candomble 1930

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    Martiniano e Aninha foram as figuras mais importantes e prestigiosas docamdombl na Bahia naquela poca

    DOS MUITOS LDERES religiosos que exerciam, com maior ou menor influncia comunitria, papisimportantes nos candombls da Bahia, nos anos de 1930, dois se destacavam de maneiraindiscutvel: o babala Martiniano Eliseu do Bonfim e a ialorix Eugnia Ana dos Santos, Aninha, doCentro Cruz Santa do Ax do Op Afonj.

    Suas personalidades transcendiam o ambiente dos terreiros e se impunham, igualmente, sociedade inclusiva. dison Carneiro, em artigo na edio comemorativa do 4 Centenrio da Cidadedo Salvador do jornalA Tarde, em 29 de maro de 1949 - "Lembrana do negro na Bahia"(republicado, em 1964, no livro Ladinos e crioulos), falando da "extraordinria importncia para anacionalidade da contribuio do negro", diz: "Esta contribuio se estendeu, com intensidadevarivel, a todos os campos da atividade humana, entre os quais a luta poltica pela reforma dasociedade, produzindo figuras eminentes, com os pardos da Teodoro Sampaio, Martiniano do Bonfime Aninha". Carneiro estava certo em incluir esses dois lderes religiosos, por sua intensa atuao nasociedade global, no plano da influncia poltica, no sentido atual e abrangente do conceito depoltica. Carneiro foi amigo de ambos, de Martiniano e de Aninha. O babala mencionado muitasvezes nas cartas dessa Correspondncia e Aninha, citada, embora, uma vez apenas, o foi de ummodo que resume sua personalidade forte e sensvel. Na carta de 8 de janeiro de 1938, Nelson

    Carneiro informa a Artur Ramos: "Morreu h dias, D. Aninha, do Op Afonj, brao do Congresso,sua admiradora". Pode-se imaginar quanto ter custado a dison Carneiro resumir, nesta curtafrase, carregada de intenes, todos os sentidos de respeito e gratido que mantinha pela falecidaialorix, desde a ajuda que ela lhe prestou na realizao do Congresso at o'santurio que lheconcedeu, no seu terreiro de So Gonalo, no fim do ano de 1937, quando Carneiro ali se refugiouda perseguio da polcia poltica. Este fato, lembrado por Carneiro a Senhora e seus Obs, muitosanos depois, tambm mencionado no livro de Deoscredes M. Santos, filho de Senhora, Aob doterreiro, no seu livroAx Op Afonj:

    Em fins de 1937, com a proclamao do Estado Novo, o escritor e etngrafo dison Carneiro, sendoperseguido, refugiou-se no terreiro, tendo Me Aninha encarregou Senhora de velar por ele, lheprestar assistncia. Esse fato por muitos anos foi conhecido apenas de Aninha e Senhora, at que o

    mesmo dison Carneiro deu-lhe divulgao pblica.

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    Nas suas cartas a Ramos, Carneiro tinha que ser discreto e no aludir a fatos e situaes quepudessem vir a comprometer seus amigos dos candombls.

    "Nessas duas figuras singulares bem se poderiam identificar as clssicas categoriasweberianas da legitimao do poder ..."

    Martiniano e Aninha so atualmente nomes lembrados na tradio oral de todos os terreiros daBahia, mitificados j, na lembrana da "gente-de-santo", dos que os conheceram em vida e dos queouviram contar histrias de seu poder, de seu conhecimento, de seu imenso prestgio. Nessas duasfiguras singulares bem se poderiam identificar as clssicas categorias weberianas da legitimao dopoder, no caso, do poder teocrtico exercido pelos pais e mes dos terreiros da Bahia: eram elespessoas que conheciam suas origens tnicas e culturais. Dotados de um superior conhecimento dastradies e reconhecidos por toda a gente como detentores legtimos do saber religioso, dos"fundamentos" como se diz na linguagem dos terreiros; formados nos rigorosos cnones do ritual,dos sacrifcios, do questionamento do destino, das cosmogonias, das teogonias e da ao corretoradas normas - Martiniano e Aninha eram ainda dotados de uma aura carismtica emanada de suaspersonalidades poderosas, plenas de sabedoria e de mistrio. Viveram queridos, respeitados etemidos. E hoje so lembrados e reverenciados na memria dos terreiros como verdadeiros heris

    culturais de sua gente.

    Martiniano e Aninha foram as figuras mais importantes e prestigiosas do candombl da Bahianaquela poca. Alm de Ramos e Carneiro, muitos outros pesquisadores procuravam conhecer eentrevistar o sbio babala e a famosa me-de-santo. Carneiro serviu de intermedirio a vriosdesses encontros, especialmente com Martiniano. Num artigo introdutrio como esse devo, contudo,necessariamente, limitar-me a um levantamento seletivo das muitas fontes escritas que se referema Martiniano e a Aninha, e a alguns depoimentos pessoais de antigos dignitrios dos terreiros - paise mes-de-santo, ogs, obas, ebmes - que os conheceram em vida. Destes ltimos, no caso deAninha, trs so de filhas-de-santo suas: Maria Bibiana do Esprito Santo, Senhora, Me do Ax doOp Afonj, que era, ainda, bisneta da prpria me-de-santo de Aninha - Marcelina da Silva, ObTossi; Ondina Valria Pimentel, filha do Bal Xang Jos Teodoro Pimentel, Iquequer do Op

    Afonj e, com a morte de Senhora, sua sucessora naquele terreiro; e Isolina Atade de Arajo, Zoz,Me do Candombl Il Bab Omin. Sobre Aninha, ainda, o do Ob Abiodum, Arquelau Manuel deAbreu, parente de Aninha e o de Deoscredes Maximiliano dos Santos, Didi, filho da ialorixSenhora; seu livro,Ax Op Afonj uma indispensvel referncia para a histria daquela casa.Quanto a Martiniano, muito importantes foram os depoimentos do Oba At de So Gonalo, MiguelArcanjo Barradas de Santana e do seu filho, o Ob Cancanf, Antnio Albrico Santana, dentreoutros informantes vlidos.

    Martiniano - "Todo o mundo pensa que eu tenho muito dinheiro mas desde que o Dr. NinaRodrigues morreu, no tive mais um emprego regular".

    Martiniano Eliseu do Bonfim foi um membro muito influente dos candombls da Bahia, desde os fins

    do sculo XIX. Nina Rodrigues a ele j se referia, sem mencionar-lhe o nome, como um valiosoinformante:

    H aqui na Bahia diversos negros que aprenderam em Lagos a ler e a escrever a lngua iorub. Nome tendo chegado at agora a gramtica e o dicionrio iorubano ingls que de Lagos mandeibuscar, a traduo e a ortografia das palavras iorubanas empregadas neste trabalho, vo como meforam ensinadas por um moo negro, de pais africanos, que por muitos anos residiu em Lagos.

    Esse "moo negro, de pais africanos" era Martiniano. Teria, pelo tempo em que Nina o conheceu,cerca de trinta anos, pois nascera em 1859. H quem diga que em 1860 ou mesmo 1861, semmuita certeza. Dessa colaborao de Martiniano com Nina, falaria o prprio babala, muitos anosmais tarde, em 1938, antroploga Ruth Landes: "Todo o mundo pensa que eu tenho muito

    dinheiro mas desde que o Dr. Nina Rodrigues morreu, no tive mais um emprego regular". Teriasido, pois, Martiniano, um informante remunerado de Nina Rodrigues, sem que se saiba se comalgum "vnculo empregatcio" como hoje se diz, fosse atravs da Faculdade de Medicina do Terreirodo Jesus ou a servio do prprio Nina.

