cap. 1 - a construção do ponto de vista por meio de formas referenciais

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Este artigo demonstra como construir um ponto de vista em um texto opinativo ou narrativo através dos mecanismos e estratégias de referenciação.

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  • COMITt EDITORIAL DE LINGUAGEM

    Anna Christina BentesEdwiges Maria Morato

    Maria Cecilia P. Souza e SilvaSandoval Nonato Gomes-SantosSebstio Carlos Leite Gonalves

    CONSELHO EDITORIAL DE LINGUAGEM

    Adair Bonini (UFSC)Ana Rosa Ferreira Dias (PUC-SP /USP)

    Angela Paiva Dionisio (UFPE)Arnaldo Cortina (UNESP - Araraquara)

    Cllia Cndida Abreu Spinardi [ubran (UNESP - Rio Preto)Femanda Mussalim (UFU)

    Heronides Meio Moura (UFSC)Ingedore Grunfeld Villaa Koch (UNICAMP)

    Leonor Lopes Fvero (USP/PUC-SP)Luiz Carlos Travaglia (UFU)

    Maria das Graas Soares Rodrigues (UFRN)Maria Luiza Braga (UFRJ)

    Maringela Rios de Oliveira (UFF)Marli Quadros Leite (USP)

    Mnica Magalhes Cavalcante (UFC)Neusa Salim Miranda (UFJF)

    Regina CliaFemandes Cruz (UFPA)Ronald Beline (USP)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do livro, SP, Brasil)

    Referenciao: teoria e prtica / Mnica Magalhes Cavalcante, Si1-vana Maria Calixto de Lima, (orgs). -- So Paulo: Cor tez, 2013.

    Vrios autores.ISBN 978-85-249-2009-7

    1. Referncia (Lingustica) I. Cavalcante, Mnica Magalhes. lI.Lima, Silvana Maria Calixto de.

    13-00171 COD-41O.2

    ndices para catlogo sistemtico:1. Referenciao : Lingustica 410.2

    ~'.'>, :'O"-r:

    Mnica Magalhes CavalcanteSilvana Maria Calixto de Lima

    (Orgs.)

    Referenciao:teoria e prtica

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  • CAVALCANTE LIMA

    Tendo em vista que, para o tratamento desses temas, os autoresrecorreram a textos de diferentes prticas sociais, entre as quais podemosdestacar o gnero notcia de jornal, o texto de divulgao cientfica e aredao escolar (particularmente, a de alunos surdos), o leitor desta obrapoder ainda ampliar os horizontes de anlise do texto/ discurso emrelao constituio de diferentes gneros do discurso, ponderandosobre suas formas de ocorrncia e de emprego nas mais diversas situa-es de interao.

    Assim sendo, podemos dizer que os autores dos captulos, ao mes-mo tempo em que trazem discusso um campo terico rico para otratamento do texto, com o entrecruzamento de diferentes vieses teri-cos, abrem tambm a perspectiva para anlise de elementos estritamen-te lingusticos.

    Por essa razo, este livro pode ser valioso para professores de Ln-gua Portuguesa, para pesquisadores da rea da Lingustica, para alunosde graduao e de ps-graduao. Especialmente para o meio acad-mico, os estudos aqui presentes contribuem significativamente para aspesquisas em referenciao, com vistas discriminao de critrios para(re)construo da coerncia textual-discursiva.

    Esperamos que, qualquer que seja o ensejo, os estudiosos da reade Lingustica encontrem, nesta publicao, uma fonte instigadora denovas pesquisas atinentes a muitos outros aspectos ligados leitura e escrita.

    As OrganizadorasSetembro de 2012.

    ~'.'.:.:~i

    9

    1A construo do ponto de vistapor meio de formas referenciais

    Suzana Leite (artezIngedare G. Villaa Koch

    Introduo

    Ao "retrabalharern" as formas sociais e culturais no discurso, osindivduos exprimem relaes entre si e afirmam posio, representan-do pontos de vista. Esta representao de saberes e de comportamentoslinguageiros pe em destaque fenmenos de heterogeneidade discur-siva. na medida em que o locutor / enunciador coloca em cena umamultiplicidade de pontos de vista e os faz dialogar entre eles.

    A complexidade desta questo evidencia a dimenso dialgica doponto de vista. Isto significa dizer que a relao do sujeito com as ins-tncias que povoam seu discurso pode ser detectada a partir dos" obje-tos de discurso", assim como os ajustes que o prprio locutor opera emseu ponto de vista. Por essa razo, a construo dos objetos de discursohomologa traos de um dilogo interior do sujeito enunciador consigo

  • 10 CAVALCANTE LIMA

    mesmo e com os outros, desempenhando papel importante na orientaoargumentativa do texto. Com base nisso, partimos do pressuposto deque os objetos de discurso so reveladores de pontos de vista, e seu modode apresentao um meio pelo qual se pode apreender a subjetividade.

    Alm disso, se consideramos que a compreenso da referncia poruma perspectiva no representacional pe em evidncia uma plural i-dade de atores que efetivam o ato de designao, ento podemos dizerque, por este ato, os sujeitos do sentido s suas experincias e repre-sentaes, sua identidade e sua posio, por meio da qual se cons-tituem e se afirmam no interior das prticas simblicas. "A referenciaodos objetos de discurso articula-se com a maneira como o locutor/enunciador se posiciona em seu discurso" (Rabatel, 2005, p. 118). Omesmo se d com as escolhas que determinam o modo de apresentaodos referentes. Segundo Rabatel (2008, P: 121), estas escolhas so "alta-mente reveladoras do ponto de vista do enunciador", sendo mais umaevidncia de que o modo de apresentao dos referentes comporta S3-beres e marcas de um modo de falar e pensar prprio de um enunciadorparticular. Por essa razo, o ponto de vista (PDV) no se limita expres-so de uma percepo e integra julgamentos e conhecimentos que olocutor e/ ou enunciador projetam sobre o referente.

