas puramente tipográficas”. Tampouco aceita a capa elaborada pelo artista José Wasth

Rodrigues para o livro Urupês, de Monteiro Lobato, publicado em 1918, como o marco inicial

“do design de capas no Brasil, bem como um ponto de partida para a reconfiguração dos

projetos de livros de modo geral, incluindo uma maior atenção à qualidade tipográfica e à

diagramação do miolo”. Para ele (2005, p. 177-180), teria sido o artista Fernando Correia

Dias o pioneiro criador de capas cujas ilustrações “evidenciam o uso consciente de uma malha

diagramática”. As primeiras edições dos livros Nós (poemas de Guilherme de Almeida,

publicado em 1917 e impresso nas oficinas de O Estado de S. Paulo) e Da seara de Booz

(crônicas de Humberto de Campos) [fig. 7], publicado em 1918 pela Livraria Leite Ribeiro)

constituem-se nas capas mais antigas de Correia Dias.

De acordo com Cardoso (2005, p. 180), “são projetos simples mas bem-resolvidos e

trazem em destaque a assinatura” de Correia Dias. Colocar a assinatura do ilustrador na capa,

Figura 7: Primeira capa do livro Da seara de Booz, de Humberto de Campos. Fonte: Cardoso (2005, 166)

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tinha a intenção de não somente remeter “a uma tradição estabelecida no meio de gravura”,

como também valorizar a capa, “associando-a a um artista de renome, como era o caso de

Correia Dias à época.” (CARDOSO, 2005, p. 180). Se, por um lado, descarta Lobato como

pioneiro; por outro lado Cardoso (2005, p. 168) não contesta a sua importância, pois

considera a atuação de Lobato “decisiva sim na adoção da capa ilustrada como prática

comercial corrente e, por conseguinte, na sofisticação da programação visual dos livros

brasileiros”, porém afirma ser “um erro atribuir tais mudanças apenas à sua iniciativa e, pior

ainda, ignorar o que foi feito à mesma época por outras editoras”.

É significativo que sejam estabelecidos os marcos do pioneirismo na realização de

capas ilustradas e os nomes de quem deram esses primeiros passos, no entanto, há que se

ressaltar o fato de que, nas duas primeiras décadas do século XX, havia editores que

revelavam ter consciência de que, independentemente do valor artístico e cultural atribuído ao

livro, este era visto como mercadoria que, como qualquer outra, deveria atrair o comprador e,

mais ainda, chegar até ele. É nesse empenho que a atuação do editor Lobato se destaca, pois,

além de se preocupar com a apresentação do livro, lançava mão de diferentes estratégias que

pudessem fazer do livro um objeto comum e acessível ao maior número de pessoas possível.

Desde o início das atividades da editora Monteiro Lobato & Cia. (fundada em São

Paulo e que teve vida ativa entre 1919 e 1925), o editor Lobato, considerando que as capas

dos livros eram monótonas e “consciente do valor pub licitário de uma atraente aparência

externa de sua mercadoria”, convocou “desenhistas”, mandou “pôr cores berrantes nas capas”

e mandou “pôr figuras.” (HALLEWELL, 2005, p. 326). De maneira que, em pouco tempo,

conforme o próprio Lobato (1969, p.174) os “balcões das livrarias encheram-se de livros com

capas berrantes, vivamente coloridas”. Ia além, influindo também na escolha de títulos,

aconselhando a que se pusessem nomes femininos, pois, “em cheirando mulher lá dentro, os

leitores concupiscentes compram por ver. Editar é fazer psicologia comercial.” (LOBATO

apud PAIXÃO, 1996, p. 49).

Capas atraentes, títulos sugestivos, mas como alcançar o comprador? A resposta de

Lobato a esta pergunta, não apenas mostrará que ele tomava atitudes arrojadas bem como

permitirá que se revele o nome do brasileiro a quem se aludiu anteriormente [ver página 34].

