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CAPÍTULO I A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES Figura 2 - imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias “... mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um ‘não-eu’ se reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe”. Paulo Freire (1996, p. 85)

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CAPÍTULO I

A EDUCAÇÃO COMPARADA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Figura 2 - imagens da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

“... mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma Presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reconhecendo a outra presença como um

‘não-eu’ se reconhece como ‘si própria’. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que

sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe”. Paulo Freire (1996, p. 85)

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1.1 A educação e o método comparativo

Para uma reflexão mais aprofundada acerca da investigação proposta, a

abordagem metodológica utilizada foi a do estudo comparado. Fazer analogias e

comparar são ações inerentes à consciência e à vida humana, e a busca por conhecer as

diferentes soluções que outros povos encontraram para seus problemas sempre foi um

meio de desenvolvimento e de enriquecimento. Com todas as transformações ocorridas

no mundo nas últimas décadas, as questões do outro e das relações interculturais

passam a ter um lugar central nas ciências sociais, nos projetos de solidariedade e de

cooperação. Podemos dizer, então, que a comparação é o processo de perceber

diferenças e semelhanças, para perceber o outro e a partir dele, se reconhecer

(FRANCO, 2000). Nesse sentido, a metodologia comparativa vem ganhando corpo e

importância, num mundo que se vê cada dia mais envolvido em um processo

irreversível de globalização econômica e cultural.

Entende-se, como Nóvoa e Popkewitz (1992), que a utilização dos estudos

comparados em uma pesquisa científica pode se tornar um risco se não houver

preocupação e cuidado para que os mesmos não se tornem meramente descritivos,

havendo necessidade de uma elaboração conceitual que dê sentido à inter-relação e à

comparação de diferentes realidades. Para podermos dar corpo a estes conceitos, as

bases teóricas vêm de Ferreira (2001), considerando que a Educação Comparada vem

apresentando, nas últimas décadas, maior reconhecimento tanto por parte de

importantes organizações internacionais, quanto da comunidade acadêmica das mais

prestigiadas universidades. Apesar disso, há ainda muita divergência em relação à sua

definição e ao seu alcance, pelo fato de que a mesma não apresenta uniformidade nas

técnicas metodológicas. Isto, porém, ao invés de apresentar-se como fragilidade, pode

ser considerada como uma situação adequada a um “momento histórico em que se

admitiu a incapacidade da ciência em explicar a complexidade do mundo”

(FERREIRA, 1999, p.123).

Em uma análise de suas várias definições, afirma o autor que o aspecto mais

constante e aparentemente mais consensual diz respeito à aceitação de um método

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próprio e que, para além de uma metodologia própria, deverá contar com um objeto

específico de estudo. Parece-nos que a definição de Daele (1993) seria a que mais

completamente traduz o que se pode conceituar como Educação Comparada:

Educação Comparada é: a) a componente pluridisciplinar das Ciências da Educação; b) que estuda os fenômenos e os fatos educativos; c) nas suas relações com o contexto social, político, econômico, cultural, etc.; d) comparando suas semelhanças e suas diferenças em duas ou mais regiões, países, continentes, ou a nível mundial; e) a fim de melhor compreender o caráter único de cada fenômeno no seu próprio sistema educativo e de encontrar generalizações válidas ou desejáveis; f) com a finalidade de melhorar a educação. (DAELE apud FERREIRA, 2001, p. 8)

Ao considerar-se como uma das finalidades fundamentais da Educação

Comparada, a de contribuir para um melhor entendimento dos sistemas escolares,

deve-se cuidar para não cair no risco apontado por Garrido (1986, p. 105 apud

FERREIRA, 2001, p. 12), de se oferecer modelos para serem imitados ou recusados,

uma vez que esta não é a sua finalidade, e sim, a de compreender os povos e aprender

com suas experiências educacionais e culturais. A comparação leva a uma

identificação de semelhanças e diferenças e à sua interpretação a partir dos contextos a

que pertencem, o que leva a uma melhor compreensão do fenômeno educativo. A

importância da contribuição da Educação Comparada hoje, para que a análise do

fenômeno educativo possa ser feita a partir de um ponto de vista global, se sustenta em

Teodoro (1999, p. 117), considerando que:

Num tempo histórico relativamente curto, a educação, de um obscuro domínio da política

doméstica, tem vindo a tornar-se, progressivamente, um tema central nos debates políticos, a nível nacional e internacional. Esta passagem da educação do domínio doméstico para o domínio público, com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas educativas. (...) Trabalhos recentes (...) estão a apontar uma outra perspectiva para este campo da análise das políticas educativas, que se situam no que se pode designar de educação comparada e que pretendem abarcar no seu objeto de estudo tanto o local como o global.

Desta forma, por se ter como universo desta pesquisa as últimas reformas

educativas ocorridas em Portugal (1986) e no Brasil (1996), especificamente no que

concerne sobre a formação inicial do professor para os primeiros anos da Educação

Básica, entendendo-se que a análise comparativa dos seus aspectos legais, históricos e

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contextuais seria a abordagem metodológica mais adequada para que se pudesse

atingir os objetivos propostos.

Assim, para que se pudesse ter maior clareza sobre como utilizar a metodologia

do estudo comparado, procedeu-se a um percurso sobre os aspectos teóricos,

históricos, metodológicos e práticos, com base nos estudos de Ferreira (1999 e 2001) e

de Ferreira e Gugliano (2000). Como no Brasil há dificuldade na disponibilidade

bibliográfica de estudos aprofundados acerca da metodologia do estudo comparado, o

percurso teórico teve as bases, quase que na totalidade em Ferreira, fazendo uso de

suas obras de 1999 e 2001, por entender-se que o autor procede a uma espécie de

“estado da arte” sobre a questão da Educação Comparada.

1.2 Visões e conceitos históricos da Educação Comparada

Ao tentar descrever o breve percurso histórico da Educação Comparada,

Ferreira (1999) aponta que há certa dificuldade, pois se apresentam controvérsias com

relação à periodização da mesma. Definir seus períodos de evolução significa buscar

estabelecer qual o significado da mesma no caminho que percorreu até aqui.

Sintetizam-se aqui as seguintes periodizações apresentadas por Ferreira (1999, p. 123-

155), segundo os vários autores consultados sobre a Educação Comparada:

1) Friedrich Schneider, que divide em dois períodos: o da pedagogia do

estrangeiro, que é caracterizado pelo produto das viagens de estudo ao estrangeiro

realizadas por pedagogos e políticos, que observavam a organização educativa dos

países vizinhos e eventualmente a comparavam com a do próprio país, e o da

pedagogia comparada propriamente dita, que se desenvolve ao longo do século XX e

que busca a explicação dos fatos pedagógicos, ou seja, suas forças determinantes ou

fatores configurativos.

2) George Bereday, estabeleceu três períodos: o primeiro denominou de

empréstimo, que cobre o século XIX, onde se buscava a apresentação de dados

descritivos que deviam fazer a comparação com o objetivo de avaliar as melhores

práticas educativas para as transpor para outros países. O segundo, que denominou de

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predição, ocupou a primeira metade do século XX, e iniciou com Michael Sadler que

introduziu a idéia de que o sistema educativo não é parte separável da sociedade que

lhe serve de base. Os seus continuadores (Friedrich Schneider, Franz Hilker, Isaac

Kandel, etc) passaram a dar especial atenção aos alicerces da educação. Assim, já se

poderia predizer o provável sucesso de um sistema educativo num país com base em

experiências similares de outros países. No terceiro período, que denominou de

análise, a ênfase é colocada na classificação dos fatos educativos e nos sociais que lhe

estão associados. Assim, havia uma preocupação em desenvolver teorias e métodos e

estabelecer uma clara formulação das etapas, dos processos e dos mecanismos

comparativos para que se fizesse uma análise menos baseada em valores ético-

emocionais.

3) Alexandre Vexliard indica quatro períodos: a etapa estrutural, representada

pela obra Esquisse, de Marc-Antoine Jullien de Paris, publicada em 1817, considerada

o marco inicial da Educação Comparada, onde se encontram os princípios

“arquiteturais” e os princípios metodológicos dos estudos comparados em educação. O

segundo período, denominado dos “inquiridores”, vai aproximadamente de 1830 a

1914, quando os governos mandavam os inquiridores percorrerem a Europa e os

Estados Unidos para estudar os sistemas de ensino em vigor nesses países. O terceiro

período, denominado das sistematizações teóricas, ocorre por volta de 1920-1940, que

é marcado pelos trabalhos de Kandel, Schneider, Hans, entre outros. Este período foi

dominado por preocupações históricas. O quarto período, denominado prospectivo,

ocorre após a segunda guerra mundial e, sobretudo depois de 1955, quando os estudos

comparados em educação passaram a estar voltados para o futuro.