    Assim, indispensvel analisar mais atentamente as formas refe-renciais, por meio das quais se exprime a representao de falas e per-cepes. De um ponto de vista cognitivo, na construo dos objetos dediscurso, um PDV revela uma fonte enunciativa e denota, direta ou in-diretamente, os seus julgamentos sobre os referentes. Seja como for, oPDV se apresenta abertamente ou de forma mascarada, manifestando-seem todo o discurso.

    A expresso lingustica do ponto de vista: processo desingularizao em representao

    As formas nominais que participam da progresso referencia! dotexto (Koch, 2002; Koch e Marcuschi, 1998) testemunham a expresso

    REFERENClAAO: TEORIA E PRATICA11

    do PDV nesse processo de representao. Em consonncia com Rabatel(2008, p. 76), consideramos que as formas nominais referenciais, en-quanto marcas internas do PDV, so "sinais de alteridade". O dialogis-mo, portanto, pode manifestar-se seja como uma representao do 10-cutor/enunciador em relao a si mesmo (autodialogismo), seja comouma representao do locutor/enunciador com relao aos outros (he-terodialogismo). Tanto a autodialogizao quanto a heterodialogizaopodem assumir a configurao de uma reformulao do que foi profe-rido no contexto anterior ou mesmo no hic et nunc do texto. De qualquerforma, ns consideramos que esses dois mecanismos do dialogismoesto na base do processo de singularizao.

    Para compreender esta questo, indispensvel hierarquizar as re-laes entre os enuncia dores, sem supervalorizar o locutor, que no podeser concebido como um "eu" todo-poderoso. Por isso, a disjuno e, maisainda, a hierarquizao dos enunciadores e dos locutores so necessriasem todos os enunciados dia lgicos em que locutor e enunciador no estoem sincretismo, de sorte que pode haver mais enunciadores que locutores,ou seja, mais contedos representados do que locutores que falam.

    Como postula Rabatel (2010, p. 9), a disjuno locutor / enunciadorleva em conta as possibilidades de o locutor apresentar-se como eriun-ciador, para focalizar objetos de discurso, posicionar os fatos, as palavras,os discursos, as noes, as situaes, os eventos, os fenmenos desse oudaquele PDV, no presente, no passado ou no futuro, em relao a si ouem relao ao PDV de outros. Como consequncia,

    identificar um enunciador no discurso implica procurar sua presena pormeio da referenciao dos objetos de discurso [...], e precisar se o enun-ciador aquele que est em sincretismo com o locutor / enunciador pri-meiro, ou, na falta disso, definir a posio de L1/El [locutor / enunciadorprimeiro] em relao a ele (acordo, desacordo, neutralidade). A referen-ciao no jamais neutra, mesmo quando os enunciadores avaliam,modalizam ou comentam o menos possvel1 (Rabatel, 2008, p. 70)

    1. Reprer un nonciateur dans le discours implique de rechercher sa prsence travers Iarfrenciation des objets du discours [...], puis de prciser si l'nonciateur est celui qui est en syn-

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    Assim, a anlise da subjetividade do locutor e dos enunciadoresinternos aos enunciados deste locutor atinge profundamente a proble-mtica do PDV O locutor responsvel pela escolha da denominao,pela seleo das informaes, das percepes e das palavras enquantolocutor / enuncia dor. Para isso, o locutor considera as relaes entre suaprxis individual e social, e sua prxis lingustica, em funo de seuauditrio e do gnero do discurso.

    No que concerne s formas nominais referenciais, postulamos quea seleo lexical testemunha a existncia de um ou mais enuncia dorespor meio dos quais os fatos so apreendidos e os objetos de discursodesignados. Desta maneira, os objetos de discurso no estabelecem umarelao de correspondncia com a realidade, e a referncia no consisteapenas em uma questo de convencionalidade lingustica, pois o lxicofunciona como um conjunto de recursos para o processo de referencia-o. Para Mondada e Dubois (1995), a instabilidade das formas de refe-rncia, ou dos prprios objetos de discurso, depende muito mais damultiplicidade de pontos de vista que os sujeitos exercem sobre o mundo,do que de um contrato imposto pela materialidade do mundo. Aquiloque dito estvel sobre um objeto pode ser descategorizado, recatego-rizado sob efeito de uma mudana de contexto ou de ponto de vista:

    Uma categoria lexical impe um ponto de vista, um domnio semnticode referncia, q'..leconcorre com outras sugeridas, produzindo sentidopelo contraste que estabelece com as anteriores. O discurso marca expli-citamentea no correspondncia entre palavras e coisas, e a referenciaoemerge dessa distncia, da demonstrao de inadequao de categoriaslexicaisdisponveis - a melhor adequao construda no seio de suatransformao discursiva. (Mondada e Dubois, 1995, p. 286)

    Se a forma de lidar com o lxico no processo de referenciao im-plica urna atividade seletiva que aponta para um enunciador, um sujei-

    crtisme avec le locuteur/nonciateur primaire, ou, defaut, de prciser Ia position de L1/E1envers lui (accord, dsaccord, neutralit). La rfrenciation n'est jamais neutre, mme lorsque lesnonciateurs valuent, modalisent ou commentent le moins possible.

