capítulo 2 - redefinindo instrumentos

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O WABOT-2 foidesenvolvido no finaldos anos 80 naUniversidade deWaseda no Japão. Esterobô tem o tamanho eforma de um homem epode ler partiturasmusicais por meio deuma câmera quefunciona como olhos eexecutar essaspartituras em umsintetizador ou orgão.Seus dedos podemtocar por volta de 15teclas por segundo,velocidade comparávelà de um instrumentistavirtuoso. Além disso,WABOT-2 é capaz deouvir uma melodiacantada por umapessoa e tocar umacompanhamento,ajustando o tempo desua performance aoandamento da melodia.

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Redefinindo Instrumentos

Instrumentos

Osurgimento de novos instrumentosnão deriva da busca errante doluthier ou dos músicos em geral,

instrumentos que não ofereciamportabilidade, como o órgão de tubos ou opiano, assim como conjuntosinstrumentais mais volumosos, como asorquestras e coros, tornam-se freqüentesnas atividades musicais. As orquestraspor sua vez, aliadas à crescentecomplexificação do idioma musical noocidente, impulsionaram uma significanteevolução nos chamados instrumentos demetal. Restritos desde tempos remotos àprodução de poucas notas da sérieharmônica na qual se baseavam, essesinstrumentos só vieram a conhecer umaflexibilidade tonal maior com osurgimento dos pistões na primeirametade do século XIX. Esses dispositivosmecânicos baseados no funcionamento damáquina a vapor, modificam ocomprimento do tubo por onde passa o arno instrumento, possibilitando a produçãode diferentes séries harmônicas e,conseqüentemente, de todas as notas daescala cromática. Estas válvulas precisamser silenciosas, ágeis e precisas, o queseria impossível alcançar sem os avançostécnicos e tecnológicos do século XIX.Do mesmo modo, a especialização eprofissionalização dos músicos torna-osvirtuosos, magos que se utilizam deinstrumentos que precisam corresponderde maneira eficaz à velocidade de seusmovimentos. O culto ao intérprete que secristaliza a partir do século XIX vai exigiruma qualidade sonora cada vez melhor edemandar o surgimento de instrumentoscada vez mais refinados. Em culturas

mas sim, de um processo de adaptação àsnecessidades contextuais de cada época ede cada música. O tipo de espaço onde serealiza a música, o nível de complexidadede sua linguagem, a variedade de estilos ea qualidade técnica dos intérpretesdisponíveis são alguns fatores que podemimpulsionar o surgimento de novosinstrumentos ou a decadência de outros.

Histories of musical instrumentsshow that makers sought to meetnew demands by improving themechanisms of their instruments; byrefining their sound; by extendingtheir compass and dynamic range;and by inventing new ones (Chanan,1994: 167).

A música realizada em espaçosabertos pelos menestreis e trovadores nofinal da Idade Média estimulou autilização de instrumentos portáteis comoo alaúde, as violas e pequenosinstrumentos de percussão. A falta delugares definidos para se apresentar e arotina das viagens fizeram com que alinguagem musical daquele períodoestivesse calcada no uso da vozjuntamente com instrumentos que omúsico pudesse facilmente transportar deum lugar para o outro. À medida em que amúsica passa a ser realizada em umambiente doméstico e, posteriormente, emespaços específicos como os teatros,

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como a dos índios americanos, ondegeralmente os que fazem música sãoindivíduos comuns (não-especialistas)dentro do grupo social e quecompartilham das tarefas executadas poroutros indivíduos de sua tribo, osinstrumentos são, em geral, mais simplesdo que aqueles desenvolvidos em umacultura como a hindu, na qual o músico éum especialista que dedica anos de suavida ao treinamento e aperfeiçoamento desua técnica.

completamente novo de exploraçõestimbrísticas para a música atual. Acompreensão do surgimento edesenvolvimento dos instrumentosmusicais, com todas as suasidiossincrasias e detalhes, faz parte dacompreensão da própria música enquantolinguagem.

Até o final do século passado, a voz eos instrumentos funcionavam comointerface entre a execução e a escutamusical. Nos últimos 100 anos a músicateve que passar a lidar com dois outrosprocessos que alteraram de modosignificativo a sua produção e suainserção no plano sociocultural. Aprimeira delas refere-se aodesenvolvimento dos processoseletromecânicos de gravação. A gravaçãotransformou sensivelmente o modo deacesso e distribuição musical, possibilitoua formação de arquivos sonoros extensose alargou as fronteiras que separam aprodução musical de sua recepção. Alémdisso, a gravação do som forjou umaexplosão sígnica sem precedentes: nuncatantas pessoas tiveram contato com tantainformação musical. Quase comoextensão dos meios de reprodução,surgem os meios eletro-eletrônicos deprodução sonora. Os novos instrumentos,representados por diversos tipos desintetizadores analógicos, vão modificar aidéia de tocar, além de ampliarsignificativamente o acesso ao elementosonoro. A segunda revolução, maisrecente, é a revolução digital. Substituindoo modelo analógico de representação como qual estávamos habituados a olhar omundo, a tecnologia digital leva aconcepção de virtualidade às últimasconseqüências. Os objetos representadospor meios analógicos guardam umacausalidade explícita em relação a seusanálogos. Existe uma fisicalidade no meioanalógico que é inseparável de seuprocesso de representação. Os meiosdigitais, por outro lado, são plenamenteconceituais: convertem a fisicalidade dosobjetos em símbolos abstratos, e entre osobjetos e os dígitos que o representamestá a computação. Pela computação -- e

Se por um lado, a linguagem musicalde diferentes épocas e culturas temservido como mola impulsionadora nodesenvolvimento dos instrumentos, ahistória da música mostra que o contráriotambém é verdadeiro. Por exemplo, oestabelecimento do tonalismo tornou-sepossível em grande medida devido aodesenvolvimento tecnológico dosinstrumentos musicais bem como àpadronização no uso desses.Instrumentos dotados de trastes e tecladoscom sua afinação fixa, o estabelecimentode grupos instrumentais estáveis e afixação da música por meio de sistemasde notação, permitindo que a mesmafosse interpretada em situações e porindivíduos diferentes, todos esses fatoresdemandaram uma certa homogeneizaçãodos sons produzidos. Quer dizer, tornou-se necessário eliminar as pequenasdeformações entre os intervalos dasescalas, tornando-as regulares. Esseprocesso, conhecido como temperamento,foi essencial para o desenvolvimento dosistema tonal que se desenvolveu nosúltimos quatro séculos. Sem otemperamento, não seriam possíveis asmodulações de tonalidade, não existiriama sonata clássica nem a sinfonia, e aorquestra moderna provavelmente nãoteria encontrado a expansão queexperimentou no final do século passadoe início deste. Pode-se pensar também quea agilidade oferecida pelos instrumentosda orquestra moderna permitiu osurgimento de construções sonoras maiscomplicadas, enquanto que odesenvolvimento de instrumentoseletrônicos abriu um espaço

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seus agentes, os computadores -- pode-seconverter o mundo real em informaçãoconceitual, passível de todo tipo demanipulação, e reconverter essainformação, a qualquer tempo, em uma

outra. Ao perder os laços analógicos, aligação entre o mundo real e suarepresentação digital passa a ser arbitrária,resultando na criação de novos mundos,desta vez, virtuais.

Música Gravada

Un orchestre joue dans une salle.Ailleurs, plus tard, gravé sur disque, cemême orchestre joue pour an auditeur,chez lui. [T]out porte, de la technique aucommerce, à faire croire à l'auditeur qu'ilpossède pratiquement cet orchestre [...]Comment se fait-il que le tour de passe-passe semble si parfait, que l'orchestrevienne jouer chez nous comme si de rienn'était? (Schaeffer, 1966: 74).

seus contextos históricos e sociais(Mowitt, 1987: 181).

Além disso, com os sistemas denotação, uma peça musical, até entãomatéria efêmera, dissolvida no tempo,podia ser pensada espacialmente,analisada, modificada. A notação musicalpermitiu que se debruçasse sobre notas eritmos e se refletisse sobre estruturasglobais de uma peça. Isso transformougradualmente o processo de criaçãomusical, substituindo o que até então eraligado à improvisação pela tarefa decomposição. Com isso a música setransforma essencialmente: sua estruturatorna-se mais complexa, seudesenvolvimento mais dinâmico e, com oauxílio mnemônico da partitura, possibilitaa criação de peças de mais longa duração.

Aprimeira grande transformação naprodução musical do século XX (asegunda refere-se à explosão da

tecnologia digital) é decorrente dosurgimento dos processoseletromecânicos de gravação. A fixaçãodo som em um meio material transformaradicalmente sua natureza. Essa revoluçãoé apenas comparável ao surgimento daescrita musical. A partitura tem,inicialmente uma função mnemônica: a depreservar o conhecimento musical dentroda comunidade. Seria ingenuidadeanalisar os processos de notaçãomeramente como ferramentas auxiliaresutilizadas por músicos e compositorespara memorizar peças musicais. Maisimportante que isso, a partitura serviu parasolidificar uma memória coletiva, fruto dareatividade de músicos e ouvintes com

É através das possibilidades degrafia que a música ocidental passaa ser pensada intelectivamente, jáque [...] como linguagemmarcadamente temporal, possuiuma natureza extremamente fugaz.A codificação do elemento sonoroconfere à música um substratoenorme de racionalidade,suscitando a complexificação e aconcatenação de suas leis formais.Passa-se do improvisado e doprocedimento casual para a

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composição estruturada [...](Iazzetta, 1993: 147).

particular. Há uma mudança radical nofocus desses dois meios, partitura egravação, e essa mudança, do domínio dasnotas para o universo dos sons não podedeixar de representar uma mudançaradical no modo pelo qual criamos eentendemos música. De certa forma,encontramo-nos hoje a meio caminhonesse processo: boa parte da produçãomusical realizada nos dias de hoje ainda ébaseada nas relações tradicionalmenteestabelecidas pela partitura. Mesmo amúsica de compositores que criamdiretamente sobre material sonoro pormeio de meios eletrônicos ainda guarda -e deve guardar por muito tempo - umaestreita conexão com a música “feita” denotas e ritmos de seus mestres passados.

A partitura funciona como umaespécie de lente de aumento, permitindoque se explore atentamente nuances erelações sutis que compõem o discursomusical. O surgimento dos meios degravação no final do século passadofunciona como uma espécie demicroscópio, permitindo a exploração dedetalhes ainda mais sutis do universosonoro. Nesse sentido, a gravação, sejapor meio dos sulcos cravados numasuperfície de vinil ou dos bits na memóriade um computador, é também um textoque, como a partitura, contém uma históriafeita de sons, à qual chamamos música.Porém, ainda que partitura e gravaçãorefiram-se a uma mesma história sonora -uma peça de Hændel ou uma canção deNoel Rosa - esses dois meios fazemreferência a aspectos diferentes da música,signos diversos representando o mesmoobjeto. A partitura musical trabalha nonível de relação entre alturas sonoras,notas musicais, e sua organização notempo. A gravação, por outro lado,registra o próprio som em sua passagemtemporal, como matéria bruta que éremetida aos nossos ouvidos. A partituraé um texto que se atualiza por meio de suainterpretação. Não se pode ler umapartitura sem interpretá-la porque, aocontrário do que possa parecer, ossímbolos que ela contém representamapenas alguns poucos aspectos da música,um esquema, e não a música em si. Apartitura aponta para uma espécie demolde que o intérprete deve preenchercom um material que provém da cultura,da tradição musical, de suas habilidadestécnicas e de suas impressõesparticulares. É portanto um convite àinterpretação.

Esse tipo de transformação, em queestruturas e conceitos relacionados a ummomento da história da músicafuncionam como base para o surgimentode estruturas e conceitos novos é algo queocorre com certa freqüência. Pode-setomar como exemplo o estabelecimentodas formas instrumentais durante aRenascença e períodos posteriores. Atéentão, a música era concebidaessencialmente como arte vocal, com osinstrumentos exercendo um esporádicopapel secundário. Entretanto, ainda noBarroco tardio, quando a música de Bache Hændel já tem estabelecido o papelprimordial dos instrumentos, pode-senotar na obra desses mestres toda ainfluência da tradição vocal dos séculosanteriores: sua música, ainda que escritaespecificamente para instrumentos, soapor vezes como se estivesse sendocantada, como se o instrumento aindaquisesse manter o significado daspalavras. Com o tempo, essa proximidadeentre escrita vocal e instrumental vai setornando efêmera e se torna difícilreconhecer traços vocais na obrainstrumental de compositorestemporalmente mais distantes destatradição, como Berlioz ou Mahler porexemplo. E finalmente, temos umainversão de papéis na música maisrecente, quando diversos compositorespassam a dar um tratamento instrumental

A gravação, por outro lado, registra oresultado sonoro desse processo deinterpretação. Representa não só umadeterminada música, mas também a visãoque um intérprete particular tem destamúsica e a ocorrência real dessa músicaem um dado momento e em uma situação

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para suas obras vocais, desfazendo areferência, antes obrigatória, entre voz etexto para explorar a riqueza eversatilidade do aparelho vocal por suaspropriedades sonoras, como uminstrumento complexo. A Sequenza III(1995) para voz feminina de LucianoBerio é um bom exemplo desse processo.Nesta obra, o compositor explora aomáximo os recursos da voz como se fosseum instrumento e o texto é utilizado pararessaltar a própria sonoridade vocal aoinvés do significado semântico daspalavras.

de concerto tradicionais são totalmentedesqualificadas para a reprodução dorepertório atual de música eletroacústica edigital. A estrutura destas peças é calcada,no mais da vezes, na exploração derecursos como espacialização do som,variações sutis ou extremas de dinâmica ereverberação, que não desempenhavampapel relevante nas composições para asquais a maioria dos teatros existentesforam construídos. Na maior parte doscasos, em apresentações de músicaeletroacústica realizadas em situaçõestradicionais de concerto, muitos dosdetalhes mais significativos de uma obraacabam diluídos na impropriedade da salade concerto.

A música de determinado período nãoé fruto do acaso, mas provém de uma lutade forças entre tradições passadas enecessidades do presente. É interessantenotar que, embora quase toda música coma qual temos contato hoje em dia sejaproveniente de gravações, ainda domina avisão tradicional de música como arteperformática, cujo paradigma derealização é o concerto. O própriosurgimento da música eletroacústica, queem um primeiro momento eliminou aparticipação do intérprete, veio reforçar,muito mais que questionar, essa visão: atéos dias de hoje, são comuns os concertosem que os ouvintes são confrontados coma situação, por vezes incômoda, de ir a umconcerto em um teatro cujo palco estávazio, a não ser pela presença dos alto-falantes de onde provém a música pré-gravada. Ora, essa situação de concertonasce e se estabelece em função daperformance de instrumentistas dehabilidades especiais, manejandoinstrumentos sofisticados, aos quais oouvinte poderia não apenas ouvir, mastambém assistir. O concerto possui umritual próprio -- o apagar das luzes, osilêncio da plateia, a passividade dosouvintes, a ovação nos momentosapropriados -- que se torna totalmentedeslocado quando é modificada a relaçãode produção e audição musical trazidaspela música eletroacústica gravada em fitamagnética. Pouco a pouco, a difusãodestas obras vem encontrando modos dereprodução mais propícios ao seu caráterde música pré-gravada. Além disso, salas

A instituição do concerto veiosolidificar a relação entre intérprete eouvinte: se por um lado ambosdesempenham papeis bastante distintos --tocar e ouvir -- por outro, a realizaçãomusical ocorre pela interação de ambosdurante o concerto. Ambos são atoresimprescindíveis da atividade musical. Asformas gravadas de música vão alteraressa relação e, de certa maneira, remodelara atuação do intérprete e do ouvinte. Eisso não vai ocorrer apenas em relação àsmúsicas realizadas sobre um suporte degravação, mas também em relação àsformas tradicionais de música, como oconcerto, que passam a ser experienciadaspor meio da gravação em disco e não emuma apresentação ao vivo.

Above all, the technique ofreproduction - mechanical,electrical or electronic - creates adistance, both physical andpsychic, between performer andaudience that simply never existedbefore, which produces new waysfor music to be heard and allowsthe listener totally new ways ofusing it (Chanan, 1994: 14-15).

A introdução do computador e outrastecnologias digitais como o sampler e ocompact disc representa a consolidaçãode um processo que se inicia com osurgimento do fonógrafo no final doséculo passado e exige cada vez mais que

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se assuma uma postura diferente emrelação à música que produzimos eouvimos hoje em dia. Não se discute aquia validade de se dar continuidade àtradicional programação de músicaclássica das salas de concerto de todo omundo, ou do movimento de recriação damúsica antiga que vem aumentando suapopularidade nas últimas duas ou trêsdécadas. A tradição musical do Ocidenterepresenta hoje um dos grandes marcosde nossa cultura, e sua vitalidade epresença farão com que essa tradiçãotarde muito a ser vista como peça demuseu ao invés de fenômeno inserido nacultura contemporânea. Há quem cheguea dizer que estilos como o clássico ou oromântico, com sua liderança no mercadofonográfico e presença constante naprogramação de concertos, estão tãopresentes no pensamento musical atual,que também deveriam se chamar músicacontemporânea.

foram alvo de numerosas campanhaspublicitárias com o objetivo de firmar opapel desses aparelhos como agentetransformador da cultura musical daépoca. De mera curiosidade exibida nossaguões de hotel, o fonógrafo e seussimilares foram, pouco a poucosubstituindo a apresentação musical aovivo.

Esse processo não se deu por acaso.O século XIX criou uma divisão explícitana atividade musical. Por um lado havia amúsica pública realizada em salas deconcerto por músicos profissionais e poroutro a música doméstica feita entreamigos e familiares dentro de suas casaspor amadores dedicados. Na passagem doséculo passado para o atual, a música deconcerto alcança um nível tão elevado decomplexidade e os intérpretes necessitamtamanha habilidade técnica que a distânciaentre as esferas da música pública eprivada torna-se imensa. O termoamateur , ou seja, aquele que ama amúsica, representado muitas vezes pelafigura da filha bem dotada tocando aopiano, adquire um tom pejorativo,destinado àqueles cuja falta de talentoimpedia a criação de música de boaqualidade. O fonógrafo vem de certaforma suprir o papel de músico amadordentro das casas e nas reuniões entreamigos e familiares. Aos poucos, aspessoas foram aprendendo a ouvir ossons distorcidos e ruidosos dos aparelhosfonográficos e a tomá-los como padrão deescuta. Seduzidos pela facilidade com quese podia colocar dentro da sala de visitasintérpretes famosos tocando peças cujaexecução seria inalcançável para oamador, o público em geral passa a seconformar com essa nova espécie de fazermusical descorporificado, já que, aoganhar a portabilidade da gravação, amúsica perde o significado corpóreo queestava associado com a performance aovivo.