4) Noah e Eckstein apresentam cinco períodos: o primeiro, período dos

viajantes, é caracterizado por trabalhos assistemáticos, motivados pela curiosidade e

marcados por interpretações subjetivas, não havendo planejamento para os relatos, que

se baseavam em fatos que se destacavam pelo pitoresco ou pela diferença em relação

ao que se passava no país do observador. O segundo período, dos inquiridores, durou

boa parte do século XIX, e é aquele no qual os observadores se deslocavam a países

estrangeiros com o fim de recolher dados que pudessem servir para melhorar o sistema

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educativo do seu país. No terceiro período, de colaboração internacional, o

intercâmbio cultural entre os povos é estimulado e a educação é vista como um

instrumento de harmonia e entendimento entre nações. Os estudos realizados no quarto

período, denominado de “forças e fatores”, e que acontece entre as duas grandes

guerras, realçam a dinâmica das relações entre a educação e a cultura e procuram

explicações para a variedade de fenômenos educativos observados em cada país,

buscando a compreensão das relações escola-sociedade através da análise histórico-

culturalista, que procurava explicar o presente a partir das dinâmicas legadas pelo

passado. No quinto e último período, busca-se a explicação pelas ciências sociais, e os

trabalhos recorrem fundamentalmente aos métodos empírico-quantitativos, na busca

de esclarecer cientificamente as relações entre a educação e a sociedade, num plano

mundial.

5) Ferran Ferrer propôs as seguintes etapas: Jullien de Paris, etapa descritiva,

etapa interpretativa e etapa comparativa. Esta foi a classificação escolhida por Ferreira

(1999) para a sua descrição sobre a evolução da Educação Comparada, da qual

também nos servimos, por entender ser a mais elucidativa nesta descrição:

a) Marc-Antoine Jullien de Paris

Autor de várias obras na área educacional, pode ser considerado o pai da

Educação Comparada, por ter, em sua obra intitulada Esquisse et vues préliminaires

d’un ouvrage sur l’éducation comparée, entrepris d’abord pour les vingt-deux cantons

de la Suisse, et pour quelques parties de l’Allemagne et de l’Italie, et qui doit

comprendre successivement, d’aprés le méme plan, tous les Etats de l’Europe9,

publicada em 1817, introduzido a comparação na abordagem da educação. O objetivo

desta publicação não era o de criar uma ciência nova, mas de lançar um projeto que

consistia em recolher informações para a elaboração de um quadro comparativo dos

principais estabelecimentos de educação existentes nos diversos países europeus, bem

como de seu funcionamento e seus métodos, com o qual se pretendia obter a 9 Esboço e visões exploratórias do trabalho de uma educação comparada, uma primeira abordagem entre os vinte e dois cantões da Suíça, e em seguida para qualquer parte da Alemanha e Itália, e isso se deve muito para compreender sucessivamente os planos de ensino de todos os Estados de Europa (tradução livre da autora).

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colaboração de pessoas influentes e dos poderes públicos, para que se pudesse

proceder da melhor forma à desejada reforma da educação.

O livro é composto de duas partes: na primeira são apresentados a justificativa

do projeto, seus objetivos e noções gerais; na segunda, é apresentado um instrumento

para que a recolha de dados se desse com maior eficácia, constituído por duas grandes

séries de questões. Ferreira (1999, p. 134) considera que

Julien dava muita importância aos questionários, considerando-os verdadeiros instrumentos de trabalho para a análise educativa. Na sua perspectiva, através deles poder-se-iam obter “colecções de factos e de observações, agrupadas em quadros analíticos que permitiam relacioná-las e compará-las, para delas deduzir princípios certos” e deste modo, transformar-se a educação numa “ciência mais ou menos positiva”. Ou seja, ele o diz expressamente, as investigações sobre educação comparada deviam servir para fornecer meios novos para aperfeiçoar a ciência da educação.

Esta obra de Julien teve uma tradução polonesa em 1822 e uma parcial em

inglês em 1826; porém permaneceu praticamente esquecida até a segunda guerra

mundial, não tendo qualquer influência nos viajantes e comparatistas que estudaram os

sistemas educativos estrangeiros nesse espaço de tempo. Ganhou a projeção que

merecia através de Pedro Rosselló, a partir de 1943, e em 1967 ganhou uma tradução

portuguesa, intitulada Esboço de uma obra sobre a Pedagogia Comparada, de

Joaquim Ferreira Gomes.

Segundo Ferran Ferrer (1990 apud FERREIRA, 1999, p. 135), Julien contribuiu

para a Educação Comparada especialmente por destacar os seguintes aspectos:

- importância que tem o manejar uma metodologia empírica e científica;

- necessidade de elaborar instrumentos que servem tal finalidade;

- importância de fatores externos sobre a educação;

- as vantagens que tem o conhecimento da educação noutros países;

- a contribuição da Educação Comparada no progresso da educação no

mundo.

b) Etapa descritiva

Por ser muito ambicioso para a época, o projeto de Julien não foi

compreendido, tendo sido ignorado pelos governos e por pessoas que rejeitavam a

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idéia da criação de uma ciência da educação. O objetivo, neste período, era o de

conhecer como se organizava o ensino em países tidos como desenvolvidos, para

importar os aspectos que poderiam trazer melhorias aos próprios sistemas escolares.

Muitas das obras publicadas neste período tratavam-se de meras descrições dos

sistemas educativos estrangeiros. Alguns estudiosos, porém, passaram a ressaltar a

importância de uma análise um pouco mais ampla sobre a realidade dos países

estrangeiros. F. W. Thiersch publicou em 1838 uma obra onde analisa as experiências

educativas na Alemanha, na França, na Holanda e na Bélgica. Aí argumenta sobre a

utilidade das viagens ao estrangeiro, mas especialmente considera que devem ser

tomadas algumas precauções quando se realizam descrições deste gênero. Mathew

Arnold publicou vários trabalhos ente 1861 e 1882, onde revelava um profundo

conhecimento sobre a situação da educação na França e na Alemanha, e, apesar de ter

procurado recolher idéias e experiências úteis para o seu país, advertiu sobre o perigo

da imitação de aspectos isolados, sem se levar em conta os contextos que os tornam

possíveis. Ferreira (1999) endossa esta afirmação: “De facto, um dos contributos mais

importantes consistiu na delimitação de factores determinantes para a configuração dos

sistemas educativos nacionais, entre os quais destacou as tradições históricas, o

carácter e as diferenças nacionais, as condições geográficas, a economia e a

configuração da sociedade” (FERREIRA, 1999, p. 137).

Mesmo neste período já há indícios de que a mera descrição dos sistemas

nacionais de outros países ou de alguns de seus aspectos educativos era insuficiente

para a compreensão do fenômeno da educação. Essa constatação leva Michael Sadler a

“protagonizar uma alteração na forma de abordar a Educação Comparada”, sendo

considerado, segundo Ferreira (1999), como o precursor do período seguinte.

c) Etapa interpretativa

O ano de 1900 é considerado como o início desta etapa, porque os

comparatistas entendem que nele acontecimentos significativos deram a arrancada da

Educação Comparada. Um deles, foi a organização de um curso universitário de

Educação Comparada na Universidade de Columbia, confiado a James E. Russel; o

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outro foi a publicação de um texto de Michael Sadler no qual ele se pronunciava sobre

a utilidade da Educação Comparada para a compreensão do sistema educativo

nacional. Estes dois acontecimentos levaram à sistematização de conhecimentos e

deram uma espécie de autodeterminação à Educação Comparada.

Michael Sadler é considerado por alguns comparatistas como o iniciador de

uma concepção teórica em Educação Comparada. Com a publicação de um texto

intitulado How far can we learn anything of practical value from the study of

foreignsystems of education?10, apresenta algumas das suas principais idéias sobre a

forma de abordar os estudos comparativos e a sua utilidade. Ele afirma que as coisas

que estão fora da escola, são mais importantes que aquelas que se encontram dentro

dela. Acredita na utilidade da Educação Comparada como forma de contribuir para a

melhoria do sistema educativo do seu próprio país, mas se preocupa com a

compreensão e a melhoria do próprio sistema educativo através dos fatores e das

forças que determinam e condicionam os sistemas educativos em geral. Em síntese, as

contribuições mais importantes que deu à Educação Comparada foram as seguintes:

realçou a importância de se compreender o espírito e a tradição dos sistemas

educativos; salientou a conveniência de se estudar os sistemas educativos estrangeiros

para uma melhor compreensão do seu próprio; perspectivou uma dimensão

sociológica, ao buscar entender os aspectos educativos num contexto social e cultural

mais amplo; advertiu para o inconveniente de a educação Comparada se tornar refém

da estatística, uma vez que esta tende a identificar a educação com a escola (cf.

FERREIRA, 1999).