    REFERENClAAO: TEORIA E PRATICA 13

    to que focaliza um contedo, ento possvel dizer que a construodos objetos de discurso est diretamente relacionada construo doponto de vista. Nesta medida, o ponto de vista inscreve o sujeito, sendotestemunho da relao sujeito-objeto. Mesmo que o sujeito no fale, possvel perceber sua presena pelo modo de apresentao do objetode discurso e, para isso, a seleo lexical tem um papel muito impor-tante. Obviamente, as coisas no so simples assim, porque a apresen-tao dos objetos passa necessariamente por um jogo dialgico do qualparticipam diferentes enunciadores. Assim, necessrio diferenciaraquele que assume um contedo de percepo, o locutor / enunciadorprimeiro (L1/E1), porque fala, daquele a quem determinado contedo imputado, o enunciador segundo. Como este ltimo no fala no mo-mento da enunciao, sendo seu PDV uma representao, admite-se queele tenha assumido a palavra em contexto anterior, o que nem sempre uma garantia, j que ele pode discordar daquilo que L1/E1lhe impu-ta. Por essa razo, a inscrio do sujeito no se d apenas quando esteassume a palavra e/ ou fala, porque ele pode se inscrever pela represen-tao que o outro lhe atribui.

    Nisto reside a dimenso argumentativa da relao sujeito-objeto,ou melhor, a orientao argumentativa dos referentes no discurso, quepassa no s por um querer-dizer que influencia a construo do senti-do, mas tambm por um jogo enunciativo de afirmao de iJentidadese posies. A afirmao de identidade, como tributria da "apresentaode si", passa pelo estabelecimento de posies. Contudo, a afirmaode si nem sempre ancorada por um "eu", tampouco precisa ser ma-nifestada explicitamente pelo "eu sou", "eu acho", "eu penso", "eudefendo". L1/El pode afirmar-se pela incorporao do PDV de outrosenunciadores em consonncia ou dissonncia, que ele pode tomar parasi ou imputar aos outros.

    Ainda que no fale diretamente sobre como percebe ou interpre-ta determinado contedo, L1/El argumenta construindo objetos dediscurso e pondo mostra aquilo que deseja fazer perceber sobre umcontedo (isto inclui a sua imagem no discurso), o que, por sua vez,j alvo de uma percepo anterior ou futura, que se atualiza no aqui

    r

  • 14 CAVALCANTE LIMA

    e agora do discurso. Essa percepo pode ser de outro enunciador oupode ser instaurada no discurso como sendo do prprio locutor. Tudodepender de como L1/E1 marcar sua posio em meio a outrasposies, ou seja, de como articular seu ponto de vista a outros pon-tos de vista que, juntos," ancoram um ou mais contedos de percepono discurso. Por ltimo, um mesmo objeto de discurso pode assinalardois PDV, configurando um empilhamento de PDV, conforme postulaRabatel.

    Se considerarmos ainda que o encadeamento referencial contribuipara o processarnento da argumentao, isto implica dizer que a cons-truo, O desenvolvimento e o modo de apresentao dos referentes ,em grande medida, responsvel pela orientao argumentativa dotexto. Tal orientao evidencia um trabalho sobre o contedo do dis-curso, inserindo o sujeito produtor do texto nessa prtica discursioa. Aindaque a insero do sujeito no processo de referenciao no seja umapreocupao de alguns autores que tratam da referncia, como Apo-thloz e Reichler-Bguelin (1995), estes autores afirmam que as desig-naes no podem ser feitas independentemente da instncia que as-sume posio. Rabatel (2004, p. 2) acrescenta que "a construolingustica dos objetos percebidos e a construo lingustica do sujeitoda percepo so indissociveis. ou mesmo interdependentes, sendo areferenciao uma das condies (e uma das garantias) da referenciaodo sujeito (e vire-versa)"."

    Assim, ao articular o estudo da referenciao abordagem doponto de vista, nossa preocupao no apenas com a introduo, ar-ticul~Oe progresso dos referentes para a coeso e conduo tpicado dISCurSO,mas tambm com omodo de apresentao dos objetos. Estapreocupao com o modo de apresentao dos objetos de discurso pe,necessariamente, em evidncia a relao sujeito-objeto, e permite ana-

    2. Juntos no implica necessariamente consonncia.3. La construction linguistique des objets perus et Ia construction linguistique des objets

    percevants sont indissociables, voire interdpendents, Ia rfrenciation tant une des conditions(et un de garants) de Ia rfrenciation du sujet (et rciproquement).

    REFERENClAAO: TEORIA E PRTICA15

    lisar a construo do PDV por meio das formas referenciais. O modo deapresentao, ainda que considere essencialmente as formas nominaisem posio anafrica e catafrica, no exclui as predicaes como formassubsidirias para a construo e interpretao dos referentes.