O fonógrafo foi visto inicialmentecomo um meio de armazenagem deinformação, como a escrita ou afotografia. Seu próprio criador, TomasAlva Edison, sugeriu uma série deaplicações para o aparelho: cartas faladas,conversas telefônicas pré-gravadas,brinquedos falantes, registro das palavrasde pessoas importantes ou membros dafamília, anúncios falados. É curioso notarque a maior parte dos usos previstos parao aparelho de gravação jamais chegaram ase concretizar, mesmo com o surgimentode outras mídia, enquanto outrosprecisaram esperar por décadas até seremutilizados em aparelhos como secretáriaseletrônicas, computadores e vídeo-games.Na verdade, os primeiros aparelhosfonográficos eram baseados em umatecnologia mecânica bastante simples,porém a qualidade de reproduçãooferecida ficava muito além da necessáriapara o uso musical. Apesar disso, noinício deste século, aparelhos fonográficos

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THOMAS ALVA EDISON (1847-1931) encontrava-se, em 1877, envolvido comexperimentos com o objetivo de aumentar a velocidade de transmissão do telégrafo. Suaidéia era pré-gravar as mensagens em código Morse na forma de indentações em uma fitade papel. Essa fita era então passada em alta velocidade por um relê conectado a umteclado Morse. Edison logo notou que quando a fita de papel era movida rapidamente oaparelho emitia um ruído semelhante à fala humana. Isso lhe deu a idéia de gravar asindentações por meio de uma agulha conectada a um diafragma que captaria diretamente osom de sua voz. O experimento imaginado por Edison foi realizado em julho daquele mesmoano. Entoando a frase "Mary had a little lamb" perto do diafragma, Edison inaugurou a eradas gravações (Faixa 1 do CD).

A máquina inventada por Edison recebeu o nome de phonograph. Seu funcionamentoera relativamente simples. Consistia de um cilindro de aproximadamente dez centímetros dediâmetro revestido por uma fina folha de metal que era acionado manualmente por umamanivela. Um diafragma destinado à gravação e outro à reprodução eram colocados decada lado do cilindro. No centro de cada diafragma era presa uma agulha. Quando a agulhade gravação era encostada no cilindro, a pessoa se aproximava do diafragma ao mesmotempo em que rodava a manivela. As vibrações de sua voz eram impressas no cilindro epodiam ser reproduzidas posteriormente utilizando-se a agulha do lado oposto, cujodiafragma era mais sensível.

Por muito tempo, o FONóGRAFO permaneceu sem encontrar sua finalidade definitiva. Foicomercializado sem sucesso como aparelho para produzir cartas e documentos sonoros emescritórios e mais tarde achou um novo uso nas chamadas coin-machines. Estas máquinas,estrategicamente colocadas nos saguões de grandes hotéis e bares nos Estados Unidos,reproduziam pequenos trechos de música ou monólogos cômicos ao cliente que depositasseuma moeda em uma fenda do aparelho. Mais de 20 anos desde sua invenção se passaramantes que o fonógrafo encontrasse sua função definitiva como provedor de música,tornando-se, nas primeiras décadas deste século, um objeto familiar que podia serencontrado não apenas em hotéis e clubes, mas nas casas de todos os que seinteressavam por música.

Figura 2: Fonógrafo Edison Triumph , modelo de 1903

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records on Edison" (in Thompson,1995:141). No anúncio, a ilustraçãomostrava uma família reunida em torno doaparelho enquanto um dos membrosgravava sua voz por meio da trompa doaparelho. A expressão das pessoasmostrava um misto de fascinação eprazer. Com aqueles aparelhos degravação e reprodução criavam a imagemde instrumentos musicais acessíveismesmo aos que não possuíam talento ouconhecimento musical. Pode-se imaginarque algumas décadas antes, a mesma cenapoderia ser usada em um anúncio depianos, por exemplo, bastando substituir ofonógrafo pelo instrumento.

A estratégia que conferiu sucesso aofonógrafo foi a de fazer o públicoacreditar que esse era o meio de se fazerboa música sem que fosse necessário ter ahabilidade de um músico profissional.Aos poucos, os aparelhos fonográficosvão tomando o lugar do piano dentro dassalas de visita deixando de ser encaradoscomo meros reprodutores e passando aocupar o lugar do instrumento musicaldoméstico. Já na primeira década desteséculo, todo o mecanismo e a enormetrompa que servia de amplificador para osom do aparelho eram escondidos emluxuosos gabinetes fechados que setornavam parte da mobília.

Num excelente artigo sobre acomercialização dos aparelhosproduzidos por Edison nos estadosUnidos, Emily Thompson mostra como ofonógrafo vai se tornando parte da culturamusical modificando hábitos de escuta,produção e comercialização da música:

In order to make the phonographacceptable, manufacturers,advertisers and consumers had toredefine the machine, visually,culturally and acoustically. Thephonograph could not just reproducesounds of musical instruments: ithad to become an instrument itself(Thompson, 1995: 140).

Ao ser encarado como instrumento, ofonógrafo pela primeira vez desassocia amúsica da idéia de performance, esseelemento da arte musical que durantemilhares de anos serviu como meio deaproximação entre o fazer e o ouvir. Alémdisso, os primeiros fonógrafos mecânicosofereciam mais do que a possibilidade dereproduzir música pré-gravada: elesfuncionavam também como gravadores ecom eles as pessoas podiam registrar suaspróprias vozes em discos virgens. Porvolta de 1910, a National PhonographCompany veiculava um anúncio com osdizeres: "there is nothing that approachsthe fun and the fascination of makingrecords at home on the EdisonPhonograph [...] Anyone can make

Figura 3: O nome de Tomas Alva Edison(1847-1931), freqüentemente estáassociado ao termo invenção. Entresuas criações estão o microfone (1877),o fonógrafo (1878) e a lâmpadaincandescente (1879).

Aparelhos de gravação e reproduçãodeixaram de ser novidade há muito tempoe hoje são parte integrante e inseparávelde nossa cultura musical. A idéia de tocarum desses aparelhos não se assemelha emnada à idéia de tocar um instrumento.Entretanto, no início do século muitasempresas tentaram vender a imagem de

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seus aparelhos fonográficos comosubstitutos dos instrumentos tradicionais.Em 1916, uma empresa chamada Aeolianlançou seu fonógrafo Vocalion. Acampanha publicitária da empresaenfatizava uma característica particular doaparelho, a Graduola, que funcionavacomo um controle de volume. Com aGraduola, qualquer pessoa podia"adequar a música ao seu gostoparticular" fazendo do Vocalion um "meiopara a expressão de seus instintos" (inThompson, 1995:160). Em seu artigo,Thompson reflete sobre a estratégia demercado da Aeolian:

gramofones do início do século e o ato detocar um desses aparelhos jamais seconfundiria com o ato de tocar uminstrumento. Mas o computador e outrasmáquinas modernas de "fazer música"voltam a cumprir o mesmo papel dossistemas de reprodução do início doséculo. Ao mesmo tempo que servem àmúsica profissional, tentam substituir aatividade da música prática domésticaprometendo a uma legião de amadores enão iniciados a produção de música tãoelaborada quanto a feito por músicosprofissionais. Esses novos instrumentosautomáticos criam na verdade uma ilusão:na maior parte das vezes, essesinstrumentos oferecem aos "amadores", omesmo que oferecia o anúncio dofonógrafo de Edison: fascínio e diversão.O fonógrafo encantou as pessoas comsua possibilidade de reproduzir música dequalidade no âmbito doméstico, e nãocom sua qualidade de reprodução. Domesmo modo, o computador e seusperiféricos sonoros (sintetizadores,samplers, processadores de efeito) traz apossibilidade se simular, dentro de casa,os sons de uma orquestra ou da banda derock preferida. Ele encanta hoje o amadorpela possibilidade de novamente se fazermúsica prática no âmbito privado, muitomais do que pela qualidade desta música.

The Graduola constituted anattempt to equate the playing ofrecords with the playing of aninstrument. The attempt did notsucceed. In spite of the sharedterminology still in use today, fewpeople accept this equation(Thompson, 1995: 160).

Essa mesma idéia vai ser exploradanos anos 80 quando a utilização desintetizadores e computadores em músicadeixa de ser privilégio de uns poucoscompositores e pesquisadores e sedissemina entre outros grupos, entre elesos músicos populares e os amadores. Aesta altura, sistemas como toca-discos egravadores magnéticos já não exercem omesmo fascínio que os fonógrafos e

Olhando o Passado

Ouso do computador comoferramenta musical vemintroduzindo mudanças

significativas em todos os âmbitos dofazer musical. A digitalização do som trazpossibilidades de produção, manipulação

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e difusão totalmente novas para essaatividade. O som transformado em bitsdigitais representa a consolidação dosdois princípios mais utilizados até poucotempo atrás para a representação do textomusical: a partitura e a gravação. Como apartitura, a música digitalizada é umarepresentação sígnica, uma conversãosimbólica da música. Ao contrário damúsica em sua situação bruta, quer dizer,durante sua performance, os símbolos emuma partitura ou na memória de umcomputador são totalmente abertos àqualquer tipo de manipulação,especialmente as de carater lógico. Essessímbolos podem ser comparados,organizados, hierarquizados de maneirasque a música, enquanto fenômenotemporal jamais permitiria. Por outro lado,assim como os processos de gravaçãomecânica e magnética, a digitalizaçãosonora veio permitir a armazenagem, areprodução e a difusão indefinida de umamesma performance ou evento musical, aomesmo tempo que possibilita a ediçãodesse material.

microscópico. Digitalizar o materialmusical, significa criar a representação dopróprio som que compõe esse material.Ao mesmo tempo que esseaprofundamento ofusca as relaçõesescalares representadas na partitura, osom digital revela um novo nível deestrutura: seus bits representam o própriosom em sua materialidade etemporalidade. A mudança que ocomputador coloca em relação à partituraé que ao apresentar uma representaçãosimbólica do material musical a um níveldiferente, faz com que todo processo deprodução e análise musical estejambaseados, também, em elementosdiferentes e, por conseqüência, geremoutros resultados. É de se esperar,portanto, que a utilização do computadordentro da produção musical mudesensivelmente a maneira como pensamosmúsica, uma vez que se modificam osprocessos de representação, bem como omaterial representado desta música.

A gravação digital também trazmudanças significativas em relação aosprocessos mecânicos e magnéticos. Odisco ou a fita magnética registramanalogicamente as ondas sonoras de umaforma mecânica (como no caso dosdiscos de vinil) ou eletromagnética (comono caso das fitas magnéticas). Ossistemas digitais, por outro lado,representam as ondas sonoras gravadascomo uma coleção de valores discretos.Quer dizer, cada variação da onda sonoraé representada por um valor numéricoespecífico. Esse processo, conhecidocomo digitalização, traz um poder demanipulação significativo do materialgravado. A informação analógica dosprocessos mecânico e magnético, apesarde representar o som de modo maisdireto, não é capaz de oferecer as mesmaspossibilidades de controle e manipulaçãoda informação digital. No sistemaanalógico só é possível a manipulaçãobruta da informação sonora, de suascaracterísticas a nível macroscópico. Noambiente digital, a representação decaracterísticas globais é mais difusa,porém há um controle muito maior a nível

Os sistemas digitais, entretanto,oferecem mais do que a síntese daspossibilidades oferecidas pela partitura epelos métodos tradicionais de gravação.Os símbolos da partitura trabalhambasicamente com a representação de duasdimensões musicais: alturas e duração.Por meio da notação estabelecem-seestruturas relacionais entre as notas deuma escala e sua posição em relação a umpulso temporal preestabelecido. Ou seja,as notas em uma partitura fazemreferência a uma estrutura de relaçõesintervalares definidas por um sistemaescalar. Uma escala é um filtro ordenadorque retira alguns elementos (aos quaischamamos notas) do contínuo das alturasbaseada em uma razão constante, que nocaso do sistema tonal é a oitava com suasubdivisão em 12 semitons. O mesmotipo de relação é imposta à dimensãotemporal. Cada nota recebe um valordefinido, múltiplo ou fração de um pulsoe posicionada segundo pequenos padrõestemporais chamados compasso. Por outrolado, a digitalização opera num nível

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micro-escalar, já que cada variação sonoraque é registrada está associada a um valordiscreto. A precisão, portanto, estárelacionada apenas com a resolução usadana confecção do registro do materialsonoro: quanto maior essa resolução,maior a quantidade de informação quepode ser acessada. Como diz DécioPignatari: "A mensagem de tipo analógicoé menos precisa, porém mais direta e asua imprecisão nasce do fato de asquantidades contínuas terem de serrepartidas em unidades digitais econtroladas sensivelmente" (Pignatari,1988: 18).

Isso possibilita, entre outras coisas, que secodifique e decodifique a informaçãosonora segundo diversos padrões. Comisso pode-se transmitir músicadigitalmente por meio de redes decomputadores via modem, por exemplo:os sons armazenados no computador sãotransmitidos por linhas telefônicas erecebidos por um computador remoto quedecodifica o sinal original e o transformaem som novamente, sem que haja perdade qualidade. Do mesmo modo, aparelhoscom diferentes sistemas de codificaçãopodem compartilhar um mesmo materialsonoro. Assim, diferentes instrumentos,como sintetizadores digitais e samplers,ou sistemas operacionais decomputadores como Unix, DOS, eMacintosh, podem intercambiarinformação sonora, bastando para issoserem capazes de codificar e decodificarde maneira apropriada os sinaistransmitidos e recebidos.

A digitalização do som, quer dizer,sua representação por valores discretos,oferece duas grandes vantagens emrelação à gravação analógica: resistência àintrodução de ruído e facilidade demanipulação e armazenagem. Juntas,estas características trouxeram novaspossibilidades para o mundo do áudio,com conseqüências diretas na produçãomusical. Gravações analógicas podem sermanipuladas de diversas maneiras.Filtragem, mixagem, montagem, aplicaçãode efeitos são apenas algumas dasoperações que podem ser aplicadas sobreáudio analógico. Porém a natureza dosdados analógicos faz com que essesprocessos não apenas modifiquem omaterial original, mas também gerempequenas imprecisões que se manifestamcomo ruído. Resultado: quanto maior onúmero de processos a que se submeteum sinal de áudio, maior o nível dedegeneração do mesmo. Sinais digitais seprestam muito mais a manipulaçãoporque seus valores são precisos ediscretos e por isso mais imunes àintrodução de ruído. Quer dizer, um sinaldigital pode passar por uma série detransformações sem que haja perdasignificativa de qualidade. Além disso, amaior parte das modificações realizadassobre um material analógico é destrutiva,ou seja, elas modificam o som original demodo definitivo. Processos realizadossobre áudio digital muitas vezes sãoreversíveis, bastando aplicar o processoinverso sobre a informação resultante.

Figura 4: O Ondes Martenot.

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Boa parte das questões levantadaspelo uso de computadores em música jáfizeram, de algum modo, parte daspreocupações daqueles que vivenciaramas transformações ocorridas com aintrodução de tecnologias como ofonógrafo, o gramofone e o rádio. Noinício do século, esses aparelhos, bemcomo instrumentos elétricos como oTheremin e o Ondes Martenot já

suscitavam preocupações sobre asmudanças que tais tecnologias trariam àmúsica. As posições variavam das maisentusiásticas às mais cépticas epessimistas. Se por um lado estasinvenções apontavam para novos modosde se fazer e ouvir música, por outrolevantavam a suspeita de que a músicaestaria perdendo seu aspecto espiritual esensível para tornar-se um ato mecânico.

Vendo o Futuro

Em 1926, num livro chamado TheFuture of Music, o professorEdward J. Dent comenta as

proportions of those who acquirethe habit of listening will bestimulated to learn something ofthe art of performing (Edward J.Dent, Future of Music, 1926, inMoore, 1981: 224-225).

possibilidades que os avançostecnológicos de sua época em relação àmúsica:

The mechanical inventions of recentyears have provided us withincreased facilities for thediffusion of music. The present eramay come to be regarded as similarin historical importance to thosewhich first benefited by theinvention of the stave and by theinvention of music printing. To someextent these changes representmerely the adaptation of practicalconditions to the increase of thepopulation. But whereas theinvention of the stave and theinvention of music-printing must inall probability have increased thenumber of persons who could readmusic at sight, the modernreproductive machinery cannot domore than increase the number ofthose who confine themselves tolistening. It remains to be seen what

A idéia é que o surgimento dogramofone permitiria que cada vez maispessoas tivessem acesso a um númeromaior de obras e estilos musicais, o que,esperava-se, despertaria o interesse peloaprendizado e apreciação musical. Defato, o cilindro gravado usado nosprimeiros fonógrafos e gramofones, abriunovas perspectivas no contato com umaquantidade e diversidade musical semprecedentes na história. Um únicoexemplo serve para ilustrar esse ponto: aGramophone Company, formada naInglaterra em 1898 possuía, já por volta de1900, um catálogo de 5.000 títulosfonográficos separados por categorias degravações inglesas, escocesas, irlandesas,celtas, francesas, alemãs, italianas,vienenses, húngaras, russas, persas,hindus, urdus, árabes e hebréias (Chanan,1995: 29). Embora desde seu início até os

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dias de hoje a indústria fonográfica tenhase dirigido primariamente ao gostopopular e comercial, tal diversidade foisempre crescente, gerando o lançamentode uma enorme quantidade de gravações"étnicas", que atraíam ouvintes curiosos,geralmente mais pelo exotismo do quepela nova informação musical. Esseprocesso culminou, há pouco mais de dezanos na chamada world-music, verdadeirocaldo diluidor de músicas e culturas.

After all, the gramophone recordhas the same relation to theoriginal music out of which it wasmade as canned fruit to fresh fruit;one does not contain vitamins, theother does. Mechanical music is amanufacturing industry; live musicis an individual handicraft(Bartók, 1976: 298) .

