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PARTE I A Ciência do Desenvolvimento Humano

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P A R T E IA Ciência do

Desenvolvimento Humano

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1A ciência do desenvolvimento humano:

uma perspectiva interdisciplinarCristiana de Campos Aspesi

Maria Auxiliadora Dessen

Jane Farias Chagas

Dessa forma, compreender as interaçõescomplexas, dinâmicas e multifacetadas entrea pessoa e o seu ambiente, em um determina-do contexto social, histórico e cultural, requeruma perspectiva de investigação sistêmica einterdisciplinar. Este capítulo introdutório é de-dicado a apresentar os pressupostos básicos daciência do desenvolvimento humano, uma disci-plina que emergiu em função do avanço doconhecimento em psicologia do desenvolvimen-to e áreas afins ocorrido nas últimas décadas.Na primeira seção deste capítulo, discorremos,sucintamente, sobre os caminhos percorridospela psicologia do desenvolvimento até a emer-gência deste novo paradigma para o estudo dodesenvolvimento humano. Na segunda, apre-sentamos os principais conceitos e pressupos-tos da ciência do desenvolvimento humano, natentativa de delimitar o seu objeto de estudo.A terceira seção trata de dois tópicos polêmi-cos, isto é, das concepções de normal, patoló-gico e crise no desenvolvimento e da questãoda universalidade dos padrões de desenvolvi-mento. Em seguida, movemos o foco de nossadiscussão para a necessidade de tratar os fe-nômenos do desenvolvimento sob o enfoqueinterdisciplinar e de implementar pesquisas queutilizem uma abordagem multimetodológica,para fazer jus à complexidade dos fenômenosestudados. Finalmente, concluímos este capí-tulo tecendo algumas considerações a respeito

O início do novo milênio tem se caracte-rizado por um período de transição, com rup-turas em estruturas sociais, flutuações em ní-veis de recursos econômicos, afloramento detecnologias genéticas, imigração global, aces-so rápido a informações, relacionamento vir-tual, emergência de questões ecológicas comoa degradação e a preservação ambiental, den-tre outros fenômenos. Esses fatos têm geradocrises e inconstância sem precedentes histó-ricos (Giddens, 2000; Shanahan et al., 2000;Stern, 2000).

Paralelamente, na prática científica, vi-vemos um momento de rupturas paradigmá-ticas, em que vemos emergir a relevância docontexto social na investigação dos fenôme-nos. No caso do desenvolvimento humano, ocontexto serve como tela de fundo para secompreender a contínua interação entre asmudanças que ocorrem no organismo e no seuambiente imediato. O contexto refere-se àscondições de vida, aos sistemas sócio-históri-co-culturais, ao ambiente físico e de pessoasque compõem o cenário no qual se insere osistema indivíduo-ambiente em desenvolvi-mento (Cohen e Siegel, 1991). Fatores relacio-nados à idade, ao gênero, ao estágio de vida,à trajetória ou ao curso de vida, se inseridosem um dado contexto, assumem certas carac-terísticas que, se analisadas sob outros con-textos, dificilmente seriam iguais.

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da ciência do desenvolvimento humano e osdiferentes enfoques teóricos em psicologia.

PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTOHUMANO: UMA CIÊNCIA EM EVOLUÇÃO

Um breve histórico sobrea psicologia do desenvolvimento

Conforme evidencia Palácios (1995), osprimeiros autores que se ocuparam de ques-tões evolutivas sob uma perspectiva propria-mente psicológica datam apenas da metade doséculo XIX e das primeiras décadas do séculoXX. Todavia, alguns filósofos dos séculos XVIIe XVIII, como J. Locke (1632-1704), D. Hume(1711-1776), J.-J. Rousseau (1712-1778) e I.Kant (1724-1804), já concebiam idéias que in-fluenciariam a psicologia do desenvolvimento.Por exemplo, Locke acreditava que a mentehumana poderia ser comparada, desde o nas-cimento, a um quadro em branco e toda aestimulação do ambiente é que formaria a psi-que. Rousseau e Kant, por sua vez, enfatizavama existência de características inatas do serhumano. Enquanto Rousseau defendia a bon-dade natural da criança e já mostrava a divi-são da infância em estágios com característi-cas próprias, Kant enfatizava a existência decategorias inatas do pensamento.

Essas tendências filosóficas acabaram porinfluenciar a construção das teorias da psico-logia do desenvolvimento, no século XX. De umlado, os modelos mecanicistas que enfatizavama esfera do empirismo, buscando operacio-nalizar as investigações dentro do que poderiaser medido e quantificado, sendo o desenvol-vimento humano visto como modelado peloambiente. A história do indivíduo não era nadamais do que o acúmulo de experiências deaprendizagem. A filosofia behaviorista e as teo-rias de aprendizagem social constituem exem-plos deste modelo. De outro lado, os modelosorganicistas valorizavam os processos de cará-ter universal presentes no desenvolvimento dequalquer indivíduo (Palácios, 1995). Estes

modelos ressaltavam os processos internosmais que os externos, sugerindo a existênciade uma certa necessidade evolutiva que fariacom que o desenvolvimento percorresse deter-minados estágios. A psicanálise e, até certoponto, a teoria piagetiana1, são exemplos detal modelo.

Assim, a psicologia do desenvolvimen-to, enquanto disciplina científica que procuraexplorar, descrever e explicar os padrões com-portamentais de estabilidade e mudança, ex-pressos pelo indivíduo durante o seu curso devida, foi conquistada ao longo do século XX, apartir da adoção de paradigmas metodológicosinspirados no positivismo e nas ciências natu-rais (Dasen e Mishra, 2000; Hinde, 1992). Asprincipais técnicas investigativas que maisserviram às conquistas da psicologia do de-senvolvimento foram: a observação direta docomportamento, a entrevista e o questioná-rio. Os dados obtidos eram integrados em umtodo coerente, dando início às diversas teoriasque serviram de base para a construção deconceitos e de novas investigações (Breakwellet al., 1995). Com essas técnicas e instrumen-tos, os padrões de desenvolvimento do indi-víduo foram explorados, desde a sua concep-ção até o final da adolescência, sugerindo ocessar dessas transformações ou mudançasquando o indivíduo atingisse a maturidade.

Portanto, as teorias da psicologia do de-senvolvimento, até meados da segunda meta-de do século XX, propunham definir parâme-tros ou padrões normativos que pudessem ex-plicar o que, como e por que as mudanças ocor-riam na infância e na adolescência, além dospossíveis desvios que poderiam ocorrer nessatrajetória. O desenvolvimento foi organizadoem estágios evolutivos, enfatizando aspectosdistintos do desenvolvimento humano: orgâ-nicos, motores, cognitivos, afetivos, sexuais,

1Piaget é criticado por negligenciar o papel dos fa-tores sociais e culturais no desenvolvimento huma-no, apesar de ter ressaltado em sua vasta obra ainfluência das interações sociais sobre o desenvol-vimento cognitivo (La Taille, 1992).

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morais, sociais, históricos e culturais. Entretan-to, a partir da segunda metade do século XX, asociedade pós-moderna e pós-industrial viusurgir um novo paradigma nas ciências sociaise nas ciências naturais que vem se consolidan-do como o paradigma para o século XXI.

A emergência de um novo paradigma parao estudo do desenvolvimento humano

Esse paradigma é caracterizado por serrelativista, integrador e contextual, além deenfatizar o valor da cultura e dos contextossociais no desenvolvimento humano (Dasen eMishra, 2000). De acordo com esses autores,simultaneamente a essa tendência, alguns pes-quisadores passaram a evidenciar as limitaçõesque os paradigmas positivista e cartesiano im-puseram à ciência, fragmentando os camposdo conhecimento. A ênfase nos métodos analí-ticos havia gerado, além da necessidade da es-pecialização do conhecimento, a criação desubdisciplinas que não mais se interligavam nabusca pelo significado integral do fenômeno.