    Dessa forma, compreendemos que, inserida em uma dimensodialgica, a seleo lexical s tem sentido na relao com mecanismosde representao do dizer (auto- e heterodialogizao). Em outras pa-lavras, a seleo lexical das formas nominais enquadrada pela repre-sentao, tanto aquela que o sujeito faz de sua fala ou percepo, auto-dialogizao, como aquela relativa percepo do outro,heterodialogizao. Indiscutivelmente, a seleo lexical enquadradapela representao desempenha papel capital para "dar corpo" pers-pectiva do enunciador, para recordar ou manifestar a sua presena pormeio do modo de apresentao dos objetos (Rabatel, 2008, p. 70). Domesmo modo, esta relao intrnseca entre as formas nominais e a ex-presso dos PDV est diretamente relacionada aos modos de posicio-namento lingustico da subjetividade, particularmente como um pro-cesso de singularizao em representao. Sendo assim, esses modos deposicionamento revelam que a subjetividade (ou a insero do sujeitoprodutor do texto no discurso) d-se por graus variados de manifesta-o da presena. Por essa razo, no se sustenta uma distino radicalentre subjetividade e objetividade. Nesse contexto, a to propaladaneutralidade, caracterstica grosseiramente atribuda a textos informa-tivos, cientficos ou de cunho mais formal, seria apenas a tentati~a ~ecausar um "efeito de objetividade" por parte do locutor-enuncia9-e5r,como se as coisas fossem representadas ou contadas por si ss dessaaparente correspondncia com o mundo e com uma s verdade. \

    Exemplificao

    o texto a seguir urna crnica extrada do blog Ano do Rubito naFrana. Este blog rene crnicas bem-humoradas a respeito da vida de

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    um doutorando brasileiro na Frana. Ao expor suas impresses sobrecertos estranhamentos culturais na crnica "Obesidade mrbida", olocutor / enunciador tece argumentos a respeito de dois fatos principais:a prtica comum de beber gua da torneira e o curso de tratamento detexto para a tese.

    (1) Segunda-feira, 5 de abril de 2010

    Obesidade mrbida

    Cada um tem sempre uns pecaditos a serem pagos neste mun-do de meu deus. Alis, minha vida tem sido uma penitncias, desde que cheguei. Acho que j estou com crdito para asprximas encarnaes, que, espero, sejam menos rduas quea de doutorando na Frana. Por exemplo, aqui se obrigadoa beber gua da torneira. Ora, isso alm de deselegante sel-vagem. E, acredite, por essas bandas, o bebedouro, esse obs-curo objeto de desejo, to desconhecido quanto as estranhasmercadorias oferecidas pelos ciganos aos habitantes de Ma-condo. Voc,que conhece o Cem anos, de Garcia Marques, devese recordar das primeiras cenas do livro, principalmente doespanto dos Buenda, os moradores daquela aldeia, ao desco-brirem, sempre embasbacados, as mercadorias inslitas queeram levadas pelos tais ciganos. Me lembro [sic] de como elesficaram maravilhados quando viram e, sobretudo, tocarampela primeira vez o gelo que lhes era oferecido como merca-doria rarssima. Aquilo parecia queimar, parecia vivo e eraincrvel, maravilhoso. Mais chocante ainda foi quando se as-sustaram com a boca que saa nas mos dos ciganos-vende-dores: era a boa e velha dentadura. Tudo era aterrorizante eno menos sensacional: fantasmtico. As 7Faces do Or. Lao?

    Mas, fechando parntese e voltando ao bebedouro, precisoesclarecer que aqui em Lyon j existe um objeto chamadogarrafinha de gua mineral, mas eu no vou ficar comprandogua em garrafinhas, porque d muito trabalho; sem exagero.

    "~'

    17REFERENClAAO: TEORIA E PRATICA

    E se a garrafinha for garrafona, pior ainda, porque pesadotransportar. Aqui no tenho carro. S ando de bicicl~ta ou ap (Eh, croissant doce, mas no mole n~o!). No fm~~dascontas todo mundo diz que a gua da torneira por aqUI e po-tvel, mas como bom brasileiro eu desconfio, e como bomestudante sem dinheiro pra rasgar, bebo. E finjo que no comigo. Uma vez, veja o absurdo da situao, flagrei ~ me-nino atracado com uma coisa no banheiro. Ele estava aJoelha-do e, curvado, sugava vorazmente algo protuberante. Aquilofoi estranho. Muito estranho. S depois percebi que o momen-to kama sutra tava rolando com a torneira da pia. Tudo issoporque Lyon, apesar de ser o bero da stima arte, .a cida~edos irmos Lurni re - inventores do cinema -, ainda naodescobriu o bebedouro. Precisamos dar uma aula de civiliza-o para esse povo. Esses chicos franceses ...

    No entanto beber gua da torneira no nada se comparado maior expiao que tive de encarar por causa dos meuspecados avoengos (boa essa palavra'). Chama-se: TTT ouTratamento de Texto para a Tese. E, tenho certeza, me propor-cionou bons cem pontos no carn do ba celestial. O tal r:r o nome do curso que fui obrigado a engolir. E engoli. Ate aprimeira aula eu no sabia muito do que se tratava. Acheiinclusive muito chique. Mas logo nos primeiros momentos daprimeira manh gelada descobri que era um curso de, acredi- (te Word 2003! E essa agora ... Quem me conhece sabe que o~eu apego pelainformtica proporcional ao amor do Zida-ne pelo Materazzi na final da Copa de 2006. ~a real: e~ ~deIOquem ama o mundo da tecnologia. Eu odeio ~ histria debaixar programas. Eu odeio rguas de tabulaao. Eu odeiosaber qual o novo antivrus. Eu quero a Idade da Pedra(uga-uga), quando nossos tratratratravs pichavam as c~v~~-nas. Pelo menos no tinham de escolher fonte, tamanho, itli-co, folha de estilos. E quer saber, tem coisa mais bizarra do queaquelas janelinhas com conselhos do Windows?? Elas sempre

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    aparecem gentilmente e com sorriso nos grandes lbios virtuais[opa] perguntando se voc t precisando de alguma coisaquando voc est louca e desesperadamente precisando devrias coisas, mas sabe que a pororoca da "soluo" que elesvo te oferecer no vai trazer a resposta de que voc precisapara resolver a pururuca do problema que qualquer pessoa,qualquer recm-nascido, MENOS VOC, saberia resolvernaquele momento. (Agora pode respirar, leitor, que eu fiqueium pouco nervoso. Foi mal.)