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    A tradio oral do povo-de-santo e as referncias escritas de pesquisadores e escritores comodison Carneiro, Jorge Amado, Artur Ramos, ydano do Couto Ferraz, Donald Pierson, Ruth Landes,E. Franklin Frazier e outros, transformaram o velho Martiniano numa figura lendria do candomblda Bahia. Sua vida, seus antepassados, suas viagens frica, seu saber, sua autoridade eparticipao efetiva - como babala e conselheiro - nas mais antigas e prestigiosas casas-de-santo,tudo isto o faz merecedor de um estudo mais aprofundado do que esta breve resenha biogrfica.Quando da realizao do 2o Congresso Afro-Brasileiro, na Bahia, em 1937, a que Martiniano deuuma colaborao marcante, Jorge Amado escreveu a seu respeito, um comovido "Elogio de um

    Chefe de Seita", lido pelo autor na sesso de 15 de janeiro daquele congresso. Disse, ento, JorgeAmado

    [...] H, porm, sobre todos esses nomes um nome a lembrar, a estudar, a louvar: o do Prof.Martiniano Eliseu do Bonfim, chefe de seita, a mais nobre e impressionante figura da raa negra noBrasil de hoje. Sua sinceridade, seu amor sua raa, a sua dedicao, a sua inteligncia, a suacultura fazem deste chefe de seita um dos tipos representativos das melhores qualidades dosbrasileiros.

    E, mais adiante, disse ainda:

    H quase quatro anos um romancista, que queria escrever um romance honesto sobre a raa negra

    no Brasil, subiu as escadas pobres que conduziam pobre morada do maior e mais respeitado nomedas seitas africanas transportadas ao Brasil e desde ento a posio daquele romancista diantedeste chefe de seita tem sido a da mais absoluta e comovida admirao.

    (Recentemente, Jorge Amado me confirmou, em conversa pessoal, que ele ento se referia aoromanceJubiab, publicado em 1935.) Nina Rodrigues e Jorge Amado tiveram, assim, com ointervalo de mais de quarenta anos, um, no "moo de Lagos" que falava iorub, o outro, no velhobabala cheio de sabedoria e de compreenso humana, a palavra de segura informao, de ajudaconfivel. E o pioneiro dos estudos antropolgicos do negro no Brasil e o grande romancistabrasileiro refletiram, dessa maneira, nas suas obras j clssicas, a cultura e o saber de um negro naBahia.

    Em 1936, dison Carneiro convidou Martiniano para ser o Presidente de Honra do 2

    Congresso Afro-Brasileiro, papel que ele exerceu com grande interesse e dignidade. vspera da abertura oficial doCongresso, o Estado da Bahia, em sua edio de 9 de janeiro de 1937, publicava com destaque: "O2 Congresso Afro-Brasileiro/ Na prxima segunda-feira, 11, s 15 horas, no Instituto Histrico daBahia / A sesso ser presidida pelo Professor Martiniano do Bonfim, antigo colaborador de NinaRodrigues". No dia doze, noticiava:

    Segundo Congresso Afro-Brasileiro / Como decorreu a sua sesso de instalao / Presidida porMartiniano do Bonfim, o antigo colaborador de Nina Rodrigues, realizou-se ontem, conforme estavamarcada, a sesso inaugural do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia... Presente grande nmero decongressistas, o escritor ydano do Couto Ferraz leu o termo de abertura do Congresso, assinadopela Comisso Executiva e logo em seguida passou a presidncia ao Professor Martiniano do Bonfim,

    que se achava ladeado pelo escritor dison Carneiro e pelo juiz federal Mathias Olympio.

    Martiniano teria, ainda, uma participao definitiva na organizao da Unio de Seitas Afro-Brasileiras, criada em decorrncia de uma das resolues do Congresso.

    Nascido no Brasil, sob a escravido, de progenitores que haviam compradoa sua prpria liberdade, foi enviado pelo pai mais ou menos aos catorzeanos, a Lagos, na frica Ocidental ...

    Entre os anos de 1935 e 1940 Martiniano deixaria, em forma de entrevistas dadas,coincidentemente, a trs pesquisadores americanos, longos depoimentos sobre a sua vida e ahistria de sua gente. O primeiro deles foi documentado por Donald Pierson, da Universidade deChicago, que conheceu e freqentou Martiniano durante sua estada de 22 meses na Bahia, de 1935a 1937. Pierson deixou de Martiniano - como de outros lderes do candombl, como Aninha,Bernardinho do Bate Folhas, Maria Bada e Procpio - uma longa entrevista que fornece valiosos

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    elementos da histria de vida de Martiniano e de sua insero na histria social da Bahia dos anosde 1930. Depois, em 1938, esteve na Bahia a antroploga americana, da Universidade de Columbia,de quem falarei adiante - Ruth Landes. Ela descreve em seu livroA cidade das mulheres seusencontros e entrevistas com Martiniano, deixando-nos um retrato vivo, simptico e espirituoso - noisento de alguma malcia - da personalidade fascinante e dominadora de velho babala. Sobre oprimeiro desses encontros, escreveu:

    A primeira pessoa com quem dison (Carneiro) acertou uma visita formal foi um negro de cerca de

    80 anos conhecido como Martiniano - o seu verdadeiro nome era Martiniano Eliseu do Bonfim. Erauma instituio na Bahia e na verdade em todo Brasil; consideravam-no um sbio no seu mundo.Nascido no Brasil, sob a escravido, de progenitores que haviam comprado a sua prpria liberdade,foi enviado pelo pai mais ou menos aos quatorze anos, a Lagos, na frica Ocidental, e estudou astradies tribais de seus antepassados da selva e aprendeu ingls nas escolas missionrias [...]

    E mais adiante

    [...] Martiniano porm voltou Bahia, onde sua inteligncia perspicaz e sua personalidadedominadora e seus conhecimentos esotricos foram reconhecidos e o conduziram rapidamente fama entre os adeptos do candombl. Os cientistas procuraram-no s vezes para obter informaese o seu nome se notabilizou entre eles, graas ao maior cientista social do Brasil, o Dr. Nina

    Rodrigues.

    Merecem, contudo, esses trechos do livro de Ruth Landes um breve comentrio no que se refere traduo - o "verdadeiro nome" est em lugar de "nome completo", enquanto a expresso"antepassados da selva" pode sugerir uma imagem equivocada do tipo de sociedade agrria quevivia em aldeias e pequenas cidades, prprio da organizao social e poltica dos iorubs da Nigriano sculo XIX.