A psicologia do desenvolvimento seguiuo mesmo percurso da ciência moderna. Isolou-se, cada vez mais, de outras disciplinas da pró-pria psicologia, como a psicologia clínica, a psi-cologia da personalidade e a psicologia social,e também de outras afins, como a fisiologiahumana e a genética. Por fragmentar a visãosobre o desenvolvimento, por dar ênfase aosmétodos analíticos e por estar alienada do con-texto relacional, era de se esperar que a psico-logia do desenvolvimento sofresse as mesmascríticas apontadas pelas novas perspectivas dofinal do século XX (Dasen e Mishra, 2000). Porexemplo, foi posta em questão a dicotomiaentre as noções de que o desenvolvimento ouseguiria orientado a uma meta universal ouseria somente fruto da aprendizagem social. Apsicologia do desenvolvimento também foicriticada pelo fato de ter direcionado suas pes-quisas somente às fases da infância e da ado-lescência, não incluindo todo o curso de vidado indivíduo, e pela idéia amplamente difun-

dida de que há certos estágios universais, in-dependentes da cultura.

Em geral, as críticas apontadas à psicolo-gia do desenvolvimento, nas últimas décadas,estão embasadas na compreensão de que é maisadequado tratar o desenvolvimento sob a óti-ca do pluralismo, permitindo a coexistência deexplicações de naturezas teóricas diversas, ede que o desenvolvimento não é um fenômenolinear, mas, sim, um processo dinâmico e com-plexo de interação entre fatores biológicos eculturais. O reconhecimento da complexidadedo desenvolvimento foi o primeiro passo parao surgimento de uma perspectiva integradorapara estudar os fenômenos de desenvolvimen-to. Obviamente, sua investigação tem consti-tuído um desafio, uma vez que suas dimensõesnão podem ser estudadas sob o ponto de vistade uma única disciplina.

Assim, os paradigmas interdisciplinaresda atualidade, que buscam o estudo do fenô-meno em sua totalidade e complexidade, pas-saram a significar a retomada da fertilidadecriativa do saber científico. Novos princípiosse estabeleceram a partir das contribuições dealgumas abordagens como as construtivistas,co-construtivistas, sistêmicas, holísticas e dasrelações sociais, algumas delas descritas nestelivro. Paralelamente às contribuições de teo-rias que emergiram (ou foram retomadas) nasegunda metade do século XX, diversos arti-gos teóricos e empíricos sobre desenvolvi-mento humano sugeriam a expansão dasfronteiras metodológicas usadas na investi-gação do desenvolvimento humano paramétodos mais adequados à sua complexida-de, propondo estudos sistêmicos, longitudi-nais, transculturais, transgeracionais e multi-metodológicos (Bronfenbrenner, 1988, 1999;Bronfenbrenner e Morris, 1998; Cairns et al.,1996; Dasen e Mishra, 2000; Hartup, 2000;Hinde, 1992; Lerner et al., 2000; Plomin,2000; Shanahan et al., 2000; Stern, 2000;Tudge et al., 1997).

Com a ampliação da visão sobre o desen-volvimento humano, particularmente nas últi-mas duas décadas do século passado, novoscaminhos foram abertos para investigação, con-

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forme pode ser depreendido pela leitura dovolume 24 da revista International Journal ofBehavioral Development. Hartup (2000), aoescrever a introdução da série de artigos queseriam publicados nesse fascículo, afirma que“a virada do último século foi marcada por umavanço intelectual significante nas ciênciascomportamentais, em geral, e na ciência dodesenvolvimento, em particular” (p. 2-3). Pes-quisadores seniores foram, então, convidadosa escrever sobre tópicos importantes em psico-logia do desenvolvimento, abrangendo desdeo desenvolvimento precoce até o último está-gio de vida – a velhice –, focalizando tanto odesenvolvimento cognitivo como o social. Háconsenso entre eles, e na literatura contempo-rânea, sobre a necessidade de se considerar:(a) a dinâmica do curso de vida em sua totali-dade, incluindo as gerações anteriores e poste-riores; (b) os indivíduos dentro de suas redesou sistemas de interação social; (c) o interjogoentre a bagagem genética e a adquirida; (d) adialética entre os sistemas biopsicossociais in-seridos no contexto histórico-cultural e (e) asinfluências bidirecionais presentes entre todosos sistemas envolvidos no processo de desen-volvimento humano.

De acordo com Cairns e colaboradores(1996), essa nova perspectiva considera o de-senvolvimento como um processo de transfor-mação estrutural que ocorre a partir da inte-ração do indivíduo com o ambiente, assumin-do características próximas a uma figura emespiral. Considera também o indivíduo comoum organismo ativo e participante de seu pró-prio desenvolvimento, integrado a um comple-xo e dinâmico sistema pessoa-ambiente. E, porfim, considera o ambiente como sendo o con-texto interpessoal, histórico e cultural no qualo indivíduo se insere, interage e se constrói.Nos últimos vinte anos, essas idéias têm sidoestendidas e elaboradas pela ecologia social,pelo desenvolvimento social, pelo desenvolvi-mento cognitivo e pelas análises do curso devida. Portanto, um novo caminho foi abertopara a investigação do desenvolvimento huma-no, envolvendo a articulação entre as diversasabordagens disciplinares e a integração dosmétodos de investigação. Surgiu, assim, uma

nova ciência, de base interdisciplinar e multi-metodológica, para a investigação dos fenôme-nos do desenvolvimento humano.

A CIÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO:PRESSUPOSTOS BÁSICOS

A ciência do desenvolvimentohumano e seu foco de análise

O termo ciência do desenvolvimento foi,ao longo das últimas décadas, sendo cada vezmais aceito, de modo que, hoje, é amplamenteusado para se referir ao conjunto de estudosinterdisciplinares sobre fenômenos de desen-volvimento humano. Cairns e colaboradores(1996), em seu livro intitulado DevelopmentalScience, propõem que a ciência do desenvolvi-mento seja composta por uma síntese das teo-rias sociais, psicológicas e biocomportamentais,visando orientar as pesquisas sobre o desen-volvimento. Eles apresentam também uma pro-posta de orientação geral para ligar os concei-tos entre essas disciplinas, a qual nos referi-mos nos tópicos a seguir.

Assim, partindo do pressuposto de quecada disciplina possui conceitos e princípiosnorteadores, presentes nos domínios interdis-ciplinares da ciência do desenvolvimento,Elder (1996) propôs uma mudança na formade se pensar o estudo do desenvolvimento hu-mano, sugerindo a adoção de uma nova pers-pectiva por ele denominada perspectiva docurso de vida. Essa perspectiva implica consi-derar a interdependência entre as trajetóriasde vida dos indivíduos e as condições e mu-danças presentes nas micro e macroestruturasdos sistemas sociais. Trajetória de vida é en-tendida como o conjunto de estados e transi-ções de padrões comportamentais ligadosentre si que dão um significado distinto à his-tória de vida dos indivíduos (ver detalhes naseção seguinte).

Os padrões e as trajetórias comportamen-tais relativos às idades dos indivíduos, por suavez, estão embutidos nas estruturas sociais eculturais. Essas estruturas variam desde peque-

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nos núcleos, como família e amigos, até gran-des núcleos, formados pelas grandes hierarqui-as ditadas pelas organizações sociais ou políti-cas do Estado (Cairns et al., 1996). Como asestruturas sociais e culturais também estãosujeitas às mudanças históricas, a vida das pes-soas refletem as influências de seu tempo his-tórico, que, por sua vez, são manifestadas dediferentes formas e em diferentes lugares. Por-tanto, a particular ecologia social de cada am-biente dará uma forma particular aos aconte-cimentos históricos que marcam uma deter-minada geração. Tendo em vista que as dife-renças individuais e as trajetórias de vida es-tão em constante interação com as mudançaspresentes nos ambientes sociais, as respostasproduzidas são variadas, gerando conseqüên-cias específicas para o indivíduo e para a so-ciedade.

