ciência, sociedade e universidade 1 -...
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Ciência, sociedade e universidade1
Pedro Goergen2
RESUMO: Este trabalho busca repensar a relação entre ciência, sociedade e universidade a partir das transfor-mações que marcam a contemporaneidade. A hipótese é de que estas mudanças de níveis econômico, laboral e mesmo epistêmico, afetam também o sentido da prática acadêmica. A partir da reflexão sobre os três conceitos que compõem o título do artigo – ciência, sociedade e universidade – m, conclui-se que a universidade deve iniciar um processo de auto-avaliação que inclua seus próprios fundamentos, ainda modernos, na perspectiva do novo cenário. Esta reflexão básica deve constituir o ponto de partida para uma futura reforma universitária. PALAVRAS-CHAVE: Relação universidade, ciência e sociedade, sociedade informática, reforma universitária. ABSTRACT: This paper aims to rethink the relationship between science, society and university from the trans-formations that mark the contemporary time. The hypothesis is that the changes in economical, labor and epis-temic levels also affect the meaning of academic practice. Reflecting upon the three concepts present in the title of this article - science, society and university - we conclude that university must rethink its identity establish. This basic reflexive thinking should be the first concern to a university reform. KEYWORD: University relations; science and society; informational society; university reform.
L'objectif d'une societé multiculturelle ne se discute pas et fait à mês yeux partie de ces grandes causes de l'humanité que les sociétés démocratiques doivent au-jourd'hui prendre en charge. Ce qui en revanche reste soumis à discussion, c'est la question même de savoir quel rôle l'Université peut et doit jouer, s'il est vrai qu'elle doit en jouer un, dans la réalisation de cet objectif." (Alain Renaut) A crise de confiança estendeu-se aos próprios cientistas. Eles não só questionam agora a aplicação em massa da ciência ao mundo, mas postulam também perguntas inquietantes sobre o próprio status da ciência como método privilegiado de com-preensão. (Krishan Kumar)
Introdução
A partir do início da modernidade, a ciência foi definida como o caminho privilegiado
e mais seguro de acesso à realidade. O proceder científico facultaria ao homem desvendar os
mistérios das incontroláveis forças ocultas que lhe impunham tanto medo. O homem disporia,
afinal, de um instrumento que o tornaria verdadeiro senhor da criação. A ciência começou a
ser vista, desde então, como o motor do desenvolvimento, símbolo do progresso. Estabeleceu-
se uma relação indestrinçável entre ciência e desenvolvimento humano e social. Em seqüên-
cia, uma das principais preocupações do homem passou a ser fazer ciência. Aos poucos, esta
ciência passou a ser avaliada segundo seu maior ou menor sentido prático. Homens geniais e
abnegados fizeram disso o sentido de sua vida. Instituições foram criadas e organizadas com o
objetivo precípuo de produzir ciência e traduzir seus resultados para a prática. A universidade
foi paulatinamente incorporando este sentido prático do saber. Dela se espera, cada vez mais,
que produza conhecimentos úteis e também forme pessoas capazes de atender aos quesitos de
um mundo laboral moldado pelas mesmas ciência e tecnologia. Ao longo das décadas, foram
1 Publicado em Educação & Sociedade v. 19 n. 63 Campinas Ago. 1998 2 Doutor pela Universidade de Munique; Professor do programa de Pós-graduação da Universidade de Sorocaba.
sendo desenvolvidos vários modelos de instituições acadêmicas que se distinguiam uns dos
outros pelo sentido mais ou menos prático que davam à sua atuação, no interior da relação
ciência e sociedade. As diferentes formas de organização social, mas sobretudo o estado evo-
lutivo da sociedade foram dando, cada um a seu tempo, uma nova configuração a esta relação
entre ciência, sociedade e universidade.
Hoje nos encontramos num período de enormes mudanças e transformações que, sem
dúvida, afetarão profundamente o nexo ciência e sociedade com conseqüências não só para a
estrutura administrativa, a organização curricular e os procedimentos acadêmicos, mas para a
própria função da universidade no interior da sociedade. O objetivo do presente trabalho é
formular algumas aproximações, muito primeiras e gerais, do que podem significar as trans-
formações que tanto marcam nosso tempo para a função da universidade.
O tema, assim posto, poderia ser abordado de diferentes ângulos. Optei por um proce-
dimento que envolve a explicitação dos conceitos envolvidos - sociedade e universidade - não
com a pretensão de fazer uma análise aprofundada de cada um deles, mas para destacar alguns
tópicos que possam eventualmente servir para um posterior debate com sentido orientador
para a prática acadêmica. A expectativa é a de que, assim procedendo, se alcance maior clare-
za a respeito do papel da universidade no interior da sociedade como agente produtor e divul-
gador de ciência e tecnologia.
Antes, porém, é necessário esclarecer que o que aqui se entende por ciência não diz
respeito apenas às ciências exatas, mas também àqueles outros domínios do saber que tratam
das relações humanas, da ética, da cultura, da educação, enfim, todo o saber nascido do exame
sistemático e cuidadoso dos temas referentes ao ser humano. Parece-nos de fundamental im-
portância fazer esta explicação porque só assim podemos falar de um conceito de universida-
de no sentido da universalidade do saber e da relação entre ciência e sociedade. Se falássemos
da relação entre ciência e sociedade, reduzindo o conceito de ciência à visão das ciências na-
turais e exatas, estaríamos, no mínimo, praticando um erro de origem, pois ciência, a nosso
ver, é um conceito muito mais amplo do que aquele restrito às ciências exatas e naturais. Este
ponto de vista, a respeito do qual, aliás, há uma vasta bibliografia que cresce dia-a-dia, parece
firmar-se cada vez mais. A partir deste entendimento amplo de ciência, parece-nos possível
comentar alguns pontos específicos da relação ciência e sociedade.
A sociedade em transformação
É claro que não posso fazer aqui uma tipologia ampla da sociedade contemporânea.
Pretendo apenas destacar alguns pontos que interessam mais de perto ao nosso tema. Todos
concordam que a sociedade se encontra atualmente num profundo e célere processo de trans-
formação. Instalou-se um grande debate entre modernos e pós-modernos a respeito da gravi-
dade destas transformações. Os chamados pós-modernos defendem o ponto de vista de que
estamos no início de uma nova era da humanidade, enquanto os modernos apenas admitem
que o momento é de revisão da modernidade, pois defendem a idéia de que o conceito moder-
no de racionalidade deve ser preservado em suas características básicas. Sem querer nivelar as
diferenças que distinguem as duas posições, parece-nos que elas convergem no reconheci-
mento das importantes transformações que vêm ocorrendo e na abrangência dos seus efeitos
sobre os mais diferentes âmbitos da vida contemporânea (GOERGEN 1996, p. 5). Talvez se
possa concordar com Octavio Ianni que fala de um novo “ciclo da história” ou “ponto de in-
flexão histórica”.
Em poucos anos, terminou um ciclo da história e começou outro. Muitas coisas es-tão mudando no mundo, abrindo outras perspectivas sociais, econômicas, políticas e culturais. Mesmo as coisas que não sofreram maiores abalos, já não podem ser mais como antes. Alteraram-se as relações no jogo das forças em curso na vida das socie-dades nacionais e da sociedade mundial. (IANNI 1993, p. 26).
Algumas páginas adiante, Ianni conclui que
talvez se devesse dizer que terminou um ciclo particularmente importante de luta de classes, em escala nacional e internacional. Mas não terminaram as desigualdades, tensões e contradições que estavam e continuam a estar na base da vida das nações e continentes. Esse pode ser apenas um ponto de inflexão histórica, assinalando o fim de um ciclo e o começo de outro. (p. 33)
O que não se sabe é para onde estas mudanças levarão. Mas o que afinal está ocorren-
do?