Certamente a posição de Bartók não

O GRAMOFONE opera de maneira semelhante ao fonógrafo. Ambos se utilizam deuma agulha presa a um diafragma para gravar sulcos correspondentes a ondas sonoras.Porém, enquanto nos primeiros fonógrafos a agulha formava indentações verticais (isto é,formando um relevo de pontos altos e baixos) em um cilindro, nos gramofones, a agulhaformava sulcos horizontais em um disco plano revestido com cera. O novo aparelho foidesenvolvido por Emile Berliner, um alemão que migrou para os Estados Unidos, e a primeirapatente do gramofone foi feita por ele em 1877. Ao contrário do fonógrafo de ThomasEdison, o gramofone não permitia a gravação, mas apenas a reprodução dos discos. O que aprincípio poderia parecer uma deficiência, tornou-se o grande impulso da indústriafonográfica do início do século: ao separar os processos de gravação e reprodução, ogramofone permitiu que se desenvolvessem métodos melhores de registro sonoro e, a partirdas experiências de Berliner, processos de duplicação desse registro. Enquanto o fonógrafoexigia que os cilindros fosse gravados um a um, o gramofone permitia a confecção denumerosas cópias de disco a partir de uma mesma matriz inicial. Nascia aí a produçãofonográfica de massa e, como aponta Michael Chanan (1995: 28) , o disco passa a serpensado como o livro, que pode ser replicado em muitas cópias, ao invés de assumir o caráterindividual e único da fotografia. Outro ponto importante, é que com o desaparecimento dosantigos fonógrafos, pouco a pouco substituídos pelos gramofones, foi preciso esperar pelosurgimento dos gravadores magnéticos, meio século mais tarde, para se poder realizarnovamente gravações domésticas.

O compositor Béla Bartók (1881-1945) um entusiasta do uso dos novosmeios de gravação e reprodução,especialmente devido aos benefíciostrazidos por esses meios ao estudo damúsica folclórica, termina um artigo de1937 com a súplica: "May God protectour offspring from this plague!" (Bartók,1976: 298). A 'praga' a que o compositorhúngaro se refere é a possibilidade de umdia a música mecanizada, ou seja, aquelaproveniente de aparelhos como ogramofone, viesse substituir a músicarealizada "ao vivo" com o públicotomando contato com a performance.Preocupado com a crescente substituiçãodas apresentações musicais em concertopela chamada música mecânica, ocompositor adverte para o caráter artificialda segunda:

representava a visão geral de sua época.Na maior parte das vezes o fascínioexercido pelas novas conquistastecnológicas levava, ao menos àquelessupostamente comprometidos com asidéias de progresso e conquista de novosconhecimentos, a uma atitude deexaltação, ou ao menos simpatia emrelação a estas conquistas. O movimentofuturista de Marinetti já na década de1910 incentivava o culto às máquinas oque se mostra claro no textos e obras dossimpatizantes do movimento. LuigiRussolo em uma carta de março de 1913ao compositor Balilla Pratella, a qual viriase tornar o manifesto da música futurista,expõe sua posição em relação àsmáquinas e aos ruídos que eles produzem:

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[Today's] musical art seeks outcombinations more dissonant,stranger, and harsher for the ear.Thus, it comes ever closer to thenoise-sound.

trazida pelo rádio ou reproduzida pelofonógrafo com a introdução da comidaenlatada: "What is a record? After all, it ispreserved music" (Schloezer, 1931: 7).Mas ao contrário da postura de Bartók,Schloezer vê a comida enlatada (e, poranalogia, a música gravada) como"excelentes" substitutos dos produtos'naturais'. Embora ambos tenhamcaracterísticas diferentes, as pessoaspassam a aceitar os discos comosubstitutos dos concertos ao vivo, assimcomo passaram a usar conservas no lugarde alimentos frescos: por uma questão dehábito. Os sons "distorcidos" produzidospelo fonógrafo passam a ser o padrão dequalidade sonora dos ouvintes à medidaque estes se habituam às característicasdesse novo meio (Schloezer, 1931: 7).

This Evolution of music iscomparable to the multiplication ofmachines, which everywherecollaborate with man (Russolo,1986: 24).

Além das diversas experiênciasmusicais futuristas com seusintonarumore (fazedores de ruído), umasérie de obras foram realizadas entre astrês primeiras décadas deste século cujainspiração era a mecanização trazida pelatecnologia da vida moderna. A maior partedessas obras cairam logo noesquecimento e hoje poucas, como oBallet Mécanique de George Antheil ePacific 231 (1923) de Arthur Honeggerainda fazem incursões esporádicas nassalas de concerto e gravações.

Para o ouvinte moderno, acostumadoao padrão de qualidade dos equipamentosdigitais de reprodução, parece difícilacreditar que alguém poderia tomar umagravação realizada nos velhos fonógrafose gramofones em substituição àperformance ao vivo. Mas isso pareceendossar a idéia de que nos habituamos,ou melhor ainda, aprendemos a ouvir deacordo como o material sonoro a queestamos expostos. E esse processo deaprendizagem parece ser muito maisantigo do que imaginamos. Músicarenascentista realizada em instrumentosde época, com suas afinaçõescaracterísticas pode soar bastante estranhapara um ouvinte habituado à sonoridadeda orquestra moderna. Bach, por outrolado, quando foi apresentado aoinstrumento que dominaria a música dasgerações seguintes à sua, o piano, reagiucom desprezo pois preferia a sonoridadedo clavicórdio para o qual compunha suasobras. Qualquer um pode fazer testar esseaprendizado auditivo ouvindo um dosdiscos de "alta fidelidade" dos anos 60.Na época eles representavam umverdadeiro alcance tecnológico, porém, umouvinte hoje jamais se enganariapensando tratar-se de uma gravaçãorecente.

Em 1931 a revista Modern Musicdedica o volume de março e abril ao tema"Música e a Máquina". Diversos artigostratam das novas relações entre música eseus modos de produção. Boris deSchloezer assina um dos artigos com otítulo Man, Music and the Machine(Schloezer, 1931), onde trata da chamadamecanização da música. Para Schloezer, amúsica mecânica é apenas um mito, umavez que esta sempre dependeu de técnicase tecnologias dos instrumentos para suarealização. Para ele, o desenvolvimentodos aparelhos de reprodução fonográfica,do rádio e dos instrumentos elétricos nãorepresenta uma mecanização da música --essa é, e sempre será, essencialmenteespiritual, diz ele -- mas apenas umasubstituição gradual da relação diretaentre o intérprete e o ouvinte por umarelação mais remota: "The "mechanizationof music" actually means the increase innumber of intermediaries betweenproducer of music and listener whichalone has made possible the developmentof devices like the phonograph and theradio" (Schloezer, 1931: 3). Assim comoBartók, Schloezer compara a música

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Quando a companhia de ThomasEdison criou as campanhas de "tone test",nas quais indivíduos eram induzidos aacreditar que a reprodução do fonógrafoera indistinguível do apresentação ao vivo,parece que eles estavam, de algum modo,apostando nesta "reeducação" auditiva deseus compradores. A idéia de que noshabituamos a ouvir de uma determinadamaneira, como coloca Schloezer, parececomprovar a estratégia da NationalPhonograph Company quecomercializava os aparelhos de Edison,especialmente pelo rápidodesenvolvimento da indústria fonográficana primeira metade do século. O mesmofascínio que o som digital doscomputadores e CDs exerce sobremúsicos e ouvintes de hoje, levava aosouvintes do gramofone e aparelhossimilares a acreditar que aquele era opadrão sonoro para ouvir e experienciarmúsica. Tanto hoje como no início doséculo, o estágio tecnológico seduz peloseu poder realizar o que a pouco eraimpossível, e faz com que seuscontemporâneos desenvolvam filtros pormeio dos quais lêem e compreendem omundo. O comentário de EmilyThompson sobre a campanha dos one

tests usadas na publicidade dos primeirosaparelhos fonográficos, poderia muitobem ser transposto para a tecnologiadigital que se desenvolve atualmente ecujo produto cada vez mais se torna opadrão para audição musical:

By drawing upon a culture ofimitation "fascinated byreproduction of all sorts," the tonetest campaign helped movephonographic culture beyond thisstage to a point wherephonographic reproductions couldbecome musical "reality itself". Byeffacing the mechanism of themachine, by blurring thedistinctions between public anddomestic music, by personalizingthe musical reproductions, and bycloaking them in all thetraditional trappings of an elitemusical culture, the tone testcampaign enabled people to equatelistening to records with listeningto live music and thus to turnphonographic reproductions into"real music" (Thompson, 1995: 160).

Instrumentos e Interfaces

Com o desenvolvimento dos novosidiomas musicais no final doséculo XIX e início do século XX, a

que ocorre é o estabelecimento de umapostura diferente em termos de produçãomusical que pode ser notada em uma sériede aspectos: novas idéias composicionais,o surgimento de espaços alternativos paradifusão musical fora das salas deconcerto, os sistemas de gravação ereprodução, a transmissão via rádio e TV

expansão do meios de produção sonoratornou-se inevitável. O desenvolvimentode novos instrumentos refletiu mais doque a necessidade de refinamento da vastapaleta sonora da orquestra moderna. O

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de apresentações musicais e areaproximação da música com outraslinguagens, especialmente as visuais.Esses aspectos vão solicitar odesenvolvimento de novas maneiras deprodução sonora e de articulação dessessons com a linguagem musical.

Como sempre ocorreu durante ahistória dos instrumentos tradicionais, osaparelhos eletrônicos tem evoluído demaneira a suprir as necessidades de ummercado cada vez mais exigente. A cadaano novos tipos de instrumentos eaparelhos musicais são lançados com aintenção de ampliar o leque depossibilidades na criação e manipulaçãodo som dentro do estúdio ou durante aperformance. Michael Chanan (1994)chama a atenção para o fato de que ahistória dos instrumentos musicais estáestreitamente ligada à história dalinguagem musical. Sua evoluçãotecnológica segue de perto asnecessidades impostas pela produçãomusical de cada época, em um constanterefinamento de qualidade sonora emelhora dos mecanismos de controle dosom. O conhecimento do modo deevolução dos instrumentos revela,portanto, faces importantes da própriaevolução da música. Sobre esse aspectoChanan comenta que:

Os instrumentos da orquestramoderna são fruto de uma longa históriade experimentação e invenção balisadapelas necessidades de músicos ecompositores e pela habilidade técnica eartesanal dos construtores deinstrumentos. O refinamento alcançadonesse processo é notável e retém ainda emgrande parte seu caráter artesanal edependente da habilidade e conhecimentode uns poucos indivíduos. Assim comocada intérprete concebe uma determinadapeça segundo uma perspectiva particular,cada instrumento comporta-se de mododiferente, único. É óbvio que hoje, cadavez mais, os instrumentos ou seuscomponentes são fabricados em série demodo a suavizar as diferenças entreexemplares de um mesmo tipo. Aindaassim, para o intérprete, o instrumento temsempre um caráter individual. Por maisque se padronizem os materiais eprocessos de construção, os instrumentosmodernos possuem tantos componentes eestão sujeitos a tantas variáveis (qualidadedos materiais, idade e modo de uso doinstrumento, acessórios, componentesadjacentes, como cordas, bocais epalhetas) que os instrumentistas, aomenos os mais sérios e habilidosos,sempre identificam as diferenças entre ume outro instrumento. O mesmo ocorrecom o estúdio de música eletrônica dehoje. Embora na maior parte das vezes umestúdio seja formado basicamente porinstrumentos fabricados industrialmenteem série, existem tantas variáveis na suaconfiguração que esses estúdios setornam extremamente personalizados. Osequipamentos eletrônicos paracomposição, gravação e performancedisponíveis são tão diversos que é raroencontrar dois músicos se utilizando deum mesmo conjunto de aparelhos.

if instruments are the means ofproduction of music, theindispensable match of the voice,the pitches and scales are the basicelements of its grammar and syntax;in that case, the question of musicalengineering and the technologicaldevelopment of instruments isintegral to an understanding of thedevelopment of musical languages(Chanan, 1994: 169).

Em relação à música ocidental, acrescente complexidade de sua linguageme o desenvolvimento de diferentessituações de performance -- da música noritual eclesiástico da Idade Média aosconcertos de rock modernos -- foramfatores importantes no processo evolutivodos instrumentos musicais. Por outrolado, seus desenvolvimentos erefinamentos não são apenas decorrênciahistórica da evolução das formas e dosmodos de produção musicais, mastambém atores desse processo deevolução. O fino artesanato do luthier oua tecnologia de ponta dos sintetizadoresdigitais carregam características de seu

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tempo e cultura, refletindo a tecnologia deseus produtores e a técnica de seususuários, mas também impulsionandocompositores e instrumentistas aampliarem os modos de produção emanipulação sonora. Durante a históriada música ocidental após o Renascimento,houve um gradual polimento dos sonsmusicais. É provável que em épocasanteriores, assim como ocorre ainda hojeem outras culturas, a música ocidentalfizesse uso de sonoridades muito maistoscas e "duras" se comparadas com ossons harmônicos e "suaves" produzidospelas vozes e instrumentos modernos(Small, 1989: 30-31). Os instrumentosque se desenvolveram após oRenascimento possuem um timbre limpoe permitem o controle acurado de cadanota produzida. Isso é claro para osinstrumentos de sopro, por exemplo, cujaengenharia de seus mecanismos permiteque todos os sons sejam tocados demaneira regular em termos de afinação esonoridade em geral, independentementedo registro, articulação ou dinâmica decada nota executada. Isso é defundamental importância para a músicaharmônico-tonal que se estabelece nestaépoca, baseada em relações bem definidasentre intervalos: para possibilitar osurgimento da sintaxe da música tonal,instrumentistas e cantores precisavam sercapazes de produzir sons harmônicos,cuja altura fosse claramente percebida e aafinação bem controlada. Com isso, osinstrumentos de percussão quegeralmente não são capazes de produziralturas definidas se mantiveram em umsegundo plano na orquestra tradicional,pelo menos até o início deste século.Mesmo instrumentos percussivos capazesde produzir sons "afinados" como ostímpanos ou as campanas desempenham,em geral, apenas um papel de acentuaçãodramática, e não de estruturaçãoharmônico-melódica.

Beethoven existe uma diferença que vaialém da técnica, estilo, ou gênero dessescompositores. Essa diferença reside natecnologia disponível para cada um nacriação de sua obra sonora, pois se amúsica existe pelo som, são osinstrumentos que dão realidade a essaexistência. Por esse motivo, compreendera natureza dessas interfaces musicais, éum passo na compreensão da própriamúsica. Nesse sentido, Richard Ortoncomenta que os instrumentos

can be understood to embodyconsiderable musical intelligenceand understanding, passed downsometimes over generations toaugment, extend, and develop thecomplementary creative activitiesof performers and composers,contributing in turn to the culturaland educational needs of theirsociety (Orton, 1992: 319).

Até pouco tempo atrás, a produçãomusical era realizada pelo do ato deperformance, do trabalho dos músicossobre seus instrumentos e, portanto, odesenvolvimento da habilidade técnica dosinstrumentistas sempre foi uma metaimportante na educação musical.Conhecer música implica, geralmente, emtocar um instrumento. Mesmo oaprendizado de composição ocorriausualmente após uma razoável práticainstrumental. Os instrumentos eram omeio pelo qual o conhecimento musicalera adquirido e desenvolvido. Esseconhecimento não pode ser tratado, comoocorre geralmente na musicologia, comoalgo estritamente ligado ao intelecto: esseconhecimento vem antes atado ao corpo,do instrumento e do instrumentista, e émoldado pela teia de relaçõesestabelecidas entre músculos, nervos e amatéria vibrante que compõe estas fontessonoras. Quer dizer, tradicionalmente oinstrumento funciona como meio peloqual se adquire conhecimento musical.Com o surgimento das tecnologiaseletrônicas e digitais, entretanto, esseconhecimento pode derivar deexperiências praticamente restritas aodomínio mental, descorporificadas, sem

Pode-se dizer que pelos instrumentosé possível compreender a música que lhesfoi concebida. Pode-se compreender quedas fugas de Bach concebidas para oclavicórdio às sonatas para pianoforte de

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relação com a fisicalidade de objetosmateriais, gestos e movimentos implícitosna performance de um instrumento.

hear -- what we have described(Moore, 1981: 219).

Até o século passado, mesmo oouvinte tinha uma ligação muito forte comos instrumentos musicais. Seu contatomais imediato com a música ocorria emfestas e eventos sociais ou religiosos,quando se cantava e tocava com acomunidade ou pela execução domésticade transcrições e arranjos de obras dorepertório da época. Por outro lado,quando ia a um concerto, o ouvinte tinhauma relação ainda muito próxima com osmúsicos e seus instrumentos que estavamno palco: apesar de não participardiretamente da performance, o ouvinteacompanhava de modo atento a atuaçãodo músico sobre seu instrumento aomesmo tempo que acompanhava odesenrolar da obra musical. Talvez pelodesejo de possuir as habilidadesinalcançáveis dos músicos que assiste nopalco, o público não raras vezes reduz suaexperiência auditiva a um meroencantamento em relação à qualidadevirtuosística da performance. Maisimportante que compreender a própriatrama musical torna-se julgar e compararo desempenho do soprano em uma áriaoperística ou o virtuosismo do piano soloem uma cadência de concerto.

De certa forma, a perspectiva de sepossuir um aparato tecnológico disponívelpara o treinamento de músicos no que dizrespeitos a diversas abilidades, pode serenganosa. Por um lado, estas tecnologiaspodem simular situações hojeextremamete raras no treinamentomusical, como a de uma orquestraexecutando os exercícios de contrapontofeitos por um estudante de música. Nocomputador, o estudante podesimplesmente escrever as notas, testarauditivamente o resultado recriado por umsintetizador, e corrir suas imperfeiçõesquantas vezes forem necessárias. Esseaprendizado baseado na prática eexperimento de processos baseados emtentativa e erro é interessante, poisestimula a busca por soluções maisousadas, já que não há nenhumanecessidade de que o trabalho alcance umresultado satisfatório na primeira tentativa.Errar não implica numa falta, mas torna-separte importante do processo deaprendizado. Ou seja, elimina-se a tensãogerada pela possibilidade do erro eprivilegia-se a exploração de territóriosdesconhecidos.