    Um terceiro americano estaria ainda no caminho de Martiniano. Desta vez o socilogo daUniversidade de Harvard, E. Franklin Frazier, que esteve na Bahia por quase cinco meses, em 1940.De sua pesquisa deixou um artigo "The Negro Family in Bahia, Brazil", publicado em 1942. Aentrevista de Frazier com Martiniano revela dados biogrficos que so basicamente os mesmos

    referidos por Pierson e Landes. Algumas pequenas divergncias, contudo, no alteram o essencialda informao, coerente nos trs relatos: a viagem de Martiniano, adolescente, Nigria, sua volta Bahia, depois de onze anos; sua aprendizagem e formao no culto de If, que o tornaria umbabala. Nessa entrevista, disse Martiniano a Frazier que

    seu pai, que era da tribo egb, foi trazido para o Brasil cerca de 1820 e liberto em 1842. Sua meera da nao iorub e foi alforriada por seu marido em 1855. Seu pai e sua me nunca se casaramde acordo com os ritos catlicos nem muulmanos. Seu av, que era um guerreiro na frica, tevequarenta mulheres e seu pai, seguindo as prticas poligmicas africanas, teve cinco mulheres, dasquais sua me era a esposa principal.

    E a partir da, Frazier se estende na anlise da estrutura familiar e de parentesco de Martiniano,

    devido, naturalmente, orientao especfica de sua pesquisa na Bahia - o estudo da famlia donegro baiano.

    Desses depoimentos de Martiniano do Bonfim a profissionais treinados em tcnicas de pesquisasocial e mais, do corpus da tradio oral do povo-de-santo, muitas so as referncias encontradasque merecem ou permitem comentrios etno-histricos, sociolgicos e lingsticos. Num trabalhocomo este, no entanto, no possvel sequer tentar uma anlise desse tipo. Ainda assim, devoabordar uns poucos tpicos do valioso material disponvel naquelas fontes a respeito de Martinianodo Bonfim, deixando aqui a sugesto para pesquisas mais elaboradas sobre o assunto.

    Num trecho, por exemplo, da entrevista de Martiniano a Donald Pierson, ele diz:

    O nome de minha me era Manjegbassa, que quer dizer "No deixe eu sozinha". Ela nasceu depoisque a me tinha perdido os dois primeiros filhos. Tinha uma cicatriz no rosto para mostrar que eraiorub, porque todos os iorubs, homem e mulher, tem que ter esta marca. Ela casou com meu paino Brasil e quando eu nasci eles me chamaram de Ojelad.

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    Sobre Majegbassa - que se pronuncia Majegbass, um antropnimo de uma longa srie de nomesdados a crianas que nascem e "vingam", isto , sobrevivem, depois de irmos natimortos oumortos na primeira infncia. So nomes especiais que procuram "exorcisar" o esprito abiku queameaa a vida das crianas iorubs.Abiku significa, precisamente, "nascido para a morte". Dentreas vrias prticas rituais prescritas pelos babalas para evitar a reencarnao dos espritos abikunos recmnascidos, seus pais do s crianas nomes que afastam ou afugentam esses espritos,assegurando a sobrevivncia das mesmas. muito grande a lista desses nomes, por assim dizer,preventivos, entre os iorubs, todos significando ou expressando o desejo da permanncia no

    mundo, de uma criana nascida abiku. Majebass um desses nomes e quer dizer, como explicouMartiniano, "no me deixe sozinha". Martiniano disse, ainda, que sua me era ijex, e tinha asmarcas de nao no rosto. E uma fotografia constante do livro de Manuel Querino, Costumesafricanos no Brasil, sobreposta legenda "Tipo Ijex", tida como o retrato de Majebass, segundodepoimento que teria sido feito por Martiniano a amigos seus. As marcas tribais dos iorubs, de quefalou tambm Martiniano a Ruth Landes, ainda que mal percebidas na fotografia aludida, distinguemos vrios grupos tnicos que formavam a antiga nao iorub.

    "Seu pai e sua me nunca se casaram de acordo com os ritos catlicos nem muulmanos.Seu av, que era um guerreiro na frica, teve quarenta mulheres e seu pai cincomulheres, das quais sua me era a esposa principal..."

    Na sua entrevista a Pierson, disse Martiniano que "seus pais lhe deram, ao nascer, o nome deOjelad". Alguns autores contemporneos sugerem que Ojelad seja um ttulo, um oi queMartiniano recebera no culto dos eguns da ilha de Itaparica, onde ele era reverenciado pelos velhosojs e titulares do culto. Na verdade, contudo, Ojelad era o nome prprio iorub de Martiniano.Provm este nome do ttulo sacerdotal de Oj, do culto dos eguns. Abraham esclarece: "Oj, ttuloem famlia que adora os eguns. Donde os seguintes nomes prprios masculinos - Ajelabi, Ojelad,Ojeniram...". Oj prefixado - ou aposto - a um complemento nominal, forma uma grande srie denomes prprios e de ois usados em louvor dos antepassados das linhagens iorubs associadas scomplexas categorias da crena na imortalidade e na reencarnao. Martiniano era conhecido echamado, nos terreiros da Bahia - inclusive no culto dos eguns de Itaparica, por seu nome nag deOjelad. Este nome, por um processo comum de metonmia, passou a ser considerado, na Bahia,como um io, um "posto". E depois da morte de Martiniano, em 1943, o nome Ojelad integrou-se,naturalmente, na hierarquia do culto dos eguns, de maneira que, atualmente, em dois terreiros deItaparica, existem titulares com o nome de Ojelad.

    Os autores e a tradio oral falam das viagens de Martiniano frica, especialmente da primeira,quando foi levado por seu pai, quando tinha mais ou menos catorze anos. Seu destino foi Lagos,hoje a capital da Nigria, mas, quela poca, uma colnia que centralizava a crescente expansocolonial inglesa sobre os povos iorubs e seus vizinhos. Martiniano, segundo sua entrevista aPierson, ficou em Lagos "onze anos e nove meses, de 1875 at 1886". Mais tarde, retornaria frica - para ele, "frica" era Lagos, eram os nags/iorubs, sua nao - onde esteve por mais umano. Trs anos depois, tornaria a voltar "para vender coral, l grossa e fina e comprou pano-da-Costa para vender aqui". S um exame mais pormenorizado dessa entrevista - e das outras nasquais fala de suas viagens, precisaria a exata cronologia da vida de Martiniano, naquele tempo,entre a frica e a Bahia. Ainda sobre sua primeira viagem, um antigo Ob do terreiro do Op Afonj,que fora muito amigo de Martiniano, contou-me que "o pai dele mandou ele para a frica, porquenuma briga ele quebrou a cabea de um rapaz branco, filho de um homem importante e teve que seesconder da polcia". Outros informantes me confirmaram esta verso com pequenas variantes,inclusive dando a idade de Martiniano como sendo, ento, de dezessete anos. Esta idade, noentanto, se choca com a precisa informao de Martiniano a Pierson, de que fora para Lagos com"treze anos e onze meses" (Ruth Landes fala em catorze anos). Prefiro, frente a tais discordncias,deixar este e outros aparentes anacronismos para serem esclarecidos por uma pesquisa maisdocumentada, que a vida de Martiniano - e o seu tempo - est a merecer.

    [...] Martiniano, que voltou de Lagos "cheio de saber e razo", paraintegrar-se pelo resto da vida na comunidade baiana que permeava comnaturalidade e orgulho.