Foi Monteiro Lobato o brasileiro que, dezessete anos antes de Allen Lane e da senhora

Prescott, teve a idéia de ampliar a rede de distribuição de livros no Brasil. A idéia surgiu

quando Lobato publicou a primeira edição de Urupês – antes mesmo de fundar sua editora – e

se defrontou com a escassez de livrarias que, segundo Halleweel (2005, p. 319-320), seriam

pouco mais de trinta “em todo o país, dispostas a aceitar livros em consignação”. Sua primeira

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iniciativa foi utilizar os canais de distribuição da Revista do Brasil – o primeiro

empreendimento editorial em que Lobato se envolveu – conseguindo, desse modo, “aumentar

os possíveis pontos-de-venda para perto de duzentos”. Até aí, tratava-se de uma ação sem

grande ousadia. Esta se revelaria em seguida, quando enviou circular a

uns1300 negociantes cujos endereços com algum esforço obtivemos: 1300 negociantes de 1300 cidades e vilas do Brasil dotadas de serviço postal – donos de pequenas papelarias, donos de bazar, de farmácias, de lojas de armarinho ou de fazendas e até de padarias... A circular propunha-lhe um negócio novo: a venda duma coisa chamada “livro”, que eles receberiam em consignação e, pois, sem empatar dinheiro nenhum. Vendida que fosse a tal misteriosa mercadoria, o negociante descontava a sua comissão de 30% e nos enviava o saldo. (LOBATO, 1969, p.173-174).

Mais saboroso, ainda, é o texto daquela “famosa circular”, conforme reproduzida em

Hallewell (2005, p. 320):

Vossa Senhoria tem o seu negócio montado, e quanto mais coisas vender, maior será o lucro. Quer vender também uma coisa chamada “livros”? Vossa Senhoria não precisa inteirar-se do que essa coisa é. Trata -se de um artigo comercial como qualquer outro: batata, querosene ou bacalhau. É uma mercadoria que não precisa examinar nem saber se é boa nem vir a esta escolher. O conteúdo não interessa a V. S., e sim ao seu cliente, o qual dele tomará conhecimento através das nossas explicações nos catálogos, prefácios, etc. E como V. S. receberá este artigo em consignação, não perderá coisa alguma no que propomos. Se vender os tais “livros”, terá uma comissão de 30 p. c.; se não vendê-los, no-los devolverá pelo Correio, com o porte por nossa conta. Responda se topa ou não topa.

Com isso, afirma Hallewell (2005, p. 320), Lobato ampliou sua rede para “quase dois

mil distribuidores espalhados pelo Brasil” e só não vendeu livros em açougue: “os únicos

lugares em que não vendi foi nos açougues, por temor de que os livros ficassem sujos de

sangue.” (LOBATO, apud HALLEWELL, 2005, p.320).

Ainda que não seja considerado o editor que, primeiramente, publicou livros com

capas ilustradas, Monteiro Lobato teve papel destacado na produção editorial brasileira, pois

ao longo dos “sete anos de sua primeira aventura editorial, ele conseguiu revolucionar todos

os aspectos da indústria.”, a tal ponto que “o que realizaram editores posteriores, como a José

Olympio, somente foi possível porque puderam trilhar o caminho que Lobato já havia

explorado.” (HALLEWELL, 2005, p. 326). Acrescente-se, ainda, que, conforme Hallewell

(2005, p. 326), ele respeitava seus autores – dentre os quais, tinha predileção pelos novos – e

lhes pagava bons direitos autorais. De acordo com Paixão (1996, p. 48), Monteiro Lobato foi

um divisor de águas dentro da atividade editorial brasileira e a

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história do livro no Brasil pode ser dividida em antes e depois de Monteiro Lobato. O escritor paulista foi o responsável pelos primeiros investimentos nacionais na área do livro, desde a Editora Revista do Brasil, passando pela Monteiro Lobato & Cia. e pela Cia. Editora Nacional, até chegar à Editora Brasiliense, que ajudou a fundar.

Até a década de 1930, consolidavam-se procedimentos que dariam maior sustentação à

atividade editorial no Brasil. Apesar disso, quanto à apresentação, o “livro brasileiro perdia de

longe em comparação com os estrangeiros, sobretudo os de origem européia”, afirma Paixão

(1996, p. 118). Havia, entre os editores nacionais, maior preocupação com o conteúdo,

deixando o aspecto visual em segundo plano. Os livros brasileiros apresentavam-se, em geral,

como “brochuras com folhas mal-aparadas, tipos (letras) grosseiros e impressão descuidada”,

completa Paixão (1996, p. 118). Tanto que, em 1925, Gilberto Freyre, comparando os livros

(“que são uma alegria artística para os olhos”) publicados nos Estados Unidos, Inglaterra,

Itália e Alemanha, aos livros brasileiros e portugueses, afirma que estes são feios. Dizia

Freyre (1925) que, enquanto naqueles países ocorria um movimento de reabilitação da estética

do livro, Brasil e Portugal mantinham-se desatentos a isso e completava que éramos “os

países do livro feio. Do livro mal feito. Do livro incaracterístico. Principalmente o Brasil.”