The computer represents even nowthe most powerful single musicalinstrument yet devised, but much ofthis potential remains untapped,since computers will produce onlythose sounds which we can describe.We are limited not by thecapacities of our machines, but byour understanding of ourselves.Computers, including digitalsynthesizers, can produce inprinciple any sound which can camefrom a loudspeaker, including thesounds of musical instruments,voices, locomotives, bird songs,ocean surf. We need only describethe desired sound. The computer canturn our descriptions into exactlywhat we have described. We then

Com o surgimento das gravaçõesesse quadro se modifica. Não mais énecessário que se cante ou que se toqueum instrumento para ter contato com amúsica. Embora nas cidades o acesso aconcertos e apresentações musicais torne-se mais fácil, é principalmente por meiodas gravações que o público vai tomarcontato com a música. A partir daí, asrelações com a música prática, cantada outocada em um instrumento tornam-sefrágeis e diluídas uma vez que a gravaçãosepara o momento de produzir música domomento de ouvir música. Música nãoimplica mais na presença do músico, nemdo instrumento, nem da sala de concerto:torna-se desvinculada de qualquercontexto específico e com isso passa ahabitar todos os tipos de espaço esituação sociais. Com os meios de

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gravação a música vê realçada aimaterialidade que o suporte sonorosempre lhe conferiu. O espetáculo, aperformance, a existência dos músicos eseus instrumentos sempre estiveramassociados estritamente à existência daprópria música. Com as gravações, ossons vindos de caixas quadradas -- osalto-falantes -- geralmente escondidasentre os móveis da sala, nos cantos dosteatros, nos tetos das lojas, adquirem umcaráter mágico, como algo que podeflutuar em qualquer contexto e aindaassim não guardar qualquer relação como mesmo. Como o cantochão medieval, amúsica hoje projetada por alto-falantesomnipresentes passa fazer parte de umritual, não mais religioso, mas social e osouvintes nem sempre a ouvem, masapenas a absorvem passivamente em suasfunções de participantes desse rito.

fonte da maior parte dos sons queouvimos. O padrão de escuta do homemde hoje tem como referência o somproveniente dos aparelhos de som e nãomais das apresentações ao vivo. O piano,ainda hoje presente no ambientedoméstico, cada vez mais fica associado aum tipo de atividade musical que há muitodeixou de existir e, aos poucos, perde seucaráter de instrumento, deixando de sermeio de acesso à música paratransformar-se em uma pesada eanacrônica peça de mobília. Seu lugar, hámuito vem sendo ocupado por outrosinstrumentos, aparelhos de som, de todosos tamanhos e potências, mas projetadospara se integrar de modo muito maissuave aos ambientes modernos.

Nas últimas décadas, instrumentoseletrônicos tem servido para alterar aindamais as relações estabelecidas peloouvinte entre a música que ele ouve e omodo de produção dessa música. Amanipulação de gravadores, instrumentoseletrônicos e computadores rompe com amaterialidade sonora. Sons eletrônicosnão estão conectados a nenhum tipo derelação gestual ou corpórea com osaparelhos que os produzem. Ao mesmotempo que isso representa uma extremaabertura em termos de liberdade decriação sonora, há também uma perdasubstancial de uma série de conexõesentre o evento sonoro e o universo em queele ocorre. E a perda destas conexõesimplica na perda de dimensões simbólicase de significação. Ou seja, ao mesmotempo que as novas tecnologias sonorasabrem caminho para novos e complexosuniversos estéticos, existe o risco de umempobrecimento semiótico desseuniverso. Ao se desviar de uma práticacorporal para processos ligados àpesquisa intelectual, a composiçãomusical se vê obrigada a suprir a perda detoda carga simbólica dos gestosinstrumentais por meio de recursosformais.

Se o aumento da difusão por meiodas tecnologias de gravação não refletenecessariamente um aumento em nossacapacidade de ouvir e compreender asmúsicas que nos rodeiam, por outro ladoessas tecnologias trouxeram umenriquecimento quantitativo espetacular:nunca foi possível ter acesso tão fácil atantas músicas de tantos locais e épocas, oque de certo não é privilégio dessa arte,mas pode ser constatado em relação aossignos de qualquer outra esfera cultural.O compositor Richard Moore, num textosobre o papel destas tecnologias nos diasde hoje comenta:

Music is no longer limited to theimmediate surroundings of itsgeneration, to a traveling minstrel’sroad show, or to a demure court ofwell-behaved aristocrats. Musicpermeates our lives, thanks toaudio technology, and the music ofour time is consequently different,for the true instrument of our age isnot the lute or guitar or piano ordrum or organ or even the electronicsynthesizer -- it is the loudspeaker(Moore, 1981: 213-214).

Como já foi visto, na música realizadatradicionalmente por meio da performanceexiste uma estreita relação entre gesto e

O alto-falante, ainda que o ouvintenão se dê conta de sua presença, é agora a

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som e essa relação afeta intensivamente acognição musical. No início da músicaeletrônica, essa relação foi relegada a umsegundo plano uma vez que o somsintetizado artificialmente não eraproduzido segundo o comportamento dequalquer instrumento físico, mas por umprocesso artificial de geração de ondassonoras. Do mesmo modo, a musiqueconcrete que tentou eliminar qualquervínculo entre os sons utilizados nascomposições musicais e as fontesoriginais desses sons. Hoje, novasinterfaces estão sendo desenvolvidas coma intenção explícita de recuperar o gestomusical. De certa forma, isso tornou-seum reivindicação de instrumentistas,sempre acostumados a extrair do contatofísico com seus instrumentos os detalhese sutilezas que compõem sua produçãosonora.

programas que resgatem de alguma formao universo simbólico presente na músicatradicional, baseada em gestos. Ocompositor Frank Pecquet coloca que"intenções musicais" passam a serformuladas especulativamente emprogramas:

If traditional instruments possess asound entity whose symbolicdimension even has implications inmusical writing, digital sounds donot possess this suggestivepotential, incarnated in theperforming practice andinterpretation. Musical intentionsneed to be shaped from within theprogramming technique (Pecquet,1995: 16).

O desenvolvimento da música feitapor meio de meios eletrônicos e digitaistende a criar novas relações tão ricas,espera-se, quanto aquelas propiciadaspelos meios tradicionais de produçãosonora que se estabeleceram ao longo dahistória. O constante direcionamento parauma sociedade onde signos sãoproduzidos e distribuídos digitalmenteaponta para a necessidade urgente de secriar novas maneiras de se lidar com alinguagem musical. Para se concretizar, amúsica não necessita mais da sala deconcerto, nem de músicos. Qualquer umpode ir a uma loja e comprar qualquercoisa disponível em gravações. E, ainda, arápida conexão das redes decomputadores pelo mundo mostra quemesmo a posse de um meio físico dearmazenagem do som como o disco oufita magnética pode se tornar irrelevante àmedida em que a música pode serdistribuída digitalmente, ouvida edescartada em seguida.

O desenvolvimento de instrumentosdigitais com o uso de novos tipos desensores, como células fotoelétricas, ultrasom, e sensores de pressão, tem semostrado como um meio de aumentar ariqueza sonora produzida pelosinstrumentos eletrônicos. Isso vemtrazendo o surgimento de controladoressonoros 'virtuais' que não estão baseadosnos moldes dos instrumentos tradicionais.Esses novos instrumentos permitem quecada indivíduo possa achar a interface quevenha combinar melhor com suashabilidades e necessidades e ao mesmotempo possa adaptar essa interface pararesponder ao seu gestual particular,gerando novas qualidades de interação.

A composição auxiliada porcomputador ou as técnicas atuais desíntese sonora, de certa forma estariamhoje preocupadas com a estruturação de

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Techno-Crenças

Osurgimento dos instrumentoseletrônicos representam umdesligamento, para música,

temporais nos cálculos realizados, osresultados sonoros variam sutilmente cadavez que se toca um determinado som,exatamente como ocorre com osinstrumentos tradicionais.

relativamente tardio da produção artesanaldentro da sociedade atual. Com isso,esses instrumentos não mais surgemdentro de um longo processo evolutivo,onde mudanças são introduzidas eassimiladas gradualmente, mas seoriginam de modo abrupto em função dedescobertas e desenvolvimentos quemudam radicalmente o panoramatecnológico em questão de poucos anos(Lansky, 1990). Assim foi com osurgimento dos programas de síntesedigital como o MUSIC V de Max V.Mathews nos anos 60, com a descobertada síntese por FM realizada por JohnChowning em Stanford, implementada nomercado no início dos anos 80 pelaYamaha, ou com a difusão do uso decomputadores para a produção e gravaçãomusical no início dos anos 90. Nosúltimos anos, as atenções estão sevoltando para um processo chamadowaveguides, algoritmos usados em síntesede som que são muito mais econômicos eflexíveis do que as tradicionais técnicas desampling (amostragem sonora). Enquantoos samplers reproduzem fielmente, porémsem nenhum tipo de variação, o somgravado de um instrumento real, oswaveguides possibilitam a simulação deparâmetros naturais, tais como o atrito deum arco na corda de um violino ou aforça do sopro em um bocal de flauta pormeio da implementação de algoritmos.Além disso, devido a pequenos desvios

De modo semelhante, o tipo decontrole desses processos de produçãosonora vem impondo modificações queocorrem com extrema velocidade nosinstrumentos disponíveis. O teclado deórgão, que desde cedo tornou-separadigma da interface dos instrumentoseletrônicos, cada vez mais divide espaçocom outros controladores largamentedisponíveis no mercado. Hoje pode-seencontrar no mercado guitarras,saxofones, vibrafones, violinos einstrumentos de percussão eletrônicoscapazes de trabalhar com sonssintetizados, sampling e informaçãoMIDI.

O surgimento desses aparelhoseletrônicos coloca uma nova questão emrelação aos instrumentos musicais. Nosinstrumentos mecânicos tradicionais, osom produzido estava intimamente ligadoà três parâmetros:

1) conformação física:tamanho, forma e modo deconexão entre as partesinfluenciam diretamente no tipo desom produzido. Por exemplo,instrumentos de uma mesmafamília, como o violino e o

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Redefinindo Instrumentos

violoncelo, variam basicamente emfunção de suas dimensões, e umcontrabaixo elétrico sem trastes nobraço (fretless) possibilita efeitosimpossíveis de se conseguir numinstrumento com trastes;

Para os instrumentos eletrônicos,entretanto, esses parâmetros influenciammuito pouco, ou nada, no tipo de somproduzido. Guitarras eletrônicas podemsoar como tambores e tambores podemreproduzir os sons de uma orquestrainteira. Os instrumentos eletrônicossimplesmente rompem com as limitaçõesfísicas que caracterizam os instrumentosmecânicos. Com isso, quando se fala eminstrumento eletrônico, faz-se referência auma série de componentes, mais oumenos independentes que são conectadosentre si para produzir o som. Um dessescomponentes é o controlador, ou seja, ainterface que irá disparar e controlar ocomportamento do som. Outro é osistema de geração sonora, quer dizer, oscomponentes que irão produzir o sompropriamente dito.

2) materiais empregados:os instrumentos musicais daorquestra tradicional estão tãoassociados ao tipo de material deque são feitos que são agrupadosem função disso: fala-seconstantemente em instrumentosde cordas, madeiras e metais. Domesmo modo, instrumentos depercussão são agrupados portermos como peles ou metais. Ummesmo instrumento pode soarcompletamente diferente emfunção dos materiais empregadosem seus componentes, daí aconstante preocupação dosmúsicos com a qualidade dosmateriais utilizados para produzircada detalhe desses instrumentos,das "canas" de que são feitas aspalhetas de um oboé ou clarinete,ao ratan usado como cabo parabaquetas de um vibrafone oumarimba.

Em geral, a primeira idéia deinstrumento eletrônico que surge é a deum sintetizador com um tecladosemelhante ao de um órgão. Esse foi -- ede certa forma continua sendo -- oprotótipo de interface usada pela indústriada música eletrônica. Na verdade, osinstrumentos de teclado em geraldesempenharam um papel de extremaimportância na música ocidental dosúltimos três séculos, uma vez quepossibilitam a realização dos dois eixosmais importantes da música tonal --melodia e harmonia -- em um únicoinstrumento, por um único instrumentista,e com relativa flexibilidade. Foi tambémem função dessa flexibilidade que,durante o século XIX, os teclados (emespecial, o piano) serviram para aexecução de numerosos arranjos de obrasorquestrais por meio dos quais boa partedos ouvintes tomava contato com orepertório musical de sua época, antes doadvento do rádio e das gravações. E comoaponta Christopher Small (1989: 30), oteclado, ao submeter estruturas complexasao controle de um indivíduo refletediretamente o caráter individualista que vaiadquirindo a música pós-renescentista.

3) modo de acionamento:todo instrumento acústico age demodo semelhante: recebe algumestímulo mecânico -- um sopro dear, a fricção de um arco, o pinçarde uma corda -- e por meio desseestímulo produz ondas vibrantesque deslocam o ar à sua volta. Otipo de estímulo aplicado vaiinfluir diretamente no somproduzido. Um contrabaixotocado com um arco e o mesmoinstrumento tocado com pizzicato,por exemplo, produzemsonoridades diferentes emboraprovenientes da vibração damesma corda.

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Redefinindo Instrumentos

Em relação à música eletrônica, apopularidade dos teclados se dá pormotivos semelhantes: de certa forma, é umtipo de interface que permite que seproduzam simultaneamente diversasnotas, em uma larga extensão de alturas,com um controle relativamente preciso emrelação ao ataque e desenvolvimentodesses sons no tempo. Isso não seriapossível com interfaces de instrumentosmonofônicos (como os instrumentos desopro) e não tão facilmente realizável emoutros instrumentos polifônicos como umviolão ou guitarra, por exemplo, queoferecem uma série de desafios para atradução exata dos gestos dosinstrumentistas antes de seremconvertidos em som. Esses gestos estãosujeitos a tantas variações de posição etipo de movimento que se torna difícilcriar uma relação única e ambivalenteentre o gesto e o som resultante. Aocontrário, nos instrumentos baseados eminterfaces de teclado, sejam eles acústicosou eletrônicos, existe sempre algum tipode mecanismo fazendo a mediação entre ogesto do instrumentista e o elemento degeração do som, que pode ser uma cordavibrante ou um oscilador elétrico. Essemecanismo mediador converte qualquertipo de gesto do instrumentista em umúnico e mesmo tipo de estímulo, ou seja,abaixar ou soltar uma determinada tecla,eliminando qualquer tipo de ambigüidadeem relação ao som que esse gesto deveproduzir.

Enquanto no instrumento mecânico,controlador e gerador sonoro constituemuma unidade que não pode ser modificadasem alterar os resultados sonoros, noinstrumento eletrônico esses componentespossuem uma autonomia, total ou parcial.Com isso, os gestos que acionam umcontrolador, não guardamnecessariamente uma relação direta eidentificável com o tipo de som gerado.Essa relação, como já foi visto, tem umagrande importância dentro da música e,por isso, um grande esforço tem sidodedicado nos últimos anos à construçãode interfaces musicais que oferecessemum maior controle e melhor resposta aosgestos do instrumentista. Na maior partedos teclados eletrônicos disponíveis nomercado, as teclas funcionam comobotões que ligam e desligam uma nota ousom. Ou seja, não há nenhuma relação defisicalidade entre a ação do músico sobreesse teclado e o som que decorre dessaação. Em um instrumento acústico, cadaparte do instrumento reage de modoparticular, de acordo com a força,velocidade ou direção dos gestos doinstrumentista. Embora existamdispositivos que simulam algumas destasreações nos instrumentos eletrônicos(como o "peso" da tecla, "breth control",etc.), em geral o músico não tem aimpressão de estar controlando o somenquanto processo variável no tempo, masapenas disparando e silenciando eventossonoros cujo comportamento já estápredefinido.No caso dos sintetizadores

convencionais o controlador e o geradorsonoro encontram-se acoplados em umamesma unidade física, embora não hajaimpedimento para que eles funcionem demaneira autônoma. Tanto que hoje écomum encontrar estas duas unidadesseparadas: teclados controladores que nãopossuem nenhuma fonte de produçãosonora, mas apenas disparam sons deoutros instrumentos, e módulos de síntese,que são sintetizadores que não contémnenhum tipo de controlador, e por issoprecisam ser acoplados a algum tipo deinterface externa, como um teclado, umaguitarra, ou um computador.

O que caracteriza boa parte dodiscurso sobre a aplicação de tecnologiasà música é a crença de que estas novas,ferramentas, mídia e conceitos, funcionamcomo elementos libertadores do discursomusical. Supostamente, o uso decomputadores, meios de gravação esintetizadores eliminariam as limitaçõesimpostas pela falibilidade do músicohumano. Desde os anos 50, o trabalho demúsicos e compositores envolvidos com ouso de novas tecnologias se alimenta deuma idéia bastante simples, mas cujaimplementação tem esbarrado em um

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Redefinindo Instrumentos

grande número de dificuldades: a idéia deque as tecnologias eletrônicas e digitaisiriam abrir campos inimagináveis dacriação ao eliminar as barreiras físicasconstituídas pelos músicos e seusinstrumentos.

produção sonora. Quer dizer, cada nota éarticulada de modo diferente por ummesmo intérprete o que confere a cadasom produzido uma identidade particular.Pierre Schaeffer já havia atentado paraessa questão nos anos 60, ao gravar váriosataques de um mesmo instrumento,realizados em seqüência por um mesmoinstrumentista e analisar as diferençasclaras dos oscilogramas de cada um deles(Schaeffer, 1966). Simplesmente, sãoessas pequenas e quase imperceptíveisdiferenças que conferem aosinstrumentos acústicos uma vivacidade edinâmica que são muito difíceis de seremreproduzidas por um algoritmo quecontrola um instrumento eletrônico oudigital. Ou seja, embora a tecnologiadisponível para a produção sonora eperformance musical hoje sejaextremamente sofisticada, capaz deproduzir sons inusitados e bastanteinteressantes, ainda esbarra no problemada falta de controle amplo das inúmerascaracterísticas e variáveis que compõe umsom. Em especial, quando se trata desistemas que operam em tempo real, esseproblema é ainda mais sensível, pois nãoapenas a quantidade dessas variáveis deveser tomada em conta, mas também avelocidade de seu processamento.

The difference between composingfor traditional instruments and forelectronic and digital technologieslies in the limitations that theprocess of performance imposes.This applies to the abilities of theperformer as well as to theabilities of the instrument(Brümmer, 1994: 35).