O primeiro elemento que se distingue no cenário social contemporâneo são a veloci-
dade e o caráter permanente das transformações. Mudanças que antes teriam levado décadas
ou mesmo séculos hoje se completam num espaço muito curto de tempo. Além disso, as
transformações tornaram-se permanentes, gerando um estado intermitente de crise ao qual o
homem ainda terá de se acostumar.
O segundo aspecto é o crescimento assustador da quantidade de conhecimentos e in-
formações hoje disponíveis. Se há pouco mais de um século todos os conhecimentos disponí-
veis cabiam dentro de uma pequena biblioteca e podiam ser dominados por um só ser huma-
no, atualmente isto é inimaginável. O homem necessita especializar-se, fazer opções, escolher
recortes sempre mais restritos da realidade sobre os quais concentra seus conhecimentos.
Em terceiro lugar, o mundo contemporâneo caracteriza-se pela capacidade extrema-
mente grande de armazenamento e de transmissão de conhecimentos e informações num es-
paço e tempo cada vez menores. “Este é o primeiro momento da história”, diz Castells (1996,
p. 11), “no qual o novo conhecimento é aplicado principalmente aos processos de geração e
ao processamento de conhecimentos e da informação”. Com estes recursos, o mundo tornou-
se globalizado, interligando os pontos mais remotos do globo terrestre através de meios ele-
trônicos de comunicação, em tempo real. Países, comunidades, empresas e até mesmo os in-
divíduos tornaram-se completamente interdependentes.
Estas mudanças refletem-se sobre a essência mesma da sociedade e do próprio ser
humano, a ponto de parecer justificado perguntar se ainda é possível falar da sociedade ou do
ser humano no mesmo sentido como se fazia há algumas décadas. Há muitos que, como Ianni,
acreditam ser necessário elaborar uma nova teoria sistemática da sociedade e do ser humano
para dar conta deste novo cenário. Tanto isto é verdade que conceitos fundamentais como a
sociedade de classes, trabalho, proletariado etc. parecem cada vez mais obsoletos, inadequa-
dos para descrever a realidade social dos nossos dias. Neste surto de mudanças, assistimos
também a profundas transformações nas formas de governo com a redução do Estado e a in-
terferência cada vez contundente de condicionantes internacionais que ditam normas de com-
portamento e de ação não só para as nações do mundo inteiro, mas também, privadamente,
para todos os indivíduos.
Em lugar das sociedades nacionais, a sociedade global. Em lugar do mundo dividido
em capitalismo e socialismo, um mundo capitalista, multipolarizado, impregnado de experi-
mentos socialistas. As noções de três mundos, centro, periferia, imperialismo, dependência,
milagre econômico, sociedade nacional, Estado-Nação, projeto nacional, caminho nacional
para o socialismo, caminho nacional de desenvolvimento capitalista, revolução nacional e
outras, parecem insuficientes, ou mesmo obsoletas. Dizem algo, mas não dizem tudo. Pare-
cem inadequadas para expressar o que está ocorrendo em diferentes lugares, regiões, nações,
continentes. Os conceitos envelheceram, ficaram descolados do real, já que o real continua a
mover-se, transformar-se. (IANNI 1993, p. 35)
A ofensiva dos pós-modernos volta a artilharia de seu discurso contra o imperialismo
universalizante e dominador da modernidade, acusando-a de portadora de uma lógica que
impõe seus parâmetros a tudo. Por isso, assim afirmam, o homem refugia-se no diverso, no
individual, no local. “O vínculo social observável é feito de ‘lances’ de linguagem”, diz Lyo-
tard (1985, p. 27). Esta crítica que, pelo menos na sua versão mais equilibrada e menos radi-
cal, deve ser entendida de forma positiva, ostenta flancos desguarnecidos, pois ao combater o
chamado imperialismo da racionalidade moderna deixa intocado um outro imperialismo uni-
versalista, agora não no campo do racional epistemológico, mas no campo econômico. A
mentalidade neoliberal que, como verdadeira revolução, pôs todos os países, o mundo inteiro,
sob seu domínio, foi capaz de invalidar qualquer outra lógica que não a sua. O ponto fulcral, o
valor último, o argumento decisivo que ordena todo o sistema é o lucro. A ciência, rainha que
foi, passa a ser ministro do novo rei, o lucro, cuja crueldade ajuda a potencializar e justificar.
Seu poder é tanto que já não encontra limites, invadindo tudo, o ser e o pensar, e, sobretudo,
convencendo a todos que fora dela não há salvação.
Não há dúvida de que a capacidade de produzir conhecimentos é um dos fatores de-
terminantes da distribuição do poder econômico, em nível mundial. Os países que têm o me-
lhor índice de produção de conhecimentos encontram-se na liderança da economia. Nas pala-
vras de Castells (1996, p. 15), “o caráter estratégico das tecnologias e da informação na pro-
dutividade da economia e na eficácia das instituições sociais muda as fontes de poder na soci-
edade e entre as sociedades”. Paralelamente aos grandes benefícios, trazidos pela ciência, a
explosão do saber centralizou-se em alguns poucos países, gerando situações complexas de
uma nova dependência que se tornam o grande desafio para o próximo milênio. Nesse senti-
do, Leopoldo de Meis (1996, p. 25 ss.) lembra que, além dos benefícios, a explosão do saber e
da capacidade do homem de domínio sobre a natureza também trouxe uma série de riscos.
Cita entre outros, o desequilíbrio científico/tecnológico, isto é, a concentração da revolução
científica em alguns poucos países. Segundo as estatísticas que apresenta, 70% dos trabalhos
científicos produzidos a cada ano se originam de sete países centrais que têm apenas 14% da
população mundial enquanto o resto do planeta, que representa 86% da população, produz
apenas 25% do saber, gerado a cada ano. Assim, para citar dois exemplos extremos, em 1989
os EUA produziam 35,1% das pesquisas enquanto o Brasil produzia apenas 0,47%. Há, por-
tanto, um grave desequilíbrio entre uma pequena minoria de países que produz conhecimentos
e uma grande maioria que os consome. Há pouca perspectiva de que este panorama possa
mudar no curto prazo. Se é verdade que as conquistas do conhecimento se espalham rapida-
mente pelo planeta, não é menos certo que os centros hegemônicos que dominam e manipu-
lam estes conhecimentos constroem, a partir disso, uma cidadela de poder e uma fonte enorme
de recursos. Os outros, se quiserem participar das benesses da ciência e da tecnologia, são
obrigados a pagar por isso.
Além desse desequilíbrio global do poder, que tem sua origem não mais no uso da for-
ça e das armas, mas no domínio do conhecimento, os avanços científico-tecnológicos envol-
vem outros importantes desafios. Leopoldo de Meis menciona alguns deles: o primeiro é a
assimetria entre jovens e adultos. Os países com maior desenvolvimento científico-
tecnológico aprenderam a controlar o crescimento de suas populações. Isto traz um grande
problema para a educação nos países em desenvolvimento. É consensual que a educação é um
dos elementos essenciais para o desenvolvimento no mundo contemporâneo. Ora, “os países
que têm o menor desenvolvimento científico são os responsáveis pela educação da maior par-
cela dos jovens do planeta”. (MEIS 1996, p. 28). Numa era em que se exige um nível cada
vez maior de conhecimentos dos jovens que entram no mercado de trabalho, o qual só cresce
nas áreas ligadas à ciência, o equilíbrio apontado representa uma desvantagem muito grande
para os países em desenvolvimento.