    O tal Tratamento foi brabo. Mas, corno disse, encarei. No tevejeito. E d-lhe expiao! No entanto o curso teve momentosburlescos. Por exemplo, nunca vou esquecer a cara do profes-sor quando nos chamou frente da sala para nos mostrar algoque parecia fascinante, incrvel (As 7 Faces do Dr. Lao??). Oquerido monsieur arregalou os olhos e, quase em xtase, nosensinou, em bom francs, a arte do ...Ctrl C/ Ctrl V (os queri-dos "copiar e colar")! E no tem Garcia Marques que possadescrever a cara do tio nos ensinando tal tcnica. Ele olhava oMac (McIntosh, para os ln) com tal fascnio, manejava o tecladocom tantapaixo que eu julguei no estar compreendendo seo que ele estava querendo dizer era de fato o que ele estavadizendo (tava ensinando a copiar e colar mesmo?! Qual, jaca-r...). Era o prprio cigano fazendo o truque da dentadura.Vivi meus quinze minutos em Macondo. Pior que ele repe-tiu esse gesto de nos chamar frente outras vezes, para exibiro mundo de Oz da informtica. Nunca achei que os francesesamassem tanto o tal conirol C control V. Esquisitos ...

    E, para no perder o costume, o lado Bda histria apareceu jno segundo dia de aula, quando o cigano-monsieur solicitouum pequeno exerccio supercomplexo de, adivinhe, mudan-a do formato da pgina e numerao do rodap ... O fato que, aps ter-me demorado exaustivamente nas preliminaresdo dificlimo exerccio, na hora ag eu mirava a tela do alie-ngena computador e no sabia nem por onde comear. De

    REFERENClAAO: TEORIA E PRATICA19

    repente aquela atividade ridcula se tomou um teorema quenem Einstein resolveria. Em suma, o castigo divino no tar-dou. Eu, que tava achando tudo meio idiota, cru, no conse-gui fazer o primeiro exerccio. Resultado, todo mundo fez odever de casa, ali, em menos de 1 minutinho, menos moi. Opior que o monsieur comeou a me olhar esquisito quandoele percebeu o estado lastimvel em que eu estava: maisvermelho que o vermelho do tomate mais vermelho da ver-melha China. T comeando a achar que beber gua da tor-neira na posio 38 do kama sutra menos traumatizante.

    Eu simplesmente perdi o ctrl da histria. E no para por ano. O diabo do curso foi de fato se complicando e atormen-tando a minha vida. Eu fui ficando to tenso COHl. o efeitobloody mary do primeiro exerccio que corri s livrarias da ci~dade para comprar guias de apoio para uso do Word 2003. Ebom esclarecer que eu praticamente parei de dormir - e derespirar -, tamanha a minha tenso, durante o tal TIT (ouTPM??).Mas a minha busca de conhecimento no foi em vo,pois achei um livro do tamanho da minha ignorncia: Infor-mtica para antas. Bem, no exatamente assim que se deveriatraduzir, mas, em bom ctrl portugus, a melhor traduo dasminhas angstias naquele momento dramaatico. Compreilogo o livro da verso Windows 2003 e outro com a verso2007. Claro que no li nenhum dos dois, mas valeram cornoctr! tranquilizante para minhas ctrl desventuras en France.

    Pior: em cada aula eu era praticamente o ltimo a concluir astarefas (socorro!).Ej que estamos numa conversa super mriofranca devo confessar que o meu maior consolo ao longo dasvinte e tantas horas de ctrl agonia regadas a Word 2003 qu,na turma havia um aluno que sempre terminava depois de mim.Isso quando ele conseguia terminar (ele deve estar no stimo ouvigsimo nono ano de doutorado e pelo jeito sem previso deconcluso da tese; eu estou no primeiro meio ano, se serve dealento). O fato que eu nunca agradeci tanto a Al a existncia

  • 20 CAVALCANTE LIMA

    de um cristo (na verdade, ele era islmico), nesse pedao doplaneta onde t pagando meus pecados. Engraado que emcada aula a primeira pessoa que eu procurava na turma era omeu coleguinha. Afinal, quando se quer se sentir mais magro,basta ficarctrl diante de uma pessoa ctrlmais gorda do que voc.Eu acho que serei eternamente grato ao meu amigo portador deobesidade mrbida. E viva ctrl o ano do rubi to, copiando, co-lando e superadepto da prtica do kama sutra, na Frana.

    (Blog "Ano elo Rubito na Frana". Disponvel em: . Acesso em: 30 maio2010. Destaques em negrito nossos.)