Nem Monteiro Lobato escapava de sua avaliação. Gilberto Freyre reconhecia que Lobato

havia conseguido “animar de certa nota de graça o livro brasileiro. Mas ligeiríssima graça.

Livro belo, não saiu nenhum de suas mãos ou de seus prelos” e, justifica sua apreciação,

lembrando de um exemplar de luxo de Urupês que “era uma melancolia para os olhos. Uma

humilhante melancolia para os olhos de brasileiro longe de sua terra. Contrastava com os

livros comuns que então me rodeavam”.

Além da capa, era chegado o momento de se dar atenção ao livro como um objeto bem

apresentável no seu todo. Nessa tarefa, destacou-se Tomás Santa Rosa que “tem sido

considerado o maior produtor gráfico de livros do Brasil, responsável, quase sozinho, pela

transformação estética do livro brasileiro nos anos 1930 e 1940.” (HALLEWELL, 2005,

p.462). Santa Rosa realizou, em 1933, seu primeiro projeto gráfico: a primeira edição de

Caetés [fig. 8], de Graciliano Ramos, publicado pela Livraria Schmidt Editora, do poeta

Augusto Frederico Schmidt. (LIMA e FERREIRA, 2005, p. 204). No mesmo ano, Santa Rosa

projetou e ilustrou o romance Cacau, de Jorge Amado, publicado pela editora Ariel. A partir

desse projeto, em que se destacavam os “desenhos nitidamente modernistas”, Santa Rosa “se

faria cada vez mais presente no setor editorial. Cacau pode ser considerado seu melhor e mais

completo trabalho dessa fase, com uma solução harmônica para a capa e o miolo ilustrados.”

(LIMA e FERREIRA, 2005, p. 205).

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Santa Rosa produziu sete trabalhos para as editoras Schmidt e Ariel. Embora

possuíssem qualidade, era uma proposta sua, pois faltava àquelas editoras “um projeto

editorial explícito” que pudesse “dar unidade à sua produção.” Faltava, enfim, “um

profissional fixo que se responsabilizasse por essa tarefa”, uma vez que o aspecto gráfico do

livro variava conforme o gosto do autor ou do editor (LIMA e FERREIRA, 2005, p. 208). A

realização de um “projeto gráfico explícito”, tornou-se realidade para Santa Rosa quando, em

1935, foi contratado pela Livraria José Olympio Editora para trabalhar “como produtor

gráfico, ou seja, responsável pelo design dos livros, projetando as fontes, a mancha do texto e

as capas. (...) submetendo sua criação plástica, antes desinibida, a um planejamento editorial,

levando em conta custos e padronização.” (LIMA e FERREIRA, 2005, p. 209).

O primeiro trabalho de Santa Rosa para a José Olympio foi o projeto do livro Moleque

Ricardo, de José Lins do Rego, em 1935. Posteriormente, ele ficaria responsável pela

identidade visual da coleção “Ciclo da cana-de-açúcar”, constituída por obras daquele mesmo

autor. Além deste autor, Santa Rosa trabalhou nos projetos de muitos autores significativos

naquela época – que, na história da literatura brasileira, pertenceram à segunda fase do

Modernismo, mais precisamente, ao ciclo dos romances regionalistas. Segundo Lima e

Ferreira (2005, p. 216), o “impacto da nova literatura trazida por sua geração era

acompanhada pelo apelo visual das capas, com ilustrações que explicitavam o tema do livro”.

Ainda para os novos autores, os projetos de Santa Rosa, que davam “uma roupagem séria”

Figura 8: Primeira capa de Cahetes, de Graciliano Ramos. Fonte: (Cardoso) 2005, 197

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àquelas obras, ajudaram a “lhes garantir o respeito do público e da crítica.” (LIMA e

FERREIRA, 2005, p. 216).