A adoção de uma orientação teórica apartir da perspectiva do curso de vida signifi-ca considerar o impacto das interações e dasmudanças sociais no desenvolvimento, ao lon-go da vida dos indivíduos. Em outras pala-vras, a orientação proposta pela ciência do de-senvolvimento é a de investigar a dinâmicado curso de vida, dos quadros relativos a cadamomento dos contextos histórico e cultural,em diversos níveis de análise compatíveis como fenômeno de desenvolvimento estudado, in-cluindo desde os micro até os macroambien-tes. Evidentemente, para focalizar o maior- número de sistemas e dimensões relaciona-dos ao desenvolvimento humano, a posturado pesquisador deve ser sistêmica, seus mé-todos de pesquisa devem ser multidiscipli-nares e suas considerações devem se expan-dir por disciplinas afins (Elder, 1996). Namedida do possível, pesquisas multicêntricassão preferenciais àquelas executadas em umúnico contexto. Sob a ótica inclusiva da pers-pectiva interdisciplinar, considera-se a pessoa-contexto inserida no tempo-espaço, desde aconcepção até a morte, englobando tambémas gerações anteriores e posteriores.

A seguir, apresentamos algumas noçõesbásicas para a compreensão do desenvolvi-mento humano, de acordo com a perspectivada ciência do desenvolvimento.

Desenvolvimento humano: estágios,transições e trajetórias no ciclo de vida

O desenvolvimento humano, em sua for-ma mais geral, é visto como sendo qualquerprocesso de mudança progressiva que ocorrecom base nas interações estabelecidas dentrode um contexto, englobando desde os proces-sos biológicos do organismo até as mudançassócio-históricas ao longo do tempo (Magnussone Cairns, 1996). O desenvolvimento ocorresempre em um sistema estruturado, em umarelação, no mínimo, bidirecional.

Os conceitos de estágio etransição no desenvolvimento

As noções de estágio e transição estão di-retamente interligadas. Enquanto estágio refere-se a um conjunto de padrões comportamentaise habilidades características de uma determi-nada idade ou fase do ciclo de vida do indiví-duo, a transição refere-se aos períodos de pas-sagem de um estágio para outro no ciclo de vidaou na aquisição de habilidades, sejam motoras,cognitivas, sociais, afetivas,- dentre outras. As-sim, nos referimos, por exemplo, à infância e àadolescência como estágios de desenvolvimentoao longo do ciclo de vida, e aos períodos sensó-rio-motor e pré-operacional como estágios dedesenvolvimento cognitivo, conforme propostopor Piaget. Kreppner (2003) descreve os perío-dos de transição como sendo janelas entre umestágio e outro e sugere que estes são períodosnos quais novas competências são estabelecidaspara lidar com as mudanças e incertezas que seapresentam no curso de desenvolvimento. Deacordo com esse autor, estágio e transição refe-rem-se, respectivamente, aos processos de esta-bilidade e de mudança desencadeadores do de-senvolvimento.

Desde o nascimento até a morte, há umaseqüência de eventos configurados em estágios,que estão relacionados ao processo reprodutivoda sociedade. Tais estágios de desenvolvimen-to exigem o desempenho de tarefas específi-cas que desencadeiam um processo de transi-

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ção qualitativa de competências para lidar comas exigências de cada estágio. Seja o nascimen-to de um filho, o início de sua vida escolar, ocasamento dos filhos, a morte de um dos côn-juges, entre outros, esses estágios são repre-sentados por mudanças estruturais e funcio-nais no curso de vida dos participantes do sis-tema (Elder, 1996), no presente caso o siste-ma familiar.

Foi somente a partir das décadas de 1970e 1980, com a ampliação da noção de perspec-tiva do ciclo de vida na psicologia do desenvol-vimento humano, que as pesquisas passaram afocalizar os intervalos entre os diferentes está-gios e não mais os estágios do desenvolvimen-to de forma isolada. Sabemos hoje que a per-sistência ou a duração de interações mantidasentre os indivíduos tem impactos diferentes natrajetória de vida, se tais interações ocorrerem,principalmente, nos períodos de transição dodesenvolvimento (Shanahan et al., 2000). Porexemplo, falta de estabilidade nos modelos epapéis familiares, altos índices de estresse nafamília, baixo nível de investimento parental,elos emocionais fracos entre pais e filhos e ina-bilidade de prover ambientes propiciadores dodesenvolvimento emocional, cognitivo e socialestão positivamente correlacionados a transi-ções não-adaptativas e pouco vantajosas entreas fases da infância, adolescência e a adulta(Shanahan et al.).

A qualidade de vida de um indivíduo adul-to, sem dúvida, não pode ser compreendidasem considerar as escolhas e as prioridadesestabelecidas nas fases de transição anterioresà idade adulta, tais como a escolha profissio-nal, a escolha conjugal e da cidade onde mo-rar, dentre outras. Para Elder (1996), as tran-sições estão sempre imbuídas de escolhas queinfluenciarão as trajetórias, que, por sua vez,dão distintos significados ao curso de vida dosindivíduos.

Trajetórias e ciclo de vida no desenvolvimento

É a partir da interação do indivíduo comos eventos do contexto social que a sua histó-ria pessoal vai sendo construída. Elder (1996)define trajetória como sendo a seqüência de

eventos pessoais que compõem o curso de vidado indivíduo. A trajetória de desenvolvimentoforma-se com base nos elos comportamentaisestabelecidos entre um período antecedente eoutro conseqüente. Em outras palavras, a for-ma como se estruturam as interações entre umdeterminado indivíduo e seu contexto, entreum estágio de vida e outro e o modo como oselos do funcionamento psicológico são estabe-lecidos entre os estágios tecem uma trajetóriaespecífica de influências, de modo que pode-mos traçar um mapa, por exemplo, das traje-tórias intelectual, social e afetiva de cada um.

Portanto, a idéia de ciclo de vida em de-senvolvimento humano leva em conta as com-petências sociais estimuladas pela demandacontextual. A teoria de desenvolvimento psi-cológico proposta por E. Erickson é um bomexemplo de descrição de estágios a partir daperspectiva da função social. Porém, os ciclosde vida são, atualmente, conhecidos em ter-mos de ciclos familiares (Elder, 1996) e repre-sentados em estágios vivenciados pelos mem-bros da família, o que torna esse sistema fun-damental para a compreensão do desenvolvi-mento humano (ver Capítulo 6). Tais estágiosnão são definidos a partir das idades, mas, sim,dos papéis assumidos entre os membros da fa-mília e das tarefas de desenvolvimento a se-rem cumpridas pelo grupo familiar.

As escolhas e as decisões tomadas pelosindivíduos na composição de suas trajetóriasdependem tanto de fatores pessoais quantosociais, com os padrões socioculturais exercen-do uma influência poderosa. No entanto, a di-nâmica de demandas e as pressões ambientaissão percebidas diferentemente pelos indivídu-os que compartilham um mesmo ambiente fa-miliar. Isso significa que, mesmo havendo pon-tos de transição e ciclos de vida comuns às fa-mílias, como o nascimento de um filho ou amorte de um cônjuge, as características parti-culares de cada indivíduo e de cada contextoestarão, também, influenciando os ciclos e atrajetória de vida dos indivíduos (Elder, 1996;Hinde, 1992).