    Embora sejam narrados dois episdios distintos - a situao emque um menino sugava algo protuberante no banheiro e o curso deWord 2003 - estes episdios conectam-se no texto em funo da orien-tao argumentativa. A orientao argumentativa constri-se por umleque de objetos de discurso que, ao revestirem o texto de uma posiomatriz ou fonte, apontam para a subjetividade do locutor Ienunciadorprimeiro. Assim sendo, estes objetos pem em evidncia a indignaoe o estranhamento de LI lEI diante dos acontecimentos, evidenciandoPDV afirmado deste enunciador.

    As formas nominais "o absurdo da situao" e "o momento kamasutra", respectivamente catfora e anfora, referem-se ao primeiro epi-sdio, enquanto que a forma catafrica liamaior expiao que tive deencarar" refere-se ao curso de TTT. As formas anafricas "O tal Trata-mento", "O diabo do curso", "aquele momento dramaatico", "as vintee tantas horas de ctrl agonia regadas a Word 2003" tambm so revela-doras do inconformismo de LI lEI em relao ao curso. A expresso" apororoca da 'soluo' que eles vo te oferecer" tambm faz parte daagonia e designa impacientemente uma das ferramentas do Word 2003.Nesse contexto de "esquisitices", a forma anafrica "esses chicos fran-ceses" indica o estranhamento cultural enfrentado pelo autor que assimdesigna o povo francs.

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    REFERENClAAO: TEORIA E PRTICA 21

    nesse contexto de indignao e estranhamento, em que LI/EIest pagando seus "pecados avoengos", que o ponto de vista cons-trudo por formas nominais marcadas ora pelo autodialogismo, ora peloheterodialogismo.

    Formas nominais autodialgicas

    O autodialogismo pode ser caracterizado por formas nominais queatuam na reformulao do PDV de LI/El. As formas nominais quedesignam objetos de discurso constantemente referidos no texto apare-cem na cadeia referencial com um sentido diferente daquele que vinhasendo atribudo. Um exemplo disso o modo como o locutor refere-seao TIT. A forma nominal "a minha busca de conhecimento" retoma oTTT no penltimo pargrafo do texto no como expiao ou algo dia-blico, mas como um objetivo natural de qualquer pessoa que escreveuma tese. A "busca de conhecimento" tambm um modo de justificare valorizar a estadia de LI lEI na Frana, pela atribuio de um sentidomais global, que revela um enunciador menos desesperado (e talvezmais resignado) diante do fato. Ora, ainda que possa parecer uma en-rascada, ele est na Frana escrevendo uma tese!

    Nesta espcie de dilogo consigo prprio, as experincias pessoaisdo doutorando brasileiro destacam-se, atuando intensamente na cons-truo dos objetos de discurso. Orientadas em direo sua prpriapercepo, como um modo de individualizar a referncia, tal comorevelam os pronomes pessoais das expresses "minhas ctrl desventurasen France" e "meus quinze minutos em Macondo", estas formas nomi-nais, ainda que autodialgicas, tambm se constituem pela referncia aoutro~ domnios discursivos: a literatura e a informtica. Nisto reside aespeci~cidade destas formas. Os termos "ctrl" e "Macondo" so co_e-rentes com a trama enunciativa do prprio texto, no sendo uma alusaosimples e direta ao Word 2003 e ao livro de Garcia Marques, pois parase atribuir sentido a estas formas nominais necessrio estar a par dos

  • 22CAVALCANTE UMA

    acontecimentos narrados na crnica, quer dizer, interpretar o sentimen-to de espanto e tomar conhecimento do estranhamento de LI /EI fren-te ao TIT. Em outras palavras, preciso compreender a percepo dolocutor / enunciador diante dos fatos: a necessidade de beber gua datorneira e a inutilidade de um curso de Word 2003 para um doutorando.

    A forma nominal "minhas ctrl desventuras en France" constitui umhipernimo, porque amplia o campo da referncia designando no sa experincia de L1/EI com o TIT, mas tambm com a gua da tornei-ra. Esta ampliao referencial, o emprego do termo "ctrl" e da expresso"en France" so uma evidncia da reformulao, quer dizer, de umareacentuao no discurso de LI/EI que, ao criar um efeito de sentidomuito particular, manifesta ironia, comicidade, criatividade e envolvi-mento com o fato. A reformuJao, no entanto, no implica necessaria-mente oposio de sentido, mas um reajuste semntico-referencial daposio do locutor que atua intensamente na orientao argumentativado texto. Por este reajuste, L1/E1 se apropria de forma bem-humoradadas ferramentas do word, que antes eram referidas como "o tal conirolCcontraI V"; emescla objetos de discursos diferentes: Macondo e oWord2003. Estes objetos se conectam, a partir da reformulao do PDV deL1/EI numa atmosfera aterrorizante efantasmtica, semelhante expe-rincia dos habitantes de Macondo, da a referncia a "o aliengenacomputador" e ao professor, pela forma predicativa "o prprio ciganofazendo o truque da dentadura".

    Neste episdio, a forma nominal "o ctrl da histria", ao revelar oesgotamento emocional de LI/EI em relao ao curso, tambm outrae~id~cia de reformulao. Certamente, L1/EI no poderia imaginar asituao penosa que enfrentaria no curso. Isso justifica as formas nomi-nais "o querido monsieur" e "o tio", que assinalam certa disposio epacincia de L1/EI (at determinado momento do curso), assim comoa forma nominal "os queridos copiar e colar". Levando-se em contaestes referentes, "o ctrl da histria" uma evidncia de autodialogismo.