    Como quer que tenha sido, contudo, a ida frica de africanos libertos e de seus filhos, pelos finsdo sculo XIX, era, naquele tempo, um importante elemento legitimador de prestgio e gerador de

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    conhecimentos e poder econmico. Enquanto negociavam vrias mercadorias trazidas da Costa elevadas do Brasil, tambm, como hoje se diz, reciclavam o saber da tradio religiosa aprendidacom "os antigos", nos terreiros da Bahia. Assim foi com Martiniano, que voltou de Lagos "cheio desaber e razo", para integrar-se pelo resto da vida na comunidade baiana que permeava comnaturalidade e orgulho. Nas cartas de Carneiro no testemunho dos escritores e pesquisadores, namemria do povo-de-santo, sua figura e sua lembrana permaneceram vivas.

    Martiniano Eliseu do Bonfim e Eugnia Ana dos Santos eram grandes amigos e sabido que o

    babala colaborou largamente com a ialorix de So Gonalo na estruturao do grupo dos Obs ouMinistros de Xang, como so conhecidos esses olois. Aninha concedeu a Martiniano, no Ax doOp Afonj, o honroso ttulo de Ajimud, o que marcou o respeito e a considerao que tinha avenervel me-de-santo pelo sbio babala. O sentimento, alis, era mtuo. Depois da morte deAninha, em janeiro de 1938, Martiniano confessava a Ruth Landes:

    [...] Nem mesmo visito os terreiros desde que dona Aninha - descanse em paz! - se foi. Considero-aa'ltima das mes [...] Sinto saudades dela agora. Acho que toda a Bahia sente. No fao questode pisar em nenhum dos outros templos, mesmo que me convidem. Nenhum deles faz as coisasdireito como ela fazia. No acredito que saibam falar com os santos e traz-los para danar nosterreiros dos templos.

    O discurso emocionado de Martiniano - excluindo-se, voluntariamente, das outras comunidades quecostumava freqentar e onde era recebido sempre com as maiores honrarias - privilegiando umame-de-santo morta como a nica a merecer sua ateno e respeito, eu ouviria, muito mais tarde,num contexto semelhante, de outra venervel figura dos candombls baianos, Eduardo Ijex. Ovelho pai-de-santo, nos seus oitenta anos j completados, queixou-se longamente, a mim, daligeireza dos costumes, da improvisao dos rituais e das cantigas, do desconhecimento da lnguasagrada do povo-de-santo daqueles dias. E como seu velho amigo Martiniano, o velho pai-de-santodizia "que nunca mais fora a casa de ningum, uma ou outra vez ia ainda, ao Engenho Velho, aoAlaqueto, ao Gantois...". Este tom de laudator temporis actidomina a memria dos pais e mes-de-santo da Bahia, que esto sempre evocando "os mitos pretritos" da tradio de suas casas, de umaforma valorativa e discriminatria.

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    Martiniano Eliseu do Bonfim e Eugnia Ana dos Santos eram grandesamigos...

    Tambm Aninha, falando da origem nag de seu terreiro, dizia, orgulhosamente, a Donald Pierson:

    Minha seita puramente nag, como o Engenho Velho. Mas eu tenho ressuscitado grande parte datradio africana que mesmo o Engenho Velho tinha esquecido. Eles tm uma cerimnia para osdoze ministros de Xang? No! Mas eu tenho!

    A ialorix Eugnia dos Santos, Aninha, , pois, a outra figura modelar do candombl baiano dessetempo. Provinha de uma gerao que tipificava o fenmeno da "nacionalizao ritual", em queafricanos de vrias origens tnicas adotavam - ou eram adotados - as comunidades religiosas deterreiros predominantemente "jeje-nags" ou "angolas", ou "congos". Comentando este fato,escrevi, em outro local:

    Esses terreiros mantm, contudo , apesar dos mtuos emprstimos ostensivos e das influnciasperceptveis no ritual como na linguagem, os padres mais caractersticos e distintivos de suasculturas formadoras [...] Esses padres dominantes so como a linha mestra num processomultilinear de evoluo, aceitando ou rejeitando inovaes, adaptando-se circunstncia global;assimilado os emprstimos e adotando as invenes - mas retendo sempre a marca reveladora desua origem, em meio integrao e mudana.

    Da a falecida ialorix Aninha poder afirmar, com orgulho: minha seita nag puro. E dizia isto nosentido de que a nao de sua seita, de seu terreiro, e que eram os padres religiosos em que ela,desde menina, se formara, era nag, A se deve entender nao-de-santo, nao-de-candombl.Porque, no caso de Aninha, ela mesma era e se sabia etnicamente descendente de africanosgrunces, um povo que ainda hoje habita as savanas do norte de Gana e do sul do Alto Volta e quenenhuma relao mantinha com os iorubs at o trfico negreiro.

    Desses grunces j se ocupara Nina Rodrigues que conheceu ainda muitos deles, no fim sculo XIX.Em Os africanos no Brasil, fala ele dos "guruxins, guruncis ou gruncis, colnia preta, das maisnumerosas hoje, e conhecidos pela denominao de negros galinhas". Menciona, ainda, asetimologias populares correntes na Bahia, para o nome "galinha", que expressam racionalizaesanalgicas e mticas, muito comuns, de resto, na explicao de etnnimos. Acertadamente, Ninaprefere a hiptese histrico-geogrfica para o termo: os negros galinhas teriam sido embarcados nafeitoria existente na foz do rio das Galinhas (o Gallina River dos mapas ingleses), no golfo de Benin.Este porto, muito ativo no trfico de escravos at meados do sculo XIX, era o local mais direto oumais fcil de atingir, para os negros grunces trazidos do norte, contornando a terra perigosa dosaxantes. Nina, tambm corretamente, anota em sua transcrio lata, as formas dialetais com que osgrunces pronunciavam o nome de sua nao: grunxi, gurunci, grunci... A indicao feita pelosgrunces da Bahia a Nina Rodrigues sobre a localizao da sua terra, era tambm correta: acima daterra dos axantes, "de cuja reputao de crueldade ainda falam com terror, ao lado dos Haus quevm traficar e abastecer-se em suas feiras". E conclui: "trata-se, pois, de uma zona africana, defato, muito pouco conhecida ainda hoje, quase de todos desconhecida at no h muito tempo, para

    alm do pas dos Kongs, nos domnios dos Mossis".

    Uma anlise crtica desse trecho de Nina implicaria uma longa digresso. Hoje sabe-se bem maissobre os grunces, a regio onde habitam, sua cultura, sua lngua e falares regionais. No devo,entretanto, deter-me nesses aspectos da questo.

    [...] Aninha, depois dos estgios rituais pela sua j reconhecida capacidadede liderana, e ainda com o apoio de velhos tios e tias a quem se ligara,comeou sua vida de sacerdotisa, de ialorix.