Outro elemento, apontado por Meis, é o excesso de informações, a decodificação do
saber e a superespecialização. No século XVII, a biblioteca da Universidade de Oxford era
uma das maiores do mundo com um acervo de 200 volumes. Em um ano ou pouco mais, um
estudioso poderia inteirar-se de tudo. A explosão do saber que ocorreu no último século obri-
gou os intelectuais a delimitarem seus campos de conhecimento, levando, aos poucos, às su-
perespecializações que caracterizam a ciência hoje. Atualmente, um especialista mal e mal é
capaz de extrair da grande massa de conhecimentos produzidos aqueles que interessam à sua
especialidade. As áreas de saber tornam-se cada vez mais delimitadas, mais técnicas, mais
codificadas e, por isso, sempre mais herméticas e inacessíveis aos não-especialistas. Surgem
verdadeiros guetos que atuam como reservas impenetráveis para aqueles que não dominam os
símbolos, os códigos lingüísticos especiais de modo que
a pesquisa científica dentro da universidade desempenha papel importante não só na produção de novos conhecimentos, mas também na sua capacidade de tornar acessí-veis aos seus estudantes os avanços contínuos do saber. Assim, o cientista moderno deve ser também um decodificador, e a importância da universidade cresce à medida que aumenta a sua capacidade de decodificar e abranger um número crescente de es-pecialistas nas diversas áreas do saber. (MEIS 1996, p. 33)
O papel de decodificador torna-se tanto mais importante quanto mais os resultados das
pesquisas vão sendo publicados em revistas internacionais, geralmente em inglês. Estes pro-
cedimentos, muitas vezes condenados como elitistas, são na verdade inevitáveis por causa da
construção do conhecimento nos fluxos internacionais. A conquista de saber novo depende
sempre mais da capacidade de interagir com laboratórios e centros internacionais de pesquisa
cujos meios de comunicação sempre se servem do inglês.
Nesse contexto, deve ser lembrado que um dos eixos importantes da problemática “ci-
ência e sociedade” encontra-se no ensino das ciências. Entre as diferentes áreas do saber, uma
das que menos se desenvolveram ao longo dos últimos séculos foi a da arte de ensinar. En-
quanto a busca do saber avança a passos largos, o ensino de ciências é hoje ainda muito seme-
lhante àquele usado há dois séculos.
A ênfase principal desta forma de ensinar continua sendo a de transmitir ao aluno o
maior número possível de informações e, dentro desta perspectiva, espera-se que, ao comple-
tarem seus cursos universitários, os estudantes estejam a par dos conceitos atuais das suas
respectivas áreas profissionais. Entretanto, a explosão do saber dos últimos anos tornou esta
tarefa impossível e, na realidade, não sabemos ainda como preparar os estudantes de forma a
torná-los capazes de lidar de forma eficiente com a grande quantidade de novas informações
gerada a cada ano, condição essencial para uma atuação de ponta. (MEIS 1996, pp. 33-34)
Ademais, grande parte do saber é produzido pelas indústrias ou organismos governa-
mentais e não é publicado por razões estratégicas ou econômicas. Segundo Meis (1996), nos
EUA cerca de 40% dos conhecimentos gerados a cada ano não são divulgados. Aliás, a uni-
versidade, acostumada à sua posição hegemônica como produtora de conhecimentos, é hoje
obrigada a dividir sempre mais este espaço com outras organizações, especialmente industri-
ais. Em alguns campos, como o da engenharia e o da computação por exemplo, a maior parte
das descobertas inovadoras já vem sendo feita fora da universidade.
Para os países subdesenvolvidos ainda existe um outro tipo de saber oculto, além da-
quele mantido em sigilo por entidades governamentais ou industriais. Conforme já mencio-
namos, trata-se daquele saber, disponível em princípio mas inacessível por causa da falta de
especialistas para decodificá-lo, confirmando a importância do novo especialista / decodifica-
dor, como já mencionei anteriormente. Vejamos o que diz a respeito disso Meis:
Muitos dos novos conceitos descobertos nos laboratórios de pesquisa somente são apercebidos pela maior parte da população do planeta depois que os produtos dela derivados tenham se inserido na sociedade, gerando novos costumes e hábitos. (MEIS 1996, p. 36)
Exemplos disso são a pesquisa nuclear, as técnicas anticoncepcionais, a inseminação
artificial, a manipulação genética. Lixo atômico, novos comportamentos sexuais, mudança de
concepção de paternidade e maternidade, mutações genéticas aplicadas em seres humanos são
conseqüências dos avanços científicos mencionados dos quais apenas um pequeno círculo de
especialistas se apercebia antes.
Outro tema da mais alta relevância é a questão da ética. Antes da revolução científica,
os conceitos de bem e de mal eram definidos a partir de princípios metafísicos ou teológicos.
Com o avanço da ciência, estes tradicionais conceitos de fundamentação transcendental foram
sendo substituídos pelos de útil ou inútil bem presos a sua serventia empírica. O uso dos con-
ceitos funciona ou não funciona como paradigmas orientadores da ação humana implica pro-
fundas mudanças éticas e sociais, sem que sejam discutidos seus fundamentos e suas conse-
qüências. A revolução industrial, além de “estabelecer um nova relação entre cidade e campo,
lar e trabalho, homens e mulheres, pais e filhos, gerou uma nova ética e novas filosofias soci-
ais”. Agora, a época da globalização e da informática “sugere possibilidades de uma nova
estrutura de cidadania e democracia nas quais até agora mal se pensou” (KUMAR 1997, p.