Neste período os comparatistas se preocuparam não só em descrever a educação

dos outros países, mas também em indagar as causas e tentar interpretá-las, utilizando

uma das seguintes abordagens ou tendências: interpretativo-histórica, interpretativo-

antropológica e interpretativo-filosófica (A. D. MARQUEZ, 1972, apud FERREIRA,

1999, p. 140).

10 Até aonde podemos apreender algo prático dos estudos de sistemas educacionais estrangeiros? (tradução livre da autora).

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Na abordagem interpretativo-histórica, destacam-se Isaac L. Kandel e Nicholas

Hans. Kandel interessou-se pelos fatos, mas, sobretudo pelas causas que os

possibilitam, dando especial atenção aos fatores históricos. Ele acredita que a história

dos povos permite descobrir as particularidades nacionais dos sistemas educativos,

levando-se em conta as forças políticas, sociais, culturais e o caráter nacional. As

maiores contribuições de Kandel para a Educação Comparada são as seguintes:

insistência na recolha de dados fiáveis, na necessidade de analisar o contexto histórico

de cada sistema educativo e na necessidade da explicação (FERREIRA, 1999).

Hans, por sua vez, utiliza-se tanto da História quanto da Sociologia na

interpretação dos dados. Para ele, os fatores determinantes dos sistemas educativos

dividem-se em três grupos: fatores naturais (raça, língua, meio ambiente), fatores

religiosos (Catolicismo, Anglicanismo, Puritanismo) e fatores seculares (Humanismo,

Socialismo, Nacionalismo, Democracia). Afirma que a compreensão do caráter

nacional é absolutamente fundamental para interpretar os sistemas nacionais de

educação. No seu entender há cinco fatores que definem uma nação ideal: unidade de

raça, unidade de religião, unidade de língua, unidade de território e soberania política.

Como nenhum desses fatores era tido como suficientemente poderoso para criar

sozinho a unidade cultural e social que chamamos de nação, eram necessários vários

atuando conjuntamente (no seu entender, era necessário que atuassem conjuntamente

pelo menos quatro desses fatores). Assim, o caráter nacional era entendido como “um

resultado complexo de misturas raciais, de adaptações lingüísticas, de movimentos

religiosos e de situações históricas e geográficas em geral” (HANS, 1971, p. 14, apud

FERREIRA, 1999, p.141).

Na abordagem interpretativo-antropológica, Ferreira aponta duas posições

como sendo as mais importantes: a de Schneider e a de Moehlman. Friedrich

Schneider considerava que o estudo comparativo só tinha sentido se fossem analisados

os diversos fatores que configuravam um sistema educativo: o caráter nacional, o

espaço geográfico, a cultura, a ciência e a filosofia, a estrutura social e política, a

economia, a religião, a história, as influências estrangeiras e as influências decorrentes

da evolução da pedagogia. O mais original de seu pensamento, no entanto, é a

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importância dada ao fator endógeno (imanente, interno ou potencial) na estruturação

dos sistemas educativos nacionais, sugerindo ainda que, ao se encontrar concordância

na educação de distintos povos, se pergunte sobre a possibilidade de se atribuirem tais

concordâncias às coincidências existentes entre as respectivas culturas.

No entender de Arthur H. Moehlman, a Educação Comparada necessita de um

princípio de classificação válido para uma determinada época, que derivando do

passado abriria perspectivas de futuro. Considera, assim, a necessidade de um modelo

teórico que permita examinar a educação na sua estrutura cultural, não só como um

sistema vigente, mas também como uma unidade histórica. Em sua opinião, o perfil da

educação de cada sociedade é determinado pelo complexo jogo de interferências e

interações entre catorze fatores que apresenta em seu modelo teórico, os quais agrupa

por afinidades: 1) população, espaço, tempo; 2) linguagem, arte, filosofia, religião; 3)

estrutura social, governo, economia; 4) tecnologia, ciência, saúde, educação.

Na abordagem interpretativo-filosófica, destacam-se J. A. Lauweris e Sergius

Hessen. A importância de Hessen deve-se à sua busca das bases teórico-ideológicas

dos sistemas educativos. Lauweris afirmava que a Educação Comparada deveria

atender a estilos nacionais de filosofia, pois, apesar de a filosofia ter um alcance

universal, os diversos povos apresentam uma inclinação por um determinado tipo de

pensamento filosófico. Não excluía as outras abordagens (histórica, sociológica,

antropológica, etc.), as quais considerava pertinentes, desde que confiassem a síntese

crítica à abordagem filosófica.

d) Etapa comparativa

O período entre guerras se caracterizou por um acumular de observações e pelo

recurso a explicações vagas, como por exemplo, caráter nacional, raça, humanismo,

forças imanentes, que denotam atraso na utilização da estatística e da análise

sociológica. Os anos seguintes resultaram em abordagens bastante diversificadas, na

tentativa de renovação da Educação Comparada, das quais se apresentam as sínteses

mais referidas da abordagem positivista, da abordagem de resolução de problemas, da

abordagem crítica e da abordagem sócio-histórica (FERREIRA, 1999):

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- Abordagem positivista: do final da Grande Guerra até cerca do final dos anos

sessenta, era o funcionalismo que orientava as análises sociológicas. Por ser

claramente descritiva, não tendo uma dimensão histórica nem explicativa, este tipo de

abordagem pode ser operatória e, assim, apresentar-se como científica. No entanto,

fica parecendo artificial a descrição e a verificação de partes de um todo, sem que se

aborde o sentido da organização, seu desenvolvimento, sua história. A partir da década

de sessenta, surge a perspectiva estrutural-funcionalista, a qual busca estabelecer um

relacionamento entre a estrutura e a (s) função (s) das instituições educacionais, e entre

elas e as outras instituições sociais.

Nesta perspectiva destacam-se A. M. Kazamias e C. A. Anderson. Kazamias

afirmava que a Educação Comparada precisava adotar uma base científica: seus

estudos deveriam ter objetividade utilizando o método funcionalista e a técnica das

covariações. O seu objetivo deveria ser o de descobrir as funções que as escolas, como

estruturas sociais, desempenham em cada país. Anderson sugere ainda que a

investigação comparativa deve atender a duas dimensões: à situação educativa em si e

à relação dos aspectos educativos com o seu contexto. Para a primeira é necessária

uma análise intra-educativa, para que se estabeleçam as relações entre os distintos

aspectos dos sistemas educativos; para a segunda, deve ser feita uma análise social-

educativa, para se estabelecer as inter-relações entre as características educativas e as

variáveis sociais, políticas, econômicas, culturais que condicionam uma vasta e

complexa realidade.

O maior objetivo com a utilização desta abordagem foi o de “fornecer um

quadro interpretativo mais fiável, ao não dissociar a estrutura da função, ao trabalhar

aspectos mais manejáveis da realidade e ao formular generalizações passíveis de

convalidação empírica” (KAZAMIAS, 1972, apud FERREIRA, 1999, p. 146). Os

autores que se situam nesta perspectiva estão preocupados com o rigor do método

comparativo e com a possibilidade de alcançar conclusões que pudessem servir,

inclusive, para decisões políticas. Assim, Ferreira afirma: “Como já acentuou Nóvoa

(1988, p. 71), a retórica da ‘cientificidade’ é a melhor maneira de dissimular as

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dimensões ideológicas deste enquadramento teórico que nega os conflitos sociais no

seio da educação” (FERREIRA, 1999, p. 146).

Uma análise científica, com objetivo de formular e comprovar hipóteses e

quantificar e controlar a investigação, para alcançar um nível explicativo rigoroso,

estabelecendo relações causais entre fenômenos educativos e sociais, é um modelo

empírico-quantitativo, designado de científico por Noah e Eckstein, e tinha como

objetivos: 1) generalizar os dados obtidos, além dos limites de uma só sociedade; 2)

oferecer um campo de investigação suficientemente amplo para testar proposições

somente passíveis de prova em um contexto internacional; 3) prestar-se à colaboração

interdisciplinar; 4) como disciplina instrumental, transformar a Educação Comparada

em área de conhecimento fértil para conduzir reflexões e orientar decisões de política

educacional (FERREIRA, 1999, p. 146-147).

- Abordagem de resolução de problemas: desde meados dos anos sessenta, a

partir da publicação de seu livro intitulado Problems in Education: a Comparative

Approach11, Brian Holmes se tornou o comparatista mais conhecido desta abordagem.

Ele afirma que é preciso partir dos problemas específicos que existem nas diversas

sociedades e procurar encontrar as soluções mais convenientes. Assim, a unidade de

comparação deixa de ser definida em termos de espaço, e busca-se a identificação de

problemas pertinentes e a sua submissão a estruturas racionais que possam levar à sua

solução. Holmes coloca que as principais fases desta abordagem pela resolução de

problemas são as seguintes: análise dos problemas, formulação da hipótese,

especificação das condições iniciais nas quais o problema foi localizado, predição

lógica dos resultados prováveis a partir das hipóteses adotadas, comparação dos

resultados logicamente preditos com os acontecimentos verdadeiros (HOLMES, 1986

apud FERREIRA, 1999, p. 147).