De 1933 a 1956, ano em que faleceu, Santa Rosa contribuiu, significativamente, para a

melhoria da apresentação gráfica do livro. Segundo Hallewell (2005, p. 462), seu trabalho,

além daquele desenvolvido nas editoras comerciais da época, destacou-se, ainda pela

“verdadeira revolução no aspecto físico das publicações do Governo Federal. A Casa Rui

Barbosa, o Instituto Nacional do Livro, o Itamarati e o Serviço de Informação Agrícola, todos

utilizaram seus serviços” e por sua “influência como professor: em 1946, dirigiu o efêmero

curso de artes gráficas na Fundação Getúlio Vargas”. O respeito pelo texto do autor, o

cuidado com que tratava a relação entre a ilustração e o texto e a consciência que tinha de seu

trabalho ficam evidentes quando se lê um trecho do próprio Santa Rosa que, em 1952,

publicou Roteiro de arte, em que expõe o seu processo de criação. Segundo ele (apud LIMA e

FERREIRA, 2005, p. 220), o que

conta para o ilustrador não é o descritivo do poema, do conto, do romance, mas a atmosfera espiritual em que se movem os ritmos, os sentimentos, os personagens, o clima que evoca suas situações íntimas. Tomamos várias atitudes, portamo-nos como cineastas quando procuramos o ângulo justo em que o assunto mais avulta, mais se define, mais se precisa. Ora, espionamos os personagens de um romance, cercamo-los, esmiuçamos suas vidas, seus hábitos mais íntimos, suas manias, seu andar: as rugas da face, só com o fim de transpor com a mais densa verdade, o seu caráter e a sua força.

A designação de um profissional fixo responsável por todo o projeto gráfico das

publicações de uma editora foi uma decisão que se manteve na José Olympio e repetida em

outras editoras, como a Companhia Editora Nacional e a Livraria Martins Editora. Na José

Olympio, após a morte de Santa Rosa, essa atividade ficou a cargo de Luís Jardim que, desde

1942, fazia capas de livros para José Olympio. Seu trabalho também ficou marcado pelos

muitos “retratos a bico-de-pena que fez para o frontispício de inúmeras publicações da José

Olympio.” (HALLEWELL, 2005, p. 463). A Nacional, no final da década de 1940, contou

com o ilustrador Rubens de Barros Lima como profissional responsável pela produção gráfica

da editora. Ele permaneceu nesse trabalho até por volta de 1970. Afirma Hallewell (2005, p.

382) que ele “desenvolveu um estilo despojado, pregou soluções modernas (formato,

diagramação, ilustrações etc.)” e ressalta a “qualidade dos desenhos de capa e ilustrações,

decorrente da colaboração de artistas como Carlos Bastos, Carybé, Darcy Penteado, Walter

Levy e outros”. Na Livraria Martins Editora, o cuidado com a estética dos livros foi tarefa do

produtor gráfico Frederico José da Silva Ramos que deu atenção a “detalhes como

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diagramação, tipo de papel e de letra” e à concepção de capas e ilustrações “entregues, ao

longo dos anos, a artistas como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Guignard,

Carybé e Iberê Camargo.” (PAIXÃO, 1996, p. 111).

De acordo com Paixão (1996, p. 122), a década de 1940 pode ser considerada como “o

período áureo da ilustração de livros no Brasil”. Se até a década de 1930, o esforço fora no

sentido de desenvolver práticas que pudessem viabilizar a atividade editorial brasileira, a

partir de 1940, o problema dos “livros feios”, como afirmara Gilberto Freyre, estava superado.

Isso foi fundamental para as décadas seguintes visto que a apresentação gráfica do livro

deveria atender a um novo leitor que se constituiria, paulatinamente, a partir de meados de

1950 e, de forma acentuada, no correr da década de 1960. Nesse período, o público potencial

cresce tanto em quantidade como em qualidade, em virtude da formação de uma população

universitária que, conforme Chico Homem de Melo (2006, p. 61), configuraria um novo perfil

de leitor: “mais informado, mais aberto a novidades, mais crítico, mais ativo, mais jovem”.