172). Como se fora profeta, Habermas já alertava num de seus primeiros trabalhos acadêmi-
cos dos anos 60 sobre os riscos da diluição da esfera pública. Hoje realmente constatamos que
a privatização e a individuação, possibilitadas pela tecnologia da informação, conduzem ao
esvaziamento e à diminuição da esfera pública nas sociedades atuais. Um dos campos da ati-
vidade humana onde se sente isso de forma mais clara é o da economia. Medidas econômicas
são boas quando funcionam em termos de manutenção e sustentação do sistema econômico
vigente e dos interesses a ele atinentes, sejam eles ou não escusos desde um ponto de vista de
valores éticos mais gerais. A ação política ou econômica justifica-se a partir de objetivos fi-
xados por interesses sem fundamentação em princípios universais e que não foram tematiza-
dos socialmente. No dizer de Habermas, o que determina a ação são regras técnicas que se
justificam por si mesmas e não por normas e valores, submetidos ao debate público. Nisto, ou
seja, na não-tematização das regras técnicas, consiste um dos principais aspectos ideológicos
da ciência e tecnologia (cf. HABERMAS 1982). O que isto representa em termos práticos nos
mostra com clareza Viviane Forester ao analisar a situação do desemprego que aflige os traba-
lhadores. Sua exposição desenha um quadro dramático dos sacrifícios que os seres humanos
têm de suportar em termos de desemprego para que o sistema possa ser mantido. E agora po-
demos formular a pergunta: como se há de comportar a universidade profissionalizante no
limiar de uma era que está em vias de suprimir aquilo que se chama trabalho? A universidade
é solicitada a formar indivíduos “úteis” à sociedade, o que, no dizer de Forester (1997, p. 13),
"significa quase sempre rentável". Nisto encontra-se também o risco de uma avaliação que se
propõe simplesmente verificar em que medida a universidade está respondendo a este manda-
do de formar indivíduos úteis. É urgente superar este ‘abreviamento” do papel da universida-
de que reduziu sua função a formar indivíduos para atender “necessidades sociais”, sejam elas
quais forem e recuperar seu papel de instância crítica da sociedade a partir de interesses hu-
manos mais amplos democraticamente discutidos. Porque a falta de trabalho se tornou uma
norma pela qual o excluído se torna dono falido de seu próprio destino que não passa de um
número colocado pelo acaso numa estatística (FORESTER 1997, pp. 10-11), a universidade,
talvez inconscientemente, pode tornar-se cúmplice de um crime que uma sociedade, suposta-
mente lúcida e sofisticada, comete contra uma grande parte da população, formada por pesso-
as que se tornam objetos manietados e torturados, mendigantes de um emprego que já estatis-
ticamente não existe. A universidade lhes insufla ânimo e esperança, garantindo-lhes que boa
formação garantirá um futuro de inclusão, um futuro cidadão. Estará a universidade conscien-
te da responsabilidade que assume ao prometer, direta ou indiretamente, algo que, sabe, ja-
mais será cumprido? Numa época em que o trabalho que as pessoas têm a oferecer tornou-se
supérfluo, a esperança no futuro tornou-se um simulacro. E o que dizer do ideal da formação
conscientizadora e crítica que estimula o impulso à mudança e à transformação quando, logo
adiante, estes contestadores do sistema terão que se jogar aos pés dos donos do poder que o-
lharão com escárnio para aqueles que imploram “para obter aquilo que vilependiaram” (FO-
RESTER, 1997, p. 16)? Os homens submetem-se à mendicância do emprego, jogando seu
orgulho aos pés dos poderosos, porque sabem que pior que a exploração, da qual fatalmente
serão vítimas, é a vergonha de sequer serem exploráveis, de serem errantes supérfluos à mar-
gem do sistema. Se lermos Hobbes nesta perspectiva, devemos concordar que ele tinha razão
com sua famosa frase homo hominis lupus, a partir da qual ele buscava justificar a necessida-
de do Estado como instância imprescindível de ordenamento e civilização. Hoje, o Estado
lava as mãos e se curva ante o poder supremo do mercado, cujas leis frias fazem girar as mós
impassíveis dentre as quais cai esmagado e banhado em seu próprio sangue um número imen-
so de pessoas que, sob o olhar frio de menosprezo do homo oeconomicus, se perdem no ralo
da história.
Para estas, a vida torna-se uma insídia que não vale a pena ser vivida porque portada
por seres que não dão lucro. E não dão lucro não porque não queiram ou não possam, mas
simplesmente porque são deserdados do sistema. A sociedade cada vez menos divide-se em
classes, em partidos, em favoráveis ou desfavoráveis, mas em excluídos ou incluídos, úteis ou
supérfluos. A própria vida, como dizíamos, torna-se supérflua, inútil quando não dá lucro. O
pior de tudo é que de tanta discussão, o tema do desemprego e da exclusão torna-se familiar,
assumindo certo ar de inocência como a pobreza que vemos todos os dias diante da porta, na
esquina, nas ruas e em belas cores, na televisão. Tudo assume um ar teatral de espetáculo e,
como tal, os crimes, as mortes, a violência, os estupros, tudo se torna, de certa forma, inocen-
te. Pelo menos enquanto não nos atinge pessoalmente. Por detrás disso, como bem lembra
Forester, está a matriz de tudo que jamais é mencionado: o lucro. “Tudo é organizado, previs-
to, proibido e suscitado em razão dele, que dessa maneira parece inevitável, como que fundido
à própria semente da vida, a ponto de não se distinguir dela” (FORESTER 1997, p. 19).
A sociedade humana ainda faz de conta que o futuro do ser humano é o trabalho,
quando, na realidade, este diminui a cada dia que passa. E, apesar das promessas de políticos
e empresários, não há nenhuma perspectiva de mudança. É hora de a sociedade tomar consci-
ência de que é preciso procurar novos caminhos. Inclusive, os ricos sistemas dos Estados de
Bem-Estar-Social começam a sentir dificuldades em sustentar a imensa legião de desempre-
gados que abrange grande parcela da população. Os salários começam a ser reduzidos, as jor-
nadas de trabalho tornam-se mais breves e institui-se o contrato temporário, o desemprego
rotativo. Os desempregados não serão mais constantemente os mesmos, mas cada trabalhador
será um desempregado em algum momento. São simulacros que já não enganam a respeito da
gravidade da enfermidade social. É preciso começar a pensar em alternativas e neste exercício
talvez seja útil retomar alguns pensamentos do século passado, apressadamente descartados
pelo abuso de alguns sistemas incompetentes que deles se apoderaram, condenando-os à es-
clerose e ao descarte precoces. Quem sabe, superado o espírito de competição pelo domínio
do mundo, tanto tempo sustentado pelas duas grandes potências hegemônicas, surja um novo
ambiente de liberdade para repensar a sociedade como um espaço onde todos os seres huma-
nos têm o direito de viver dignamente. A era contemporânea, que não se instalou por culpa da
ciência, da tecnologia ou da informática, mas que foi fomentada pelo seu uso unilateral e en-
viesado, não está em sincronia com o homem. Condena-o a viver em seu seio, mas de fato não
permite que viva. Pode apenas vegetar, de corpo vergado, olhando o chão pela vergonha de
não ser mais útil e de, além de não ser mais útil, ser considerado um peso.
A universidade despende um enorme esforço para formar empregáveis que jamais se-
rão empregados. O emprego que a universidade ajuda alguém a conquistar representa necessa-
riamente o sacrifício de outro empregado. Já não se gera nem se cria empregos, apenas os
empregos são disputados. A universidade forma pessoas para que elas vençam esta disputa.
Por isso há que ter cuidado quando se imagina, nas condições atuais, que a formação profis-
sional é o pleno exercício da função social da universidade. O auxílio é prestado àqueles que
conseguem vencer as barreiras de acesso dos famigerados exames de ingresso, o que geral-
mente está reservado aos filhos já privilegiados da sociedade. Estes então terão, ao final de
sua formação, mais condições de vencer a luta. Mas esta luta não é a luta por mais um lugar
de trabalho, mas pelo lugar de trabalho de um outro. Se me perdoam a imagem um pouco gro-
tesca, a sociedade de hoje se assemelha a um animal que, tendo passado por um genial pro-
cesso de evolução, resolvesse usar seus mais avançados conhecimentos e técnicas para racio-
nalizar e otimizar seu sistema de amamentação, reduzindo o número de mamas. Tem sentido:
reduzir-se-ia a quantidade de leite despendido, ao mesmo tempo em que aqueles filhotes que
conseguissem seu lugar teriam leite de melhor qualidade e em maior profusão. Os outros, in-
competentes, é claro, sofreriam, lamentavelmente, a conseqüência: deveriam morrer.
A universidade continua formando para uma sociedade industrial ou, na melhor das
hipóteses, pós-industrial que, conforme mostra Castells, já foi ou pelo menos vem sendo subs-
tituída pela sociedade informacional, na qual
o trabalho e a estrutura ocupacional não podem ser considerados como sendo o re-sultado de uma evolução linear, a sucessão histórica dos setores primários e secun-dários às atividades terciárias. Pelo contrário, há uma mudança fundamental a partir da divisão tecno-organizacional do trabalho a uma matriz mais complexa de unida-des de produção e atividades diretivas que ordenam a lógica do sistema ocupacional inteiro. (CASTELLS 1996, p. 12)
O Brasil tem cerca de 15 milhões de jovens. Desses apenas 20% encontram emprego.