    Com base nisso, podemos dizer que o autodialogismo, tema mui-to pouco estudado no contexto do dialogismo, no implica necessaria-

    REFERENClAAO: TEORIA E PRTICA 23

    mente uma autorreferncia. O autodialogismo corresponde aos casosem que o objeto de discurso cunhado no domnio perceptual do lo-cutor / enunciador, evidenciando a reformulao de sua compreenso /percepo sem a interferncia de outros PDV Neste caso, tanto o au-todialogismo quanto o heterodialogismo constituem um pano de fun-do para a construo da referncia, sendo que no autodialogismo oPDV integralmente assumido e reconfigurado a partir da percepode LI/El.

    A forma nominal "uma conversa super mrio franca" tambm marcada pelo autodialogismo. Por meio desta forma, LI/EI rotulametalinguisticamente o prprio ato enunciativo. Mais do que um desa-bafo dramtico e indignado em tom tragicmico sobre as experinciasdo autor em solo francs, esta forma nominal rotula o discurso simples-mente como uma conversa franca e descontrada, com a qual o leitor convidado a se sensibilizar. O tom de indignao, estranhamento cul-tural, nervosismo e espanto de suas confidncias resume-se a um fran-co desabafo para aqueles que estiverem dispostos a "ouvir" essa expe-rincia e compartilh-Ia no bIog, atravs de comentrios, que bemcaracterizam a recepo desse gnero textual.

    Ainda como exemplo de autodialogismo, citamos as formas nomi-nais "o meu coleguinha" e "o meu amigo portador de obesidade mr-bida", referentes ao aluno que sempre terminava o exerccio depois doRubito. De aluno inexpressivo e por certo indiferente aos olhos de LI /E1, este personagem passa categoria de "coleguinha", e no um "ami-go" qualquer, mas um amigo portador de obesidade mrbida. Aexpresso"obesidade mrbida" bastante reveladora da reformulao do PDVde LI/EI, bem como da autenticidade deste PDV, que LI/EI assumeintegralmente na referncia ao outro. Por essa tica, o termo obesidadeadquire um sentido muito particular, conectando os dois personagenspela dificuldade em lidar com as ferramentas do Word. Nesse caso, esta"obesi~de" /fa!ta de habilidade pe o "coleguinha" em condio ain-da m~!astimvel do que a de LI/El. Esta ressignificao aponta paraa cUf11plicidadeque aproxima os dois personagens com vantagem paraL1/El. Em outras palavras, o desenrolar dos acontecimentos impe a

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    reformulao do PDV de L1lEI, que modifica de maneira irnica suapercepo a respeito desse personagem.

    Formas nominais heterodialgicas

    A manifestao do PDV dos outros enunciadores e a influnciadeste PDV sobre o PDV do locutor Ienunciador marcada pelo hetero-dialogismo. O heterodialogismo nesta crnica evidencia-se por trsprocedimentos: a representao do PDV de outros enuncia dores, a re-presentao de PDV dxico e o empilhamento de PDVs.

    a) Representao do POV de outros enunciadores

    As formas nominais "as mercadorias inslitas que eram levadaspelos tais ciganos" e "a boca que saa nas mos dos ciganos-vendedores",respectivamente em posio anafrica e catafrica so urna evidnciade heterodialogismo no trecho abaixo:

    o espanto dos Buenia. os moradores daquela aldeia, ao descobrirem, sempreembasbacados, as mercadorias inslitas que eram levadas pelos tais ciganos. [... ]Mais chocante ainda foi quando se assustaram com a boca que saa nas mos dosciganos-vendedores: era a boa e velha dentadura.

    O heterodialogismo nesta passagem d-se pela representao doPDV dos habitantes de Macondo. Mesmo que eles no falem, sua pre-sena atestada pela forma corno seu PDV representado por L1/El.Assim, LI lEI interpreta a reao dos moradores de Macondo diantedas mercadorias oferecidas pelos ciganos. O heterodialogismo mar-cado neste caso pela imputao, ou seja, pela atribuio de urna percep-o ao outro. Esse PDV imputado aos personagens em paralelismocom o desconhecimento do bebedouro por parte dos franceses. Disso

    REFERENClAO: TEORIA E PRATICA 25

    resulta o tom de descoberta e susto, com o qual L1/EI se identifica. Osverbos "descobrir" e "assustar" auxiliam na captao do PDV do outro,ao mesmo tempo em que atuam como um meio de marcar enunciado-res distintos. Neste caso, os habitantes de Macondo tm seu PDV ma-nifestado a partir da posio de LI/El, o qual se apropria desse tomfantasmtico para formular os objetos ao longo do texto. Os habitantesde Macondo so, portanto, um enunciador em posio de coenunciao,porque no entram em confronto com o PDV de LI lEI, estando nomesmo nvel enunciativo.

    Contudo, o mesmo no acontece com o outro enunciado r, o pro-fessor do TTT.O tom irnico das formas nominais relativas ao curso (otal tratamento, o diabo do curso)e ao prprio professor (omonsieur-cigano),revela que este enunciador urna espcie de adversrio de L1lEI. L1IEl rene argumentos que favorecem a sua posio, ou seja, que justifi-cam sua indignao e espanto diante da obviedade do curso e da sofis-ticao com que conduzido. O heterodialogismo revela-se por essatenso em que as posies se hierarquizam. LI lEI est em posio desobre-enunciao, na medida em que o seu PDV dominante, enquan-to o professor aparece em posio dominada, de sobenunciao. Aproeminncia da posio de L1/EI manifesta-se mesmo quando elealude ao PDV do professor. Este PDV aparece como um modo de expore reforar o estado lastimvel de LI lEI, ou seja, o estado de algum queentrentou uma situao por demais constrangedora:

    o pior que o monsieur comeou a me olhar esquisito quando ele percebeu oestado lastimvel em que eu estava: mais vermelho que o vermelho do tomate maisvermelho da vermelha China.