Assim, a principal tarefa dos pesquisado-res do desenvolvimento é investigar como osorganismos estabelecem, mantêm e reorgani-zam seus comportamentos e relacionamentos

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dentro de um ambiente, ao longo de sua onto-genia. Para realizar tal tarefa, eles se defron-tam com um número de questões que preci-sam ser clarificadas do ponto de vista científi-co. Algumas dessas questões são discutidas notópico a seguir.

Noções básicas na ciênciado desenvolvimento humano

A concepção de desenvolvimento na pers-pectiva do ciclo de vida coloca o pesquisadordiante de questões que têm reflexos diretos nasua prática de pesquisa. Por exemplo: O quesão as interações dentro de um contexto? Oque significa continuidade e mudança no de-senvolvimento humano? O que se entende porcoação e por influências bidirecionais no de-senvolvimento? Como as experiências contri-buem para o desenvolvimento?

O que são as interações dentrode um contexto?

Em decorrência do fato de o indivíduo es-tar continuamente percebendo as similarida-des e as diferenças entre ele e os outros, a for-ma como o indivíduo constrói a si próprio estáestreitamente relacionada à forma como eleconstrói o outro, e vice-versa. Nesse processo,as relações sociais constituem aspectos funda-mentais para a formação dos seres humanos,o que é ressaltado por vários autores (por exem-plo, Cole, 1992; Hinde, 1979, 1987, 1997;Leontiev, 1978; Vygotsky, 1994). No entanto,foi Hinde quem operacionalizou, de forma maisclara, as concepções de interação e relação so-cial. Para esse autor, a interação social inclui,no mínimo, o comportamento X emitido peloindivíduo A em direção ao indivíduo B e a res-posta Y de B para A. A relação social, que incluias interações estabelecidas durante um longoperíodo de tempo, possui características pró-prias que são distintas das interações, tais comointimidade e compromisso, e tem um caráterde consistência e continuidade. Tanto asinterações como as relações estabelecidas no

passado influenciam as interações e as relaçõesestabelecidas no presente e no futuro.

Hinde (1997) afirma que todas as pes-soas estão continuamente buscando um senti-do para suas ações e para as ações dos outros.Segundo ele, “as pessoas precisam sentir quepossuem algum grau de controle sobre os acon-tecimentos e, para isto, elas precisam ver omundo como previsível (...)” (p. 6). As suasinterações e os seus relacionamentos estão, por-tanto, pautados nos significados pessoais queos indivíduos atribuem a si mesmos e na com-preensão mútua entre eles e aqueles que comeles convivem. E toda a construção da identi-dade pessoal é formada pela experiência, es-pecialmente pela experiência social.

O desenvolvimento humano ocorre pormeio de um processo progressivo de interaçõesrecíprocas e complexas entre um organismobiopsicológico ativo e outras pessoas, objetose símbolos em seu ambiente imediato. Portan-to, para que haja interação, é necessário quepelo menos duas pessoas estejam presentesem um mesmo contexto, sendo agentes e pa-cientes, dialeticamente, no processo de buscapor sentido e identidade a partir de suas mú-tuas experiências (Hinde, 1997). Mas, paraque uma interação seja efetiva no desenvolvi-mento, ela precisa ocorrer com certa regulari-dade, durante um período duradouro de tem-po (Bronfenbrenner, 1994).

O que significa continuidade emudança no desenvolvimento?

Ao longo do curso de suas vidas, os indi-víduos são constantemente desafiados a esta-belecerem, manterem e reorganizarem seuscomportamentos e relacionamentos dentro doambiente no qual estão inseridos. Portanto,para entendermos o desenvolvimento huma-no, dois conceitos são fundamentais: continui-dade e mudança. Continuidade, de acordo comElder (1996), refere-se aos padrões relacionaise comportamentais transferidos de uma situa-ção anterior para uma nova situação. Essespadrões quase sempre eliciam respostas nosoutros organismos ou indivíduos que fazem

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parte do novo contexto de interação, que, porsua vez, apoiarão ou validarão os padrões ini-ciais, contribuindo para adaptá-los às caracte-rísticas do novo contexto.

O estudo da mudança nos padrões adap-tativos começa com uma análise sistemáticadas acomodações cognitivas e comporta-mentais do indivíduo observadas em períodosespecíficos de tempo, considerando tambémas mudanças concomitantes ocorridas em ou-tros sistemas orgânicos e ambientais. Isso sig-nifica que as mudanças sistêmicas que apóiamou consolidam uma nova direção adaptativasão examinadas considerando o entrelaçamen-to dinâmico entre os diferentes níveis do sis-tema e o respectivo tempo da reorganizaçãoadaptativa. Por exemplo, os processos de tran-sição da infância para a adolescência e da ado-lescência para a fase adulta sugerem váriascontinuidades e mudanças que são comu-mente descritas nos livros clássicos de psico-logia do desenvolvimento.

Um dos pontos principais na ciência dodesenvolvimento é elucidar a origem das no-vas capacidades adaptativas nos indivíduos enas demais espécies vivas (Garièpy, 1996). Acapacidade adaptativa é percebida por meiodas atividades comportamentais dos indiví-duos, que Garièpy definiu como sendo “a ori-gem do processo que gera condições internase externas ao organismo, conduzindo-o a umalinhamento funcional” (p. 79). Durante aontogenia, o processo de adaptação mostra-semaleável e reversível. Ou seja, há uma coorde-nação dinâmica entre as estruturas internas eexternas que apóia a preservação, o desenvol-vimento e os novos padrões comportamentaisadaptativos.

O que se entende por coação e influênciasbidirecionais no desenvolvimento?

O desajuste do equilíbrio orgânico e seusucessivo ajuste fazem parte da dinâmica doprocesso de adaptação dos organismos. E é pormeio desse interjogo entre equilíbrio e dese-quilíbrio, ou seja, das constantes adaptaçõesdo indivíduo ao meio (e vice-versa), que se

processa o desenvolvimento humano. Mas oque faz com que o desenvolvimento ocorra? Emoutras palavras, o que causa o desenvolvimen-to? No desenvolvimento humano, bem como node qualquer organismo biológico, a mudançacomportamental (orgânica ou neural) ou aemergência de novas propriedades são con-seqüências de tensões criadas nos níveis estru-tural e funcional do organismo quando este sedepara com circunstâncias novas ou adversas àmanutenção de seu equilíbrio. Essas tensões sãodenominadas coações (Gottlieb, 1996).

Segundo Gottlieb (2003), o desenvolvi-mento ocorre como “uma conseqüência de,pelo menos, dois componentes específicos decoação, tais como pessoa-pessoa, organismo-organismo, organismo-ambiente, célula-célula,núcleo-citoplasma, estimulação-sistema senso-rial, atividade-comportamento motor” (p. 9).Portanto, é a relação entre os dois componen-tes, e não somente um deles, que provoca odesenvolvimento. “O conceito usado mais fre-qüentemente para designar coações no nívelorgânico de funcionamento é a experiência” (p.9). Experiência é um conceito muito amplo quese refere à função ou atividade, incluindo des-de as atividades elétricas de células nervosas ea condução de impulsos até o uso e exercíciode músculos e órgãos dos sentidos, além dopróprio comportamento do organismo. Nessaconcepção, o termo experiência não se refereapenas às atividades funcionais do ambiente,mas inclui também aquelas do organismo.