Essa idéia recorrente no pensamentode muitos compositores da atualidadedeixa transparecer a crença de que estastecnologias, especialmente as digitais, sãoelementos libertadores da linguagemmusical e seu funcionamento se dá demodo neutro dentro do processo deprodução musical. Computadores esintetizadores são vistos como máquinaspotencialmente capazes de realizarqualquer projeto musical que possa serconcebido. Essa concepção vem aospoucos sendo substituída pela concepçãode que ao mesmo tempo que as novastecnologias musicais libertam a músicadas limitações impostas pelo uso do cantoe dos instrumentos em música,possibilitando o uso de sonoridadesnovas, essas tecnologias estariam tambémdeixando de lado toda a riqueza quecantores e instrumentistas adicionavam aodiscurso musical no momento daperformance. Isso porque os intérpretesemprestam à música algo considerável emtermos de informação e expressividade,enquanto que os sons dos instrumentostradicionais, estando sujeitos a umaquantidade enorme de variáveis adquiremqualidades muito próprias, difíceis deserem simuladas por meio de umprograma inserido em um sintetizador oucomputador. Um instrumento mecânico éna verdade um sistema complexo edinâmico e, como qualquer sistema dessetipo, seus resultados -- ou seja, os sonsque produz -- são extremamente sensíveisa variações no seu estado inicial de

Pode-se apontar colocar algunspontos críticos relacionados ao uso deinstrumentos eletrônicos e digitais quevão de encontro às crenças mais otimistasde compositores e músicos que seutilizam dessas tecnologias:

1- Máquinas comocomputadores, samplers esintetizadores, podem gerar, naverdade um extenso, porém muitobem delimitado universo sonoro.Assim como os instrumentostradicionais estão limitados porsua conformação física, bem comopela habilidade do intérprete, asações desempenhadas pelossistemas eletrônicos e digitaisencontram-se sujeitas, até omomento, à nossa capacidade deformalizá-las em termos de

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Redefinindo Instrumentos

programas eficientes e àcapacidade dessas máquinas deprocessar informação sonora pormeio desses programas. Bastadizer que somente nos últimosanos, quando os computadorespessoais se tornaram capazes deprocessar centenas de milhões deinformações por segundo é quesurgiram os primeiros softwarecom capacidade para realizaralguns processos mais complexosde síntese sonora em tempo real.

performance. O mesmo tipo deadoração se dá, também, emrelação aos instrumentoseletrônicos atuais: quanto maismodernos, caros e sofisticados,mais se tornam objeto de desejodos músicos e mais impressionamos ouvintes. Porém, a maioria dosinstrumentos lançados nomercado não sobrevive mais doque dois ou três anos sem setornar ultrapassado. Compositorese instrumentistas encontram-senuma eterna perseguição damáquina ideal e mágica, capaz derealizar qualquer proeza sonora.

2 - Estas tecnologias,materiais ou conceituais,dependem de um corpo físico --um computador, um alto-falante --para realizar música. Assim comoum oboé ou um tambor estãosujeitos a uma série de restriçõesde caráter físico, samplers esintetizadores também serestringem às limitações de seuscomponentes. Embora estaslimitações sejam de caráterdiferente -- muito mais denatureza eletromagnética que domecânica -- instrumentoseletrônicos e digitais estãorestritos dentro do mundo real arealizar apenas aquilo que suaestrutura lhes permite. E para seter noção da maneira como essesinstrumentos agem dentro de umcampo restrito, basta observar-se onúmero de instrumentosdiferentes oferecidos pelomercado hoje em dia e a rapidezcom que se tornam obsoletos. Nomeio musical, certos instrumentosantigos alcançam valoresinestimáveis. Um violino feito porGiuseppe Guarnieri (1687-1745),mais do que um excelenteinstrumento, é um objeto deadoração quase fetichista parainstrumentistas e ouvintes. Osimples fato de saber que umdeterminado músico está usandoum desses instrumentos em umconcerto confere um apelo extrapara a apreciação daquela

3 - Existe no discurso cadavez mais contaminado portecnicismos de compositores ecríticos envolvidos comtecnologias musicais umaconfusão entre produção sonora eprodução musical. Embora sejaverdade que os processos desíntese atuais sejam capazes deproduzir uma gamaespetacularmente ampla de sons,há um grande salto entre aprodução desses sons e arealização de uma obra musical.Isso pode ser notado nas reuniõesvoltadas ao assunto, como oSimpósio Brasileiro deComputação e Música, realizadoanualmente pela SociedadeBrasileira de Computação ou asconferências da InternationalComputer Music Association quetodos os anos atraem a atenção decompositores, intérpretes,pesquisadores e técnicos domundo todo: a esmagadoramaioria dos trabalhosapresentados nestas reuniões têmcomo ênfase aspectos técnicos dautilização de novas tecnologiasmusicais. Essa tendência ocorremesmo quando os próprioscompositores falam de suas obras,o que pode ser notado nas notasde programa de concertos e nostextos que acompanham

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Redefinindo Instrumentos

gravações de música digital: comfreqüência muito alta, a descriçãode equipamentos e processos desíntese sonora tomam o lugar decomentários mais densos sobre aobra. Isso indica que parece haverainda um certo deslumbramentofrente a essas tecnologias e que a

composição musical que delas fazuso ainda oscila entre o exercícioda experimentação e aconsolidação de novosprocedimentos artísticos.

Meta-Instrumentos

Aquestão da disseminação doteclado como paradigma da formaassumida pelos instrumentos

cada nota deve acontecer e o momento emque ela deve silenciar. O que osinstrumentos eletrônicos e digitais quesurgem na segunda metade deste séculoherdam da arquitetura do órgão, é aexistência de uma separação entre a açãodo instrumentista e o mecanismo deprodução dos sons. Nos instrumentostradicionais estas duas fases encontram-setotalmente interligadas. Quando ummúsico fricciona um arco sobre as cordasde um violino, o som produzido éresultado da interação entre arco, cordas eo corpo do violino e todo esse processoocorre como reflexo das ações doinstrumentista. Tanto músico comoinstrumento estão extremamenteenvolvidos na fabricação do som. Oórgão, ao contrário define muito maisrigidamente os papéis do instrumento edo instrumentista. É o instrumento, comseus componentes diversos, que produz osom, eliminado a possibilidade deintervenção do instrumentista. E aquiloque a princípio parecia mais característicodo instrumento, seu teclado, torna-se a defato a interface mediadora entre a ação domúsico e os mecanismos de produçãosonora.

eletrônicos deve ser retraçada a partir deum instrumento bastante antigo, o órgão(Wishart, 1992: 569-71). Movido pelapressão do ar bombeado em seus tubospor aparatos mecânicos ou geradoreselétricos, o órgão produz sonsindependentemente da pressão exercidapelo instrumentista sobre as teclas.

In more conventional instruments,the timbre of the instrument isintrinsically bound up with both itsparticular mode of excitation(blowing, plucking, striking,bowing) and the action of theperformer in exiting thismechanism. Particularly where theperformer’s sound-making action iscontinuous (as in bowing or blowing)the performers physiologicalcontrol of action through time has aprofound effect on the nature andevolution of the instrumentalsonority (Wishart, 1992: 570).

Como nos primeiros tecladoseletrônicos, no órgão o instrumentistalimita-se a apontar o momento em que

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Redefinindo Instrumentos

The very separation of performanceaction from the sound-producingmechanism at the heart of organtechnology has led, by a circuitousroute. to interest in thetechnological separation of‘excitation-transducer’ and ‘sound-source’, which in turn is leading ustoward a redefinition of what amusical instrument is (Wishart,1992: 571-72).

Um saxofone funciona com um sistemaúnico, em que o som é produzido pelainteração de vários fatores como osgestos dos músico, a pressão que oslábios exercem sobre a palheta, avelocidade e o caminho que o ar percorredentro do corpo do instrumento, e assimpor diante. O instrumento funciona comoentidade, corpo e alma inseparáveis naprodução do som.

Um sintetizador, porém, tocandoemitindo sons como os de um saxofone éuma espécie de instrumento sem corpo. Osom é processado por meio de seuscircuitos eletrônicos independentementedo dispositivo que dispara essesprocessos. Um sintetizador pode seracionado e controlado por qualquerprocesso capaz de gerar um código quefaça parte de seu “vocabulário”. Esseprocesso pode ser o movimento de umatecla, sinais digitais enviados por umcomputador, ou o movimento dos olhosde um indivíduo, captados por algumdispositivo óptico. O que interessa é que

Essa redefinição do que é uminstrumento musical torna-se imperativaem um momento em que as tecnologiaseletrônicas e digitais possibilitam acriação de novos meios de produçãosonora que não se acomodam nastradicionais categorias estabelecidas pelamusicologia. Isso porque os atuaissintetizadores, samplers, computadores edemais “instrumentos” disseminadospela música atual, impõem uma separaçãoentre os mecanismos de produção sonorae meios que controlam esses mecanismos.

Interface + Sistema de produção sonora

Instrumento Musical Tradicional

=

Figura 5: Nos instrumentos tradicionais, o sistema de geração sonora e ainterface que controla esse sistema formam uma unidade.

Meta Instrumento

Interface Sistema de produção sonora

= Interface

Interface Figura 6: Nos instrumentos eletrônicos o sistema de geração sonora éindependente da interface que o controla. Eles funcionam na verdade como meta-instrumentos.

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Redefinindo Instrumentos

esses processos possam ser codificados ecompreendidos pelo sintetizador. E oelemento que executa essa tarefa não é oinstrumento em si, mas uma interface.Instrumentos tradicionais tem a interface eo sistema de produção sonora reunidosnum mesmo e indissolúvel sistema(Figura 5). Um instrumento eletrônico éum gerador universal de sons, um meta-instrumento (Wishart, 1992: 573) ao qualse acopla uma interface (Figura 6).

acessível. Kyma funciona comosintetizador, sampler, processador deefeitos e gravador digital. Todas asfunções podem ser controladas por meiode parâmetros MIDI e em tempo real. Ousuário pode interativamente moldar sonsusando todas as capacidades algorítmicasdo computador. Mas ao invés de lidarcom complicadas linguagens deprogramação, o trabalho é feitoconectando-se ícones que representamdiversas funções na tela do computador.

Figura 7: Detalhe da interface do programa Kyma.

Um exemplo do conceito de meta-instrumento é o sistema Kyma (Scaletti,1987; Scaletti, 1989). Kyma é umalinguagem visual que implementa umasérie de aplicações em um mesmoambiente computacional e roda emcomputadores pessoais IBM ouMacintosh. Por meio do programa tem-seacesso a funções específicas de diversasferramentas composicionais e deprodução sonora, com a flexibilidade deum ambiente gráfico extremamente

Os programas especificadoscontrolam um hardware chamadoCapybara (capivara) que executa todas asfunções de DSP (Digital SignalProcessing). Capybara é uma "caixa-preta" contendo até 9 processadores DSPMotorola 56001 que executam oscomandos estabelecidos por meio dainterface gráfica. Executando todo oprocessamento sonoro, o sistema libera ocomputador para funcionar apenas como

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Redefinindo Instrumentos

interface, permitindo interação direta e emtempo real entre o usuário e o sistema.

amplitude; controladores de informaçãoMIDI.

Figura 8: A Capybara, processador digitalde sinais do sistema Kyma.

Kyma funciona com um instrumentomúltiplo, incorporando funçõesespecíficas de muitas ferramentas em umúnico sistema. Com isso, centraliza nocomputador diversos níveis de produçãomusical: composição, performance, eaudição misturam-se no mesmo processo.Kyma é a imagem do meta-instrumento,levada ao extremo.

Algumas possibilidades oferecidaspelo sistema incluem: análise espectral ere-síntese; morphing espectral; sampling;síntese granular; waveshaping;osciladores; escala de tempo e freqüência;efeitos (delay, reverb, flange, chorusing);filtros; modulação de freqüência e

Hiperinstrumentos

Oconceito de hiperinstrumentonasceu no Media Lab do MIT como trabalho de Tod Machover e

habilidades adquiridas após anos deprática em seu instrumento tradicionalcom as novas possibilidades que podemser exploradas no hiperinstrumento.Joseph Chung nos anos 80. A idéia era

construir instrumentos para apresentaçõesao vivo que deveriam ser capazes deprover uma série de controles deexpressividade sonora que, utilizados porum instrumentista virtuoso, poderiamexpandir significantemente os gestos dointérprete musical. O ponto inicial para odesenvolvimento dos hiperinstrumentos éa expansão de instrumentos e técnicas deperformance existentes (Machover, 1992;Machover & Chung, 1989). Assim,depois de conhecer e dominar ascaracterísticas de um hiperinstrumento,um intérprete pode combinar as

Hyperinstrument research is anattempt to develop musicallyintelligent and interactiveperformance and creativitysystems. We believe that thecombination of machine-augmentedinstrument technique, knowledge-based performance monitoring, andintelligent music structuregeneration, will lead to a gradualredefinition of musical expression.Our approach emphasizes theconcept of “instrument,” and paysclose attention to the learnability,

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Redefinindo Instrumentos

perfectibility, and repeatability ofredefined playing technique, aswell as to the conceptual simplicityof performing models in an attemptto optimize the learning curve forprofessional musicians (Machover& Chung, 1989: 186).

essa informação com a ajuda de umabiblioteca de objetos funcionais. Osdados processados são enviados, então,para diversos tipos de equipamentos,incluindo sintetizadores, processadores deefeitos e samplers.

Figura 9: Tod Machover usando sua ExosDexterous Hand Master, uma luva que podeenviar sinais digitais para controlarinstrumentos.

De fato essa abordagem instrumentaltraz um novo e eficiente modo de lidarcom o problema da criação de novosinstrumentos. A maioria dos novoscontroladores que têm sido utilizados emmúsica feita com computadores, como aDataGlove ou o Buchla Lightning, nãosão baseados no funcionamento dosinstrumentos tradicionais. Isso exige queo instrumentista passe por um longoperíodo de prática para dominar oinstrumento. Os hiperinstrumentos sãobaseados em instrumentos e técnicasinstrumentais tradicionais, o que os tornamuito mais acessíveis ao instrumentista.

A idéia de hiperinstrumento tambémvai além do desenvolvimento de aparelhose ferramentas que seriam facilmentedominadas. O conceito de como uminstrumento trabalha pode serextremamente simples, mas o domíniocompleto de suas possibilidades degeração e expressão sonora dependem daexperiência prévia que o músico tem como instrumento e o tempo que dedica paraestudá-lo. Como diz Machover, “if themusician can learn the entire instrument in20 minutes, then we’ve produced not aninstrument, but a toy. So the instrumentmust be easy to understand conceptually,but worthwhile and rewarding to practiceso the musician can improve on it over thetime”(Machover, 1992: 69) .

O primeiro trabalho a usarhiperinstrumentos foi Vallis (1987-88),uma ópera de Tod Machovercomissionada pelo Centro GeorgesPompideau, em Paris. A ópera, baseadaem uma novela de Philip K. Dick com omesmo nome, tem suas partesinstrumentais executadas por doisintérpretes que tocam hiperinstrumentos,um tecladista e um percussionista. Outraspeças criadas por Machover para seushiperinstrumentos incluem Towards theCenter (1988-89), para flauta, clarinete,violino, violoncelo, teclado, percussão ecomputador, e Bug-Mudra for para duasguitarras, uma acústica e outra elétrica.

Os hiperinstrumentos sãocontrolados em um ambiente deprogramação para computadoresMacintosh chamado Hyperlisp e que ébaseado na linguagem de programaçãoCommon Lisp. Esse ambiente concebidopor Joseph Chung combina a potência doLisp com a flexibilidade oferecida pelacomunicação MIDI. Hyperlisp recebedados de um hiperinstrumento e processa Uma peça mais recente, Begin Again

Again... (1991) escrita para um

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Redefinindo Instrumentos

hiperinstrumento chamado hypercello, foiencomendada pelo violoncelista Yo-YoMa (Faixa 8 do CD). A peça combinaformas musicais diferentes e explora asonoridade rica do violoncelo. Ohypercello desenvolvido para essetrabalho permite que o computador recebae analise continuamente os gestos dointérprete. Além da informação sobre aaltura das notas que o instrumentistaproduz, outros sensores fixados no corpodo violoncelista ampliam a captura dosgestos. Um sensor colocado na mãodireita mede os movimentos do pulsodurante as arcadas; um captador na ponte

do violoncelo ajuda o computador adeterminar a nota que está sendoproduzida; um transmissor de rádio indicaa posição do arco em relação à corda;outro sensor mede a pressão do arco nacorda; e, finalmente, quatro fitas sensíveiscolocadas no braço do instrumentoindicam a posição da mão esquerda doinstrumentista. Toda a informaçãocaptada por esses sensores é enviada aocomputador para ser processada pelosobjetos escritos em Hyperlisp para gerarsons de acordo com os gestos mais sutisdo músico, criando um universo deextrema riqueza expressiva.

Figura 10: O violoncelista Yo-Yo Ma interpretando BeginAgain Again ... (1991) de Tod Machover.

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Redefinindo Instrumentos

Classificação dos InstrumentosEletrônicos

Como já foi visto, o desenvolvimentoda linguagem musical estádiretamente ligado à história dos

desenvolvidos justamente para permitir ocontrole e produção exatos das alturasmusicais. Na música de outras culturasque ao invés de restringir os sonsutilizados a notas de altura precisaenfatizam a expressividade de pequenasvariações de afinação e timbre, osinstrumentos musicais apresentamcaracterísticas diferentes em termos detecnologias e uso. Exemplos são odidgeridoo, espécie de flauta usadas pelosíndios australianos que produz ricasvariações timbrísticas e não de alturas, oua tabla, tambor usado na músicahindustânica, que apesar de poder serafinado em consonância com as escalasutilizadas em uma peça, desempenha umafunção nitidamente rítmica.

meios de produção sonora. Osinstrumentos utilizados na realização deum determinado tipo de música refletemuma série de traços dessa música. Osinstrumentos tradicionalmente utilizadosna música ocidental sublinham por meiode seu funcionamento os elementos maissignificativos dessa música. Em geral,esses instrumentos possibilitam ocontrole rígido das durações das notas eproduzem sons de afinação bem definida.Ora, altura e duração são os parâmetrosdistintivos e rigidamente determinados damúsica ocidental. A partitura, porexemplo, é basicamente um gráfico ondealturas e durações sonoras são registradascom significativa precisão, enquanto umasérie de outros fatores como articulação,tempo, dinâmica, variações de timbre sãonotadas de um modo muito menospreciso.

Essa relação entre a música e osaparatos tecnológicos utilizados na suaprodução é enfatizada pelo compositorTrevor Whishart:

Music and Technology have alwaysbeen intrinsically bound up withone another. All musicalinstruments are technologicalextensions of our ability to makesounds by blowing, scraping, hittingor otherwise exciting materials inthe world around us (Wishart,1992: 565).