- Abordagem crítica: nos anos setenta, a instituição escolar passa a ser vista

como um dos mais importantes aparelhos ideológicos do Estado, considerada como

11 Problemas na educação: uma aproximação comparada (tradução livre da autora).

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um instrumento de dominação e reprodução da ideologia dominante. Começam a

aparecer discursos críticos, principalmente sobre a ação das organizações

internacionais e as políticas que diziam respeito ao Terceiro Mundo, os quais rejeitam

por completo as abordagens relacionadas ao funcionalismo estrutural, porque seriam

responsáveis pela legitimação de uma ordem social injusta.

Um dos pioneiros desta abordagem foi Martin Carnoy (1974), que, “apoiando-

se numa série de estudos de caso, procurou explicitar ‘as bases estruturais da

desigualdade educacional’, através da análise da expansão diferenciada da educação

escolar, que atenderia, internamente, aos interesses da classe dominante e, à escala

mundial, aos do imperialismo” (FERREIRA, 1999, p. 148).

A partir das abordagens críticas assiste-se a uma renovação do objeto da

comparação. As críticas dos anos setenta deram origem a uma literatura que se debruça

não somente sobre os que vão à escola mas também sobre a diferença de

oportunidades, de experiências, os resultados das mulheres, das minorias étnicas e

raciais e dos diferentes estratos sociais. Ferreira afirma que “não se trata, muitas vezes,

de investigações que impliquem uma comparação entre países: trata-se de comparar a

experiência das mulheres, das minorias e dos diferentes estratos sociais nas suas

relações com a educação” (FERREIRA, 1999, p. 148).

- Abordagem sócio-histórica: ao longo da última década do século XX

acentuou-se a idéia de que a complexidade da realidade não poderia ser tratada com

abordagens que buscavam uma explicação única, objetiva e neutra. Ferreira nos mostra

que, “a abordagem sócio-histórica como nos sintetiza Nóvoa procura reformular o

projecto de comparação passando da análise dos factos à análise do sentido histórico

dos factos” (FERREIRA, 1999, p. 149). Assim, torna-se necessário compreender a

natureza subjetiva da realidade e o sentido que lhe é atribuído pelos diferentes atores, e

a investigação comparativa deve partir para a compreensão interpretando, indagando e

construindo os fatos e não somente descrevendo-os. Com isso percebe-se, como nos

mostra Ferreira (1999, p. 149):

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... uma mudança paradigmática que se caracteriza por uma maior atenção à história e à teoria em detrimento da pura descrição e interpretação, aos conteúdos da educação e não somente aos resultados, aos métodos qualitativos e etnográficos em vez do uso exclusivo da estatística (PEREIRA, 1993; NÓVOA, 1995). A análise tende a prender-se em contextos definidos pela invisibilidade de práticas discursivas, tendo os autores procurado temáticas como a consolidação das formas ‘legítimas’ do conhecimento escolar, a construção do currículo, a formação das disciplinas escolares (SCHRIEWER & PEDRO, 1993; POPKEWITZ, 1993 apud FERREIRA, 1999, p. 149).

1.3 O método da Educação Comparada

A Educação Comparada, como já indica em seu nome, tem a comparação como

método principal de acesso ao saber, não necessitando, assim, de uma metodologia

própria. Ferreira afirma que “... ao longo da história da Educação Comparada, o que se

tem visto, como já o dissemos anteriormente, é uma constante procura de

aperfeiçoamento da metodologia e de recursos metodológicos que se vão mostrando

adequados a uma comparação mais eficaz” (FERREIRA, 2001, p. 20).

A inexistência de uma só metodologia de base demonstra o esforço de

adaptação do pensamento à natureza do objeto de estudo. Assim, os estudiosos foram

levados a procurar métodos cada vez mais adequados à diversificação dos objetos, o

que fez com que cada ciência desenvolvesse a metodologia de base mais adequada ou

a buscar uma metodologia que trouxesse ajuda na resolução dos seus problemas.

Atualmente, quase todas as ciências utilizam vários métodos ou técnicas em

consonância com a metodologia de base.

Os comparatistas ainda não chegaram a um consenso sobre o método

comparativo no que diz respeito às suas fases. Ferreira (2001) afirma que o método

comparativo proposto por Bereday é o de maior peso na história da Educação

Comparada, o qual aponta quatro fases fundamentais: descrição, interpretação,

justaposição e comparação. A partir da utilização dele, muitos especialistas

introduziram algumas alterações neste método, com o objetivo de melhorá-lo. Dois

discípulos de Bereday, Noah e Eckstein, preocupados com o rigor e a objetividade do

método, definiram sete fases fundamentais na investigação comparativa: identificação

do problema, formulação das hipóteses, definição de conceitos e indicadores, seleção

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dos casos ou sistemas educativos a estudar, recolha dos dados, tratamento dos dados e

interpretação dos resultados.

Outro comparatista de prestígio, Lê Thành Khôi, apresenta cinco fases para uma

investigação completa, em sua obra Éducation Comparée: identificação do problema;

formulação das hipóteses ou das questões; reunião, tratamento e análise dos dados

(observação dos fatos); verificação das hipóteses e generalização. Já Garcia Garrido

apresenta preocupações didáticas na sua proposta de fases. Ferreira afirma que “... a

sua intenção é a de que ela recolha o que de mais importante e substancial se disse

acerca do assunto de forma a que sirva de ajuda a quem está a dar os primeiros passos

em educação comparada, em conformidade, aliás, com o ‘carácter didáctico e

propedêutico’ da obra em que se inserem” (FERREIRA, 2001, p. 22). São as seguintes

as fases indicadas por ele: identificação do problema e emissão de uma ou várias pré-

hipóteses; delimitação da investigação; estudo descritivo (fase analítica): compilação e

análise dos dados, conclusões analíticas; formulação de ou das hipóteses comparativas;

estudo comparativo (fase sintética): seleção de dados e de conclusões analíticas,

justaposição de conclusões e dados selecionados, comparação valorativa e ou

prospectiva, conclusões comparativas; investigação comparativa interdisciplinar;

redação do trabalho de investigação comparativa.

Ferreira (2001, p. 22) adota as fases que descreveremos abaixo, embasado em

grande parte na proposta de Garrido, com alterações que “... resultam, sobretudo de

reflexões decorrentes da prática docente e da necessidade de fazer uma explanação

concisa, mas suficientemente explícita a quem ainda não tem idéia da complexidade da

investigação científica e do mundo da educação”. São três as fases propostas, com suas

subdivisões: fase pré-descritiva, fase descritiva e fase comparativa.

1. Fase pré-descritiva

Uma investigação exige preparação, ou seja, o estabelecimento do quê fazer e

do como fazer. Esta fase pode ser subdividida em três etapas: identificação do

problema, emissão da ou das primeiras hipóteses e delimitação da investigação:

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a) Identificação e justificação do problema: a escolha de um problema ajuda a

melhor concretizar uma idéia de investigação. Feita a escolha, é importante que se faça

uma primeira aproximação do mesmo, para que se tome conhecimento das relações

que se estabelecem entre os diferentes fatores implicados e para saber se é necessário

que se estude o mesmo em profundidade e no âmbito da Educação Comparada. Aqui, é

importante que se busque objetivar as primeiras hipóteses, para facilitar a delimitação

da investigação e a recolha e seleção dos dados. A delimitação tem como objetivo

definir exatamente o que se quer comparar, onde, como e com que instrumentos, ou

seja, “a delimitação deve incidir tanto sobre o objeto como sobre a metodologia”

(FERREIRA, 2001, p. 23).

b) Emissão da(s) hipótese(s): após a identificação do problema, deve ser

elaborada a hipótese, ou hipóteses, que delinearão a investigação;

c) Delimitação da investigação: devem ser delimitados o objeto, os conceitos, a

área de estudo e o método. O objeto, para que, em conjunto com as pré-hipóteses, sirva

de linha orientadora para a recolha de dados. Os conceitos, para saber se os termos

empregados nas fontes correspondem à realidade a que os associa o investigador ou se

para as mesmas realidades não existem termos diferentes, tomando cuidado especial

com aqueles que possam causar problemas de interpretação. A área de estudo, que

exige que se estabeleçam critérios para a escolha levando-se em conta duas das

propriedades da comparação: a pluralidade (determina a necessidade de duas ou mais

unidades de comparação) e a homogeneidade (exige que as unidades definidas

possuam as mesmas características fundamentais para que sejam comparáveis). O

método, que deve ser definido em virtude do objetivo da investigação e da amplitude

dos estudos, uma vez que a Educação Comparada pode valer-se de diferentes

metodologias e técnicas. O importante é que se definam as que “melhor permitirão

explicar o problema ou concluir sobre o rigor da hipótese previamente formulada”

(FERREIRA, 2001, p. 26).