Para compreender melhor como as for-ças de coação promovem o desenvolvimento,Gottlieb (2003) propôs quatro níveis de análi-se: três referentes ao funcionamento do orga-nismo, ou seja, os níveis de atividade genética,neural e comportamental, e um nível referen-te ao ambiente, subdividido em três compo-nentes: físico, social e cultural. Esses níveis deanálise “representam o desenvolvimento indi-vidual em um nível apropriado de complexi-dade que é coerente com as realidades das in-fluências ambientais” (p.11). Como os diferen-tes níveis são responsivos uns aos outros, a re-lação de influência dos sistemas em interaçãoé bidirecional, e não unidirecional. Isto signifi-ca que um nível não só influencia como é in-fluenciado pelo outro. Bidirecionalidade, por-

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tanto, é a maneira pela qual se dá o fluxo deinfluência intra e entre os níveis estruturais deum sistema em desenvolvimento (Shanahan etal., 1997).

Este modelo bidirecional de influênciastem implicações para a noção de desenvolvi-mento predeterminado.2 Um modelo unidire-cional favorece a noção de desenvolvimentopredeterminado, uma vez que a influênciaocorre em uma única direção; por exemplo, aatividade genética que influencia a estruturaque, por sua vez, influencia o nível funcional,ou então, conforme foi enfatizado durante mui-tos anos, o papel determinista das macroestru-turas sociais sobre o indivíduo, sem conside-rar o inverso. No entanto, atualmente, estu-dos empíricos que focalizam os ambientes so-ciais e culturais têm conseguido derrubar a con-cepção unidirecional das interações, dando es-paço à concepção de que o indivíduo e o grupopodem provocar mudanças na sociedade e nacultura, e vice-versa (Hinde, 1992).

Como as experiências contribuempara o desenvolvimento?

As contribuições das atividades funcionais(experiência), em todos os níveis de análise,podem ocorrer de três formas, segundo Gottlieb(2003). A primeira, denominada indutiva, ca-naliza o desenvolvimento em uma direçãomais que em outra. Tais experiências são es-senciais para atingir o estágio final de um pro-cesso de desenvolvimento. No que concerne aonível comportamental, por exemplo, a aquisi-ção de uma habilidade cognitiva ou social sóocorrerá à medida que o indivíduo for expostoa experiências indutivas. Esse é o caso do apren-dizado de línguas, no qual a criança aprende afalar a língua em que foi exposta durante ocurso de seu desenvolvimento.

Uma outra forma de a experiência in-fluenciar o desenvolvimento é denominada fa-cilitadora. Neste caso, os limiares ou a veloci-dade (taxa) da maturação fisiológica e estru-

tural e do desenvolvimento comportamentalsão afetados, tanto do ponto de vista temporalquanto do quantitativo. Em outras palavras, as“experiências facilitadoras aceleram o apare-cimento do estágio final de um processo dedesenvolvimento, de latências menores ou li-miares menores de responsividade; elas afetamos aspectos quantitativos do desenvolvimento,operando em conjunto com as experiênciasindutivas” (Gottlieb, 2003, p. 11-12).

Por fim, o terceiro tipo de contribuiçãorefere-se à manutenção, na qual a finalidadedas experiências é sustentar a integridade desistemas comportamentais ou neurais já for-mados. O papel da experiência é o de manterem funcionamento o estágio final de um pro-cesso de desenvolvimento já alcançado, ou seja,já induzido. Usando o nível comportamentalcomo referência, essas experiências evitam quehaja perdas ou decréscimos em habilidades oucompetências sociais e cognitivas já domina-das pelo indivíduo.

Obviamente, estes três tipos de influên-cias das experiências podem tomar vários ru-mos durante o desenvolvimento (Gottlieb,2003). Experiências indutivas e de manutençãorestritas podem acarretar problemas que afe-tam os padrões de normalidade do desenvolvi-mento. A seção seguinte discute algumas ques-tões que geram controvérsias em psicologia dodesenvolvimento, dentre elas as noções de nor-mal, patológico e crise no desenvolvimento.

QUESTÕES POLÊMICAS EMDESENVOLVIMENTO HUMANO

Normal, patológico ecrise no desenvolvimento

A ciência do desenvolvimento tem sidovista como um caminho promissor para se com-preender os padrões de normalidade do desen-volvimento humano. As diferenças nas trajetó-rias de desenvolvimento, se conhecidas, podemrevelar o momento no qual as desordens bio-lógicas, psicológicas ou sociais passam a inter-ferir prejudicialmente sobre o desenvolvimen-to humano (Costello e Angold, 1996). Certa-

2 Para uma discussão detalhada, ver capítulos 3 e14 deste livro.

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mente, essa ciência poderá vir a constituir uminstrumento preventivo à instalação de patolo-gias crônicas ao longo da vida dos indivíduos.

No entanto, ao considerar o desenvolvi-mento a partir da perspectiva do curso de vida,fica extremamente difícil e delicado definir oque seja um padrão anormal ou patológico,capaz de gerar desordens no desenvolvimen-to. Essa dificuldade é decorrente, em parte,da complexa interação entre os sistemas en-volvidos no processo de desenvolvimento deum indivíduo, que influencia, de diferentesformas, o seu ajustamento futuro. Por exem-plo, por mais que uma criança demonstre cer-tos comportamentos indicadores de futuraspatologias, o curso de seu desenvolvimentoestará sob a influência de diversos sistemasque poderão conduzi-la ao bom ajustamento,quando adulta.

Ao longo do século XX, a distinção entrenormal e patológico ficava a cargo, basicamen-te, do uso de instrumentos de medida, de tes-tes psicométricos específicos e do julgamentode quem realizava o diagnóstico ou a investi-gação, sem que a importância do contexto fos-se considerada (Costello e Angold, 1996). Pormais que os pesquisadores tivessem se esforça-do em documentar como eram os comporta-mentos anormais dentro de um grupo geral deindivíduos, os comportamentos observadoseram analisados em escalas de desvio padrãocom o objetivo de distinguir os indivíduos apartir da sintomatologia, em vez de indicar pa-drões de desenvolvimento. Tal procedimentoteve um efeito favorável por permitir o avançonos critérios de normatividade em pesquisasna área da saúde, mas passou a ser duramentecriticado nos últimos anos. Por exemplo, a iden-tificação dos desvios patológicos por meio dasescalas pode ser enviesada pelo próprio ins-trumento utilizado ou por quem o aplica ouinterpreta seus resultados, conforme ressalta-do por Costello e Angold. Além disso, observa-se um comprometimento dos resultados quan-do estes são comparados a diferentes gruposétnicos ou quando a escala é aplicada em dife-rentes contextos sociais.

A patologia no desenvolvimento huma-no assume outras características quando vistasob a perspectiva do curso de vida, pois consi-

dera fatores existentes tanto nas organizaçõessociais da macroestrutura quanto na microes-trutura de células individuais. Certas condiçõesna relação indivíduo-ambiente poderão aumen-tar ou diminuir o risco de um processo patoló-gico ser transferido de um estágio para outro.A prevenção seria, então, a não-exposição doindivíduo às condições de risco. Por condiçõesde risco, Masten e Garmezy (1985) entendemque sejam situações desencadeadoras de com-portamentos comprometedores da saúde, doajustamento ao contexto, do bem-estar e dodesempenho social do indivíduo. Para eles, nocurso de vida, o indivíduo pode expressar vul-nerabilidades em seu desenvolvimento ao en-frentar situações geradoras de alto nível de ten-são, de crise ou de rupturas em seus padrõesrelacionais. E tais vulnerabilidades, se apresen-tadas nos momentos de crise, aumentam a pre-disposição do indivíduo para interagir de for-ma menos adequada, ou disfuncional, com seucontexto.