    Eram, portanto, grunces, os pais de Aninha - Srgio dos Santos, chamado em grunceAnii, eLucinha Maria da Conceio,Azambri. Eles devem ter participado da intimidade dos grupos mais oumenos hegemnicos que eram os iorubs/nags da Bahia daquela poca. E Aninha seria cedoiniciada por sacerdotes nags da nao que viria a ser a sua, na expresso j referida - "Minha seita nag puro". No se sabe, contudo, a idade em que ela fez o santo em casa de Maria Jlia

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    Figueiredo, na rua dos Capites, por Marcelina Obatossi. Sabe-se, no entanto, que Marcelina, suame-de-santo, "prima e filha-de-santo de I Nass", uma das fundadoras do terreiro conhecidocomo Engenho Velho, Casa Branca e ainda, de Il I Nass, faleceu em 27 de junho de 1885,quando Aninha, nascida em 13 de junho de 1869, tinha quase dezesseis anos. Utilizo aqui asinformaes que me foram confiadas pela ialorix Senhora, Maria Bibiana do Esprito Santo, filha-de-santo de Aninha e bisneta-de-sangue de Marcelina Obatossi: - "Depois da morte de minha vMarcelina que minha me fez santo no Engenho Velho. Fez Afonj, com minha tia Tefila,Bambox e Joaquim". Indagada sobre essa segunda feitura no santo, Senhora me respondeu que

    "isso tinha que ser feito, porque Xang deu dois nomes na terra de Tapa, Ogod e Afonj". Senhorame disse ainda que o ajibon de sua me-de-santo "foi homem, no foi mulher - Pedro do Cabea,marido da finada Tia Tiana, Oloxun, me-de-santo de Pop, que morava na rua das Campelas". Nodevo aprofundar, aqui, os pequenos desencontros entre essa verso, de uma informanteabsolutamente confivel - a prpria filha-de-santo e sucessora de Aninha, que deve ter ouvidomuitas vezes, na tradio oral de rigor, os pormenores relativos genealogia e cronologia da vidada sua me-de-santo - e outros relatos j documentados em fontes escritas. No se percebe, a, apossibilidade do "salto de geraes" ou da "simplificao seletiva", comuns na evocao dasgenealogias histricas no documentadas. Certos que algumas perguntas ficam, aqui, sem resposta.Mas os claros da cadeia de informaes se explicam como "as coisas de que no se deve falar" e sotratadas nos candombls sempre com reserva e discrio.

    Iniciada, muito cedo, Aninha, depois dos estgios rituais e pela sua j reconhecida capacidade deliderana, e ainda com o apoio de velhos tios e tias a quem se ligara, comeou sua vida desacerdotisa, de ialorix. Com pouco mais de trinta anos j iniciava, com a ajuda de Bambox, seubabala, sua primeira filha-de-santo, no Engenho Velho. Desse perodo da vida de Aninha, a melhorfonte escrita , certamente, o livroAx Op Afonj, j referido, de Deoscredes Maximiliano dosSantos, nico filho da falecida ialorix Senhora, Maria Bibiana do Esprito Santo, portanto, "neto" deAninha, a quem, de resto chamava, devidamente, de "minha av". Didi, como tratado por toda agente, conheceu Aninha desde menino e cresceu na intimidade do terreiro de So Gonalo, onde suame, Senhora, ao tempo de Aninha, tinha o posto de Ossi Dag. O livro foi baseado nas lembranaspessoais do autor e nas informaes acumuladas e recorrentes, de sua me Senhora e de outrastantas ebomes da casa, irms e filha-de-santo de Aninha, que lhe transmitiram datas, fatos ehistrias dos primeiros tempos de sua "av". Tudo isto, claro, com as naturais reservas deepisdios e impresses que toda liderana forte e duradoura provoca no plano dos conflitos

    intragrupais, das restries pessoais e das "pequenas histrias" que o candombl, como todo grupoorganizado, apresenta na sua dinmica cotidiana. Um exemplo caracterstico dessa atitude - dadiscrio, a que me referi acima, e da reduo eufemstica de fatos que melhor seriam esquecidos, a maneira como D.M. Santos se refere, no seu livro, sada de Aninha, do Engenho Velho:

    Da aconteceram certos desentendimentos l pelo Engenho Velho. Aninha reuniu ento todo o seupessoal e foi para uma roa do Rio Vermelho chamada "Camaro", onde funcionava o terreiro de tioJoaquim Vieira (Oba Siy), filho de Xang, conhecido tambm como Essa Obur, um dos maioresconhecedores das seitas africanas na poca, e que era amigo inseparvel de tio Bambox.

    D. M. Santos refere-se, ainda, no captulo "Os primeiros tempos do Ax", movimentada vidareligiosa de Aninha, nesse perodo de formao e afirmao sacerdotal: aos primeiros filhos-de-santo que fez, com a ajuda de velhos tios e tias ligadas ao Engenho Velho, que eram, de certaforma, seus parentes-de-santo, especialmente Bambox Obitic, um dos oficiantes de sua iniciao;bem como s transferncias de seu terreiro, do Camaro, no Rio Vermelho, para o alto da SantaCruz, quela poca, nesse mesmo bairro, hoje, em Amaralina, e mudana definitiva, em 1910,para a roa do Ano de So Gonalo do Retiro.

    Ali fundou Aninha o seu terreiro, a casa de Xang Afonj, com Tio Joaquim, seu amigo e, de certamaneira, irmo-de-santo, que morreria pouco depois em 8 de setembro de 1910, deixando na Casasua mulher Isidora. Em So Gonalo, Aninha, uma me-de-santo jovem para os padres da poca -aos quarenta e um anos de idade, j era conhecida e respeitada por todos. Em 1911, conta D. M.Santos

    [...] Iy Ob Biyi j estava com 23 pessoas iniciadas por suas mos (sem contar com as que foraminiciadas em casas particulares e outras dentro do Ax, cujos nomes no chegaram ao conhecidopblico por motivo ignorado) e vinte homens entre Alabs, Axoguns, Ogans etc. Existia tambmgrande quantidade de pessoas sem posto na casa, que faziam parte e acompanhavam todo o ritualdo Ax.

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    Nota-se, a, a tpica estrutura das comunidades, dos ebs (do iorub egb, para comunidade,sociedade, associao) tradicionais da cultura iorub nag. Essa forma associativa permanece,reconhecvel ainda hoje, nos terreiros da Bahia, apesar das mudanas porque vem passando asociedade de classes em que o candombl, como um sistema simblico interativo, se insere. Essepadro tradicional dos ebs envolve, naturalmente, uma liderana, um chefe e uma numerosahierarquia, alm de aderentes e associados informais, com vagos compromissos rituais. Os titulares,donos de postos ou cargos, se encarregavam das diferentes atividades rituais do eb. Todos,iniciados, sabedores das coisas, e cada um com seu saber especfico, ajudando a liderana para

    alm do conhecimento inicitico geral, que era de toda a coletividade. Assim, Aninha foi iniciada porMarcelina e Bambox, mas tambm com Tia Tefila e Tio Joaquim. Assim, tambm ela, por sua vez,fez suas primeiras filhas-de-santo, ajudada - o que no significa, simplesmente, acolitada, maspartilhando o ritual inicitico com Bambox, com Tio Joaquim, com o Bal Xang, Jos TeodoroPimentel, que substituiu, nesse cargo, Bambox Obitic por morte deste ltimo. Mais tarde, com suairm-de-santo Fortunata, iniciaria outras filhas-de-santo, na ilha de Itaparica, em casa do BalXang, cuja filha, Ondina Valria Pimentel, uma das iniciadas desse grupo, viria a ser, ainda muito

    jovem, a i-quequer de So Gonalo e, como j foi dito, por morte da ialorix Senhora, de quemera irm-de-santo, assumiria a chefia daquele terreiro. Com o tempo - e j nos anos de 1930, essetipo de co-participao diminuiria nos terreiros da Bahia. Pelo menos, de tal maneira ostensiva,regulada pelo saber inicitico dos velhos tios - todos iguais no plano do conhecimento, mas cada umespecializado, por assim dizer, em determinados ors ou tendo compromissos rituais com certosorixs - o que os tornava indicados para a co-paternidade ritual. Mas ainda assim, a iniciao tinhaum lder, um chefe; "o que botava primeiro a mo na cabea da ia". E essa metfora temporaldefinia a autoridade principal nas complexas cerimnias iniciticas. E ajudando a me, estavam ostios e as tias, na participao conjunta que era, tambm, troca de conhecimentos de iniciao eenforamento da solidariedade comunitria.

    dison Carneiro escreveu, dias aps a morte da ialorix Aninha, em 3 de janeiro de 1938, umemocionado artigo sob o ttulo "Dona Aninha", publicado no Estado da Bahia de 25 de janeiro. Oartigo foi republicado em Ladinos e crioulos, em 1964, na seo do livro "A face dos amigos",como'"Aninha". E o fato de ser o primeiro da srie evidencia, com o destaque editorial, aimportncia que lhe dava Carneiro e a admirao que tinha pela ialorix a quem, respeitosamente,chamava de "Dona Aninha".