A média de escolaridade é de 4 anos. Diz-se que a maior parte não arruma emprego por falta
de escolaridade. Por isso, na outra ponta, os estudos alongam-se cada vez mais. Acontece que
todo este jogo é, pelo menos em grande medida, ilusório, uma vez que o número de empregos
é objetivamente limitado. A cada novo empregado corresponde um novo desempregado.
Quanto mais qualificados existirem, melhor para as empresas. Mesmo supondo uma situação
em que todos os aspirantes ao emprego fossem muito bem qualificados, o número de desem-
pregados não seria reduzido, apenas os desempregados seriam mais qualificados, como ocorre
nos países do Primeiro Mundo. Quem já visitou cidades européias sabe que não é difícil en-
contrar motoristas de táxi com curso universitário e, até mesmo, com título de doutor.
A universidade encontra-se numa situação extremamente difícil, pois, de um lado, ela
é a instituição em grande medida responsável pela pesquisa científica cujos resultados, na
atual conjuntura, favorecem o capital, e, de outro, é responsável pela formação profissional de
um grande número de pessoas que no mercado não encontrarão trabalho, devido, exatamente,
ao fator inibidor (de trabalho humano) da ciência e da tecnologia mais avançadas. O sistema
produtivo serve-se exatamente dos avanços científicos invertidos em tecnologia para econo-
mizar mão-de-obra humana.
Uma das características mais marcantes de nossa época é o domínio do pensamento u-
tilitarista. Num mundo em que aumenta constantemente a competitividade, a educação é cada
vez mais canalizada para o desenvolvimento das competências necessárias para o mundo do
trabalho e não para a reflexão. A racionalidade e a lógica próprias do mundo da produção, do
mercado e da geração de lucros expande-se para as outras esferas da vida, de modo que tudo
começa a ser medido por tais parâmetros. Até o espaço mais íntimo das relações humanas
acaba sendo invadido pelo pensamento utilitarista: o valor do presente que o convidado rece-
be é estabelecido a partir do valor do presente que recebeu antes. O valor de uma amizade
mede-se pelas vantagens que ela pode trazer, na lógica custo/benefício.
Dos indivíduos exige-se tal eficiência e agilidade no julgamento e posicionamento an-
te os fatos e eventos, que fica inviabilizado o uso da experiência e da reflexão. Tudo é enqua-
drado, avaliado e julgado a partir de esquemas preestabelecidos. O ritmo da vida contemporâ-
nea exclui a experiência como parâmetro de orientação da vida, uma vez que os esquemas a
priori de julgamento, inventados como forma ágil de adaptação dos indivíduos, a tornam dis-
pensável. O indivíduo não pode orientar-se pela racionalidade de sua reflexão que leve em
conta o seu bem-estar, mas deve obedecer à lógica de um sistema que se impõe como única
forma de sobrevivência. Entre sociedade e indivíduo existe uma relação de amor e de ódio. De
amor na medida em que o indivíduo deseja integrar-se a ela para viver e usufruir das regalias
que o sistema lhe oferece, e de ódio na medida em que ele, para tanto, deve sacrificar sua au-
tonomia, sua individualidade e intimidade. De certo modo, é obrigado a abrir mão de si mes-
mo para sobreviver (cf. CROCHIK 1997, p. 33 ss.). De um lado, a sociedade contemporânea,
do mercado e do lucro, está organizada de tal modo que dispensa a adesão dos indivíduos para
sua perpetuação; e, de outra parte, pelo caráter individualizante da informática, ela libera e
fortalece a posição do indivíduo.
A promessa final do computador, ligado às redes globais de comunicação, é colocar todo o mundo do conhecimento e da informação nas mãos do indivíduo isolado [que] escondido na privacidade de seu quarto, sentado em frente a um terminal de computador. (...) se diverte, educa-se, comunica-se com outras pessoas nas estradas da informação e providencia seu sustento prestando o necessário trabalho na econo-mia da informação. (KUMAR 1997, p. 168)
No contexto da passagem da sociedade pós-industrial para a sociedade informática, à
qual me referi acima, Castells fala de sociedade de fluxos. Refere-se aos “fluxos intercambia-
dos através de redes de organizações e instituições”, que, fazendo convergir a evolução social
e as tecnologias de informação, criam novas bases materiais para o sistema social (CASTEL-
LS 1996, p. 23). Dentre os vários níveis de atuação destas redes indicados por este autor, des-
taca-se o fato de que estas redes ‘organizam as posições de atores, organizações e instituições
nas sociedades e nas economias”, bem como o fato de que “a habilidade de gerar novo conhe-
cimento e recolher informação estratégica depende do acesso aos fluxos de tal conhecimento e
informações” (CASTELLS 1996, pp. 23-26).
Do ponto de vista do nosso objetivo, a principal conseqüência desta realidade é que a
habilidade e a capacidade de gerar novos conhecimentos passam a depender do acesso aos
fluxos das redes. Vivemos definitivamente numa sociedade de informação, baseada no conhe-
cimento. Porém, este conceito de fluxo tem conseqüências ainda mais amplas e profundas do
que sua simples operacionalização através das redes informáticas. O próprio conhecimento
tornou-se um permanente fluir, seja do ponto de vista da perda de sua fixidez ou permanência,
seja do ponto de vista de sua geração que é feita de modo interativo com a participação de
muitos pesquisadores e grupos de pesquisa de diferentes partes do mundo. Nesse sentido,
a materialidade das redes e fluxos cria uma nova estrutura social em todos os níveis da sociedade. Tal estrutura é o que atualmente constitui a nova sociedade da infor-mação, uma sociedade que poderia ser chamada sociedade dos fluxos, já que os flu-xos não são feitos somente de informação, mas de todo o material da atividade hu-mana (capital, trabalho, mercadorias, imagens, viagens, papéis mutáveis em intera-ção pessoal etc.). (CASTELLS 1996, p. 29).
Encontramo-nos numa nova fase da experiência humana. Em resumo, estamos viven-
do numa sociedade envolta num processo de profundas transformações, orquestradas, sobre-
tudo, pelos avanços na tecnologia de armazenamento e transmissão de informações. Esta nova
realidade tem reflexos que mudam a sociedade, os indivíduos, as instituições e sua interação.
A universidade e sua vocação
A universidade tem que se preparar para o "choque do futuro" (TOFFLER). Da Idade
Média para a Moderna, concomitantemente com as transformações epistêmicas às quais nos
referimos acima, ocorreu uma profunda transformação da sociedade. Esta passagem implicou
uma igual transformação das instituições sociais. Estado, direito, religião, ciência e também o
sistema de ensino não permaneceram os mesmos. Se é verdade, como opinam alguns autores,
que a sociedade atual está passando por transformações com ordem de grandeza similar às
que ocorreram na passagem da Idade Média para a Moderna, pode-se supor que também as
instituições haverão de passar por transformações de similar ordem de profundidade. Por isso,
a universidade está convocada a repensar suas funções institucionais no interior de uma soci-
edade transformada e em permanente processo de mutação. Este é um ponto importante para
uma avaliação inovadora e prospectiva da universidade. Além de avaliar seu desempenho no
âmbito das tarefas e funções tradicionais, fundadas em determinado modelo social e epistêmi-
co (tarefa que não deve ser abandonada mesmo porque as transformações não são repentinas e
nem abruptas), é preciso que a avaliação reserve espaço para uma reflexão mais radical, vale
dizer, para um repensar dos próprios princípios fundantes do atual modelo universitário. A
universidade não pode simplesmente continuar celebrando as "narrativas" das disciplinas, dos
mestres, da verdade e do conhecimento sem relacioná-las de alguma forma às importantes
questões levantadas pelo pós-modernismo a respeito do significado destas narrativas, de suas
regulações segundo experiências sociais e éticas e de seus pressupostos no que tange à visão
epistemológica do mundo. Para alguns, como Castells (1996, p. 8),
as universidades não parecem ter emergido como sendo as instituições centrais da sociedade pós-industrial: as corporações (tanto privadas quanto públicas), os siste-mas de saúde e escolar e os meios de comunicação são as instituições centrais, pro-fundamente transformadas pelo uso intensivo de novas tecnologias de informação-comunicação.