    A forma nominal "o estado lastimvel", acompanhada do verbo"perceber", assinala o PDV do professor sobre o estado de LI/El. ma~'s um exemplo de PDV imputado. Neste jogo dialgico, o Outro nofal mas marca posio no discurso sob a tica do locu tor Ienunciador.A i fluncia de L1lEI explcita ao empregar o pronome" eu" e o adje-t~u "vermelho" repetidas vezes.

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    b) Representao de PDV dxico

    o heterodialogismo na representao de PDV dxico acontecequando L1lEI retoma um saber comum, uma percepo ou um dizersocialmente reconhecido sobre determinado objeto. Na crnica, obser-vamos a referncia cidade de Lyon como "o bero da stima arte" e"a cidade dos irmos Lumiere". Estas formas nominais predicativas,ainda que no constituam uma representao autntica do PDV de LI1El , entram no texto para provocar um efeito de sentido muito preciso:o contraste entre desenvolvimento cultural versus falta de conhecimen-to sobre a praticidade e a eficincia de um bebedouro, "esse obscuroobjeto de desejo". neste contraste que o PDV dxico recontextuali-zado e ressignificado atravs do PDV de L1/El. Em resumo, o PDVdxico no serve como mera descrio, mas tem um efeito de sentidomuito preciso em relao aos mecanismos de processamento do sentidoque, atrelados ao posicionamento de LI/EI, orientam argumentativa-mente o texto.

    c) Empilhamento de PDVs

    A forma nominal "um pequeno exerccio supercomplexo de, adi-vinhe, mudana do formato da pgina e numerao do rodap" mar-cada pelo empilhamento de PDVs, ou seja, pelo entrecruzamento ouinterface de dois pontos de vista em uma s forma. O exerccio pode serinterpretado como complexo na perspectiva do monsieur professor, oque atribudo por L1lEI em funo do rigor e seriedade da explicao.Ao mesmo tempo, para LI/EI, o exerccio era nada mais nada menosdo que a simples tarefa de mudar o formato da pgina e a numeraodo rodap, da o uso do verbo "adivinhe" na composio da expressodenotando o carter burlesco da situao. O emprego dos termos "super"e "pequeno" em contraste evidenciam um efeito irnico.

    REFERENClAO: TEORIA E PRTICA 27

    No encadeamento referencial, este mesmo objeto de discurso retomado pela anfora "o dificlimo exerccio" e pela forma predica-tiva "um teorema que nem Einstein resolveria". Estas duas formasevidenciam PDV afirmado de L1 lEI sob influncia do outro enuncia-dor, o professor, para quem o exerccio exigiria toda ateno, at mes-mo a compra de um manual explicativo. Evidencia-se, assim, a ironia,j que, na situao desesperadora em que LI lEI se encontra, o exer-ccio torna-se to complicado que nem Einstein seria capaz de resol-v-lo. Neste confronto de perspectivas, L1 lEI no se priva de mani-festar explicitamente sua posio ou de assumir integralmente umPDV, marcando distanciamento em relao posio do professor aoempregar a forma "aquela atividade ridcula". Esta forma nominalno indica heterodialogismo, j que um PDV integralmente assumi-do por L1 lEI.

    Para finalizar esta exemplificao, podemos dizer que a construodo ponto de vista e consequente orientao argumentativa do texto nopodem ser feitas sem a presena do locutor Ienunciador primeiro, quepe mostra diferentes objetos tecidos tanto no encontro Iconfronto dediscursos, por formas heterodialgicas, como na reformulao do seuPDV, por formas autodialgicas.

    Consideraes finais

    A construo do ponto de vista em contexto narrativo/argumen-tativo est intrinsecamente ligada ao modo de apresentao ~ ao enca-deamento das formas nominais. O modo de apresentao das formasn~minais necessariamente tributrio de uma matriz enunciativa queen ndra posicionamentos ora assumidos por LI lEI, ora imputados aout os enunciadores. Disto resulta no apenas a seleo lexical para ac+pOSiO das formas nominais e criao de certos efeitos de sentidosna crnica analisada, mas tambm a inescapvel conexo dessas formasa enunciadores e pontos de vista.

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    (

    Na exemplificao observada, as formas referenciais apontarammais para o PDV de L1 lEI do que para o PDV dos outros enunciadores.Isto significa que o dizer Ipercepo dos demais enunciadores articula-ses marcas enunciativas de LIIEI, que, corno um "encenador, respon-svel pela representao defensivo-valorativa de seu PDV. Este PDV

    guia a orientao argumentativa do texto no apenas em relao aosobjetos que refere, rotula e interpreta, mas tambm em relao mani-

    festao de si prprio ou daquela percepo de si que L1 lEI apresenta,reapresenta e quer fazer o leitor perceber. Pelas formas nominais auto-dialgicas e heterodialgicas, a construo do PDV, como um processode sngularzao em representao, um meio de afirmar posies,construindo imagens de si e do outro no discurso, o que pode se dar

    pela representao do prprio PDV, pela representao do PDV dooutro e pela imputao.

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