    Carneiro, ento, a descreve:

    Essa negra alta, disposta, falando claro e corretamente, o beio inferior avanando em ponta, erabem o expoente da raa negra do Brasil, sntese feliz da soma de conhecimentos da velha MariaBada e da agilidade intelectual de Martiniano do Bonfim.

    E sobre a sua condio de superior guardi e renovadora coerente das tradies ancestrais, afirma,no mesmo artigo:

    Muito fez pela preservao das tradies africanas no candombl da Bahia. Darei apenas doisexemplos. Em quarto guardado vista dos curiosos e de estranhos, prestava culto a Y, a deusa das

    guas dos negros galinhas (grunces), uma tradio j, ento, desaparecida. E foi Aninha quem, noano passado (1937), trouxe para o Op Afonj a festa africana dos obs de Xang, empossando osseus doze ministros com o rito prprio, h muito esquecido pelos chefes e pelos aderentes dasreligies populares.

    O culto da "deusa das guas dos negros galinhas", a que se refere Carneiro, tambm mencionadopor D. M. Santos, ao falar sobre a implantao do terreiro de So Gonalo por Aninha

    [...] Da, Iy Ob Biyi, com sua boa vontade, seu esprito batalhador e a ajuda de todos queacompanhavam, continuou a construir o Ax, fazendo casas nos assentos j existentes para Exu,para Oxal, est com um quarto para as Ayabs, para a Iemanj denominado Il Iy, onde MeAninha adorava Iya n'il Gruncis (a me da terra de Gruncis, na frica), outra para Obaluai, a de

    Oxossi e a casa de Il Ib Iku (casa de venerao aos mortos) [...]

    Nesse quarto, uma extenso da casa de Oxal, mas dela independente pela fachada voltada para acasa de Xang, no se acende luz eltrica e at hoje se mantm, no ciclo das festas da Casa, umaobrigao especial para a santa da terra dos pais de Aninha. Esta misteriosa e preservada santa, aIy dos grunces - remanescente de um panteo para sempre perdido, assim identificada com a

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    Iemanj nag, tambm uma santa das guas, dos rios. Pode-se, at supor que talvez fossemsemelhantes em suas epifanias originais. Ambas divindades das guas, dos rios. A Ia dos grunces,quem sabe de que afluente do rio Volta e a Iemanj nag, do rio Ogun que corta a terra dos egbs.Foi, alis, na casa de I, que Aninha - como conta D. M. Santos - quis morrer, num retornodefinitivo terra africana de seus pais, Anii e Azambrii:

    [...] Pediu que a levassem para a casa de Iy, onde, depois de ter feito alguns preceitos com ocuidado e o auxlio da maior parte das suas filhas-de-santo, que l se encontravam, alguns Obs e

    Ogans tambm presentes, perdeu a fala e veio a falecer, s quinze horas, na presena de seumdico assistente, dr. Rafael Menezes que ainda chegou a tempo de v-la dar o ltimo suspiro.

    Carneiro tambm se refere implantao do grupo dos Obs ou Ministros de Xang, em cerimniapor ele assistida, e, ainda, participao de Aninha no 2 Congresso Afro-Brasileiro. Carneiro contaque s s vsperas do Congresso pde avistar-se com Aninha e como foi este encontro com aialorix:

    No dia seguinte, domingo, fomos, pessoalmente, v-la. A recepo excedeu a expectativa, pois emvez de uma simples me-de-santo que se mostrava favorvel ao Congresso, encontramos umasmulher inteligente que acompanhava e compreendia os nossos propsitos, que lia os nossos estudose amava a nossa obra. Aninha se comprometeu a escrever um trabalho sobre os quitutes trazidos

    pelo negro para a Bahia. E em apenas trs dias de prazo, o Op Afonj pde oferecer aoscongressistas uma das mais belas noites que h memria nos fastos do candombl da Bahia.

    E continua Carneiro:

    Posso dizer o mesmo do seu apoio Unio das Seitas Afro-Brasileiras, fundada a 3 de agosto de1937, com o fim especial de defender a liberdade religiosa sempre periclitante dos candombl daBahia.

    Quanto festa do Op Afonj, por ocasio do 2 Congresso Afro-Brasileiro, foi assim noticiada noEstado da Bahia de 14 de janeiro:

    Tiveram grande brilhantismo as festas de ontem do 2 Congresso Afro-Brasileiro. noite oscongressistas em marinettiespecial, foram visitar o Centro Cruz Santa do Ax do Op Afonj, de D.Aninha, em So Gonalo do Retiro. Ali os esperava uma festa especialmente preparada para oscongressistas. Todo o terreiro estava aberto visita dos congressistas. A festa do Op Afonjencantou sobremaneira os congressistas.

    bom que se evoquem esses fatos, cinqenta anos depois de ocorridos quando uma me-de-santotradicionalista e rigorosa no hesitou em organizar uma festa em seu terreiro, fora do calendrioritual, para uma finalidade que ela considerou (e o Xang da casa decerto confirmou!) necessria aum propsito vlido. No houve, ento, contudo, qualquer concesso indevida, nenhuma quebra denorma - mas o pleno exerccio da autoridade e da capacidade de decidir, dentro da coerncia dosprincpios, do "ritmo da casa", como costuma dizer a ialorix Senhora. Aninha cumpriu o prometido

    a Carneiro e preparou um pequeno trabalho sobre a culinria africana, entregue aos organizadoresdo Congresso, depois do seu final, e por eles includos comoApndice ao volume O negro no Brasil,(Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1940), com o ttulo "Nota sobre comestveis africanos". A"Nota" uma breve lista de vinte cinco qualidades de comidas, todas com nomes iorubs (menosuma - "farofa") e descritas - as que o foram, com extrema simplicidade, com breves referncias forma ou ao ingrediente bsico nelas utilizados. Nenhuma informao, no entanto, sobre a "maneirade fazer" e, menos ainda, ao seu possvel emprego ritual no candombl. Esse despojamento nas"receitas" de Aninha indica, claramente, no campo da comida ritual, o que significa, para o povo-de-santo, a reserva nas "coisas-de-fundamento". Pois as "comidas africanas" listadas por Aninha eram,todas elas, comidas-de-santo, oferecidas nas obrigaes aos orixs, que tm suas prpriaspreferncias alimentares, sempre associadas a seus mitos e a uma complexa prescrio simblica.Aninha ficou, assim, para atender ao pedido de Carneiro, no extremo limite que podia se permitir:

    uma lista quase sintica de comidas africanas, sem de nenhuma maneira relacion-las com ossacrifcios e as oferendas votivas aos orixs. Atendeu ao pedido do amigo, mas o fez com asreservas do seu cdigo de me-de-santo.