A linguagem, por exemplo, é um dos elementos centrais a partir do qual se deve re-
pensar significados, identidades e políticas. A universidade continua assumindo a posição
positivista de linguagem, sem atentar para o fato de que a linguagem é construída a partir do
jogo de condicionamentos históricos. Questiona-se hoje radicalmente a visão hegemônica de
representação segundo a qual o conhecimento, a verdade e a razão são governados por códi-
gos lingüísticos essencialmente neutros e apolíticos. Verdade e ciência deixam de ser, neste
contexto, noções fixas e incontestáveis para tornarem-se representações submetidas à constan-
te problematização e crítica.
Se a universidade quiser sobreviver como instituição de pesquisa e produtora do saber,
ela deve ser capaz de integrar-se àquilo que é inovador em nossa época. Caso contrário, outras
instituições - como institutos avançados ou centros de excelência - serão criadas para a produ-
ção de conhecimentos de ponta dos quais a nação necessita. Nesse caso, o risco para a univer-
sidade, já no presente mantida à míngua, será ainda maior, pois poderá ocorrer com ela o que
ocorreu com as universidades francesas no século XIX, quando foram rebaixadas à condição
de primas pobres das Grandes Écoles onde se passou a concentrar a maior parte dos recursos
muito embora a universidade continuasse atendendo a grande massa dos alunos. Segundo
Alain Renaut, na França as Grandes Écoles têm 4% dos alunos e 30% do orçamento destina-
do ao ensino superior. Para o autor,
esta divisão do ensino superior em dois setores paralelos traz, seja dito, uma conse-qüência mais profunda que reside na indiferença, desde então possível, de ver como socialmente legítimo o destino das universidades. Pois se a produção de elites das quais uma nação moderna precisa se efetua em formas mais especializadas de ensino que se encontram nas Grandes Écoles, por que então se preocupar com as universi-dades? (RENAUT 1995, p. 33)
A situação da universidade na França nos remete a refletir, pelo menos em termos de
hipótese, sobre a função da universidade no caso de serem criados centros isolados de pesqui-
sa no Brasil, conforme parece ser intenção do atual governo.
As duas mais importantes vertentes da universidade moderna, a humboldtiana e a na-
poleônica, destacaram, respectivamente, a idéia de uma ciência básica, neutra e independente,
que por si só deveria ser um fator de formação e de orientação das ações do Estado, e o con-
ceito de ciência aplicada que, referida aos interesses do Estado, deveria formar profissionais
para a burocracia estatal e para a própria sociedade. Daí se origina a tensão de duas lógicas
diferentes e muitas vezes opostas que ficou preservada na confluência dos dois modelos. De
um lado, as exigências do mercado de trabalho que espera um profissional capacitado para
integrar-se e desenvolver o sistema produtivo através da competência cognitiva e de suas ha-
bilidades e, de outro, a prática acadêmica regida pela lógica das disciplinas científicas (CU-
NHA 1997, p. 23).
Hoje se costuma dar grande destaque à relação entre a universidade e o setor produti-
vo. Trata-se, sem dúvida, de um aspecto importante do desempenho acadêmico, mas o discur-
so incisivo e, em certos setores fora e dentro da universidade, quase consensual de que a arti-
culação entre a universidade e o setor produtivo é essencial e de que é a partir dele que se me-
de a “utilidade” da academia é, no mínimo, simplificado para não dizer que se encontra carre-
gado de interesses ideológicos. É claro que a cooperação entre universidade e empresa é im-
portante e deve ser estimulada ao máximo, mas é igualmente importante deixar claro que se
trata de uma relação complexa que além das vantagens que ambos os lados dela esperam tam-
bém envolve riscos sobretudo para a universidade. Também não tem lugar um otimismo exa-
gerado uma vez que, em muitos casos, o próprio sistema produtivo descarta a produção das
universidades em termos de cultura, ciência e tecnologia (CUNHA 1997, p. 24). Em muitos
casos, a universidade é lenta demais para o ritmo do mundo empresarial que prefere optar pela
compra de pacotes tecnológicos prontos que têm aplicações imediatas. O produto das pesqui-
sas acadêmicas, oferecido de forma bruta desde o ponto de vista de sua aplicação prática, não
tem condições de ser absorvido pelo sistema produtivo. Isto gera uma grande frustração, so-
bretudo naqueles setores acadêmicos que alimentam a esperança da produção de ciência e
tecnologia nacionais. Reclama-se do desinteresse das empresas pelo investimento na área de
ciência e tecnologia, mas ignoram-se os fatores custo (importar tecnologia pronta é muitas
vezes mais barato) e tempo. Na realidade, trata-se de uma situação perversa uma vez que a
mesma sociedade, a maior interessada na produção de ciência e tecnologia nacionais, exige,
como consumidora, produtos de última geração que só podem ser obtidos ou pela importação
direta dos produtos ou pela compra rápida do know-how técnico-científico para produzi-los.
Os altos subsídios dados pelos governos dos países desenvolvidos do Norte às suas u-
niversidades, como, também, o forte investimento em pesquisa e desenvolvimento pelas em-
presas multinacionais condenam à obsolescência os conhecimentos produzidos em nossas
universidades, em proveito da venda de “pacotes tecnológicos” de marcas e de processos.
(CUNHA 1997, p. 25)
E não há como evitar isso uma vez que os desejos e as necessidades dos consumido-res são gerados pela mídia a partir de produtos dos países mais desenvolvidos que
por condições que não interessa discutir aqui estão sempre muitos anos à frente dos países em desenvolvimento.
Muitas vezes, ao estabelecer laços de cooperação com a empresa, a universidade teme
pela perda de sua autonomia de pesquisa. As empresas estão interessadas em pesquisas que
podem rapidamente ser vertidas em produtos e que venham a gerar lucros. A universidade,
por seu turno, tem interesse na pesquisa básica e quer preservar seu posicionamento crítico.
Segundo Cunha (1997, p. 25),
as universidades da região podem inserir-se no mercado, sem perder sua autonomia, com a condição de determinarem quando, como e para quê farão tal inserção. Mas, sendo fiéis aos seus princípios, elas não poderiam deixar de atuar, também, contra o mercado, cujos mecanismos, tão celebrados nesse momento de globalização hege-monizada, reproduzem eficazmente a miséria e a dominação em nossos países.
Bem se sabe que a universidade não pode simplesmente ser "inquilina da utopia", ne-
gando-se a prestar serviços à comunidade ou desenvolver projetos conjuntos com empresas,
mas, em contrapartida, não pode abrir mão de sua tarefa crítica, abandonando-se à subservi-
ência de reclamos econômicos numa sociedade comandada por grupos de interesse em que
amplas margens da população são condenadas à miséria.