Como os períodos de transição no desen-volvimento são considerados momentos de cri-se normativa (ver Capítulo 6), se o indivíduoestiver em um período de transição e for ex-posto a situações de risco e apresentar vulne-rabilidades, a probabilidade de que ele venhaa sofrer disfunções ou patologias no curso doseu desenvolvimento aumenta. De acordo comMinuchin (1985, 1988), crise normativa é umtermo usado para se referir aos momentos detransformações ocorridas ao longo do tempono ciclo de vida da família, em que as diferen-ciações de um momento anterior e a emergên-cia da nova condição ou situação provocam aperda de um equilíbrio já estabelecido e orestabelecimento de um novo equilíbrio, combase na condição que emerge. Portanto, umapatologia pode ter sua origem em problemasocorridos nesse processo de perda de equilí-brio e restabelecimento do novo equilíbrio,necessário às demandas de cada período detransição.

O estudo dos padrões de doenças a partirdo tempo e do local de manifestação, como é ocaso da epidemiologia, tem sido extremamen-te útil para lidar com a patologia sob a pers-pectiva do desenvolvimento. Os epidemiolo-gistas vêm lidando por séculos com as ques-

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A CIÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 29

tões de generalização, validade de uma cate-goria diagnosticada, perfis de morbidade, es-tabilidade e mudança na manifestação de doen-ças ao longo do tempo, assim como, também,com a relação entre crise, vulnerabilidade, ris-co e prevenção. Seus métodos de investigaçãosão longitudinais e transculturais. Essas ferra-mentas aumentam a possibilidade de mapearos caminhos de crises normativas, de rotas nodesenvolvimento de patologias e de fatores derisco presentes em diferentes contextos.

Padrões universais no desenvolvimento

Estudar as diferenças no desenvolvimen-to dos indivíduos traz implícita a idéia de bus-car compreender, primeiramente, as proprie-dades comuns, para que seja possível enten-der as diferenças (Hinde, 1987). Assim, os ci-entistas sociais procuram compreender as di-ferenças comportamentais entre indivíduos,grupos e culturas a partir do que há de comumentre eles; os antropólogos buscam explicar oporquê das organizações sociais se estrutu-rarem sempre a partir do mesmo senso hierár-quico, focalizando também as diferenças entreos grupos.

No que diz respeito à psicologia, algumasconcepções teóricas, como a psicanálise freu-diana, buscam descrever as universalidadeshumanas colocando pouca (ou nenhuma) ên-fase no contexto social. No entanto, “a buscapelo homem que está atrás, sob ou acima deseus costumes, é inevitavelmente infrutífera,porque o homem não existe sem alguma for-ma de cultura” (Geertz, conforme citado emHinde, 1987, p. 83). Mas, por outro lado, se oque é individual for sempre olhado pelo viésda cultura, corre o risco de se perder. Para nãocair na cegueira dos determinismos, Geertzsugere que a questão das características indi-viduais e universais seja analisada pelo focoda diversidade e da complexidade social. Se-gundo Hinde, a análise dos comportamentosuniversais, “no nível da estrutura sociocultural,envolve diferentes questões que podem serencontradas também em um nível de análisedos comportamentos individuais. Devido àsmútuas influências dentro de e entre cada ní-

vel da complexidade social, o universal dosociocultural é relativo às características psi-cológicas individuais, embora este relativismoseja indireto” (p. 84).

Muitas características individuais são en-contradas em muitas pessoas em diferentescontextos. No entanto, há consenso na litera-tura de que nenhuma característica, por maisuniversal que seja, é absoluta e constante en-tre os indivíduos. Há sempre um grau de varia-ção que está correlacionado às diferenças cul-turais ou ambientais. A questão dos padrõesde desenvolvimento universais está também di-retamente associada a outra questão, igual-mente polêmica em psicologia do desenvolvi-mento humano, que é a das características oupadrões herdados e adquiridos. Sabemos, hoje,que tais características ou padrões se compõemmutuamente no contexto relacional em que sedesenvolve o indivíduo (Kreppner, 2003). Por-tanto, as questões de filogenia e ontogenia sefundem em combinações complexas e não maisdicotômicas como eram vistas no passado, su-gerindo que, em vez de se perguntar o quantoum aspecto influencia o outro, deveria ser per-guntado como os aspectos herdados e adquiri-dos constroem-se mutuamente.3

Estudar a natureza das característicasuniversais e dos comportamentos sociais e cul-turais e as combinações complexas entre filo-genia e ontogenia é de suma importância paraa compreensão do desenvolvimento humano.Tais questões precisam ser investigadas sob aótica interdisciplinar, usando metodologiasmais apropriadas à complexidade dos fenôme-nos. Embora os etólogos tenham contribuído(e continuem contribuindo) para a compreen-são da questão da universalidade de padrõesde desenvolvimento, esta abordagem apresentalimitações quando analisada sob o nível dasestruturas socioculturais. Portanto, a análisedialética dos níveis de complexidade social,proposta por Hinde (1987), e a adoção de umaorientação sistêmica na pesquisa, conformeproposto por Bronfenbrenner (ver Capítulo 4),constituem caminhos promissores para respon-

3 Estas questões são tratadas, em detalhes, em di-versos capítulos deste livro, particularmente noscapítulos 3 e 14.

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30 DESSEN & COSTA JUNIOR

der questões sobre desenvolvimento humano.A próxima seção trata exatamente da necessi-dade de estudar os fenômenos do desenvolvi-mento sob o enfoque interdisciplinar, adotandométodos de investigação combinados.

A INTERDISCIPLINARIDADE EA CIÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO

Para substituir o conhecimento lógico,fragmentado, descontextualizado, simplista ereducionista, que impossibilita a visibilidade docontexto global, complexo e multidimensional,faz-se necessário tratar os fenômenos sob aperspectiva interdisciplinar. Essa perspectivanos conduz a reflexões sobre as possíveis limi-tações na categorização e na descrição dos fe-nômenos e sobre a relação entre metodologiase seus objetos de investigação, favorecendouma visão dialógica, integrada, pluralística,complexa e multifacetada.

Tratando os fenômenos do desenvolvimentosob o enfoque interdisciplinar

As questões do desenvolvimento não po-dem ser concebidas como sistemas mecânicos,lineares, reducionistas ou deterministas. Aocontrário, elas devem ser concebidas dentro deuma perspectiva que é construída de formainterdependente, interativa, inter-retroativa,exploratória, que une a multiplicidade e a uni-dade dos fenômenos. Isso implica incluir osprocessos biológicos, psíquicos, sociais, afetivose cognitivos que ocorrem em um contexto his-tórico-cultural, ao longo da vida do ser huma-no (Hatano e Inagaki, 2000). Para que possa-mos compreender os fenômenos do desenvol-vimento é preciso também levar em considera-ção que há aspectos subjetivos em sua cons-trução e que a complexidade da natureza dosfenômenos não pode ser representada por meioda descrição limitada das partes do processo.O todo possui sua subjetividade peculiar porser um processo de relações tecidas em umatrama singular de níveis e subníveis, em umdado contexto (Hinde, 1992).

Tal compreensão epistemológica respei-ta as interdependências e as conexões recípro-cas que unem e diferenciam o conhecimento.No entanto, propor a pluralização dos sabe-res, o aumento de possibilidades de trocas deexperiências e pesquisas colaborativas na cons-trução do conhecimento científico requer umrompimento com a racionalidade extrema dopositivismo (Siqueira e Pereira, 1995). A pos-tura interdisciplinar no estudo do desenvolvi-mento humano busca uma coerência com acomplexidade de seu objeto de estudo e requeruma mudança de paradigmas espelhada naética argumentativa, na humanização e na inte-gração do conhecimento, na tolerância ao erroe na consciência de que há o risco da ilusãopróprio da ciência (Galambos e Leadbeater,2000; Hinde, 1992; Morin, 2000, 2002).