    Aninha - do mesmo modo que Martiniano - era acessvel ao questionamento, curiosidade cientficaou jornalstica dos profissionais que a procuravam. No se negava a informar, a comentar, a

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    discutir. Guardava, naturalmente, e tambm a como seu "irmo" Martiniano, o rigoroso preceito dosegredo ritual, da doutrina e dos mitos essenciais de sua religio, como tambm o sentido exato das"convenincias sociais" - cortesia e reserva. Sua filha-de-santo, a ialorix Senhora, costumavaevocar, em momentos de ocasional confidncia, a figura de sua me-de-santo, sbia, altiva,rigorosa e autoritria mas, igualmente, generosa, tolerante, compreensiva. Aninha, segundo ela,"ensinava e vigiava". E assim promovia, indicava e preteria, na medida da inteligncia, do esforo edo aproveitamento, suas filhas-de-santo, na hierarquia de mando do terreiro.

    Donald Pierson tambm descreveu Aninha:

    A me-de-santo chama-se Aninha. Ela uma preta alta e majestosa, cujo menor gesto imediatamente obedecido pelos membros de sua seita [...] Ela se gaba, com orgulho, sou filha dedois africanos, graas a Deus [...] Inteligente, viva de esprito, gil no debate, ela um dos maisgrandemente respeitados e obedecidos lderes do mundo afro-brasileiro.

    E a seguir relata uma discusso de Aninha com um sacerdote catlico:

    Quando um padre, discutindo com ela, lhe disse que ela, no sendo ordenada pelo Papa, no tinha"autoridade espiritual" para executar ritos religiosos, ela perguntou logo se Moiss, "aquele grandeprofeta e chefe de seu povo" tinha sido ordenado pelo Papa? O primeiro homem, ela afirmava, no

    deve ter sido um homem branco, mas sim um homem de cor, "se no preto, pelo menos vermelho".Pois os sbios no dizem que o homem se originou na sia, e os brancos vieram daquelecontinente? Jesus deve ter sido um africano ou pelo menos uma pessoa bem escura. Seus pais noo esconderam no Egito? E o Egito no est na frica? Se Jesus no fosse escuro, como elespoderiam t-lo escondido entre o povo da frica?

    Pierson cita, ainda, argumentos de Aninha no seu discurso teolgico:

    Somos to cristos como os catlicos. Mas seguimos tambm a lei de Moiss. Ele ordenou que ossacrifcios fossem feitos com carneiros, cabras, bois, galinhas, pombos e assim por diante. No verdade? Ns apenas obedecemos a seus mandamentos. Existem duas partes na Bblia, no assim? Velho e o Novo Testamento. Ns seguimos o Velho tanto quanto o Novo. Antes de Cristo, o

    povo adorava deus com cantos e danas. No verdade? Davi tocava harpa, cantava salmos edanava ante o Senhor. Ns temos nossos cantos tambm e cada um deles tem uma significaoespecial. Assim como os catlicos tm imagens para seus santos, ns temos alguma coisa paralembrar os nossos orixs. Mas no adoramos imagens feitas pelas mos dos homens como elesfazem. Adoramos a natureza.

    E Pierson comenta, neste ponto:

    Basta, talvez, estas citaes para dar uma viso do "mundo mental" desta personagem de projeonos crculos afro-brasileiros. Uma de suas assistentes, uma preta velha que tomava conta doterreiro e que diziam ter mais de noventa anos, tinha um nome africano e falava nag to bem oumelhor que o portugus.

    Aninha afirmava-se, a cada dia, como uma me-de-santo competente, empreendedora eprestigiosa. Sua reputao a fazia procurada por pessoas que se situavam, socialmente, fora dosestratos de classe dominantes nos terreiros de candombl. No comeo da dcada de 1930, Aninhaviajou para o Rio de Janeiro. Sobre esta e outras viagens ao Rio - de navio, carregada de bagagens,levando o ax de seu santo, acompanhada, sempre, de uma pequena corte de filha-de-santo,correm muitas histrias. Cheguei a ver, h muitos anos, mostrada por Senhora, uma lista feita porAninha dos "preparos" para uma "obrigao" que ela fizera no Rio, em favor do restabelecimento doento Presidente Vargas, acidentado, como a famlia, na estrada de Petrpolis (onde andar, hoje,esse papel, nos "guardados" do terreiro?). Sabia-se de suas relaes ntimas com pessoasassociadas ao Governo da Repblica, diplomatas, Ministros, Chefes de Polcia. Dessas viagens ao Rioresultou a criao, ali, de um ramo do Op Afonj, cuja direo entregou sua filha-de-santo

    Agripina Sousa.

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    Corpo de Aninha foi transferido, noite, para a Igreja de Nossa Senhora doRosrio, no Pelourinho, de onde sairia o cortejo fnebre, no dia seguinte...

    Voltou Aninha, do Rio, em 1935. Na sua ausncia, chefiaram o terreiro sua irm-de-santo Fortunata,a dag do terreiro, Silvana, sua filha, a imor e senhora, de Oxum, a ossidag. Dirigiam elas asobrigaes anuais; cuidavam dos filhos da casa; atendiam ao servio dirio dos santos, pois quecertas obrigaes, como a iniciao ou feitura do santo s poderiam ser feitas com a participaopessoal da me do terreiro. E de novo em sua casa, em So Gonalo, Aninha retomou a plena

    direo do Ax, comeando a construo do novo barraco, e de casas para outros santos da casa, eorganizando a Sociedade Cruz Santa do Ax do Op Afonj que teve, como Presidente de honra,precisamente, o babala Martiniano Eliseu do Bonfim, o Ajimud do terreiro.

    Aninha adoeceu - ou comeou a mostrar-se doente, o que no bem a mesma coisa - no comeo de1937. Ainda assim, continuou com seu trabalho na roa, recolhendo as ias que estavam preparadaspara fazer o santo, e seu ltimo barco, com suas ltimas filhas-de-santo, saiu em 13 de dezembrode 1937. Uma semana depois da festa do nome das suas ltimas ias, Aninha piorou e teve deacamar-se. Tambm aqui ser melhor citar, na ntegra, um autor que foi parte do acontecimento -Deoscredes M. dos Santos, Didi, o Assob da casa, ento com vinte e um anos de idade:

    No dia 3 de janeiro de 1938, s nove horas, Iy Ob Biyi reconheceu a hora da morte, uma vez que,

    devido aos seus conhecimentos, estava ciente do seu fim e tinha at roupas preparadas para oenterro. Chamou, ento, seu neto, o Assob (eu prprio), o Ob Ar, Miguel A de Santana e a OssiDagan, Senhora. Chegaram imediatamente e se apresentaram ao lado da cama onde ela seencontrava, em um quarto da atual casa de Ossanhe. Iy Ob Biyi (Me Aninha), j com a fala umpouco incompreensvel, disse: "Ob Ar, Ob Abiodun fica como Presidente da Sociedade, e voc euquero que fique ao lado de Ossi Dagan, Iess orix (nos ps do Santo)".