É preciso ter em conta ainda um outro aspecto que muitas vezes passa desapercebido
neste debate sobre a relação entre universidade e empresa. Trata-se da tendência de a univer-
sidade submeter-se à lógica do lucro na medida em que privilegia, no seu relacionamento com
as empresas, as áreas de maior retorno econômico as quais, por isso, tornam-se focos de atra-
ção para boa parte dos alunos e pesquisadores, aliás, pelo poder de atração do retorno econô-
mico, geralmente os melhores. O conhecimento a ser adquirido ou produzido na universidade
passa a ser interessante apenas na medida em que for possível transformá-lo em dinheiro. A
formação científica ou profissional é mais ou menos valorizada segundo seu potencial de lu-
cro. O poder de compra que este garante é a carteira de identidade do homem contemporâneo.
Muda-se a máxima cartesiana “penso, logo existo” para “compro, logo existo”, ou seja, quem
não é capaz de comprar não existe. Mesmo sem dispor de dados empíricos, nossa experiência
nos permite afirmar sem risco que grande parte dos alunos que chegam à universidade apenas
espera que ela lhes transmita conhecimentos e habilidades com os quais futuramente possa
ganhar dinheiro. Com isso, as universidades são obrigadas a competir num mercado acadêmi-
co cada vez mais dominado pela mesma lei da produtividade e do lucro que rege o mercado
em geral. As perguntas fundamentais a respeito do ser humano, da formação, da cultura e da
ética são ridicularizadas no interior da academia como “coisas que não servem para nada”. O
lucro, diz Forrester (1997, p. 19), torna-se:
a única lógica, como a própria substância da existência, o pilar da civilização, a ga-rantia de toda a democracia, o móvel (fixo) de toda a mobilidade, o centro nervoso de toda a circulação, o motor invisível e inaudível, intocável de nossas animações"
E, referindo isto à universidade, Renaut (1995, p. 23) não entende por que
a gente não se pergunta jamais se a incapacidade de tantos universitários de partici-parem, com suas competências, dos debates atuais não seria um dos mais cruéis in-dícios do rebaixamento contemporâneo da universidade.
É claro que este não é um problema exclusivo da universidade e talvez nem nasça em
seu seio, mas é sem dúvida parte de sua missão contribuir para superá-lo. Trata-se, no fundo,
de salvar a dimensão mais profunda do homem preservando-o de sua exteriorização total no
material. Para a universidade trata-se de uma questão ética que afeta a essência de sua ativi-
dade e de seu sentido social. O que queremos dizer é que o sentido social da universidade está
sendo abreviado e reduzido à função de prestar serviços e cooperar com empresas. Sem negar
que isto possa também ser socialmente relevante, acreditamos que o sentido social da univer-
sidade vai muito além disso.
A universidade não pode mais voltar-se exclusivamente para o desenvolvimento unila-
teral da ciência e tecnologia como se esta perspectiva exaurisse o projeto humano. Há outras
questões vitais para a sociedade e para a comunidade a partir das quais a comunidade decide
seu futuro. Habermas critica com muita razão a universalização da racionalidade técnica e
instrumental que torna a sociedade, como já dizia também Max Weber, não uma comunidade
de seres humanos que convivem a partir da adesão a normas dialogicamente estabelecidas,
mas um complexo administrado pela imposição de normas técnicas. Ciência e tecnologia que
encontram sua justificativa na eficiência assumem um papel fortemente ideológico na medida
em que fogem da reflexão crítica uma vez que as regras técnicas requerem aceitação incondi-
cional. Parece-nos, por isso, que a universidade, para além de seus evidentes deveres no cam-
po da ciência e tecnologia, deve sentir-se responsável também pela emergência de uma nova
responsabilidade favorável à reconstrução de uma sociedade que, sem rejeitar os ganhos da
ciência e tecnologia, seja capaz de reinventar uma cultura mais humana.
A universidade deve retomar seriamente a questão de sua função social na tensão da
cultura e da profissionalização. É preciso encontrar um novo equilíbrio entre a formação téc-
nico/profissional e a formação humanista/cultural. Para isso, é necessário que a universidade
leve a sério, em todas as áreas de atuação, sua função cultural. Não se trata apenas de abrir
pequenos espaços no currículo para a abordagem de temas humanísticos ou de artes, mas de
ampliar com todo o rigor o conceito de formação acadêmica. Isto implica uma revisão pro-
funda da prática acadêmica à qual estamos acostumados atualmente.
Para tanto, não se deve partir de idéias gerais a respeito da identidade ideal da univer-
sidade para, em seguida, tentar aplicá-las normativamente, como se fazia tradicionalmente,
mas construir um novo modelo universitário com base na realidade concreta da sociedade e
do homem de hoje. Para isso, nem o local nem o global devem ser considerados isoladamente,
mas ambos como fatores inter-relacionados que determinam a sociedade e o homem. É, por-
tanto, mister que a universidade desenvolva a necessária sensibilidade social para que, reco-
nhecendo seus problemas e suas necessidades, possa instituir sua nova identidade e desenvol-
ver estratégias de atuação. O debate sobre as funções da universidade deve, por conseguinte,
ser posto desde uma perspectiva contemporânea, preservando proximidade com as questões
mais relevantes da sociedade, tal como elas se apresentam na realidade.
Esta aproximação com o local e o regional representa, de certa forma, um nadar contra
a corrente, pois são hegemônicos aqueles interesses que correspondem à racionalidade cientí-
fico-tecnológica, marcada por uma lógica universalizante que estandardiza formas de ser, de
pensar e de agir, próprias do homem concreto, inserido em sua comunidade e cultura. Com
relação a este surto homogeneizador, as características e os modos de ser locais são curiosa-
mente considerados alienados. Na sociedade contemporânea, o homem está ameaçado por um
processo de desenraizamento quanto à sua cultura e à perda de sua identidade. Mais sério é
este risco para as gerações mais jovens que se formam num ambiente de fratura e sem perten-
ça no qual a mídia exerce uma influência avassaladora e sem precedentes na desconstrução da
identidade cultural e na elaboração de identidades fluidas e fragmentárias. Neste meio, con-
forme diz Henry Giroux (1996, p. 73),
os valores já não nascem a partir de uma pedagogia modernista de fundamentalismo e verdades universais, nem de discursos tradicionais baseados em identidades fixas e com uma estrutura final.
Esta realidade constitui talvez o maior desafio para a educação nos dias de hoje, pelo
menos se acreditamos que o homem é algo mais que mero objeto de mercado e que a educa-
ção deve contribuir para formar este algo mais no homem. Uma das principais tarefas será a
de recuperar o espaço humano que já foi perdido. Refiro-me em especial à deplorável situação
em que se encontra considerável parcela dos jovens da nova geração. É uma geração que já
não aspira a coisa alguma, desnorteada e fragmentada, que espera passar o tempo, que vê a
morte e a vida como um espetáculo, que não sente responsabilidade social, que cultua a ime-
diatez do momento, da experiência e do prazer. A droga é um prazer assim imediato e repre-
senta a fuga de um mundo sem sentimento e sem esperança. Tudo é fluido, precário, relativo.
Nada mais abriga nem obriga; nada mais entusiasma, desafia ou compromete. O homem, a
sociedade e a própria vida sofrem de uma profunda carência de sentido. Este mal, talvez o
mais terrível dos nossos tempos, deverá um dia ser enfrentado, quem sabe quando o refúgio
da atividade frenética, que a todos agita, ocupa e aliena, não oferecer mais proteção suficiente.