Harmonia, contraponto, acordes,dissonâncias, cadências, palavras-chave nateoria musical, são todas elas dependentesdo uso e controle apurado das alturasmusicais. Na música ocidental, pequenasvariações na altura de uma nota sãofreqüentemente associadas a desafinaçãoe a mudança de uma nota escrita napartitura por outra vizinha é consideradoum erro (Mathews, 1991: 40). Osinstrumentos tradicionais foram

A importância dessa relação entremúsica e tecnologia passa a adquirir umpeso muito maior no momento atual. O

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Redefinindo Instrumentos

desenvolvimento dos instrumentosutilizados na música eletroacústica não émais o fruto de uma longa evoluçãotecnológica e processo de assimilaçãocultural. Ao contrário, tem uma vidacurtíssima e sua utilização pode estarvinculada à produção de uma única peça.Ou seja, mais do que nunca, acomposição de uma determinada obramusical está diretamente vinculada àconcepção do instrumento, a ponto deesses dois elementos muitas vezes seconfundirem em um só.

afirmar que a quase totalidade da músicaque ouvimos hoje em dia está mediada, dealgum modo, pelo uso dessas tecnologias.Especialmente em relação à performance,um número bastante grande deinstrumentos eletrônicos foram criadosneste século, utilizando-se dos maisvariados tipos de geradores sonoros einterfaces. Sua utilização e funcionamentogeralmente fogem dos padrões eclassificações observados em relação aosinstrumentos acústicos tradicionais.

Uma classificação dos instrumentoseletrônicos deve levar em conta o fato dehaver uma explícita separação, nessesinstrumentos, entre a interface e o sistemade geração do som propriamente dito.Outra característica é a de que a tecnologiaatual permite que um mesmo sistemacompartilhe diferentes interfaces e seutilize de processos variados para aprodução sonora. Com essas questões emmente, podemos esboçar umaclassificação dos instrumentoseletrônicos, que seguiria o seguinteesquema:

A criação dos novos meioseletrônicos de produção sonora estáligada à pesquisa e desenvolvimento denovos tipos de interfaces. Esse novosmeios baseiam-se em modos de produçãosonora totalmente diferentes daquelesencontrados nos instrumentostradicionais. Até o século XX, todos osinstrumentos utilizados na prática musicalfuncionavam por meio da excitação diretade um material vibrante. Isso podia seralcançado de diversas maneiras: batendona pele esticada de um tambor, pinçandouma corda ou soprando o ar através deum tubo. Apesar das diferenças no modode produção do som, nos instrumentostradicionais há sempre um relação física edireta entre a ação sobre o instrumento e aresposta desse instrumento na forma devibração sonora.

1 - Sistema de geração sonora:1.1 - por transformação1.2 - por síntese1.3 - por amostragem (sampling)

2 - Sistema de controle (interface):Ao contrário dos instrumentos

mecânicos tradicionias, os instrumentoseletrônicos produzem som por meio dageração de sinais elétricos que sãoposteriormente transformados em ondassonoras. Um sintetizador produz sons pormeio da geração de uma corrente elétricaque só é transformada em som, ou seja,vibrações mecânicas em um meio elástico,depois de passar por algum tipo detransdutor, como os alto-falantes de umacaixa acústica ou o fone de ouvido.

2.1 Físicos2.1.1 - interfaces geradas apartir de instrumentosacústicos2.1.2 - interfacesmodeladas a partir deinstrumentos acústicos2.1.3 - novas interfaces

2.2 Conceituais2.2.1- linhas de comando2.2.2- interfaces gráficas

Sistemas de geração sonora referem-se ao modo de produção das ondasacústicas do instrumento. Instrumentosque operam por transformação, partemde um som ou representação desse sompreexistente para transformá-lo em um

Hoje em dia, o uso de aparelhoseletrônicos ou digitais está disseminadopor todas as fases da produção musical,da composição e performance à gravaçãoe difusão sonora ao ponto de ser possível

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Redefinindo Instrumentos

outro signo acústico. Um dos primeirosmovimentos a explorar de modosistemático os processos detransformação sonora foi a musiqueconcrète no final dos anos 40. De início,as transformações eram obtidas em sonsgravados por meio da manipulação diretado suporte de gravação (disco ou fitamagnética). Cortando, emendando,fragmentando fisicamente esses suportespodia-se criar sons totalmente novos. Odesenvolvimento tecnológico trouxe cadavez mais possibilidades de intervenção emsons preexistentes sem a manipulação dosuporte físico onde esses sons estãogravados ou mesmo em tempo real, sem anecessidade de fixação do som em umsuporte. Filtros de freqüência podemeliminar certos componentes do som demodo a modificar significativamente suascaracterísticas. Esses filtros estãopresentes em muitos sintetizadorescomerciais ou podem ser implementadosem um computador por meio de umsoftware, embora nesse caso, apenasoperações mais simples possam serexecutadas em tempo real.

chamados processadores de efeitos, poroutro lado, efetuam transformações emum sinal sonoro captado em tempo real.Existe hoje no mercado uma grandevariedade de processadores de efeitos queexecutam diferentes tipos de alterações nosom. Estas alterações vão da adição dereverberação à harmonização de sons. Acombinação de diversos efeitos agindosimultaneamente sobre o som pode criarsonoridades inusitadas expandindopossibilidades de geração de uma outrafonte sonora.

A maior parte dos instrumentosatuais produz sons por meio de algumtipo de síntese. Síntese sonora é oprocesso de geração de um sinal que iráproduzir características acústicasespecíficas. Existe uma infinidade deprocessos para a produção sintética dosom: síntese aditiva, subtrativa, pormodulação, por geração de ruído, defreqüência modulada, por modelagemfísica e outros (sobre diferentes processosde síntese sonora ver Dodge & Jerse,1985; Roads, 1996). Um dos primeirossintetizadores de som de que se temnotícia foi inventado por Willian Duddellem 1899 quando foi contratado para acharum modo de estudar e eliminar o ruídoproveniente de um novo sistema deiluminação pública (Mackay, 1981: 11).Duddell acabou por construir uminstrumento que reproduzia o som geradopelos filamentos de carbono das lâmpadaschamado Singing Arc. Ao adicionar umteclado ao sistema, Duddell era capaz decontrolar a freqüência das oscilaçõesproduzidas e tocar melodias. Passadomais de um século, pouco se sabe sobre ainvenção de Duddell, mas uma série deinstrumentos baseados em síntese sonoraforam produzidos e hoje, questões sobresíntese sonora mais do que nunca estãorelacionadas à produção musical. A partirdos anos 50, com o surgimento dotransístor, mais compacto e estável que asválvulas, teve início uma nova era naprodução de sintetizadores. Em 1966, osengenheiros norte-americanos RobertMoog e Donald Buchla lançaramindependentemente e quase

Lemur (Fitz, Holloway, & Walker,1994) é um programa para Macintosh quetraz uma série de implementaçõesdestinadas à modificação de parâmetrossonoros. Lemur executa a análiseespectral do som em blocos sucessivos deamostras usando uma técnica dedecomposição do som chamada FFT(Fast Fourier Transform). A informaçãodessa análise pode ser vista e editadagraficamente ou utilizada paratransformações diversas. Outros softwareque se utilizam das análises criadas emLemur têm sido desenvolvidos nosúltimos anos, entre eles PAST (PerceptualAnalysis Synthesis Tool) de ChristopherLangmead (1995) e QUICKMQ deStephen William Berkeley (1995). Essesprogramas permitem sofisticadastransformações sonoras como filtragem,escalamento de alturas, rotaçãoharmônica, mudanças no envelopeespectral, convolução, deconvolução,mixagem de espectro e síntese granular.Ao contrário desses programas, os

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simultaneamente as primeiras versõescomerciais de seus sintetizadoresbaseados em transístores que controlavama voltagem de osciladores, inaugurandoum era de rápido desenvolvimentocomercial para a indústria de instrumentoseletrônicos produzidos em larga escala.Ao mesmo tempo, Max V. Mathewscriava nos laboratórios da Bell Telephoneos primeiros programas de computadordedicados à síntese sonora, o MUSIC IIIe seus sucessores. Gradualmente, ossintetizadores analógicos como os deMoog e Buchla foram sendo substituídospor aparelhos que realizavam síntesedigitalmente. Embora o mercado hoje sejapraticamente dominado pelossintetizadores digitais, nos últimos anostem havido um crescente interesse pelosvelhos aparelhos analógicos e diversasempresas já estão comercializandomodelos baseados em processosanalógicos de síntese.

de amostragem (sampling). Essa é umatécnica digital imaginada pela primeira vezpor Alec Reeves por volta de 1938 edenominada PCM (Pulse CodeModulation) (Davies, 1989). O PCMconsiste em medir discretamente aamplitude de uma onda sonora aintervalos constantes. A seqüência devalores obtidos pode ser entãoarmazenada, modificada e usada pararecriar uma onda sonora. Isso permitegravar um som -- uma nota de saxofoneou um ruído -- para reproduzí-lo por meiode um instrumento eletrônico. Uma vezque o som é armazenado na forma de umaseqüência de números, esses dadospodem ser facilmente alterados,permitindo, por exemplo, a imediatatransposição do som gravado paraqualquer altura desejada. A vantagem dosinstrumentos baseados em técnicas deamostragem, os samplers, é que elespodem reproduzir fielmente sonscomplexos, como o dos instrumentosOutro modo de produção sonora é o

mecânicos tradicionais. A maiorparte dos processos de síntese nãosão capazes de reproduzir esses sons(a não ser de modo aproximado)dada a sua complexidade. Por outrolado, processos de síntese são, emgeral, bastante econômicos, querdizer, necessitam de uma quantidademenor de dados para processar eproduzir o som. O sampler por suavez precisa medir sons com muitaprecisão e com uma freqüênciamuito grande para que possareproduzí-lo com fidelidade. Osinstrumentos musicais digitais bemcomo CDs e gravadores digitaisrealizam essas medidas com umafreqüência (chamada taxa deamostragem, medida em Hertz) de44.100 vezes por segundo. Algunsinstrumentos trabalham com taxassuperiores, de 48kHz (48.000medições a cada segundo), comresolução de 20 bits. Ou seja, osampler demanda um processamentointensivo de dados e requer oarmazenamento de um volume muitogrande de informação. Um dosprimeiros instrumentos comerciais

Figura 11: Robert Moog, um dos pioneirosna produção de sintetizadores analógicos.

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baseados em técnicas de amostragem foio Melotron surgido nos anos 60. OMelotron, entretanto, era um sampleranalógico: os sons eram gravados empequenas porções de fita magnéticareproduzidas quando se pressionava umatecla correspondente. Somente nos anos80 é que são comercializados osprimeiros samplers digitais. Hoje,praticamente todos os grandes fabricantes

de instrumentos eletrônicos têm esse tipode instrumento em seus catálogos ouutilizam sons digitalizados poramostragem em conjunto com sonssintetizados.

A Tabela 1 mostra a classificação deinstrumentos segundo seu sistema degeração sonora.

Sistema de Geração Sonora

transformação

síntese

amostragem

transformam um som pré-existente

filtros, processadores de efeito

geram um som através de algoritmos

sintetizadores, programas de síntese por computador

armazenam e reproduzem amostras digitais de um som

samplers

ExemplosDescriçãoTipo de sistema

Tabela 1: Classificação dos instrumentos eletrônicos segundo seu sistemade geração sonora.

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O SOM DIGITAL é armazenado como uma representação de pontos discretos de uma onda sonora. O som éresultado de vibrações extremamente rápidas de um meio elástico qualquer (o ar, as cordas de um piano, a pele de umtambor) que se propagam através de ondas sonoras. Estas ondas sonoras podem ser representadas em um gráficocartesiano onde o eixo x corresponde à passagem do tempo e o eixo y corresponde a pressão exercida no meio pelaonda em um dado momento (Figura 12.a).

Figura 12.a: Representação Analógica Figura 12.b: RepresentaçãoDigital

Embora as vibrações destas ondas sejam de natureza analógica e contínua, computadores, samplers esintetizadores digitais precisam traduzir estas ondas em valores discretos (digitais) para operar sobre elas. Assim,esses aparelhos armazenam amostras discretas dos valores destas ondas (Figura 12.b), dando uma versão aproximadado som real. Para que essa representação seja suficientemente fiel ao som analógico, é necessário que se tomemamostras desse som, ou seja, que se meça a amplitude de sucessivos pontos da onda sonora com uma freqüênciamuito grande. Para se ter uma idéia, em um Compact Disk a freqüência de amostragem é de 44,1 kHz para cada umdos canais estereofônicos, com uma precisão de 16 bits (o que proporciona uma escala com aproximadamente 65 mildivisões). Quer dizer, um CD armazena e processa os valores de 88,2 mil amostras para cada um segundo de música,o que significa aproximadamente 10 Mb de dados para cada minuto de música. O mesmo ocorre para qualquer meio dearmazenagem digital de áudio, como discos de computadores, samplers e gravadores digitais. Dependendo do tipo deaplicação essa taxa de amostragem pode ser diminuída ou ampliada: aplicativos de multimídia usam taxas maisbaixas, como 11 kHz ou 22 kHz, com uma precisão de 8 bits (escala com 255 divisões) enquanto aplicaçõesprofissionais de áudio atualmente podem demandar uma taxa de 48 kHz com uma precisão de 20 bits (escala com umaresolução de milhões de divisões). Em qualquer um dos casos vale a regra: quanto maior a taxa e a precisão daamostragem (sampling) usadas para representar um som, mais fiel será essa representação, portanto sua reproduçãoterá melhor qualidade; porém a quantidade e o tamanho dos números necessários para representar esse som serão,também, maiores.

Esses diferentes tipos de geradoressonoros requerem algum tipo de interfacecontroladora para desempenhar a funçãode um instrumento musical. Inicialmente,os instrumentos eletrônicos eramoperados por meio de interfaces físicas,geralmente inspiradas em instrumentostradicionais, especialmente os de teclado,embora instrumentos como o Thereminapresentassem uma maneiracompletamente nova de operação.

O primeiro tipo de interface física éaquela baseada na extensão eletrônicade um instrumento mecânico. Nessecaso, os sons provenientes das vibraçõesgeradas pelo instrumento são captados eprocessados eletronicamente de modo aexpandir as possibilidades oferecidasoriginalmente por esse instrumento. Umexemplo dessa categoria são os violinoseletrônicos ZETA. Alguns desses violinos(e também violas e violoncelos)funcionam como um instrumento acústico

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cuja vibração das cordas é captada eposteriormente processada e amplificada.Além disso, uma interface (ZETA MIDISystem Controller) pode executar umaanálise de freqüências em tempo real dasnotas tocadas para gerar informaçãoreferente a altura e amplitude, as quaispodem ser enviadas para controlarqualquer sintetizador ou aparelho MIDI.Isso possibilita ao intérprete a exploraçãodas características mecânicas de geraçãodo som pelo instrumento, ao mesmotempo que pode expandir essascaracterísticas pelo uso de outras fontessonoras (controlando samplers ousintetizadores) ou modificando o somamplificado (utilizando processadores deefeito).

trabalho em composição eletroacústica eanálise e síntese de sons do trompete(Morrill, 1985). Uma de suascontribuições está na extensão daspossibilidades oferecidas pelo trompeteem combinação com recursos eletrônicos.Morrill criou o Trumpet MIDI System,um sistema que usa os sons do trompetecomo fonte para uma série de processosde transformação e geração de áudio.Basicamente, o sistema opera pelatransformação dos sons gerados pelotrompete por meio de processadores deefeito ou por meio do uso de umconversor pitch-to-MIDI. Esse tipo deconversor lê e interpreta os sons tocadosem termos de alturas sonoras etransforma essa informação em dadosMIDI que podem controlar outrosinstrumentos ou alimentar um programade computador.

Outro instrumento eletrônico cujaestrutura é a de um instrumento mecânicoé o piano Disklavier da Yamaha. ODisklavier pode funcionar como um pianonormal ao mesmo tempo que oferecerecursos de um instrumento eletrônico.Esse piano é dotado de sensores quepodem enviar a uma fonte externa dados(no formato MIDI) referentes aosmovimento dos pedais e teclas, Umconjunto de motores faz a operaçãoinversa de disparar o movimento dasteclas e pedais ao receber mensagensMIDI de um controlador externo. Assimpode se tocar no teclado do Disklaviercomo se fosse um piano comum e aomesmo tempo acionar as teclas do pianopor meio de um computador ou outroinstrumento MIDI. O compositor Jean-Claude Risset explora as possibilidadesdesse instrumento em seu Duet for onePianist (Risset, 1996). Nessa peça (Faixa10 do CD), o pianista toca em umDisklavier que é controlado também porum computador. Nessa peça, ambos,músico e computador interagem em ummesmo sistema, e embora a peça se utilizede um computador digital para aperformance, todos os sons produzidossão provenientes do piano acústico.

Semelhante funcionamento tem ocelleto, um violoncelo eletrônico criadopelo compositor e intérprete Chris Chafe.Assim como o Trumpet MIDI System, ocelleto usa um conversor de sinaisanalógicos de áudio para informaçãodigital funcionando em tempo real quealimenta um computador. Este seencarrega de orquestrar a peça sendotocada pelo instrumentista. Ambossistemas são baseados em extensões dofuncionamento de instrumentostradicionais, por meio do uso detecnologias digitais como processadoresde efeito e conversores do tipo pitch-to-MIDI. Chafe e Morril colaboraram comseus instrumentos na peça DuoImprovisation (1991) para celleto eTrumpet MIDI System (Faixa 6 do CD).Ambos tratam a peça como uma conversaentre dois músicos estreitamente ligados aprodução musical experimental, mastambém com forte influência daimprovisação jazzística. Na peça, ambosinstrumentos controlam sintetizadores eprocessadores de efeito, sendo que aocelleto cabe a função de modulador dosprocessamentos sonoros enquanto que otrompete controla as sequências deacompanhamento.

O compositor e trompetista norte-americano Dexter Morrill tem um longo

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Figura 13: O WX11 é um controlador MIDI que funciona como uminstrumento de sopro tradicional, mas expande algumas característicasdesses instrumentos. O WX11 funciona com um dedilhado padrão(Bohem), mas tem uma extensão de mais de sete oitavas. Entre oscontroles oferecidos estão pressão labial, e velocidade de sopro quepodem ser utilizados para modular os sons de um sintetizador.