Foi nesse contexto que Eugênio Hirsch atuaria de forma significativa, quando, em

1959, foi contratado pelo editor Ênio Silveira para ser o principal produtor gráfico da editora

Civilização Brasileira. Seu trabalho foi destacado por Hallewell (2005, p. 545) como “uma

revolução que [...] se estendeu à indústria editorial como um todo”. Sua produção estava “em

sintonia com o panorama mundial das artes visuais e do design de seu tempo.” (MELO, 2006,

p. 65). Foi o primeiro a empregar, sistematicamente, a fotografia em suas capas – mais

freqüentemente, a utilizava em alto-contraste. Em algumas capas [fig. 9], o emprego dessa

técnica tem um resultado “mais próximo da arte pop” e o “tratamento da imagem [...] lembra

Figura 9: Capa elaborada por Eugenio Hirsch. Fonte: Melo (2006, p. 65)

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trabalhos posteriores de Andy Warhol.” (MELO, 2006, p. 65). Como uma das idéias de

Hirsch era causar surpresa, o seu trabalho “hipertrofia o design na tentativa de seduzir o

público. (MELO, 2006, p. 62), Desse modo, Hirsch não se deixava mobilizar por questões

como “legibilidade, clareza, fidelidade ao conteúdo do livro”, uma vez que “estava

empenhado na venda do livro” cuja capa “era concebida como um cartaz no ponto-de-venda”.

Quanto a isso, Hirsch estava também em sintonia com o editor Ênio Silveira que não

tinha qualquer receio em utilizar a publicidade para vender seus livros. Além disso, Ênio

Silveira dava total liberdade às inovações gráficas empreendidas por Eugênio Hirsch. A

mesma que teve Marius Lauritzen Bern, substituto de Hirsch, e que atuou na Civilização

Brasileira desde meados de 1960 até o final daquela década. Embora desse continuidade às

inovações de Hirsch, entre o trabalho de Bern e o de seu antecessor “há um diferencial

importante”, já que procurou respeitar a “legibilidade dos textos e buscou estabelecer vínculos

entre a capa e o assunto tratado pelo livro.” (MELO, 2006, p. 70). Se por um lado, perdia-se a

contundência presente nas capas de Hirsch; por outro, as capas elaboradas por Bern

revelavam ser ele “um mestre no equilíbrio entre os vários fatores envolvidos na questão do

design.” (MELO, 2006, p. 70).

No mesmo período, Manuel Bandeira, Fernando Sabino e Rubem Braga lançavam-se

em uma aventura editorial, iniciada em 1960 e que não chegaria ao final da década. No

entanto, as capas dos livros da Editora do Autor (depois, com a saída de Manuel Bandeira,

ficou sendo a Editora Dois Amigos e, pouco tempo depois, Sabiá) impressionam não somente

pela qualidade como também pelos artistas que as confeccionaram: Carlos Scliar, Glauco

Rodrigues, Bea Feitler [fig. 10], Jaguar, Fortuna e Ziraldo. Todos, com exceção de Ziraldo,

Figura 10: Capas elaboradas por Bea Feitler. Fonte: Melo (2006, p.75)

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estavam ligados à revista Senhor (que circulou de 1959 a 1964), considerada um marco na

história da imprensa brasileira tanto por sua qualidade textual quanto pelo arrojo de sua

apresentação gráfica. Por essa razão, conforme Melo (2006, p.75), as capas elaboradas por

eles possuíam “a mesma elegância sóbria de Senhor”, distinguindo-se daquelas elaboradas por

Hirsch e Bern pelos “vazios, jogos tipográficos, desenhos delicados, invenções gráficas”.

Ainda nos anos 1960, devem ser destacadas as capas elaboradas por Jayme Cortez e

Vicente Di Grado em livros de apelo popular. O primeiro foi responsável pelas capas [fig.11]

das obras de José Mauro de Vasconcelos, autor de verdadeiros best-sellers, dentre os quais,

Meu pé de laranja lima, seu maior sucesso. Melo (2006, p. 85-86) afirma que Cortez

criou um padrão de capa atraente e facilmente reconhecível: a ilustração ocupando todo o campo, o nome do autor no alto, o título em letras grandes no pé da página, grafado em tipos claros e legíveis; e, na maioria delas, um monocromatismo que acentuava a particularidade de cada volume. Há ainda um detalhe que merece menção: as ilustrações atravessam a lombada e ocupam toda a quarta capa. O livro passa a ser um objeto íntegro, identificável em qualquer posição que esteja.