Na definição do método, é essencial que o comparatista busque o alargamento

do espectro metodológico para que tenha maior consistência na análise dos dados

disponíveis. É importante “questionar e perspectivar a informação tendo em conta os

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procedimentos próprios de outras áreas disciplinares como a Filosofia, a História e as

Ciências Sociais em geral” (FERREIRA, 2001, p. 26-27). Nos estudos comparativos, é

necessário que se leve em conta a natureza ideológica, buscando informações

suficientes sobre os esquemas conceituais onde se assentam os pressupostos da

realidade em análise, utilizando-se, para isso, recursos de procedimentos

metodológicos de caráter filosófico. O investigador necessita também dos

conhecimentos produzidos pela História, assim como dos métodos utilizados pelo

historiador, conhecimentos estes que serão utilizados ao longo da investigação,

buscando a compreensão do porquê e do estado do fenômeno em estudo. Os métodos e

técnicas de análise social também são imprescindíveis, uma vez que, de modo geral, a

investigação comparativa refere-se mais a grupos que a indivíduos. Ferreira afirma

ainda que, “mais do que análises intra-educativas, a Educação Comparada está

necessitada de análises societal-educativas, daí a pertinência dos recursos

metodológicos da Sociologia, da Antropologia Cultural, da Psicologia Social, da

Economia, etc” (FERREIRA, 2001, p. 27).

Um dos recursos mais aceitos e utilizados atualmente pelos investigadores em

Educação Comparada é a estatística. Porém, a “comparação de dados estatísticos... só

tem sentido quando inserida num contexto explicativo mais amplo. (...) Diríamos que é

preciso saber o seu real significado, ou seja, que sentido tem para quem as elaborou”

(FERREIRA, 2001, p. 28). Assim, pela necessidade de se recorrer a fontes de natureza

discursiva e de se proceder à sua análise de forma mais objetiva, a análise de conteúdo

tem sido utilizada cada vez mais em Educação Comparada. Na definição de Berelson,

“a análise de conteúdo é uma técnica de investigação que tem por finalidade a

descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação”

(BERELSON, 1948, apud BARDIN, 1977, p. 19).

Num estudo histórico sobre a análise de conteúdo, Bardin a define da seguinte

forma: “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por

procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens,

indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos

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relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”

(BARDIN, 1977, p. 42).

É essencial aqui, que se faça uma análise das diferenças essenciais que existem

entre a análise de conteúdo e a análise documental, por ser esta técnica também

empregada pela Educação Comparada. Bardin apresenta a definição de J. Chaumier

para a análise documental como “uma operação ou um conjunto de operações visando

representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente da original, a fim

de facilitar num estado ulterior, a sua consulta e referenciação” (BARDIN, 1977, p.

45). O tratamento das informações na análise documental é idêntico à fase de

tratamento das mensagens de certas formas de análise de conteúdo. É necessário,

entretanto, que se destaquem as diferenças essenciais que existem por detrás da

semelhança de certos procedimentos, apresentadas por Bardin (1977, p. 46):

- a documentação trabalha com documentos; a análise de conteúdo com

mensagens (comunicação);

- a análise documental faz-se, principalmente por classificação-indexação; a

análise categorial temática é, entre outras, uma das técnicas da análise de conteúdo;

- o objetivo da análise documental é a representação condensada da informação,

para consulta e armazenagem; o da análise de conteúdo, é a manipulação de

mensagens (conteúdo e expressão desse conteúdo), para evidenciar os indicadores

que permitam refletir sobre uma outra realidade que não a da mensagem

(permitindo as inferências do pesquisador).

Apesar da importância destes recursos, o comparatista não pode confundir o que

é apenas um instrumento metodológico, um conjunto de técnicas ou um método

auxiliar com uma metodologia de base.

2. Fase descritiva

Esta fase tende a ser a que exige mais tempo durante a investigação. Nela

desenvolvem-se atividades que visam a apresentação separada dos dados recolhidos

por cada uma das áreas de estudo: a recolha e apresentação dos dados e a interpretação

dos dados e conclusões analíticas.

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Antes e durante a etapa da recolha dos dados são necessárias reflexões a fim de

que estes sejam suficientes e pertinentes. É necessária uma descrição clara, ordenada e

rigorosa por meio de uma análise sistemática dos dados, onde devem ser apresentados

o tipo de fontes utilizadas, a homogeneidade dos dados e a uniformidade das partes da

descrição.

As fontes utilizadas podem ser classificadas em primárias (documentos oficiais,

documentos não oficiais e documentos de elaboração pessoal), secundárias (estudos

descritivos ou comparativos preparados por observadores ou especialistas de modo

sistemático e com a finalidade de mostrar a realidade educativa de um país, região ou

zona, total ou parcialmente) e auxiliares (obras literárias, estudos sociológicos, estudos

políticos e obras artísticas). Apesar da enorme variedade de fontes, pode acontecer não

existirem dados suficientes para a realização do estudo. Nesse caso, o investigador

deverá buscar os mesmos através do contato direto com a realidade ou através da ajuda

de colaboradores; para isso, é necessária uma cuidadosa preparação da recolha de

dados.

A questão da homogeneidade dos dados é fundamental em uma comparação

que se pretenda rigorosa. Ela deve se apresentar tanto com os dados qualitativos como,

e especialmente, com os quantitativos, uma vez que “nem sempre um mesmo número

traduz uma mesma realidade” (FERREIRA, 2001, p. 30).

Um outro problema com o qual o comparatista se depara é o da terminologia

utilizada. Ainda não se chegou a um consenso sobre a uniformidade de terminologias

apresentadas para um mesmo conceito ou sobre terminologias idênticas para conceitos

diferentes. Devido a isso, algumas entidades e organismos internacionais propuseram

classificações para organizar as informações sobre a educação, através da edição dos

Tesauros. Nesse esforço estão a Organização de Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE), a Unesco e a Comissão da Comunidade Européia em

colaboração com o Conselho da Europa (CE).

Ferreira (2001, p. 32) considera ainda que o esforço para elucidar a

terminologia e a classificação dos dados poderá ser mais rentabilizada se houver

preocupação também com a homogeneidade das partes da descrição. Nesse sentido:

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... o estudo comparativo sai seguramente mais facilitado se a estrutura das partes que se utilizam para descrever cada uma das áreas de estudo for o mais uniforme possível. Contudo, o que interessa fundamentalmente é assegurar que no final se possa realizar a comparação dos aspectos educativos que se intentaram aprofundar de acordo, claro está, com as hipóteses que se pretendem demonstrar (...). Ora, isso requer um esforço de unificação na recolha dos dados e na redacção desta fase descritiva, o que obriga a uma maior preocupação analítica e, por conseqüência, a um maior dispêndio de tempo.

A etapa da interpretação dos dados e conclusões analíticas deverá ser destinada

especificamente à análise explicativa dos dados contextuais mais relevantes, os quais,

normalmente, assumem dinâmicas diferentes, pelo fato de que alguns revelam-se mais

persuasivos e relevantes que outros. Ferreira (2001, p. 32) afirma que:

... como é natural, nesta fase a formação científico-cultural e ideológica do investigador tende a impor-se. Independentemente do seu empenho num estudo criterioso e honesto é muito provável que tenda a sobrevalorizar explicações de carácter histórico, ou sociológico, ou econômico em conformidade com a formação científica que possuir e adoptar uma postura interpretativa positivista ou marxizante fruto de sua inclinação ideológica.

Assim, conclui que o investigador deve refletir sobre suas propensões e se elas

resultam de uma opção previamente definida e se não afetam negativamente o estudo

em questão. As conclusões, descritivas e explicativas, devem ser redigidas de forma

clara e concisa, e não devem ser apresentadas somente as consideradas mais relevantes

para a investigação, e sim devem traduzir tudo quanto se pode concluir da análise

efetuada.

3. Fase comparativa

Depois de concluídas as duas primeiras fases e, antes de se iniciar o estudo

comparativo propriamente dito, é interessante que se revejam as hipóteses colocadas

no início do trabalho de investigação. Neste aspecto existem discordâncias, como

aponta Ferreira, pois alguns estudiosos consideram que ela deve ser feita antes da

comparação propriamente dita, e outros afirmam que deve ser realizada após a

justaposição. Para Ferreira, a formulação da hipótese antes que se entre na fase

comparativa assegura maior objetividade ao estudo, pois “a existência de uma hipótese

exige um esforço de síntese, de busca do apenas necessário, o que implica um

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exercício intelectual menos gratuito e mais reflexivo e convergente. Deste modo urge

logo fazer uso da hipótese definitiva o mais cedo possível e este parece ser o momento

certo” (FERREIRA, 2001, p. 33-34).