As interfaces modeladas a partirde um instrumento mecânico são asmais facilmente encontradas. Sãointerfaces inspiradas em instrumentostradicionais, porém são usadas paracontrolar um sistema eletrônico degeração sonora. O protótipo desse tipo deinterface são os teclados semelhantes aodo piano que controlam a maior parte dossintetizadores disponíveis no mercado.Hoje, uma série de instrumentoseletrônicos são baseados nesse tipo deinterface: instrumentos de sopro como oWX11 da Yamaha simulam ofuncionamento de um instrumentomecânico como um saxofone e a empresaKAT tem fabricado uma série deinstrumentos de percussão eletrônicacomo o MalletKAT que funciona comouma marimba ou vibrafone eletrônico. Avantagem desses sistemas é que oinstrumentista hábil em um determinadoinstrumento tradicional pode aproveitarsua técnica para tocar um dessesinstrumentos eletrônicos. Embora aresposta de instrumentos acústicos e

eltrônicos aos gestos do músico sejadiferente, sua manipulação exigemovimentos e articulações semelhantes.

Algumas pesquisas estão sendo feitasno desenvolvimento de instrumentos que,embora não se assemelhem a nenhuminstrumento conhecido, guardamsemelhanças estreitas com as interfacesde instrumentos mecânicos tradicionais.Um exemplo é o aXi∅ (Cariou, 1994)desenvolvido por Brad Cariou naUniversidade da Calgary, Canadá.Embora não se assemelhe diretamente anenhum outro instrumento conhecido, oaXi∅ usa três interfaces -- um teclado, umjoystick e uma seqüência de chaves -- cujouso não é propriamente novo. O músicotoca em pé com o instrumento levementeapoiado sobre o ombro. Um jogo de 12chaves do tipo liga/desliga pode seracessado com ambas as mãos e gerarmensagens MIDI diversas, tais comoprogram change e modulação e controlescontínuos como pitch bend e modulação.A mão direita opera um teclado de cinco

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teclas que podem produzir 31combinações diferentes. Quatro outrosbotões funcionam como transpositorespossibilitando a produção de 78 notasdiferentes usando nove teclas. A mãoesquerda coordena um joystick capaz deoperar quatro dimensões (horizontal,vertical e rotação) de controles contínuos,além de quatro botões do tipo liga/desliga.Todos esses controles podem serprogramados para corresponder adiferentes tipos de mensagem MIDI pormeio de uma interface gráfica realizada noambiente de programação MAX paraMacintosh, tornando o aXi∅ uminstrumento bastante flexível, embora exijacerto esforço do intérprete para dominá-lo.

retangular plana, como a de um tambor,que contém um conjunto de antenassensíveis à capacitância de ondaseletromagnéticas. Duas baquetas especiaispossuem transmissores que operam emdiferentes freqüências. Ao movimentarestas baquetas sobre o tambor, o sistema écapaz de reconhecer a posição de cadauma delas em um espaço tridimensional.Essas informações armazenadas na formade coordenadas nos eixos x, y, z podem,então, ser usadas para controlarsintetizadores ou disparar eventos em umcomputador. Diversos programas têm

Figura 14: O aXi∅,instrumento criado por BradCariou da Universidade deCalgary.

Instrumentos como o aXi∅ apontampara o surgimento de interfaces que já nãoguardam nenhuma referência aosinstrumentos mecânicos tradicionais.Estas novas interfaces não têm a funçãode fornecer ao intérprete um novoinstrumento que pode ser tocado por meiode técnicas já conhecidas, mas, antes, defornecer novas formas de controle sonorodesvinculadas das restrições físicas a queos instrumentos mecânicos estão sujeitos.Sem dúvida, o primeiro exemplarsignificativo dessa categoria deinstrumentos foi o Theremin. Esseinstrumento surgido nos anos 20 emboraconservasse a gestualidade característicados instrumentos mecânicos propunhaum modo de controle totalmente diferente:o intérprete não toca fisicamente oinstrumento, apenas desliza as mãosparalelamente a duas antenas, alterandoassim sua capacitância para gerar sons dediferentes alturas e intensidades. Assim,se estabelece uma conexão quase mágicaentre os movimentos das mãos dointérprete no ar e os sons produzidos.

Mais recentemente têm surgidodiferentes interfaces destinadas a ampliaros modos de controle de geração sonorapelo interprete. O Radio Drum (Boie, Hill,& Schloss, 1989) (Faixa 5 do CD) temum funcionamento similar ao doTheremin. Consiste em uma superfície

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Redefinindo Instrumentos

sido escritos para o Radio Drum, que porsua vez tem passado por sucessivosrefinamentos de hardware. Recentemente,o compositor Fernando Lopez-Lezcanoampliou as suas possibilidades com umsistema chamado PadMaster (Lopez-Lezcano, 1995). PadMaster é umprograma escrito para a estação detrabalho NeXT, a qual é conectada viaMIDI com o Radio Drum. Esse programapossibilita que se divida a superfície doinstrumento em 30 planos virtuais quepodem ser acessados e combinadosdinamicamente durante a performanceampliando ainda mais as possibilidadesoferecidas pelo instrumento.

de pequenos pads sensíveis à posição epressão.

Figura 16: David Wessel (sentado, àesquerda) tocando o Thunder, de DonBuchla, em uma performance.

O Lightning consiste de dois bastõesde aproximadamente 30 centímetros quecontém transmissores de luzinfravermelha na ponta. A posição e otipo de movimento dos bastões sãocaptados por uma pequena unidadereceptora que pode ser colocada àdistância de alguns metros do intérprete.O Buchla Lightning permite umaespantosa liberdade do intérprete e umaresposta bastante acurada em relação aosseus movimentos, devolvendo de formaamplificada ao universo eletrônico toda asignificação dos gestos do instrumentistadurante a performance. O resultado ébastante interessante: movimentando osdois bastões no ar o instrumentista podedisparar e controlar sons proveniente deinstrumentos invisíveis. A maneira como oLightning responde aos gestos pode serdefinida em presets reconfiguráveis queinterpretam diversos movimentos domúsico. O Lightning divide o espaço emoito zonas (também reconfiguráveis) eresponde de acordo com o deslocamentodos bastões entre essas zonas. Umsoftware interno pode determinar nãoapenas a posição, mas o tipo demovimento que está sendo executado, porexemplo, um deslocamento da esquerdapara a direita, uma rotação no sentidohorário, um "golpe" para cima, etc. Essesdados são mapeados nos presets na

Figura 15: Andrew Schloss e DavidJaffe tocando a peça Wildlife (1991-2)para Radio Drum e violino ZETA (Faixa 5do CD).

Outro instrumento extremamenteinteressante foi desenvolvido por DonaldBuchla, um dos pioneiros criação deinstrumentos eletrônicos. O BuchlaLightning (Rich, 1991; Rich, 1996)expande a idéia cada vez mais presente dese utilizar sensores para detectar osmovimentos do intérprete, deixando-ocada vez mais livre de ter que lidarfisicamente com esses instrumentos. DonBuchla, embora tenha participadodiretamente da história dos instrumentoseletrônicos nos Estados Unidos, semprese manteve à parte das grandes indústrias,criando e produzindo instrumentosextremamente originais e desafiadores daimaginação dos músicos, como oThunder, uma superfície de controle tátilbidimensional que consiste de um grupo

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forma de informação MIDI, a qual éutilizada para controlar qualquer outrotipo de aparelho eletrônico. Além dosbastões e da unidade receptora, oLightning contém uma unidade principalque consiste em um pequeno módulo(medindo 21,5 x 25,4 x 4,3 centímetros)contendo um sintetizador Kurzweilmultitimbral de 16 partes, polifonia de 32vozes simultâneas e 357 amostras(samples) de sons armazenadas. Ou seja,esse pequeno e portátil instrumento (oreceptor, o módulo sintetizador e osbastões pesam menos de um quilo juntos)oferece uma série de possibilidades paraperformance sem a necessidade deinstrumentos adicionais. Mas é quandoestá conectado a um computador que oLightning se torna um instrumentorealmente complexo para performance.Com um pouco de criatividade pode secriar no ambiente MAX, aplicativos paracontrolar a resposta do Lightning eutilizá-lo para controlar uma série deaparelhos conectados via MIDI.

problema antigo. Várias foram astentativas de se criar algum tipo deregência que pudesse ser "compreendida"tanto por músicos quanto porinstrumentos eletrônicos (Bertini &Carosi, 1992; Keane & Gross, 1989;Keane & Wood, 1991; Morita, Watanabi,& et.al., 1987). Guy Garnett criou umsistema bastante sofisticado onde umregente usando um dos bastões do BuchlaLightning tem seus gestos interpretadospor um programa escrito em MAX, eusados para controlar uma série deaparelhos eletrônicos conectados em redevia MIDI (Brecht & Garnett, 1995; Lee,Garnett, & Wessel, 1992). O programa ébaseado no objeto MAXNet (Lee, Freed,& Wessel, 1991), uma rede neuralimplementada em MAX que processadados em tempo real. Essa rede neural éencarregada de aprender e interpretar osgestos do regente para extrair informaçãosobre tempo (pulsação, variação deandamentos e fermatas) e expressividade(variações de dinâmica). Essa informaçãoé utilizada para controlar em tempo real,equipamentos digitais de produçãosonora (computadores e sintetizadores)permitindo uma interação a nível temporale de expressividade entre músicos einstrumentos eletrônicos. Uma dasvantagens do sistema é que o regentepode utilizar o bastão do Lightning como

Um exemplo feliz dessa associaçãoLightning/MAX é o sistema de regênciaeletrônica (conductor follower) criado porGuy Garnett no CNMAT (Center forNew Music and Audio Technologies) daUniversidade da Califórnia em Berkeley.A sincronização entre computadores,instrumentos eletrônicos e instrumentistas

Figura 17: O Buchla Lightning II: a unidade principal (esquerda), o receptor(direita) e os dois bastões. O conjunto todo pesa pouco mais de meio quilo.

tradicionais durante a performance é um se fosse uma batuta comum, sem a

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necessidade de fazer mudanças radicaisem sua técnica de regência. Esse sistemafoi usado no Concerto for Violin,Electronic Conducting, and Orchestra(1993) de Guy Garnett (Faixa 7 do CD).Aqui, sintetizadores seguem os mesmosgestos que o maestro utiliza para reger osolista e a orquestra.

Figura 18: Guy Garnett usando seu sistema de regênciaeletrônica com o Buchla Lightning.

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Redefinindo Instrumentos

Em 1927 um jovem cientista russo de nome Lev Sergeivitch Termen (anglicizado paraLEON THEREMIN) despertou curiosidade ao chegor aos Estados Unidos e demonstrar seuinvenção, um instrumento chamado aetherphon, ou thereminvox, que mais tarde ficouconhecido como THEREMIN. O instrumento do senhor Theremin funcionava como mágica: ointerprete simplesmente movia as mão próximas a um par de antenas para controlar a alturae intensidade das notas musicais. Clara Rockmore, amiga de Theremin é ainda hojeconsiderada a principal thereminista de todos os tempos (Faixa 9 do CD). Também foi elaquem apresentou ao público em 1932 outra invenção visionária do professor russo: oterpistone, uma plataforma equipada com antenas semelhantes às do theremin onde umdançarino poderia tocar uma melodia com os movimentos do corpo enquanto dançava.

A maior parte dos livros de história da música do século XX informa que Theremin foidado como desaparecido após a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, ele foi levado devolta para Russia pela KGB onde continuou suas pesquisas de maneira quase anônima. Noinício dos anos 90 foi redescoberto, quase por acaso, na Russia e convidado para visitarnovamente os Estados Unidos, onde fez várias demonstrações do instrumento que inventou.

Theremin - An Electronic Odissey, filme de Steve Martin, lançado em 1995 é umdocumentário sobre a vida pitoresca desse grande inventor. As filmagens que foram feitasem 1993, pouco antes da morte de Theremin, apresentam detalhes sobre sua vida e suasinvenções, ilustrada com entrevistas e depoimentos de diversos pessoas que conviveramcom Theremin.

Figura 19: Leon Theremin tocando o instrumento que ficou conhecido pelo seu nome.

Embora a idéia de instrumento eperformance estejam associadas também àidéia de músicos executando gestos queproduzem som, novas tecnologias têmpossibilitado a utilização de outrasinterfaces desvinculadas dos gestosfísicos, comandadas por processosbiológicos. Compositores como AlvinLucier, Richard Teitelbaum e David

Rosenboom vêm trabalhando, desde ofinal dos anos 60, com o uso de sensorespara captar impulsos provenientes dasondas eletromagnéticas do cérebro, obatimento do coração ou o ritmo darespiração para usar esses dados comomaterial na criação de composiçõesmusicais (Rosenboom, 1976). Ocompositor David Rosenboom vem

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Redefinindo Instrumentos

desenvolvendo nas últimas três décadasum interessante trabalho onde sinaisbiológicos são utilizados interativamentepara gerar música. A pesquisa ecomposição de Rosenboom baseia-se noprincípio de biofeedback, ou seja,

In computer music, the terminstrument refers to an algorithmthat realizes (performs) a musicalevent. It is called upon by acomputer program that isinterpreting either a score stored inmemory or the actions of aperformer on a transducer (Dodge &Jerse, 1985: 63).

the presentation to an organism,through sensory input channels ofinformation about the state and/orcourse of change of a biologicalprocess in that organism, for thepurpose of achieving some measureof regulation or performance controlover that process, or simply for thepurpose of internal exploration andenhanced self-awareness(Rosenboom, 1990: 2).

Os primeiros desses instrumentosvirtuais foram implementados nalinguagem MUSIC V e suas derivadas. Ainterface era a disponível para oscomputadores da época: uma linha decomandos onde o compositor digitava osalgoritmos e os dados a seremprocessados pelo computador. Essesprogramas demandavam umprocessamento intensivo de dados,gastando uma quantidade considerável detempo na geração dos sons mesmo emmáquinas bastante rápidas. Issoinviabilizava qualquer tentativa deutilização desses aplicativos paraperformances em tempo real. Sistemasmais recentes têm trazido melhorassignificativas na implementação dessesinstrumentos conceituais. A primeiradelas está no uso de interfaces gráficas. Oprograma Turbo Synth para Macintosh daempresa Digidesign possibilita o projetode instrumentos virtuais escolhendo-seícones na tela do computador quedesempenham funções específicas(osciladores, filtros, geradores deenvelopes), os quais são conectados entresi formando uma espécie de diagrama defuncionamento do instrumento.

A idéia de Rosenboom é captaralgum tipo de sinal vital de um indivíduopara transformá-lo em som de modo queao ouvir o som resultante esse indivíduopossa modificar, voluntária ouinvoluntariamente, esse sinal. O indivíduopassa a ser um intérprete e seucomportamento a motivação para atransformação de eventos sonoros. Entreos sinais que podem ser captados comrelativa facilidade estão as ondas mentais(eletroencefalograma), sinais musculares(eletromiograma), sinais do coração(eletrocardiograma), resistência elétrica dapele, movimento dos olhos,eletroretinograma, taxa de respiração etemperatura.

O computador permite, também, autilização de símbolos gráficos outextuais para o controle de fontes sonorasdurante a performance. Ao contrário dosinstrumentos mecânicos tradicionais, estasinterfaces conceituais não são ativadas pormeio dos gestos do performer, mas porcomandos específicos, como textos oumovimentos do mouse no computador.Nos anos 60, ao surgirem os primeirosprogramas de computador dedicados àgeração sonora e composição musical, oconceito de instrumento se desvinculou dainterface física para ser entendido, tambémna acepção conceitual de um programa decomputador:

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Redefinindo Instrumentos

Mais recentemente o compositorJames McCartney da Universidade deAustin no Texas desenvolveu o programaSuperCollider (McCartney, 1996) para oscomputadores Power Macintosh.McCartney se aproveitou da velocidade deprocessamento dos chips RISC dessescomputadores aliada à sua capacidade demanipulação de áudio digital para criarum dos primeiros programas a integrarsíntese, composição e performance em umcomputador pessoal, trazendo apossibilidade do uso de computadorespara geração e manipulação complexa desons em tempo real. SuperCollider

funciona como um ambiente paracomposição e síntese de som em temporeal que opera com uma linguageminterna de programação com funções eclasses de operações, um pequenosistema de classes orientadas por objeto eum construtor de interface gráfica quepermite a criação de interfaces paracontrole de gráficos, ondas sonoras, sinaisMIDI e DSP (Digital Signal Processing),além de uma extensa biblioteca defunções para processamento de dadosmusicais.

Outro sistema criado recentemente é

Figura 20: Tela do programa Turbo Synth quepermite a criação de sintetizadores virtuaispor meio de uma interface gráfica.

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o LiSa (Life Sampling) (1995), umambiente de manipulação de áudio emtempo real que opera em computadoresPower Macintosh. Foi desenvolvido porMichel Waisvisz e Frank Baldé da SteimFoundation em Amsterdam. O programautiliza os conversores digital/analógico de16 bits dos processadores PPC RISCpara transformar o computador em umaferramenta versátil de produção musical(por meio de sampling). Assim comoSuperCollider, LiSa possui interfacegráfica e pode ser totalmente operado porum controlador MIDI externo, permitindoque o sistema seja utilizado paraperformance em tempo real.

Figura 21: Detalhe da interface do programa LiSA criado na Steim Foundationque transforma o computador em um sampler.

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Redefinindo Instrumentos

Sistema de Controle (Interface)

linhas de comando

gráficos

geradas a partir de instrumentos mecânicos

códigos alfanuméricos digitados no computador

Music V, CSound

controle através de telas gráficas

TurboSynth, LiSa, Super Collider

expandem um instrumento mecânico

MalletKat, WX11

ExemplosDescriçãoTipo de sistema

modeladas a partir de instrumentos mecânicos

novos tipos de controladores

reproduzem eletronicamente um instrumento mecânico

novos tipos interface, sensores

ZETA violin, Trumpet MIDI

Buchla Lightning, Theremin

Tabela 2: Classificação dos instrumentos eletrônicos segundo seu sistemade controle ou interface.

MIDI

Por volta do início dos anos 80, adisseminação de tecladoseletrônicos pela música pop foi

desenvolviam passou a ser visto como umempecilho para a ampliação desta nova epromissora indústria. À medida em que oacesso a sintetizadores, samplers,processadores de efeitos, e outrasferramentas musicais tornava-se mais fácile barato, tornavam-se mais presentesquestões como a incompatibilidade entre

responsável pelo surgimento do maisamplo e duradouro standard na indústriade instrumentos eletrônicos. Naquelaépoca, a rapidez com que novastecnologias de produção sonora se

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essas máquinas e a dificuldade deexpansão desses sistemas.

controlar diversos sintetizadores MIDIapenas enviando informações a respeitode quais sons devem ser produzidos,quais efeitos devem ser aplicados a essessons, deixando todos os cálculos eprocessamentos desses sons para seremrealizados pelos sintetizadoresindividualmente. Cada instrumentofunciona como se fosse um pequenocomputador capaz de desempenharapenas tarefas específicas relacionadas aprodução de sons. Essa divisão de tarefasrepresenta uma enorme economia epossibilita a interconexão em tempo realde diversas fontes de produção sonora.As informações MIDI, assim comoamostras de som de um Compact Disk,também podem ser armazenadasdigitalmente. Porém, um arquivo MIDI deum minuto, não contém mais do que unspoucos kilobytes, algo irrelevante secomparado aos 10 megabytes necessáriospara se armazenar o mesmo tempo demúsica em um CD.