Figura 11: Capas elaboradas por Jayme Cortez. Fonte: Melo (2006, p. 86)

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Vicente Di Grado fez capas [fig.12] para o Clube do Livro – o público era formado por

sócios que, a cada mês, recebiam uma obra nova. Nesse caso, não haveria a necessidade de se

recorrer a qualquer apelo para atrair compradores, mas, sim, de se produzir um livro que

tivesse, ao mesmo tempo, um aspecto gráfico atraente e um baixo custo de produção (MELO,

2006, p. 88). Di Grado, diante da necessidade de baratear a produção do livro, concebe capas

que se caracterizam pela austeridade e pelo uso contido das cores sobre “um papel opaco e

sem revestimento.” No entanto, supera tais limites dando ênfase, em cada capa, ao título da

obra e a uma imagem, enquanto o nome do autor é colocado no alto da capa, mas sempre

“composto em corpo reduzido, para não criar uma segunda informação textual conflitante na

capa.” (MELO, 2006, p. 90).

A concepção de um projeto gráfico inovador também alcançou as obras da área das

ciências humanas. Isso ocorreu em 1968, quando a editora Perspectiva lançou a coleção

Debates. Melo (2006, p. 95-97) afirma que a responsabilidade pelo desenvolvimento desse

projeto ficou a cargo de Moysés Baumstein que definiu um formato diferente para toda a

coleção. O livro, [fig. 13] cuja dimensão era de 11,5 cm x 20,5 cm, ficou um pouco mais

estreito. Desse modo, ele se distinguia dos demais livros existentes no mercado, uma vez que

Figura 12: Capas elaboradas por Vicente Di Grado. Fonte: Melo (2006, p. 90)

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aquele formato alterava “a visualidade geral do livro, deixando-o mais esbelto”. Baumstein

padronizou a apresentação das capas de todos os volumes: criou um “diagrama”, dividindo a

capa em “setores, cada um deles correspondendo a um tipo de informação”; manteve o branco

como cor de fundo; criou um logotipo específico para a coleção, constituído pela palavra

debates “repetida três vezes”, construindo, no alto, à esquerda, um “bloco visual”; acima e

logo abaixo desse bloco, colocou dois fios grossos e coloridos que ocupavam toda a largura

da capa e, por fim, definiu o rodapé como o local para o logotipo da editora e sua

identificação – em tipos brancos sobre um fundo preto. Dentro desse padrão, além do título da

obra e do nome do seu autor, variavam apenas a identificação da área de conhecimento

(sempre no alto e à direita do logotipo da coleção); a cor dos fios – para cada área, havia uma

cor definida – e o número (colocado na lombada) indicativo da ordem de lançamento de cada

obra dentro da coleção.

De acordo com Melo (2006, p. 97), as soluções encontradas – um sistema, marcado

pela “limpeza, precisão, legibilidade, clareza, código” – por Moysés Baumstein é uma “das

melhores respostas ao desafio de projetar uma coleção na história do design brasileiro”. Tais

soluções revelam que, deixando de particularizar cada obra, se valorizava a coleção. Para

Melo (2006, p. 95), Moysés podia fazer isso, já que a maioria das obras publicadas “eram

fundamentais em suas áreas de conhecimento” e “podiam prescindir de particularização”. A

repercussão da Debates foi tão grande que também passou a valorizar cada obra, já que sua

Figura 13: Coleção Debates – capa elaborada por Moyses Baumstein. Fonte: Arquivo do autor

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presença naquela coleção, era um atestado de que se tratava de um livro importante dentro de

sua área de conhecimento.