Depois de formulada a hipótese, ou hipóteses, os dados e as conclusões

analíticas que serão alvo de confrontação deverão ser selecionados de acordo com a (s)

mesma (s). Ferreira (2001) entende que o objetivo da justaposição é o de propiciar

instrumentos que permitam que essa confrontação seja o mais concisa, clara e objetiva

possível. Aqui, para ele, se atinge o auge da investigação e a formação científica e

ideológica do investigador se revela fundamental, pois ele acaba sendo mais

protagonista do que julga por privilegiar mais uma orientação científica, por ter por

inquestionável a metodologia que suporta o estudo, e por valorizar determinados fatos,

fenômenos e aspectos educativos em detrimento de outros. Assim, afirma que “a

comparação necessita de todo um trabalho analítico anterior e que deve ser o corolário

de um processo de síntese iniciado pela formulação da (s) hipóteses (s) comparativa

(s), seguido pela justaposição dos dados e das conclusões analíticas. Nesse sentido, a

investigação comparativa deve propiciar conclusões de tal modo precisas que seja

possível verificar até que ponto se conseguiu confirmar a hipótese antes formulada”

(FERREIRA, 2001, p. 35).

No entanto, não se deve aceitar dogmaticamente os resultados propiciados pela

investigação, pois, “sabendo-se das debilidades metodológicas, das hesitações que

existiram e das opções que se tomaram, será sempre interessante fazer releituras, tentar

novas interpretações, apontar outros sentidos e, sempre que possível, admitir a

possibilidade da justeza de outras abordagens” (FERREIRA, 2001, p. 35). Esta

afirmação se justifica pelo fato de a Educação Comparada utilizar-se de diversas

abordagens metodológicas, pois hoje não há mais necessidade de que a mesma se

legitime pelo estabelecimento de uma abordagem metodológica uniforme. A sua

unificação deve fundamentar-se em seu caráter comparativo e na tentativa de

compreender os sistemas, os aspectos e os problemas educacionais a partir de análises

rigorosas de dados criteriosamente recolhidos.

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1.4 Considerações práticas acerca da Educação Comparada

O ato de comparar é um ato mental utilizado por muitas pessoas, tanto de forma

espontânea e intuitiva quanto de uma forma mais elaborada. São poucos, porém, os

que percebem sua importância e menos ainda os que se predispõem a refletir sobre a

problemática que envolve a comparação. O que nos mostra a história da Educação

Comparada é que sempre houve a procura de uma metodologia e de procedimentos

metodológicos que facilitem o processo da comparação. Ferreira (2001, p. 15) pondera

que a operação de comparar pode ser examinada sob dois pontos de vista: o descritivo

e o funcional, como podemos perceber quando afirma que “... sob o ponto de vista

descritivo, comparar exige ver, analisar e ordenar, sendo que cada um destes três

aspectos pode assumir um maior ou menor relevo conforme o que se pretende com a

comparação. Numa perspectiva funcional, comparar implica estabelecer relações entre

fenômenos de um mesmo gênero através das quais se devem deduzir congruências,

afinidades ou discrepâncias”.

Na perspectiva funcional há maior ênfase no aprofundamento do conhecimento,

o que interessa mais à investigação científica. Já a perspectiva descritiva é mais

adequada a situações que exigem decisões, servindo, portanto, a objetivos mais

pragmáticos e imediatos.

O processo comparativo deve levar em conta, além dos fatos, fenômenos ou

aspectos a ser comparados, um outro aspecto, que é o que os comparatistas chamam de

Tertium comparationis, que serve como referência ou modelo mental. Ele traduz uma

“idéia prévia ou um ideal que condiciona e promove a comparação” (FERREIRA,

2001, p. 16), conferindo maior sentido à comparação e possibilitando dar maior

clareza à pertinência dos critérios a definir. Ele se torna necessário, uma vez que

devem ser levadas em consideração a relação da investigação comparativa com uma

teoria da educação, e a presença de fatores subjetivos neste tipo de investigação.

Assim sendo, a comparação possui características e limites tanto no que diz

respeito ao seu alcance quanto nos seus modos de abordagem. Ferreira chama a

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atenção, por isso, para as propriedades e para os limites da comparação. Em relação às

propriedades, este autor segue a proposta de Hilker (1967, apud FERREIRA, 2001, p.

17) que indica as seguintes: caráter fenomenológico, pluralidade, homogeneidade e

globalidade.

- caráter fenomenológico: o ato da comparação se dá sobre fenômenos, fatos ou

aspectos observáveis, e não pode, por isso, ter a pretensão de proporcionar um

conhecimento total dos mesmos. “O resultado será sempre um conhecimento

aproximado da realidade” (FERREIRA, 2001, p. 17);

- pluralidade: com relação a este aspecto, Ferreira afirma que são necessários

pelo menos dois fatos ou fenômenos para que se possa fazer comparação. Admite-se a

comparação de um só aspecto, desde que seja considerado em duas fases, em dois

momentos de sua existência, porém, isso cai no domínio da História. “O aumento do

número de objectos submetidos a comparação poderá significar uma maior força

probatória mas, por outro lado, complica o estudo. Daí preferir-se, muitas vezes,

seleccionar um determinado número de realidades” (FERREIRA, 2001, p. 17);

- homogeneidade: para que possa existir comparação é necessário que haja

semelhança entre os fenômenos que se comparam. Assim, a comparação não deve ser

feita sobre realidades ou aspectos absolutamente heterogêneos;

- globalidade: qualquer fenômeno educativo não pode ser estudado de forma

desvinculada da complexa realidade que o envolve. Portanto, quanto mais fatores

forem levados em consideração na investigação, maior será a profundidade e a

qualidade do estudo.

A metodologia comparada apresenta alguns limites que, no entender de

Ferreira, (2001, p. 18) “provavelmente nunca conseguirá ultrapassar”. São eles: o

problema da objetividade, o problema da eficácia nomotética e o problema da

normatividade.

O problema da objetividade é um problema que afeta todas as Ciências e de um

modo especial as Ciências Sociais, devido a alguns aspectos que podem prejudicar a

objetividade dos estudos, e que são apontados por Ferreira: “implicação do sujeito

sobre o objecto estudado; influência ideológica dos conceitos pessoais sobre os que

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edificam a investigação; participação interessada do sujeito na eleição dos assuntos e

até dos dados; inexistência de dados socialmente objectivos – apesar do que diz Noah

e Eckstein (1969) os dados recolhidos estão longe de ser neutrais” (FERREIRA, 2001,

p. 18). No entanto, o comparatista deve buscar cada vez mais a objetividade,

eliminando as ambigüidades e servindo-se de métodos e técnicas de análise adequados,

procurando deixar claro qual vai ser o critério de comparação.

O problema da eficácia nomotética aparece por ser impossível controlar todas

as variáveis que intervêm num fato social. Assim, o comparatista não deve aspirar

descobrir leis gerais que expliquem os fenômenos ou que os predigam, mas deve

assumir a postura, como qualquer outro investigador social, de alguém que pretende

contribuir para a compreensão da realidade educativa.

Com relação à normatividade, os resultados de uma investigação comparativa

devem servir de ajuda a quem toma decisões, dar indicações sobre as tendências e os

problemas da educação e sobre a relação entre a teoria e a prática, e nunca procurar

estabelecer normas que venham a se impor a qualquer povo ou instituição.

(GARRIDO, 1986, apud FERREIRA, 2001, p. 19).

1.5 Globalização e mundialização12: contexto atual

A questão da formação de professores tem sido um tema central nas políticas

educacionais de quase todos os países nas últimas décadas. No entender de Popkewitz

e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p. 19), “o conteúdo e organização da

formação de professores são fundamentais para a agenda do Estado, no que se refere à

modernização das instituições educacionais”.

Nesse contexto muito se tem discutido a globalização e a mundialização e, em

muitos discursos, esse parece ser um fenômeno recente, da chamada pós-modernidade.

Porém, no entender de Ferreira e Gugliano (2000, p. 11), “... o processo de

globalização não é um fenômeno novo e, igualmente, não é algo negativo em si 12 Apesar de alguns autores conceituarem de modo diverso, entendendo a globalização como um processo político-econômico e a mundializacão como um processo sócio-cultural, utilizaremos indistintamente os dois termos, entendendo-os como um processo mútuo de influência de alguns países sobre outros, tanto nos aspectos político-econômicos quanto nos sócio-culturais.

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mesmo (...) Romper as barreiras das cavernas, dos guetos e da província tem sido uma

busca constante na construção histórica do ser humano. Sua negatividade reside na

forma de relações sociais até hoje vigentes – relações de classe...”.