No início da década de 80, diversasindústrias envolvidas na produção deinstrumentos musicais se reuniram paraformular um protocolo de comunicaçãoentre instrumentos digitais. Entre asprincipais razões desse acordo industrial,estava a possibilidade de se ter diferentessintetizadores comercias conectados etrabalhando conjuntamente. Além disso,esse protocolo permitiria a extensãodesses instrumentos por meio dointerfaceamento com outros aparelhos,especialmente, os computadores digitais.Em 1983, foram publicadas asespecificações para esse protocolo quepassou a ser conhecido como MIDI(Musical Instrument Digital Interface) eformada a International MIDIAssociation. Em poucos anos o protocoloMIDI (International MIDI Association,1983) alcançou seu objetivo de tornar-seum padrão dentro da indústria deinstrumentos digitais e, apesar de todas ascríticas e debates levantados no decorrerda última década sobre o protocolo, hojevirtualmente todos os grandes fabricantesde instrumentos digitais seguem asespecificações MIDI.

Basicamente, o protocolo MIDIestabelece um padrão de transmissão dedados e a arquitetura dos hardware quevão manipular esses dados. Os dadosMIDI são transmitidos por valoresnuméricos variando de 0 a 127 quepodem ser endereçados a 16 canaisdiferentes. Basicamente pode-sedistinguir três tipos de eventos MIDI: 1)os direcionados a notas: contéminformações de notas individuais comonote on/off (aciona/silencia nota), velocity(em referência à velocidade com que umatecla é pressionada, o que se traduz naintensidade com que a nota éreproduzida), channel (o número do canalpara onde essa nota é direcionada); 2) osdirecionados a canais: afetam todas asnotas de um determinado canal. Exemplossão pan (de panoramic, ou distribuiçãodo som estéreo para o lado esquerdo oudireito), program change (o número do“instrumento” ou timbre entre osoferecidos por um dado sintetizador) evolume; 3) os direcionados ao hardware:chamados system exclusive, sãomensagens que não são padronizadaspara todos os aparelhos MIDI, e sim

Como já foi visto, trabalhar comáudio de qualidade demanda grandecapacidade de memória, processamento etransmissão de dados. Para resolver esseproblema, o protocolo MIDI trata cadaaparelho conectado em um sistema comoum instrumento independente doprocessamento de sons. O protocoloMIDI reforça a separação entre interfacee sistema de geração de sons existentenos instrumentos eletrônicos, bem como aconexão na forma de uma rede dediversos aparelhos com funçõesdiferentes. Por meio desse protocolo umaparelho pode funcionar como interface,disparando sons ou eventos sonoros queserão realizados por outros aparelhosconectados na rede. As informaçõesMIDI referem-se apenas a quando e quaiseventos cada um desses aparelhos deverealizar. Assim, um computador pode

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destinadas à manipulação de parâmetrosde um instrumento em particular, como osfiltros e osciladores de um determinadosintetizador.

rápidos e eficientes, tornou-se possível arealização de trabalhos sonoros de altaqualidade com um equipamento ao qualos músicos (ou pelo menos alguns deles)podiam ter acesso. Composições podiamser geradas por sintetizadores e samplersde alta qualidade, além de editadas earmazenadas digitalmente no computador.A gravação digital aliada ao uso doprotocolo MIDI vai modificarsensivelmente o funcionamento dosestúdios de som a partir do final dos anos80.

O protocolo MIDI surgiu em umafase particular da história da música ondeo barateamento de instrumentos baseadosem microprocessadores e a acessibilidadeà computadores pessoais passaram ainfluenciar diretamente o modo de secompor e produzir música, especialmentena área da música popular. Nesse sentido,MIDI tornou-se rapidamente o que seusidealizadores tinham como objetivo: umstandard que permitiria, de modo simples,barato e confiável, a comunicação entreinstrumentos eletrônicosindependentemente do tipo de aparelho ede sua marca de fabricação.

Perhaps the most impressivepersonal computer peripheral nowavailable is the inexpensive yethigh-quality direct-to-hard-diskdigital audio system. Thesesystems record 16-bit samples at44.1kHz (i.e., CD masteringquality) or 48kHz[...] One can nowpurchase an 80-megabyte SCSIhard disk for under $ 1,000[dollars]. The disk drives providefor about 10 minutes of direct-to-hard-disk recording usinginexpensive (under $ 3,000) analog-to-digital converters (Yavelow,1989: 212).

O sucesso do protocolo MIDI foiresponsável também pelodescontentamento de diversoscompositores, músicos e pesquisadores,especialmente os envolvidos com aprodução de música eletroacústica, querapidamente passaram a desejar muitomais de seus estúdios do que era possívelrealizar por meio de conexões MIDI(Buxton, 1987; Moore, 1987). Masapesar de toda frustração, aos poucoscompositores, educadores epesquisadores cederam a sedução dossistemas baseados em conexões MIDI.Depois de se tornar ponto comum nosmeios da música popular, compositores“eruditos”, que desde o final dos anos50 vinham utilizando computadores comoferramentas de criação musical,perceberam nos equipamentos MIDI umaalternativa para os caros e imensossistemas digitais que utilizavam paracompor. Até então, pesquisa ecomposição com equipamentos digitaissó podia ser desenvolvida noslaboratórios de alguns poucos estúdiosradiofônicos e universidades.

Esses cálculos otimistas feitos porChristopher Yavelow por volta de 1988apontam para um certo deslumbramentoem relação a um novo campo a serexplorado dentro da música digital quenão parou de se desenvolver nos últimosanos graças ao surgimento demicroprocessadores cada vez maisrápidos e baratos. Hoje, 1.000 dólares sãosuficientes para comprar mais de trêsgigabytes de hard disk (aproximadamente40 vezes o que se podia obter há 8 anosatrás) enquanto placas de conversãoanalógico-digital de 16 bit/44,1kHz geramsons para jogos e sistemas de multimídiapor um preço 30 vezes menor.

Ao mesmo tempo que computadorese instrumentos eletrônicos estão setornando cada vez mais baratos, aprodução de instrumentos tradicionaissegue caminho inverso tornando-se cadavez mais cara. Isso ocorre porque, por um

Com a disseminação de instrumentosMIDI, o surgimento dos computadorespessoais e desenvolvimento demicroprocessadores cada vez mais

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lado, a fabricação de componenteseletrônicos vem se desenvolvendorapidamente, com um efetivobarateamento de sua produção. Os chipsde silício que hoje são usados em um

Em música popular, tecnologia MIDItornou-se uma unanimidade há váriosanos. Sem diferenciar estilos ou a posiçãodentro do mercado, a tecnologia digitaldomina todo a música popular, das

grande número deaplicações -computadores, faxes,carros, equipamentomédico, instrumentosmusicais) têm dobradosua velocidade deprocessamento a cadaum ano e meio, umataxa que tem semantido mais oumenos constante nosúltimos 25 anos. Poroutro lado, osinstrumentosmecânicos dequalidade aindadependem deprocessos semi-

‘bandas de garagem’ aosgrupos de mega-astros, damúsica regional ao jazz, emapresentações ao vivo ougravações. Sintetizadorestomam o lugar deinstrumentistas, samplersreproduzem vocais e tudoisso é automatizado porsequenciadores. Emboramúsicos e ouvintes estejamse habituando rapidamentea esse novo cenáriomusical, críticas aoresultado massificador epor vezes monótono trazidopor toda essa tecnologia,são inevitáveis. Em 1990um artigo no New York

Um SEQUENCER ouSEQUENCIADOR é um aparelho ouprograma de computador quearmazena informação MIDI. Seufuncionamento é análoga ao deum gravador: o sequenciadorpode armazenar umaperformance realizada em uminstrumento MIDI para que amesma possa ser editada oureproduzida posteriormente.Porém, ao contrário do gravador,o que é registrado não é o somresultante da performance, mas arepresentação das ações domúsico em um arquivo digital.

artesanais de produção, incluem refinadoacabamento, além de utilizarem comomatéria prima, materiais extremamentecaros como madeiras nobres e ligas demetais especiais.

Times, o crítico Jon Pareles dispara contraa difusão MIDI:

The spontaneity, uncertainty andensemble coordination thatautomation eliminates are exactlywhat I go to concerts to see; the riskbrings the suspense, and the sense oftriumph, to live pop. Now,performers who limit thepossibility of errors in their musictry other measures to reconstitutethat suspense (Pareles, 1990).

Há algum tempo atrás, RichardMoore (1981) já chamava atenção para ofato de que ao mesmo tempo queevolução dos preços de instrumentoseletrônicos podia ser representada poruma curva decrescente, tornando-os cadavez mais interessantes e acessíveis, opreço dos instrumentos tradicionais segueuma curva de crescimento quaseexponencial. Moore previa que estas duascurvas de custo se encontrariam em algumponto e, a partir daí, instrumentoseletrônicos passariam a atrair maioratenção de todos aqueles envolvidos naprodução musical, de compositores einstrumentistas à educadores epesquisadores. Não é difícil concluir queesse ponto já foi alcançado há algunsanos e que os instrumentos eletrônicostornaram-se parte integrante e inseparávelde todas as áreas envolvidas com aatividade musical.

Esse tipo de crítica aponta, mais umavez, para o fato da performance comoparte integrante do processo de audiçãomusical. A partir da Renascença a atuaçãodo músico instrumentista passa a ser vistacomo espetáculo e a posteriorinstitucionalização do palco de teatrocomo locus da apresentação musical tornao músico um ator cuja performance dásentido aos sons que produz, assim comono teatro a performance dos atores dásentido ao texto da peça.

Antes do surgimento dos meios degravação e dos instrumentos eletrônicos edigitais, ou seja, quando toda música que

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se ouvia era produzida ao vivo e pela açãodireta dos músicos sobre seusinstrumentos, a relação entre a tramasonora e a fisicalidade dos instrumentos emúsicos que a produziam era um fatorintegrante para a compreensão do textosonoro, do mesmo modo que o texto deuma peça teatral não pode ser separadodo trabalho dos atores sem que se percaum parte fundamental de significação dapeça.

para um determinado parâmetro.Entretanto, as interfaces dos instrumentoseletrônicos não oferecem o mesmo tipo decontrole e intimidade no controle dessesparâmetros como os instrumentosmecânicos.

Richard Moore chama atenção para ofato de que ao mesmo tempo que MIDIreintroduz na música eletrônica adimensão dos controles em tempo real, asinterfaces MIDI representam também (aomenos até o estágio atual dedesenvolvimento tecnológico) umadegradação em termos de “intimidade decontrole” se comparada ao uso deinstrumentos tradicionais mecânicos.

Embora tenha se tornado rapidamenteum padrão universal de comunicaçãoentre instrumentos eletrônicos e outrosaparelhos de produção musical, aspossibilidades oferecidas pelo protocoloMIDI vem se saturando à medida em quesurgem novas tecnologias que oferecempossibilidades de produção, controle emanipulação sonora que não foramprevistas quando se estabeleceu esseprotocolo no início dos anos 80. Porexemplo, os 16 canais independentes detransmissão de dados padronizados peloprotocolo MIDI podiam parecer mais doque suficientes a dez anos atrás. Hoje,esse número é totalmente insuficientemesmo em estúdios caseiros de produçãomusical.

Since music deals with theexpressive aspects of the soundrather than sounds as symbols ofspecific semantic meaning, any lackof control intimacy is immediatelydetected as a reification of themusical sound. The result of thisprocess is that triggeredsynthesized sounds seems rich butrepetitive, while smearedsynthesized sounds are notintimately controllable by theperformer (Moore, 1987: 263).

Por muito tempo tem se tentadodriblar os limites impostos por esseprotocolo, seja com a criação interfacesque multiplicam as possibilidades deconexão entre aparelhos, seja com o usode computadores para gerenciar e otimizaro processamento de dados.

O protocolo MIDI foi criado combase em um modelo de ação característicodos aparelhos eletrônicos cujo controle sedá, em geral, por meio de botões e chavesdo tipo liga/desliga. Esse modelo que decerta forma determinou a maneira comoesse protocolo processa informações seadaptou muito bem aos tecladoseletrônicos, cujas teclas funcionamexatamente como botões que ligam edesligam as notas. Quer dizer, MIDI éextremamente adaptado ao processo depressionar e soltar teclas quecorrespondem a números fixos.Entretanto, é preciso notar que boa partedos instrumentos mecânicos tradicionais ébaseada em um modelo de geraçãosonora contínua, possibilitando variaçõesdas qualidades sonoras como crescendos,vibratos e glissandos. Estas variações são,de certa forma, possíveis em MIDI, peloenvio de contínuos valores de controle

Uma das tentativas de superar aslimitações do protocolo MIDI e de seapontar para novos procedimentosinterativos no uso de instrumentosmusicais eletrônicos foi o projeto ZIPI(McMillen, Wessel, & Wright, 1994;ZIPI, 1994) desenvolvido em umaparceria entre a G-Wiz (Gibson WesternInnovation Zone), divisão da GibsonGuitar Corporation, o CNMAT (Centerfor New Music and Audio Technologies),da Universidade da Califórnia emBerkeley e a Zeta Music Systems. ZIPI éuma linguagem de descrição de

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parâmetros musicais (MusicalParameters Description Language) quetraz importantes inovações em relação aoprotocolo MIDI (Wright, 1994a). Assimcomo o MIDI, ZIPI formaliza umprotocolo de rede de transmissão dedados referentes a diferentes parâmetrosmusicais, alguns deles bem estabelecidosdentro dos códigos musicais, como alturae dinâmica, mas sem deixar de lado apossibilidade de se usar outrosparâmetros que vêm ganhandoimportância à medida em que sedesenvolve uma linguagem específica dosinstrumentos eletrônicos. Foramprevistos, por exemplo, parâmetros delocalização de um determinado som emum espaço timbrístico de três dimensões.Isso traz a tona a idéia desenvolvida pordiversos pesquisadores entre eles PierreSchaeffer (Schaeffer, 1966) e, nessecontexto, mais especificamente nostrabalhos de John M. Grey (Grey, 1977)e David Wessel (Wessel, 1979) deformalização das característicastimbrísticas do som. Um vezimplementada, tais formalizaçõespermitiriam a seleção de um determinadotimbre por meio de três coordenadasespaciais, x, y, z, e a modificação dessetimbre com a variação desses valores.Outro parâmetro que tem catalisado aspesquisas na área de síntese eprocessamento sonoro é a espacialização(Jacobson, Begault, Wenzel, Foster, Chan,& Currel, 1992). Enquanto o protocoloMIDI destina apenas um valor decoordenada espacial do som, o pan quedetermina a posição do som relativa aoscanais esquerdo e direito, ZIPI prevê seisvalores espaciais: esquerda/direita,alto/baixo, frente/atrás, distância, ângulode azimute e ângulo de elevação. Outrosparâmetros que não eram previstos noprotocolo MIDI são relativos aarticulação, brilho, ataque e balanço deharmônicos.

variações de altura de uma mesma nota,ações que são facilmente produzidas namaioria dos instrumentos mecânicos.Outro problema em MIDI é que algunscontroles se destinam a um canal inteiro,enquanto outros afetam apenas uma nota.Por exemplo, é impossível mandar umamensagem de variação de altura (pitchbend) para uma única nota, ou umamensagem que desative todas as notas deum mesmo canal ao mesmo tempo. EmZIPI, o endereço de uma nota éindependente de sua altura, ou seja, umanota pode ter qualquer altura e essa alturapode variar no tempo. Além disso, oendereçamento dos dados se baseia emuma hierarquia de três níveis que tem aorquestra como metáfora: existem "notas"tocadas por "instrumentos" quepertencem a "famílias". Qualquermudança de parâmetro pode ser enviada aqualquer um desses três níveis. Dessemodo, uma mensagem de pitch bend podeter como destino uma única nota, ou umaúnica mensagem pode ser usada paradesativar todas as notas que estiveremsoando em uma família de instrumentos.A linguagem implementada em ZIPIcomporta 15 famílias, cada uma com até255 instrumentos contendo 255 notascada, num total de 975.375 (15 x 255 x255) endereços de notas possíveis, bemmais do que as 128 notas distribuídas por16 canais disponíveis em MIDI.

Todos os aparelhos são conectados auma unidade centralizadora (ZIPI Hub)que distribui os dados para os endereçoscorrespondentes criando uma redeeficiente, operando com taxas detransmissão de dados bastante altas e quepodem ser elevadas à medida em queaparelhos mais velozes vão surgindo (esteé outro ponto desfavorável ao protocoloMIDI que opera com uma taxa fixa e hojerelativamente baixa de transmissão dedados (31,25 Kbaud) o que se constituíproblema em sistemas que se utilizam deuma quantidade muito grande de dados).Outra inovação se refere ao modo de

endereçamento dos parâmetros. Noprotocolo MIDI, o endereço da nota étambém sua altura. Isso dificulta a criaçãode microtonalismos ou a simulação de

Embora as possibilidadesimplementadas pela linguagem ZIPIvenham suprir as deficiências cada vez

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mais salientes do protocolo MIDI, nadaindica, até o momento, que ZIPI venha ase constituir em um novo padrão decomunicação de dados musicais parainstrumentos eletrônicos. Mesmo oentusiasmo inicial, quando de seulançamento, vem declinando e osanúncios das empresas envolvidas, ZETAe Gibson (Wright, 1994b), de colocarinstrumentos no mercado que seriambaseados na nova linguagem parecem tersido esquecidos: até o momento, nenhuminstrumento foi lançado comercialmente.De qualquer modo, o projeto ZIPI serviu,ao menos, para levantar uma questãoimportante em relação à criação musicalatual: a de que a produção da músicaeletroacústica vem se modificando emfunção das novas tecnologias que setornaram disponíveis nos últimos 10 anose a interface entre essas tecnologias estáexigindo a formação de novos meios derepresentação dos dados musicais.

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