Abrem-se, aqui, parênteses para aproveitar o tema tratado nos dois últimos parágrafos

e saltar até os anos 1990, momento em que algumas editoras universitárias – tais como as da

USP, da UNESP, da EDUSC, entre outras – passaram a dar especial atenção à forma como

seus livros deviam ser apresentados. Um trabalho que detalha bem o processo de renovação

pelo qual o livro universitário passou encontra-se em Edusp – um projeto editorial, de Plínio

Martins Filho e Marcello Rollemberg. Esses autores (2001, p. 91) afirmam que, antes daquele

período, o “livro universitário” era visto como sinônimo de “obras malfeitas e malcuidadas”,

pois se acreditava que editar um livro acadêmico “era só colocar o texto em letra de forma e,

se o trabalho em questão tivesse número de páginas e formato adequados, e com isso, ficasse

de pé, já podia ser chamado de livro”. No caso da Edusp – Editora da Universidade de São

Paulo –, para reverter essa situação, foram convocados os próprios designers oriundos do

curso de Editoração da Escola de Comunicação e Artes, da USP, que realizaram projetos em

que o livro foi concebido de forma global e cujas capas procuravam valorizar tanto o título

quanto o assunto de cada obra (MARTINS FILHO, 2001, p. 62).

Fecham-se os parênteses e retoma-se a cronologia para assinalar que, nos anos 1980,

os cuidados com a confecção de capas de livros ganharam destaque. Isso ocorreu porque

editoras – em especial a Companhia das Letras e, mais tarde a Cosac & Naify –, zelosas

quanto à apresentação de seus livros, puderam contar com nomes como Ettore Bottini, João

Baptista da Costa Aguiar, Moema Cavalcanti [fig. 14], Raul Loureiro, Vitor Burton, entre

Figura 14: Capa elaborada por Moema Cavalcanti Fonte: Arquivo do autor

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outros, que, atendendo ao desejo das editoras, elaboraram trabalhos de qualidade e deram

relevância à arte de se fazer capas, a tal ponto que, em jornais e em revistas, muitas vezes, as

resenhas de livros passaram a incluir em seus comentários uma fa la sobre a propriedade da

capa.” (LEON, 2005). Tal destaque pôde ficar evidente também, a partir de 1991, quando o

Prêmio Jabuti – concedido, anualmente, às pessoas e aos produtos que se destacam nas

atividades editoriais – passou também a premiar o melhor capista. O primeiro a recebê-lo foi

Ettore Bottini, com a capa para o livro Tão Triste Como Ela, de Juan Carlos Onetti, publicado

pela Companhia das Letras. Ainda em 1991, o Museu da Imagem e do Som realizou a

exposição “A arte da capa” em que foram expostos trabalhos realizados por Ettore Bottini,

Eugênio Hirsch, Moema Cavalcanti e João Baptista da Costa Aguiar. Conforme

HALLEWELL (2005, p. 744), “No céu, Monteiro Lobato deve ter ficado muito contente!”

com tal reconhecimento.

Além da qualidade de seus trabalhos, os capistas desenvolveram alto grau de

profissionalismo, ao reivindicar novos critérios de remuneração, como, por exemplo, receber

uma porcentagem das vendas de um livro, uma vez que recebem o mesmo valor pela

confecção de uma capa, seja para uma edição de mil exemplares, seja para uma de vinte mil.

Isso porque reconhecem a força que uma boa capa exerce na atração de possíveis

compradores. Desenvolveram, ainda, a consciência de que poderiam realizar um trabalho

melhor se as editoras entregassem a um só profissional tanto a confecção da capa quanto o

design do miolo de um livro, de tal maneira que as soluções gráficas resultassem em um

objeto, visualmente, harmonioso.

Encerra-se esta seção, citando um dos episódios do seriado Seinfeld, em que o

personagem George compra uma carteira e passa a exibi-la para todos. Por esse motivo, seu amigo

Jerry Senfield o ironiza, entendendo que se trata de objeto a que não se deve dar tanta importância.

George defende-se, afirmando que tudo o que é importante tem capa: pente tem capa, dinheiro tem

capa – a carteira. George, dessa forma, enfatiza o conteúdo e entende capa como mera proteção. Se

se aplicar o raciocínio de George à capa de um livro, chega-se à mesma conclusão? A resposta pode

ser dada de maneira muito simples: de certo modo, George tem razão: tudo que é importante

precisa ter capa. E, se é assim, que a capa seja bem feita! Ou pode-se encontrar resposta muito

mais elaborada. Para Chico Homem de Melo (2006, p. 95) a capa de um livro tem “um papel

hegemônico na construção da visualidade dos livros” e “pela dimensão comunicaciona l que

lhe é inerente”, condensa “um pensamento sobre a própria obra. O livro é o ícone da cultura, e

a capa é o ícone do livro”.