Portanto, uma postura interdisciplinarimplica cooperação, mediação, respeito e par-ceria, os quais somente poderão ser construídospor meio do compromisso ético com o sabercientífico. Acreditamos que um trabalho inter-disciplinar em equipe favorece a articulação en-tre respostas aparentemente contraditórias,que são próprias de investigações de sistemascomplexos quando se adota uma posturareducionista do fenômeno. O notável cresci-mento da ciência do desenvolvimento nos últi-mos anos deve-se, em parte, ao aumento quan-titativo e qualitativo de pesquisas científicas,da sofisticação estatística e da inclusão de as-pectos conceituais com ênfase na validade eco-lógica que, por sua vez, requer a adoção deuma visão interacionista entre as áreas de co-nhecimento (Lerner et al., 2000). E uma visãointeracionista, sem dúvida, amplia os horizon-tes da ciência para ângulos mais criativos eassimiladores da natureza complexa dos fenô-menos referentes ao desenvolvimento, exigin-do, na prática, o emprego de uma abordagemmultimetodológica.

A necessidade de uma perspectivamultimetodológica para a pesquisa

Durante muito tempo, os investigadoresdo desenvolvimento humano valorizaram osestudos feitos em laboratório e priorizaram o

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A CIÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 31

controle e a manipulação de variáveis, excluin-do o contexto de relações no qual o indivíduoencontrava-se inserido. Mas as últimas déca-das têm sido marcadas por uma reflexão epis-temológica denominada ciência pós-moderna,em contraposição ao caráter reducionista dosestudos experimentais tradicionais (Santos,2000), ao mesmo tempo em que os métodosnão-experimentais têm sido evidenciados. Es-ses posicionamentos buscam um rompimentocom a consciência ingênua e alienada presen-te nas práticas científicas pós-positivistas eampliam o olhar sobre o indivíduo como umser agente em sua construção sócio-histórica,inserido em uma teia relacional e contextual.Portanto, um dos grandes desafios atuais éconstruir métodos de pesquisa integrados einterdisciplinares, capazes de investigar o de-senvolvimento de forma multidimensional.

Em consonância com essa perspectivamais integral e dinâmica do desenvolvimentohumano, Bronfenbrenner (1994, 1999) desen-volveu um modelo para orientar as pesquisasem desenvolvimento humano intitulado modelobioecológico.4 Esse modelo estabelece um novoparadigma teórico e metodológico, conceben-do o desenvolvimento humano como fruto dasinterações bidirecionais entre um indivíduobiopsicologicamente ativo e todo o sistema eco-lógico humano, que abarca desde contextosmais imediatos (microssistemas), como a fa-mília e o ambiente de trabalho, além das rela-ções estabelecidas entre eles (mesossistemas),até aqueles mais amplos (exossistemas e ma-crossistemas), como a sociedade e a cultura.No decorrer do desenvolvimento, tais intera-ções, denominadas processos proximais, vão setornando progressivamente mais complexas,particularmente nas fases iniciais do ciclo devida. Como o desenvolvimento ocorre não sóem relação ao ciclo de vida, mas também emum determinado tempo histórico, foi adicio-nado ao modelo outro componente, o cronos-sistema. Portanto, nesse modelo, a configura-

ção sistêmica é composta por quatro elemen-tos principais: a pessoa, o processo, o contextoe o tempo, levando em consideração a intera-ção entre os diversos sistemas que compõem ocontexto. A forma, o poder e a direção dos pro-cessos de interação (processos proximais) cons-tituem o ponto central do modelo.

Com esse panorama da ecologia humanajá se tem uma dimensão do desafio metodoló-gico que é compreender o desenvolvimento sobuma perspectiva não-reducionista. As teoriasdos sistemas ecológicos, muito bem represen-tadas pelo modelo bioecológico do desenvol-vimento humano proposto por Bronfenbrenner,apontam para uma direção bastante promis-sora, na medida em que contemplam a com-plexidade e a diversidade dos fenômenos dedesenvolvimento e inserem o contexto ambien-tal como parte ativa desse processo. No entan-to, conforme alertam Shanahan e colaborado-res (2000), quando adotamos uma visãosistêmica, devemos tomar cuidado para nãonegligenciar os quatro pressupostos básicos quesustentam uma perspectiva efetivamente sistê-mica. Primeiro, há que se considerar a plastici-dade dos processos proximais (interações), ouseja, não há rigidez, nem linearidade, na de-terminação do desenvolvimento; as mudançaspodem ocorrer em qualquer nível da ecologiado desenvolvimento humano e em qualquermomento da totalidade do ciclo vital. Segun-do, os construtos históricos e temporais sus-tentam que as mudanças são características ine-vitáveis de todos os níveis de organização. Ter-ceiro, a teoria enfatiza os limites de se genera-lizar os resultados das pesquisas sobre desen-volvimento, uma vez que existem inúmerasfontes de diversidade que criam ambientes econtextos variados onde as pessoas crescem ese desenvolvem. O quarto pressuposto afirmaque os vários níveis da ecologia do desenvolvi-mento humano estão interligados e que são asinterações entre eles que dirigem as trajetóri-as do desenvolvimento do indivíduo, ao longodo ciclo de vida.

Portanto, fazer ciência do desenvolvi-mento pressupõe implementar pesquisas queconsiderem a natureza dinâmica das relaçõesdo ser humano e a diversidade dos contextos.Como o desenvolvimento ocorre através de

4 Considerando a complexidade desse modelo e aimpossibilidade de resumi-lo em poucas palavras,sugerimos a leitura do Capítulo 4.

Page 15: Cap_01 A Ciência do Desenvolvimento Humano

32 DESSEN & COSTA JUNIOR

processos bidirecionais progressivos e cada

vez mais complexos envolvendo a pessoa, en-

tendida como um organismo biopsicológico,

e os objetos ou símbolos presentes no ambi-

ente externo mediato ou remoto, é fundamen-

tal que os planejamentos incluam, no míni-

mo, dois níveis diferentes do contexto, consi-

derem extensos períodos de tempo e combi-

nem variadas estratégias qualitativas e quan-

titativas de coleta e análise de dados. Eviden-

temente, tal conduta constitui um desafio aos

pesquisadores, tanto do ponto de vista teóri-

co como do metodológico, uma vez que eles

têm que lidar com:

1. A emergência de novas estruturas e

funções durante o curso do desen-

volvimento do indivíduo, como con-

seqüência de coações entre os siste-

mas, o que aumenta a complexidade

de sua organização em todos os ní-

veis (Garièpy, 1996; Gottlieb, 1996;

Shanahan et al., 1997; Tudge et al.,

1996). Nesse processo em que os sis-

temas em desenvolvimento estão

sempre mudando, as interações en-

tre os fatores genéticos e culturais

exercem grande influência, eviden-

ciando a relevância de estudos com-

plementares e comparativos realiza-

dos por equipes interdisciplinares.

2. A implementação de estudos que in-

vestiguem as forças temporais e his-

tóricas que afetam o curso de vida,

como as rupturas familiares, as flu-

tuações econômicas, as mudanças

mais constantes de residência e o im-

pacto da tecnologia nos processos

proximais (Shanahan et al., 2000).

3. O emprego de delineamentos lon-

gitudinais e transversais capazes de cap-

tar a transmissão de padrões de rela-

cionamentos através das e entre as ge-

rações, centralizando o seu foco de es-

tudo nos processos proximais, conside-

rando os seus vários níveis de organi-

zação, desenvolvidos nos diferentes sis-

temas ecológicos (Bronfenbrenner e

Morris, 1998; Voss, 1991). Os estu-

dos longitudinais e transversais têm

particular valor para se compreender

as variáveis e os padrões de adapta-

ção entre os níveis interior e exteri-

or da pessoa, ao longo do desenvol-

vimento (Bronfenbrenner, 1999;

Winegar, 1997).