A pergunta que se coloca para os educadores, e partimos do princípio de que todo pro-
fessor universitário deve também ser educador além de cientista e pesquisador, é se já não
estão confrontados com um novo tipo de ser humano, forjado na organização de princípios
criados pela intersecção da imagem eletrônica que veicula programas como Faustão, Gugu
Liberato ou Silvio Santos, como representantes da cultura popular e do sentimento fatal de
indeterminação. O individualismo que estes programas transpiram tem muitas faces, sendo a
principal a da irresponsabilidade social inescrupulosa. Uma química fatal que mistura indivi-
duação, privatização e desidentificação e funde “as fronteiras entre Estado e sociedade, entre
esfera pública e privada, entre sociedade e indivíduo” (KUMAR 1997, p. 180). Hoje, confir-
mam-se muitos dos temores manifestados por Adorno quando, já na década de 1930, manifes-
tava sua crítica com relação à indústria cultural. A mídia, conforme diz Kumar (p. 134),
não apenas comunica como constrói. Em sua pura escala e ubiqüidade, ela está cons-truindo um novo ambiente para nós, um ambiente que exige uma nova epistemolo-gia social e uma nova forma de resposta.
O consumismo, diz o mesmo autor em outra passagem,
invadiu os assuntos corporais e sexuais, a publicidade tem procurado nos conscienti-zar de novas ansiedades de identidade e segurança pessoal e garantir-nos que há mercadorias e serviços que podem satisfazer todas as nossas necessidades e aliviar todos os nossos medos. (p. 200)
A cultura do homem que na história representa seu esforço de libertação e a luta por
sua autonomia biológica e espiritual é hoje um instrumento de submissão, adestramento e
embotamento do homem. A questão da cultura não é apenas um problema individual, mas
"ela tornou-se ‘um produto por direito próprio’, o processo de consumo cultural não é mais
simplesmente um apêndice, mas a própria essência do funcionamento capitalista" (p. 126).
Veja-se a relação ou mesmo a fusão que se estabelece entre cultura e comércio que pode ser
constatada no papel decisivo da publicidade que exerce na cultura contemporânea. Na medida
em que o homem pode, isto é, quando suas condições intelectuais e econômicas permitem, ele
torna-se frio, distante dos conflitos sociais, da angústia, da dor e do sofrimento dos excluídos.
A própria ciência, através da suposta exigência metodológica do distanciamento, assume neu-
tralidade ante este objeto. Esta neutralidade e independência de seus objetos lhe confere o
direito da generalização e aplicação de seus resultados a qualquer campo. Nesse contexto,
coloca-se a questão da relação entre ciência, a qual representa, conforme Habermas, o interes-
se técnico de domínio e aproveitamento da natureza, e a ética que, segundo o modo de ver do
mesmo autor, representa o interesse prático ou o domínio das decisões práticas do ser huma-
no. Progressivamente, o indivíduo se distancia da cultura (CROCHIK 1996, p. 46), dos im-
passes da sociedade em que vive. O homem reage com a fuga ante os graves problemas soci-
ais que tanto mais o envergonham quanto melhores são as condições científicas e técnicas
para resolvê-los. Isto não significa que o indivíduo se torne mais autônomo, pois sua frieza,
seu isolamento e seu distanciamento vão de passo com sua submissão às regras técnicas que
servem como justificativa ante a falta de vontade coletiva de resolver os problemas. As regras
técnicas administram homens e coisas, impedindo que os indivíduos ajam segundo sua pró-
pria consciência.
Talvez as universidades regionais, por vocação mais próximas do homem do interior,
possam poupar-lhe esta dolorosa travessia pelos caminhos errantes da razão moderna, desvia-
da de seus objetivos de raiz, isto é, da construção de uma sociedade melhor e de um homem
mais feliz. Kant queria que a razão conduzisse o homem à sua maioridade, dominador de seu
entorno e dono de seus atos. O que aconteceu foi este mundo científico-tecnológico cujas re-
gras, em muitos sentidos, são a gaiola de ouro do homem contemporâneo, como já insinuava
Weber. Esta sociedade tecnológica tem, de fato, necessidade não apenas de técnicos seguros
de suas competências especializadas, mas também de líderes capazes de tomar decisões e de
fazer opções de maior amplitude, de desenvolver uma visão mais ampla da área à qual seus
saberes e suas habilidades técnicas se aplicam (cf. RENAUT 1995, p. 226).
“Universidade” não é um conceito unívoco. Há universidades de diferentes tipos e es-
tes se definem pela sua vocação. Esta vocação define-se, por sua vez, a partir do contexto so-
ciocultural na qual ela está envolvida, dos objetivos que cada instituição se propõe e dos re-
cursos humanos e materiais de que dispõe. Só isto seria assunto para longos debates. Para
dizê-lo de forma muito pragmática e sucinta, cada universidade precisa assumir sua história e
sua identidade na intersecção com o ambiente no qual está inserida. Assim, a particularização
e a diversidade são a outra face da universalização e padronização do movimento contempo-
râneo da globalização. Pode-se dizer que os dilemas da universidade giram em torno do uni-
versal/local e do social/individual. E é neste sentido que vemos não apenas o caminho por
onde as universidades chamadas regionais ou comunitárias devem caminhar, mas a importan-
te missão que têm a cumprir no cenário acadêmico nacional no que diz respeito ao atendimen-
to das necessidades de populações regionais como também ao conhecimento, ao reconheci-
mento, à preservação e ao desenvolvimento de culturas locais. De outra parte, não se pode
amordaçar as universidades com vocação e recursos para o desempenho de um papel mais
amplo e universal no campo das ciências básicas, das ciências humanas e da cultura.
Conclusão
Na primeira parte buscamos desenhar, em rápidos e parciais traços, as grandes trans-
formações que estão ocorrendo no presente momento histórico com conseqüências profundas
para o indivíduo e para a sociedade. Foram destacados sobretudo o importante papel da in-
formática como elemento essencial deste processo de transformação e a centralidade da pro-
blemática do trabalho ou melhor do não-trabalho.
Em seguida, voltamos nossa atenção para a universidade, supostamente a instituição
precipuamente encarregada da produção e divulgação de conhecimentos. A universidade que
temos ainda está presa às suas raízes modernas e precisa agora encontrar sua identidade e fun-
ção no novo cenário epistemológico e social. Defasada com relação às principais característi-
cas da sociedade contemporânea, a universidade precisa repensar de forma profunda sua fun-
ção e identidade no momento histórico atual. Um dos aspectos desse processo deve ser, a nos-
so ver, a recuperação de sua função crítico-cultural.
Estes dois movimentos do texto estiveram constantemente assistidos pelo interesse da
relação entre ciência e sociedade, desde o ponto de vista da universidade. Constata-se que a
universidade subordinou-se às normas do mercado, passando a instrumentalizar pessoas para
determinadas tarefas ao invés de formar indivíduos. O próprio indivíduo abriu mão de si
mesmo, de sua formação como ser humano global (que conhece, sente, ama, chora e sofre)
para atender exclusivamente aos requerimentos do sistema tecnoeconômico. Ficou reduzido a
uma função no sistema.
Nesse sentido, a nova realidade que se delineia para as próximas décadas não é apenas
um dado que deve ser incorporado pela universidade, mas representa, na atualidade, seu maior
desafio. Tanto ela deve pensar criticamente esta realidade e contribuir para seu dimensiona-
mento humano, quanto deve repensar sua própria função e identidade na perspectiva das mu-
danças que ocorrem.
Acreditamos que os fundamentos, assim colocados, podem servir como subsídio para
o estabelecimento de uma política universitária no campo da ciência e tecnologia e, também,
para dar início a uma reflexão mais ampla sobre os fundamentos da universidade na sociedade
de hoje.
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