Mesmo tendo o entendimento de que a globalização é um processo que já vem

ocorrendo há muitas décadas, não há como negar que nos últimos anos este processo

estende-se de forma acelerada em todo o mundo e, hoje, já sentimos todos os efeitos

dele pelas características mais econômicas do atual processo. Este tema vem sendo

utilizado como justificativa para desestruturar grande parte das políticas sociais tanto

de países centrais quanto de nações que se encontram na periferia da economia

mundial. Gugliano (apud FERREIRA & GUGLIANO, 2000, p. 63) analisa a questão

dizendo que:

(...) a globalização vem gradativamente adquirindo o estatuto de um paradigma, de uma base a partir da qual deveria ser pensado o conjunto das relações sociais. O paradoxo dessa situação é que se fala da globalização e da necessidade de ajustes com a mesma naturalidade tanto para países desenvolvidos como para os não tão desenvolvidos assim. Desse modo, políticas semelhantes de flexibilização de empregos vêm sendo implementadas em países com políticas industriais distintas; medidas visando à privatização do ensino são aplicadas de forma quase idêntica em países com alta taxa de analfabetismo e em outros com altos níveis de alfabetização; e assim por diante, como se a mesma dose de um remédio pudesse tanto curar uma dermatite quanto uma dor de dente.

Nesse sentido, ao analisar o conjunto das políticas sociais do Estado, Enguita

(apud FERREIRA & GUGLIANO, 2000, p. 209-210) afirma que:

Todos esses serviços, e outros, asseguram à população um acesso mínimo a certos bens (serviços públicos de saúde, educação obrigatória, subsídio básico, pensão assistencial), mas, para além disso, enquanto os outros possuem um caráter contributivo ou simplesmente reprodutivo (...), o sistema educativo pretende manter um caráter igualitário, inclusive, de discriminação positiva (educação compensatória, sistema de bolsas). O simples fato de que a política educativa afeta os cidadãos de modo direto no início de suas vidas, enquanto as outras mencionadas tendem a fazê-lo em fase mais avançada, ou até mesmo ao seu final, redunda na diferença indicada, do mesmo modo que a crença geral de que a educação é por si mesma um importante determinante das oportunidades de vida, individuais e sociais. Para dizê-lo no jargão atual, os serviços de saúde ou assistência social são políticas compensatórias, enquanto a educação é uma política ativa.

Assim, as relações entre educação e desenvolvimento econômico postuladas nos

últimos anos não se apóiam em um projeto de desenvolvimento econômico,

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principalmente para os países periféricos, pois são propostas a partir de um Estado

débil, que renunciou ao seu papel de regulador social. Essa mudança na concepção

educativa vislumbra-se na Conferência Mundial sobre Educação para Todos, realizada

em Jomtien em março de 1990, com a participação de 155 países (TORRES, 2001), ao

consagrar as bases de um novo estilo de desenvolvimento educacional e de um novo

conceito de Educação Básica que deriva do conceito de satisfação das necessidades

básicas dos sujeitos e da caracterização e estratégias para satisfazê-las. Numa análise

das políticas educativas, Parentella e Malajovich (apud FERREIRA & GUGLIANO,

2000, p. 182) apontam que:

Os anos 90 foram surpreendentes. Os grupos hegemônicos apropriaram-se do discurso pedagógico sustentado pelos representantes das correntes críticas não-reprodutivistas (D. Saviani, J. Libâneo, entre outros) durante a década dos 80. Essa corrente assumiu a defesa da escola, pela sua importância para as classes populares, valorizando sua função específica na distribuição do conhecimento socialmente significativo, opondo-se, assim, aos que a analisavam como mero aparelho ideológico do Estado, reprodutor das diferenças sociais. Esse processo de apropriação tergiversou seus fundamentos políticos, transformando-os em razões econômicas e convertendo o espaço educacional num espaço de decisões técnico-gerenciais.

Ainda sobre isso, Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992,

p. 11) afirmam que: As reformas têm concedido uma atenção particular à modernização das economias e à produção de um consenso cultural através do ensino. Na maioria dos casos, as estratégias adoptadas têm como objectivo racionalizar os sistemas educativos, permitindo a sua adaptação aos objectivos nacionais e às estruturas econômicas em mudança e aumentando a sua capacidade de resposta às preocupações financeiras e às pressões culturais que emanam dos espaços nacionais e internacionais.

Entendem ainda os autores acima referenciados, que as reformas educativas dos

últimos anos, nos diversos países, incorporam diversas formas de regulação que

produzem mudanças substanciais dos sistemas de ensino, dando grande ênfase ao

trabalho dos professores e à sua formação. Através delas, as entidades governamentais

e profissionais criaram novos mecanismos para avaliar, certificar e supervisionar os

modelos institucionais e as práticas dos professores. As mudanças envolvem uma nova

legislação de enquadramento da formação de professores.

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Numa análise sobre o impacto da mundialização sobre as estratégias da reforma

da educação, Carnoy (2002, p. 55) aponta que:

Nos setores da educação e da formação, as reviravoltas da economia mundial desencadearam três tipos de reação: as reformas que correspondem à evolução da demanda de qualificações nos mercados – nacional e internacional – do trabalho e às novas idéias sobre a maneira de organizar a produção do sucesso escolar e da competência profissional podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas na competitividade’; as reformas que correspondem a restrições do orçamento do setor público e das rendas das sociedades privadas, reduzindo os recursos de que dispõem o público e o privado para financiarem a educação e a formação, podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas nos imperativos financeiros’; por último, as reformas que tentam realizar o importante papel político da educação como fonte de mobilidade e nivelamento sociais podem ser qualificadas de ‘reformas fundadas na eqüidade’.

Estes três tipos de reformas educativas demonstram como os governos podem

reagir à mundialização. Esta reação depende de três fatores principais: sua situação

financeira objetiva, sua interpretação da conjuntura e sua posição ideológica sobre o

papel do setor público na educação, e que se expressam na maneira como os países

ajustam sua economia ao novo ambiente mundializado, do ponto de vista estrutural.

Em termos econômicos a mundialização não cria mais eficácia, uma vez que permite

ao capital tentar obter um elevado rendimento e utilizar conhecimentos e forças

produtivas onde elas existem. Assim, “... a mundialização entra no setor da educação

como um ‘cavalo’ ideológico e suas repercussões sobre o ensino e a produção de

conhecimentos são amplamente o fruto desse liberalismo motivado pelo dinheiro e não

por uma visão clara em relação ao aprimoramento da educação” (CARNOY, 2002, p.

85).

O que acontece é que, com a mundialização, os governos estão prestando mais

atenção aos resultados de seus alunos em relação aos de outros países. Os testes

nacionais e internacionais a título comparativo, exercem pressão sobre as escolas e os

países a fim de torná-los responsáveis pela qualidade da educação. As reformas

financeiras e as teorias elaboradas em torno da mundialização, tornam os professores

responsáveis pelas crescentes dificuldades da escola na maior parte dos países.

Percebe-se isto claramente, na reflexão feita por Carnoy (2002, p. 100):

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Mas, antes de tudo, a ideologia da mundialização e as medidas concomitantes dos organismos provedores de empréstimo, que desaprovam o ensino público e os professores das escolas públicas, ignoram as realidades “políticas” inerentes ao aprimoramento de uma educação mais qualificada e, talvez, sejam contrárias à necessidade fundamental de professores mais qualificados em uma economia mundial que nunca foi tão competitiva como nos dias de hoje. No conjunto das nações, os professores são raramente controlados em seu trabalho; estão sozinhos na sala de aula e o aspecto quantitativo e qualitativo de seu ensino é, sobretudo, uma questão de responsabilidade pessoal e de talento. Se os Estados esperam desenvolver a habilidade cognitiva de sua juventude pela escolaridade, terão de contar com exímios professores, autônomos, motivados, bem qualificados do ponto de vista profissional e formados em instituições públicas concebidas para esse efeito. A maneira como se definem esses professores, seu grau de compromisso diante do sucesso dos alunos, sua vontade de aperfeiçoamento e sua habilidade pedagógica são as chaves do sucesso da educação básica e do ensino generalizado na sociedade. O compromisso e a participação dos professores implicam uma forma de gestão que leve em consideração suas necessidades e lhes dê um papel a desempenhar no aprimoramento da qualidade do ensino.

Vivendo-se num tempo em que a educação “tem vindo a tornar-se,

progressivamente um tema central nos debates políticos, a nível nacional e

internacional, (...) com a centralidade que lhe é atribuída presentemente nos processos

de desenvolvimento humano, coloca problemas complexos ao estudo das políticas

educativas” (TEODORO, 2002, p. 11), a investigação necessita utilizar-se de

metodologias que, de fato, consigam explicitar estas políticas. Assim, a Educação

Comparada torna-se um importante instrumento metodológico neste tipo de

investigação.