    Logo em seguida, ela virou lngua e falou em iorub, dizendo algumas coisas que nenhum delesentendeu. Ento ela disse: "No sabem o que perderam". Foi ento que ela pediu para ser levadapara a casa de I, onde faleceu s trs horas da tarde. Quanto s ltimas palavras ditas por Aninha,na lngua sagrada de sua nao-de-santo - e que as pessoas que a assistiam no puderam entender- foram a derradeira afirmao de seu poder, de sua autoridade no terreiro que criara e onde reinara

    de modo absoluto.

    O corpo de Aninha foi transferido, noite, para a Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, noPelourinho, de onde sairia o cortejo fnebre, no dia seguinte, 4 de janeiro, no comeo da tarde, emdireo ao Cemitrio das Quintas dos Lzaros. dison Carneiro e D. M. Santos (Didi) deixaramprecisas descries do sepultamento de Aninha. E o Estado da Bahia de 5 de janeiro publicou sobreo mesmo uma ampla matria, em cinco colunas e com trs fotografias. Segundo a mesma, mais deduas mil pessoas compareceram e acompanharam, a p, o cortejo, at as Quintas; o comrcio dasimediaes da Igreja do Rosrio, no Taboo e na Baixa dos Sapateiros, cerrou suas portas emhomenagem a Aninha, muito querida e respeitada na rea e dela moradora, por longos anos, emcasa vizinha Igreja onde foi velado o seu corpo. Diz, ainda a reportagem, que "o Cnego AssisCurvelo, na capela do cemitrio, fez a encomendao do corpo, seguindo-se o sepultamento em

    cova recm-aberta". Falaram, na ocasio, vrios oradores, entre estes o Sr. lvaro MacDowell deOliveira, em nome da Unio das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia, o escritor dison Carneiro, alm derepresentantes do Centro Cruz Santa e da Irmandade do Rosrio. Por fim, terminada a cerimnia,duas marinettis levaram grande nmero de amigos de Aninha para So Gonalo, a fim de tomarparte nas cerimnias fnebres preparatrias do axex da querida me-de-santo". Devendo-seassinalar, aqui, o fato de entre os oradores, por ocasio do seu sepultamento, haver tambm estadoo velho amigo e irmo Martiniano do Bonfim.

    As figuras de Martiniano e Aninha sobressaem, assim documentadasfartamente [...] at certo ponto mitificadas pela lembrana coletiva dascomunidades dos candombls.

    Por sua vez, D. M. Santos, no captulo "Morte e sucesso de Aninha", do seu livroAx Op Afonj,depois de contar, com pormenores, todas as cadncias do enterro da ialorix, incluindo mesmocertas obrigaes rituais do candombl, conclui:

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    Assim foi sepultada Iy Ob Biyi, Eugnia Ana dos Santos, conhecida por Me Aninha, com asformalidades de praxe dentro da religio catlica e do culto afro-brasileiro. Repousa, atualmente,num belo mausolu oferecido pela Sociedade Beneficente Cruz Santa Op Afonj.

    Define este ltimo trecho as relaes de Aninha com a Igreja Catlica, de cujos ritos e sacramentosela participava com devoo: uma coexistncia doutrinria e ritualstica, sem maiores conflitos emsnteses de carter teolgico, que era esta, afinal, a atitude dominante nas antigas mes-de-santoda Bahia, que sabiam conciliar as duas tradies religiosas para alm das contradies dos dois

    sistemas. Aninha, a poderosa Me de Terreiro do Op Afonj era, tambm, Priora das Irmandadesdo Senhor Bom Jesus dos Martrios e de Nossa Senhora do Rosrio e Provedora Perptua de NossaSenhora da Boa Morte, da Barroquinha. Era, ainda, Irm Remida da Irmandade de So Benedito,nas Quintas.

    Essas as figuras que, no ao acaso, escolhi, para exemplificar o fenmeno da liderana nascomunidades dos terreiros da Bahia nos anos de 1930. O babala Martiniano e a ialorix Aninha,sendo singulares, no foram, entretanto, nicos, naquele universo povoado de personalidadescriativas e dominadoras. L estavam, nesse tempo, Tia Massi, do Engenho Velho; Menininha, doGantois; Dionsia, do Alaqueto; Bernardino, do Bate-Folhas; Procpio, do Ogunj; Cirico, j na VilaAmrica; Cotinha, do Oxumar... e tantos mais. Todos vivendo no mundo das esperanas e dascrises. Nem foram, com certeza, Martiniano e Aninha, imunes crtica, censura velada ou

    ostensiva nem aos sutis mecanismos do "fuxico", instituio universal que, se provoca tenses,igualmente as resolve, pelas estratgias codificadas da linguagem. Omiti, deliberadamente, essesaspectos que no posso chamar de "negativos", da histria lembrada - ou recriada? - dessas figuras

    j lendrias. Fui seletivo no uso das fontes escritas e orais, sem a preocupao de ter, no apoiotalvez excessivo das remisses e notas, a "legitimao" de um ensaio interpretativo de um curtoperodo da histria social da cidade da Bahia. Lembrando, no entanto, que as fontes escritas parauma histria do Candombl so, afinal, as fontes orais da narrativa. Pois o que disseram ospesquisadores - de Carneiro a Verger -, foi recolhido na tradio oral das casas-de-santo: seusmitos, suas, por vezes, contraditrias genealogias, suas racionalizaes sobre o tempo e o espao.Como por exemplo, o livro que citei, muitas vezes, de Deoscredes M. Santos, Didi, fundamentalsob tantos aspectos, para o conhecimento da organizao e da histria de "uma casa de Queto", da"nao de Queto" - que o terreiro fundado por sua "av"Aninha, por tantos anos dirigido por suame Senhora, , tambm, e sobretudo a tradio oral da casa, cuidadosamente escrita, evitandoreferncias a fatos polmicos relacionados com genealogias imprecisas ou sucesses discutveis.

    As figuras de Martiniano e Aninha sobressaem, assim documentadas fartamente em pontossecundrios mas muito importantes, ntidas todavia, at certo ponto mitificadas pela lembranacoletiva das comunidades dos candombls. De um ponto de vista historiogrfico (e falo como umantroplogo que no renega a Histria), dentro da abordagem valorativa do cotidiano e dasmentalidades, os documentos que formam a correspondncia ativa de dison Carneiro a ArturRamos ficam, a partir de agora, disposio dos estudiosos e dos especialistas. Neste ensaio ounesta tentativa de interpretao, fui, como disse antes, seletivo e crtico. Optei, s vezes, pelaverso de um certo fato com base na confiabilidade de um determinado informante ou em rarosdocumentos oficiais - como o testamento de Marcela da Silva, a antiga me-de-santo do EngenhoVelho, que, devidevidamente analisado, poder ajudar a esclarecer a debatida cronologia das casas"de Queto" da Bahia, originadas do Engenho Velho, da casa de I Nass.

    Tentei, dessa maneira, contribuir, no campo da etnohistria, para a ampliao do conhecimentoacerca da participao do negro na sociedade nacional, expondo um quadro narrativo do candomblna Bahia dos anos trinta, ressaltando as personalidades de seus lderes e a lembrana encapsuladalatente nos terreiros e neles atuando em meio s formas novas de conhecimento e de poder.