4. A realização de pesquisas compara-

tivas, integrativas e multidisciplina-

res, com a finalidade de verificar as

influências familiares vulneráveis a

explorações genéticas, relacionais e

ambientais, de forma a mapear o de-

senvolvimento, conforme discutido

em detalhes nos capítulos 3, 6, 7, 8 e

14. Obviamente, isso requer a cria-

ção de arranjos alternativos de deli-

neamentos, com novas estratégias

multimetodológicas e níveis variados

de análise que permitam avaliar o

impacto cumulativo de condições

ambientais nos múltiplos estágios da

vida (Little, 2000).

5. A construção de instrumentos e me-

didas capazes de traduzir os resulta-

dos das continuidades e mudanças no

desenvolvimento. Segundo Hinde

(1992), as nossas unidades de análi-

se, em sua maioria, ainda são recor-

tes reducionistas do fenômeno. Por-

tanto, emerge dessa constatação a

necessidade de um intercâmbio mais

efetivo com especialistas em metodo-

logia científica, provenientes de dife-

rentes áreas, que possam auxiliar no

planejamento de pesquisas. Além dis-

so, urge uma maior aproximação dos

pesquisadores de desenvolvimento

com a estatística, no sentido de de-

senvolver modelos múltiplos de aná-

lises sob medidas mais adequadas

(von Eye e Schuster, 2000).

6. A necessidade de intensificar estudos

culturais e transculturais, visando ge-

rar resultados com valor universal,

testar teorias e hipóteses com relação

às variações do funcionamento psico-

lógico, além de verificar e comparar

as diferenças e semelhanças entre as

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A CIÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 33

culturas. Para tanto, é necessário es-tabelecer e combinar critérios e mé-todos variados que permitam compa-rar os dados coletados nas diferentesculturas e grupos, de forma a respei-tar as peculiaridades de cada indiví-duo envolvido e, ao mesmo tempo,creditar um valor de universalidadeaos resultados obtidos (Dasen eMishra, 2000; Goldwin, 2002; Realoe Allik, 2002).

Embora sejam muitos os desafios, é pre-ciso lembrar que a eficácia do emprego de qual-quer estratégia metodológica é conferida porsua adequação ao teor das questões que tenta-mos responder, o que significa que precisamosperguntar em novos termos e responder consi-derando novos caminhos e direções (Dasen eMishra, 2000). Devemos, também, envidar es-forços no sentido de testar teorias, métodos ehipóteses, integrando-os com a finalidade deconstruir uma metateoria do desenvolvimento(Cairns et al., 1996). Infelizmente, ainda háalgumas posições extremistas no fazer cientí-fico que impõem barreiras ao diálogo entre pós-positivistas e pós-modernistas, impedindo, porexemplo, a integração entre estudos quantita-tivos/comparativos e qualitativos/descritivos(Dasen e Mishra, 2000; Dyer, 1995; von Eye eSchuster, 2000).5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os diferentes enfoques teóricos em desen-volvimento humano, se integrados, possibili-tariam compreender os fenômenos sob diferen-tes prismas, abarcando desde os sistemas ge-néticos e biológicos até os sistemas sociais eculturais. Portanto, fragmentar ou alienar asdisciplinas que investigam o desenvolvimentoimplica postergar o avanço do conhecimentosobre tais fenômenos que são complexos e re-querem, para sua investigação, estratégias

metodológicas criativas e éticas. Nesse senti-do, a ciência do desenvolvimento humano, nas-cida da convergência das principais idéias econclusões da psicologia, da biologia e da so-ciologia, constitui um caminho promissor paraorientar as pesquisas nas próximas décadasdeste milênio que se inicia.

O objetivo comum entre as disciplinascomprometidas com a construção dessa novaciência é compreender como os sistemas múl-tiplos que influenciam o desenvolvimento tor-nam-se integrados ao longo do tempo, pro-movendo a vida, ou seja, a manutenção dascondições de saúde e as funções adaptativasdos organismos e sistemas ao longo do cursode vida (Magnusson e Cairns, 1996). Dessaforma, o seu foco de análise varia desde oseventos genéticos até os processos culturais,desde os eventos fisiológicos até as interaçõessociais.

Os princípios norteadores da ciência dodesenvolvimento só foram formulados e sinte-tizados no final da década de 1970, em res-posta ao descontentamento dos pesquisadoresquanto à ineficácia dos modelos positivistaspara tratar os fenômenos de desenvolvimentohumano, conforme discutido brevemente naprimeira seção deste capítulo. No modelo dociclo de vida proposto pela ciência do desen-volvimento, os princípios que norteiam a pes-quisa sobre o desenvolvimento humano inte-gram os diferentes enfoques teóricos e têmcomo base o fato de que “um indivíduo se de-senvolve e funciona psicologicamente como umorganismo integrado. As contribuições matura-cionais, experienciais e culturais estão fundi-das na ontogênese. Aspectos singulares não sedesenvolvem isoladamente e eles não devemser separados da totalidade, em uma análise”(Magnusson e Cairns, 1996, p. 12). Assim, odesenvolvimento humano constitui um fenô-meno que, por sua própria natureza dinâmicae complexa, requer uma abordagem sistêmicade investigação.

Embora as teorias organicistas tenhamenfraquecido, alguns dos postulados de Piagetcontinuam férteis, principalmente em pesqui-sas que abordam o desenvolvimento de pro-cessos básicos como percepção, memória, aten-ção, pensamento e linguagem. A perspectiva

5 Para uma discussão detalhada sobre metodologiasde investigação em desenvolvimento, ver Capítulo2 deste livro.

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34 DESSEN & COSTA JUNIOR

etológica, que enfatiza a força do ambiente deadaptação na determinação do comportamen-to da pessoa, continua se mostrando útil paraa análise da variável ambiente. A corrente his-tórico-cultural proposta por Vygotsky, que res-salta a dialética e a importância da mediaçãohistórica e cultural dos fenômenos psicológi-cos, constitui instrumento importante para ainvestigação do papel da cultura no desenvol-vimento, juntamente com os modelos constru-tivistas, enfatizando o papel de uma ordemsimbólico-discursiva nessa determinação cul-tural. No entanto, a maioria desses modelosde desenvolvimento prioriza, em uma relaçãounidirecional de determinação, apenas um dosaspectos da complexa rede de fatores que in-fluenciam o desenvolvimento humano. Em-bora coexistam, raramente essas diferentescorrentes se associam na tentativa de com-preender o fenômeno do desenvolvimento emsua totalidade.

Para compreendermos os fenômenos dodesenvolvimento humano não basta apenas le-var em consideração a maturação física e neu-robiológica, os contextos de tempo e de espaçoou mesmo as interações entre a pessoa (ge-nótipo, fenótipo, recursos psicológicos) e o am-biente (família, relações íntimas, estrutura deoportunidades em escolas e no mercado detrabalho). Precisamos, sobretudo, passar a va-lorizar as interações entre esses sistemas no sen-tido de que é a interdependência dessas forçasque constrói os caminhos que o desenvolvimentohumano segue no ciclo de vida do indivíduo.Atentar para o valor das interações entre os di-ferentes sistemas significa conceber a ciência dodesenvolvimento em termos não mais de influ-ências unidirecionais e de determinação, masem termos de influências bidirecionais múlti-plas e de correlação (Bronfenbrenner, 1999).

Nesse capítulo introdutório, apresenta-mos, de forma sucinta, uma perspectiva maisampla e integradora do desenvolvimento hu-mano, discutindo conceitos e apontando dire-trizes teóricas para interpretar a realidade com-plexa de tal fenômeno. Tais conceitos e diretri-zes constituem a base da ciência do desenvol-vimento humano e são fundamentais para acompreensão dos demais capítulos que com-põem este livro.

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