1.6 A formação do professor sob o viés da Educação Comparada

Ao abordar a questão da educação comparada e da formação de professores,

Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992) apontam que o que se

publicou nas últimas décadas sobre a comparação de políticas ou de sistemas da

formação de professores, segundo os autores, trata-se freqüentemente de estudos

descritivos que incluem informação útil, mas que apresentam abordagem teórica

informal. Desse modo, respondem a uma lógica enraizada na sua constituição como

sub-disciplina acadêmica, e tem suas problemáticas de referência mais próximas das

questões políticas do que da produção autônoma do conhecimento. Afirmam os

autores citados que “... muitas vezes, a educação comparada é mais um meio de

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utilizar a ‘realidade estrangeira’ para construir argumentos que legitimam políticas e

reformam práticas, do que um meio útil para conhecer a situação concreta e as acções

sociais”. (1992, p. 14). Uma das formas de ultrapassar esta limitação tem sido o

desenvolvimento de explicações analíticas dos usos da investigação comparada.

No que se refere às mudanças introduzidas pelas reformas educativas nas

últimas décadas, considera-se que o conteúdo e a organização da formação de

professores são fundamentais para a agenda do Estado, especialmente no que diz

respeito à modernização das instituições educacionais. Parece que o discurso das

reformas se repete em quase todos os países. O teor das discussões, que propõem as

reformas educacionais ocorridas nos anos 90, parece originar-se de necessidades

comuns nos vários contextos da educação no mundo. Busca-se prioritariamente

conquistar um nível de eficiência e qualidade compatíveis com as exigências do

mercado globalizado.

Neste sentido, Popkewitz e Pereyra (apud NÓVOA & POPKEWITZ, 1992, p.

26) afirmam que:

(...) a linguagem da reforma não é simplesmente um instrumento de poder, mas sim uma tecnologia que intervém na distribuição de poder. Os múltiplos discursos de reforma sobre a formação de professores ligam as mudanças sociais ao conhecimento que as pessoas têm do mundo, permitindo-lhes sentirem satisfeitas pelo facto do processo atingir efectivamente os objetivos pessoais e sociais. A linguagem da reforma transporta um determinado sentido do fazer e do querer, que deve ser interiorizado como uma directriz para a acção. As reformas são portadoras de práticas discursivas que têm efeitos a longo prazo, não só sobre a administração institucional do ensino, mas também sobre os acordos de poder e as vivências subjectivas dos actores.

As reformas na formação de professores atendem a exigência de transformações

estruturais de longo prazo tanto a nível nacional e internacional. Aqui, é importante

considerar a relação dos setores econômicos com as transformações culturais e sociais,

tendo em vista que as escolas e as universidades estão submetidas a expectativas muito

diferenciadas: enquanto alguns grupos empresariais buscam trabalhadores com

formação mais consistente, outros põem em evidência os objetivos utilitários da

educação.

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Ao se considerar todas as variáveis nos discursos das reformas dos diferentes

países, utilizando-se da Educação Comparada, percebe-se então, os pontos em comum

que aparecem nos mesmos quando se analisa o tipo de reforma estrutural adotado por

cada um deles. Porém, o que não fica tão explícito é o tipo de necessidades que se

colocam à escola e a seus profissionais em nossos dias. Questiona-se muito o que é ser

professor frente às demandas que se encontram neste ofício na atualidade. A

globalização da economia e da política, a revolução tecnológica e os fenômenos

sociais delas decorrentes trouxeram ao campo da educação novas provocações e

inquietações. Neste sentido, acreditamos que, para além do discurso oficial das

reformas há um discurso obscuro na realidade cotidiana das salas de aula.

Necessitamos de professores que contemplem um “conjunto de qualidades de caráter

positivo” (RIOS, 2001, p. 93), que se apresentam na ação docente em quatro

dimensões: técnica, política, ética e estética.

No entender de Rios (2001), a dimensão técnica pode ser entendida como

suporte da competência, uma vez que se revela na ação dos profissionais. Tem um

significado específico no trabalho, nas relações, devendo, portanto, ser vinculada às

outras dimensões. Quando não é estabelecido um vínculo, esse significado fica

empobrecido e se cria uma visão tecnicista, onde a técnica é supervalorizada e se

ignora sua inserção num contexto social e político, atribuindo-se assim, um caráter de

neutralidade que não é verdadeiro. Deve-se associar a idéia de techne às de poiésis e

práxis, para que sua presença na competência possa ser explorada de maneira mais

ampla. Assim, pode-se afirmar que há um caráter poético na técnica, na prática

profissional. Rios (2001, p. 96) afirma que:

para que a práxis docente seja competente, não basta, então, o domínio de alguns conhecimentos e o recurso a algumas ‘técnicas’ para socializá-los. É preciso que a técnica seja fertilizada pela determinação autônoma e consciente dos objetivos e finalidades, pelo compromisso com as finalidades, pelo compromisso com as necessidades concretas do coletivo pela presença da sensibilidade, da criatividade.

Essa visão já era apontada por Paulo Freire (1996, p. 36) quando afirmava que

“a necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à

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distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e

boniteza de mãos dadas”.

A dimensão estética está presente na ação docente através da sensibilidade

entendida como uma apreensão consciente da realidade, ligada à intelectualidade. A

sensibilidade está ligada ao potencial criador e à afetividade do sujeito, que se

desenvolve num contexto cultural determinado. Sendo o ser humano um animal

simbólico, a racionalidade não pode ser vista isoladamente, mas articulada a outras

capacidades e instrumentos que tem o homem para interferir na realidade e transformá-

la. Rios (2001, p. 99-100) aponta que:

Nesse sentido, a imaginação, a sensibilidade são elementos constituintes da humanidade do homem e não podem ser desconsideradas quando se fala na sua realização. A poética, universo do fazer, não se desarticula da práxis, universo do agir, como a entendemos contemporaneamente. É nessa medida que é importante trazer luz à dimensão estética do fazer humano e do trabalho docente. E se falamos em competência, não se trata de uma sensibilidade ou de uma criatividade qualquer, mas de um movimento na direção da beleza, aqui entendida como algo que se aproxima do que se necessita concretamente para o bem social e coletivo. (...) A ação docente envolve, portanto, técnica e sensibilidade. E a docência competente mescla técnica e sensibilidade orientadas por determinados princípios, que vamos encontrar num espaço ético-político.

A estética também está presente na Pedagogia da Autonomia de Paulo Freire

(1996, p. 50-51), quando este diz que:

Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço. Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá, têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser ‘educado’, vai gerando a coragem.

As dimensões ética e política estão intimamente relacionadas, pois se é tarefa da

educação a formação da cidadania, é tarefa dos professores contribuir, com seu

trabalho, para essa formação. A presença da dimensão ética na ação docente se

percebe na competência, naquilo que se exercita como se deve ser, na direção do bem

comum. O bem comum é finalidade da política. Assim, Rios (2001, p. 107) afirma

que:

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(...) o trabalho docente competente é um trabalho que faz bem. É aquele em que o docente mobiliza todas as dimensões de sua ação com o objetivo de proporcionar algo de bom para si mesmo, para os alunos e para a sociedade. Ele utiliza todos os recursos de que dispõe – recursos que estão presentes ou que se constroem nele mesmo ou no seu entorno – e o faz de maneira crítica, consciente e comprometida com as necessidades concretas do contexto social em que vive e desenvolve seu ofício.

Se a educação é uma forma de intervenção no mundo, estas duas dimensões não

podem escapar de uma ação que se faça nem como reprodutora e nem como

desmascaradora da ideologia dominante, como afirma Paulo Freire (1996, p. 111):

Neutra, “indiferente” a qualquer destas hipóteses, a da reprodução da ideologia dominante ou a de sua contestação, a educação jamais foi, é, ou pode ser. É um erro decretá-la como tarefa apenas reprodutora da ideologia dominante como erro é tomá-la como uma força de desocultação da realidade, a atuar livremente, sem obstáculos e duras dificuldades. Erros que implicam diretamente visões defeituosas da História e da consciência.

Numa análise feita por Paulo Freire (1996, p. 143), a globalização é um

momento do desenvolvimento econômico submetido a uma certa orientação política

ditada pelos interesses dos que detêm o poder. Assim, “nivelam-se os patamares de

deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distâncias que separam os

‘direitos’dos fortes e o seu poder de usufruí-los e a fraqueza dos débeis para exercer

seus direitos”. Então, o professor deve contemplar a sua prática docente com as

dimensões que se acaba de explicitar, para que esta prática possa ser “competente, no

sentido de colaborar na construção de uma cidadania democrática, de uma sociedade

na qual haja condições para uma vida feliz, uma possibilidade de bem-ser, mais do

bem-estar, para todos” (RIOS, 2001, p. 112). É no sentido de contribuir com a

construção desta competência, que se acredita no valor e na pertinência da Educação

Comparada para estudos desta natureza.